summaryrefslogtreecommitdiff
path: root/31905-h
diff options
context:
space:
mode:
authorRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-14 19:56:39 -0700
committerRoger Frank <rfrank@pglaf.org>2025-10-14 19:56:39 -0700
commitf53dd71c832115f9a033b8e1580b3ffb90b20040 (patch)
treed1844d49b7bfd19b7a657bc65b9ce7daa5d6ab1f /31905-h
initial commit of ebook 31905HEADmain
Diffstat (limited to '31905-h')
-rw-r--r--31905-h/31905-h.htm4884
1 files changed, 4884 insertions, 0 deletions
diff --git a/31905-h/31905-h.htm b/31905-h/31905-h.htm
new file mode 100644
index 0000000..a07eb0a
--- /dev/null
+++ b/31905-h/31905-h.htm
@@ -0,0 +1,4884 @@
+<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.0 Transitional//EN">
+<html lang="pt">
+<head>
+ <title>Contos, por João da Camara</title>
+ <meta name="Author" content="João da Câmara">
+ <meta name="Edition"
+ content="Lisboa. Livraria Editora Guimarães, Libanio e c.ia, 1900.">
+ <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15">
+ <style type="text/css">
+ body{margin-left: 10%;
+ margin-right: 10%;
+ }
+ .pn {
+ text-indent: 0em;
+ position: absolute;
+ left: 92%;
+ font-size: smaller;
+ text-align: right;
+ color: silver;
+ }
+ h1,h2,h3 {text-align: center; margin-top: 3em; margin-bottom: 2em;}
+ #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1em;}
+ #corpo p.centrado {text-align: center; text-indent: 0;}
+ hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;}
+ hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;}
+ a {text-decoration: none;}
+ blockquote {margin-left: 20%; font-size: 0.9em;}
+ .rodape {
+ font-size: 0.8em;
+ margin: 2em;
+ }
+ .fbox {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size:
+75%; margin-left: 10%; margin-right: 10%;}
+ </style>
+</head>
+
+<body>
+
+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Contos
+
+Author: João da Camara
+
+Release Date: April 6, 2010 [EBook #31905]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano (This file was produced from
+images generously made available by The Internet Archive)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div style="text-align:center; padding: 1em; border: double 10px #000;">
+<p>&nbsp;</p>
+<p style="font-size: 1.8em;">J<small>OÃO DA</small> C<small>AMARA</small></p>
+
+<hr style="height: 4px; border-top: solid 1px #000; width: 30%;">
+
+<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>1900<br>
+
+<em>LIVRARIA EDITORA</em><br>
+
+G<small>UIMARÃES, </small>L<small>IBANIO</small> &amp; C.<sup>ia</sup><br>
+
+<em>108, Rua de S. Roque, 110</em><br>
+
+LISBOA</p>
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 1.5em;">CONTOS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center; padding: 1em;">
+<p>&nbsp;</p>
+<p style="font-size: 1.8em;">JOÃO DA CAMARA</p>
+
+<hr style="height: 4px; border-top: solid 1px #000; width: 30%;">
+
+<p style="font-size: 2.5em;">CONTOS</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>1900<br>
+
+<em>LIVRARIA EDITORA</em><br>
+
+G<small>UIMARÃES, </small>L<small>IBANIO</small> &amp; C.<sup>ia</sup><br>
+
+<em>108, Rua de S. Roque, 110</em><br>
+
+LISBOA</p>
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p><span class="pn">{1}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<h1><a name="SECTION00010">AS MÃES</a> </h1>
+
+<p>O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das
+queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros
+amarellos.</p>
+
+<p>O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e
+cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada
+erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda<span
+class="pn">{2}</span> conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho
+abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida.
+Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas
+por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas
+sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír
+a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste
+uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra.</p>
+
+<p>Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher
+nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas,
+rijas, cujo acido lhe mitigava a sede.</p>
+
+<p>Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de
+soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito
+desfeito.</p>
+
+<p>O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio:&mdash;«Deite-me isto
+abaixo, ó mestre,<span class="pn">{3}</span> e talhe-me n'esta cara uma suissa
+como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.»</p>
+
+<p>E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de
+usar.</p>
+
+<p>O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a
+mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de
+senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas
+altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar,
+lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem
+ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas
+amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho,
+quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha
+sombras na terra!</p>
+
+<p>Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo.</p>
+
+<p>Lembrava-se, cheio de saudades, das boas<span class="pn">{4}</span>
+historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando
+lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura
+da poeira sombras de gigantes.</p>
+
+<p>O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do
+quartel!</p>
+
+<p>Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á
+direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se <em>chó!</em> aos burros,
+pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de
+bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de
+dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de
+malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por
+qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas
+que uma ginja.</p>
+
+<p>Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia.</p>
+
+<p>E, ao pensar na fonte, alargou o passo.<span class="pn">{5}</span></p>
+
+<p>É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a
+agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na
+sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do
+estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas!</p>
+
+<p>Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá
+passava mais depressa.</p>
+
+<p>Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita
+perdida na treva:</p>
+
+<p>&mdash;Sentinella, álérta!</p>
+
+<p>E elle respondia, engrossando a voz:</p>
+
+<p>&mdash;Álérta está!... Sentinella álérta!</p>
+
+<p>E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo
+pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.</p>
+
+<p>Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés
+começam fumegando e debaixo das parreiras,<span class="pn">{6}</span> emquanto
+a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de
+casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e
+agasalho.</p>
+
+<p>E ria feliz com aquella idéa divertida.</p>
+
+<p>A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!</p>
+
+<p>Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia
+enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a
+sua pobreza.</p>
+
+<p>Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos.
+Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre
+comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se
+não estragarem.</p>
+
+<p>E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia
+novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro,
+cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.<span
+class="pn">{7}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa.</p>
+
+<p>Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente
+de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta
+a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de
+madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos
+passarinhos.</p>
+
+<p>Não havia sitio melhor para descançar um bocado.</p>
+
+<p>No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um
+queijinho pequeno.</p>
+
+<p>É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o
+calor!</p>
+
+<p>Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em
+fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras,
+emquanto muito<span class="pn">{8}</span> alto, parecendo pontos negros no azul
+do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro
+morto, que apodrecia entre os rochedos.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e
+algum tanto abrandára o calor.</p>
+
+<p>Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da
+viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi
+toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas
+largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na
+ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.</p>
+
+<p>Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle
+pequeno.</p>
+
+<p>&mdash;Adeus, ó cachopinho! gritou.<span class="pn">{9}</span></p>
+
+<p>&mdash;Saude! respondeu o pequeno.</p>
+
+<p>Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se,
+espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para
+desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se
+alegremente a caminho.</p>
+
+<p>Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não
+encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das
+sementeiras.</p>
+
+<p>Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa
+antes do anoitecer.</p>
+
+<p>Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu.</p>
+
+<p>As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto,
+constantes no mesmo logar, batendo muito as azas.</p>
+
+<p>Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho
+que havia de tomar. Passava a mão pela cara,<span class="pn">{10}</span>
+devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito,
+sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação.</p>
+
+<p>E que tentação não era!... Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul!</p>
+
+<p>A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os
+joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de
+rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas!
+Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos,
+muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio
+apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade... E elle parado ali...
+cheio de duvidas!</p>
+
+<p>Seguindo sempre em frente, mal chegasse ao alto, veria na encosta fronteira
+a casa onde nascera, muito caiada, com a cimalha pintada de azul, a porta
+vermelha, a nogueira a que se encosta a vide cheia de cachos<span
+class="pn">{11}</span> tentadores, e uma volutazinha de fumo azulado a subir, a
+subir até desvanecer-se, signal da recompensa depois do dia de trabalho, a boa
+ceia quente, o lume que desenregela. Seguindo sempre em frente, passado um
+quarto d'hora, estaria nos braços da mãe, seccando-lhe as lagrimas,
+trazendo-lhe o coração que levára.</p>
+
+<p>E continuava em duvidas! Pois a quem mais do que á mãe queria elle?</p>
+
+<p>E por fim quando se resolveu... tomou para a esquerda.</p>
+
+<p>Pobre mãe!<span class="pn">{12}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{13}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00020">O BAILE DOS VELHOS</a> </h1>
+
+<p>Houve esta noite festa rija em casa dos padeiros.</p>
+
+<p>Casados ha cincoenta annos, festejaram com estrondo o anniversario do
+casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu.
+Isso sim! Das oito á meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem
+faltaram pares no meio da casa.<span class="pn">{14}</span></p>
+
+<p>Ficou logo combinado, mal o Antonio Pataco falou n'aquillo:&mdash;quem não
+foi convidado para a boda, tambem não dançou n'aquella noite, nem comeu os
+leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice
+fóra com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis,
+todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que
+attender a tanta senhora, não querendo escandalisar nenhuma.</p>
+
+<p>A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela illuminação.
+Das vigas do tecto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro vellas
+sobre as mezas dos cantos. Á roda da casa, no friso caiado, tinham disposto a
+loiça branca e na chaminé um grande tronco de asinho ardia, rodeado de piorno,
+fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um
+tropheu, do outro lado da casa.</p>
+
+<p>Quando um homem pensa que, além d'aquella riqueza, o Antonio Pataco tinha
+mais<span class="pn">{15}</span> do que outro tanto em serviço na cosinha, e
+que tudo aquillo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que elle
+tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica,
+fechada provisoriamente n'aquella noite n'um dos quartos do sotam da casa?</p>
+
+<p>O prior velho foi quem presidiu á festa como é de ver. Está cego de todo,
+coitado; mas, apezar d'isso e de andar algum tanto acabrunhado desde que não
+póde ler no missal, attendendo a ter sido quem os casára, lá se arrastou
+conforme pôde, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa
+bengala de castãosinho de prata, amarellada pelo uso, tremendo na mão d'elle,
+assistiu a toda a festa, até de madrugada, sacudindo em ar de approvação a
+cabeça muito calva, onde apenas meia duzia de cabellos brancos muito compridos,
+esvoaçavam, tenuissimos, no ar agitado.</p>
+
+<p>Até á meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar.<span
+class="pn">{16}</span></p>
+
+<p>O Bento não se cançou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para
+não se mexer o tamanho do ventre, que vae tomando com a edade proporções
+medonhas. Alguns quizeram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a
+enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou,
+como por acaso, nas canellas do mestre-escola.</p>
+
+<p>A pobre guitarra, velha tambem, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de
+fandangos antigos, e era de vêr como aquelles bons velhos, talvez enganados
+pelo som d'aquellas cordas que os transportava cincoenta annos para traz,
+ouvindo aquella musica alegre, que lhes trazia recordações risonhas da
+mocidade, crearam novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos
+bravos, ligeiros como arveloas, sorrindo-se como se ainda se namorassem, como,
+havia meio seculo, se sorriam e namoravam.</p>
+
+<p>Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.<span
+class="pn">{17}</span></p>
+
+<p>&mdash;Ahi, rapaz! gritou-lhe o Bento.</p>
+
+<p>Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu bello calção de briche fino, o
+collete verde de botões de vidro, as boas polainas hespanholas, parecia ter
+voltado aos trinta annos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito,
+baloiçando os braços, fazendo estalar os dedos.</p>
+
+<p>A mulher custou-lhe mais por causa do rheumatismo; mas, apezar de muito
+dobrada, lá se animou. Levando aquillo muito a serio, dançou perto d'um quarto
+de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que
+n'outros tempos o tornaram falado por todas aquellas aldeias.</p>
+
+<p>E só a idéa d'aquella saiasinha amarella, remexendo-se, tremula, por toda a
+casa, perseguida por aquelle velho cheio de cabellos brancos e de rugas, fazia
+rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar
+incerto, ora para um lado, ora para o outro, n'um menear constante de
+cabeça.<span class="pn">{18}</span></p>
+
+<p>&mdash;Está seculo e meio dançando, disse o mestre escola com a gravidade do
+officio.</p>
+
+<p>&mdash;E muitos pósinhos, e muitos pósinhos! accrescentou o Prior,
+continuando a rir.</p>
+
+<p>Todos applaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.</p>
+
+<p>&mdash;Não posso, não posso mais! declarou a velhinha deixando-se caír
+esfalfada num tropeço, ao pé da lareira.</p>
+
+<p>&mdash;Quem vem então? perguntou o Antonio, limpando o suor.</p>
+
+<p>E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando
+a perna, com um sorriso orgulhoso.</p>
+
+<p>Muito se dançou n'aquella noite, em casa dos padeiros!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Mas o melhor foi a ceia.</p>
+
+<p>O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antonio, muito naturalmente de
+proposito, sentou-o logo entre a Marianna Coxa e a Maria do Rosario.
+Imaginem!<span class="pn">{19}</span></p>
+
+<p>Todos se lembravam ainda de quando ellas, á volta da fonte, se arranharam,
+por detraz do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas.</p>
+
+<p>Agora, muito tremulas, muito engelhadas, de um lado e outro d'aquelle
+coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços
+muito recolhidos, tocando quasi com as barbas para cima nos narizes para
+baixo.</p>
+
+<p>Emquanto se tomou a canja, houve um silencio quasi geral, apenas
+interrompido pelos recados do padeiro á velha criada Mathilde ou pelos convites
+aos assistentes.</p>
+
+<p>&mdash;O cangirão. Vai já deitando. Começa aqui pelo sr. Prior. Mais uma
+colherinha de canja, tia Ignez?</p>
+
+<p>E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da
+bocca e sorviam depois o caldo, com uns apitosinhos gulosos, fechando os olhos;
+alguns amolleciam na canja as codeas de pão, e o padeiro, de pé, observando,
+com a concha<span class="pn">{20}</span> mettida na enorme terrina, lançava em
+redor um olhar attento de bom dono de casa, prompto para dar mais a quem
+pedisse.</p>
+
+<p>&mdash;Senta-te e come, disse-lhe a mulher. Que afflicção!</p>
+
+<p>&mdash;Sente-se e coma; isso mesmo! Entre rapazes não ha cerimonias. Quem
+quizer mais peça por bocca, gritou o Bento, estendendo o prato.</p>
+
+<p>Mas já então a Mathilde vinha trazendo os assados.</p>
+
+<p>Os convidados limpavam os beiços á toalha e os homens despejavam os copos
+para abrir o appetite.</p>
+
+<p>Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas
+discussões, por não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um
+magnifico perum ostentava a opulencia das carnes aloiradas, espetou-lhes o
+garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladissimo, depois de
+attentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua pericia, a
+trinchar,<span class="pn">{21}</span> seguindo com olhares gulosos os bocados,
+que iam cahindo.</p>
+
+<p>O cangirão já voltára por tres vezes á cosinha, quando a padeira começou a
+servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam
+caindo os baguinhos na toalha.</p>
+
+<p>O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do collete.</p>
+
+<p>Foi então que, depois d'um segredo, que o Antonio Pataco lhe disse ao ouvido
+com ar de muito misterio, a Mathilde sahiu, entrando pouco depois com os
+leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas de garrafas, que poz sobre a
+meza defronte do padeiro.</p>
+
+<p>&mdash;Sabem, meus senhores?... Garrafas lacradas por mim no dia do meu
+casamento. Os seus copos, façam favor... Ora adeus! O que é isso, sr.
+professor? O copo maior... Então? O vinho é o sangue dos velhos.</p>
+
+<p>O sangue não sei, a lingua é com certeza. Instantes depois, a algazarra
+subira de<span class="pn">{22}</span> tom a tal ponto, que o professor, de pé,
+examinando á luz a transparencia da amethista enorme que lhe refulgia no copo,
+teve de pedir auxilio ao dono da casa para impôr silencio á velhada.</p>
+
+<p>&mdash;Meus senhores... começou.</p>
+
+<p>Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o
+mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam áquella
+festa, puzeram-se ellas a gritar:</p>
+
+<p>&mdash;Basta! Basta! Não queremos tristezas!</p>
+
+<p>Deus me perdõe, mas está me parecendo que o vinho lhes subira ás cabecinhas
+brancas.</p>
+
+<p>Não sei se o professor tambem desconfiou da coisa. Muito offendido, todo
+vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a immensa
+berraria, pousou o copo sobre a meza e começou a atacar o queijo,
+resmungando.</p>
+
+<p>O Bento é que teve as honras da noite, contando historias da sua
+mocidade.<span class="pn">{23}</span></p>
+
+<p>Rapaz perfeito, dono de tres moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o
+queriam.</p>
+
+<p>&mdash;E mal sabes tu, Antonio, uma coisa. A tua Josepha tambem me esperava
+á porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadella!</p>
+
+<p>&mdash;Que é lá isso? perguntou o Antonio, erguendo-se, entornando o copo
+sobre a meza e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho
+que tinha na bocca.</p>
+
+<p>Como o Antonio tem mau genio, a questão esteve por um triz a azedar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda tu acreditas n'aquelle traste! disse a Josepha levantando a mão
+e como que ameaçando o Bento d'uma tremenda bofetada.</p>
+
+<p>&mdash;É verdade, sim senhores, é verdade! teimava o Bento, estirado por
+cima da meza, de collete já todo desabotoado.</p>
+
+<p>Os outros velhos protestavam, rindo muito. O Prior serenava o Antonio. Elle
+bem devia ver que tudo aquillo era troça e que o Bento estava a brincar.<span
+class="pn">{24}</span></p>
+
+<p>&mdash;E quem sabe? continuou este. Talvez que você não festejasse hoje o
+anniversario do seu casamento, se eu n'esse tempo não andasse meio parvo por
+causa ali da tia Domingas.</p>
+
+<p>&mdash;Anh? perguntou a tia Domingas, approximando da orelha o concavo da
+mão.</p>
+
+<p>&mdash;Que andou meio parvo por vocemecê, explicou o Prior a berrar.</p>
+
+<p>A tia Domingas, um poucochinho tonta, engoliu com muito esforço um grande
+bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda
+commovida:</p>
+
+<p>&mdash;Não me fale n'esse tempo, sr. Bento, não me fale n'esse tempo!</p>
+
+<p>E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do
+mestre-escola.</p>
+
+<p>&mdash;Que tem, sr. Matheus? perguntou-lhe o Prior. Ha muito que lhe não
+oiço a voz.</p>
+
+<p>&mdash;Vossa Reverencia bem sabe que nunca fui...</p>
+
+<p>&mdash;Sei, sei, interrompeu o Prior. Aqui a sr.ª Bernarda que diga o que
+vocemecê foi.<span class="pn">{25}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das
+janéllas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sahir.</p>
+
+<p>O Prior cabeceava, havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e
+muito mentir, assentara sobre o peitilho bordado a segunda barba rubicunda,
+olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de somno
+mal combatido.</p>
+
+<p>Havia longos silencios e bocejos profundos.</p>
+
+<p>Então as velhas lembraram-se de, como havia cincoenta annos, acompanhar a
+Josepha ao quarto.</p>
+
+<p>E pelo corredor a Josepha, com a sua saiasinha amarella, bordada, com largas
+fitas de velludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antonio, que, por
+brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era
+costume.<span class="pn">{26}</span></p>
+
+<p>Pararam todos á porta.</p>
+
+<p>Pela janella entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o
+d'uma serena meia claridade.</p>
+
+<p>O quarto estava na mesma: o oratorio defronte da porta sobre a commoda de
+pau santo, á direita o bahu encoirado, tapado com uma chita de ramagens, ao
+fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma
+ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas,
+alvejavam na penumbra.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Havia cincoenta annos!<span class="pn">{27}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00030">A OUTRA</a> </h1>
+
+<p>Era em fins d'agosto, á hora do meio dia.</p>
+
+<p>Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a
+cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens
+amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.</p>
+
+<p>Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam<span class="pn">{28}</span>
+mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a
+sesta.</p>
+
+<p>Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas
+na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes,
+que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum
+rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com
+os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o
+somno.</p>
+
+<p>O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos,
+reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados,
+que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro
+de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de
+metal.</p>
+
+<p>Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o
+melhor<span class="pn">{29}</span> caçador da aldeia, com a rede quasi a
+trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos.</p>
+
+<p>Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na
+frente.</p>
+
+<p>Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta,
+encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha
+como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado.</p>
+
+<p>Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes.</p>
+
+<p>&mdash;Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa
+cheia e cartuxeira vasia.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Tempos!... Tempos!</p>
+
+<p>Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella
+hora.</p>
+
+<p>Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da
+janella<span class="pn">{30}</span> e, com as faces incendiadas, o ouvido
+attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra,
+deixava correr em fio as lagrimas silenciosas.</p>
+
+<p>E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão
+triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os
+outros:&mdash;Coitadinha!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>O que lhe custava...! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que
+passára!</p>
+
+<p>Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais,
+ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira!</p>
+
+<p>Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado
+no proprio dia em que dera por aquelles amores!</p>
+
+<p>O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera
+buscal-a<span class="pn">{31}</span> por um braço, arrastára-a pela escada até
+ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando
+chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas:&mdash;Senhora!</p>
+
+<p>E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de
+beijos.</p>
+
+<p>Ainda não pensára n'aquillo...! Pois tão nova ainda, havia de assim
+deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um
+conquistador!</p>
+
+<p>Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o
+que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.</p>
+
+<p>Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se
+elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das
+aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra
+vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.</p>
+
+<p>Junto da porta crescia uma roseira, que<span class="pn">{32}</span> mettêra
+para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas
+pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos
+ninhos.</p>
+
+<p>O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo respirando
+aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que
+recordações.</p>
+
+<p>Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço
+muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe
+a carnadura branca, sadia e forte.</p>
+
+<p>O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento
+languido, vergando a um suspiro da noite.</p>
+
+<p>O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros
+resignado.</p>
+
+<p>&mdash;É preciso casar-te, não ha remedio.</p>
+
+<p>Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos
+conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de
+abandonar um<span class="pn">{33}</span> dia, não porque fosse mau, mas porque
+era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que
+tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia.</p>
+
+<p>Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no
+casamento!</p>
+
+<p>Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella
+historia!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a
+que iria tambem o José Miguel.</p>
+
+<p>Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta.</p>
+
+<p>&mdash;Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora
+que está á sua espera no adro!</p>
+
+<p>&mdash;Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio.<span
+class="pn">{34}</span></p>
+
+<p>E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala
+verde, que usava havia dez annos.</p>
+
+<p>&mdash;Adeus! disse ao José Miguel com máu modo.</p>
+
+<p>&mdash;Sr. Eustachio...! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e
+atarantado.</p>
+
+<p>E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz
+das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe
+sorria por entre muitas lagrimas.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para
+o outro.</p>
+
+<p>&mdash;Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje
+m'as has de pagar!</p>
+
+<p>Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com
+impaciencia.</p>
+
+<p>Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu
+com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era
+no<span class="pn">{35}</span> fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto
+das perdizes.</p>
+
+<p>Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no
+gatilho, esperava que as perdizes levantassem.</p>
+
+<p>&mdash;Entra, cão!</p>
+
+<p>Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho
+caçador fez um movimento de máu genio.</p>
+
+<p>Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente,
+descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um
+instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e
+deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes.</p>
+
+<p>&mdash;Que é lá isso? perguntou o Eustachio.</p>
+
+<p>&mdash;O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta.
