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+Project Gutenberg's O crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O crime do padre Amaro
+ scenas da vida devota
+
+Author: José Maria Eça de Queirós
+
+Release Date: April 13, 2010 [EBook #31971]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
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+
+ *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
+ existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
+ versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
+ o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
+ corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Abril 2010)
+
+
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+
+
+
+Obras do mesmo auctor:
+
+*Os Maias.* 2 grossos volumes. 2$000
+
+*O Crime do Padre Amaro.* Terceira edição inteiramente refundida,
+recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1
+grosso volume. 1$200
+
+*O Primo Bazilio.* Segunda edição. 1 grosso volume. 1$000
+
+*A Reliquia.* 1 grosso volume. 1$000
+
+*O Mandarim.* Segunda edição. 1 volume. 500
+
+No prelo:
+
+*Correspondencia de Fradique Mendes.* 1 volume.
+
+
+
+
+EÇA DE QUEIROZ
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+SCENAS DA VIDA DEVOTA
+
+TERCEIRA EDIÇÃO
+
+Inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na acção da
+edição primitiva
+
+
+
+PORTO
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
+
+Casa editora
+
+*LUGAN & GEMELIOUX, Successores*
+
+1889
+
+Todos os direitos reservados
+
+
+
+
+Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70
+
+
+
+
+NOTA
+
+(DA 2.^a EDIÇÃO)
+
+
+O Crime do Padre Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção
+da Critica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado--O
+Primo Bazilio. E no Brazil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se
+adduzir nenhuma prova effectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma
+imitação do romance do snr. E. Zola--La Faute de l'Abbé Mouret; ou que
+este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos sociaes
+suggerira a idéa, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro.
+
+Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto. O Crime do
+Padre Amaro foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e
+publicado em 1874. O livro do snr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret (que
+é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escripto e publicado em
+1875.
+
+Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas
+como subalterna e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado no
+cerebro, no pensamento do snr. Zola, e ter avistado, entre as fórmas
+ainda indecisas das suas creações futuras, a figura do abbade
+Mouret,--exactamente como o veneravel Anchises no valle dos Elyseos
+podia vêr, entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa
+luminosa do Lethes, aquelle que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas
+são possiveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais
+extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos--e
+outros prodigios provados.
+
+O que, segundo penso, mostra melhor que a accusação carece de exactidão,
+é a simples comparação dos dois romances. La Faute de l'Abbé Mouret é,
+no seu episodio central, o quadro allegorico da iniciação do primeiro
+homem e da primeira mulher no amor. O abbade Mouret (Sergio), tendo sido
+atacado d'uma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação
+mystica no culto da Virgem, na solidão d'um valle abrazado da Provença
+(primeira parte do livro), é levado para convalescer ao _Paradou_,
+antigo parque do seculo XVII a que o abandono refez uma virgindade
+selvagem, e que é a representação allegorica do Paraiso. Ahi, tendo
+perdido na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu
+sacerdocio e da existencia da aldeia, e a consciencia do universo a
+ponto de ter medo do sol e das arvores do _Paradou_ como de monstros
+estranhos--erra, durante mezes, pelas profundidades do bosque inculto,
+com Albina que é o genio, a Eva d'esse logar de legenda; Albina e
+Sergio, semi-nús como no Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto
+que os impelle, uma arvore mysteriosa, da rama da qual cae a influencia
+aphrodisiaca da materia procreadora; sob este symbolo da Arvore da
+Sciencia se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir,
+na sua innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar o amor;
+depois, n'uma mutua vergonha subita, notando a sua nudez, cobrem-se de
+folhagens; e d'ahi os expulsa, os arranca o padre Archangins, que é a
+personificação theocratica do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro
+o abbade Mouret recupera a consciencia de si mesmo, subtrae-se á
+influencia dissolvente da adoração da Virgem, obtem por um esforço da
+oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade, e
+torna-se um asceta sem nada d'humano, uma sombra cahida aos pés da cruz;
+e, é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de
+Albina, que se asphyxiou no _Paradou_ sob um montão de flôres de
+perfumes fortes.
+
+Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser
+apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret não tinham infelizmente
+lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda
+a sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro.
+
+Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade cornea ou má fé
+cynica poderia assemelhar esta bella allegoria idyllica, a que está
+misturado o pathetico drama d'uma alma mystica, ao Crime do Padre Amaro
+que, como podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no fundo, uma
+intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d'uma velha
+Sé de provincia portugueza.
+
+Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal
+a attenção que ella tem dado aos meus trabalhos.
+
+
+Bristol, 1 de janeiro de 1880.
+
+_Eça do Queiroz._
+
+
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+
+
+
+I
+
+
+Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé,
+José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho
+era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero diocesano
+pelo _comilão dos comilões_. Contavam-se historias singulares da sua
+voracidade. O Carlos da Botica--que o detestava--costumava dizer, sempre
+que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de sangue, muito
+enfartado:
+
+--Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!
+
+Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe--á hora em que
+defronte, na casa do dr. Godinho que fazia annos, se polkava com
+alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral
+não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um
+cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos, palavras muito rudes.
+
+Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo
+vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra, não comprehendia
+certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao
+principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido
+padre Gusmão, tão cheio de _labia_!
+
+E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de
+visões, José Migueis escandalisava-as, rosnando:
+
+--Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus! Mais miôlo na bola!
+
+As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
+
+--Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, creatura!
+
+Era miguelista--e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus
+jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:
+
+--Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guardasol vermelho.
+
+Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado--com uma
+criada velha e um cão, o _Joli_. O seu unico amigo era o chantre
+Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D.
+Joaquim gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto
+Minho. O parocho tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco, de
+grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio--que fallava
+fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas.
+
+O chantre estimava-o. Chamava-lhe _Frei Hercules_.
+
+--_Hercules_ pela força, explicava sorrindo, _Frei_ pela gula.
+
+No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava
+offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros
+conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual,
+o primeiro torrão de terra:
+
+--É a ultima pitada que lhe dou!
+
+Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado;
+o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado Novaes; foi
+celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre,
+e affirmou-se com respeito--_que sua excellencia tinha muita pilheria!_
+
+Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho,
+o _Joli_. A criada entrára com sezões no hospital; a casa fôra fechada;
+o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno,
+extremamente gordo,--que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o
+habito das batinas, avido d'um dono, apenas via um padre punha-se a
+seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz _Joli_;
+enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um
+pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã appareceu morto
+ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguem
+tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente
+esquecido.
+
+Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho.
+Dizia-se que era um homem muito novo, sahido apenas do seminario. O seu
+nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias
+politicas, e o jornal de Leiria, _A Voz do Districto_, que estava na
+opposição, fallou com amargura, citando o Golgotha, no _favoritismo da
+côrte_ e na _reacção clerical_. Alguns padres tinham-se escandalisado
+com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor
+chantre.
+
+--Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse
+o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia
+(Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o
+parocho é um bello rapagão. De sorte que--acrescentou sorrindo com
+satisfação--depois de _Frei Hercules_ vamos talvez ter _Frei Apollo_.
+
+Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego
+Dias que fôra, nos primeiros annos do seminario, seu mestre de Moral. No
+seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado,
+cheio de espinhas carnaes...
+
+--Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem
+lombrigas!... De resto bom rapaz. E espertote...
+
+O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o
+ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as
+olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de
+frades lascivos e glotões.
+
+O tio Patricio, o _antigo_, negociante da Praça, muito liberal, e que
+quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia ás
+vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão,
+encostado ao guardachuva:
+
+--Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
+
+O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.^a D. Josepha Dias, e uma
+criada, que todos conheciam tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada
+n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de
+ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria
+propriedades arrendadas, dava jantares com perú, e tinha reputação o seu
+vinho _duque_ de 1815. Mas o facto saliente da sua vida--o facto
+commentado e murmurado--era a sua antiga amizade com a snr.^a Augusta
+Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural de S. João da
+Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes.
+Tinha uma filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita,
+forte, muito desejada.
+
+O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro
+Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou os
+seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de costumes, a sua
+obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «_um timbre que é um regalo!_»
+
+--Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a
+calhar!
+
+Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a
+gloria d'um bispado!
+
+E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura
+servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
+
+Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova.
+Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de
+pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a
+Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes
+e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de
+expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes,
+que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho
+cobriam o chão; e os grossos cylindros de pedra, que acalcam e recamam
+os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.
+
+Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o
+rio vem são collinas baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama
+verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos,
+estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais
+viva e humana--com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com
+os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e
+lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras
+baixas entre dois renques de salgueiros pallidos, estende-se até os
+primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de
+aguas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas
+uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé, um canto do muro
+do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos
+cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações
+rebeldes, onde destacam as ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde
+nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar
+historico.
+
+Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á
+beira do rio. É um logar recolhido, coberto de arvores antigas.
+Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando baixo, o
+conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre
+«uma idéa que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!»
+Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel,
+barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de
+quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro
+Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me
+convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o
+bastante. O que é necessario é que a casa seja respeitavel, socegada,
+central; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos;
+deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes
+favores não cahirão em terreno ingrato. Sobretudo que a patrôa seja
+pessoa accommodada e de boa lingua.»
+
+Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S.
+Joanneira! resumiu o conego com um grande contentamento. É rica idéa,
+hein?
+
+--Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz servil.
+
+--Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde
+servir de escriptorio. Tem boa mobilia, boas roupas...
+
+--Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
+
+O conego continuou:
+
+--É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas,
+comida, criada, póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia. E
+depois sempre tem o parocho de casa.
+
+--Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o
+coadjutor. Sim, póde ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor
+parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo.
+
+O conego tinha parado:
+
+--Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas
+telhas com a afilhada da mãi? E o conego Pedroso não vive com a cunhada,
+e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora essa!
+
+--Eu dizia... attenuou o coadjutor.
+
+--Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como
+se fosse uma hospedaria. Então o secretario geral não esteve lá uns
+poucos de mezes?
+
+--Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.
+
+--Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E
+parando, com uma attitude confidencial:--E depois a mim é que me
+convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
+
+Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse, baixando a voz:
+
+--Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...
+
+--Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E
+com uma entonação terna, risonhamente paternal:--que ella é merecedora,
+é merecedora. Boa até alli, meu amigo!--Parou, esgazeando os
+olhos:--Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em
+ponto, está n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se
+sem razão.» Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno
+passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não
+tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o _padre
+santo_, vossê sabe? é como ella me chama.
+
+Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação babosa:
+
+--Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!
+
+--E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
+
+--Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada
+até alli! Pois olhe que já não é criança! Mas nem um cabello branco, nem
+um, nem um só! E então que côr de pelle!--E mais baixo, com um sorriso
+guloso:--E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui!--Indicava o lado do pescoço
+debaixo do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:--É
+uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que
+lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o
+covilhete de geleia, é o pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella
+d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de vossê
+vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está
+tão boa que parece que foi cozida em agua benta!»--E pondo a mão
+espalmada sobre o peito:--São coisas que tocam a gente cá por dentro,
+Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não ha outra.
+
+O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
+
+--Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as
+palavras, eu bem sei que por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma
+grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente.
+Já o tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.
+
+O coadjutor teve um gesto affirmativo.
+
+--A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem,
+Mendes! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do
+guardasol.
+
+--As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor
+com uma voz chorosa. E depois d'um silencio acrescentou baixo:--Mas
+aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!
+
+--Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario
+geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que
+tenho dado para a panella, Mendes!
+
+--Que ella tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
+
+--Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as
+decimas, os jornaes! Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os seis
+tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella
+tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um
+allivio, Mendes.
+
+--É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.
+
+Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma
+pallida côr azul; o ar estava immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito
+vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se
+com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.
+
+Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram então pelo caminho
+lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto d'um
+silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da
+canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa,
+olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos--e fios
+de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho.
+Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada,
+estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia
+subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de
+laranja que annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma
+decoração muito rica.
+
+--Bonita tarde! disse o coadjutor.
+
+O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
+
+--Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?
+
+Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou,
+e voltando-se para o coadjutor:
+
+--Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S.
+Joanneira! É uma pechincha para todos.
+
+--Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande
+pechincha!
+
+E entraram na igreja, persignando-se.
+
+
+
+
+II
+
+
+Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela
+diligencia de Chão de Maçãs, que traz o correio á tarde; e desde as seis
+horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz, á
+espera de Amaro.
+
+Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamisada que vai
+junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se
+vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de
+casebres pobres, velhas fiavam á porta; crianças sujas brincavam pelo
+chão, mostrando os seus enormes ventres nús; e gallinhas em redor iam
+picando vorazmente as immundicies esquecidas. Em redor do chafariz cheio
+de ruido, onde os cantaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham,
+soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam,
+meneando a chibata de junco; com o seu cantaro bojudo de barro
+equilibrado á cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares,
+meneando os quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada
+sobre o estomago, conversavam, esperando, _a vêr quem viria_. A
+diligencia tardava. Quando o crepusculo desceu, uma lamparina luziu no
+nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando uma a uma,
+com uma luz soturna, as janellas do hospital.
+
+Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as lanternas accesas,
+entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavallos brancos, e
+veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro
+do tio Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos
+_Diarios Populares_; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao
+canto da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente; e um homem que
+vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéo alto e comprido capote
+ecclesiastico, desceu cautelosamente, agarrando-se ás guardas de ferro
+dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em
+redor.
+
+--Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado, oh, ladrão!
+
+--Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, emquanto
+o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão.
+
+D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça,
+entre a corpulencia vagarosa do conego Dias e a figura esguia do
+coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube-se
+que era o parocho novo; e disse-se logo na botica que era _uma boa
+figura de homem_. O João Bicha levava adiante um bahú e um sacco de
+chita; e como áquella hora já estava bebedo, ia resmungando o _Bemdito_.
+
+Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor da Praça as casas
+estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada sahia a luz triste
+dos candieiros de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas,
+caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar á Praça,
+tortuosas, tenebrosas, com um lampeão mortiço, pareciam deshabitadas. E
+no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.
+
+O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho «o que lhe
+arranjára». Não lhe tinha procurado casa: seria necessario comprar
+mobilia, buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe melhor
+tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes respeitavel, de muito
+conchego--e n'essas condições (e alli estava o amigo coadjutor que o
+podia dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem arejada, muito
+aceio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretario geral
+e o inspector dos estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a
+bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito economica e
+cheia de condescendencias...
+
+--Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu _cozido_, prato de meio,
+café...
+
+--Vamos a saber, Padre-Mestre: preço? disse o parocho.
+
+--Seis tostões. Que diabo, é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
+
+--Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.
+
+--E é longe da Sé? perguntou Amaro.
+
+--Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos. Na casa ha uma
+rapariga, continuou com a sua voz pausada o conego Dias. É a filha da S.
+Joanneira. Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha de
+genio, mas bom fundo... Aqui tem vôsse a sua rua.
+
+Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da
+velha Misericordia, com um lampeão lugubre ao fundo.
+
+--E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego, batendo na aldraba de
+uma porta esguia.
+
+No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam
+saliencia, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos
+cantos em caixas de madeira; as janellas de cima, pequeninas, eram de
+peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata
+amolgada.
+
+A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e
+sardenta, alumiava com um candieiro de petroleo; e a figura da S.
+Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda,
+alta, muito branca, d'aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham
+já em redor a pelle engelhada; os cabellos arripiados, com um enfeite
+escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas
+percebiam-se uns braços rechonchudos, um collo copioso e roupas aceadas.
+
+--Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego subindo.
+
+--Muita honra em receber o senhor parocho! muita honra! Ha de vir muito
+cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.
+
+Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello, com um vasto canapé
+de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de
+baeta verde.
+
+--É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira. Para receber, para
+espairecer... Aqui--acrescentou abrindo uma porta--é o seu quarto de
+dormir. Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...--Abriu os gavetões,
+gabou a cama batendo a elasticidade dos colxões--Uma campainha para
+chamar sempre que queira... As chavinhas da commoda estão aqui... Se
+gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...
+
+--Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, disse o parocho com a
+sua voz baixa e suave.
+
+--É pedir! O que ha, da melhor vontade...
+
+--Oh creatura de Deus! interrompeu o conego jovialmente, o que elle quer
+agora é cear!
+
+--Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as seis que está o caldo a
+apurar...
+
+E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
+
+--Vá, _Ruça_, mexe-te, mexe-te!...
+
+O conego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
+
+--É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
+
+--Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre, disse o parocho, calçando
+os seus chinelos de ourelo. Olha o seminario!... E em Feirão! Cahia-me a
+chuva na cama.
+
+Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cornetas.
+
+--Que é aquillo? perguntou Amaro, indo á janella.
+
+--Ás nove e meia, o toque de recolher.
+
+Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro esmorecia. A noite
+estava muito negra. E havia sobre a cidade um silencio concavo, de
+abobada.
+
+Depois das cornetas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado
+do quartel; por baixo da janella um soldado, que se demorára n'alguma
+viella do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia sahia
+constantemente o agudo piar das corujas.
+
+--É triste isto, disse Amaro.
+
+Mas a S. Joanneira gritou de cima:
+
+--Póde subir, senhor conego! Está o caldo na mesa!
+
+--Ora vá, vá, que vossê deve estar a cahir de fome, Amaro!--disse o
+conego, erguendo-se muito pesado.
+
+E detendo um momento o parocho pela manga do casaco:
+
+--Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora! Da
+gente se babar!...
+
+
+No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa
+alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo á
+luz forte d'um candieiro d'_abat-jour_ verde. Da terrina subia o vapor
+cheiroso do caldo, e na larga travessa a gallinha gorda, afogada n'um
+arroz humido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma
+apparencia succulenta de prato morgado. No armario envidraçado, um pouco
+na sombra, viam-se côres claras de porcelana; a um canto, ao pé da
+janella, estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado. Na
+cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha d'um taboleiro
+de roupa lavada, o parocho esfregou as mãos, regalado.
+
+--Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a S. Joanneira. D'ahi
+póde-lhe vir frio.--Foi fechar as portadas das janellas; chegou-lhe um
+caixão de areia para as pontas dos cigarros.--E o senhor conego toma um
+copinho de geleia, sim?
+
+--Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o conego, sentando-se e
+desdobrando o guardanapo.
+
+A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o parocho
+que, com a cabeça sobre o prato, comia em silencio o seu caldo, soprando
+a colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito preto, levemente
+annelado. O rosto era oval, de pelle trigueira e fina, os olhos negros e
+grandes, com pestanas compridas.
+
+O conego, que não o via desde o seminario, achava-o mais forte, mais
+viril.
+
+--Vossê era enfezadito...
+
+--Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me bem.--Contou então a sua
+triste existencia em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do
+inverno, só, com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto,
+fazendo-o espumar.
+
+--Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta gota não pilhava vossê no
+seminario.
+
+Fallaram do seminario.
+
+--Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o conego.
+
+--E do Carôcho, que roubava as batatas?
+
+Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias, recordavam as historias
+de então, o catarrho do reitor, e o mestre de canto-chão que deixára um
+dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.
+
+--Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
+
+A S. Joanneira então poz na mesa um prato covo com maçãs assadas.
+
+--Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou logo o conego. A bella
+maçã assada! nunca me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona
+de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona de casa!
+
+Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados.
+Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; poz no prato do conego, com
+requintes devotos, uma maçã desfeita polvilhada de assucar; e
+batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle:
+
+--Isto é um santo, senhor parocho, isto é um santo! Ai, devo-lhe muitos
+favores!
+
+--Deixe fallar, deixe fallar..., dizia o conego.--Espalhava-se-lhe no
+rosto um contentamento baboso.--Boa gota! acrescentou, saboreando o seu
+calix de _porto_. Boa gota!
+
+--Olhe que ainda é dos annos da Amelia, senhor conego.
+
+--E onde está ella, a pequena?
+
+--Foi ao _Morenal_ com a D. Maria. Aquillo naturalmente foram para casa
+das Gansosos passar a noite.
+
+--Cá esta senhora é proprietaria, explicou o conego, fallando do
+_Morenal_. É um condado!--Ria com bonhomia, e os seus olhos luzidios
+percorriam ternamente a corpulencia da S. Joanneira.
+
+--Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga de terra..., disse ella.
+
+Mas vendo a criada encostada á parede, sacudida com afflicções de tosse:
+
+--Ó mulher, vai tossir lá p'ra dentro! credo!
+
+A moça sahiu, pondo o avental sobre a boca.
+
+--Parece doente, coitada, observou o parocho.
+
+Muito achacada, muito!... A _pobre de Christo_ era sua afilhada, orphã,
+e estava quasi tisica. Tinha-a tomado por piedade...
+
+--E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a
+desavergonhada... Metteu-se ahi com um soldado!...
+
+O padre Amaro baixou devagar os olhos--e trincando migalhas perguntou se
+havia muitas doenças n'aquelle verão.
+
+--Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego. Mettem-se pelas
+melancias, depois tarraçadas de agua... E suas febritas...
+
+Fallaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
+
+--Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso
+Senhor Jesus Christo, tenho saude, tenho!
+
+--Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a
+S. Joanneira.--Contou immediatamente a grande desgraça que tinha em
+casa, uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos! Ia fazer sessenta
+annos... No inverno viera-lhe um catarrho, e desde então, coitadinha,
+definhava, definhava...
+
+--Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque de tosse! Pensei que
+se ia embora. Agora descansou mais...
+
+Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois da sua Ameliasinha, das
+Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo--sentada, com o gato no
+collo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O
+conego, pesado, cerrava as palpebras; tudo na sala parecia ir
+gradualmente adormecendo; a luz do candieiro esmorecia.
+
+--Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se, isto são horas!
+
+O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as _graças_.
+
+--O senhor parocho quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S.
+Joanneira.
+
+--Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
+
+E desceu devagar, palitando os dentes.
+
+A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro. Mas nos primeiros
+degraus o parocho parou, e voltando-se, affectuosamente:
+
+--É verdade, minha senhora, ámanhã é sexta-feira, é jejum...
+
+--Não, não, acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina,
+bocejando, vossê ámanhã janta commigo. Eu venho por cá, vamos ao
+chantre, á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que
+isto aqui nunca ha peixe.
+
+A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:
+
+--Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor parocho. Tenho o maior
+escrupulo!
+
+--Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente hoje em dia ninguem
+cumpre...
+
+--Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella. Mas eu! credo!... A
+salvação da minha alma antes de tudo!
+
+A campainha em baixo, então, retiniu fortemente.
+
+--Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira. Abre, _Ruça_!
+
+A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
+
+-És tu, Amelia?
+
+Uma voz disse _adeusinho! adeusinho!_ E appareceu, subindo quasi a
+correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bella rapariga,
+forte, alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um
+ramo de alecrim.
+
+--Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou agora á noitinha,
+sobe!
+
+Amelia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de
+cima, onde o parocho ficára, encostado ao corrimão. Respirava fortemente
+de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos e negros luziam; e
+sahia d'ella uma sensação de frescura e de prados atravessados.
+
+O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando
+_boas noites!_ com a cabeça baixa. O conego, que descia atraz,
+pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amelia:
+
+--Então isto são horas, sua bréjeira!
+
+Ella teve um risinho, encolheu-se.
+
+--Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto
+devagarinho com a sua mão grossa e cabelluda.
+
+Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois d'ir buscar o guardasol á
+saleta, sahia, dizendo á criada, que erguia o candieiro sobre a escada:
+
+--Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então ás oito, Amaro!
+Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza á Senhora da Piedade que te
+seque essa catarrheira.
+
+O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva,
+tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a
+gravura antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu Breviario,
+ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe
+grandes bocejos; e então por cima, sobre o tecto, através das orações
+rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir o _tic-tic_ das
+botinas de Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao
+despir-se.