+São duas perdizes.</p>
+
+<p>E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não
+ouvisse:<span class="pn">{36}</span></p>
+
+<p>&mdash;E dois <em>bigodes</em>. Elle que os vá contando.</p>
+
+<p>E contou-os, e não foram poucos.</p>
+
+<p>Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o.</p>
+
+<p>&mdash;Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era
+tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior.</p>
+
+<p>E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro:</p>
+
+<p>&mdash;Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda?</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira
+vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado!</p>
+
+<p>&mdash;Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é
+um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva!<span
+class="pn">{37}</span></p>
+
+<p>Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?</p>
+
+<p>O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a
+rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da
+filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a.</p>
+
+<p>O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>O bom tempo tem azas.</p>
+
+<p>Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a
+triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e
+das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do <em>Valente</em>,
+que voltava da caça.</p>
+
+<p>Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava
+a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com
+muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte<span
+class="pn">{38}</span> do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido
+em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa.</p>
+
+<p>Então o <em>Valente</em> entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro,
+querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr,
+enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de
+munição.</p>
+
+<p>O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça,
+sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco,
+bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um
+bello ah! de satisfação.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a
+grande cadeira de páu santo.</p>
+
+<p>E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a
+terrina e enterrava a concha nas sopas.</p>
+
+<p>Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia.<span
+class="pn">{39}</span></p>
+
+<p>Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de
+novo.</p>
+
+<p>Elle então contava façanhas do <em>Valente</em>, que, saciada a fome, muito
+sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com
+paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa.</p>
+
+<p>Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.</p>
+
+<p>Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da
+breca! O que elle andára por aquelles mattos!</p>
+
+<p>A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os
+dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos
+cantos.</p>
+
+<p>Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão
+cheia!</p>
+
+<p>&mdash;Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo
+orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia.<span
+class="pn">{40}</span></p>
+
+<p>E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.</p>
+
+<p>&mdash;São de ferro!</p>
+
+<p>O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á
+sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.</p>
+
+<p>Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar
+conselhos ao genro, que o escutava attencioso.</p>
+
+<p>Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o
+sogro, matando-lhe a caça que este errava.</p>
+
+<p>&mdash;Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este,
+para a conta.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta
+noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar.</p>
+
+<p>Quando o marido sahia, punha-se á janella<span class="pn">{41}</span> e
+via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa.
+Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O
+<em>Valente</em> seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar
+o dono. Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo
+tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a
+elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo
+se desfazia no azul do céu.</p>
+
+<p>Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha.</p>
+
+<p>&mdash;O teu homem?</p>
+
+<p>&mdash;Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á
+pressa limpando as lagrimas.<span class="pn">{42}</span></p>
+
+<p>O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o
+polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.</p>
+
+<p>&mdash;Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que
+eu vou procural-o.</p>
+
+<p>A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos.</p>
+
+<p>&mdash;Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára!</p>
+
+<p>&mdash;Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha!
+respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha,
+sabes o que vou fazer?</p>
+
+<p>&mdash;Ó meu pae!... disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo
+segurar-lhe os braços.</p>
+
+<p>&mdash;Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que
+ambos merecem. Tu sabes quem ella é?</p>
+
+<p>A Marianna disse que não com a cabeça.<span class="pn">{43}</span></p>
+
+<p>Mas não havia de saber!...</p>
+
+<p>&mdash;A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado
+cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem... e a
+ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!</p>
+
+<p>E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.</p>
+
+<p>A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para
+gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na
+desgraça, que lhe estava acontecendo.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão
+conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o
+<em>Valente</em> rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar,
+a arranhar na porta do pateo.<span class="pn">{44}</span></p>
+
+<p>Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam
+não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.</p>
+
+<p>A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu
+soluçando nos braços do marido.</p>
+
+<p>&mdash;O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um
+nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o
+disparate, tinha o deixado lá ficar.</p>
+
+<p>&mdash;Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito
+commovido.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa.</p>
+
+<p>A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria
+nos olhos vivos da Marianna.</p>
+
+<p>Que se haveria passado?<span class="pn">{45}</span></p>
+
+<p>Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito
+animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo
+d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção,
+lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.</p>
+
+<p>&mdash;Não é só na caça que se apanham <em>bigodes</em> sr. Eustachio.</p>
+
+<p>&mdash;Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje...!</p>
+
+<p>O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um
+sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio
+beijal-a muito.</p>
+
+<p>&mdash;Coitada da Marianna!</p>
+
+<p>&mdash;Então ella... enganou-te?</p>
+
+<p>&mdash;Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa?</p>
+
+<p>A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita.</p>
+
+<p>&mdash;Com quem?... Dize... Dize... Com quem?<span class="pn">{46}</span></p>
+
+<p>Então o mestre-escola, muito córado&mdash;era talvez da pinga? entendeu
+dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a
+esfregar as mãos.<span class="pn">{47}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00040">O PAQUETE</a> </h1>
+
+<p>Era no fim da azinhaga&mdash;uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno
+e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um
+lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas
+carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a
+espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas,<span
+class="pn">{48}</span> loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das
+longas folhas agudas.</p>
+
+<p>No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.</p>
+
+<p>A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo
+abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia
+cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que
+desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado.</p>
+
+<p>Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos,
+conduzia do pateo ao vestibulo do palacio.</p>
+
+<p>Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco,
+ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava
+ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.</p>
+
+<p>Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos
+caixilhos de chumbo.</p>
+
+<p>Pelo pateo, nos intersticios das pedras,<span class="pn">{49}</span> crescia
+livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao
+monotono coaxar das rãs do pantano visinho.</p>
+
+<p>O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos
+de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente.</p>
+
+<p>A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão.</p>
+
+<p>Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem
+caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a
+estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra.</p>
+
+<p>Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios
+amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e
+francezas.</p>
+
+<p>A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era
+occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito,
+sympathico. Estava<span class="pn">{50}</span> vestido á epocha de D. João V.
+Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra
+exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura
+deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha
+tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela.</p>
+
+<p>O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a
+cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre
+a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de
+Suetonio.</p>
+
+<p>O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio
+brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz
+do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma
+tinta geral.</p>
+
+<p>O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia.</p>
+
+<p>O vento do norte entrando pelas fendas<span class="pn">{51}</span> das
+paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de
+chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio,
+começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota
+extranha d'uma lingua esquecida.</p>
+
+<p>Meiados de novembro, as noites eram frias.</p>
+
+<p>O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores
+alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio
+dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo
+as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.</p>
+
+<p>Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez
+madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do
+casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a edade ia
+apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos velhos<span
+class="pn">{52}</span> e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão
+doce e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e altiva
+quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica tristeza
+quando sorria.</p>
+
+<p>Ao toque da campainha accudiu um criado.</p>
+
+<p>Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida uma
+casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem o estofo
+accumuladas passagens de linha preta.</p>
+
+<p>Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos.</p>
+
+<p>&mdash;José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a
+arranja o lume.</p>
+
+<p>&mdash;Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças.</p>
+
+<p>&mdash;Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias.</p>
+
+<p>&mdash;O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde.<span
+class="pn">{53}</span></p>
+
+<p>&mdash;Foi-se hoje embora! Porque?</p>
+
+<p>&mdash;Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o
+homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam
+atrazaditos...</p>
+
+<p>&mdash;Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo... Ora,
+coitado! Mas, porque não me disse elle?... Eu esqueço-me de tudo. Has de
+dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa.</p>
+
+<p>E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do soalho.
+O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma pederneira, porque o
+Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, pouco depois, uma chamma viva e
+alegre trepava pela chaminé.</p>
+
+<p>O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um bocado
+do seu palacio.</p>
+
+<p>Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez
+quartos<span class="pn">{54}</span> completos, o do Conde, o do José e a
+livraria. Taboas, vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas.</p>
+
+<p>E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé
+do palacio, sorriam tristemente e diziam:</p>
+
+<p>&mdash;Coitado!</p>
+
+<p>Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe faltára,
+Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não pensava no estado
+de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria
+pensar.</p>
+
+<p>Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um
+certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o estimavam e
+gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e afflicto com a
+miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o
+acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço:</p>
+
+<p>&mdash;José, deixa um pinto em cima da<span class="pn">{55}</span> mesa para
+esta pobre gente festejar o domingo.</p>
+
+<p>E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas,
+que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de
+curiosidade.</p>
+
+<p>O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos depois,
+levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com
+os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia de jantar n'aquelle
+dia.</p>
+
+<p>E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle dizia,
+com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos doirados
+d'um futuro melhor.</p>
+
+<p>Tinha um filho.</p>
+
+<p>Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o
+Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da
+fortuna.</p>
+
+<p>E não fôra a ambição que o levára tão<span class="pn">{56}</span> longe. Não
+ignorava elle a maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo
+custava-lhe sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos.</p>
+
+<p>Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia
+d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio
+que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. Repellida
+primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, com o coração
+esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o
+seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho.</p>
+
+<p>Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os poucos
+pintos que rendeu mais uma hypotheca.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme
+n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a<span
+class="pn">{57}</span> dôr foi abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos
+habitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Uma tarde chegou uma carta que dizia:</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>«Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder
+enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.»</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O Conde procurou <em>paquete</em> no diccionario de Moraes, mas achou a
+palavra comida pela traça.</p>
+
+<p>O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume,
+acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, disse para
+o Conde, com quem o resára em voz alta:</p>
+
+<p>&mdash;Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve,
+Rainha.<span class="pn">{58}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>E passou-se mez e meio e o Conde dizia:</p>
+
+<p>&mdash;O que será <em>paquete</em>?</p>
+
+<p>De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem vêl-os
+queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. Quando via algum
+jornal murmurava logo!</p>
+
+<p>&mdash;Maçonaria!</p>
+
+<p>E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. Sebastião,
+com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias.</p>
+
+<p>O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, por
+taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este dormia
+agora na camara do Conde.</p>
+
+<p>E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas
+carcomidas:</p>
+
+<p>&mdash;Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete.<span
+class="pn">{59}</span></p>
+
+<p>E o José apenas respondia:</p>
+
+<p>&mdash;Salve, Rainha.</p>
+
+<p>Estava-se no principio de janeiro.</p>
+
+<p>O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis e a
+dos livros inuteis.</p>
+
+<p>Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as
+paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas
+tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia
+mentalmente, como que pedindo desculpa:</p>
+
+<p>&mdash;São os peores.</p>
+
+<p>Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os
+restantes.</p>
+
+<p>Duraram dois dias.</p>
+
+<p>E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um modo
+menos respeitoso para o missal romano.</p>
+
+<p>O José triplicava o numero das <em>salve-rainhas</em>.</p>
+
+<p>E o paquete não chegava, e os manuscriptos<span class="pn">{60}</span>
+arderam, e o Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Passados dias chegou uma carta.</p>
+
+<p>Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, uma
+lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de caligraphia. Trazia
+a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra.</p>
+
+<p>Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde estendia
+instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou
+gritando:</p>
+
+<p>&mdash;O paquete! o paquete!</p>
+
+<p>O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.</p>
+
+<p>Era talvez a riqueza!</p>
+
+<p>Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.</p>
+
+<p>Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto.</p>
+
+<p>E leu:<span class="pn">{61}</span></p>
+
+<p>«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu
+filho...»</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta.</p>
+
+<p>José exclamava:</p>
+
+<p>&mdash;Perdidos! Perdidos!</p>
+
+<p>E dava com a cabeça nas paredes.</p>
+
+<p>O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel
+azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.</p>
+
+<p>&mdash;Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente
+a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por amor
+de Deus, um bocado de pão.</p>
+
+<p>E depois soluçando:</p>
+
+<p>&mdash;Manuel! Filho!... Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde
+queimou o Suetonio.<span class="pn">{62}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{63}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00050">PERDIDO</a> </h1>
+
+<p>Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite,
+entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um
+sussurro!... Tudo dormia áquella hora.</p>
+
+<p>Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que
+tinha de atravessar.</p>
+
+<p>Tudo era em silencio; apenas, muito ao<span class="pn">{64}</span> longe,
+junto á fonte, uma rã solitaria coaxava tristemente.</p>
+
+<p>A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou
+quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos da
+beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela encosta em
+pujante vegetação sombria.</p>
+
+<p>Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar
+compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á escuta, olho á
+espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto de bico, prompto para
+a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a
+caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado,
+como se fosse commetter um crime.</p>
+
+<p>Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua,
+n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram
+deixando cair<span class="pn">{65}</span> grossos pingos d'agua sobre a rama
+dos pinheiros.</p>
+
+<p>O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos,
+fantasticos, em meio do sussurro da folhagem.</p>
+
+<p>Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A
+chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar,
+iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que tremeluziam no
+extremo das agulhas.</p>
+
+<p>Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde tantos
+annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha palpal-o,
+tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer tamanho o céo de
+temporal e os pinheiros a gemerem.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do
+guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.<span
+class="pn">{66}</span></p>
+
+<p>O avarento approximou-se pé ante pé.</p>
+
+<p>&mdash;É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas,
+interrompendo o canto. Se eu não comi!... Seccou-se-me o leite.</p>
+
+<p>E chorava.</p>
+
+<p>Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!... Tinha
+fome, dizia. E elle?... Tinha frio. E elle? O filho definhava-se, desde que o
+marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe fôra possivel, a elle,
+dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!</p>
+
+<p>Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida, offendida pela
+recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe ladrão, assassino,
+pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.</p>
+
+<p>&mdash;Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima da
+cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama,... ladrão!</p>
+
+<p>E só a idéa de poder um dia ser assassinado,<span class="pn">{67}</span>
+roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que
+lhe erriçou todos os pelinhos do corpo.</p>
+
+<p>Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna; mas poucos
+passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma voz fraca de
+tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.</p>
+
+<p>Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido á
+escuta, sentindo bater accelerado o coração.</p>
+
+<p>Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal
+fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de soffrer.</p>
+
+<p>Tentariam aquelles roubal-o?</p>
+
+<p>E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra, deixando o
+vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas longas farripas
+grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os tristes farrapos que
+o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos pinheiros, que
+sacudidos<span class="pn">{68}</span> o encharcavam, a correr, a correr por ali
+fóra, até ao alto da serra, onde se deixou cahir extenuado ao pé d'um enorme
+pinheiro manso, sêcco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os
+longos braços de espectro.</p>
+
+<p>Era ali o seu thesoiro.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos, arquejando
+longamente. Depois, creando animo, mostrando força inacreditavel em corpo tão
+franzino, com os braços osseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair
+com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada,
+começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao
+ferro.</p>
+
+<p>Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova,
+metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um<span
+class="pn">{69}</span> esforço supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o
+cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do extasis.</p>
+
+<p>Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o
+suor que lhe escorria pela testa.</p>
+
+<p>Ali estava o seu thesoiro!... Seu!</p>
+
+<p>E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimasinha no
+olho, abaixando-se para sopesal-o.</p>
+
+<p>Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente d'uma
+fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendel-o, como nunca
+loba defendeu um filho.</p>
+
+<p>Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra... Era muito noite
+ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente não lhe escasseavam
+forças. Querido thesoiro da sua alma, junto moeda a moeda!</p>
+
+<p>E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra
+alma lá<span class="pn">{70}</span> dentro houvesse de perceber a d'elle;
+pedia-lhe, cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de
+seu coração!</p>
+
+<p>Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios obliquos da
+lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as sombras das
+copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos molhados.</p>
+
+<p>E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não punha os
+olhos!</p>
+
+<p>Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço enorme, fez
+girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.</p>
+
+<p>O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas d'oiro. E o
+avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!<span
+class="pn">{71}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>O vento cessára de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um
+grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo ecco
+da montanha empinada, partiu da choça do rachador.</p>
+
+<p>Eram elles com certeza!... Eram os ladrões!</p>
+
+<p>Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E depois,
+espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos
+esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se
+logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador,
+o perseguia.</p>
+
+<p>E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia
+por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.</p>
+
+<p>Quando o luar começava esmorecendo,<span class="pn">{72}</span> ajoelhou,
+meio desfallecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde,
+com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, d'onde estava
+d'antes. Tapou tudo e, por instincto de precaução, puxou-lhe os fetos para
+cima. E abalou outra vez.</p>
+
+<p>Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabellos
+agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cahir no catre
+nojento.</p>
+
+<p>O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é que as
+nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paizagem, em que destacavam
+alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo os campos de joias
+scintillando no escrinio de verdura. A aldeia acordára n'um banho de luz, cheia
+de bulicios, de cantos de gallos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma
+columnasinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro<span
+class="pn">{73}</span> bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo
+os almoços.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delirio, apenas
+intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe
+pareceu a lembrança confusa de toda aquella noite agitada.</p>
+
+<p>Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava lugubremente,
+estorcendo-se no temporal como um condemnado na fogueira. Lembrou-se do grito
+que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do
+sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos escalavrados.</p>
+
+<p>Mas onde enterrára o seu oiro?</p>
+
+<p>Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sitio, a
+forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com
+as unhas<span class="pn">{74}</span> lascadas a carne magra do peito, tremulo,
+suando frio.</p>
+
+<p>Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a
+bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas ás portas
+das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, tostando ao sol os
+ventresinhos redondos e as cabecinhas loiras.</p>
+
+<p>E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali fóra!
+Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas hastes se abriam á
+sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos eguaes n'aquella
+immensidade!</p>
+
+<p>Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas,
+procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com
+gestos de desespero, como tentando arrancar do cerebro a loucura, que, pouco a
+pouco, o invadia!<span class="pn">{75}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quasi noite foi dar á choça do rachador.</p>
+
+<p>Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e, escumando de
+raiva, atirou-se contra a porta, berrando:</p>
+
+<p>&mdash;Ladrões! Ladrões!</p>
+
+<p>No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos,
+pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha
+de seda roxa.</p>
+
+<p>E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam mansamente.</p>
+
+<p>O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo vislumbre da
+razão.</p>
+
+<p>Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho d'achas, dizendo
+palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e para
+sempre.</p>
+
+<p>E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos fugindo para os
+ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que elle deixára nas silvas
+do pinhal, em<span class="pn">{76}</span> quanto os gaios contentes,
+aquecendo-se ao ultimo raio de sol d'aquella tarde de primavera, soltavam,
+pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas ironicas.<span
+class="pn">{77}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00060">AD ASTRA</a> </h1>
+
+<p>Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado, começava a
+apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro cachimbo de gesso, escusado era
+falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau humor ou, quando muito, um
+disparate. Estava pensando no Brazil, no seu Brazil, como lhe elle chamava.</p>
+
+<p>E era tratar de não fazer bulha, emquanto<span class="pn">{78}</span> elle,
+sorrindo para os florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes
+vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só bafejo da
+sorte.</p>
+
+<p>&mdash;O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho.</p>
+
+<p>E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a
+cinza na unha rugada e negra:</p>
+
+<p>&mdash;Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo vem de
+lá... Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a sonhar... Estava
+pensando agora...</p>
+
+<p>E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã sahiamos
+nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a minha mãe, que sentada na
+poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco a pouco adormecia serenamente.</p>
+
+<p>É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me recordo d'esses
+tempos.<span class="pn">{79}</span></p>
+
+<p>A nossa casa era a mais risonha de toda a villa.</p>
+
+<p>Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. Muito
+pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias verdes das
+janellas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as manhãs, no verão,
+acordava ouvindo cantar as andorinhas.</p>
+
+<p>No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam os
+vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a cabecinha
+loira debaixo do chaile de minha mãe, que, sentada á lareira, lembrando-se do
+marido e do filho mais velho, que andavam sobre as aguas do mar, resava o credo
+em cruz.</p>
+
+<p>Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria. Depois que o
+tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma certa
+despreoccupação pelo dia seguinte.</p>
+
+<p>É que o tio, além de vir dono d'um cahique,<span class="pn">{80}</span>
+trazia comsigo uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras.</p>
+
+<p>Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se demorou comnosco.</p>
+
+<p>O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia:</p>
+
+<p>&mdash;Olha, irmão; o que ali está... (e apontava para a tal caixinha) o que
+ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os meus dias. Sabes que
+mais? Dou-te de presente o cahique. Não tenhas cuidado na mulher e nos filhos.
+O teu mais velho tem quinze annos; que vá comtigo. Vai, e sê tão feliz, como eu
+fui.</p>
+
+<p>Era sina de todos&mdash;o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os
+outros quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos, alguns
+commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns tambem... nunca
+voltavam.</p>
+
+<p>E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas longas noites
+de inverno, quando uivava o temporal.<span class="pn">{81}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no
+quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do muro, para
+o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, tentadores.</p>
+
+<p>O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque na verdade
+eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao domingo, depois
+da missa, nos encontrava a passear na Praça, nunca deixava de me dizer,
+tocando-me com dois dedos na cara:</p>
+
+<p>&mdash;Ah! que se o tio quizesse... havias de ir longe.</p>
+
+<p>Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle <em>ir longe</em>.
+Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros?</p>
+
+<p>N'aquelle dia, quando já de vara na mão<span class="pn">{82}</span> me
+dispunha a roubar quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio.
+Senti um calafrio pela espinha.</p>
+
+<p>&mdash;Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito para
+a escola?</p>
+
+<p>Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente para
+mim, desatou ás gargalhadas.</p>
+
+<p>&mdash;Espera ahi que te quero falar.</p>
+
+<p>Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca me ter batido,
+com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca.</p>
+
+<p>O tio Bernardo poz-se a rir.</p>
+
+<p>&mdash;Não tens vergonha...!</p>
+
+<p>Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava limpando o
+suor.</p>
+
+<p>&mdash;Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre diz
+verdade. Quero um dia assistir á escola.</p>
+
+<p>Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os figos,
+me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a promessa d'uma véla de cera á
+Senhora dos<span class="pn">{83}</span> Milagres e, com mais alguma confiança,
+entrei na escola e fui pedir a bençam do mestre.</p>
+
+<p>Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra.</p>
+
+<p>O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse e sentou-se ao
+pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu logar.</p>
+
+<p>O Patricio, coitado, que estenderete!</p>
+
+<p>Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos, remendadas,
+muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um aspectosinho
+grave, a camisa de panno cru aberta sobre o peito, e dois bocados de ourelo a
+servirem de suspensorios. Com as mãos nas algibeiras, os olhos muito
+injectados, e as azas do nariz a tremerem, ouvia contendo o mau genio, a
+rabecada do mestre.</p>
+
+<p>Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem quatro ou
+cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa.<span
+class="pn">{84}</span></p>
+
+<p>&mdash;O senhor... disse o mestre apontando para mim.</p>
+
+<p>Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto
+atrapalhava o Patricio.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou, quando
+acabei. Has de ir muito longe.</p>
+
+<p>O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas perguntas. A
+todas respondi com muito animo e desembaraço.</p>
+
+<p>&mdash;D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D.
+Affonso II, o Gordo...</p>
+
+<p>A historia toda.</p>
+
+<p>&mdash;Muito bem. Pode sentar-se.</p>
+
+<p>O tio levantou-se, dizendo-me:</p>
+
+<p>&mdash;Estou contente comtigo, rapaz.</p>
+
+<p>E sahiu.</p>
+
+<p>Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a meu
+respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o outro e tossiam com certo
+ar<span class="pn">{85}</span> misterioso. Minha mãe teve alternativas de
+alegria e de tristeza.</p>
+
+<p>Quando a via rir, pensava:</p>
+
+<p>&mdash;O tio falou-lhe na lição.</p>
+
+<p>E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella soubesse...!</p>
+
+<p>Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me:</p>
+
+<p>&mdash;Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser n'isso
+entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que os outros.</p>
+
+<p>E batia-me com os nós dos dedos na cabeça.</p>
+
+<p>Eu estava radiante de alegria.</p>
+
+<p>&mdash;Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um
+homem do mar.</p>
+
+<p>A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os pulsos
+eram fracos, e isso era o diabo para um homem do mar, que me importava o que o
+mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça?<span class="pn">{86}</span></p>
+
+<p>Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre prior
+a teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre!</p>
+
+<p>&mdash;Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não quero ser
+padre.</p>
+
+<p>&mdash;Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores até.
+Medico, por exemplo.</p>
+
+<p>&mdash;Não quero!</p>
+
+<p>E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai dar um
+beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do meu partido e a
+gritar-me lá de longe:</p>
+
+<p>&mdash;Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser padre. Olha
+para mim. Cá dentro vai a ventura!</p>
+
+<p>&mdash;Pois não queiras! gritou meu tio.</p>
+
+<p>E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças.</p>
+
+<p>Eu, espantado do meu atrevimento, tinha<span class="pn">{87}</span> baixado
+tristemente os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse meu
+tio porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para Lisboa.</p>
+
+<p>Lisboa!</p>
+
+<p>Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica.</p>
+
+<p>Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome me
+despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios de riqueza, mansões de
+fadas!</p>
+
+<p>Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo!</p>
+
+<p>Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava.</p>
+
+<p>&mdash;Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai vestir o teu
+fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente!</p>
+
+<p>Lisboa! Lisboa!</p>
+
+<p>Eu bem via as lagrimas da minha mãe,<span class="pn">{88}</span> mas este
+grito da minh'alma calava-me o coração.</p>
+
+<p>Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu um valente
+abraço, dizendo-me:</p>
+
+<p>&mdash;Continua assim, meu rapaz. <em>Sic itur ad astra!</em></p>
+
+<p>Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla do bonnet
+e limpava-a depois á manga da jaleca.</p>
+
+<p>Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o... Boa vontade não
+te faltava, querido mestre!</p>
+
+<p>Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar.</p>
+
+<p>&mdash;Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar cachimbo,
+vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no Brazil!...» Pois bom é
+que saibas, antes que o aprendas á tua custa: nem tudo são rosas na vida. E no
+mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas
+vezes o diabo não<span class="pn">{89}</span> levou a cardada! O que passou,
+passou; olha a gente para traz e só vê aquillo de que tem saudades: por isso
+nunca falo de fomes, de privações, de perigos... Não te dê desgosto não ser
+homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus.</p>
+
+<p>Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde que
+eu voltava costas ao Oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais feliz do
+mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de
+relogio e breloques, apertando na praia, depois do banho, as mãosinhas das
+senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por <em>tu</em> e o
+prior por <em>você</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe.</p>
+
+<p>Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão
+pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos braços. Ella
+apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e dando-me<span
+class="pn">{90}</span> um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão
+sumido que quasi o não ouvi.</p>
+
+<p>No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na almofada
+da diligencia, partiamos caminho de Lisboa.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e
+procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido como amanuense nos
+proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe, ou que na resposta me participou a
+chegada de meu pae.</p>
+
+<p>Não se calcula a alegria com que parti.</p>
+
+<p>Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em longe vinha
+a Portugal matar saudades.</p>
+
+<p>Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se
+sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino<span class="pn">{91}</span>
+da Senhora dos Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto aos que
+andavam fóra.</p>
+
+<p>&mdash;O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no mar
+e desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino.</p>
+
+<p>Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó do
+sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando oppresso o
+coração.</p>
+
+<p>No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo
+tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala.</p>
+
+<p>&mdash;Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia.</p>
+
+<p>Não pude deixar de sorrir-me.</p>
+
+<p>&mdash;Que pena, continuou, vires em occasião tão triste!</p>
+
+<p>&mdash;O que?</p>
+
+<p>&mdash;Não sabes?... Valha me Deus! O tio Bernardo...</p>
+
+<p>&mdash;Morreu? perguntei ancioso.<span class="pn">{92}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal...</p>
+
+<p>Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no quarto do tio.
+Quando entrei, abriu os olhos e disse:</p>
+
+<p>&mdash;És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer
+sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um homem rude, não sei o
+que isso é; mas deve ser... muito! Foste longe.</p>
+
+<p>Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois continuou:</p>
+
+<p>&mdash;O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pae
+já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique.</p>
+
+<p>Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito espessa,
+descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro cahia-lhe do pescoço
+até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os olhos já
+embaciados, e sorrindo:</p>
+
+<p>&mdash;Olhem que mãosinhas! Não vivias no<span class="pn">{93}</span> mar
+dois dias. Tive rasão. Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes.</p>
+
+<p>Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando tornou a
+abril-os, procurou-me com a vista:</p>
+
+<p>&mdash;Tenho pensado muito em ti... Como é o latinorio do mestre?</p>
+
+<p>Não sabia o que elle queria dizer... Depois lembrou-me de repente.</p>
+
+<p>&mdash;<em>Sic itur ad astra.</em></p>
+
+<p>&mdash;<em>Ad astra, ad astra!</em> repetiu machinalmente.</p>
+
+<p>E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a sorrir,
+como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal.<span
+class="pn">{94}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{95}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00070">O VENTURA</a> </h1>
+
+<p>Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de
+vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros de Belem os omnibus immensos
+da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquella
+estrada fóra até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por
+cabeça.</p>
+
+<p>A vida de barqueiro não era então das<span class="pn">{96}</span> peores; e
+o José da Anastacia com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador, em
+que mostrava os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr do rosto
+requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistára as sympathias de muitos, que
+preferiam o bote d'elle e a viva conversa do algarvio, á velocidade pacata dos
+churriões da Companhia.</p>
+
+<p>Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço
+a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote,
+arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portugueza, dadiva das meninas, e
+que fluctuava lá no alto, no angulo da véla, com mais donaire e, com o ser
+pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha d'uma náu da
+India.</p>
+
+<p>O Conselheiro, muito amigo d'elle, nunca lhe chamava senão o Ventura.
+Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão
+junto aos sobrolhos<span class="pn">{97}</span> e os olhos piscos por causa do
+sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a
+fluctuar lá em cima, e a prôa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul,
+em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao
+Pontal de Cacilhas.</p>
+
+<p>E os véos azues das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo
+vento.</p>
+
+<p>Á volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para
+entreter, contava historias e fazia reflexões, que as meninas approvavam,
+meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os
+olhos nas margens do Tejo que deslisavam lentamente. E elle, fincados os pés no
+banco deanteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os musculos possantes dos
+braços cabelludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria n'uma
+felicidade santa e levantava compassadamente os remos, d'onde cahiam enfiadas
+de<span class="pn">{98}</span> perolas, que os ultimos raios do sol cravejavam
+de pontos luminosos.</p>
+
+<p>A Anastacia, uma velhinha, que morava n'uma agua furtada, quasi ao cimo da
+Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa,
+atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com
+ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emmaranhada, beijava
+com ancia, mil vezes, sobre os cabellos seccos e duros, o amparo querido da sua
+viuvez.</p>
+
+<p>Elle, um homemzarrão com vinte e tantos annos, adormecia, logo depois da
+ceia, com a cabeça reclinada no collo da mãe, cançado, mas feliz, contente
+n'aquelle ninho.</p>
+
+<p>&mdash;José, vamos, acorda, dizia ella, dobrando o serão, quando na torre da
+Boa Hora batiam vagarosamente as dez.</p>
+
+<p>O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de somno.</p>
+
+<p>&mdash;Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!<span
+class="pn">{99}</span></p>
+
+<p>Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto,
+murmurando:</p>
+
+<p>&mdash;Sua bençam, minha mãe.</p>
+
+<p>E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fóra,
+até Monsanto.</p>
+
+<p>Ia passeando devagarinho.</p>
+
+<p>O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquella volta, e o José
+achava-lhe geitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da
+serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas cahindo d'alto, lá por detraz,
+ao pé da Costa.</p>
+
+<p>Diabo do inverno! Começava cedo.</p>
+
+<p>O sol descia. O José parou um bocado a vel-o mergulhar na espuma.</p>
+
+<p>Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desappareceu, fechava o
+horizonte<span class="pn">{100}</span> uma lista negra, franjada de oiro, que
+ameaçava engrossar.</p>
+
+<p>Pois paciencia! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos
+os annos havia inverno e na casa d'elle nunca houvera fome, graças a Deus.</p>
+
+<p>E o José levou a mão ao barrete.</p>
+
+<p>Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta
+dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a elle nada lhe faltava e
+a muitos faltava tudo.</p>
+
+<p>Lembraram-lhe então certas historias. Aquella mulher a quem uma vez alugára
+o bote, porque a encontrára a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sósinhos
+em Caparica e estava ali com um vintem na algibeira; e elle alugára-lhe o bote
+pelo vintém, que acceitára, porque não queria envergonhal-a. E outra vez que
+elle se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus,
+que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a
+tossir,<span class="pn">{101}</span> a tossir, e elle sem dinheiro para lhe
+comprar o caustico?</p>
+
+<p>Havia tanta pobreza!</p>
+
+<p>Elle nada lhe faltava e até na algibeira trazia quasi sempre uns cobres,
+para o que desse e viesse.</p>
+
+<p>E como levava sede, entrou n'uma taberna e pediu dois decilitros.</p>
+
+<p>O taberneiro tinha sahido. Foi a filha quem veiu servir.</p>
+
+<p>O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe
+trouxe o copo trasbordando, deixando cahir no pires de barro grosso, branco,
+riscado de azul, um pouco de vinho em que ella molhava a unha do pollegar.</p>
+
+<p>Para o gosto d'elle nunca vira mulher assim!</p>
+
+<p>Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado.</p>
+
+<p>E ficou-se a olhar para ella, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe
+occorrendo<span class="pn">{102}</span> nada, sentindo como que um nó na
+garganta e um véo no entendimento, que o apouquentavam.</p>
+
+<p>Era uma rapariga alta, magra, de cabellos castanhos muito finos, muito
+compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco
+branquissimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar d'uma pequena quebra;
+a bocca um quasi nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azues
+escuros, que entonteceram o José, quando n'elles demorou os seus.</p>
+
+<p>Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada tambem pela
+ingenua admiração que percebia causar áquelle homem, lavava os copos n'um
+alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e collocava-os depois na prateleira
+de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se
+alastravam grandes nodoas roxas rebeldes á limpeza.</p>
+
+<p>A noite vinha-se approximando. A taberneira raspou um fosforo na prateleira
+e, desviando<span class="pn">{103}</span> a cara dos fumos do enxofre, accendeu
+o candieiro de petroleo.</p>
+
+<p>&mdash;Muito boa noite, disse.</p>
+
+<p>&mdash;Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco.</p>
+
+<p>E nunca musica para elle valêra aquella voz.</p>
+
+<p>O vento fóra soprava rijo e o ramo de loiro á porta raspava na parede.</p>
+
+<p>O José levantou-se e abriu o saquinho d'algodão. Com voz sumida pediu por
+favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever
+a mais palavra.</p>
+
+<p>Por toda a estrada veiu pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada
+na memoria, e até nas mais pequenas particularidades, uns signaesinhos
+espalhados pelo nariz e um outro sobre a palpebra um pouco mais accentuado.</p>
+
+<p>E repetia mentalmente, muito enlevado, as unicas palavras que lhe
+ouvira:&mdash;«Muito boa noite. Muito boa noite.»<span
+class="pn">{104}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>A mãe extranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como
+costumava, pregou os olhos no tecto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto,
+a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz
+castellos no ar, que os vê cahir de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem
+sequer reparou nos olhares prescrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe
+lançava por cima dos oculos.</p>
+
+<p>Mas de repente a pobre Anastacia deu-lhe o coração um baque. E ella que
+nunca se lembrára d'aquillo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de
+acontecer?</p>
+
+<p>E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passára, murmurou com
+os olhos embaciados:</p>
+
+<p>&mdash;Queira Deus que seja para bem.</p>
+
+<p>O José encarou-a, despertado por aquella voz.<span
+class="pn">{105}</span></p>
+
+<p>Ergueu-se e approximou-se da janella, que abriu.</p>
+
+<p>O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas
+cordas d'agua entraram no quarto.</p>
+
+<p>&mdash;O inverno! disse elle, fechando a janella.</p>
+
+<p>A velha encolheu os hombros.</p>
+
+<p>E depois, com certo ar malicioso, já conformada:</p>
+
+<p>&mdash;Ainda agora para ti começa a primavera!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Pouco tempo durou.</p>
+
+<p>Uma noite, o José sentou-se tristemente á prôa do bote e remou devagar para
+o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a
+barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Poz-se a olhar, sem as
+ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nodoas escuras dos navios
+brilhavam como lentejoulas<span class="pn">{106}</span> no panno negro dos
+caixões. Estava triste o José naquella noite.</p>
+
+<p>E quando reparou, á pôpa do barco, na alcunha
+d'elle&mdash;Ventura&mdash;pintada em grossas letras brancas sobre uma
+variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com
+ironia:&mdash;Ventura!</p>
+
+<p>O bote arrastado pela vasante passou para além da Torre, e o José perdeu de
+vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio
+baloiçando-se sobre a facha projectada, tremeluzente.</p>
+
+<p>Que tristeza aquella!</p>
+
+<p>O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia
+frio, e o Ventura encharcado, tremia.</p>
+
+<p>De repente, o candeio desappareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente
+nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa,
+arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cahir os braços, em
+grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O<span
+class="pn">{107}</span> bote virou devagarinho e continuou em seu caminho
+fatal.</p>
+
+<p>O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião
+parecia examinal-o com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote
+passou entre os dois faroes.</p>
+
+<p>As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica d'ellas era
+triste como o coração do Ventura.</p>
+
+<p>E fôra o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrára o primeiro
+espinho!</p>
+
+<p>Ao principio corrêra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que
+todos o Conselheiro.</p>
+
+<p>&mdash;Nada! dizia elle ao Ventura, batendo-lhe com a mão no hombro. Estes
+progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um bello dia...</p>
+
+<p>&mdash;Zaz!... Pum!... concluia José, rindo muito e imitando com os braços
+um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar.<span
+class="pn">{108}</span></p>
+
+<p>E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o
+Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque,
+muito coxas com as botas curtas, fazendo todos signaes desesperados com os
+chapéus de chuva para o vapor que apitava, prompto a largar.</p>
+
+<p>Bem lhe tinha dito o pae da Maria Eduarda:</p>
+
+<p>&mdash;Muda de vida, José, ou prégo-te a peça.</p>
+
+<p>E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a
+peça ao Ventura.</p>
+
+<p>Foi n'um dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois
+tostões. E, em vez de os entregar á mãe, foi á loja da esquina comprar um
+collar de contas para levar á namorada.</p>
+
+<p>&mdash;Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater.</p>
+
+<p>&mdash;Sahiu, respondeu lá de dentro a voz do pae. Queres-lhe alguma
+coisa?<span class="pn">{109}</span></p>
+
+<p>&mdash;Nada, respondeu.</p>
+
+<p>E ficou encostado á porta, esperando a noiva.</p>
+
+<p>Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam,
+bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver.</p>
+
+<p>E o Ventura á porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.</p>
+
+<p>&mdash;Olá, <em>seu</em> Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na
+taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das
+orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa d'oleado deitado para traz. Já vieram
+as senhoras?</p>
+
+<p>&mdash;Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse á mãe que haviam de
+voltar cedo por você cá vir... <em>Seu</em> maroto!...</p>
+
+<p>&mdash;Ó <em>seu</em> Manuel Joaquim!... Eu cá dou-lhe a minha palavra...</p>
+
+<p>&mdash;Mau! mau!</p>
+
+<p>E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao
+ouvido:<span class="pn">{110}</span></p>
+
+<p>&mdash;Olhe que a ceia está prompta e tenho ali uma pinga...!</p>
+
+<p>O Ventura á porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos,
+escondia o pé descalço atráz da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã
+esboracado.</p>
+
+<p>E logo voltando, n'um desespero, atirou ao chão a caixa do collar. E as
+contas de vidro foram adiante d'elle saltando por longo tempo, fazendo uma
+bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.</p>
+
+<p>E a mãe áquella hora tinha fome...! E fôra talvez a fome que a matára!</p>
+
+<p>Lá estava enterrada na valla dos pobres, lá muito longe, por detraz
+d'aquelles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, azulava
+docemente.</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>Estavam fóra da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia.<span
+class="pn">{111}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de
+S. Julião, um bote abandonado, que tinha á poppa escripto n'uma variegada rosa
+dos ventos o nome do Ventura.</p>
+
+<p>E quando soube da triste nova, emquanto aos olhos das filhas subiam saudosas
+e sentidas lagrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que
+durára a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.<span
+class="pn">{112}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{113}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00080">O PRIMEIRO SORRISO</a> </h1>
+
+<p>Mal se tinham accendido as luzes no Colyseu, quando elle entrou devagarinho,
+triste, um pouco asmatico, meneando a cabeça pallida.</p>
+
+<p>Parece que mais lhe pesava a corcunda n'aquella noite.</p>
+
+<p>Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos logares mais
+baratos, foi encostar o queixo á teia de pinho, pintada<span
+class="pn">{114}</span> de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora
+devia seguir do camarim para o palco.</p>
+
+<p>Era uma artista celebre a que se estreava. Com oito dias de antecedencia
+tinha-se espalhado com profusão pela cidade, collado aos vidros das portas dos
+armazens de musica, pendurado em quadros ás esquinas das ruas, o retrato
+lithographado de mademoiselle Eva d'Avenay.</p>
+
+<p>Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do
+Oiro, erguendo a cabeça, deu, de subito, com um d'aquelles retratos na loja
+d'um livreiro.</p>
+
+<p>Parecido ou não, representava uma mulher lindissima.</p>
+
+<p>Ficou extatico um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que
+dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta.</p>
+
+<p>Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquillo se
+vendia.<span class="pn">{115}</span></p>
+
+<p>&mdash;Um tostão.</p>
+
+<p>Elle que nunca olhára para mulher senão cá de muito baixo, coitado,
+assentando no meio da espinha as abas do chapéu, que (facto pouco vulgar) por
+detraz é que amolleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar
+uma mulher bonita á vontade, sentado commodamente, sem ser visto e sem ter de
+córar.</p>
+
+<p>Quando sahiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que
+embrulhava a lithographia, caminhou mais depressa, quasi alegre, menos
+asmatico.</p>
+
+<p>Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou n'ella os
+cotovellos, e, com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da
+noite em contemplação da extranha formosura.</p>
+
+<p>Parecia-lhe que afinal aquella mulher tinha que reflectir para elle uma
+parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que
+sentia.</p>
+
+<p>Desejos haveria tido, mas amar... Quem?<span class="pn">{116}</span> Se,
+quando passava, todos se riam e ninguem, ninguem, jámais sorrira para elle!</p>
+
+<p>Quando recordava tempos longinquos, via, como atravez d'um nevoeiro, uma
+mulher a quem elle estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o
+pequenino berço&mdash;tão pequenino!&mdash;e que o envolvia n'uma atmosphera de
+amor, beijando-o muito. Mas essa mulher tambem não sorria... chorava.</p>
+
+<p>Chorava naturalmente de vel-o tão fraquinho, tão feio, tão infesado. Se o
+visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabellos alvejando-lhe nas fontes,
+e triste sempre, sempre tão triste!</p>
+
+<p>Por isso contemplava aquelle retrato, como se fôra possivel aquella mulher
+loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para elle, aquelle sorriso
+que, por todas as esquinas, por toda a parte, ella enviava... para
+quem?&mdash;para coisa nenhuma; que o retrato era a tres quartos e ninguem
+sabia para onde olhava.<span class="pn">{117}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Os porteiros, cada um á sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os
+bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O theatro continuava ás
+escuras.</p>
+
+<p>Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do collete,
+assobiando por entre dentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da cadeira
+que lhe ficava defronte, poz o lenço entre o pescoço e o collarinho, e, tirando
+um palito da algibeira, poz-se a espalitar os dentes, com um ar massado.</p>
+
+<p>Duas ou tres filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o
+chapeu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco ás orelhas.</p>
+
+<p>Conheciam-se e começaram conversando em voz alta:</p>
+
+<p>&mdash;Olá, Conselheiro! Então tambem deitou até cá?</p>
+
+<p>O homem gordo encolheu os hombros.<span class="pn">{118}</span></p>
+
+<p>&mdash;Não ha mais nada que fazer!</p>
+
+<p>E depois de espalitar um bocado:</p>
+
+<p>&mdash;Que isto cheira-me a fiasco.</p>
+
+<p>&mdash;Ora! disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. A tal
+mulher...</p>
+
+<p>&mdash;A gente cai em cada uma...! terminou o Conselheiro.</p>
+
+<p>E, encostando a cabeça para traz, deu largas a um bocejo formidavel.</p>
+
+<p>Um arrumador, que passava n'aquelle instante, sorriu-se aduladoramente,
+curvando-se muito.</p>
+
+<p>&mdash;Senhor Conselheiro...</p>
+
+<p>&mdash;Adeus, <em>seu</em> José.</p>
+
+<p>E fechou os olhos, como se estivesse dormindo.</p>
+
+<p>Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como
+perguntaria áquelle homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando
+elle estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito!</p>
+
+<p>Os musicos com os instrumentos dentro<span class="pn">{119}</span> de
+saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando arias,
+espreguiçando-se.</p>
+
+<p>Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O theatro
+encheu-se rapidamente.</p>
+
+<p>Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques.</p>
+
+<p>Os logares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predilecção
+de muitos; pouco a pouco foram-o empurrando, e elle apertado, afflicto com a
+asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detraz umas risadinhas
+zombeteiras. Sentiu n'uma orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal
+encarado, ao lado d'elle, estava de figa feita.</p>
+
+<p>E resignado, agarrando-se aos balaustres da teia, esperava que fosse aquella
+noite a primeira feliz da sua vida.</p>
+
+<p>Abriram as torneiras do gaz e a luz jorrou de repente.</p>
+
+<p>Houve um sussurro maior. Muitos, que<span class="pn">{120}</span> ainda se
+não tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os
+oculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus.</p>
+
+<p>O theatro transbordava.</p>
+
+<p>Os musicos afinavam os instrumentos. Ouviam-se por entre as variações
+alegres da flauta as notas harmonicas das rabecas. O homem dos timbales batia
+notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas.</p>
+
+<p>Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os
+collegas, emquanto descalçava a luva.</p>
+
+<p>Bateu na estante e ergueu alto o braço.</p>
+
+<p>Houve uns <em>schius!</em> assobiados por alguns amadores, que a toda a
+salla impuzeram silencio.</p>
+
+<p>O regente olhou para todos os musicos, demorou-se um instante e depois,
+descrevendo com a batuta um quarto de circumferencia, fez signal ás rabecas,
+que logo começaram tocando muito piano, em unisono.<span
+class="pn">{121}</span></p>
+
+<p>Era com certeza mademoiselle Eva d'Avenay quem ali attrahia a maior parte
+dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como
+as rabecas sósinhas continuavam tocando pianissimo, havia o que quer que fosse
+fantastico n'aquelle maestro de grande cabelleira cahindo-lhe até á golla da
+sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cahir o
+braço a tremer, a tremer, commandando uns arcos que se mexiam como puchados por
+um só homem, mordendo cordas que não tinham som.</p>
+
+<p>Decididamente o corcunda suffocava.</p>
+
+<p>De repente, a um signal energico do regente, os metaes vibraram enchendo a
+sala de notas alegres, vivas, que n'um instante, como por encanto, cortaram as
+palestras. Foi um relampago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as
+rabecas continuaram sósinhas no meio da distracção geral.</p>
+
+<p>Um gaiato gritou lá de cima:<span class="pn">{122}</span></p>
+
+<p>&mdash;Muito bem!</p>
+
+<p>Tinham acabado felizmente.</p>
+
+<p>A respiração do corcunda era um apitosinho.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco
+mademoiselle d'Avenay.</p>
+
+<p>Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes:</p>
+
+<p>&mdash;Abaixo!</p>
+
+<p>Ella, já no palco, sorria impassivel, cumprimentando o publico, olhando em
+volta, muito serena.</p>
+
+<p>Alguns enthusiastas davam palmas.</p>
+
+<p>O Conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz:&mdash;de
+truz!</p>
+
+<p>O regente muito amavel curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma
+pergunta.</p>
+
+<p>Respondeu que sim, muito risonha, muito amavel.</p>
+
+<p>As rabecas preludiaram.<span class="pn">{123}</span></p>
+
+<p>Ella concertava o decote e alisava o cabello na testa.</p>
+
+<p>Era uma mulher em todo o esplendor da belleza dos trinta annos, de elegancia
+distincta e intelligente, alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o
+peito forte, braços admiraveis, hombros muito redondos, e nas costas, bem ao
+meio, uns dois ou trez signaes, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso
+pensado, pela natureza, para que ninguem julgasse que aquelle busto era de
+marmore. Os olhos azues tinham um olhar profundo e os cabellos loiros e finos
+emmolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de quinze annos.</p>
+
+<p>Quando cantava, a bocca sympathica, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos
+cantos com duas pregas infantis.</p>
+
+<p>Do logar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança
+doirada e todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores
+agglomerados nos degraus em amphitheatro do outro lado da sala.<span
+class="pn">{124}</span></p>
+
+<p>Quando ella acabou de cantar, toda a platéa applaudia, delirante.</p>
+
+<p>O corcunda bem queria dizer&mdash;bravo! mas sumira-se-lhe a voz.</p>
+
+<p>Mademoiselle d'Avenay cantou tres vezes n'aquella noite e o delirio
+crescendo sempre!</p>
+
+<p>Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do
+vestido.</p>
+
+<p>Já os musicos se tinham retirado, já o illuminador começava fechando as
+torneiras do gaz e ainda novas ovações eccoavam na sala.</p>
+
+<p>Ella tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amavel, sorrindo como no
+retrato, para o ar, para coisa nenhuma.</p>
+
+<p>E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o
+corcunda.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Achou-se afinal sósinho.</p>
+
+<p>Umas familias, que se tinham encontrado<span class="pn">{125}</span> á
+sahida, conversavam, emquanto as senhoras vestiam os chailes e os homens
+accendiam os cigarros.</p>
+
+<p>Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como
+elle não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu
+pedestal lhe fizesse a mercê d'um olhar.</p>
+
+<p>Mas nem ella o vira, nem elle pudera ajudar á ovação. Bem tinha deitado os
+bracinhos por entre os balaustres para applaudir; se não fosse a asma, teria
+gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho...!</p>
+
+<p>Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe.</p>
+
+<p>Sentou-se n'um dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos.</p>
+
+<p>Pouco a pouco, ia perdendo a memoria do que se passára, conservando apenas a
+consciencia de que era um desgraçado.</p>
+
+<p>Accordaram-o uns passos de mulher.</p>
+
+<p>Ergueu a cabeça.</p>
+
+<p>Mademoiselle d'Avenay, toda embrulhada<span class="pn">{126}</span> em
+rendas brancas, sahia do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que
+a acompanhava.</p>
+
+<p>Levantou-se. Ella tinha de passar por ali e elle tremia.</p>
+
+<p>Quasi sem forças, desvairado, mal poude pronunciar:</p>
+
+<p>&mdash;Bravo! Bravo!</p>
+
+<p>Ella parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão,
+julgando-o provavelmente uma creança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas,
+picando-se nas barbas, retirou a mão e disse:</p>
+
+<p>&mdash;<em>Pardon, monsieur.</em></p>
+
+<p>E quando passou... sorriu-se para elle.<span class="pn">{127}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION00090">O MEU REWOLVER</a> </h1>
+
+<p>Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o vento
+cortava.</p>
+
+<p>Triste, cansado, depois de um dia inutil, voltava para casa silenciosamente,
+mastigando um charuto insupportavel.</p>
+
+<p>Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudéra combater.</p>
+
+<p>A melancolia apoderára-se de mim. Envolvia-me<span class="pn">{128}</span> a
+alma como que n'um lençol humido e frio.</p>
+
+<p>Bandos de operarios voltavam do trabalho alegres, socegados, interrompendo
+com cantigas de fado as conversações politicas.</p>
+
+<p>Irritou-me a alegria d'elles.</p>
+
+<p>Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se
+atropellavam no meu espirito, sem razão, como succede nos sonhos inquietos.</p>
+
+<p>Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo... Tudo
+triste, triste.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Subi a escada ingreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em casa,
+sem quasi me lembrar do caminho que seguira.</p>
+
+<p>Os ultimos raios do sol entrando pela janella entreaberta morriam, faltos de
+forças, allumiando fracamente uns velhos retratos de familia, immoveis, havia
+muito, nas molduras carunchosas.<span class="pn">{129}</span></p>
+
+<p>Estava só.</p>
+
+<p>Ainda bem.</p>
+
+<p>Puxei de uma cadeira e sentei-me á janella, resolvido a esperar com
+paciencia a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia.</p>
+
+<p>A atmosphera era humida e pesada.</p>
+
+<p>Na rua havia profundo silencio.</p>
+
+<p>O occidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada,
+parecia o panno enorme d'um caixão de gigante.</p>
+
+<p>As nuvens cresciam impellidas pelo vento da barra, ameaçando breve toldar o
+céu.</p>
+
+<p>Luziu a primeira estrella.</p>
+
+<p>Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguem áquella hora
+tivesse dado por ella. Estaria talvez no ceu brilhando tão só para mim.</p>
+
+<p>E senti não sei que satisfação intima com aquella idéa: para mim só!</p>
+
+<p>Puz-me a contemplal-a com amor, a falar-lhe como um poeta; e ella
+consolou-me, e, durante toda aquella tarde, foi este o unico momento em que
+tive amor á vida.<span class="pn">{130}</span></p>
+
+<p>Um empregado do gaz passou pela rua accendendo os candieiros e assobiando
+uma polca.</p>
+
+<p>Ouvi uma voz por cima da minha cabeça.</p>
+
+<p>&mdash;Menina Maria! Menina Maria!</p>
+
+<p>Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, feio,
+bexigoso e rachitico.</p>
+
+<p>&mdash;Está o gaz acceso. São horas de começarmos a conversar.</p>
+
+<p>N'uma janella do outro lado da rua appareceu a cabeça pallida de uma
+rapariga, que de dia namorava o boticario e de noite conversava com o
+bexigoso.</p>
+
+<p>&mdash;Muito boas noites.</p>
+
+<p>A menina Maria começou a fazer-lhe signaes querendo dizer, creio eu, que
+addiasse para mais tarde as declarações de amor, não fosse eu ouvil-as.</p>
+
+<p>&mdash;O que? perguntava o bexigoso. Não percebo. É pena estar o tempo de
+chuva.</p>
+
+<p>&mdash;É pena, é! Pouco poderemos conversar. D'aqui a pouco... Olhe, não vê?