+
+
+
+
+III
+
+
+Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros.
+Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma
+amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o _Menino
+das selvas_, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na
+primeira pagina branca: _Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e
+verdadeira amiga que sempre tem sido,--Marqueza d'Alegros_. Possuia
+tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de
+sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr
+ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra
+sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge.
+Amaro completára então seis annos. Tinha uma irmã mais velha que desde
+pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do
+bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro;
+conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes
+escrupulos, a vigiar a sua educação.
+
+A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a
+maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma
+pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito
+devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da
+Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas
+preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o _chic_ fallando com igual
+fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um
+jornalista de então dissera d'ellas:--Pensam todos os dias na _toilette_
+com que hão de entrar no paraiso.
+
+No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas
+aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se.
+A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas:
+cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os
+altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas
+pelo trabalho de _salvar a sua alma_; liam os livros beatos e dôces;
+como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e
+cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão.
+
+A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida
+ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino
+recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era
+estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo
+fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio
+porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O
+capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.^a D.
+Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe
+lições de francez e de geographia.
+
+Amaro era, como diziam os criados, _um mosquinha morta_. Nunca brincava,
+nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás
+alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do
+respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido,
+torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras--vagamente assustado
+das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas.
+
+Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As
+criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio
+d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as
+saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás
+vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre
+grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos
+languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As
+criadas, além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as
+outras: era Amaro o que _fazia as queixas_. Tornou-se enredador, muito
+mentiroso.
+
+Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o
+seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz
+em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações
+gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia
+tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as
+auréolas dos Martyres.
+
+No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca
+dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava
+constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas;
+bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente
+preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em
+que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao
+travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
+
+
+N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço,
+a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no
+seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna,
+entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset
+ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha
+então treze annos.
+
+As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para
+Lisboa, para casa da snr.^a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna.
+Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um
+homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o
+aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia
+fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos
+cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.^a Gonçalves. O
+marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo;
+carregava-a de joias e chamava-lhe _a sua duqueza_.
+
+Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera
+tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle;
+passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos
+jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos,
+esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos,
+o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro
+como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer
+logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano
+azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da
+cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o _cebola_ e o tio
+chamava-lhe o _burro_. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle
+comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.
+
+Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os
+dias lh'o lembrava:
+
+--Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo
+quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar
+comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios!
+
+E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.
+
+Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação.
+Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente
+dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe
+desagradava _ser padre_. Desde que sahira das rezas perpetuas de
+Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos
+santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora
+marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas
+e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que
+se falla baixo com as mulheres,--vivendo entre ellas, cochichando,
+sentindo-lhes o calor penetrante,--e se recebem presentes em bandejas de
+prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo;
+monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o
+seu copo de _madeira_. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes
+chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára,
+estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas
+que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala,
+todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava,
+para as entreter, com a sua bella voz:
+
+
+Mulatinha da Bahia,
+Nascida no Capujá...
+
+
+Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para
+se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela
+primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla,
+passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou
+ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a
+reparar muito nas mulheres--e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes
+melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da
+escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao
+jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma
+janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via
+parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz:
+parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que
+não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e
+mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos
+theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no
+fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com
+botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado
+até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a
+louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe
+então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a
+vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas
+viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com
+botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça,
+como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se
+infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
+
+--Então tu não estudas, mariola?
+
+E d'ahi a pouco, sobre o _Tito-Livio_, cabeceando de somno, sentindo-se
+desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o
+diccionario.
+
+Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de
+padre, _porque não poderia casar_. Já as convivencias da escóla tinham
+introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás
+escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello.
+
+
+Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um
+pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as
+batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das sinetas--deram-lhe
+uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto
+bonito agradou. Começaram a tratal-o por _tu_, a admittil-o, durante as
+horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se
+contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente
+se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam
+com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não
+podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de
+cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor
+se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as
+ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres
+dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim.
+Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores
+definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola:
+abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se
+faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e
+invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes--o almocreve
+que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia
+cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes,
+apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro.
+
+Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma
+diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do
+chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros
+alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos
+charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com
+elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das
+madrugadas ou sob a claridade das estrellas!
+
+E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente
+de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario
+da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares
+de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões
+quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos!
+
+Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto
+enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se
+tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do
+gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava
+encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas!
+
+Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando
+como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com
+regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos
+serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo
+diante dos lentes--chegou a ter boas notas.
+
+Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com
+beatitude e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos
+da _Imitação_ ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo,
+empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo
+algum volumesinho de _Louvores a Maria_; e cumpriam com delicia as
+regras mais miudas--até subir só um degrau de cada vez, como recommenda
+S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só
+lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla.
+
+Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios
+d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros
+de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de
+ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas
+que se accumulam no _frou-frou_ das sêdas sobre o tapete do altar-mór,
+cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja:
+ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o _tlim-tlim_
+d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um
+chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas
+largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser
+alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos
+seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem,
+ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
+
+Amaro não desejava nada:
+
+--Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente.
+
+No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario
+era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas
+cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir.
+Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite
+negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe,
+salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso:
+sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das
+suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o
+desejo da Mulher.
+
+Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada
+sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés
+a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe
+a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a
+santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura;
+amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo
+a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da
+imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então
+vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama
+d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no
+confessionario, ao domingo.
+
+Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua
+voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras
+unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa
+mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando
+a Virgem, calcassem aos pés a _serpente ominosa_! E depois era o mestre
+de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de
+_vencer a Natureza_! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S.
+Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a
+Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente,
+Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião...
+
+--E como disse o nosso padre S. Jeronymo,--e assoava-se
+estrondosamente--Caminho de iniquidades, _iniquitas via_!
+
+Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era
+esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o
+altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras?
+Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu
+encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo
+reino dos céos,--ora vai fugindo diante d'ella como do Universal
+Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a
+não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a
+ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam,
+desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos
+desfallecia no desejo de os quebrar.
+
+E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os
+jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes,
+mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho
+serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão
+doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos
+punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia:
+luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a
+natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles:
+desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho
+baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de
+cigarros--quantos encantos do peccado!
+
+Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam
+contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da
+alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo
+tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos
+_in-folios_ vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto:
+rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de
+Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do
+pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos
+corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria
+bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um
+quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores
+eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana
+Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre
+nervosa.
+
+
+Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois
+recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset:
+
+«Meu querido filho e novo collega.--Agora que está ordenado, entendo em
+minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios,
+pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros
+debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o
+legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam
+importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que
+fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da
+querida marqueza--para quem deve erguer em sua alma uma gratidão
+eterna--está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe
+dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o
+estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de
+qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado
+illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza,
+e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.^o 53. Se
+toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita como o meu
+querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal
+relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou
+rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos
+apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu
+querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso
+querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na
+Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema
+bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia.
+Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos
+da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se
+encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos
+comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os
+refrigerios que dá--o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo
+collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa
+chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes,
+supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu
+caro pupillo.» _Liset_.
+
+«P. S.--O appellido do marido de sua irmã é Trigoso.» _Liset_.
+
+Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira,
+serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves.
+
+Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi
+deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á
+lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram
+nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas
+congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão;
+ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a
+Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da
+serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito,
+sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira.
+
+Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.^o 53, a casa da tia:
+achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó
+d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu
+os seus magros braços a Amaro.
+
+-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança!
+
+Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com
+exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos,
+foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.
+
+--Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te
+de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai!
+desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...
+
+Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido
+para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza
+d'Alegros, a snr.^a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar,
+conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e
+um e duas vezes ministro do reino.
+
+E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi
+uma manhã a casa da snr.^a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta
+um _coupé_ esperava.
+
+--A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e
+quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca.
+
+N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau
+de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de
+claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a
+testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um
+signalzinho de cabellos claros.
+
+--A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na
+mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
+
+--O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle
+é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria!
+
+Amaro sorria-se.
+
+--Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa?
+
+Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia...
+
+--De maneira que vim requerer, senhora condessa.
+
+Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara,
+e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de
+cambraias.
+
+--Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de
+fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá.--E com o dedo sobre
+o canto da boca:--Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor
+é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.--E
+rindo com os seus largos dentes frescos:--Parece que o estou a vêr
+traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa!
+
+--Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
+
+--Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem.
+
+Deu-lhe a mão, calçada de _peau de suède_, n'um aperto sacudido que fez
+tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o _coupé_, magra e
+ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
+
+Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa
+pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de
+ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a
+tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra
+zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do velho
+canapé de palhinha fazia _crochet_, com a luneta encavallada na ponta do
+nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do _Panorama_.
+
+Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e
+immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente _agua fresca!_
+Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em
+redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam
+vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem
+destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
+
+Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da
+noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava
+cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com
+rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: _fique descansado,
+meu marido ha de fallar!_ E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma
+casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e
+importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas.
+
+Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que
+no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as
+satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava
+de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando
+nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno,
+pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a carne
+contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
+
+No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
+
+--Não está, disse-lhe um criado da cavallariça.
+
+Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e
+Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho
+fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao
+cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim
+escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça
+pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto
+silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu
+guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para
+acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta,
+o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um
+reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó
+esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho
+n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava
+das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala
+tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
+
+--Não sei se incommódo...
+
+Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se
+surprehendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era
+o senhor conde.
+
+--Sou Amaro...
+
+--Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a
+bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade...
+
+E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças
+brancas muito curtas:
+
+--É a pessoa de quem lhe fallei.--Voltou-se para Amaro:--É o senhor
+ministro.
+
+Amaro curvou-se, servilmente.
+
+--O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno
+em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...
+
+--Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado,
+com o guardasol na mão.
+
+--Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,--já não ha
+d'isso!--fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o
+temos parocho... Onde, senhor padre Amaro?
+
+--Feirão, excellentissimo senhor.
+
+--Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome.
+
+--Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um
+homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com
+soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de
+pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita.
+
+--Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem
+distracções, com um clima horrivel...
+
+--Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro
+timidamente.
+
+--Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.--E mascava o seu
+charuto.
+
+--É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos
+e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro!
+Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um
+gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.
+
+--É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias
+devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o
+estimulo...
+
+--Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos,
+profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos.
+
+O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção.
+
+--Não acha? perguntou-lhe o conde.
+
+--Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte...
+Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas
+crises eleitoraes. D'um grande serviço!
+
+--Pois sim. Mas...
+
+--Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa
+excellencia em Thomar. Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada
+mais.
+
+O conde acudiu:
+
+--Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes
+eleitoraes.
+
+--Perdão... queria interromper o outro.
+
+O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras
+pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento:
+
+--A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu
+estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...
+
+--Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas
+mascadas de charuto.
+
+--Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos _imbroglios_...
+Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão.
+
+--Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o
+a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo
+representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...
+
+--Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e
+desacredita a politica.
+
+--Mas são ou não as maiorias um principio _sagrado_? gritava rubro o das
+suiças, accentuando o adjectivo.
+
+--São um principio _respeitavel_.
+
+--Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!
+
+O padre Amaro escutava, immovel.
+
+--Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E
+dirigindo-se a um reposteiro que levantou:--Entre. É o senhor padre
+Amaro, Joanna!
+
+Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de
+casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas
+largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do
+chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos
+brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas
+alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara
+empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com
+contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se
+logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da
+senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de
+ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda,
+sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os
+joelhos abertos, occupava-se em balançar, como um pendulo, um
+_pince-nez_ de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadellinha, e
+com a sua mão sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo branco
+como algodão.
+
+--Como está, snr. Amaro?--A cadella rosnou.--Quieta, _Joia_... Sabe que
+já fallei no seu negocio? Quieta, _Joia_... O ministro está alli.
+
+--Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
+
+--Sente-se aqui, senhor padre Amaro.
+
+Amaro pousou-se á beira d'um _fauteil_, com o seu guardasol na mão--e
+reparou então n'uma senhora alta que estava de pé, junto do piano,
+fallando com um rapaz louro.
+
+--Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse a condessa. Diga-me uma
+coisa: sua irmã?
+
+--Está em Coimbra, casou.
+
+--Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anneis.
+
+Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava, com um gesto
+embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.
+
+--O senhor padre Liset está para fóra? perguntou.
+
+--Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. Está o
+mesmo sempre; muito amavel, muito dôce. É a alma mais virtuosa!...
+
+--Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo estirando as pernas.
+
+--Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos! Pois então o padre Liset,
+tão respeitavel!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma
+bondade... Vê-se que é um coração delicado...
+
+--Pois sim, mas o padre Felix...
+
+--Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma pessoa de muita virtude,
+decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais...--E com um gesto
+delicado procurava a palavra:--mais fina, mais distincta... Emfim, vive
+com outra gente.--E sorrindo para Amaro:--Pois não acha?
+
+Amaro não conhecia o padre Felix, não se recordava do padre Liset.
+
+--Já é velho o senhor padre Liset, observou ao acaso.
+
+--Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que
+enthusiasmo!... Ai, é outra coisa!--E voltando-se para a senhora que
+estava junto do piano:--Pois não achas, Thereza?
+
+--Já vou, respondeu Thereza, toda absorvida.
+
+Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com
+a sua alta e forte estatura, uma linha de hombros e de seio magnifica;
+os cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a pallidez do
+rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Marie Antoinette; o seu
+vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as
+pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom
+monotono das alvuras da sala; o collo, os braços estavam cobertos por
+uma gaze preta, que fazia apparecer através a brancura da carne; e
+sentia-se nas suas fórmas a firmeza dos marmores antigos, com o calor
+d'um sangue rico.
+
+Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que Amaro não comprehendia,
+cerrando e abrindo o seu leque preto--e o rapaz louro, bonito,
+escutava-a retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado de vidro
+entalado no olho.
+
+--Havia muita devoção na sua parochia, snr. Amaro? perguntava no emtanto
+a condessa.
+
+--Muita, muito boa gente.
+
+--É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ella com
+um tom piedoso.--Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos
+captiveiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de
+Carcavellos, rezar na pequena capella antiga, conversar com as boas
+almas da aldeia!--e a sua voz tornára-se terna.
+
+O rapaz rechonchudo ria-se:
+
+--Ora, prima! dizia; ora, prima!--Não, elle, se o obrigassem a ouvir
+missa n'uma capellinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!...
+Não comprehendia, por exemplo, a religião sem musica... Era lá possivel
+uma festa religiosa sem uma boa voz de contralto!?
+
+--Sempre é mais bonito, disse Amaro.
+
+--Está claro que é. É outra coisa! Tem _cachet_! Ó prima, lembra-se
+d'aquelle tenor... como se chamava elle? O Vidalti. Lembra-se do
+Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglezinhos? O _tantum ergo_?
+
+--Eu preferia-o no _Baile de mascaras_, disse a condessa.
+
+--Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
+
+No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á senhora condessa,
+fallando-lhe baixo, muito risonho. Amaro admirava a nobreza da sua
+estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma luva, e
+apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu Thereza, depois de se ter
+aproximado vagarosamente da janella e olhado para a rua--foi sentar-se
+n'uma _causeuse_ com um abandono que punha em relêvo a magnifica
+esculptura do seu corpo; e voltando-se preguiçosamente para o rapaz
+rechonchudo:
+
+--Vamo-nos, João?
+
+A condessa disse-lhe então:
+
+--Sabes que o senhor padre Amaro foi creado commigo em Bemfica?
+
+Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava sobre elle os seus
+bellos olhos d'um negro humido como o setim preto coberto de agua.
+
+--Está na provincia agora? perguntou ella, bocejando um pouco.
+
+--Sim, minha senhora, vim ha dias.
+
+--Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando vagarosamente o seu
+leque.
+
+Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse,
+acariciando o cabo do guardasol:
+
+--Na serra, minha senhora.
+
+--Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Ha sempre neve, diz que a
+igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao
+ministro a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...
+
+--O quê? disse Thereza.
+
+A condessa contou que Amaro requerera para uma parochia melhor. Fallou
+de sua mãi, da amizade que ella tinha a Amaro...
+
+--Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe dava... Não se lembra?
+
+--Não sei, minha senhora.
+
+--Frei _Maleitas_!... Tem graça! Como o snr. Amaro era amarellito,
+sempre mettido na capella...
+
+Mas Thereza, dirigindo-se á condessa:
+
+--Sabes com que se parece este senhor?
+
+A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
+
+--Não se parece com aquelle pianista do anno passado? continuou Thereza.
+Não me lembra agora o nome...
+
+--Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante. No cabello, não.
+
+--Está visto, o outro não tinha corôa!
+
+Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando a sua soberba
+cauda, sentou-se ao piano.
+
+--Sabe musica? perguntou, voltando-se para Amaro.
+
+--A gente aprende no seminario, minha senhora.
+
+Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas,
+e tocou a phrase do _Rigoleto,_ parecida com o _Minuete de Mozart_, que
+diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro acto, da senhora de
+Crécy--e cujo rhythmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que
+findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
+
+Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as suas alvuras de nuvem, o
+piano apaixonado, o collo de Thereza que elle via sob a negra
+transparencia da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos
+arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéa d'uma existencia
+superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em _coupés_
+acolchoados, com arias de operas, melancolias de bom gosto e amores d'um
+gozo raro. Enterrado na elasticidade da _causeuse_, sentindo a musica
+chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu
+cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e,
+assustado, demora o seu prazer--pensando que vai voltar á dureza das
+côdeas sêccas e á poeira dos caminhos.
+
+No emtanto Thereza, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga aria
+inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:
+
+
+_The village seems dead and asleep
+When Lubin is away!..._
+
+
+--Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça apparecendo á porta,
+batendo dôcemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
+
+--Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia, disse Thereza erguendo-se
+logo.
+
+O ministro veio, com uma pressa galante:
+
+--Que é, minha senhora? que é?
+
+O conde e o sujeito de magnificas suiças tinham entrado discutindo
+ainda.
+
+--A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse Thereza ao ministro.
+
+--Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.
+
+--Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se confortavelmente,
+com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma
+coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...
+
+--Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a
+melhor parochia vaga?
+
+--Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando para Amaro, que vergou
+os hombros, córado.
+
+O homem das suiças, que estava de pé fazendo saltar circumspectamente os
+berloques, adiantou-se, cheio de informações:
+
+--Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do districto e séde do
+bispado.
+
+--Leiria? disse Thereza. Bem sei, é onde ha umas ruinas?
+
+--Um castello, minha senhora, edificado por D. Diniz.
+
+--Leiria é excellente!
+
+--Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, séde do bispado, uma
+cidade... O senhor padre Amaro é um ecclesiastico novo...
+
+--Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor não é novo?
+
+O ministro sorriu, curvando-se.
+
+--Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava
+ternamente a cabeça da arara.
+
+--Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido! A prima Thereza
+chamou-lhe novo!
+
+--Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja
+excepcional; eu não sou tambem tão antigo...
+
+--Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820!
+
+--Era meu pai, calumniador, era meu pai!
+
+Todos riram.
+
+--Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O senhor padre Amaro vai
+para Leiria!
+
+--Bem, bem, succumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma
+tyrannia!
+
+--_Thank you_, fez Thereza, estendendo-lhe a mão.
+
+--Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse o ministro fixando-a.
+
+--Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento para o chão,
+distrahida, dando pequeninas pancadas no vestido de sêda, levantou-se,
+foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce aria ingleza:
+
+
+_The village seems dead and asleep
+When Lubin is away!..._
+
+
+Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
+
+--É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se com o bispo.
+D'aqui a uma semana está nomeado. Póde ir descansado.
+
+Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto
+do piano:
+
+--Senhor ministro, eu agradeço...
+
+--Á senhora condessa, á senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
+
+--Minha senhora, eu agradeço, veio elle dizer á condessa, todo curvado.
+
+--Ai, agradeça a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias, parece.
+
+--Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.
+
+--Lembre-me nas suas orações, senhor padre Amaro, disse ella. E
+continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano--as tristezas da
+aldeia quando Lubin esta ausente!
+
+
+Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornára a
+esquecer aquella manhã em casa da senhora condessa de Ribamar,--o
+ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo o
+seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e
+louro que dizia _yes_...Cantava-lhe sempre no cerebro aquella aria
+triste do _Rigoleto_; e perseguia-o a brancura dos braços de Thereza sob
+a gaze negra! Instinctivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em
+torno do pescoço airoso do rapaz louro:--detestava-o então, e a língua
+barbara que fallava, e a terra heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as
+fontes á idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher divina e
+sentir o seu vestido de sêda preta roçar pela sua batina de lustrina
+velha, na escura intimidade do confessionario.
+
+Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para
+Santa Apolonia, com um gallego que lhe levava o bahú. A madrugada
+rompia. A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se. Ás vezes
+uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe
+interminaveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com
+as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; n'uma ou
+n'outra rua uma voz aguda já apregoava os jornaes; e os moços dos
+theatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.
+
+Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do sol alaranjava o ar por
+detraz dos montes da Outra-Banda: o rio estendia-se, immovel, riscado de
+correntes de côr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava,
+vagarosa e branca.
+
+
+
+
+IV
+
+
+Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada do parocho novo, e todos
+sabiam já que tinha trazido um bahú de lata, que era magro e alto, e que
+chamava _Padre-Mestre_ ao conego Dias.
+
+As amigas da S. Joanneira,--as intimas--a D. Maria da Assumpção, as
+Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa d'ella _para se pôrem ao
+facto_... Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A S. Joanneira,
+radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas
+arregaçadas, nos arranjos da manhã; e immediatamente, com animação,
+contou a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o que tinha dito...
+
+--Mas venham vossês cá abaixo, sempre quero que vejam.
+
+Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de lata, uma prateleira que
+lhe arranjára para os livros.
+
+--Está muito bem, está tudo muito bem, diziam as velhas andando pelo
+quarto, devagar, com respeito, como n'uma igreja.
+
+--Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso apalpando o panno das largas
+bandas que pendiam ao comprido do cabide.--É obra para um par de moedas!
+
+--E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira erguendo a tampa do bahú.
+
+O grupo das velhas curvou-se com admiração.
+
+--A mim o que me consola é que elle seja um rapaz novo, disse D. Maria
+da Assumpção, piedosamente.
+
+--Tambem a mim, disse com auctoridade a D. Joaquina Gansoso. Estar a
+gente a confessar-se e a vêr o pingo do rapé, como era com o Raposo,
+credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Migueis! Não, lá isso
+Deus me mate com gente nova!
+
+A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do parocho,--um
+crucifixo que estava ainda embrulhado n'um jornal velho, o album de
+retratos, onde o primeiro cartão era uma photographia do Papa abençoando
+a christandade. Todas se extasiaram.
+
+--É o mais que se póde, diziam, é o mais que se póde!
+
+Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na porque
+adquirira, hospedando o parocho, uma auctoridade quasi ecclesiastica.
+
+--Vossês apparecem á noite, disse ella do alto da escada.
+
+--Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção, já á porta da rua, traçando o
+seu mantelete.--Pudera!... Para o vermos á vontade!
+
+Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo de Leiria; e subindo a
+correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:
+
+--Ó S. Joanneira!
+
+--Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava á janella.
+
+--Então o senhor parocho veio, hein? perguntou o Libaninho, mostrando á
+porta da sala de jantar o seu rosto gordinho côr de limão, a calva
+luzidia; e vindo para ella com o passinho miudo, um gingar de quadris:
+
+--Então que tal, que tal? tem bom feitio?
+
+A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu
+ar piedoso, a brancura dos seus dentes...
+
+--Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura
+devota.--Mas não se podia demorar, ia para a repartição!--Adeus,
+filhinha, adeus!--E batia com a sua mão papuda no hombro da S.
+Joanneira.--Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei hontem a
+Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
+
+A criada tinha entrado.
+
+--Adeus, _Ruça_! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãi dos
+Homens.--E avistando Amelia pela porta do quarto entreaberta:--Ai, que
+estás mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!
+
+E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada
+rapidamente, ganindo:
+
+--Adeusinho! adeusinho, pequenas!
+
+--Ó Libaninho, vens á noite?
+
+--Ai, não posso, filha, não posso!--E a sua vozinha era quasi
+chorosa.--Olha que ámanhã é Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de
+direito!
+
+
+Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias, e tinha-lhe entregado
+uma carta de recommendação do senhor conde de Ribamar.
+
+--Conheci muito o senhor conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta
+e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso:
+ha que annos isso vai!
+
+E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, fallou com satisfação do
+seu tempo: contou anecdotas da Junta, apreciou os homens de então,
+imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excellencia), os _tics_,
+as caturrices--sobretudo Manoel Passos, que elle descrevia passeando na
+Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéo de grandes abas,
+dizendo:
+
+--_Animo, patriotas! o Xavier aguenta-se!_
+
+Os senhores ecclesiasticos da camara riram com gozo. Houve uma grande
+cordialidade. Amaro sahiu muito lisonjeado.
+
+Depois jantou em casa do conego Dias, e foram passear ambos pela estrada
+de Marrazes. Uma luz dôce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia
+nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga
+tranquilidade; fumos esbranquiçados sahiam dos casaes, e sentiam-se os
+chocalhos melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da
+ponte, e disse, olhando em redor a paizagem suave:
+
+--Pois senhores, parece-me que me hei de dar bem aqui!
+
+--Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego, sorvendo o seu rapé.
+
+Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joanneira.
+
+As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candieiro de
+petroleo, Amelia costurava.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção vestira-se, como nos domingos, de sêda
+preta: o seu _chinó_, d'um louro avermelhado, estava coberto com as
+rendas d'um _enfeite_ negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes,
+solemnemente pousadas no regaço, reluziam de anneis; do broche sobre o
+pescoço até ao cinto, um grosso grilhão d'ouro cahia com passadores
+lavrados. Conservava-se direita e ceremoniosa, com a cabeça um pouco de
+lado, os oculos d'ouro assentes sobre o nariz acavallado: tinha no
+queixo um grande signal cabelludo; e quando se fallava de devoções ou de
+milagres dava um geito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria
+os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas.
+Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.
+
+--Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joanneira.
+
+Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, commovida.
+
+--Estas são as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido..., disse a S.
+Joanneira ao parocho.
+
+Amaro comprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum
+dinheiro, mas costumavam receber hospedes. A mais velha, a snr.^a D.
+Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma testa enorme e larga,
+dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida.
+Embrulhada no seu chale, direita, com os braços cruzados, fallava
+perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal
+dos homens e dava-se toda á Igreja.
+
+A irmã, a snr.^a D. Anna, era extremamente surda. Nunca fallava, e com
+os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar
+tranquillamente os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido
+preto de riscas amarellas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda
+a noite, e só accentuava a sua presença de vez em quando por suspiros
+agudos: dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio.
+Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papeis
+para caixas de dôce.
+
+Estava tambem a snr.^a D. Josepha, a irmã do conego Dias. Tinha a
+alcunha de _castanha pilada_. Era uma creaturinha mirrada, de linhas
+aduncas, pelle engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um
+perpetuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contracções
+nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor
+Godinho chamava-lhe a _estação central_ das intrigas de Leiria.
+
+--Então passeou muito, senhor parocho? perguntou ella logo
+impertigando-se.
+
+--Fomos quasi até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o conego,
+sentando-se pesadamente por detraz da S. Joanneira.
+
+--Não achou bonito, senhor parocho? acudiu snr.^a D. Joaquina Gansoso.
+
+--Muito bonito.
+
+Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas vistas: a snr.^a D.
+Josepha gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que
+nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja
+da Encarnação, no alto.
+
+--Desfruta-se muito d'alli.
+
+Amelia disse sorrindo:
+
+--Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da ponte, debaixo dos
+chorões.--E partindo com os dentes o fio da costura:--É tão triste!
+
+Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul
+muito justo ao seio bonito; pescoço branco e cheio sahia d'um collarinho
+voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes
+brilhava; e pareceu ao parocho que um buçosinho lhe punha aos cantos da
+boca uma sombra subtil e dôce.
+
+Houve um pequeno silencio--o conego Dias com o beiço descahido ia já
+cerrando as palpebras.
+
+--Que será feito do senhor padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
+
+--Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo! lembrou piedosamente a
+snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
+
+--Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da Barrosa.
+
+--Homem! disse logo com azedume a irmã do conego, a snr.^a D. Josepha
+Dias, é milagre ter o senhor reparado!
+
+--Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se e chegando-se ao grupo
+das velhas.
+
+Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pelle branca, regular,
+um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, cahido
+aos cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.
+
+--Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.^a D. Josepha Dias. O senhor,
+que nem lhe tira o chapéo!
+
+--Eu!?
+
+--Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante. E acrescentou: Ai,
+senhor parocho, bem póde chamar o snr. João Eduardo para o bom
+caminho!--E teve um risinho maligno.
+
+--Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse elle rindo, com as
+mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amelia.
+
+--É uma graça! exclamou a snr.^a D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o
+senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não ha de
+ganhar o céo!
+
+--Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se bruscamente para João
+Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é
+uma impostora?
+
+--Credo, Jesus! disse a snr.^a D. Maria da Assumpção apertando as mãos e
+fitando João Eduardo com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer
+isso? Cruzes!
+
+--Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente o conego, que espertára,
+desdobrando o seu lenço vermelho--não era capaz de dizer uma d'essas.
+
+Amaro perguntou então:
+
+--Quem é a Santa da Arregassa?
+
+--Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho? exclamou n'uma
+admiração a snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+--Ha de ter ouvido, affirmava a snr.^a D. Josepha Dias com auctoridade.
+Diz que os jornaes de Lisboa vem cheios d'isso!
+
+--É com effeito uma coisa bem extraordinaria, ponderou com um tom
+profundo o conego.
+
+A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
+
+--Ai, não imagina, senhor parocho, é o milagre dos milagres!
+
+--Se é! se é! disseram.
+
+Houve um recolhimento devoto.
+
+--Mas então...? perguntou Amaro, todo curioso.
+
+--Olhe, senhor parocho, começou a snr.^a D. Joaquina Gansoso
+endireitando-se no chale, fallando com solemnidade: a Santa é uma mulher
+que aqui ha n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na cama...
+
+--Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assumpção, tocando-lhe
+com o leque no braço.
+
+--Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
+
+--Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S. Joanneira. E o conego
+apoiou-a, oscillando gravemente a cabeça.
+
+--Está entrevadinha de todo, senhor parocho! rompeu a irmã do conego,
+avida de fallar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto!--E
+mostrava o dedo minimo.--Para a gente a ouvir é necessario pôr-lhe a
+orelha ao pé da boca!
+
+--Pois se ella se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a
+snr.^a D. Maria da Assumpção. Coitadinha! que até a gente lembrar-se...
+
+Houve entre as velhas um silencio commovido. João Eduardo, que por traz
+das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode,
+disse então:
+
+--Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos dizem: é que aquillo
+é uma doença nervosa.
+
+Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas, um escandalo; a
+snr.^a D. Maria da Assumpção persignou-se logo «á cautela».
+
+--Pelo amor de Deus! gritou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor diga isso
+diante de quem quizer, menos de mim! É uma affronta!
+
+--É que até póde cahir um raio, dizia para os lados, baixo, a snr.^a D.
+Maria da Assumpção, muito aterrada.
+
+--Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor é
+um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas.--E voltando-se
+para o lado de Amelia, muito azeda:--Olhe, filha minha é que eu lhe não
+dava!
+
+Amelia córou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho tambem, curvou-se
+sarcasticamente:
+
+--Eu digo o que dizem os medicos. E de resto, acredite que não tenho
+prentenções a casar com pessoa da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.^a
+D. Josepha!
+
+O conego deu uma risada muito pesada.
+
+--Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.
+
+--Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
+
+--Tudo, senhor parocho, disse a snr.^a D. Joaquina Gansoso: está sempre
+de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ella peça tem a graça do
+Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se de toda a molestia. E
+depois, quando communga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no
+ar, com os olhos erguidos para o céo, que até chega a fazer terror.
+
+Mas n'este momento uma voz disse á porta da sala:
+
+--Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
+
+Era um rapaz extremamente alto, amarello, com as faces cavadas, uma
+grenha riçada, um bigode á D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na
+boca, porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante; e nos seus
+olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas.
+Trazia uma guitarra na mão.
+
+--Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
+
+--Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se. Sempre as dôres no
+peito, a tossesita ...
+
+Então não se dava bem com o oleo de figados de bacalhau?
+
+--Qual! fez elle desconsoladamente.
+
+--Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a snr.^a
+D. Joaquina Gansoso com auctoridade.
+
+Elle riu, com uma jovialidade subita:
+
+--Uma viagem á Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas!
+Um pobre amanuense de administração com dezoito vintens por dia, mulher
+e quatro filhos... Para a Madeira!
+
+--E como vai ella, a Joannita?
+
+--Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus! Gorda, sempre com bom
+appetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; de mais
+a mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho! Paciencia!
+paciencia!--E encolhia os hombros.
+
+Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
+
+--E como vai a nossa Madre-Abbadessa?
+
+Todos riram: e a snr.^a D. Joaquina Gansoso informou o parocho que
+aquelle rapaz, o Arthur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bella
+voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
+
+A _Ruça_ tinha então entrado com o chá; a S. Joanneira, enchendo as
+chavenas d'alto, dizia:
+
+--Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do
+Sousa...
+
+E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:
+
+--Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
+
+As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente
+as torradas, sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos
+pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam prudentemente os lenços
+sobre o regaço.
+
+--Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia, apresentando-lhe o
+prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
+
+--Obrigado.
+
+--Aquelle alli. É toucinho do céo.
+
+--Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E olhou para ella, tomando
+o bolo com a ponta dos dedos.
+
+O snr. Arthur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela
+alumiava o caderno de musica; e Amelia, logo que a _Ruça_ levou a
+bandeja, accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarello.
+
+--Então hoje que ha de ser? perguntou Arthur.
+
+Os pedidos cruzaram-se:
+
+--_O guerrilheiro! O noivado do sepulchro! O descrido! o Nunca mais!_
+
+O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:
+
+--Ó Couceiro, vá lá aquella do _Tio Cosme, meu bréjeiro!_
+
+As mulheres reprovaram:
+
+--Credo! por quem é, senhor conego! Que lembrança!
+
+E a snr.^a D. Joaquina Gansoso resumiu:
+
+--Nada: uma coisa de sentimento para o senhor parocho fazer idéa.
+
+--Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento, ó Arthur, uma coisa de
+sentimento!
+
+Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente á face uma expressão
+dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
+
+
+Adeus, meu anjo! eu vou partir sem ti!
+
+
+Era uma canção dos tempos romanticos de 51, o _Adeus!_ Dizia uma suprema
+despedida, n'um bosque, por uma tarde pallida d'outono; depois, o homem
+solitario e precito, que inspirára um amor funesto, ia errar desgrenhado
+á beira do mar; havia uma sepultura esquecida n'um valle distante,
+brancas virgens vinham chorar á claridade do luar!
+
+--Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
+
+Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervallos, durante o
+acompanhamento, sorria em redor--e na sua boca cheia de sombra viam-se
+os restos de dentes pôdres. O padre Amaro, ao pé da janella, fumando,
+contemplava Amelia, enlevado n'aquella melodia sentimental e morbida: o
+seu perfil fino, de encontro á luz, tinha uma linha luminosa; destacava
+harmoniosamente a curva do seu peito; e elle seguia as suas palpebras de
+grandes pestanas, que do teclado para a musica se erguiam e se abaixavam
+com um movimento dôce. João Eduardo, junto d'ella, voltava-lhe as folhas
+da musica.
+
+Mas Arthur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, n'um gesto
+desolado e vehemente, soltou a ultima estrophe:
+
+
+E um dia, emfim, d'este viver fatal,
+Repousarei na escuridão da campa!
+
+
+--Bravo! bravo! exclamaram.
+
+E o conego Dias commentou baixo ao parocho:
+
+--Ah! para coisas de sentimento não ha outro.--E bocejando enormemente:
+Pois menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
+
+Mas chegára a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituaes;
+e a snr.^a D. Josepha Dias, com o seu olho d'avara a luzir, chocalhava
+já vivamente o grosso sacco dos numeros.
+
+--Aqui tem um logar, senhor parocho, disse Amelia.
+
+Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio
+sentar-se um pouco córado, ageitando timidamente a _volta_.
+
+Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz dormente, o conego começou
+a tirar os numeros. A snr.^a D. Anna Gansoso dormitava ao seu canto,
+resonando ligeiramente.
+
+Com o _abat-jour_ as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, cahindo
+sobre o chale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões
+ennegrecidos do uso e as mãos sêccas das velhas, pousadas em attitudes
+aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela
+derretia-se com uma chamma alta e direita.
+
+O conego rosnava os numeros com as pilherias veneraveis da tradição: 1,
+cabeça de porco!--3, figura de entremez!
+
+--Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
+
+--Ternei, murmurava outra com gozo.
+
+E a irmã do conego, sôfrega:
+
+--Chocalhe esses numeros, mano Placido! Vá!
+
+--E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o
+Arthur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
+
+Emfim o conego _quinou_. E Amelia olhando em redor pela sala:
+
+--Então não joga, snr. João Eduardo? disse ella. Onde está?
+
+João Eduardo sahiu da sombra da janella, por traz da cortina.
+
+--Tome lá este cartão, ande, jogue.
+
+--E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joanneira. Seja o
+senhor recebedor!
+
+João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez
+reis.
+
+--Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
+
+Fôra a irmã do conego que não tocára no seu cobre acastellado. João
+Eduardo disse, curvando-se:
+
+--Parece-me que a snr.^a D. Josepha não entrou.
+
+--Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas! Até fui a primeira!
+Credo! Duas moedas de cinco reis, por signal! Que tal está o homem!
+
+--Ah! bem, disse elle então, fui eu que me esqueci! Cá ponho.--E rosnou:
+Beata e ladra!
+
+E a irmã do conego dizia no emtanto baixo á snr.^a D. Maria da
+Assumpção:
+
+--Queria vêr se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
+
+--Só quem não está feliz é o senhor parocho, observaram.
+
+Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; ás vezes mesmo esquecia-se
+de marcar, e Amelia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovêlo:
+
+--Olhe que não marcou, senhor parocho!
+
+Tinham já apostado dois ternos: ella ganhára; depois faltou a ambos para
+_quinarem_ o numero trinta e seis.
+
+Em roda repararam.
+
+--Ora vamos a vêr se _quinam_ ambos, disse a snr.^a D. Maria da
+Assumpção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
+
+Mas o trinta e seis não sahía; havia outras quadras nos cartões alheios;
+Amelia receava que _quinasse_ a snr.^a D. Joaquina Gansoso, que se mexia
+muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria,
+involuntariamente interessado.
+
+O conego tirava os numeros com uma pachorra maliciosa.
+
+--Vá! vá! ande com isso, senhor conego! diziam-lhe.
+
+Amelia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
+
+--Dava tudo para que sahisse o trinta e seis!
+
+--Sim? Ahi o tem... Trinta e seis! disse o conego.
+
+--_Quinamos!_ gritou ella, triumphante; e tomando o cartão do parocho e
+o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito córada.
+
+--Ora Deus os abençôe, disse o conego, jovial, entornando-lhes diante o
+pires cheio de moedas de dez reis.
+
+--Parece milagre! considerou a snr.^a D. Maria da Assumpção,
+piedosamente.
+
+Mas tinham dado onze horas; e depois da _tumba_ final as velhas
+começaram a agasalhar-se. Amelia sentou-se ao piano, tocando ao de leve
+uma polka. João Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:
+
+--Muitos parabens por ter _quinado_ com o senhor parocho. Que
+enthusiasmo!--E como ella ia responder:--Boa noite! disse elle
+sêccamente, embrulhando-se no seu chale-manta com despeito.
+
+A _Ruça_ alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam
+ganindo _adeusinhos_. O snr. Arthur harpejava a guitarra, cantarolando o
+_Descrido_.
+
+Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviario; mas
+distrahia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes pôdres de
+Arthur, sobretudo o perfil de Amelia. Sentado á beira da cama, com o
+Breviario aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos
+pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu
+buçosinho gracioso...
+
+Sentia a cabeça pesada do jantar do conego e da monotonia do _quino_,
+com uma grande sêde além d'isso das lulas e do vinhito do Porto. Quiz
+beber, mas não tinha agua no quarto. Lembrou-se então que na sala de
+jantar havia uma bilha d'Extremoz com agua fresca, muito boa, da
+nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu
+devagarinho. Havia **luz** na sala, estava o reposteiro corrido:
+ergueu-o e recuou com um _ah!_ Vira n'um relance Amelia, em saia branca,
+a desfazer o atacador do collete: estava junto do candieiro e as mangas
+curtas, o decote da camisa deixavam vêr os seus braços brancos, o seio
+delicioso. Ella deu um pequeno grito, correu para o quarto.
+
+Amaro ficou immovel, com um suor á raiz dos cabellos. Poderiam suspeitar
+uma offensa! Palavras indignadas iam sahir decerto através do reposteiro
+do quarto, que ainda se balouçava agitado!
+
+Mas a voz de Amelia, serena, perguntou de dentro:
+
+--Que queria, senhor parocho?
+
+--Vinha buscar agua... balbuciou elle.
+
+--Aquella _Ruça_! aquella desleixada! Desculpe, senhor parocho,
+desculpe. Olhe ahi ao pé da mesa, a bilha. Achou?
+
+--Achei! achei!
+
+Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a agua escorria-lhe
+pelos dedos.
+
+Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por baixo passos nervosos
+pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos hombros e em chinelas,
+fumava, excitado, pelo quarto.
+
+
+
+
+V
+
+
+Ella, em cima, não dormia tambem. Sobre a commoda, dentro de uma bacia,
+a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de murrão de azeite;
+brancuras de saias cahidas no chão destacavam; e os olhos do gato, que
+não socegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade
+phosphorica verde.
+
+Na casa visinha uma criança chorava sem cessar, Amelia sentia a mãi
+embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
+
+
+Dorme, dorme, meu menino,
+Que a tua mãi foi á fonte!
+
+
+Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente Sousa deixára com um
+filho no berço, e gravida d'outro--para ir casar a Extremoz! Tão bonita
+era, tão loura--e mirrada agora, tão chupada!
+
+
+Dorme, dorme, meu menino.
+Que a tua mãi foi á fonte!
+
+
+Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha sete annos sua mãi
+dizia-a, nas longas noites de inverno, ao irmãosinho que morrera!
+
+Lembrava-se bem! Moravam então n'outra casa, ao pé da estrada de Lisboa;
+á janella do seu quarto havia um limoeiro e a mãi punha, na sua ramagem
+luzidia, os coeiros do Joãosinho a seccarem ao sol. Não conhecera o
+papá. Fôra militar, morrera novo; e a mãi ainda suspirava ao fallar da
+sua bella figura com o uniforme de cavallaria. Aos oito annos ella foi
+para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita roliça e
+branca, que fôra tacho das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os seus
+oculos redondos, junto á janella, empurrando a agulha, morria-se por
+contar historias do convento: as perrices da escrivã, sempre a
+escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com
+uma pronuncia minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que
+se dizia descendente dos Tavoras; e a legenda de uma freira que morrera
+de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores,
+soltando gemidos dolorosos e clamando:--Augusto! Augusto!
+
+Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava então tanto de
+festas d'igreja e da convivencia dos santos, que desejava ser uma
+«freirinha, muito bonita, com um véosinho muito branco.» A mamã era
+muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e
+robusto, que soprava de asthma ao subir a escada e tinha uma voz
+fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia chamava-lhe
+_padrinho_. Quando ella voltava da mestra, á tarde, encontrava-o sempre
+a palestrar com a mãi, na sala, de batina desabotoada, deixando vêr o
+longo collete de velludo preto com raminhos bordados a amarello. O
+senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a taboada.
+
+Á noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o conego Cruz; e um
+velhito calvo, de perfil de passaro, com oculos azues, que fôra frade
+franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãi, com
+as suas _meias_; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos
+negros do cigarro e trazia sempre a sua viola. Mas ás nove horas
+mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ella via a luz, ouvia as
+vozes; depois fazia-se um silencio, e o capitão, repenicando a guitarra,
+cantava o _lundum da Figueira_.
+
+Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipathicos:
+sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e
+molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe
+devagarinho a orelha, e ella sentia o seu halito impregnado de cebola e
+de cigarro. O seu amiguinho era o conego Cruz, magro, com o cabello todo
+branco, a volta sempre aceada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho,
+comprimentando com a mão sobre o peito e uma voz suave cheia de ss. Já
+então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer
+«bagatella» fallavam-lhe sempre dos castigos do céo; de tal sorte que
+Deus apparecia-lhe como um sêr que só sabe dar o soffrimento e a morte e
+que é necessario abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando
+os padres. Por isso, se ás vezes ao deitar lhe esquecia uma
+Salve-Rainha, fazia penitencia no outro dia, porque temia que Deus lhe
+mandasse sezões ou a fizesse cahir na escada.
+
+Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de musica. A
+mãi tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um
+pano verde, tão desafinado, que servia de aparador! Amelia costumava
+cantarolar pela casa; a sua voz fina e fresca agradava ao senhor
+chantre, e as amigas da mãi diziam-lhe:
+
+--Tu tens ahi um piano, porque não mandas ensinar a rapariga? Sempre é
+uma prenda! olha que lhe póde servir de muito!
+
+O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé d'Evora,
+extremamente infeliz: a filha unica, muito linda, fugira-lhe com um
+alferes para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da Praça, que
+ia muito á capital, vira-a descer a rua do Norte, de _garibaldi_
+escarlate e alvaiade n'um olho, com um marinheiro inglez. O velho cahira
+em grande melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe dado um
+emprego no cartorio da camara ecclesiastica. Era uma figura triste de
+romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer
+até aos hombros os seus cabellos brancos e finos; os olhos, cansados,
+lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e
+parecia muito transido, no seu capote côr de vinho que só lhe chegava á
+cintura e que tinha uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o _Tio Cegonha_
+pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia um dia tinha-lhe
+chamado _Tio Cegonha_; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
+
+O velho poz-se a sorrir:
+
+--Ai, chame, minha rica menina, chame! _Tio Cegonha_?... ora, que tem?
+Cegonha sou eu, e bem cegonha!
+
+Era então no inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a
+aspera estação opprimia os pobres. Viam-se n'aquelle anno familias
+esfomeadas indo á camara pedir pão. O _Tio Cegonha_ vinha sempre ao
+meio-dia dar a lição; o seu guardachuva azul deixava um ribeiro na
+escada; tiritava; e quando se sentava escondia, na sua vergonha de
+velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do
+frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado e não o
+deixava escrever no cartorio.
+
+--Prendem-se-me os dedos... dizia tristemente.
+
+Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro mez das lições, o velho
+appareceu muito contente, com umas grossas luvas de lã.
+
+--Ah, _Tio Cegonha_, como vem quentinho! disse-lhe Amelia.