+Estão<span class="pn">{131}</span> as nuvens quasi tapando aquella estrella.</p>
+
+<p>E apontou para a estrella, que fôra até ali o meu enlevo.</p>
+
+<p>Dei um murro no parapeito da janella e fechei-a desesperado.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou cahir
+como prologo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de agua, que
+vieram bater tristemente nos vidros da janella.</p>
+
+<p>Accendi o velho candieiro de azeite e recostei-me n'uma poltrona de oleado,
+onde dei largas aos merencorios pensamentos.</p>
+
+<p>Decididamente odiava a vida.</p>
+
+<p>E que me prendia a ella? Fôra uma cadeia de oiro a d'outros tempos, mas
+viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos.</p>
+
+<p>&mdash;A morte!<span class="pn">{132}</span></p>
+
+<p>E machinalmente puxei do rewolver.</p>
+
+<p>Era uma joasinha americana, bonita, de systema engenhoso, com fechos de
+prata, que me saira n'um bazar de caridade.</p>
+
+<p>&mdash;Eis o remedio para quantos males se soffrem no mundo, pensei. Uma
+pouca de coragem, um pequenissimo movimento... e nada mais é preciso.</p>
+
+<p>Comecei a brincar com o gatilho.</p>
+
+<p>&mdash;De que serve uma vida a que póde dar fim coisa tão pouca?</p>
+
+<p>E, como para convencer-me de que não havia nada mais facil, approximei da
+bocca o cano do rewolver.</p>
+
+<p>E vi que tinha medo e que me repugnava a morte.</p>
+
+<p>Lembrei-me do frio da terra e do contacto da carne com os corpos frios e
+molles dos bichos nos cemiterios. E requintei na fantasia as sensações da longa
+fileira dos rigidos cadaveres, que via dormindo na valla commum o somno
+doloroso da morte.</p>
+
+<p>Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me,<span class="pn">{133}</span>
+levantei a golla do casaco e comecei a passear pelo quarto.</p>
+
+<p>Os velhos retratos mettidos na sombra da bandeirola pareceram-me
+espectros.</p>
+
+<p>Um sobre todos, lembra-me, causou-me horror extranho, n'aquella noite.</p>
+
+<p>Era um conego velho, gordo, sem barba, com uma corôa de cabellos grisalhos
+em torno d'uma calva lisa e amarella. Tinha uns olhos azues, pequeninos, que se
+fitavam na gente para onde quer que se fugisse.</p>
+
+<p>Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o conego de cabeça para baixo,
+para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que n'aquelle
+momento entrara no quarto, ralhou muito commigo, que fôra uma falta de
+respeito, que o conego era meu tio, que fôra homem de muito saber e que até
+compuzéra uma grammatica latina com a prosodia em verso.</p>
+
+<p>E eu, que detestava a prosodia e o latim, comecei desde logo a detestar o
+tio.<span class="pn">{134}</span></p>
+
+<p>N'aquella noite pareceu-me que os olhos azues e pequeninos scintillavam,
+phosphorescentes.</p>
+
+<p>Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadêlo.</p>
+
+<p>E os seus olhos pequeninos, azues, phosphorescentes continuaram a seguir-me
+com pertinacia.</p>
+
+<p>Passei a mão pela testa e trouxe-a humida de suor frio.</p>
+
+<p>Dei volta á bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, approximei-me
+do retrato.</p>
+
+<p>Estava louco!</p>
+
+<p>&mdash;Sou um cobarde! Tenho a cobardia d'uma criança, pensei.</p>
+
+<p>Fui ao armario de páo preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um
+resto d'absintho.</p>
+
+<p>Um caruncho, com aquelle ruido monotono e compassado, que tanto se ouve nas
+casas velhas, incumbira-se da agradavel tarefa de esfarelar uma
+prateleira.<span class="pn">{135}</span></p>
+
+<p>E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se
+junto d'aquelle armario se houvesse passado um drama horrivel, elle teria
+placidamente, com a maior indifferença, continuado a morder voluptuosamente a
+madeira resequida, em sua obra de destruição.</p>
+
+<p>Abri a garrafa. Bebi sofregamente.</p>
+
+<p>Pela segunda vez approximei da bocca, voltando as costas ao conego, o cano
+do rewolver.</p>
+
+<p>Senti abrir-se a janella do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada:</p>
+
+<p>&mdash;Menina Maria! Parou a chuva.</p>
+
+<p>Salvou-me a vida. Escutando-o, quiz despedir-me da voz humana. No curto
+momento, em que o meu antipathico visinho levou a dizer aquella phrase,
+entrou-me n'alma o receio.</p>
+
+<p>&mdash;Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber.</p>
+
+<p>E sahi, mettendo o rewolver na algibeira.<span class="pn">{136}</span></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Pela segunda vez na vida o bexigoso falára sem dizer tolice. Effectivamente
+cessára a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com grandes manchas d'uma côr
+mais carregada, formavam castellos fantasticos, entre os quaes corria a lua a
+toda a brida.</p>
+
+<p>Ao dobrar d'uma esquina encontrei um amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Aonde vais? disse-me. Até S. Carlos?</p>
+
+<p>Pareceu-me offensa a pergunta e estive para responder-lhe:</p>
+
+<p>&mdash;Não, vou matar-me.</p>
+
+<p>Mas não quiz. Dizer-lh'o, para que? Se não podia perceber-me?</p>
+
+<p>&mdash;Vou sem destino, disse.</p>
+
+<p>&mdash;Já jantaste?</p>
+
+<p>&mdash;Ainda não.</p>
+
+<p>&mdash;Jantemos juntos n'esse caso.</p>
+
+<p>E deu-me o braço e começámos a descer a rua.</p>
+
+<p>E eu ia pensando com uma certa alegria<span class="pn">{137}</span> no
+jantar e comecei a ver a morte sob outro aspecto: o suicidio depois de bem
+comido, numa salla bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de
+gaz.</p>
+
+<p>Que differença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem n'aquelle
+quarto frio e humido quando eu estava possuido da tristeza da fome? Frio e fome
+por toda a eternidade!...</p>
+
+<p>Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha opera favorita.</p>
+
+<p>Defronte de nós uns americanos bebiam champagne, <em>veuve Cliquot</em>.</p>
+
+<p>&mdash;Grande vinho, o champagne! não achas? disse o meu amigo.</p>
+
+<p>&mdash;Magnifico!</p>
+
+<p>&mdash;Havemos de vir bebel-o aqui um dia d'estes. É pena não poder ser
+hoje.</p>
+
+<p>&mdash;Porquê?</p>
+
+<p>Não respondeu e córou até ás pontas das orelhas.</p>
+
+<p>E eu achei que para dar coragem nada havia como o champagne.<span
+class="pn">{138}</span></p>
+
+<p>E puz-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim achei
+que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte... fui pôr o rewolver no
+prego.<span class="pn">{139}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000100">O MIMOSO</a> </h1>
+
+<p>&mdash;Está frio, dizia elle subindo o Chiado.</p>
+
+<p>Era um homem de quarenta annos, magro, quasi cadaverico, de melenas tão
+compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emmaranhavam nas barbas, de
+olhos negros, encovados, de olhar obliquo e desconfiado, a luzirem com fome por
+cima das olheiras papudas.</p>
+
+<p>Era no inverno e elle com a mão ossuda,<span class="pn">{140}</span>
+engrifada apertava contra o peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia
+collete e a camisa era um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar
+nos passeios, onde não desgostava de ir á tarde apanhar um bocado de sol,
+trazia um pedacinho de panno azul pregado ao collarinho sem gomma com um
+alfinete de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos,
+camadas sobrepostas de lama secca.</p>
+
+<p>Parou á porta do Baltresqui.</p>
+
+<p>Um janota sentado a uma das mesinhas do café, deante de uma garrafa de Père
+Kermann, aspirava o fumo aromatico de um charuto pequenino. Passados momentos,
+tirou o relogio da algibeira, viu as horas, engoliu de um trago as ultimas
+gottas do calix e, chamando o criado pelo nome, atirou-lhe uma nota de dez mil
+réis. Quando o criado voltou com o trôco, levantou-se deixando o cobre em cima
+da mesa.</p>
+
+<p>&mdash;Muito obrigado, sr. Visconde, disse o<span class="pn">{141}</span>
+criado, dando-lhe piparotes na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto,
+que o Visconde quebrára na borda da mesa.</p>
+
+<p>&mdash;É um visconde, observou distrahidamente o homem das botas rotas.</p>
+
+<p>E como o Visconde voltasse para cima, seguiu-o á espera que deitasse fóra a
+ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e invejando o
+casaco do Visconde, comprido, felpudo, de grande golla, que se podia levantar e
+abrigava as orelhas do frio.</p>
+
+<p>O Visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas algibeiras,
+tirando do charuto abundantes fumaças, com aquelle sorriso de satisfação, que
+dá a certos parvos de bom estomago a digestão de um bom jantar.</p>
+
+<p>O pobre diabo tinha fome. Almoçára na véspera; depois não tinha comido.</p>
+
+<p>Mas o que mais o apouquentava era o apetite de fumar.</p>
+
+<p>O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Póde-se dormir, quando se
+tem<span class="pn">{142}</span> um cigarro na algibeira e o fumo de um outro
+enchendo o quarto. O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata
+lentamente, que embriaga, que socega os nervos, que enfraquece a memoria e dá
+ás pernas uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o
+ar está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o
+sussurro dos que teem que fazer, dos que trabalham.</p>
+
+<p>&mdash;Por isso Deus que afinal é bom, ia o homem pensando, encheu as ruas
+de pontas de charuto para os homens e de tallos de couve para os cães, que não
+fumam, que não teem que esquecer, que são tolos.</p>
+
+<p>Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto, não se viam, enterradas
+na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, ancioso pelo
+momento em que o charuto havia de cahir espalhando em torno uma chuva de
+faisquinhas.</p>
+
+<p>O Visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que
+desciam.<span class="pn">{143}</span></p>
+
+<p>&mdash;Então que se faz? perguntavam-lhe.</p>
+
+<p>E elle só encolhia os hombros como resposta áquella pergunta ociosa e tola.
+O homem notou:</p>
+
+<p>&mdash;Pois elle não terá nada, mesmo nada, que fazer?</p>
+
+<p>Comparou-se com o Visconde e sentiu uma certa vaidade. Porque elle
+trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não
+respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar
+desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. Ás vezes, quando se levantava,
+não tinha de comer; era preciso arranjal-o e arranjava-o. Era talvez pouco
+escrupuloso; isso sim.</p>
+
+<p>&mdash;Mas, pensava, para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na
+algibeira.</p>
+
+<p>E isso era raro, muito raro.</p>
+
+<p>Decididamente, se alguém lhe perguntasse:</p>
+
+<p>&mdash;Então que se faz? havia de responder como o Visconde, encolhendo os
+hombros.</p>
+
+<p>Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos<span class="pn">{144}</span>
+o tivesse conduzido a uma conclusão certissima, olhou para o janota, a rir-se,
+com certo ar maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta:</p>
+
+<p>&mdash;Olá!</p>
+
+<p>E, apontando com o dedo pollegar para o Visconde, disse piscando o olho a si
+mesmo:</p>
+
+<p>&mdash;É cá do meus.</p>
+
+<p>Chegado á rua Nova dos Martyres, o Visconde parou um instante, tirou o
+relogio da algibeira e, approximando-se de um candeeiro, tornou a ver as horas.
+Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; por fim dobrou
+a esquina e dirigiu-se para S. Carlos.</p>
+
+<p>Tirou as luvas da algibeira e começou a calçal-as.</p>
+
+<p>&mdash;Quando deitará elle fóra o charuto? pensava o homem.</p>
+
+<p>Mas de repente affirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o Visconde ao
+tirar as luvas da algibeira deixára ficar o lenço com a pontinha de fóra.<span
+class="pn">{145}</span></p>
+
+<p>Contrahiu um pouco as sobrancelhas meditando.</p>
+
+<p>Valeria a pena um lenço? Tinha fome. Aquelle lenço representava talvez a
+ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço?</p>
+
+<p>Estendeu o labio inferior.</p>
+
+<p>Era preciso tomar uma resolução.</p>
+
+<p>Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome.</p>
+
+<p>Approximou-se nos bicos dos pés.</p>
+
+<p>Olhou para todos os lados. A rua era deserta.</p>
+
+<p>O coração bateu-lhe um pouco. O Visconde podia sentil-o, defender-se,
+gritar, e elle iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de frio,
+fechado n'um calaboiço.</p>
+
+<p>Animo!</p>
+
+<p>Metteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo.</p>
+
+<p>O Visconde cantarolava:</p>
+
+<blockquote>
+ C'est q'çá gli...iiis...se.<span class="pn">{146}</span> </blockquote>
+
+<p>Victoria! O lenço era d'elle!</p>
+
+<p>O homem não tinha sentido nada e acabava a copla:</p>
+
+<blockquote>
+ Encore un qui n'l'aura pas <br>
+     La timbale <br>
+     La timbale. </blockquote>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia.</p>
+
+<p>E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo.</p>
+
+<p>Mirou-o e remirou-o.</p>
+
+<p>Não tinha uma só passagem e era de seda.</p>
+
+<p>Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia.</p>
+
+<p>Quanto poderia valer aquillo?</p>
+
+<p>O homem chegou-se a um bico de gaz e poz-se a olhar. De vez em quando,
+coçava com a unha a aza do nariz, signal certo de duvida.<span
+class="pn">{147}</span></p>
+
+<p>O Gomes é que lh'o poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco
+ladrão, mas muito entendido.</p>
+
+<p>E já esquecido do Visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a Calçada
+do Duque.</p>
+
+<p>A casa de penhores era á esquerda, uma casa pequena, asphixiante, cheia de
+fato até á porta.</p>
+
+<p>O Gomes estava por detraz do balcão, encostado aos livros, com a sua suissa
+á ingleza, a caneta atraz da orelha, e o seu sorriso protector.</p>
+
+<p>Um candeeiro de petroleo, com vidro sujo e luz economica, alumiava
+fracamente as roupas inuteis, que nas prateleiras até ao tecto esperavam
+tristemente pela traça ou pelo proximo leilão.</p>
+
+<p>Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do outro
+lado, o retrato de um bom velho burguez e calvo, com a barba cerrada, ar de
+pessoa de bem, e um botão d'oiro, quadrado, no peitilho da camisa, sorria com
+bondosa satisfação<span class="pn">{148}</span> para um cacho de botas velhas,
+que, suspensas do tecto, se lhe baloiçavam a dois palmos do nariz. Tinha valido
+um dinheirão, valia agora cinco tostões.</p>
+
+<p>O homem parou á porta e poz-se á espreita.</p>
+
+<p>&mdash;Muito boas noites, sr. Gomes.</p>
+
+<p>&mdash;Olá!</p>
+
+<p>&mdash;Dá licença?</p>
+
+<p>Atirou o lenço para cima do balcão.</p>
+
+<p>&mdash;Faça favor de ver isso.</p>
+
+<p>E, á espera que o exame do lenço acabasse, entreteve-se a olhar para uma
+borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro.</p>
+
+<p>O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e começou
+um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda.</p>
+
+<p>&mdash;Isto de bordados... Um <em>A</em> e uma corôa.</p>
+
+<p>E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar intelligente.</p>
+
+<p>&mdash;Foi o sr. Visconde que m'o deu para o<span class="pn">{149}</span>
+empenhar, disse o outro, encolhendo os hombros com impaciencia.</p>
+
+<p>&mdash;Pois, amigo, diga ao sr. Visconde que isto pouco valor tem. O bordado
+é bom, o bordado tem valor; mas a quem póde isto servir? Quer trez tostões?</p>
+
+<p>&mdash;Traste...! resmungou o homem. Então só vale...? Ó sr. Gomes, olhe que
+roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda.</p>
+
+<p>O Gomes, desdenhoso atirou com o lenço.</p>
+
+<p>&mdash;Dê-me um cruzado e vou-me embora.</p>
+
+<p>&mdash;Homem, você parece que não sabe quem eu sou!</p>
+
+<p>E poz doze vintens em cima do balcão.</p>
+
+<p>&mdash;Traste! tornou a resmungar o homem, pegando nos doze vintens e
+encaminhando-se para a porta.</p>
+
+<p>&mdash;Quer cautella? perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já
+desmanchando o bordado com o bico d'uma tesoira.<span
+class="pn">{150}</span></p>
+
+<p>&mdash;Nada. Obrigado. O sr. Visconde não me falou em cautella.</p>
+
+<p>E sahiu sempre a resmungar.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Poucas horas depois, estava estirado ao pé d'uma sargeta.</p>
+
+<p>Cahia uma chuva miuda e fria e elle sonhava.</p>
+
+<p>Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, d'uma seda muito fina, tão fina
+que nem o Gomes sabia ao principio o que lhe havia de dar pelo lenço. E
+tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o oiro que estava na gaveta
+do balcão, o dinheiro que estava na commoda, tudo. E elle era rico. Andava de
+trem e bebia no Baltresqui uma coisa com bolhasinhas a subirem e que fazia
+saltar as rolhas das garrafas. Os janotas do Chiado tratavam-o por <em>tu</em>
+e os gaiatos davam-lhe <em>dom</em>. O Visconde era muito amigo d'elle e
+offerecia-lhe charutos magnificos,<span class="pn">{151}</span> que roubava a
+um estanqueiro muito velho da rua dos Canos. Tinha um sobretudo côr de canella,
+muito quente e andava de luvas. Morava n'um palacio e tinha na salla o retrato
+do velho que estava na loja do Gomes, e que era pae d'elle, e do outro lado
+estava o retrato do outro pae, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas
+quando elle era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito magro.
+O lenço não era de seda, era de papel. E elle tinha um cão muito grande, com
+olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava.</p>
+
+<p>&mdash;Leva arriba!</p>
+
+<p>Um policia de voz aspera accordou-o com um pontapé.</p>
+
+<p>E, como o homem resmungava, metteu-lhe a mão por debaixo dos braços e
+obrigou-o a levantar-se.</p>
+
+<p>&mdash;Marche adeante e nada de cerimonias.</p>
+
+<p>Fôra dia de grande gala e as luminarias morriam nos preguinhos do governo
+civil.<span class="pn">{152}</span></p>
+
+<p>O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as
+luminarias.</p>
+
+<p>Aquillo entristecia-o.</p>
+
+<p>Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz
+avinhada:</p>
+
+<p>&mdash;Francisco Antonio, o <em>Mimoso</em>.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, metteu a mão
+tremula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida:</p>
+
+<p>&mdash;Fiz mal.</p>
+
+<p>E depois d'um instante de reflexão:</p>
+
+<p>&mdash;Devia ter comprado um massinho de cigarros.<span
+class="pn">{153}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000110">GRI-GRI</a><a name="tex2html1"
+href="#foot2534"><sup
+style="font-size: 30%; font-weight: normal;">[1]</sup></a> </h1>
+
+<p>Ao longe, para as bandas de Santos, começavam a apagar os candeeiros. Uma
+neblina baixa espalhava-se sobre o Tejo, mas no céu, atravez do nevoeiro,
+brilhava, muito fria, a estrella da manhã, e a lua, como um saveiro de prata,
+de proa e poppa<span class="pn">{154}</span> recurvadas, empallidecia pouco a
+pouco. Os montes da Outra Banda estampavam confusos no céo embaciado os
+contornos gigantescos, e no fundo escuro mal se distinguiam as grandes massas
+negras dos navios. Occulto n'um monte de pedras, um grillo cantava
+distrahido:&mdash;<em>gri, gri, gri, gri...</em></p>
+
+<p>O homem vinha d'aquelles lados do Caes do Sodré. Parecia bastante fóra de
+si; cambaleava por excesso de cançaço; muito pallido, com o fato em desalinho,
+o chapéo de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava repentinamente, de
+quando em quando, como em frente de um obstaculo invencivel, e limpava com as
+costas da mão as bagas de suor escorrendo-lhe sobre a testa das melenas
+desgrenhadas, que então sacudia para traz com um gesto violento da cabeça.