+
+--Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas
+meias de lã. Deus a abençôe, minha menina, Deus a abençôe!
+
+E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas. Amelia tornára-se a «sua
+rica amiguinha». Já lhe fazia confidencias: contava-lhe as suas
+necessidades, as saudades da filha, as suas glorias na Sé d'Evora,
+quando diante do senhor **arcebispo**, vistoso na sua sobrepelliz
+escarlate, acompanhava o _Lausperenne_.
+
+Amelia não se esqueceu das meias de lã do _Tio Cegonha_. Pediu ao
+chantre que lhe désse umas meias de lã.
+
+--Ora essa! para quê? para ti? disse elle com o seu riso grosso.
+
+--Para mim, sim senhor.
+
+--Deixe fallar, senhor chantre! disse a S. Joanneira. Olha a idéa!
+
+--Não deixe fallar, não! dê, sim?
+
+Lançou-lhe os braços ao pescoço, fez-lhe olhinhos dôces.
+
+--Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! ha de ser o
+diabo!... Pois sim, ahi tens.--E deu-lhe dois pintos para umas meias de
+lã.
+
+No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um papel, que dizia por fóra
+em letras garrafaes: _Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discipula_.
+
+Uma manhã, depois, viu-o mais amarello, mais chupado:
+
+--Ó _Tio Cegonha_, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartorio?
+
+O velho sorriu-se:
+
+--Ora, minha rica menina, quanto me hão de dar? uma bagatella. Quatro
+vintens por dia. Mas o snr. Netto faz-me algum bem...
+
+--E chegam-lhe, quatro vintens?
+
+--Ora! como hão de chegar!
+
+Sentiram-se os passos da mãi; e Amelia, retomando gravemente a attitude
+de lição, começou a solfejar alto, com um ar profundo.
+
+E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãi a dar de
+almoçar e de jantar ao _Tio Cegonha_ nos dias de lição. Assim se
+estabeleceu entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre _Tio
+Cegonha_, sahindo do seu frio isolamento, acolhia-se áquella amizade
+inesperada, como a um conchego tepido. Encontrava n'ella o elemento
+feminino que amam os velhos, com as caricias, as suavidades de voz, as
+delicadezas de enfermeira; achava n'ella a unica admiradora da sua
+musica; e via-a sempre attenta ás historias do seu tempo, ás recordações
+da velha Sé d'Evora que elle amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando
+se fallava de procissões ou de festas de igreja:
+
+--Para isso Evora! em Evora é que é!
+
+Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua
+vida: já tocava contradansas e antigas arias de velhos compositores; a
+snr.^a D. Maria da Assumpção estranhava que o mestre lhe não ensinasse o
+_Trovador_.
+
+--Coisa mais linda! dizia.
+
+Mas o _Tio Cegonha_ só conhecia a musica classica, arias ingenuas e
+dôces de Lully, motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos dos
+dôces tempos freiraticos.
+
+Uma manhã o _Tio Cegonha_ encontrou Amelia muito amarella e triste.
+Desde a vespera queixava-se de «mal-estar». Era um dia nublado, muito
+frio. O velho queria ir-se embora.
+
+--Não, não, _Tio Cegonha_, disse ella, toque alguma coisa para eu me
+entreter.
+
+Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas
+extremamente melancolica.
+
+--Que lindo! que lindo! dizia Amelia, de pé junto ao piano.
+
+E quando o velho deu as ultimas notas:
+
+--O que é? perguntou ella.
+
+O _Tio Cegonha_ contou-lhe que era o começo de uma _Meditação_ feita por
+um frade seu amigo.
+
+--Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
+
+Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se no mocho do piano,
+embrulhando-se no seu chale:
+
+--Diga, _Tio Cegonha_, diga!
+
+Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ella
+morrera no convento d'aquelle amor infeliz; e elle, de dôr e de saudade,
+fizera-se frade franciscano...
+
+--Parece que o estou a vêr...
+
+--Era bonito?
+
+--Se era! Um rapaz na flôr da vida, rico... Um dia veio ter commigo ao
+orgão: «Olha o que eu fiz», disse-me elle. Era um papel de musica. Abria
+em ré menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que
+musica! Mas não me lembra o resto!
+
+E o velho, commovido, repetiu no piano as notas plangentes da
+_Meditação_ em ré menor.
+
+Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De noite veio-lhe uma
+grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade
+frasciscano, na sombra do orgão da Sé d'Evora. Via os seus olhos
+profundos reluzirem n'uma face encovada: e, longe, a freira pallida, nos
+seus habitos brancos, encostada ás grades negras do mosteiro, sacudida
+pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades
+franciscanos caminhava para o côro: elle ia no fim de todos, curvado,
+com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandalias, emquanto um grande
+sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava:
+era um vasto céo negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com habitos
+de convento e um ruido ineffavel de beijos insaciaveis, giravam, levadas
+por um vento mystico; mas desvaneciam-se como nevoas, e na vasta
+escuridão ella via apparecer um grande coração em carne viva, todo
+trespassado de espadas--e as gotas de sangue que cahiam d'elle enchiam o
+céo d'uma chuva escarlate.
+
+Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouvêa tranquillisou a S.
+Joanneira com uma simples palavra:
+
+--Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze annos da rapariga.
+Hão de lhe vir ámanhã as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se.
+Temol-a mulher.
+
+A S. Joanneira comprehendeu.
+
+--Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter as paixões fortes!
+acrescentou o velho pratico, sorrindo e sorvendo a sua pitada.
+
+Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço
+d'açorda, cahiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternação
+inesperada para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada, em
+saias brancas, chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assumpção, as
+snr.^{as} Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dôr: e a snr.^a D.
+Josepha Dias resumiu as consolações de todas, dizendo:
+
+--Deixa, filha, que te não ha de faltar quem te ampare!
+
+Era então no começo de setembro; a snr.^a D. Maria da Assumpção, que
+tinha uma casa na praia da Vieira, propôz levar a S. Joanneira e Amelia
+para a estação dos banhos, para ella espalhar, nos bons ares saudaveis,
+em logar differente, aquella dôr.
+
+--É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joanneira. Sempre me lembra
+que era alli que elle punha o guardachuva... Alli que elle se sentava a
+vêr-me costurar!
+
+--Está bom, está bom, deixa-te d'isso. Come e bebe, toma os teus banhos,
+e o que lá vai lá vai. Olha que elle tinha bem os seus sessenta.
+
+--Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha!
+
+Amelia tinha então quinze annos, mas era já alta e de bonitas fórmas.
+Foi uma alegria para ella a estação na Vieira! Nunca vira o mar; e não
+se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta agua azul,
+muito mansa, cheia de sol; ás vezes no horisonte passava um fumo delgado
+de paquete; a monotona e gemente cadencia da vaga adormentava-a; e em
+redor o areal faiscava, a perder de vista, sob o céo azul-ferrete.
+
+Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé. Era a hora do banho:
+as barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras,
+sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar,
+palrando; os homens, de sapatos brancos, estendidos em esteiras,
+chupavam o cigarro, riscavam emblemas na areia; emquanto o poeta Carlos
+Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto da
+vaga, seguido do seu Terra-Nova. Ella sahia então da barraca com o seu
+vestido de flanella azul, a toalha no braço, tiritando de susto e de
+frio: tinha-se persignado ás escondidas e toda tremula, agarrada á mão
+do banheiro, escorregando na areia, entrava na agua, rompendo a custo a
+maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ella
+mergulhava, e ficava aos saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua
+salgada. Mas, quando sahia do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a
+toalha pela cabeça, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso
+do vestido encharcado, risonha, cheia de reacção; e em redor vozes
+amigas perguntavam:
+
+--Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hein?
+
+Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o
+recolher das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros,
+luzidia sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de occasos
+ricamente dourados, sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!
+
+D. Maria da Assumpção tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz,
+filho do snr. Brito de Alcobaça, seu parente. Chamava-se Agostinho, ia
+frequentar o quinto anno de direito na Universidade. Era um moço
+delgado, de bigode castanho, pera, cabello comprido deitado para traz, e
+luneta: recitava versos, sabia tocar guitarra, contava anecdotas de
+caloiros, fazia _partidas_, e era famoso na Vieira, entre os homens,
+«por saber conversar com senhoras».
+
+--O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça áquella. Lá
+para sociedade não ha outro!
+
+Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que os olhos do snr.
+Agostinho Brito se fitavam constantemente n'ella, «p'ra namoro». Amelia
+córava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e
+admirava-o, achava-o muito «dengueiro».
+
+Um dia em casa da snr.^a D. Maria da Assumpção pediram a Agostinho para
+recitar.
+
+--Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou elle,
+jovial.
+
+--Ora vá! não se faça rogado, disseram, insistindo.
+
+--Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.
+
+--A _Judia_, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaça.
+
+--Qual _Judia_! disse elle, ha de ser mas ha do ser a _Morena_!--E olhou
+para Amelia.--Foi uma poesia que fiz hontem.
+
+--Valeu, valeu!
+
+--E cá o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de caçadores, tomando
+logo a guitarra.
+
+Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o cabello para traz, fincou
+a luneta, apoiou as duas mãos ás costas d'uma cadeira, e fitando Amelia:
+
+--Á _Morena_ de Leiria! disse.
+
+
+Nasceste nos verdes campos
+Onde Leiria é famosa,
+Tens a frescura da rosa,
+E o teu nome sabe a mel...
+
+
+--Perdão! exclamou o recebedor, a snr.^a D. Juliana não está boa...
+
+Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça; tinha-se feito muito
+pallida, e, lentamente, desmaiava na cadeira, com os **braços**
+pendentes, o queixo sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a
+para o quarto de Amelia; quando lhe desapertaram o vestido e lhe deram
+vinagre a respirar, ergueu-se sobre o cotovêlo, olhou em redor,
+começaram a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fóra, os homens em
+grupo, commentavam:
+
+--Foi o calor, diziam.
+
+--O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento de caçadores.
+
+O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a
+casa acompanhar a snr.^a D. Juliana. D. Maria da Assumpção e a S.
+Joanneira, atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia vento, um
+criado levava um lampeão, e todos caminhavam na areia, calados.
+
+--Tudo isto é teu proveito, disse a snr.^a D. Maria da Assumpção baixo á
+S. Joanneira, demorando-se um pouco atraz.
+
+--Meu!?
+
+--Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era namoro do
+Agostinho. Mas o rapaz aqui anda pelo beiço pela Amelia. A Juliana
+percebeu, viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, zás!
+
+--Ora essa!... disse a S. Joanneira.
+
+--Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as
+tias. É um partidão!
+
+Ao outro dia, á hora do banho, a S. Joanneira vestia-se na sua barraca,
+e Amelia, sentada na areia, esperava, pasmada para o mar.
+
+--Olá! sósinha! disse uma voz por detraz.
+
+Era Agostinho. Amelia, calada, começou a riscar a areia com a sombrinha.
+O snr. Agostinho suspirou, alisou outro pedaço d'areia com o pé,
+escreveu--Amelia. Ella, muito vermelha, quiz apagar com a mão.
+
+--Então! disse elle. E debruçando-se, baixo:--É o nome da _Morena_, bem
+vê. _O seu nome sabe a mel!_...
+
+Ella sorriu:
+
+--Ande que fez hontem desmaiar aquella pobre Juliana, disse.
+
+--Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou farto d'aquelle estafermo!
+Então que quer? Eu cá sou assim. Tanto digo que me não importo com ella,
+como digo que ha uma pessoa por quem dava tudo... Eu sei...
+
+--Quem é? É a snr.^a D. Bernarda?
+
+Era uma velha hedionda, viuva de um coronel.
+
+--É, disse elle rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado, é pela
+D. Bernarda.
+
+--Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar, com os olhos baixos,
+riscando a areia.
+
+--Diga-me uma coisa, está a mangar commigo? exclamou Agostinho puxando
+uma cadeirinha, sentando-se junto d'ella.
+
+Amelia pôz-se de pé.
+
+--Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou elle offendido.
+
+--Eu é que estava cansada de estar sentada.
+
+Calaram-se um momento.
+
+--Já tomou banho? disse ella.
+
+--Já.
+
+--Estava frio hoje?
+
+--Estava.
+
+As palavras de Agostinho eram agora muito sêccas.
+
+--Zangou-se? disse ella dôcemente, pondo-lhe de leve a mão no hombro.
+
+Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo
+risonho, exclamou com vehemencia:
+
+--Estou mesmo doido por si!
+
+--Chut!... disse ella.
+
+A mãi de Amelia, levantando o pano da barraca, sahia, muito abafada, de
+lenço amarrado na cabeça.
+
+--Mais fresquinha, hein? perguntou logo Agostinho, tirando o chapéo de
+palha.
+
+--Estava por aqui?
+
+--Vim dar uma vista d'olhos. E agora toca ao almocinho, hein?
+
+--Se é servido... disse a S. Joanneira.
+
+Agostinho, muito galante, offereceu o braço á mamã.
+
+E desde então seguia sempre Amelia, de manhã no banho, de tarde á
+beira-mar; apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros versos--o
+_Sonho_. Uma estrophe era violenta:
+
+
+Senti-te contra o meu peito
+Tremer, palpitar, ceder...
+
+
+Ella murmurava-os com grande commoção, de noite, suspirando, abraçando o
+travesseiro.
+
+Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da
+snr.^a D. Maria da Assumpção e das amigas fôra dar um passeio ao luar. Á
+volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o céo, cahíram
+gotas d'agua. Estavam então junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras,
+aos gritinhos, quizeram abrigar-se. Agostinho, com Amelia pelo braço,
+rindo alto, foi penetrando longe dos outros na espessura; e então, sob o
+monotono e gemente rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
+
+--Estou doido por ti, filha!
+
+--Creio lá n'isso! murmurou ella.
+
+Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:
+
+--Sabes? talvez eu tenha de me ir ámanhã embora.
+
+--Vai-se?
+
+--Talvez; não sei ainda. Além d'ámanhã é a matricula.
+
+--Vai-se... suspirou Amelia.
+
+Elle então tomou-lhe a mão, apertou-lh'a com furor:
+
+--Escreve-me! disse.
+
+--E a mim escreve-me? disse ella.
+
+Agostinho agarrou-a pelos hombros e machucou-lhe a boca de beijos
+vorazes.
+
+--Deixe-me! deixe-me! dizia ella suffocada.
+
+De repente teve um gemido dôce como um arrulho de ave, e
+abandonava-se--quando a voz aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:
+
+--Ha uma aberta. É andar! é andar!
+
+E Amelia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o
+guardachuva da mamã.
+
+Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras
+chuvas, e dentro em pouco tambem Amelia, a mãi, a snr.^a D. Maria da
+Assumpção voltaram para Leiria.
+
+Passou o inverno.
+
+E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da Assumpção deu parte que o
+Agostinho Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento
+justo com a menina do Vimeiro.
+
+--Caspitè! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus
+trinta contos! Olha o méco!
+
+E diante de todos Amelia rompeu a chorar.
+
+Amava Agostinho; e não podia esquecer aquelles beijos de noite no
+pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que não tornaria a ter alegria!
+Ainda lembrada d'aquelle moço da historia do _Tio Cegonha_, que por amor
+se escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira:
+deu-se a uma forte devoção, manifestação exagerada das tendencias que
+desde pequenina as convivencias de padres tinham lentamente creado na
+sua natureza sensivel; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes
+do quarto de lithographias coloridas de santos; passava longas horas na
+igreja, accumulando Salve-Rainhas á Senhora da Encarnação. Ouvia todos
+os dias missa, quiz commungar todas as semanas--e as amigas da mãi
+achavam-na «um modêlo, de dar virtude a incredulos»!
+
+Foi por esse tempo que o conego Dias e sua irmã, a snr.^a D. Josepha
+Dias, começaram a frequentar a casa da S. Joanneira. Dentro em pouco o
+conego tornou-se o «amigo da familia». Depois do almoço era certo com a
+sua cadellinha, como outr'ora o chantre com o seu guardachuva.
+
+--Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joanneira. Mas o
+senhor chantre não ha dia nenhum que me não lembre d'elle!
+
+A irmã do conego tinha então organisado com a S. Joanneira a _Associação
+das Servas da Senhora da Piedade_. A snr.^a D. Maria da Assumpção, as
+Gansosos «filiaram-se»; e a casa da S. Joanneira tornou-se um centro
+ecclesiastico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joanneira; «a Sé,
+como dizia com tedio o Carlos da botica, era agora na rua da
+Misericordia». Parte dos conegos, o novo chantre vinham todas as
+sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha.
+As criadas, por escrupulo, eram examinadas em doutrina antes de serem
+aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de um
+homem--_não é temente a Deus_, havia o dever de o desacreditar
+santamente. As nomeações de sineiros, coveiros, serventes de sacristia
+arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras piedosas. Tinham
+tomado um certo vestuario entre o preto e o rôxo: toda a casa cheirava a
+cera e a incenso; e a S. Joanneira, mesmo, monopolisára o commercio das
+hostias.
+
+Assim passaram annos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se:
+a ligação do conego Dias e da S. Joanneira, muito commentada, afastou os
+padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia tambem--como era
+de tradição n'aquella diocese, fatal aos chantres; e já não eram
+divertidos os quinos das sextas-feiras. Amelia mudára muito; crescera:
+fizera-se uma bella moça de vinte e dois annos, d'olhar avelludado,
+beiços muito frescos--e achava a sua paixão pelo Agostinho uma «tontice
+de criança». A sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na
+religião e na igreja era o apparato, a festa--as bellas missas cantadas
+ao orgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o
+altar-mór na gloria das flôres cheirosas, o roçar das correntes dos
+incensadores de prata, os unisonos que rompem briosamente no côro das
+alleluias. Tomava a Sé como a sua Opera: Deus era o seu luxo. Nos
+domingos de missa gostava de se vestir, de se perfumar com agua de
+colonia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mór, sorrindo ao padre
+Brito ou ao conego Saldanha.--Mas em certos dias, como dizia a mãi,
+«murchava»: voltavam então os abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam,
+lhe punham duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha n'essas
+occasiões horas d'uma vaga saudade parva e morbida, em que só a
+consolava cantar pela casa o Santissimo ou as notas lugubres do toque da
+Agonia. Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre--e lamentava
+então que a Sé fosse uma ampla estructura de pedra d'um estylo frio e
+jesuitico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada,
+forrada de papel, illuminada a gaz; e padres bonitos officiando a um
+altar ornado como uma _étagère_.
+
+Fizera vinte e tres annos quando conheceu João Eduardo, no dia da
+procissão de _Corpus-Christi_, em casa do tabellião Nunes Ferral, onde
+elle era escrevente. Amelia, a mãi, a snr.^a D. Josepha Dias tinham ido
+vêr a procissão da bella varanda do tabellião, guarnecida de colchas de
+damasco amarello. João Eduardo estava lá, modesto, sério, todo vestido
+de preto. Havia muito que Amelia o conhecia; mas n'aquella tarde,
+reparando na brancura da sua pelle e na gravidade com que ajoelhava,
+pareceu-lhe «muito bom rapaz».
+
+Á noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de collete branco, foi pela
+sala exclamando, enthusiasmado, com a sua voz de grillo:--É tirar pares,
+é tirar pares!--emquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio
+estridente uma mazurka franceza. João Eduardo aproximou-se de Amelia:
+
+--Ai, eu não danso!... disse ella logo com ar sêcco.
+
+João Eduardo não dansou tambem, foi encostar-se a uma hombreira com a
+mão na abertura do collete, os olhos fitos em Amelia. Ella percebia,
+desviava o rosto, mas estava contente; e quando João Eduardo, vendo uma
+cadeira vazia, veio sentar-se ao pé d'ella, Amelia fez-lhe logo logar
+accommodando os folhos de sêda, agradada. O escrevente, embaraçado,
+torcia o bigode com a mão tremula. Por fim Amelia voltando-se para elle:
+
+--Então o senhor não dansa tambem?
+
+--E a snr.^a D. Amelia? disse elle baixo.
+
+Ella inclinou-se para traz, e batendo nas pregas do vestido:
+
+--Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.
+
+--Nunca se ri? perguntou elle, pondo na voz uma intenção fina.
+
+--Ás vezes rio quando ha de quê, disse ella olhando-o de lado.
+
+--De mim, por exemplo.
+
+--De si!? ora essa! Está a caçoar commigo? Porque me hei de eu rir do
+senhor? Boa!... Então o senhor que tem que faça rir?--E agitava o seu
+leque de sêda preta.
+
+Elle calou-se, procurando as idéas, as delicadezas.
+
+--Então sério, sério, não dansa?
+
+--Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!
+
+--É porque me interesso por si.
+
+--Ora, deixe lá! disse ella fazendo um indolente gesto de negativa.
+
+--Palavra!
+
+Mas a snr.^a D. Josepha Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa
+muito franzida--e João Eduardo levantou-se, intimidado.
+
+Á sahida, quando Amelia no corredor punha os seus agasalhos, João
+Eduardo veio dizer-lhe, de chapéo na mão:
+
+--Cubra-se bem, não apanhe frio!
+
+--Então continúa a interessar-se por mim? disse ella apertando em redor
+do pescoço as pontas da sua manta de lã.
+
+--O mais possivel, creia.
+
+Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de _zarzuela_.
+Fallava-se muito da contralto, a _Gamacho_. A snr.^a D. Maria da
+Assumpção tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia--que duas
+noites antes estivera costurando, com uma pressa commovida, um vestido
+de cassa todo florido de laços de sêda azul. João Eduardo na
+platéa--emquanto a Gamacho, empastada de pó de arroz sob a sua mantilha
+valenciana, vibrando com uma graça decrepita o leque de lentejoulas,
+garganteava malaguenhas agudas--não se fartou de contemplar, de desejar
+Amelia. Á sahida veio comprimental-a, offerecer-lhe o braço até á rua da
+Misericordia: a S. Joanneira, a snr.^a D. Maria da Assumpção seguiam
+atraz com o tabellião Nunes.
+
+--Então gostou da Gamacho, snr. João Eduardo?
+
+--A fallar-lhe a verdade nem sequer reparei n'ella.
+
+--Então que fez?
+
+--Olhei para si, respondeu elle resolutamente.
+
+Ella parou immediatamente, disse com a voz um pouco alterada:
+
+--Onde vem a mamã?
+
+--Deixe lá a mamã!
+
+E João Eduardo, então, fallando-lhe junto do rosto, disse-lhe «a sua
+grande paixão». Tomou-lhe a mão, repetia todo perturbado:
+
+--Gósto tanto de si! Gósto tanto de si!
+
+Amelia estava nervosa da musica do theatro; a noite quente de verão, com
+a sua vasta scintillação de estrellas, tornava-a toda languida.
+Abandonou a mão, suspirou baixinho.
+
+--Gosta de mim, não é verdade? perguntou elle.
+
+--Sim, respondeu ella--e apertou os dedos de João Eduardo, com paixão.
+
+Mas, como ella pensou, «fôra decerto um fogacho»--porque, dias depois,
+quando conheceu mais João Eduardo, quando pôde fallar livremente com
+elle, reconheceu que «não tinha nenhuma inclinação pelo rapaz».
+Estimava-o, achava-o sympathico, bom moço; poderia ser um bom marido;
+mas sentia dentro em si o coração adormecido.
+
+O escrevente porém começou a ir á rua da Misericordia quasi todas as
+noites. A S. Joanneira estimava-o pelo seu «proposito» e pela sua
+honradez. Mas Amelia ia-se mostrando «fria»: esperava-o á janella pela
+manhã quando elle passava para o cartorio, fazia-lhe olhos dôces á
+noite,--mas só para o não descontentar, para ter na sua existencia
+desoccupada um interessesinho amoroso.
+
+João Eduardo um dia fallou à mãi em casamento:
+
+--Como a Amelia quizer, eu por mim... disse a S. Joanneira.
+
+E Amelia, consultada, respondeu ambiguamente:
+
+--Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
+
+Emfim accordou-se tacitamente em esperar, até que elle obtivesse o lugar
+de amanuense do governo civil, rasgadamente promettido pelo doutor
+Godinho--o temido doutor Godinho!
+
+Assim vivera Amelia até à chegada d'Amaro: e, durante a noite, estas
+recordações vinham-lhe por fragmentos, como pedaços de nuvens que o
+vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou já o sol ia
+alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a _Ruça_ na sala de jantar:
+
+--É o senhor parocho que vai sahir com o senhor conego; vão á Sé.
+
+Amelia saltou da cama, correu á janella em camisa, ergueu uma pontinha
+da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo
+meio da rua conversando com o conego, assoava-se ao seu lenço branco,
+muito airoso na sua batina de pano fino.
+
+
+
+
+VI
+
+
+Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em commodidades,
+Amaro sentiu-se feliz. A S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande
+cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o «quarto do
+senhor parocho andava que nem um brinco»! Amelia tinha com elle uma
+familiaridade picante de parenta bonita: «tinham calhado um com outro»,
+como dissera, encantada, D. Maria da Assumpção. Os dias iam assim
+passando para Amaro, faceis, com boa mesa, colchões macios e a
+convivencia meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tilias
+floresceram no jardim do Paço: «quasi milagre»! disse-se: o senhor
+chantre, contemplando-as todas as manhãs da janella do seu quarto, em
+robe-de-chambre, citava versos das _Eclogas_. E depois das longas
+tristezas da casa do tio da Estrella, dos desconsolos do seminario e do
+aspero inverno na Gralheira--aquella vida em Leiria era para Amaro como
+uma casa sêcca e abrigada onde o alegre lume estala e a sôpa cheirosa
+fumega, depois d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
+
+Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas
+de casimira, meias de lã por baixo das botas de alto cano vermelho. As
+manhãs estavam frias: e àquella hora só algumas devotas, com o mantéo
+escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de
+branco.
+
+Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no
+lagedo, emquanto o sacristão, pachorrento, contava «as novidades do
+dia».
+
+Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava á igreja; e tendo
+dobrado o joelho rapidamente diante do Santissimo Sacramento, subia
+devagar ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam com uma claridade
+pallida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
+
+--_Introibo ad altare Dei._
+
+--_Ad Deum qui lætificat juventutem meam_, resmungava, n'um latim
+syllabado, o sacristão.
+
+Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma
+devoção enternecida. «Estava agora habituado», dizia. E como não ceava,
+e áquella hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia
+appetite, engorolava depressa, monotonamente, as santas leituras da
+Epístola e dos Evangelhos. Por traz o sacristão, com os braços cruzados,
+passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando
+de revez para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito
+devota, que elle «trazía d'olho» desde a Paschoa. Largas resteas de sol
+cahiam das janellas lateraes. Um vago aroma de junquilhos sêccos
+adocicava o ar.
+
+Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio, limpava o calice com
+o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as
+galhetas, apresentava-as, curvado--e Amaro sentia o cheiro do oleo
+rançoso que lhe reluzia no cabello. N'aquella parte da missa, por um
+antigo habito de emoção mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido:
+com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza,
+a exhortação universal á oração--_Orate, fratres!_ E as velhas
+encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa,
+apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde pendiam grandes rosarios
+negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando
+ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro
+consagrava o vinho, levantava a hostia--_Hoc est enim corpus
+meum!_--elevando alto os braços para o Christo cheio de chagas rôxas
+sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos
+batiam concavamente nos peitos; e no silencio sentiam-se os carros de
+bois rolando, com solavancos, sobre o largo lageado da Sé, à volta do
+mercado.
+
+--_Ite, missa est!_ dizia Amaro emfim.
+
+--_Deo gratias!_ respondia o sacristão respirando alto, com o allivio da
+obrigação finda.
+
+E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus
+dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de
+jantar da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora já Amelia o
+esperava com o cabello cahido sobre o penteador, tendo na pelle fresca
+um bom cheiro de sabão d'amendoas.
+
+
+Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar onde a S.
+Joanneira e Amelia costuravam. «Estava aborrecido em baixo, vinha um
+bocado para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira pequena, ao
+pé da janella, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia
+de luneta na ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava com o
+cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a
+sua risca fina, nitida, um pouco afogada na abundancia do cabello; os
+seus grandes brincos de ouro, em fórma de pingos de cera, oscillavam,
+faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra;
+as olheiras leves côr de _bistre_ esbatiam-se delicadamente sobre a
+pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu
+peito cheio respirava devagar. Ás vezes, cravando a agulha na fazenda,
+espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:
+
+--Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
+
+Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as coisas interessantes do
+dia: o major despedira a criada; ou havia quem offerecesse dez moedas
+pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a _Ruça_ vinha ao
+armario buscar um prato ou uma colhér: então fallava-se do preço dos
+generos, do que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as lunetas,
+traçava a perna e, balouçando o pé calçado n'uma chinela d'ourelo,
+punha-se a dizer os pratos:
+
+--Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor parocho gostará, foi para
+variar...
+
+Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria
+affinidade de gostos com Amelia.
+
+Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrára
+uma carta; perguntou-lhe pelo _derriço_; ella respondeu, picando
+vivamente o posponto:
+
+--Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...
+
+--Não é tanto assim, acudiu elle.--Mas suspendeu-se, muito vermelho,
+affectando tossir.
+
+Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo pediu-lhe para
+sustentar nas mãos uma meadinha de retroz que ella ia dobar.
+
+--Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S. Joanneira. Ora a tolice!
+Isto, em se lhe dando confiança!...
+
+Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:--elle estava alli para
+o que quizessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem! E as
+duas mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas maneiras do
+senhor parocho, «que até tocavam o coração»! Ás vezes Amelia pousava a
+costura e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se, corria a mão pela
+espinha do _Maltez_ que se arredondava, fazendo um _ron-ron_ de gozo.
+
+--Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada, com os olhos muito
+ternos.
+
+E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
+
+--Bichaninho gato! bichaninho gato!
+
+Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio á idiota ou ir palrar
+á cozinha. Elles ficavam sós; não fallavam, mas os seus olhos tinham um
+longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente.
+Então Amelia cantarolava baixo o _Adeus_ ou o _Descrente_: Amaro
+accendia o seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.
+
+--É tão bonito isso! dizia.
+
+Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo depressa; e a espaços,
+erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o posponto, passando-lhe por
+cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
+
+Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque tudo que era _ella_ ou
+vinha d'_ella_ lhe parecia perfeito: gostava da côr dos seus vestidos,
+do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabellos, e olhava até
+com ternura para as saias brancas que ella punha a seccar á janella do
+seu quarto, enfiadas n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade
+d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto d'ella entreaberta, ia
+resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas d'um
+paraiso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficára
+sobre o bahú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar
+os dentes, todo pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir, andar
+com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras das portas
+estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava
+que era padre: o Sacerdocio, Deus, a Sé, o Peccado ficavam em baixo,
+longe; via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como d'um monte se
+vêem as casas desapparecer no nevoeiro dos valles; e só pensava então na
+doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou
+mordicar-lhe a orelhinha.
+
+Ás vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos, batia o pé:
+
+--Que diabo, é necessario ter juizo! é necessario ser homem!
+
+Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de Amelia fallava em cima,
+o _tic-tic_ das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção cahia
+como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá
+voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cerebro, frementes,
+arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que
+recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava então a
+sua liberdade perdida: como desejaria não a vêr, estar longe de Leiria,
+n'uma aldeia solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia
+de proverbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces
+verdejam e os gallos cacarejam ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o--e
+o encanto recomeçava, mais penetrante.
+
+A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor
+do dia. A S. Joanneira trinchava, emquanto Amaro conversava cuspindo os
+caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha.
+A _Ruça_, cada dia mais etica, servia mal, sempre a tossir: Amelia ás
+vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro
+queria levantar-se logo, attencioso.
+
+--Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho! dizia ella. E
+punha-lhe a mão no hombro, e os seus olhos encontravam-se.
+
+Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estomago,
+sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo
+copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; ás vezes mesmo,
+com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amelia debaixo
+da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia «que muito lhe pezava não ter
+uma irmãzinha assim»!
+
+Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no môlho do guisado; a mãi
+dizia-lhe sempre:
+
+--Embirro que faças isso diante do senhor parocho.
+
+E elle então rindo:
+
+--Pois olhe, também eu gósto. Sympathia! magnetismo!
+
+E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o
+crepusculo crescia, a _Ruça_ trazia o candieiro. O brilho dos copos e
+das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S. Joanneira
+_mamã_; Amelia sorria, d'olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes
+cascas de tangerina. D'ahi a pouco vinha o café; o o padre Amaro ficava
+muito tempo partindo nozes com as costas da faca e quebrando a cinza do
+cigarro na borda do pires.
+
+Áquella hora apparecia sempre o conego Dias; sentiam-no subir
+pesadamente, dizendo da escada:
+
+--Licença para dois!
+
+Era elle e a cadella, a _Trigueira_.
+
+--Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites! dizia assomando á porta.
+
+--Vai a gotinha de café, senhor conego? perguntava logo a S. Joanneira.
+
+Elle sentava-se, exhalando um profundo _uff!_--Vá lá a gotinha do café!
+E batendo no hombro do parocho, olhando para a S. Joanneira:
+
+--Então como vai cá o seu menino?
+
+Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava trazer no bolso o
+_Diario Popular_; Amelia interessava-se pelo romance, a S. Joanneira
+pelas correspondencias amorosas nos annuncios.
+
+--Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella, deliciando-se.
+
+Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos que lhe contára a tia, dos
+fidalgos que conhecera «em casa do senhor conde de Ribamar». Amelia,
+enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa, roendo vagarosamente
+a ponta do palito.
+
+Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à
+cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas
+negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã
+raineta, fazendo debaixo da roupa uma saliencia quasí imperceptivel,
+fixava em todos, com custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.
+
+--É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe Amelia ao ouvido. Vem
+vêr como está.
+
+A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
+
+--Ah! é o menino!
+
+--É o menino, é, diziam rindo.
+
+E a velha ficava a murmurar, espantada:
+
+--É o menino, é o menino!
+
+--Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo! Deus lhe dê uma boa
+morte!
+
+E voltavam para a sala de jantar onde o conego Dias, todo enterrado na
+velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre,
+dizia logo:
+
+--Ora vá um bocadinho de musica, pequena!
+
+Amelia ia sentar-se ao piano.
+
+--Ó filha, toca o _Adeus_! recommendava a S. Joanneira começando a sua
+meia.
+
+E Amelia, ferindo o teclado:
+
+
+Ai! adeus! acabaram-se os dias
+Que ditoso vivi a teu lado...
+
+
+A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro, soprando o fumo do
+cigarro, sentia-se todo enleado n'um sentimentalismo agradavel.
+
+
+Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se
+então a lêr os _Canticos a Jesus_, traducção do francez publicada pela
+sociedade das _Escravas de Jesus_. É uma obrasinha beata, escripta com
+um lyrismo equivoco, quasi torpe--que dá á oração a linguagem da
+luxuria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes
+d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo
+adoravel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero!
+Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!» E um amor divino, ora
+grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge,
+declama assim em cem paginas inflammadas onde as palavras _gozo_,
+_delicia_, _delírio_, _extase_, voltam a cada momento, com uma
+persistencia hysterica. E depois de monologos phreneticos d'onde se
+exhala um bafo de cio mystico, vêm então imbecilidades de sacristia,
+notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de jejuns, e orações para
+as dôres de parto! Um bispo approvou aquelle livrinho bem impresso; as
+educandas lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem as eloquencias
+do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e
+dá-se ás confessadas: é a cantharida canonica!
+
+Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aquelles periodos sonoros,
+tumidos de desejo; e no silencio, por vezes, sentia em cima ranger o
+leito de Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça ás
+costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vêl-a em collete
+diante do toucador desfazendo as trancas; ou, curvada, desapertando as
+ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios
+muito brancos. Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de
+a possuir.
+
+Começára então a recommendar-lhe a leitura dos _Canticos a Jesus_.
+
+--Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse elle, deixando-lhe o
+livrinho uma noite no cesto da costura.
+
+Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida, com as olheiras até ao
+meio da face. Queixou-se de insomnia, de palpitações.
+
+--E então, gostou dos _Canticos_?
+
+--Muito. Orações lindas! respondeu.
+
+Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste--e
+sem razão, ás vezes, o rosto abrazava-se-lhe de sangue.
+
+
+Os peores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando
+João Eduardo vinha passar as noites «em familia». Até ás nove horas o
+parocho não sahia do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de
+vêr o escrevente embrulhado no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.
+
+--Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor parocho! dizia a S.
+Joanneira.
+
+Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar a sua torrada, com os
+olhos fitos na chavena.
+
+Amelia, na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o parocho a
+mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o
+escrevente calado chupava o cigarro; e havia grandes silencios em que se
+sentia o vento uivar, encanado na rua.
+
+--Olha quem andar agora nas aguas do mar! dizia a S. Joanneira fazendo
+devagar a sua meia.
+
+--Safa!... acrescentava João Eduardo.
+
+As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro: detestava-o
+pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle
+sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
+
+--Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.
+
+--Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se nas costas da cadeira,
+com um suspirosinho de fadiga.
+
+A S. Joanneira, então, que não gostava de «vêr gente mona», propunha uma
+_bisca de tres_; e o padre Amaro, tomando o seu candieiro de latão,
+descia para o quarto, muito infeliz.
+
+N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a _casmurra_. A intimidade
+do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidia mesmo fallar á S.
+Joanneira, dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a dentro não podia
+ser agradavel a Deus». Depois, mais razoavel, resolvia esquecel-a,
+pensava em sahir da casa, da parochia. Representava-se então Amelia com
+a sua corôa de flôres de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de
+casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus
+lençoes de renda... e todas as provas, as certezas do amor d'ella pelo
+«idiota do escrevente» cravavam-se-lhe no peito como punhaes...
+
+--Pois que casem, e que os leve o diabo!...
+
+Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir
+que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o _frou-frou_ das
+suas saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava com o
+coração aos saltos, immovel e ancioso, os ruidos que ella fazia em cima
+ao despir-se, palrando ainda com a mãi.
+
+
+Um dia Amaro jantára em casa da snr.^a D. Maria da Assumpção; fôra
+depois passear pela estrada de Marrases, e á volta, ao fim da tarde,
+encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no
+patamar, estavam os chinelos de ourelo da _Ruça_.
+
+--Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi á fonte e esqueceu-se de fechar a
+porta.
+
+Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde com a snr.^a D. Joaquina
+Gansoso, n'uma fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joanneira fallára em
+ir á irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu á cozinha a
+accender o seu candieiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da
+manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam
+rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da
+S. Joanneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa;
+surprehendido, afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela porta
+entreaberta espreitou.--Oh Deus de Misericordia! a S. Joanneira, em saia
+branca, atacava o collete; e, sentado á beira da cama, em mangas de
+camisa, o conego Dias resfolegava grosso!
+
+Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e
+foi ao acaso para os lados da Sé. O céo ennevoára-se, leves gotas de
+chuva cahiam.
+
+--E esta! E esta! dizia elle assombrado.
+
+Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira, a pachorrenta S.
+Joanneira! O conego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos
+do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição,
+as dignidades ecclesiasticas! Que faria então um homem novo e forte, que
+sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!...
+Era, pois, verdade o que se cochichava no seminario, o que lhe dizia o
+velho padre Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:--«Todos são
+do mesmo barro!» Todos são do mesmo barro,--sobem em dignidades, entram
+nos cabidos, regem os seminarios, dirigem as consciencias envoltos em
+Deus como n'uma absolvição permanente, e têm no emtanto, n'uma viella,
+uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das attitudes
+devotas e da austeridade do officio, fumando cigarros de estanco e
+palpando uns braços rechonchudos!
+
+Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquella, a S. Joanneira
+e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um
+velho conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem feita,
+desejavel--outr'ora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos
+declives da idade, áquelles amores senis e mal pagos? As duas
+mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da
+concubinagem. Amelia ia sósinha á igreja, ás compras, á fazenda; e com
+aquelles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante!--Resumia,
+filiava certas recordações: um dia que ella lhe estivera mostrando na
+janella da cozinha um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e ella,
+muito córada, puzera-lhe a mão sobre o hombro e os seus olhos reluziam e
+pediam; outra occasião ella roçára-lhe o peito pelo braço! A noite
+cahira, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa,
+cheio de uma só idéa deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da
+rapariga, como o conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa vida
+escandalosa e regalada; emquanto em cima a grossa S. Joanneira
+beijocasse o seu conego cheio de difficuldades asthmaticas,--Amelia
+desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um
+chale sobre os hombros nús... Com que phrenesi a esperaria! E já não
+sentia por ella o mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a idéa
+muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panellinha, dava
+áquelle homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos
+pulinhos pela rua.--Que pechincha de casa!
+
+A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar.
+Subiu.
+
+--Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a
+humidade da nevoa.
+
+Sentada á mesa, costurava com um chale-manta pelos hombros: João
+Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joanneira.
+
+Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe
+de repente, sem saber porque, o duro choque d'uma realidade antipathica:
+e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dansar uma sarabanda na
+imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam--vendo alli Amelia ao pé
+do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido
+afogado, junto do candieiro de familia!
+
+E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado, as paredes com o seu
+papel de ramagens verdes, o armario cheio de louça luzidia da
+Vista-Alegre, o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho piano mal firme
+nos seus tres pés torneados; o paliteiro tão querido de todos--um Cupido
+rechonchudo com um guardachuva aberto erriçado de palitos, e aquella
+tranquilla bisca jogada com os dichotes classicos. Tudo tão decente!
+
+Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joanneira, como
+para descobrir n'ellas as marcas das beijocas do conego: ah! tu, não ha
+duvida, és «uma barregã de clerigo ». Mas Amelia! com aquellas longas
+pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as
+libertinagens da mãi; ou, experiente, estava bem resolvida a
+estabelecer-se solidamente na segurança d'um amor legal!--E Amaro, da
+sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do
+seu rosto, da virgindade do seu passado.
+
+--Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S. Joanneira. E para João
+Eduardo:--Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar?
+
+O escrevente, namorado, distrahia-se.
+
+--É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a cada momento.
+
+Depois elle esquecia-se de _comprar cartas_.
+
+--Ah menino, menino! dizia ella com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo
+essas orelhas!
+
+Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto
+com botões de vidro, que lhe disfarçava a fórma do seio.
+
+E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura, d'aquelle casaco
+amplo escondendo a belleza que mais appetecia n'ella! E nada a esperar!
+Nada d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas, nem a
+brancura d'aquelles peitos! Queria casar--e guardava _tudo_ para o
+outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, d'um
+odio complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu direito d'amar...
+
+--Está incommodado, senhor parocho? perguntou Amelia, vendo-o mexer-se
+bruscamente na cadeira.
+
+--Não, disse elle sêccamente.
+
+--Ah! fez ella com um leve suspiro, picando rapidamente o posponto.
+
+O escrevente, baralhando as cartas, começára a fallar de uma casa que
+queria alugar; a conversa cahiu sobre arranjos domesticos.
+
+--Traze-me luz! gritou Amaro à _Ruça_.
+
+Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a vela sobre a commoda; o
+espelho estava defronte, e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio,
+ridiculo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma colleira, e por
+traz a corôa hedionda. Comparou-se instinctivamente com o outro que
+tinha um bigode, o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de eu
+estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu
+nome, uma casa, a maternidade; elle só poderia dar-lhe sensações
+criminosas, depois os terrores do peccado! Ella sympathisava talvez com
+elle, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar;
+nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma situação
+legitima e duradoura, o respeito das visinhas, a consideração dos
+lojistas, todos os proveitos da honra!
+
+Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua honestidade! A estupida,
+que não percebia que ao pé d'ella, sob uma negra batina, uma paixão
+devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia! Desejou
+que ella fosse como a mãi,--ou peor, toda livre, com vestidos garridos,
+uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma femea
+facil como uma porta aberta ...
+
+--Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada!--pensou,
+recahíndo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em
+mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
+
+Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso; a chuva cessára; o
+piar das corujas na Misericordia cortava só o silencio.
+
+Enterneceu-se, então, com aquella escuridão, aquella mudez de villa
+adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu sêr, o
+amor que sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo
+devoto: via a sua linda cabeça, d'uma belleza transfigurada e luminosa,
+destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella n'um
+desfallecimento d'adoração, como no culto a Maria e na Saudação
+Angelica; pediu-lhe perdão anciosamente de a ter offendido; disse-lhe
+alto: És uma santa! perdôa!--Foi um momento muito dôce, de renunciamento
+carnal...
+
+E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade que descobria
+subitamente em si, pôz-se a pensar com saudade--que se fosse um homem
+livre seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado, dengueiro, sempre de
+joelhos, todo d'adorações! Como amaria o _seu_ filho, muito
+pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! Á idéa d'aquellas felicidades
+inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas. Amaldiçoou, n'um
+desespero, «a pêga da marqueza que o fizera padre», e o bispo que o
+confirmára!
+
+--Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco desvairado.
+
+Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias
+de Amelia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no
+beiço, de ciume. A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.--Mas
+a sensação d'amor mystico que o penetrára um momento, olhando a noite,
+passára; e deitou-se, com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.
+
+
+
+
+VII
+
+
+Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham ido jantar com o abbade
+da Cortegassa.--Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta
+annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor cozinheiro da
+diocese. Todo o clero das visinhanças conhecia a sua famosa _cabedella
+de caça_. O abbade fazia annos, havia outros convidados--o padre Natario
+e o padre Brito: o padre Natario era uma creaturinha biliosa, sêcca, com
+dois olhos encovados, muito malignos, a pelle picada das bexigas e
+extremamente irritavel. Chamavam-lhe o _Furão_. Era esperto e
+questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma logica de
+ferro; e dizia-se d'elle: _é uma lingua de vibora_! Vivia com duas
+sobrinhas orphãs, declarava-se extremoso por ellas, gabava-lhes sempre a
+virtude, e costumava chamar-lhes as _duas rosas do seu canteiro_. O
+padre Brito era o padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha o
+aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o
+cajado, emborca um almude de vinho, péga alegremente á rabiça do arado,
+serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas séstas quentes de
+junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O
+senhor chantre, sempre correcto nas suas comparações mythologicas,
+chamava-lhe--o _leão de Nemeia_.
+
+A sua cabeça era enorme, de cabello lanigero que lhe descia até ás
+sobrancelhas: a pelle cortida tinha um tom azulado, do esforço da
+navalha de barba; e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos muito
+miudos e muito brancos do uso da brôa.
+
+Quando iam sentar-se á mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando
+muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:
+
+--Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela
+igreja de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma
+missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!
+
+A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade, entrou então com a vasta
+terrina do caldo de gallinha; e o Libaninho, saltitando em roda d'ella,
+começou os seus gracejos:
+
+--Ai, Gertrudinhas! quem tu fazias feliz bem eu sei!
+
+A velha aldeã ria com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a
+massa do seio.
+
+--Olhe que arranjo me apparece agora pela tarde!...
+
+--Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete
+cotovêlos. Então é que é chupal-as!