+Seguia aos SS, machinalmente, ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas
+do casaco desabotoado, onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-o parecer
+na sombra, quando passava junto dos candeeiros, um grande<span
+class="pn">{155}</span> morcego ferido a querer esvoaçar. Vinha de dentes
+ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas.</p>
+
+<p>Já se ouviam os barulhos antipathicos do amanhecer na cidade. Recolhiam as
+carroças dos varredores, e na Praça D. Luiz dois empregados, mudos e
+somnolentos, limpavam as sargetas do passeio. O homem dos candeeiros vinha-se
+approximando, fazendo tinir os vidros, ao cahirem depois da luz apagada. Para
+aquelles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda n'uma barca de
+banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a noite em cima d'um
+banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, tornou a esticar as pernas e
+depois, rodando sobre o centro, sentou-se de repente, tirou o barrete, coçou
+desesperadamente a cabeça. Uns operarios, com o fardel em lenço de chita na
+ponteira do guarda-chuva, passaram apressados. Por todos os lados, na cidade
+alta, em roda da Praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos
+de<span class="pn">{156}</span> gallos, roucos e solemnes, conquistadores e
+desafinados.</p>
+
+<p>O homem, que até então seguira pelo meio da rua, approximou-se do passeio. O
+outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava humida, enterrara o barrete
+até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados ao peito, fazia, para
+aquecer, o gesto de quem emballa uma criança. Levantou-se depois e foi para o
+caes gritar muito prolongadamente&mdash;«Ó compadre...! Ó compadre...! Ó
+compadre...!» Lá de longe, d'uma fragata, responderam-lhe:&mdash;«Eh!
+ti'Zé...!» O homem dos candeeiros passou, e, como o ti'Zé se levantára, o outro
+sentou-se sem dar por isso, no mesmo banco, perto d'onde o grillo continuava
+distrahido:&mdash;<em>gri, gri, gri, gri...</em></p>
+
+<p>Parecia muito afflicto, em grande desespero, relanceando em redor os olhos,
+sem fixar a vista em nenhum objecto, como se apenas pudesse olhar para a sua
+desgraça. Tirou o chapeu, fincou os cotovellos nos<span class="pn">{157}</span>
+joelhos, e com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas
+para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, vinham-lhe
+estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rapidos o corpo, fazendo-o
+levantar as pernas, que recahiam com força; tinha no rosto a mascara pallida e
+feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas e nos cantos dos labios
+uma amargura dolorosa cavára as rugas muito fundas. Respirava alto, murmurando
+exclamações irritadas d'uma angustia sem remedio, frases sem nexo, cortadas por
+soluços.</p>
+
+<p>Os fios do telegrapho cantavam sem pausa uma doida melopéa triste, emquanto
+ao longe, já se ouvia um murmurio indefinido de vida a começar. Algumas
+chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, não podendo
+elevar-se na atmosphera humida, alastrava-se sobre o Tejo. E os signaes das
+embarcações e o reflexo d'elles n'uma grande faxa tremeluzente faziam como<span
+class="pn">{158}</span> que um bordado a oiro no grande véu esfarrapado de gaze
+luctuoso.</p>
+
+<p>O horisonte branquejava.</p>
+
+<p>Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram
+moribundos uns toques de corneta. Junto ao caes passeava, com modos de avejão
+na densa neblina, um guarda da alfandega friorento. E o grillo sob as pedras
+continuava distrahido:&mdash;<em>gri, gri, gri, gri...</em></p>
+
+<p>O homem ergueu-se n'um impeto, como quem toma uma decisão inabalavel contra
+argumentos. Cambaleando, arrastando-se, approximou-se do caes. Pequeninas vagas
+marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio humido, desagradavel, frio de
+morte. Então poz-se a fitar os olhos nas aguas e, como se ellas lhe cantassem
+uma canção muito meiga, como se ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes
+desvanecido, mais tranquillo, já quasi convalescente da longa noite de
+exaspero. Duas grossas lagrimas correram-lhe pelas faces macilentas, o
+peito<span class="pn">{159}</span> oppresso ergueu-se alto, e elle respirou
+fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco depois, preso de pavor medonho,
+abalou, sem querer olhar para traz, com gestos doidos, d'olhos esbogalhados,
+chapéu na mão, melenas erriçadas.</p>
+
+<p>E, passados instantes, estava outra vez junto do caes, parado, meditando,
+com os olhos fitos na agua.</p>
+
+<p>O Tejo accordára. Do lado do Barreiro surgiam umas velasitas brancas e rio
+abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, com uma
+ancora pintada de negro no panno, projectando na agua immovel como grande placa
+oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma linha de espuma. Em terra
+começavam a definir-se certos sussurros. Rangiam portas de tabernas, passavam
+peixeiras correndo, um guarda nocturno batia fortemente á porta d'um armazem,
+ouviu-se um despertador no interior d'uma casa. O ceu, muito branco havia
+pouco, tornara-se côr de laranja. A neblina<span class="pn">{160}</span>
+erguera-se e o fumo das chaminés subia a prumo, alargando-se no alto, como um
+penacho de porta machado.</p>
+
+<p>Então o homem decidiu-se e de braços para a frente, atirou-se ao
+rio&mdash;Chap!&mdash;O benemerito guarda d'alfandega, o <em>72</em> por
+signal, atirou-se atraz do homem.</p>
+
+<p>E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que gesticulava
+muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, sujo, envergonhado,
+arrependido, tranzido de frio, o grillo continuava distrahido sob as
+pedras:&mdash;<em>gri, gri, gri, gri...</em></p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Ora isto não quer dizer nada; mas então porque foi que só n'essa occasião é
+que elle embirrou com o grillo que fazia <em>gri, gri</em>?<span
+class="pn">{161}</span></p>
+
+<p><a name="foot2534" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> <em>Variante em
+verso, publicada pela livraria Popular</em></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000120">NA BIQUEIRA</a> </h1>
+
+<p>Ella tem uns olhos azues tão bonitos!... Mas se eu vi! Elle a olhar para
+cima... e ella a fazer signaesinhos com o lenço!... Vi; ninguem m'o veio
+dizer... Fui eu que vi!</p>
+
+<p>E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale verdade. Esta ultima
+é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já foi depois de ter
+polcado com elle... E chama-me seu <em>anjo</em> a infame!</p>
+
+<p>Como póde um homem baixar até morrer<span class="pn">{162}</span> por uma
+mulher assim! Morrer, sim, está resolvido... vou matar-me.</p>
+
+<p>Meu pobre pae, coitado! Sempre com tantos sacrificios por minha causa! O que
+dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! É capaz de morrer de
+desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho animo. Nem animo nem
+papel. Gostava de me despedir... O resto do papel ainda o gastei a escrever
+áquella desgraçada!</p>
+
+<p>Ah! mas vou afinal vingar-me!... Hei de atribular-lhe a vida com
+remorsos!</p>
+
+<p>Custa-me tanto morrer!... Dizem que só os cobardes é que se matam. E eu acho
+que é preciso ter animo, muito animo!</p>
+
+<p>Mas está decidido.</p>
+
+<p>Vou morrer enforcado... Dizem que não doe nada... Mas morrer! Quem foi que
+disse que não doe? Aqui está a corda. Exactamente do tamanho preciso para que,
+de manhã, quando ella abrir a janella, me veja pendurado, em frente dos seus
+olhos, na biqueira do meu telhado.<span class="pn">{163}</span></p>
+
+<p>É preciso não hesitar... Infame! Mas que mulher tão infame! E tem uns olhos
+tão bonitos!... Que besta... o outro!</p>
+
+<p>Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pae!</p>
+
+<p>Aquella biqueira tentou-me. É de zinco, parece muito forte, algum tanto
+virada para cima.</p>
+
+<p>Vamos.</p>
+
+<p>Está frio cá fóra... Chovisca... A noite é escura!...</p>
+
+<p>Ali estão as janellas do quarto d'ella, d'onde tanta vez olhou para mim,
+d'onde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos dedos!... Que
+mentira! Agora faz o mesmo ao outro!</p>
+
+<p>Está frio! Será bom vestir o sobretudo... Assim estou melhor, mais
+conchegado... para morrer!</p>
+
+<p>Cá estou outra vez a chorar!</p>
+
+<p>Ámanhã, quando abrires as tuas janellas, has de ver, mesmo em frente, o meu
+corpo, baloiçando-se ao vento soturnamente.<span class="pn">{164}</span></p>
+
+<p>O peor é se fico com a lingua de fóra... É tão feio uma lingua de fóra! Eu
+fico tão feio!... E os olhos...! Os olhos d'um enforcado...!</p>
+
+<p>Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais limpo dos
+suicidas.</p>
+
+<p>Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente!</p>
+
+<p>Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega...! Se eu cahisse lá abaixo!... Só
+pensal-o me arripia todo!</p>
+
+<p>D'ali é que ella erguia os olhos tanta vez para a minha trapeira!</p>
+
+<p>Devagar... Assim.. Parece-me que o laço está bem dado... Quasi que não vejo
+com as lagrimas... Está bem dado, está; está seguro.</p>
+
+<p>O melhor é descer pela corda, e depois, lá em baixo, quando tiver chegado ao
+fim, metto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho, muito
+devagarinho... e deixo apertar.</p>
+
+<p>Como é triste morrer assim tão novo, tão<span class="pn">{165}</span> cheio
+de vida!... Morrer!... Chega a ser estupido...! porque afinal eu tinha um
+futuro talvez brilhante... Um praticante de pharmacia... Morrer assim tão
+novo!</p>
+
+<p>Mas como isto faz chorar!</p>
+
+<p>Está frio!</p>
+
+<p>Ella dorme...! Se adivinhasse...!</p>
+
+<p>Não pensemos mais n'isto. Sejamos homem!</p>
+
+<p>Devagarinho...!</p>
+
+<p>Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco andares...! Sinto um frio
+na espinha...! Se as mãos se me escapassem...!</p>
+
+<p>Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para cima. Afinal fui
+ingrato com elle. Tive ali momentos bons.</p>
+
+<p>A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quasi na ponta... Cá está o laço.
+Estou mesmo, mesmo em frente das janellas. Se me baloiçasse um bocadinho,
+tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros.</p>
+
+<p>Punhamos o laço ao pescoço. Foste tu,<span class="pn">{166}</span> mulher
+devassa, que me fizeste esta gravata!... Agora deixemos apertar devagarinho.</p>
+
+<p>Apre! É aspera a corda!</p>
+
+<p>É horrivel morrer-se assim! Se ella me visse, se arrependesse e me
+salvasse!</p>
+
+<p>Já tenho os braços cançados...! Que tentação de voltar para cima!</p>
+
+<p>Morrer...! Mas é uma desgraça!... uma tolice!</p>
+
+<p>Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da biqueira!...</p>
+
+<p>Talvez fosse engano... Mas o melhor é voltar... verificar...</p>
+
+<p>Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais pequeno movimento
+estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu esmigalho-me lá em baixo
+nas pedras da calçada!</p>
+
+<p>Quem me ac...!</p>
+
+<p>E se ella apparece á janella?</p>
+
+<p>Doem-me os braços, já não posso mais!</p>
+
+<p>Mas então é certo!... Mas então vou<span class="pn">{167}</span> morrer! Mas
+não quero, d'essa morte horrivel não quero!</p>
+
+<p>E não poder subir...! Talvez com um esforço grande, apoiando os pés á
+parede... Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo...!</p>
+
+<p>Se eu batesse as palmas ao guarda nocturno...? Mas como? Para bater as
+palmas seria preciso largar a corda... Se me pudesse segurar com uma só mão,
+despir-me com a outra e bater as palmas no...</p>
+
+<p>Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um braço... Sinto
+faltarem-me as forças!... E se ella abrisse a janella e me visse n'essa posição
+ridicula?</p>
+
+<p>Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!... E ninguem, ninguem me
+salva!</p>
+
+<p>Tenho as mãos a arder; não posso mais. Quem me dera ter animo para
+gritar!...</p>
+
+<p>Ainda que queira subir já não posso... E o zinco verga cada vez mais, ao
+mais pequeno movimento!<span class="pn">{168}</span></p>
+
+<p>Parece-me que sinto passos...! É preciso estar muito quieto...! Valha-me
+Deus! O laço já correu um bocadinho...</p>
+
+<p>Os passos approximam-se... É uma patrulha!</p>
+
+<p>Ó camaradas!... camaradas!... Pchiu!...</p>
+
+<p>Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêem que estou
+pendurado?... Acudam depressa!... O zinco está todo dobrado! Depressa!... Sim,
+senhor, acompanho-os á esquadra.</p>
+
+<p>E o laço a escorregar!...</p>
+
+<p>Depressa! A porta lá em baixo está aberta.</p>
+
+<p>É só preciso arrombar a cá de cima.</p>
+
+<p>Tolice! Porque não a deixei eu aberta tambem?</p>
+
+<p>E se alguém me quizesse acudir?</p>
+
+<p>Os passos approximam-se...</p>
+
+<p>Graças a Deus!... está a porta arrombada!</p>
+
+<p>Acuda! acuda depressa!</p>
+
+<p>Obrigado camarada!... Não ponha o pé no zinco!...<span
+class="pn">{169}</span></p>
+
+<p>Meu Deus!</p>
+
+<p>Ó meu pae, coitadinho!</p>
+
+<p>Que horror!</p>
+
+<p>Ella tem uns olhos azues tão b...!<span class="pn">{170}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{171}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000130">REQUIEM AETERNAM</a> </h1>
+
+<p>Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já a
+enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente accumuladas pela neblina da
+noite, recolhia a casa, aos solavancos sobre as pedras da calçada, a carruagem
+das velhinhas.</p>
+
+<p>Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, tecto
+esboracado, tinta bexigosa, puxavam-a dois cavallos brancos,<span
+class="pn">{172}</span> magros, muito magros, de joelhos grossos, orelhas
+cahidas, choutando sem brio, coxeando dolorosamente, com um ar de philosophos
+sem ração a caminho da morte.</p>
+
+<p>Atraz saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um ranger
+d'ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janella a testa ardendo
+com febre, para ver a passagem d'aquellas duas velhinhas sympathicas, irmãs
+decerto, gemeas talvez, tão eguaes, com os cabellinhos bracos alisados sobre as
+testas enrugadas, as boccas reentrantes, os olhinhos apagados, tremulas,
+encolhidas como passarinhos com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar
+tranquillo, o mesmo sorriso de bondade. Macrobias á espera que a morte viesse
+n'um beijo perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devieis soffrer,
+cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas mollas
+duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, minha paixão
+unica, minha esperança d'um<span class="pn">{173}</span> dia inteiro, quando eu
+vivia isolado com a minha melancolia, n'aquella casa onde o vento soprava
+tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite!</p>
+
+<p>O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as
+redeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de casa
+nobre, apezar da nodoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da
+sobrecasaca, e do chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado,
+sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho, d'outros tempos
+muito melhores.</p>
+
+<p>Que volta misteriosa dava todos os dias aquella carruagem, que ás tardes ali
+passava trepando pela calçada? D'onde vinham, para onde iam, em que palacio ou
+castello arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o soube.</p>
+
+<p>E era talvez por isso que as amava tanto. Architectava historias fantasticas
+a respeito d'ellas, da carruagem, do cocheiro, dos cavallos,<span
+class="pn">{174}</span> e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das
+ferragens, sentia o coração pulsando rapido, a respiração difficil, um calor
+nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemiterio, fosse uma
+primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em grande aureola de
+luz, em nuvem subtil de perfumes.</p>
+
+<p>Creio que as velhinhas, n'uma doce, apagada recordação de galanteios havia
+muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, risonhas, fazendo
+renascer faiscas nos olhos côr de cinza, que um sorriso bordava com ondas de
+preguinhas por cima das rugas! E eu, com a testa encostada ás vidraças, via
+desapparecer a carruagem fantastica, emquanto a noite descia lentamente e,
+muito desafinados, piavam lá no alto, em doidas correrias, os negros
+andorinhões.</p>
+
+<p>Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus!</p>
+
+<p>A calçada subia em linha recta, tendo por fundo o céu ainda vermelho,
+áquellas horas.<span class="pn">{175}</span> A carruagem levava uns cinco
+minutos até chegar ao alto, e lá em cima, esfumada pela distancia, com as
+grandes rodas salientes, tombadas para fóra, similhava uma grande borboleta
+negra, que a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Pouco depois accendiam-se no céo muito pallido as primeiras estrellas. Então
+um doido, que morava no rez do chão, começava a uivar sinistramente e pela casa
+espalhava-se um cheiro intenso, um fumo suffocante d'ervas, que a irmã queimava
+por conselho d'uma bruxa, entre rezas plangentes, arrastadas, de arrelia.</p>
+
+<p>Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e ali
+vivia isolado, merencorio, cheio de azedumes, n'aquella rua onde os casebres em
+ruinas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, telhados cheios de
+corcovas, paredes desaprumadas,<span class="pn">{176}</span> com ervas
+crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos
+escamosos.</p>
+
+<p>E dava-me bem n'aquella paizagem cuja musica harmonisava com as minhas
+queixas, n'aquelle scenario que havia procurado e emfim descobrira, onde
+arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão voluntaria que
+escolhera e me era cara á força de melancolica, que eu amava porque me era
+hostil.</p>
+
+<p>Ao meu odio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapára&mdash;aquella
+carruagem a desconjuntar-se, pyrilampo nas trevas da minha noite, nota
+suavissima no concerto da minh'alma.</p>
+
+<p>Tão egual era sempre a dôr que me atormentava, tão parecidos rodavam meus
+dias, que o verão passou, sem que, olhando para traz, eu pudesse ver na
+estrada, que andei triste, o marco d'uma alegria, d'um aspecto novo, d'uma
+miragem na vida.</p>
+
+<p>Aquelle amor, aquella quasi paixão, que<span class="pn">{177}</span> ao
+principio as velhinhas me haviam inspirado, esse mesmo sentimento purissimo
+affligia-me agora, á medida que o sentia crescer.</p>
+
+<p>O tempo fôra passando, e os cavallos cada vez choutavam menos, coxeavam
+mais, mais brancos, mais tisicos, mais dolorosamente meditabundos; o cocheiro
+mais corcovado, um pouco descahido na almofada, deixava pender o chicote; a
+carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um vidro rachado; cordas, a
+que todos os dias se juntava um nó, ligavam os arreios; as velhinhas tinham