+
+Os padres gargalharam; e, alegremente, accommodaram-se á mesa.
+
+O jantar fôra todo cozinhado pelo abbade: logo á sopa as exclamações
+começaram:
+
+--Sim, senhor, famoso! D'isto nem no céo! Bella coisa!
+
+O excellente abbade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o
+senhor chantre, «um divino artista»! Lera todos os _Cozinheiros
+completos_, sabia innumeras receitas: era inventivo--e, como elle
+affirmava dando martelladinhas no craneo, «tinha-lhe sahido muito
+petisco d'aquella cachimonia»! Vivia tão absorvido pela sua «arte» que
+lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fieis ajoelhados para
+receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre
+os condimentos do sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua velha
+Gertrudes, de muito bom paladar tambem, com o seu quintal de ricos
+legumes, sentindo uma só ambição na vida--ter um dia a jantar o bispo!
+
+--Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por quem é! mais um bocadinho
+de cabedella, faça favor! Essas côdeasinhas de pão ensopadas no môlho!
+Isso! isso! Que tal, hein?--E com um aspecto modesto:--Não é lá por
+dizer, mas a cabedella hoje sahiu-me boa!
+
+Estava com effeito, como disse o conego Dias, de tentar Santo Antonio no
+deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas
+alargadas, comiam devagar, fallando pouco. Como no dia seguinte era a
+festa da Senhora da Alegria, os sinos na capella, ao lado, repicavam; e
+o bom sol do meio-dia dava tons muito alegres á louça, ás bojudas
+canecas azues com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates,
+ás frescas malgas de azeitonas pretas--emquanto o bom abbade, d'olho
+arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do
+peito do capão recheado.
+
+As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camelias
+vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das
+macieiras um pedaço muito vivo de céo azul-ferrete. Uma nora chiava ao
+longe, lavadeiras batiam a roupa.
+
+Sobre a commoda, entre _in-folios_, na sua peanha um Christo perfilava
+tristemente contra a parede o seu corpo amarello, coberto de chagas
+escarlates: e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de vidro,
+lembravam legendas mais dôces de religião amavel: o bom gigante S.
+Christovão atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz
+saltar o mundo sobre a sua mãosinha como uma pella; o dôce pastor S.
+Joãosinho coberto com uma pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos,
+não com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na
+sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do céo!
+Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o patriarcha S. José
+apoiava-se ao seu cajado onde florescem lirios brancos; o cavallo
+empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre d'um dragão surprehendido; e
+o bom Santo Antonio, á beira d'um regato, sorria, fallando a um tubarão.
+O _tlim-tlim_ dos copos, o ruido das facas animavam a velha sala de
+tecto de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E Libaninho
+devorava, dizendo pilherias:
+
+--Gertrudinhas, flôr do caniço, passa-me as vagens. Não me olhes assim,
+magana, que me fazes revolver os intestinos!
+
+--O diabo é o homem! dizia a velha. Olha p'r'ó que lhe deu! Fallasse-me
+aqui ha trinta annos, seu perdido!
+
+--Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto
+coisas pela espinha acima!
+
+Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam
+vazias: e o padre Brito desabotoára a batina, deixando vêr a sua grossa
+camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fabrica, feita de linha azul,
+era uma cruz sobre um coração.
+
+Um pobre então viera á porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e
+emquanto Gertrudes lhe mettia no alforge metade d'uma brôa, os padres
+fallaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguezias.
+
+--Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abbade. Ó Dias,
+mais este bocadinho da aza?
+
+--Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre
+Natario.--Em muitas fazendas sabia elle que havia falta de jornaleiros,
+e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos
+pelas portas.--Sucia de mariolas! resumiu.
+
+--Deixe lá, padre Natario, deixe lá! disse o abbade. Olhe que ha pobreza
+devéras. Por aqui ha familias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem
+no chão como porcos e não comem senão hervas.
+
+--Então que diabo querias tu que elles comessem? exclamou o conego Dias
+lambendo os dedos depois de ter esburgado a aza do capão. Querias que
+comessem perú? Cada um como quem é!
+
+O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estomago, e
+disse com affecto:
+
+--A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
+
+--Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso, se houvesse só
+pobresinhos isto era o reininho dos céos!
+
+O padre Amaro considerou com gravidade:
+
+--É bom que haja quem tenha cabedaes para legados pios, edificações de
+capellas...
+
+--A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natario com
+auctoridade.
+
+O conego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
+
+--Para o esplendor do culto e propagação da fé.
+
+Mas a grande causa da miseria, dizia Natario com uma voz pedante, era a
+grande immoralidade.
+
+--Ah! lá isso não fallemos! exclamou o abbade com desgosto. N'este
+momento ha só aqui na freguezia mais de doze raparigas solteiras
+gravidas! Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, põem-se-me a
+fungar de riso!
+
+--Lá nos meus sitios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da
+azeitona, como ha falta de braços, vieram as _maltas_ trabalhar. Pois
+agora o verás! Que desafôro!--Contou a historia das _maltas_,
+trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam offerecendo os
+braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na miseria.--Era
+necessario andar sempre de cajado em cima d'elles!
+
+--Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o
+peccado que vai pelo mundo! Até se me estão a erriçar os cabellos!
+
+Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor! As mulheres casadas
+tinham perdido todo o escrupulo.
+
+--Peores que cabras, dizia o padre Natario alargando a fivela do
+collete.
+
+E o padre Brito fallou de um caso na freguezia de Amor: raparigas de
+dezeseis e dezoito annos que costumavam reunir-se n'um palheiro--o
+palheiro do Silverio--e passavam lá a noite com um bando de marmanjos!
+
+Então o padre Natario, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta,
+disse, repoltreando-se na cadeira e espaçando as palavras:
+
+--Eu não sei o que se passa lá na tua freguezia, Brito; mas se ha alguma
+coisa o exemplo vem de alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher do
+regedor...
+
+--É mentira! exclamou o Brito fazendo-se todo escarlate.
+
+--Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, reprehendendo-o com bondade.
+
+--É mentira! berrou elle.
+
+--E aqui para nós, meus ricos, disse o conego Dias baixando a voz, com o
+olhinho acceso n'uma malicia confidencial, sempre lhes digo que é uma
+mulher de mão cheia!
+
+--É mentira! clamou o Brito. E fallando de um jacto:--Quem anda a
+espalhar isso é o morgado da Cumiada, porque o regedor não votou com
+elle na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe os
+ossos!--Tinha os olhos injectados, brandia o punho:--Quebro-lhe os
+ossos!
+
+--O caso não é para tanto, homem, considerou Natario.
+
+--Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
+
+--Ai, socega, leãosinho! disse o Libaninho com ternura. Não te percas,
+filhinho!
+
+Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada, que era então
+opposição e que levava duzentos votos á urna, os padres fallaram de
+eleições e dos seus episodios. Todos alli, a não ser o padre Amaro,
+sabiam, como disse Natario, «cozinhar um deputadosinho». Vieram
+anecdotas; cada um celebrou as suas façanhas.
+
+O padre Natario na ultima eleição tinha arranjado oitenta votos!
+
+--Caspitè! disseram.
+
+--Imaginam vossês como? Com um milagre!
+
+--Com um milagre!? repetiram espantados.
+
+--Sim, senhores.
+
+Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera da eleição
+receberam-se na freguezia cartas vindas do céo e assignadas pela Virgem
+Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do inferno, voto
+para o candidato do governo. De chupeta, hein?
+
+--De mão cheia! disseram todos.
+
+Só Amaro parecia surprehendido.
+
+--Homem! disse o abbade com ingenuidade, d'isso é que eu cá precisava.
+Eu então tenho de andar ahi a estafar-me de porta em porta.--E sorrindo
+bondosamente:--Com o que se faz ainda alguma coisita é com o relaxe da
+congrua!
+
+--E com a confissão, disse o padre Natario. A coisa então vai pelas
+mulheres, mas vai segura! Da confissão tira-se grande partido.
+
+O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
+
+--Mas emfim a confissão é um acto muito sério, e servir assim para
+eleições...
+
+O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos
+excitados, soltou uma palavra imprudente:
+
+--Pois o senhor toma a confissão a sério?
+
+Houve uma grande surpreza.
+
+--Se tomo a confissão a serio!? gritou o padre Amaro recuando a cadeira,
+com os olhos arregalados.
+
+--Ora essa! exclamaram. Oh, Natario! Oh, menino!
+
+O padre Natario exaltado queria explicar, attenuar:
+
+--Escutem, creaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja
+uma brincadeira! Irra! Eu não sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer é
+que é um meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o
+rebanho para aqui ou para alli... E quando é para o serviço de Deus, é
+uma arma. Ahi está o que é--a absolvição é uma arma!
+
+--Uma arma! exclamaram.
+
+O abbade protestava, dizendo:
+
+-Oh, Natario! oh, filho! isso não!
+
+O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, «tinha já um tal terror que até
+lhe tremiam as pernas»!
+
+Natario irritou-se:
+
+--Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo facto
+de ser padre, porque o bispo lhe impoz tres vezes as mãos e porque lhe
+disse o _accipe_, tem missão directa de Deus,--é Deus mesmo para
+absolver?!
+
+--Decerto! exclamaram, decerto!
+
+E o conego Dias disse, meneando uma garfada de vagens:
+
+--_Quorum remiseris peccata, remittuntur eis._ É a fórmula. A fórmula é
+tudo, menino...
+
+--A confissão é a essencia mesma do sacerdocio, soltou o padre Amaro com
+gestos escolares, fulminando Natario. Leia Santo Ignacio! leia S.
+Thomaz!
+
+--Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando
+Amaro.--Anda-me com elle, amigo parocho! Salta-me no cachaço do impio!
+
+--Oh, senhores! berrou Natario furioso com a contradicção, o que eu
+quero é que me respondam a isto. E voltando-se para Amaro:--O senhor,
+por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão torrado, tomou o
+seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no
+confessionario, ás vezes preoccupado com negocios de familia ou com
+faltas de dinheiro, ou com dôres de cabeça ou com dôres de barriga,
+imagina o senhor que está alli como um Deus para absolver?
+
+O argumento surprehendeu.
+
+O conego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma
+solemnidade comica exclamou:
+
+--_Hereticus est!_ É hereje!
+
+--_Hereticus est!_ tambem eu digo, rosnou o padre Amaro.
+
+Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz dôce.
+
+--Não fallemos n'essas coisas, não fallemos n'essas coisas, disse logo
+prudentemente o abbade. Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a
+garrafinha do Porto!
+
+Natario, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:
+
+--Absolver é exercer a graça. A graça só é attributo de Deus: em nenhum
+auctor encontra que a graça seja transmissivel. Logo...
+
+--Ponho duas objecções... gritou Amaro com o dedo em riste, em attitude
+de polemica.
+
+--Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade afflicto. Deixem a
+sabbatina, que até nem lhes sabe o arrozinho!
+
+Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com
+as precauções classicas:
+
+--Mil oitocentos e quinze! dizia. D'isto não se bebe todos os dias.
+
+Para o saborear, depois de o fazer reluzir á luz na transparencia dos
+copos, repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; começaram as
+_saudes!_ A primeira foi ao abbade, que murmurava:--Muita honra... muita
+honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.
+
+--A sua santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o calix. Ao
+martyr!
+
+Todos beberam commovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hymno de
+Pio IX: o abbade, prudente, fêl-o calar por causa do hortelão que no
+quintal aparava o buxo.
+
+A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario tornára-se terno,
+fallava das suas sobrinhas, «as suas duas rosas», e citava Virgilio,
+molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para traz na
+cadeira, as mãos nos bolsos, olhava machinalmente as arvores do jardim,
+pensando vagamente em Amelia, nas suas fórmas: suspirou mesmo com um
+desejo d'ella--emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer os
+republicanos a _marmeleiro_.
+
+--Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou enthusiasmado o Libaninho.
+
+Mas Natario começára a discutir com o conego historia ecclesiastica: e,
+muito questionador, voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da
+Graça: affirmava que um assassino, um parricida poderia ser
+canonisado--se se tivesse revelado o estado de Graça! Divagava, com
+phrases d'escóla em que se lhe pegava a lingua. Citou santos que tinham
+sido escandalosos; outros que pela sua profissão deviam ter conhecido,
+praticado, amado o vicio. Exclamou com as mãos na cinta:
+
+--Santo Ignacio foi militar!
+
+--Militar!? gritou o Libaninho.--E erguendo-se correndo a Natario,
+lançando-lhe um braço ao pescoço com uma ternura pueril e
+avinhada:--Militar!? E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo
+Ignacio?
+
+Natario repelliu-o:
+
+--Deixa-me, homem! Era sargento de caçadores.
+
+Houve uma enorme risada.
+
+O Libaninho ficára extatico.
+
+--Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos n'um impeto beato. Meu
+rico Santo Ignacio! Bemdito e louvado seja elle por toda a eternidade!
+
+E então o abbade propôz que fossem tomar café para debaixo da parreira.
+
+Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando
+formidavelmente, com risadas espessas; só Amaro tinha a cabeça lucida,
+as pernas firmes--e sentia-se muito terno.
+
+--Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo o ultimo gole de café, o
+que está a calhar é um passeio à fazenda.
+
+--Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se com difficuldade. Vamos lá á
+fazenda do abbade!
+
+Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia
+estava muito azul, d'um sol tepido. A vereda seguia entre vallados
+erriçados de silvas; para além as terras lisas estendiam-se cobertas de
+rastolho; a espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua
+folhagem fina; para o horisonte arredondavam-se collinas cobertas da
+rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio; só ás vezes,
+ao longe, n'um caminho, um carro chiava. E n'aquella serenidade da
+paizagem e da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando um
+pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando e achando a vida
+boa.
+
+O conego Dias e o abbade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de
+Amaro, jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumiada.
+
+--Prudencia, collega Brito, prudencia, dizia Amaro chupando o cigarro.
+
+E o Brito, com passadas de carretão, rosnava:
+
+--Hei de comer-lhe os figados!
+
+O Libaninho atraz, só, cantarolava em falsete:
+
+
+--Passarinho trigueiro,
+Salta cá fóra...
+
+
+Adiante de todos ia o padre Natario: levava a capa no braço, arrastando
+pelo chão; a batina desabotoada por traz deixava vêr o forro immundo do
+collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias pretas de lã cheias
+de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.
+
+E no emtanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:
+
+--Eu só me contentava em agarrar n'um cajado e correr tudo! tudo!--E
+gesticulava com um gesto immenso que abrangia o mundo.
+
+
+--Tem as azas quebradas,
+Não póde agora...
+
+
+gania atraz o Libaninho.
+
+Mas pararam de repente: Natario adiante gritava com uma voz furiosa:
+
+--Seu burro, vossê não vê? Sua bêsta!
+
+Era á volta do atalho. Tropeçára com um velho que conduzia uma ovelha;
+ia cahindo; e ameaçava-o com o punho fechado n'uma raiva avinhada.
+
+--Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.
+
+--Sua bêsta! berrava Natario com os olhos chammejantes. Que o racho!
+
+O homem balbuciava, tinha tirado o chapéo; viam-se os seus cabellos
+brancos; parecia ser um antigo criado de lavoura envelhecido no
+trabalho; era talvez avô--e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se
+com as sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os
+senhores padres joviaes e excitados da vinhaça!
+
+
+Amaro não os quiz acompanhar até á fazenda. Ao fim da aldeia, no
+cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.
+
+--Olhe que é uma legoa á cidade, dizia o abbade. Eu mando-lhe apparelhar
+a egoa, collega.
+
+--Qual historia, abbade, a perninha é rija!--E, traçando alegremente a
+capa, partiu cantarolando o _Adeus_.
+
+Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido d'um muro
+de quinta coberto de musgos e erriçado no alto de luzidios fundos de
+garrafas. Quando Amaro chegou proximo ao portão de carros, baixo e
+pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande
+vacca malhada; Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vacca
+trotou balouçando a papeira--e Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao portão,
+que saudava, dizendo toda risonha:
+
+--Então está-me a espantar o gado, senhor parocho?
+
+--É a menina! Que milagre é este?
+
+Ella fez-se um pouco vermelha:
+
+--Vim á quinta com a D. Maria da Assumpção. Vim dar uma vista d'olhos á
+fazenda.
+
+Ao pé de Amelia uma rapariga acamava couves n'uma canastra.
+
+--Então esta é que é a quinta da D. Maria?
+
+E Amaro deu um passo para dentro do portão.
+
+Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra dôce, estendia-se
+até á casa que se entrevia no fundo, branquejando ao sol.
+
+--É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se tambem por aqui.
+Vá, Joanna, avia-te!
+
+A rapariga pôz a canastra á cabeça, deu as boas tardes, metteu pelo
+caminho de Sobros, batendo muito os quadris.
+
+--Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade... considerava o
+parocho.
+
+--Venha vêr a nossa fazenda! disse Amelia. É uma migalhinha de terra,
+mas para fazer uma idéa. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá
+baixo com a D. Maria, quer?
+
+--Valeu. Vamos lá á D. Maria, disse Amaro.
+
+Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de
+folhas sêccas, e, entre os troncos espaçados, moitas de hortensias
+pendiam abatidas, amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa,
+velha, de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes
+aboboras amadureciam ao sol, e no telhado, todo negro do inverno,
+esvoaçavam pombos. Por traz o laranjal formava uma massa de folhagens
+verde-escuras; uma nora chiava monotonamente.
+
+Um rapazito passou com um balde de lavagem.
+
+--Para onde foi a senhora, João? perguntou Amelia.
+
+--Foi p'r'ó olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada.
+
+O olival era longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não
+se podia ir lá sem tamancos.
+
+--Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar lá a D. Maria, hein?
+Vamos nós vêr a quinta... Por aqui, senhor parocho...
+
+Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam clematites. Amelia abriu
+uma porta verde; e por tres degraus de pedra desconjuntados desceram a
+uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de
+todo o anno; do outro lado, por entre os pilares de pedra que
+sustentavam a latada e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz,
+com tons amarellados, um grande campo de herva; os tectos baixos do
+curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e d'esse lado um
+fumosinho leve e branco perdia-se no ar muito azul.
+
+Amelia a cada momento parava, explicava a quinta:--Alli ia semear-se
+cevada; além havia de vêr o cebolinho, estava muito bonito...
+
+--Ah! a D. Maria da Assumpção traz isto muito bem tratado!
+
+Amaro ouvia-a fallar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz
+n'aquelle silencio dos campos parecia-lhe mais rica, mais dôce; o grande
+ar dava-lhe uma côr mais picante ás faces; o seu olhar rebrilhava. Para
+saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que
+elle entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.
+
+Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido d'um regueiro.
+Amelia riu muito do parocho, que tinha medo de sapos. Elle então
+exagerou os seus sustos. Ó menina Amelia, haveria viboras? E roçava-se
+por ella, afastando-se das hervas altas.
+
+--Vê aquelle vallado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra-se
+pela cancella, vê? Mas veja lá se está cansado! Que o senhor parece-me
+que não é grande caminhador... Ai, um sapo!
+
+Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro. Ella empurrou-o dôcemente, e
+com um riso calido:
+
+--Seu medroso! seu medroso!
+
+Estava toda contente, toda viva. Fallava na _sua fazenda_ com uma
+vaidadesinha satisfeita de entender da lavoura, de ser proprietaria.
+
+--A cancella está fechada, parece, disse Amaro.
+
+--Está? fez ella.--Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava
+fechada! Que pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as
+duas fortes hombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.
+
+--Foi o caseiro que levou a chave!
+
+Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a
+voz:--Antonio! Antonio!
+
+Ninguem respondeu.
+
+--Anda lá para o fundo da quinta! disse ella. Que sécca! Se o senhor
+parocho quizesse, aqui adiante póde-se passar. Ha uma abertura no
+vallado, chamam-lhe o _salto da cabra_. Póde a gente saltar para o outro
+lado.
+
+E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
+
+--Quando eu era pequena nunca passava pela cancella, saltava sempre por
+alli. E cada trambolhão quando o chão estava resvaladiço com a chuva!
+Era um vivo demonio, aqui onde me vê! Ninguém ha de dizer, senhor
+parocho, hein? Ai! vou-me a fazer velha!--E voltando-se para elle, com
+um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:--Não é verdade? Estou-me a
+fazer velha, hein?
+
+Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois
+do vinho do abbade, amollecia-o: e a figura d'ella, os seus hombros, os
+seus encontros davam-lhe um desejo continuo e intenso.
+
+--Aqui está o _salto da cabra_, disse Amelia parando.
+
+Era uma abertura estreita no vallado: a terra do outro lado, mais baixa,
+estava toda lamacenta. Via-se d'alli a fazenda da S. Joanneira: o campo
+plano estendia-se até um olival, com a herva fina muito estrellada de
+pequenos malmequeres brancos; uma vacca preta, de grandes malhas,
+pastava; e para além viam-se tectos aguçados de casaes onde voavam
+revoadas de pardaes.
+
+--E agora? perguntou Amaro.
+
+--Agora saltar, disse ella rindo.
+
+--Cá vai! exclamou elle.
+
+Traçou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas humidas--e
+immediatamente Amelia, debruçando-se, rindo muito, com grandes acenos de
+mãos:
+
+--E agora adeus, senhor parocho, que eu vou ter com a D. Maria. Ahi fica
+preso na fazenda. Para cima não póde o senhor pular, pela cancella não
+póde o senhor passar! É o senhor parocho que está preso...
+
+--Ó menina Amelia! ó menina Amelia!
+
+Ella cantarolava-lhe, escarnecendo:
+
+
+Fico sósinha á varanda
+Que o meu bem está na prisão!
+
+
+Aquellas maneirinhas excitavam o padre--e com os braços erguidos, a voz
+calida:
+
+--Salte, salte!
+
+Ella então fez voz de mimo:
+
+--Ai, tenho medinho! tenho medinho...
+
+--Salte, menina!
+
+--Lá vai! gritou ella bruscamente.
+
+Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou,
+firmou-se--e, sentindo entre os braços o corpo d'ella, apertou-a
+brutalmente e beijou-a com furor no pescoço.
+
+Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada, com a face em
+braza, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos tremulas, as
+pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:
+
+--Ameliasinha!
+
+Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do vallado.
+Amaro, com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou á
+cancella, Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com a chave.
+
+Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a
+parreira. Amelia adiante palrava com o caseiro; e atraz Amaro, de cabeça
+baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amelia parou, fazendo-se
+vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
+
+--Ó Antonio, disse, ensine o portão ao senhor parocho. Muito boas
+tardes, senhor parocho.
+
+E através das terras humidas correu para o fundo da quinta, para os
+lados do olival.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção ainda lá estava, sentada n'uma pedra,
+tagarellando com o tio Patricio; um bando de mulheres, com grandes
+varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
+
+--Que é isso, tonta? D'onde vens tu a correr, rapariga? Credo, que
+doida!
+
+--Vim a correr, disse **ella** toda vermelha, suffocada.
+
+Sentou-se ao pé da velha; e ficou immovel, com as mãos cahídas no
+regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos, os olhos fixos
+n'uma abstracção. Todo o seu sêr se abysmava n'uma só sensação:
+
+--Gosta de mim! Gosta de mim!
+
+
+Estava ha muito namorada do padre Amaro--e ás vezes, só, no seu quarto,
+desesperava-se por imaginar que elle não percebia nos seus olhos a
+confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela
+manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu
+sêr sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade de passaro.