+menos palhetas doiradas no olhar, quando me sorriam. E já me sorriam como a
+pessoa conhecida, que occupasse na vida d'ellas o logar em que moravam na
+minha, o que augmentava a minha tristeza.</p>
+
+<p>Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, ficava
+scismando se teriam desapparecido de uma vez todos os meus sonhos,
+tudo&mdash;que era sómente aquillo&mdash;quanto á vida me prendia.<span
+class="pn">{178}</span></p>
+
+<p>O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as primeiras
+chuvas.</p>
+
+<p>Que tarde turbida e melancolica! Se não viessem...! E de tanto pensar
+n'ellas, vi qual era sua pousada na minh'alma. Se não viessem...! Dia immenso
+em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até entontecer,
+approximando-me da janella a cada instante, vendo apenas na solidão da calçada
+a chuva a cahir, a cahir, rio enorme, que se despenhava até lá abaixo, rolando
+barrento, cheio de espuma, quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas,
+bi-partindo-se lá no fundo, desapparecendo na curva e galgando as escadinhas,
+onde se precipitava em cascata, com uma bulha monotona...</p>
+
+<p>O doido, a quem a meia escuridão d'aquelle dia exacerbára a furia,
+torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela casa o
+tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e d'outras ervas
+com que o demonio embirra.<span class="pn">{179}</span></p>
+
+<p>Dia immenso, que me parecia não dever acabar!</p>
+
+<p>Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um ente
+unico n'aquella carruagem, com as donas, os cavallos, o cocheiro, como se uma
+só alma os animasse a todos, não podendo desligal-os, abstrahir d'uns para só
+pensar nos outros.</p>
+
+<p>O dia vinha descendo e, ancioso, sentindo pelo ser fantastico que me fazia
+pulsar o coração, aquelle fervoroso amor, que os encarcerados dedicam ás vezes
+a uma formiga, a uma aranha, a uma plantasinha qualquer, com as unhas cravadas
+na carne do peito, tive uma das mais doidas alegrias da vida, quando senti
+sobre a lama que se alastrava de lado a lado, o rodar lento, abafado, por que
+suspirava semi-doido.</p>
+
+<p>Os cavallos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As
+sob-rodas, occultas pela lama e que o cocheiro não evitava, cego pela chuva que
+o zurzia, faziam cambalear o trem como um ebrio. E<span class="pn">{180}</span>
+lá dentro mal pude avistar, atravez dos vidros embaciados, as velhinhas que
+sorriam.</p>
+
+<p>Abri a janella para as ver desapparecer. Julguei que nunca chegassem ao
+alto. O cocheiro com um gesto afflicto brandia o chicote; os cavallos
+pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam.</p>
+
+<p>Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus maguado. E emquanto a noite descia,
+sentado junto da janella, parecia-me ver, como n'um sonho, a carruagem fugindo,
+fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, levando no tejadilho, de pé,
+como os anjos dos coches de enterro, a figura da morte. E a chuva cahia, cahia,
+e a noite embrulhava-se n'um véo muito negro, cheia de frio.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Nunca mais as vi.</p>
+
+<p>Passaram-se mezes. Na terça feira de entrudo uns mascarados bebados, que
+desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés,<span
+class="pn">{181}</span> em grande troça, um chapéo de furta-côres, pequeno, de
+abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho,
+muito velho...</p>
+
+<p>Boas e santas velhinhas!</p>
+
+<p><em>Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.</em><span
+class="pn">{182}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{183}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000140">AS ESTRELLAS DO CEGO</a> </h1>
+
+<p>Noite de Natal.</p>
+
+<p>Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em
+ruina da larga escadaria.</p>
+
+<p>A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso docel de
+velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres.</p>
+
+<p>Ainda nos eccos da alta abobada em berço<span class="pn">{184}</span>
+resoavam os ultimos cheios do orgam do convento. Pela porta aberta de par em
+par, onde a multidão se acotovelava á sahida, vinha de dentro da egreja um
+perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada.</p>
+
+<p>O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues rutilos
+as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Familia e na
+colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dôrmia.</p>
+
+<p>Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite
+fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A
+larga frontaria da egreja, comida pelo tempo, abafada n'um velho tapete de
+musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, d'onde jorravam feixes
+luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de triumpho.</p>
+
+<p>Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão.<span
+class="pn">{185}</span></p>
+
+<p>Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos.</p>
+
+<p>O cego era um velho corcovado, tremulo, com a face cheia de rugas crusadas,
+como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céo,
+meneando a cabeça constantemente, como se procurasse... o quê? E sorria. Dava a
+mão ao petizinho e descia os degraos tacteando-os com o pé.</p>
+
+<p>&mdash;Ainda mais um, avô... E outro... E outro.</p>
+
+<p>Fechou-se a egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro.</p>
+
+<p>E o cego sorria e afagava a mão do pequeno.</p>
+
+<p>O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a
+cidade.</p>
+
+<p>Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em declive
+rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz d'aquella noite em
+Belem cantada nos evangelhos, da alegria d'aquella<span class="pn">{186}</span>
+musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o côro entoou o <em>Gloria
+in excelsis</em>! Todos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia
+prompta em casa, era o dia seguinte todo elle inteirinho de descanço!</p>
+
+<p>Noite de Natal! Noite de Natal!</p>
+
+<p>E eu fui por ali abaixo tambem, atraz do cego.</p>
+
+<p>O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as estrellas
+a rirem lá em cima.</p>
+
+<p>Os olhos tinham a côr do céo, e o que n'elles brilhava tanto podia ser o
+reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha.</p>
+
+<p>Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula do velho
+replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua vozita
+infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um
+cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos pastores annunciado a vinda
+do Senhor, houvesse<span class="pn">{187}</span> ficado na terra; porque o cego
+continuava sorrindo, e, a descer pelos beccos escuros e tortuosos, afagando a
+mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás trevas lá em cima, lá muito em
+cima, d'onde vinha aquella luz toda, que alegrava os olhos da criança.</p>
+
+<p>Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras
+soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a conversação.</p>
+
+<p>Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A
+mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes,
+gulosamente:</p>
+
+<p>&mdash;A canja.</p>
+
+<p>E o pequeno:</p>
+
+<p>&mdash;Degráo, avôsinho.</p>
+
+<p>E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, afagando
+a mão do neto, cantarolando.</p>
+
+<p>Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos<span class="pn">{188}</span> dos
+pateos irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós,
+nós trez, n'aquelle caminho.</p>
+
+<p>Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra em
+lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em quando, um
+bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um
+gallo cantou n'uma trapeira.</p>
+
+<p>&mdash;É tarde, disse o velho.</p>
+
+<p>Caminhavam mais depressa agora.</p>
+
+<p>E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez pela
+doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta
+alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dôr
+devia de suppôr-se.</p>
+
+<p>Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes ainda
+uma vez os rostos.</p>
+
+<p>O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao
+lado,<span class="pn">{189}</span> agora que na rua tinham acabado os tropeços,
+olhava para onde olhava o cego.</p>
+
+<p>A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e
+cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas costas.</p>
+
+<p>Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir!</p>
+
+<p>Deixei-os passar adeante.</p>
+
+<p>A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais á vontade
+agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição.</p>
+
+<p>Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua
+deserta.</p>
+
+<p>Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com
+grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos segundos,
+ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima.</p>
+
+<p>O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu com
+estrondo.<span class="pn">{190}</span></p>
+
+<p>Ouvi ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz
+sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais
+e mais, a cada volta da escada; uma voz muito alegre&mdash;devia de ser a da
+mãe do pequeno recebendo-os&mdash;palavras que não percebi... E fechou-se lá em
+cima uma porta.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella
+casa.</p>
+
+<p>Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez as
+cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos d'aquellas vozes
+tão devotas, singelamente entoados por detraz das grades do côro, hymnos muito
+simples ao Deus Menino nascido.</p>
+
+<p>No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz intensissima.
+Fazia frio.<span class="pn">{191}</span></p>
+
+<p>E eu quedava-me a olhar para aquella casa, tão pobresinha, tão velha, tão
+escura, tão cheia de flores d'alto a baixo!</p>
+
+<p>Uma janella no telhado illuminou-se.</p>
+
+<p>Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o grupo dos trez: a mesa encostada
+á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a
+terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do avô, e a mulher a
+sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o throno, o presepio, a missa, o canto
+das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição.</p>
+
+<p>E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava... Pois quem trabalha
+para sustentar a alegria n'aquellas almas?... Santa familia!</p>
+
+<p>Que deliciosa ceia! Que paz tranquilla! Que boa noite de Natal!</p>
+
+<p>Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não tem
+olhos, tem melhor paladar.<span class="pn">{192}</span></p>
+
+<p>E o pequeno como devora! É que é tarde e não costuma estar de véla áquellas
+horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar.</p>
+
+<p>E o pae e a mãe a rirem, contentes de os verem assim!</p>
+
+<p>Que boa noite de Natal!</p>
+
+<p>Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora
+olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrellas, o cego não sei
+para onde.</p>
+
+<p>Porque olhava o cego para o céo?</p>
+
+<p>Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já
+adivinha a madrugada.</p>
+
+<p>Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira?</p>
+
+<p>Encaminhei-me vagarosamente para casa.</p>
+
+<p>Havia tantas estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como tinha
+razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! Que
+quantidade de luz! Tantas! Tantas!... Talvez o pequeno se lhe<span
+class="pn">{193}</span> mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando
+vinhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito
+longo... Era como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do
+pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos postos no
+céo! Porque? É que se lhe voltavam para lá os olhos d'alma, é que na alma tinha
+elle mais luz do que o pequeno nos olhos.</p>
+
+<p>E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça, o
+pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, a
+estrella a correr...</p>
+
+<p>Que lindas estrellas vê o cego!<span class="pn">{194}</span></p>
+
+<p><span class="pn">{195}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000150">OS NETOS</a> </h1>
+
+<p>Andavam todos pasmados, a falar baixinho pelos cantos.</p>
+
+<p>O D. Affonso parecia outro!</p>
+
+<p>Se fosse um Affonso qualquer!... mas o Dom, o quarto, o do Salado!... Quem
+jámais o vira assim de olhar tão doce na sombra do supercilio carregado, de
+riso tão lhano sob as enormes barbas patriarchaes, honradas entre as mais
+honradas dos affonsinos?<span class="pn">{196}</span></p>
+
+<p>O Coelho, que, havia muito, andava tramando o crime, até disse baixinho ao
+Pacheco:&mdash;«Ali ha coisa!» O Pacheco já a farejára, olha quem! E
+entretanto, o D. Affonso, todo fóra dos eixos costumados, dizia graças, quando
+passava alguma dama a rojar sedas na peugada da linda Inez.</p>
+
+<p>Ia seu caminho o drama tenebroso. Tanto haviam feito, que já tinham
+escangalhado o socego da que depois de morta foi rainha. E o sceptro, sobre que
+tão famigerados heroicos havia de bordar o Dr. Ferreira, parecia pesar nas mãos
+do monarcha menos do que se fôra de pechisbeque, talvez tanto como de papelão
+doirado.</p>
+
+<p>É que n'aquella noite...</p>
+
+<p>O homem tinha um fraco: pelava-se pela canja!</p>
+
+<p>Elle em pessoa comprára a gallinha, uma ave amarella, que era uma belleza,
+gorda, anafada... Depois de muito regatear, e por ser a elle, D. Affonso, é que
+a saloia a vendêra por seicentos e vinte! Um rico pedaço de<span
+class="pn">{197}</span> toucinho, um bom naco de prezunto, o bello chouriço,
+cheirinhos, arroz da melhor tenda... Ora adeus! Um dia não são dias. Aquella
+noite de Natal havia de ser falada!</p>
+
+<p>E, por debaixo dos longos bigodes brancos, brancos de neve, El-rei lambia os
+beiços.</p>
+
+<p>Chovia a potes.</p>
+
+<p>O drama terrivel, a mais calamitosa tragedia da historia patria, ia-se pouco
+a pouco desenrolando.</p>
+
+<p>Inez lamentava-se. Os horrificos algozes haviam-a trazido ante o rei. Eram
+tres judeus de calvario de semana santa, muito capazes de dar sete pesadêlos a
+quem não estivesse prevenido. Muito cabello, muita sobrancelha, muita barba,
+vozes de tyrannos. Ella erguia para o céo cristalino os olhos piedosos,
+attentava nos meninos cheios de somno, falava ao avô cruel nas brutas feras e
+nas aves agrestes, na mãe de Nino e nos irmãos que Roma edificaram; queria ir
+fosse lá para onde fosse, para a Scythia fria<span class="pn">{198}</span> ou
+para a Lybia ardente, comtanto que a tirassem d'ali. Era de partir os corações!
+Mas aquelles patifes, de punhaes desembainhados, sanhudos, faziam esgares!</p>
+
+<p>E a desditosa amante do Principe, entre soluços e lagrimas,
+pensava:&mdash;Que demonio tem hoje o D. Affonso?</p>
+
+<p>O rei só via a canja, os olhinhos da gordura, o arroz muito branco... E
+arregalava o olho e abria a venta!</p>
+
+<p>Ah! que delicioso quadro! Que lhe importavam a linda Inez de rojo a seus
+pés, as iras do filho apaixonado, a politica do reino, as Hespanhas, os
+Castros?</p>
+
+<p>Uma trapeira, que, toda envolta em arroz de telhado, era como um ramalhete,
+n'uma rua estreita, escura, tortuosa, para lá lhe tugia o pensamento. Em volta
+d'ella cantavam pardaes todas as manhãs, e o sol mal nascia, pintava-lhe os
+vidros como se fossem pedras preciosas, rutilantes. Tanta paz lá dentro, tanto
+riso de creanças!</p>
+
+<p>Noite de Natal muito fria. Ih! como chovia<span class="pn">{199}</span> lá
+fóra! Cantava a agua, cahindo em jorros das biqueiras sobre as pedras das
+calçadas. Como estavam lamacentas as ruas, cheias de poças! O vento do sudoeste
+arrastava pelo céo as nuvens desgrenhadas, e chovia sem descanço.</p>
+
+<p>Lá dentro da trapeira, tanta luz, tanta alegria!</p>
+
+<p>Noite de Natal! A toalha resplandecia muito branca sobre a velha mesa
+herdada dos avós, um nadinha coxa e remendada. Era um velho traste amigo,
+n'aquella noite todo enfeitado para a festa. O candeeiro, entornando sobre a
+alvura do linho um circulo de luz aconchegador, fazia faiscar as laminas das
+facas, estriava com fogo os cabos muito limpos das colheres. O pão, ha pouco
+vindo do forno, ainda fumegava embrulhado na flanella, e seis guardanapos
+engommados ostentavam formas caprichosas, em cima dos pratos: pombinhas,
+leques, romãs abertas.</p>
+
+<p>Lá dentro, na cosinha, riam as crianças.<span class="pn">{200}</span></p>
+
+<p>A mais pequenina, uma gorducha rosada e muito loira, fechava os olhos
+cançadinhos de somno, teimando em não querer deitar-se, que havia com as mais
+velhas de assistir á grande festa.</p>
+
+<p>E a panella a chiar e o vinho a aquecer e o quebrar das nozes!</p>
+
+<p>Vá lá um homem ralar-se com a politica do reino, ter consciencia de sua
+altissima missão, comprehender o direito divino, recalcar no coração a piedade
+e ser cruel contra o proprio filho meio louco de amor e que a dôr tornaria
+completamente louco, contra os infantes seus netos, contra a formosa fidalga
+chorosa, que deixava espalhar pelos hombros os fartos cabellos pintados de
+loiro!</p>
+
+<p>&mdash;Pois sim, cantem, pensava elle.</p>
+
+<p>E respondia tão distrahido, tão fóra do sentimento, que todos, pasmados,
+diziam:</p>
+
+<p>&mdash;O D. Affonso... ali ha coisa!</p>
+
+<p>Corriam-lhe pelas faces uns arripiosinhos, impaciencias perceptiveis sob as
+enormes barbas todas brancas, fazendo-lhe tremer as<span
+class="pn">{201}</span> azas do nariz e os cantinhos das fartas
+sobrancelhas.</p>
+
+<p>O filho, o D. Pedro, com voz de trovão, arrancava do peito as ultimas
+exclamações e afastava-se a largos passos para ir pegar em armas. A côrte,
+attonita, afflicta, corria para a vasta janella rendilhada para ver o
+desgraçado amante atravessar os pateos, chamar os seus, com elles dispor a
+vingança. Era então que o velho heroe do Salado, desgraçadinho, cheio de
+lagrimas na voz, com o coração dilacerado, deante do corpo inanimado da linda
+Inez, havia de soluçar altissimas philosophias sobre a vaidade das vaidades, o
+peso d'aquella corôa sobre as cans, d'aquelle sceptro nas mãos decrepitas.</p>
+
+<p>&mdash;A canja, a canja! pensava elle.</p>
+
+<p>E ainda o ecco murmurava os últimos gemidos d'aquelle diabo de tragedia, e
+já o D. Affonso galgava a quatro e quatro os degráos da escada, sem corôa, sem
+sceptro, sem barbas, respondendo ao contra-regra,<span class="pn">{202}</span>
+que o chamava para ir agradecer os applausos da claque:</p>
+
+<p>&mdash;Vão para o diabo!</p>
+
+<p>E, meia hora depois, que alegria!</p>
+
+<p>Quando chegou a casa, em volta da mesa, a filha, o genro, os tres netinhos,
+todos a cantarem o hymno da carta:&mdash;Tchim! Tchim!... Taratatchim!
+Taratatchim!</p>
+
+<p>Que bem que cheirava a canja!</p>
+
+<p>Aquella noite de Natal havia de ser falada!<span class="pn">{203}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h1><a name="SECTION000160">A BURRINHA BRANCA</a> </h1>
+
+<p>Meu avô tinha uma burrinha branca, que parecia um macho.</p>
+
+<p>Era branca e lustrosa como um cotãosinho de serralha, esbelta, com as
+mãosinhas muito finas, viva, com as orelhitas muito curtas. Uma estampa.</p>
+
+<p>Quando o avô sahia n'ella, não havia general em campo de batalha que mais
+garboso se apresentasse. Tic-tic!&mdash;lá iam os dois pelos caminhos. Vinham
+as mulheres ás portas e era um côro:<span class="pn">{204}</span></p>
+
+<p>&mdash;Benza-te Deus, burrinha!</p>
+
+<p>É que tinha uns modos que prendiam o olhar de todos.</p>
+
+<p>Homens havia que embirravam com o avô, por causa d'aquella fortuna, e diziam
+ao vel-os:</p>
+
+<p>&mdash;Raios os partam!</p>
+
+<p>Mas o velhote não cuidava de mulheres, despresava invejosos e só pensava na
+burra.</p>
+
+<p>Chamava-se Pomba, pomba por dentro e por fóra, tão branquinha d'alma como de
+pêllo.</p>
+
+<p>Muito meiga, quando o avô lhe levava a ração, esfregava n'elle a cabeça,
+mexia as orelhas e dava ao rabo, que é o modo por que os burros fazem festas á
+gente. O avô dava-lhe beijos.</p>
+
+<p>Por todas essas aldeias, nunca vi gato nem cão, animalzinho mais
+querençudo.</p>
+
+<p>Assim passaram muitos mezes de muita paz e socego.</p>
+
+<p>Lá o nosso visinho sapateiro é que se mordia de inveja. De amarello que era
+fez-se verde, de magro um trinca-espinhas. Era<span class="pn">{205}</span>
+dono d'um cavallinho lazão, coxo, pelludo, calçado de tres pés e bebendo em
+branco.</p>
+
+<p>Pois ainda queria comparar o diabo do homem!...</p>
+
+<p>Ora isto da malha branca da testa correndo pelo focinho até ao beiço é de
+mau agoiro. Diziam os moiros que os cavallos assim marcados tinham na cabeça a
+mortalha do cavalleiro. Até onde seja verdade não sei; mas vi mais d'uma vez o
+lazão aos coices nas estrellas e o sapateiro no chão com as costellas
+amolgadas.</p>
+
+<p>Pois, apezar d'isso, só para fazer rabiar o avô, dizia que não
+trocava!...</p>
+
+<p>A Pomba era um apetite. Invejavam-lhe ovelhas a mansidão.</p>
+
+<p>O avô calava-se, porque bem conhecia o sapateiro. Ria-se, sem que ninguem
+desse por isso, que eram tantas as rugas na cara, que mais uma menos uma não
+fazia differença. Onde se lhe conhecia a alegria era nos olhos, uns olhitos
+pequeninos, já sem côr.<span class="pn">{206}</span></p>
+
+<p>A burrinha a trote,&mdash;tic-tic!&mdash;e elle:</p>
+
+<p>&mdash;Bons dias, visinho!</p>
+
+<p>Então o cavallicoque escanzelado, muito malcreado, tinha o máu sestro de
+rinchar.</p>
+
+<p>O avô não gostava do atrevimento; mas que havia de fazer senão conformar-se
+com o namoro desaforado de quantos quadrupedes na terra havia? Era a linda
+cabecinha branca apontar entre os humbraes da cocheira e logo cada zurro de
+repicaponto, que, fosse a Pomba como certas mulheres, seria a aldeia um céo
+aberto.</p>
+
+<p>Ella, muito dengosa,&mdash;tic-tic!&mdash;olhava para todos de soslaio, mas
+nenhum encarava de fito.</p>
+
+<p>Eu levava-a muita vez a pastar. E, como o avô não queria que ella perdesse
+um só ponto da reputação, dizia-me sempre:</p>
+
+<p>&mdash;Não percas o animalzinho de vista. Não deixes de pear a burra.</p>
+
+<p>Nem o mais pintado se lhe havia de chegar, que eu tinha sempre o olho n'ella
+e nunca as peias me haviam esquecido.<span class="pn">{207}</span></p>
+
+<p>Entretanto chegou o mez de abril e toda a charneca se encheu de flores,
+desde as copas mais altas dos sobreiros até ás ervinhas, que se escondem
+envergonhadas debaixo das moitas.</p>
+
+<p>A burrinha abria muito as ventas, respirando o ar fresco da madrugada, que
+cheirava a alecrim e a rosmano, que nem eu sei encarecel-o! Os estevaes eram
+todos em flor e a charneca parecia um mar todo elle verde e branco, quando o
+vento cursava por essas mesas fóra.</p>
+
+<p>Ella gostava de ouvir os passarinhos, que até parece que os entendia. Não ha
+como máus exemplos. Andava azougada e o avô inquieto.</p>
+
+<p>&mdash;Peia-me a burra, dizia sempre.</p>
+
+<p>Iam tamanhos desaforos pela aldeia...! Mas quem havia de pensar...?</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Ora, por esse tempo, a Pomba fez quatro<span class="pn">{208}</span> annos,
+o que é tambem a primavera na vida dos burros.</p>
+
+<p>Uma certa manhã, o sol, depois de trez ou quatro dias de choviscos,
+appareceu de repente limpo de nuvens e com tanta luz, que as abelhas
+embebedaram-se todas. Era um zunir lá pelos ares, que até dava alegria á gente.
+E lá em baixo no montado, ao pé do rio, ainda os rouxinoes se não tinham
+calado, já os trigueirões andavam cantando. Era dia de festa tanto na terra
+como no céo!</p>
+
+<p>Ora um homem póde ser marréca, aleijado e feio como eu sou, ha coisas que
+lhe vão direitinhas á alma.</p>
+
+<p>Larguei a burra no ferregial e fui-me deitar debaixo da figueira.</p>
+
+<p>Dizem que o sol, quando nasce, é para todos; porque não havia de haver uns
+raios para mim? Tanta moça boa na aldeia e eu estropiado, sem me atrever...</p>
+
+<p>Puz-me a olhar para aquelles montes, d'onde o sol vinha a subir. Um moinho
+ao longe bracejava, com as velas muito brancas,<span class="pn">{209}</span>
+que mal se viam no céo todo em volta cintado de côr de sangue. Zuniam as
+abelhas, cantavam os passaros, e o cheiro das flores, em que me tinha deitado,
+trepava-me á cabeça. Fechava os olhos encadeados com a luz do céo e punha-me a
+sonhar. O sol appareceu por detraz do monte, correu uma aragem, as florinhas do
+rosmano curvaram-se, escondendo-se na troca dos beijos. Passaram no ar duas
+borboletas brancas, uma atraz da outra, e pelas ervas andavam gafanhotos aos
+saltos. Eu pensava em muita coisa junta e cantarolava baixinho uma cantiga, que
+tinha ouvido de longe, n'um baile da véspera:</p>
+
+<blockquote>
+ Qual a distancia e a lonjura <br>
+ Onde o sentido caminha, <br>
+ Onde é que elle vai parar, <br>
+ Isso ninguem adivinha. </blockquote>
+
+<p>Ora os versos que eu cantava, a burra tambem os sabia. Tinha-me esquecido
+peal-a<span class="pn">{210}</span> e, quando voltei a mim, não vi da burra nem
+rastos!</p>
+
+<p>E ali fiquei eu, não sei que tempos, como um simplacheirão, de queixos
+cahidos e mãos a abanar, sem achar uma idéa que me allumiasse, sem ver remedio
+de vida, a tremer das furias do avô.</p>
+
+<p>Depois, muito cosido com as paredes, fui até á cocheira. Talvez a Pomba
+tivesse tomado o caminho de casa.</p>
+
+<p>O avô, satisfeito como um gato ao borralho e descançando em meu cuidado,
+assentára a barba sobre o peitilho, e no pateo, sentado no banco de pedra,
+dormia ao sol.</p>
+
+<p>A burra não estava.</p>
+
+<p>Fui para a charneca. Onde via esteva pisada, procurava achar um rasto.
+Levava n'uma palhinha a medida certa da ferradura; mas as poucas horas de sol
+n'aquella manhã tinham endurecido a terra.</p>
+
+<p>O sol foi subindo e até ao meio dia andei leguas. O coração batia-me tanto,
+que me fazia doer. Não parei. Ia á doida, sem destino.<span
+class="pn">{211}</span> Bateram na villa ave-marias. Dei por mim a quatro
+leguas da aldeia. Calaram-se os passaros; as papoilas das estevas enrolaram-se
+para dormir; anoiteceu, e eu deixei-me ficar toda a noite na charneca, a tremer
+de susto e de frio. Toda a santa noite um mocho piou e eu pensei na coça que me
+esperava. Se não fosse a marréca, tinha fugido para assentar praça. Uma
+d'aquellas só pela fortuna! E toda a noite tive nos ouvidos a mesma cantiga...
+Mas quem podia adivinhar...?</p>
+
+<p>Era quasi madrugada, quando cheguei a casa.</p>
+
+<p>Mal o avô me avistou, bateu-lhe o queixo como em terçãs, e até os beiços se
+lhe fizeram brancos.</p>
+
+<p>&mdash;E a burra? perguntou.</p>
+
+<p>Por felicidade, n'essa altura, a Pomba entrou no pateo, a passo, de orelha
+muito murcha, como quem traz peso na consciencia.</p>
+
+<p>Foi o que me valeu. Eu, que tanta praga durante a noite lhe rogára, tive até
+vontade&mdash;palavra!&mdash;de<span class="pn">{212}</span> desatar aos beijos
+á minha salvadora.</p>
+
+<p>Mas já o avô a tinha agarrado. O desgosto não lhe havia feito esquecer o
+costume, pelo contrario, e uma melhor matadella de bicho tornava-o ainda mais
+terno.</p>
+
+<p>O que elle disse á burra! O que elle lhe disse!</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Mas embora o velho perdoasse, o mal estava feito. Breve d'isso se convenceu.
+Primeiro foram apenas suspeitas, passados dias uma certeza.</p>
+
+<p>O avô andava envergonhado. Já, quando passava em frente da porta do
+sapateiro, não largava chalaças para a loja. O caso tinha sido falado. Isto de
+más linguas na aldeia!... O avô parecia-lhe que a honra da burra tinha o que
+quer que fosse com a honra d'elle. D'antes sempre
+cantando&mdash;<em>tiro-liro-liro!</em>&mdash;andava matuto agora. «Quem
+seria?...<span class="pn">{213}</span> Vão lá saber!» Nasceu-lhe um odio enorme
+a todas as cavalgaduras a quem pudesse attribuir a desgraça. Desafogava comigo
+e dava-me bofetadas, cada vez que dizia «não a peaste!» O asno do moleiro era
+amarello com uma cruz nas costas e tinha fama de requestado. Nunca mais o poude
+ver. Contra todos tinha uma pedra no sapato e, quando o lazão rinchava,
+dizia:&mdash;«Desavergonhado!» Mas não desconfiava d'elle. Tão feio!...</p>
+
+<p>Quiz ver se a Pomba se trahia. Quando passeava pela aldeia na burrinha,
+ia-lhe sempre observando qualquer gestosinho das orelhas. E ella muito seria...
+tic-tic!...</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Uma madrugada vim dar parte ao avô de que havia mais um machinho na
+cavallariça.</p>
+
+<p>Nem sequer acabou de engolir o copinho de aguardente e atravessou como doido
+o pateo.<span class="pn">{214}</span></p>
+
+<p>Um macho! Um macho!... Mas então quem?... quem?</p>
+
+<p>A luz da alvorada mal coava pelos intervallos da telha vã, cobertos de teias
+de aranha, onde se baloiçavam palhas. Foi preciso que eu accendesse a
+candeia.</p>
+
+<p>Como a Pomba enternecida lambia o filhinho!</p>
+
+<p>Era um machinho lazão, muito feio, calçado de tres pés, bebendo em
+branco.</p>
+
+<p>Quando o avô lhe não deu ali um estupor, é porque já não morre.</p>
+
+<p>O caso, é claro, fez bulha, ainda mais do que o primeiro.</p>
+
+<p>Eram quasi dez horas da manhã, quando o avô, que se fôra encostar na cama,
+ralado pelo desgosto, ouviu uma voz alegre, que lhe gritava:</p>
+
+<p>&mdash;Parabéns!</p>
+
+<p>Veio á porta furioso e mostrou o punho ao sapateiro, que se afastava, rindo,
+a chouto, no lazãosinho coxo, pelludo, calçado, dos trez pés e com a tal malha
+de máu agoiro...<span class="pn">{215}</span></p>
+
+<p>Ora o que desconsolou o avô foi o que me deu alegria para a vida. Aquillo do
+cavallicoque animou-me, porque a burra estava despeada e foi até onde muito bem
+lhe pareceu. São gostos. Pobrinho d'uma figa n'alma, no corpo e na algibeira,
+vivi desde então com uma esperança.</p>
+
+<p class="centrado">*<br>
+*      *</p>
+
+<p>Quando o marrequita acabou de contar a historia, a Caetana que andára
+servindo os freguezes, poz-se vermelha... vermelha...</p>
+
+<p>&mdash;Até mais logo, disse elle, sahindo.</p>
+
+<p>O diabo do marreca tinha sorte!</p>
+
+<p><span class="pn">{216}<br>
+{217}</span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+</div>
+
+<h1>INDICE</h1>
+
+<table align="center" summary="Indice">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td> </td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;">Pag.</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00010">As Mães</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00010">1</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00020">O Baile dos velhos</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00020">13</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00030">A Outra</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00030">27</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00040">O Paquete</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00040">47</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00050">Perdido</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00050">63</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00060">Ad Astra</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00060">77</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00070">O Ventura</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00070">95</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00080">O Primeiro sorriso</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00080">113</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION00090">O Meu rewolver</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION00090">127</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000100">O Mimoso</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000100">139</a><span class="pn">{218}</span></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000110">Gri-gri</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000110">153</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000120">Na Biqueira</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000120">161</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000130">Requiem aeternam</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000130">171</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000140">As Estrellas do cego</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000140">183</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000150">Os Netos</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000150">195</a></td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><a href="#SECTION000160">A Burrinha branca</a></td>
+ <td style="text-align: right; padding-left: 2em;"><a
+ href="#SECTION000160">203</a></td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="cat_editor"
+style="font-size: 0.9em; margin: 5%; border: double 10px #000; padding: 1em;">
+<p style="text-align: center; font-size: 1.4em;">LIVRARIA EDITORA</p>
+
+<p style="text-align: center; font-size: 1.6em;">GUIMARÃES, LIBANIO &amp;
+C.<sup>IA</sup></p>
+
+<p style="text-align: center; font-size: 1.1em;">108, R. de S. Roque,
+110&mdash;LISBOA</p>
+
+<table width="100%" summary="Obras publicadas pelo mesmo editor">
+ <tbody>
+ <tr>
+ <td><strong>Mulheres da Beira</strong>, contos, de Abel Botelho&mdash;1
+ vol. broch.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$700</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Os Amores de Camillo</strong> (Biographia amorosa de Camillo
+ C. Branco) por Alberto Pimentel&mdash;1 vol. illustrado, broch.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">1$200</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Lyra insubmissa</strong>, versos de Abel Botelho&mdash;1 vol.
+ broch.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>O Lubis-homem</strong>, comedia em 3 actos, de Camillo C.
+ Branco&mdash;1 vol. broch.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Historia do Culto de N. Senhora em Portugal</strong>, por
+ Alberto Pimentel&mdash;1 vol. de 500 pag. in-4.º com mais de 80
+ gravuras&mdash;br. 2$000, enc.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">2$600</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Cartas da Condessa d'Alve</strong>, romance, por
+ Daniella&mdash;1 vol. broch.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Pintores e poetas de Rilhafolles</strong>, por Julio
+ Dantas&mdash;1 vol. ill.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$400</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Viagem á roda das viagens</strong>, por Alberto
+ Pimentel&mdash;1 folh. impresso em papel de linho</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$200</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Tratamento natural</strong>&mdash;(7.º vol. da Collecção do
+ povo) pelo dr. João Bentes Castel-Branco&mdash;1 vol. cart.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Meia Noite</strong>, peça em 3 actos, de D. João da
+ Camara&mdash;1 vol. br.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$500</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Rindo...</strong>, contos de D. Claudia de Campos&mdash;1
+ vol. br.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$700</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Pela Vida fóra</strong>, memorias, de Silva Pinto&mdash;1
+ vol. broch. 800 enc.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">1$000</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>O Sonho da Rainha</strong>, por Alberto Pimentel&mdash;1
+ folheto</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td>
+ </tr>
+ <tr>
+ <td><strong>Pedro Alvares Cabral e o descobrimento do Brazil</strong>,
+ por Faustino da Fonseca&mdash;1 vol. cart.</td>
+ <td style="text-align: right;" valign="bottom">$100</td>
+ </tr>
+ </tbody>
+</table>
+</div>
+
+<div class="fbox"><p><b>Notas de transcrição:</b></p>
+
+<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro
+impresso em 1900.</p>
+
+<p>Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns
+pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a interpretação do texto,
+e que por isso não considerámos necessário assinalá-los. Mantivemos
+inclusivamente as eventuais incoerências de grafia de algumas palavras, em
+particular quanto à acentuação.</p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Contos, by João da Camara
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS ***
+
+***** This file should be named 31905-h.htm or 31905-h.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ https://www.gutenberg.org/3/1/9/0/31905/
+
+Produced by Pedro Saborano (This file was produced from
+images generously made available by The Internet Archive)
+
+
+Updated editions will replace the previous one--the old editions
+will be renamed.
+
+Creating the works from public domain print editions means that no
+one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
+(and you!) can copy and distribute it in the United States without
+permission and without paying copyright royalties. Special rules,
+set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
+copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
+protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project
+Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
+charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
+do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
+rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
+such as creation of derivative works, reports, performances and
+research. They may be modified and printed and given away--you may do
+practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
+subject to the trademark license, especially commercial
+redistribution.
+
+
+
+*** START: FULL LICENSE ***
+
+THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
+PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
+
+To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
+distribution of electronic works, by using or distributing this work
+(or any other work associated in any way with the phrase "Project
+Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
+Gutenberg-tm License (available with this file or online at
+https://gutenberg.org/license).
+
+
+Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
+electronic works
+
+1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
+electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
+and accept all the terms of this license and intellectual property
+(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
+the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
+all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
+If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
+Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
+terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
+entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
+
+1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
+used on or associated in any way with an electronic work by people who
+agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
+things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
+even without complying with the full terms of this agreement. See
+paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
+Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
+and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
+works. See paragraph 1.E below.
+
+1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
+collection are in the public domain in the United States. If an
+individual work is in the public domain in the United States and you are
+located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
+copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
+works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
+are removed. Of course, we hope that you will support the Project
+Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
+freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
+this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
+the work. You can easily comply with the terms of this agreement by
+keeping this work in the same format with its attached full Project
+Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
+
+1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
+what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
+a constant state of change. If you are outside the United States, check
+the laws of your country in addition to the terms of this agreement
+before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
+creating derivative works based on this work or any other Project
+Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning
+the copyright status of any work in any country outside the United
+States.
+
+1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
+
+1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate
+access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
+whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
+phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
+Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
+copied or distributed:
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
+from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
+posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
+and distributed to anyone in the United States without paying any fees
+or charges. If you are redistributing or providing access to a work
+with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
+work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
+through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
+Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
+1.E.9.
+
+1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
+with the permission of the copyright holder, your use and distribution
+must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
+terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
+to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
+permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
+
+1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
+License terms from this work, or any files containing a part of this
+work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
+
+1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
+electronic work, or any part of this electronic work, without
+prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
+active links or immediate access to the full terms of the Project
+Gutenberg-tm License.
+
+1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
+compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
+word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
+distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
+"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
+posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
+you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
+copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
+request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
+
+1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
+that
+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
+- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
+ you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
+ does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
+ License. You must require such a user to return or
+ destroy all copies of the works possessed in a physical medium
+ and discontinue all use of and all access to other copies of
+ Project Gutenberg-tm works.
+
+- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
+ electronic work is discovered and reported to you within 90 days
+ of receipt of the work.
+
+- You comply with all other terms of this agreement for free
+ distribution of Project Gutenberg-tm works.
+
+1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
+electronic work or group of works on different terms than are set
+forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
+both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
+Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
+Foundation as set forth in Section 3 below.
+
+1.F.
+
+1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
+effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
+public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
+collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
+works, and the medium on which they may be stored, may contain
+"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
+corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
+property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
+computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
+your equipment.
+
+1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
+of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
+Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
+Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
+liability to you for damages, costs and expenses, including legal
+fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
+LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
+PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
+TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
+LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
+INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
+DAMAGE.
+
+1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
+defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
+receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
+written explanation to the person you received the work from. If you
+received the work on a physical medium, you must return the medium with
+your written explanation. The person or entity that provided you with
+the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
+refund. If you received the work electronically, the person or entity
+providing it to you may choose to give you a second opportunity to
+receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
+is also defective, you may demand a refund in writing without further
+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
+1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
+providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
+
+
+</pre>
+
+</body>
+</html>