+Depois via-o um pouco triste. Porquê? Não conhecia o seu passado; e,
+lembrada do frade d'Evora, pensou que elle se fizera padre por um
+desgosto d'amor. Idealisou-o então: suppunha-lhe uma natureza muito
+terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa e pallida se desprendia uma
+fascinação. Desejou tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada
+aos pés d'elle, no confessionario, vendo de perto os seus olhos negros,
+sentindo a sua voz suave fallar do paraiso! Gostava muito da frescura da
+sua boca; fazia-se pallida à idéa de o poder abraçar na sua longa batina
+preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto d'elle, beijava a
+travesseirinha, guardava os cabellos curtos que tinham ficado nos dentes
+do pente. As faces abrazavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.
+
+Se Amaro jantava fóra com o conego Dias estava todo o dia impertinente,
+ralhava com a _Ruça_, ás vezes mesmo dizia mal d'elle, «que era
+casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito». Quando elle
+fallava d'alguma nova confessada, amuava, com um ciume pueril. A sua
+antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia um vago
+amor physico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos
+demorados, o altar, o orgão, o missal, os santos, o céo, porque não os
+distinguia bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias da sua pessoa. Lia o
+seu livro de missa pensando n'elle como no seu Deus particular. E Amaro
+não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ella em cima o
+escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas passadas d'elle,
+abraçando o travesseiro, toda desfallecida de desejos, dando beijos no
+ar, onde se lhe representavam os labios do parocho!
+
+
+A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram para a cidade. Amelia
+adiante, calada, chibatava a sua burrinha, emquanto D. Maria da
+Assumpção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata.
+Ao passar junto á Sé tocou a Ave-Marias. E Amelia, rezando, não podia
+destacar os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas,
+decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em
+que o vira, ao repicar dos sinos, dar a benção dos degraus do altar-mór;
+e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a
+senhora baroneza de Via-Clara e a mulher do governador civil, tão
+orgulhosa, com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob os seus dedos
+erguidos, e achavam decerto tambem bonitos os seus olhos negros! E era
+elle que a tinha apertado nos braços, ao pé do vallado! Sentia ainda no
+pescoço a pressão calida dos seus beiços: uma paixão flammejou como uma
+chamma por todo o seu sêr: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos
+contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma n'uma
+devoção:
+
+--Ó Nossa Senhora das Dôres, minha madrinha, faze que elle goste de mim!
+
+No adro lageado conegos passeavam, conversando. A botica defronte já
+tinha luz, os bocaes reluziam; e por detraz da balança a figura do
+pharmaceutico Carlos, com o seu boné bordado a missanga, movia-se
+magestosamente.
+
+
+
+
+VIII
+
+
+O padre Amaro voltára para casa aterrado.
+
+--E agora? E agora? dizia elle encostado ao canto da janella, sentindo o
+coração encolhido.
+
+Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira! Não podia continuar
+alli, na mesma familiaridade, depois de ter tido «aquelle atrevimento
+com a pequena».
+
+Que ella não ficára muito indignada--apenas atordoada; contivera-a
+talvez o respeito ecclesiastico, a delicadeza para com o hospede, a
+attenção para com o amigo do conego. Mas podia contar á mãi, ao
+escrevente... Que escandalo! E via já o senhor chantre, traçando a perna
+e fitando-o,--que era a sua attitude de reprehensão--dizer-lhe com
+pompa:--«São esses desregramentos que deshonram o sacerdocio. Não se
+comportaria d'outro modo um Satyro no monte Olympo!»--Poderiam
+desterral-o outra vez para alguma freguezia da serra!... Que diria a
+senhora condessa de Ribamar?
+
+E depois, se persistisse em vêl-a na intimidade, ter constantemente
+presentes aquelles olhos negros, o sorriso calido que lhe fazia uma
+covinha no queixo, a curva d'aquelle peito--a sua paixão, crescendo
+surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, tornal-o-hia
+doido, «podia fazer alguma asneira»!
+
+Decidiu-se então a ir fallar ao conego Dias: a sua natureza fraca
+necessitava sempre receber forças d'uma razão, d'uma experiencia alheia:
+costumava consultar ordinariamente o conego que, pelo habito da
+disciplina ecclesiastica, elle julgava mais intelligente por ser seu
+superior na hierarchia; e não perdera, desde o seminario, a sua
+dependencia de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa e uma
+criada para ir viver só, necessitava o auxilio do conego, que conhecia
+Leiria como se a tivesse edificado.
+
+Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de azeite esmorecia com um
+murrão avermelhado. Os tições da brazeira, cobertos d'uma pulverisação
+de cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado n'uma cadeira de
+braços, com o capote pelos hombros, os pés embrulhados n'um cobertor,
+amodorrado no calor do lume, com o Breviario sobre os joelhos,
+dormitava. Na dobra do cobertor, a _Trigueira_ estirada dormitava como
+elle.
+
+Aos passos de Amaro o conego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
+
+--Ia adormecendo, hein!
+
+--É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que
+preguiça é essa?
+
+--Ah! é vossê? disse o conego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de
+casa do abbade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é
+feito?
+
+--Vim por aqui.
+
+--Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella estava de mão cheia!
+Eu carreguei-me um bocado, disse o conego rufando com os dedos na capa
+do Breviario.
+
+Amaro, sentado ao pé d'elle, remexia devagar o brazido:
+
+--Sabe vossê, padre-mestre? disse elle de repente. Ia
+acrescentar:--Aconteceu-me um caso!--Mas reteve-se, murmurou:--Estou
+hoje exquisito; tenho andado ultimamente fóra dos eixos...
+
+-Vossê com effeito anda amarello, disse o conego, considerando-o.
+Purgue-se, homem!
+
+Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
+
+--Sabe? estou com idéa de mudar de casa.
+
+O conego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos somnolentos:
+
+--Mudar de casa! Ora essa! Porquê?
+
+O padre Amaro chegou a cadeira para elle, e fallando baixo:
+
+--Vossê percebe... Tenho estado a pensar, é assim exquisito estar em
+casa de duas mulheres, com uma rapariga...
+
+--Ora, historias! Que me vem vossê contar? Vossê é hospede... Deixe-se
+d'isso, homem! É como quem está na hospedaria.
+
+--Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...
+
+E suspirou; desejava que o conego o interrogasse, facilitasse as
+confidencias.
+
+--Então só hoje é que pensa n'isso, Amaro?!
+
+--É verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto. Tenho minhas razões.--Ia
+a dizer:--Fiz uma tolice,--mas acanhou-se.
+
+O conego olhou para elle um momento:
+
+--Homem, seja franco!
+
+--Sou.
+
+--Vossê acha aquillo caro?
+
+--Não! disse o outro com uma negação impaciente.
+
+--Bem, então é outra coisa...
+
+--É. Vossê que quer?--E n'um tom magano, com que julgou agradar ao
+conego:--A gente tambem gosta do que é bom...
+
+--Bem, bem, disse o conego rindo, percebo. Vossê, como eu sou amigo da
+casa, quer-me dizer por bons modos que tem nojo de tudo aquillo!
+
+--Tolice! disse Amaro erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.
+
+--Oh, homem! exclamou o conego abrindo os braços. Vossê quer sahir da
+casa? Por alguma é! Ora a mim parece-me que melhor...
+
+--É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela
+sala. Mas estou com esta ferrada! Veja vossê se me arranja uma casita
+barata com alguma mobilia... Vossê entende melhor d'essas coisas...
+
+O conego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o
+queixo.
+
+--Uma casita barata... rosnou por fim. Eu verei, eu verei... Talvez.
+
+--Vossê comprehende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao conego. A
+casa da S. Joanneira...
+
+Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e depois de conversarem
+sobre o jantar do abbade, o catarrho da pobre D. Maria da Assumpção, a
+doença de figado que ia minando o engraçado conego Sanches--Amaro sahiu,
+quasi contente agora de se não «ter desabotoado com o padre-mestre».
+
+O conego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquella resolução d'Amaro
+de deixar a casa da S. Joanneira era bem vinda; quando elle o trouxera
+d'hospede para a rua da Misericordia, combinára com a S. Joanneira
+diminuir-lhe a mezada que havia annos lhe dava, regularmente, no dia 30.
+Mas arrependeu-se logo; a S. Joanneira, se não tinha hospede, dormia só
+no primeiro andar: o conego podia então saborear livremente os carinhos
+da sua velhota,--e Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este
+«conchêgosinho». Quando veio o padre Amaro, a S. Joanneira cedeu-lhe o
+quarto e dormia n'uma cama de ferro ao pé da filha: e o conego então
+reconheceu, como elle disse, desconsolado--«que aquelle arranjo tinha
+estragado tudo». Para gozar as doçuras da sésta com a sua S. Joanneira
+era necessario que Amelia jantasse fóra, que a _Ruça_ estivesse na
+fonte, outras combinações importunas; e elle, conego do cabido, na
+egoista velhice, quando precisava ter recato com a sua saude, via-se
+obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e
+hygienicos as difficuldades d'um collegial que ama a senhora professora.
+Ora se Amaro sahisse, a S. Joanneira descia ao seu quarto, no primeiro
+andar; vinham as antigas commodidades, as tranquillas séstas. É verdade
+que tinha de dar a antiga mezada... Daria a mezada!
+
+--Que diabo! ao menos está um homem á sua vontade, resumiu elle.
+
+--Que está para ahi o mano a fallar só? perguntou a snr.^a D. Josepha
+despertando do quebranto em que ia cahindo, ao pé do lume.
+
+--Estava cá a malucar como hei de castigar a carne na quaresma...--disse
+o conego com um riso grosso.
+
+
+A essa hora a _Ruça_ chamava o padre Amaro para o chá: e elle subia
+devagar, com o coração pequenino, receando encontrar a S. Joanneira
+muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amelia--que
+tendo-lhe sentido os passos na escada tomára rapidamente a costura e,
+com a cabeça muito baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço
+que abainhava para o conego.
+
+--Muito boa noite, menina Amelia.
+
+--Muito boa noite, senhor parocho.
+
+Amelia costumava sempre ter um _olá!_ ou um _ora viva!_ muito amavel;
+aquella seccura aterrou-o; disse-lhe logo muito perturbado:
+
+--Menina Amelia, eu peço-lhe que me perdôe... Foi um atrevimento... Eu
+nem soube o que fiz... Mas acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui.
+Até já pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...
+
+Fallava com o rosto baixo--e não via Amelia erguer os olhos para elle,
+surprehendida e toda desconsolada.
+
+N'este momento a S. Joanneira entrou, e logo da porta, abrindo os
+braços:
+
+--Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o senhor padre Natario: grande
+jantar! Conte lá, conte lá!
+
+Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do Libaninho, a discussão
+theologica; depois fallaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter
+atrevido a dizer á S. Joanneira que ia deixar a casa,--o que era,
+coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dia!
+
+Na manhã seguinte o conego foi a casa d'Amaro, pela manhã, antes d'ir ao
+côro. O parocho fazia a barba á janella:
+
+--Ólá, padre-mestre! Que ha de novo?
+
+--Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Ha
+uma casita lá para os meus lados, que é um achado. Era do major Nunes,
+que vai mudado para o 5.
+
+Aquella precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando
+desconsoladamente o fio á navalha:
+
+--Tem mobilia?
+
+--Tem mobilia, tem louças, tem roupas, tem tudo.
+
+--Então...
+
+--Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, vossê tem
+razão. Estive a pensar no caso... É melhor para vossê viver só. De modo
+que vista-se, e vamos vêr a casita.
+
+Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
+
+A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito velha, com a madeira
+carunchosa: a mobilia, como disse o conego, «podia passar a veteranos»;
+algumas lithographias desbotadas pendiam lugubremente de grandes prégos
+negros; e o immundo major Nunes deixára os vidros quebrados, os soalhos
+todos escarrados, as paredes riscadas de phosphoros, e até sobre um
+poial da janella duas piugas quasi negras.
+
+Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manhã o conego ajustou-lhe uma
+criada, a snr.^a Maria Vicencia, pessoa muito devota, alta e magra como
+um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o
+conego Dias) era a propria irmã da famosa Dionysia!
+
+A Dionysia fôra outr'ora a _Dama das Camelias_, a Ninon de Lenclos, a
+Manon de Leiria: gozára a honra de ser concubina de dois governadores
+civis e do terrivel morgado da Sertejeira; e as paixões phreneticas que
+inspirára tinham sido para quasi todas as mães de familia de Leiria
+causa de lagrimas e de fanicos. Agora engommava para fóra,
+encarregava-se de empenhar objectos, entendia muito de partos, protegia
+«o rico adulteriosinho» segundo a singular expressão do velho D. Luiz da
+Barrosa cognominado o _infame_, fornecia lavradeirinhas aos senhores
+empregados publicos, sabia toda a historia amorosa do districto. E
+via-se sempre na rua a Dionysia com o seu chale de xadrez traçado, o
+pesado seio tremendo dentro d'um chambre sujo, o passinho discreto e os
+antigos sorrisos--mas a que faltavam já os dois dentes de diante.
+
+O conego logo n'essa tarde deu parte á S. Joanneira da resolução
+d'Amaro. Foi um grande espanto para a excellente senhora! Queixou-se,
+com amargura, da ingratidão do senhor parocho.
+
+O conego tossiu grosso e disse:
+
+--Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo porquê: é
+que este arranjo de quarto em cima, etc., está-me a arrazar a saude.
+
+Deu outras razões de prudencia hygienica e acrescentou, passando-lhe com
+bondade os dedos pelo pescoço:
+
+--E o que é perder a conveniencia, não se afflija a senhora! Eu darei
+p'r'á panella como d'antes; e como a colheita foi boa porei mais meia
+moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca,
+Augustinha, sua bréjeira! E ouça, hoje como-lhe cá as sopas.
+
+Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua roupa. Mas a cada momento
+parava, dava um _ai_ triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama
+fôfa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita
+onde elle lia o Breviario, ouvindo, por cima, cantarolar Amelia.
+
+--Nunca mais! pensava. Nunca mais!
+
+Adeus as boas manhãs passadas ao pé d'ella, vendo-a costurar! Adeus as
+alegres sobremesas, que se prolongavam á luz do candieiro! Adeus os
+chás, ao pé da brazeira, quando o vento uivava fóra e cantavam as frias
+goteiras! Tudo tinha acabado!
+
+A S. Joanneira e o conego appareceram então á porta do quarto. O conego
+resplandecia; e a S. Joanneira disse, muito magoada:
+
+--Já sei, já sei, seu ingrato!
+
+--É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os hombros tristemente.
+Mas ha razões... Eu sinto...
+
+--Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira, não se offenda com o que
+lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho...--E levou o lenço aos
+olhos.
+
+--Tolices! exclamou o conego. Pois então elle não póde vir aqui em
+amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?... O homem
+não vai para o Brazil, senhora!
+
+--Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era
+tel-o de portas a dentro!
+
+Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor...
+Fez-lhe então grandes recommendações sobre a lavadeira, que mandasse
+buscar o que quizesse, louças, lençoes...
+
+--E veja lá não lhe esqueça alguma coisa, senhor parocho!
+
+--Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado...
+
+E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho desesperava-se agora
+contra a resolução que tomára. A pequena evidentemente não tinha aberto
+bico! Para que sahiria então d'aquella casa tão barata, tão confortavel,
+tão amiga? E odiava o conego pelo seu zelo tão precipitado.
+
+O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar a sua pallidez,
+queixava-se de dôres na cabeça. Ao café o conego quiz a sua «dóse de
+musica»; e Amelia, ou machinalmente ou com intenção, disse a canção
+querida:
+
+
+Ai! adeos! acabaram-se os dias
+Que ditoso vivi a teu lado!
+Sôa a hora, o momento fadado,
+É forçoso deixar-te e partir!
+
+
+Então, áquella chorosa melodia repassada das tristezas da separação,
+Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir
+encostar o rosto á vidraça, esconder as duas lagrimas que
+irreprimivelmente lhe saltavam das palpebras. Os dedos d'Amelia
+embrulhavam-se tambem no teclado; até a mesma S. Joanneira disse:
+
+--Oh filha, toca outra coisa, credo!
+
+Mas o conego erguendo-se pesadamente:
+
+--Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou comsigo até a
+rua das Sousas...
+
+Amaro então quiz dizer adeus á idiota; mas, depois d'um forte accesso de
+tosse, a velha dormia, muito fraca.
+
+--Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando a mão á S.
+Joanneira:--Muito obrigado por tudo, minha senhora, acredite...
+
+Calou-se, com um soluço na garganta.
+
+A S. Joanneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.
+
+--Oh, senhora! disse o conego rindo-se, já ha bocado lhe disse, o homem
+não vai p'r'ás Indias!
+
+--A gente é pela amizade que lhes ganha... choramingou a S. Joanneira.
+
+Amaro tentou gracejar. Amelia, muito branca, mordia o beicinho.
+
+Emfim Amaro desceu: e o João Ruço que na sua chegada a Leiria lhe
+trouxera o bahú para a rua da Misericordia, muito bebedo, cantarolando o
+_Bemdito_,--levava-lh'o agora para a rua das Sousas, bebedo tambem, mas
+trauteando o _Rei-chegou_.
+
+
+Quando Amaro, n'essa noite, se viu só n'aquella casa tristonha, sentiu
+uma melancolia tão pungente e um tedio tão negro da vida, que, com a sua
+natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar alli a
+morrer!
+
+Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de
+ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho
+com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatorio, a bacia e
+o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janella;
+tudo alli cheirava a môfo; e fóra, na rua negra, cahia sem cessar a
+chuva triste. Que existencia! E seria sempre assim!...
+
+Desesperou-se então contra Amelia: accusou-a, com o punho fechado, das
+commodidades que perdera, da falta de mobilia, da despeza que ia ter, da
+solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo ao
+seu quarto e dizer-lhe: «Senhor padre Amaro, para que sae de casa? Eu
+não estou zangada!» Porque emfim quem irritára o seu desejo? Ella, com
+as suas maneirinhas ternas, os seus olhinhos adocicados! Mas não,
+deixára-o emmalar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo
+tocar com estrondo a valsa do _Beijo_!
+
+Jurou então não voltar a casa da S. Joanneira. E, a grandes passadas
+pelo quarto, pensara no que havia de fazer para humilhar Amelia. O quê?
+Desprezal-a como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade devota de
+Leiria, ser muito do senhor chantre; afastar da rua da Misericordia o
+conego e as Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se
+afastassem d'ella, com seccura, no altar-mór, á missa do domingo; dar a
+entender que a mãi era uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E
+na Sé, ao sahir da missa, regalar-se de a vêr passar encolhida no seu
+mantelete preto, escorraçada de todos, emquanto elle, á porta, de
+proposito, conversaria com a mulher do senhor governador civil e seria
+galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois prégaria um grande
+sermão, na quaresma, e ella ouviria dizer, na arcada, nas lojas: «Grande
+homem, o padre Amaro!» Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria e, protegido
+pela senhora condessa de Ribamar, subiria nas dignidades ecclesiasticas:
+e o que pensaria ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido e
+interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos
+incensadores, ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado e
+penitente, sob os roucos cantos do orgão? E ella o que seria então? Uma
+magra creatura murcha, embrulhada n'um chale barato! E o snr. João
+Eduardo, o escolhido d'agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal
+pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado
+sobre o seu papel almasso, imperceptivel na terra, adulando alto e
+invejando baixo! E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que sobe
+até ao céo, estaria já muito para cima dos homens, na zona de luz que
+faz a face de Deus-Padre!--E seria par do reino, e os padres da sua
+diocese tremeriam de o vêr franzir a testa!
+
+Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
+
+Que faria ella áquella hora? pensava. Costurava decerto, na sala de
+jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam--ella roçava-lhe
+talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu pé, o
+bocadinho da meia que vira quando ella saltava as lamas na quinta; e
+essa curiosidade inflammada subia pela curva da perna até ao seio,
+percorrendo bellezas que suspeitava... O que elle gostava d'aquella
+maldita! E era impossivel obtel-a! E todo o homem feio e estupido podia
+ir á rua da Misericordia pedil-a á mãi, vir á Sé dizer-lhe: «Senhor
+parocho, case-me com esta mulher», e beijar, sob a protecção da Igreja e
+do Estado, aquelles braços e aquelle peito! Elle não. Era padre! Fôra
+aquella infernal pêga da marqueza d'Alegros!...
+
+Abominava então todo o mundo secular--por lhe ter perdido para sempre os
+privilegios: e, como o sacerdocio o excluia da participação nos prazeres
+humanos e sociaes, refugiava-se, em compensação, na idéa da
+superioridade espiritual que elle lhe dava sobre os homens. Aquelle
+miseravel escrevente podia casar e possuir a rapariga--mas que era elle
+em comparação d'um parocho a quem Deus conferira o poder supremo de
+distribuir o céo e o inferno?...--E repastava-se d'este sentimento,
+enchendo o espirito d'orgulhos sacerdotaes. Mas vinha-lhe bem depressa a
+desconsoladora idéa que esse dominio só era valido na região abstracta
+das almas; nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes, em plena
+sociedade. Era um Deus dentro da Sé--mas, apenas sahia para o largo, era
+apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a acção
+sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre almas de beatas... E era
+isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do
+poder ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo,
+a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a auctoridade dos
+tempos em que a Igreja era a nação e o parocho dono temporal do rebanho.
+Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico d'abrir ou fechar as
+portas do céo? O que elle queria era o velho direito d'abrir ou fechar a
+porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amelias
+tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da
+antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denuncia e dos terrores que
+inspira o carrasco, e alli n'aquella villa, sob a jurisdicção da sua Sé,
+fazer estremecer, á idéa de castigos torturantes, aquelles que
+aspirassem a realisar felicidades--que lhe eram a elle interdictas: e
+pensando em João Eduardo e em Amelia, lamentava não poder accender as
+fogueiras da Inquisição!--Assim aquelle inoffensivo moço tinha durante
+horas, sob a excitação colerica d'uma paixão contrariada, ambições
+grandiosas de tyrannia catholica:--porque todo o padre, o mais boçal,
+tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus
+lances de renunciamento mystico ou nas suas ambições de dominação
+universal: todo o sub-diacono se julga uma hora capaz de ser santo ou de
+ser Papa: não ha seminarista que não tenha, durante um instante,
+aspirado com ternura á caverna no deserto em que S. Jeronymo, olhando o
+céo estrellado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça como um
+abundante rio de leite: e o abbade pansudo que á tardinha, á varanda,
+palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz
+dentro em si os indistinctos restos d'um Torquemada.
+
+
+A vida d'Amaro tornou-se monotona. Março ia muito molhado, muito frio;
+e, depois do serviço na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas
+enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Ás tres horas jantava; e
+nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma
+saudade pungente, do jantarinho na rua da Misericordia, quando Amelia,
+com o seu collar muito branco, lhe passava a sopa de grãos de bico,
+sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicencia servia, têsa e enorme, com
+o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em
+quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruido. Era muito
+suja: as facas tinham o cabo humido da agua gordurosa das lavagens.
+Amaro, desgostoso e indifferente, não se queixava; comia mal, á pressa;
+mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado á mesa, quebrando
+a cinza do cigarro na borda do prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo
+os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala
+desabrigada.
+
+Ás vezes o coadjutor, que nunca o visitára na rua da Misericordia,
+apparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava
+calado, com o seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar
+ao parocho, repetia, invariavelmente:
+
+--Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.
+
+--Está claro... rosnava Amaro.
+
+Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S.
+Joanneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar
+os escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por servilismo, tinha
+sorrisos mudos, repassados de perfidia.
+
+--Alli ha pôdres, hein? dizia o parocho.
+
+O outro encolhia os hombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das
+orelhas, n'uma expressão de malicia; mas não pronunciava um som,
+receando que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o senhor
+conego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, phrases molles: um
+baptisado que havia; o que dissera o conego Campos; um frontal do altar
+que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava Amaro: sentia-se
+muito pouco padre, muito distante da panellinha ecclesiastica: não o
+interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão commentadas
+do senhor chantre, os roubos da Misericordia, as turras da camara
+ecclesiastica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal
+informado, nas palestras ecclesiasticas em que tão femininamente se
+deleitam os padres, e que têm a puerilidade d'uma caturrice e a
+tortuosidade d'uma conspiração.
+
+--O vento está sul? perguntava elle emfim, bocejando.
+
+--Sempre! respondia o coadjutor.
+
+Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guardachuva, e sahia
+com um olhar de revez á Vicencia.
+
+Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava só. Procurava lêr,
+mas os livros enfastiavam-n'o: deshabituado da leitura não comprehendia
+«o sentido». Ia olhar á vidraça: a noite estava tenebrosa, o lagedo
+reluzia vagamente. Quando acabaria aquella vida? Accendia o cigarro, e
+do lavatorio para a janella recomeçava os seus passeios, com as mãos
+atraz das costas. Deitava-se sem rezar ás vezes: e não tinha escrupulos:
+julgava que ter renunciado a Amelia era já uma penitencia, não
+necessitava cansar-se a lêr orações no livro; celebrára o «seu
+sacrificio»--sentia-se vagamente quite com o céo!
+
+E continuava a viver só: o conego nunca vinha á rua das Sousas, «porque,
+dizia, era casa que só o entrar n'ella até se lhe agoniava o estomago».
+E Amaro, cada dia mais amuado, não voltára a casa da S. Joanneira.
+Escandalisára-se muito que ella não lhe tivesse mandado pedir para ir ás
+partidas da sexta-feira; attribuira «a desfeita» á hostilidade d'Amelia;
+e, mesmo para a não vêr, trocára com o padre Silveira a missa do
+meio-dia onde ella costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com
+aquelle novo sacrificio!
+
+
+Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação
+tão forte no coração que ficava como suffocada um momento. Depois os
+botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia os passos
+fôfos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira,
+cerrando os olhos, como na fadiga d'uma desesperança repetida. Esperava
+o padre Amaro; e ás vezes, pelas dez horas, quando já não era possível
+que elle viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe entumecia
+a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
+
+--Vou-me deitar, estou com umas dôres de cabeça que não paro!
+
+Atirava-se para a cama de bruços, murmurava n'uma agonia:
+
+--Oh Senhora das Dôres, minha madrinha! porque não vem elle, porque não
+vem elle?
+
+Nos primeiros dias, apenas elle se fôra embora, toda a casa lhe pareceu
+deshabitada e lugubre! Quando vira no quarto d'elle os cabides sem a sua
+roupa, a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a
+travesseirinha onde elle dormia, apertou ao peito com delirio a ultima
+toalha a que elle limpára as mãos! Tinha constantemente o seu rosto
+presente, elle entrava sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu
+amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
+
+Uma tarde, que fôra visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao
+chegar á ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de
+cuia á banda e _garibaldi_ escarlate, que, de punho no ar, já rouca,
+praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e
+lorpa coberta de pennugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os
+hombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:
+
+--Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
+
+O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parára a olhar, descontente
+d'aquella «falta d'ordem publica».
+
+--Algum barulho? perguntou-lhe Amelia.
+
+--Olá, menina Amelia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou-lhe um
+rato morto á cara, e a mulher está a fazer aquelle espalhafato. Bebedas!
+
+Mas a rapariga de _garibaldi_ vermelha voltára-se--e Amelia aterrada
+reconheceu a Joanninha Gomes, sua amiga da mestra, que fôra amante do
+padre Abilio! O padre fôra suspenso, deixára-a; ella partira para
+Pombal, depois para o Porto; de miseria em miseria voltára a Leiria, e
+ahi vivia n'alguma viella ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo
+um regimento!--Que exemplo, santo Deus, que exemplo!
+
+E tambem ella gostava d'um padre! Tambem ella, como outr'ora a
+Joanninha, chorava sobre a sua costura quando o senhor padre Amaro não
+vinha! Onde a levava aquella paixão? Á sorte da Joanninha! A ser a
+_amiga do parocho_! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada,
+mais tarde abandonada por elle, com um filho nas entranhas, sem um
+pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa n'um momento um
+céo ennevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha
+varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e morbidas em que ella se ia
+perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro: lembrou-se
+mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo para se refugiar n'um
+dever dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por elle;
+começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
+
+Mas pouco a pouco a _idéa má_ que, atacada, se encolhera e se fingira
+morta,--principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De
+dia, de noite, costurando e rezando, a idéa do padre Amaro, os seus
+olhos, a sua voz appareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto
+crescente. Que faria elle? porque não vinha? gostava d'outra? Tinha
+ciumes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquella paixão
+ia-a envolvendo como uma atmosphera d'onde não podia sahir, que a seguia
+se ella fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções honestas
+resequiam-se, morriam como debeis florinhas n'aquelle fogo que a
+percorria. Se ás vezes a lembrança de Joanninha ainda voltava,
+repellia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as razões
+insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma
+idéa:--atirar-lhe os braços ao pescoço e beijal-o... oh! beijal-o!
+Depois, se fosse necessario, morrer!
+
+Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o
+«palerma».
+
+--Que massada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, á noite.
+
+Não o supportava com os seus olhos voltados sempre para ella, a sua
+quinzena preta, as suas monotonas conversas sobre o governo civil.
+
+E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lubricos; de
+dia vivia n'uma inquietação de ciumes, com melancolias lugubres, que a
+tornavam, como dizia a mãi, «uma môna, que até enraivece»!
+
+O genio azedava-se-lhe.
+
+--Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãi.
+
+--Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
+
+Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite. E emfim uma manhã
+ficou de cama com febre. A mãi, assustada, chamou o doutor Gouvêa. O
+velho pratico, depois de vêr Amelia, veio à sala de jantar sorvendo com
+satisfação a sua pitada.
+
+--Então, senhor doutor? disse a S. Joanneira.
+
+--Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me esta rapariga. Tenho-lh'o
+dito tantas vezes, creatura!
+
+--Mas, senhor doutor...
+
+--Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a por uma vez! repetia elle
+pelas escadas, arrastando um pouco a perna direita que um rheumatismo
+teimoso encolhia.
+
+Amelia emfim melhorou--com grande alegria de João Eduardo, que emquanto
+ella estivera doente vivera n'uma afflicção, lamentando não poder ser
+seu enfermeiro, e derramando ás vezes no cartorio uma lagrima triste
+sobre os papeis sellados do severo Nunes Ferral.
+
+
+No domingo seguinte, á missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para
+o altar, entre as devotas que se arredavam viu de relance Amelia ao pé
+da mãi, com o seu vestido de sêda preta de largos folhos. Cerrou um
+momento os olhos; e mal podia sustentar o calix com as mãos tremulas.
+
+Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o
+missal, se persignou e se voltou para a igreja dizendo _Dominus
+vobiscum_--a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia «que o
+senhor parocho estava tão amarello, que devia ter alguma dôr». Amelia
+não respondeu, curvada sobre o livro, com todo o sangue nas faces. E
+durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada
+n'um extase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a
+hostia, a sua cabeça bem feita curvando-se na adoração ritual; uma
+doçura corria-lhe na pelle quando a voz d'elle, apressada, dizia mais
+alto algum latim: e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a
+direita estendida, disse para a igreja o _Benedicat vos_, ella, com os
+olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se
+elle fosse o proprio Deus a cuja benção as cabeças se curvavam ao
+comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus
+varapaus pasmavam para os dourados do sacrario.
+
+Á sahida da missa começára a chover; e Amelia e a mãi, á porta com
+outras senhoras, esperavam uma «aberta».
+
+--Ólá! por aqui!? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
+
+--Estamos á espera que passe a chuva, senhor parocho, disse a S.
+Joanneira voltando-se. E immediatamente, muito reprehensiva:--E porque
+não tem apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos nós?
+Credo, até dá que fallar...
+
+--Muito occupado, muito occupado... balbuciou o parocho.
+
+--Mas um bocadinho á noite. Olhe, póde crêr, tem-me causado desgosto...
+E todos têm reparado. Não, lá isso, senhor parocho, tem sido ingratidão!
+
+Amaro disse, córando:
+
+--Pois acabou-se. Hoje á noite lá appareço, e estão as pazes feitas ...
+
+Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para
+todos os pontos o céo carregado, como assustada do temporal.
+
+Amaro então offereceu-lhe o seu guardachuva. E emquanto a S. Joanneira o
+abria, apanhando com cuidado o vestido de sêda, Amelia disse ao parocho:
+
+--Até á noite, sim?--E mais baixo, olhando em redor, com medo:--Oh, vá!
+Tenho estado tão triste! tenho estado como doida! Vá, peço-lh'o eu!
+
+Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr de batina pelas
+ruas. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e alli ficou saturado
+de felicidade, como um pardal muito farto n'um raio de sol muito quente:
+recordava o rosto d'Amelia, a redondeza dos seus hombros, a belleza dos
+encontros, as palavras que lhe dissera:--_Tenho estado como doida!_ A
+certeza de que «a rapariga gostava d'elle» entrou-lhe então na alma com
+a violencia de uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos do
+seu sêr com um murmurio melodioso de felicidades agitadas. E passeava
+pelo quarto com passadas de covado, estendendo os braços, desejando a
+posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte
+do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal
+expresso que só o sustentasse a elle! Mal pôde jantar. Com que
+impaciencia desejava a noite! A tarde clareára; a cada momento tirava o
+seu «cebolão» de prata, indo olhar á janella, com irritação, a claridade
+do dia que se arrastava devagar no horisonte. Engraxou elle mesmo os
+seus sapatos, lustrou o cabello de banha. E antes de sahir rezou
+cuidadosamente o seu Breviario--porque, em presença d'aquelle amor
+adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos
+escandalisados o viessem perturbar: e não queria, com desleixos de
+devoção, _dar-lhes razão de queixa_.
+
+Ao entrar na rua d'Amelia o coração bateu-lhe tão forte que teve de
+parar, suffocado; e pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha
+Misericordia, que ha tantas semanas não ouvia.
+
+Que admiração quando elle appareceu na sala de jantar!
+
+--Ditosos olhos que o vêem! Pensavamos que tinha morrido! Grande
+milagre!...
+
+Estava a snr.^a D. Maria da Assumpção, as Gansosos. Arredaram as
+cadeiras com enthusiasmo para lhe dar logar, admiral-o.
+
+--Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!
+
+O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O snr.
+Arthur Couceiro improvisou-lhe um _fadinho_ á viola:
+
+
+Ora já cá temos o senhor parocho
+Nos chás da S. Joanneira.
+Isto já parece outra coisa,
+Volta a bella cavaqueira!
+
+
+Houve palmas. E a S. Joanneira, toda banhada de riso:
+
+--Ai, tem sido uma ingratidão d'elle!
+
+--Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o conego. Uma casmurrice, digo
+eu!
+
+Amelia não fallava, com as faces abrazadas, os olhos humidos pasmados
+para o padre Amaro--a quem tinham dado a poltrona do conego, e que se
+repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas
+pilherias com que contava os desleixos da Vicencia.
+
+João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho album.
+
+
+
+
+IX
+
+
+Assim recomeçou a intimidade de Amaro na rua da Misericordia. Jantava
+cedo, depois lia o seu Breviario; e apenas na igreja batiam as sete
+horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando
+rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos molles
+apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal avistava a janella da sala de
+jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da
+campainha sentia ás vezes um susto indefinido d'achar a mãi já
+desconfiada ou Amelia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre
+com o pé direito.
+
+Encontrava já as Gansosos, a D. Josepha Dias; e o conego, que jantava
+agora muito com a S. Joanneira, e que áquella hora, estirado na
+poltrona, findava a sua somneca, dizia-lhe bocejando:
+
+--Ora viva o menino bonito!
+
+Amaro ia sentar-se ao pé d'Amelia que costurava á mesa; o olhar
+penetrante que se trocavam era todos os dias como o mutuo juramento mudo
+que o seu amor crescera desde a vespera; e ás vezes mesmo, debaixo da
+mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a «cavaqueira». Eram
+sempre os mesmos interessesinhos, as questões que iam na Misericordia, o
+que dissera o senhor chantre, o conego Campos que despedira a criada, o
+que se rosnava da mulher do Novaes...
+
+--Mais amor do proximo! resmungava o conego mexendo-se na poltrona. E
+com um arrôto curto tornava a cerrar as palpebras.
+
+Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amelia
+immediatamente abria a mesinha para a partida de _manilha_: os parceiros
+eram a Gansoso, D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava mal, Amelia,
+que era _mestra_, sentava-se por detraz d'elle para o «guiar». Logo ás
+primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para
+Amelia, tão perto que confundiam os seus halitos.
+
+--Esta? perguntava, indicando a carta com o olho languido.
+
+--Não! não! espere, deixe vêr, dizia ella, vermelha.
+
+O seu braço roçava o hombro do parocho: Amaro sentia o cheiro da agua de
+colonia que ella usava com exagero.
+
+Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode,
+contemplava-a com paixão; Amelia, para se desembaraçar d'aquelles dois
+olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim «que até era
+indecente, diante do parocho que era de ceremonia, estar assim a cocal-a
+toda a noite».
+
+Ás vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
+
+--Ó snr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, senão têmol-a aqui
+têmol-a a dormir.
+
+E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joanneira, que, de lunetas na
+ponta do nariz, fazia somnolentamente a sua meia.
+
+Depois do chá Amelia sentava-se ao piano. Causava então enthusiasmo em
+Leiria uma velha canção mexicana, a _Chiquita_. Amaro achava-a _de
+appetite_; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos, apenas
+Amelia começava com muita languidez tropical:
+
+
+Quando sali de la Habana
+Valga-me Dios!...
+
+
+Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe, quando Amelia, com os dedos
+frouxos no teclado, o busto deitado para traz, rolando os olhos ternos,
+em movimentos dôces de cabeça, dizia toda voluptuosa, syllabando o
+hespanhol:
+
+
+Si á tua ventana llega
+Una paloma,
+Trata-la com cariño,
+Que es mi persona.
+
+
+E como a achava graciosa, creoula, quando ella gorgeava:
+
+
+Ay chiquita que si,
+Ay chiquita que no-o-o-o!
+
+
+Mas as velhas reclamavam-o para continuar a _manilha_, e elle ia
+sentar-se, cantarolando as ultimas notas, com o cigarro ao canto da
+boca, os olhos humidos de felicidade.
+
+Ás sextas-feiras era a grande partida. A snr.^a D. Maria da Assumpção
+apparecia sempre com o seu bello vestido de sêda preta: e como era rica
+e tinha parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor logar ao pé
+da mesa--que ella ia occupar, meneando pretenciosamente os quadris, com
+_ruge-ruges_ de sêda. Antes do chá a S. Joanneira levava-a sempre ao seu
+quarto, onde guardava para ella uma garrafa de geropiga velha: e alli as
+duas amigas tagarellavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas.
+Depois Arthur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tisico, cantava o
+_fado_ novo que compuzera, chamado o _Fado da Confissão_; eram quadras
+feitas para regalar aquella piedosa reunião de saias e de batinas:
+
+
+Na capellinha do amor,
+No fundo da sacristia,
+Ao senhor padre Cupido
+Confessei-me n'outro dia...
+
+
+Vinha depois a confissão de peccadinhos dôces, um acto de contrição de
+amor, uma penitencia terna:
+
+
+Seis beijinhos de manhã,
+De tarde um abraço só...
+E p'ra acalmar dôces chammas
+Jejuar a pão de ló.
+
+
+Aquella composição galante e devota fôra muito apreciada na sociedade
+ecclesiastica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e
+perguntára, referindo-se ao poeta:
+
+--Quem é o habil Anacreonte?
+
+E informado que era o escrevente da administração, fallou d'elle com
+tanto apreço á esposa do senhor governador civil, que Arthur obteve a
+gratificação de oito mil reis, que havia annos implorava.
+
+Áquellas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua ultima pilheria era
+furtar beijos á snr.^a D. Maria da Assumpção; a velha escandalisava-se
+muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez um olhar
+guloso. Depois o Libaninho desapparecia um momento, e entrava com uma
+saia d'Amelia vestida, uma touca da S. Joanneira, fingindo uma chamma
+lubrica por João Eduardo--que, entre as risadas agudas das velhas,
+recuava, muito escarlate. Brito e Natario vinham ás vezes: formava-se
+então um grande _quino_. Amaro e Amelia ficavam sempre juntos; e toda a
+noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente
+entorpecidos no mesmo desejo intenso.
+
+Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira mais apaixonado por Amelia.
+Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe
+dava aquelle amor--uns certos olhares d'ella, o arfar desejoso do seu
+peito, os contactos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se
+depressa, porque gostava de pensar n'ella, ás escuras, atabafado nos
+cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas
+successivas que ella lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e
+outra flôr, até que ficava como embriagado d'orgulho: era a rapariga
+mais bonita da cidade! e escolhera-o a elle, a elle padre, o eterno
+excluido dos sonhos femininos, o sêr melancollico e neutro que ronda
+como um sêr suspeito á beira do sentimento! Á sua paixão misturava-se
+então um reconhecimento por ella; e com as palpebras cerradas murmurava:
+
+--Tão boa, coitadinha, tão boa!
+
+
+Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciencias, Quanto tinha
+estado, durante tres horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a
+voluptuosidade que se exhalava de todos os seus movimentos,--ficava tão
+carregado de desejos que necessitava conter-se «para não fazer um
+disparate alli mesmo na sala, ao pé da mãi». Mas depois, em casa, só,
+torcia os braços de desespero: queria-a alli de repente, offerecendo-se
+ao seu desejo: fazia então combinações--escrever-lhe-hia, arranjariam
+uma casita discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma
+quinta! Mas todos aquelles meios lhe pareciam incompletos e perigosos,
+ao recordar o olho finorio da irmã do conego, as Gansosos tão
+mexeriqueiras! E diante d'aquellas difficuldades que se erguiam como as
+muralhas successivas d'uma cidadella, voltavam as antigas lamentações:
+não ser livre! não poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a á
+mãi, possuil-a sem peccado, commodamente! Porque o tinham feito padre?
+Fôra «a velha pêga» da marqueza de Alegros! Elle não abdicára
+voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido para o
+sacerdocio como um boi para o curral!
+
+Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas accusações mais
+longe, contra o Celibato e a Igreja: porque prohibia ella aos seus
+sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que
+até têm os animaes? Quem imagina que desde que um velho bispo
+diz--_serás casto_--a um homem novo e forte, o seu sangue vai
+subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina--_accedo_--dita a
+tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para
+sempre a rebellião formidavel do corpo? E quem inventou isso? Um
+concilio de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus claustros, da
+paz das suas escólas, mirrados como pergaminhos, inuteis como eunucos!
+Que sabiam elles da Natureza e das suas tentações? Que viessem alli
+duas, tres horas para o pé da Ameliasinha, e veriam, sob a sua capa de
+santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se illude e se
+evita, menos o amor! E se elle é fatal, porque impediram então que o
+padre o sinta, o realise com pureza e com dignidade? É melhor talvez que
+o vá procurar pelas viellas obscenas!--Porque a carne é fraca!
+
+A carne! Punha-se então a pensar nos tres inimigos da alma--Mundo, Diabo
+e Carne. E appareciam á sua imaginação em tres figuras vivas: uma mulher
+muito formosa; uma figura negra d'olho de braza e pé de cabra; e o
+_mundo_, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavallos, palacetes)--de
+que lhe parecia uma personificação sufficiente o senhor conde de
+Ribamar! Mas que mal tinham elles feito á sua alma? O diabo nunca o
+vira; a mulher formosa amava-o e era a unica consolação da sua
+existencia; e do mundo, do senhor conde, só recebera protecção,
+benevolencia, tocantes apertos de mão... E como poderia elle evitar as
+influencias da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos
+d'outr'ora, para os areaes do deserto e para a companhia das feras! Mas
+não lhe diziam os seus mestres no seminario que elle pertencia a uma
+Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção d'um serviço
+santo.--Não comprehendia, não comprehendia!
+
+Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A
+Biblia está cheia de nupcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus
+vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabeça
+coberta de faxas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro
+branco; os levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus;
+abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que
+leva os bem esposados; e as arcas de sandalo onde vão os thesouros do
+dote rangem, amarradas com cordas de purpura, sobre o dorso dos camêlos!
+Os martyres no circo casam-se n'um beijo, sob o bafo dos leões, ás
+acclamações da plebe! Jesus mesmo não vivêra sempre na sua santidade
+inhumana; era frio e abstracto nas ruas de Jerusalem, nos mercados do
+Bairro de David; mas lá tinha o seu logar de ternura e de abandono em
+Bethania, sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli, emquanto os magros
+nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram á parte, elle olha
+defronte os tectos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o
+disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os
+arvoredos de Gethesemani--e pousa a mão sobre os cabellos louros de
+Martha, que ama e fia a seus pés!
+
+O seu amor era pois uma infracção canonica, não um peccado da alma:
+podia desagradar ao senhor chantre, não a Deus: seria legitimo n'um
+sacerdocio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante:
+mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossivel que
+transportar a velha Sé para cima do monte do Castello.
+
+Encolhia então os hombros, escarnecendo toda aquella vaga argumentação
+interior. «Philosophia e palhada»! Estava doido pela rapariga,--era o
+positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma...
+E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o Papa faria o
+mesmo!
+
+Eram ás vezes tres horas da manhã, e ainda passeava no quarto, fallando
+só.
+
+
+Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela rua das Sousas,
+tinha visto na janella do parocho uma luz amortecida! Porque ultimamente
+João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomára o habito
+triste de andar até tarde pelas ruas.
+
+O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebêra a sympathia de
+Amelia pelo parocho. Mas conhecendo a sua educação e os habitos devotos
+da casa, attribuia aquellas attenções quasi humildes com Amaro ao
+respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilegios de
+confessor.
+
+Instinctivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fôra inimigo de
+padres! achava-os um «perigo para a civilisação e para a liberdade»;
+suppunha-os intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando sempre
+para restabelecer «as trevas da meia idade»; odiava a confissão que
+julgava uma arma terrivel contra a paz do lar; e tinha uma religião
+vaga--hostil ao culto, ás rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo
+Jesus poetico, revolucionario, amigo dos pobres, e «pelo sublime
+espirito de Deus que enche todo o Universo»! Só desde que amava Amelia é
+que ouvia missa, para agradar á S. Joanneira.
+
+E desejaria sobretudo apressar o casamento para tirar Amelia d'aquella
+sociedade de beatas e padres, receando ter mais tarde uma mulher que
+tremesse do inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se
+confessasse aos padres «que arrancam ás confessadas os segredos
+d'alcova»!
+
+Quando Amaro voltára a frequentar a rua da Misericordia, ficou
+contrariado. «Cá temos outra vez o marmanjo»! pensou. Mas que desgosto,
+quando reparou que Amelia tratava agora o parocho com uma familiaridade
+mais terna, que a presença d'elle lhe dava visivelmente uma animação
+singular, «e que havia uma especie de namoro»! Como ella se fazia
+vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com uma admiração babosa!
+Como arranjava sempre a ficar ao pé d'elle nas partidas de _quino_!
+
+Uma manhã, mais inquieto, veio á rua da Misericordia,--e emquanto a S.
+Joanneira tagarellava na cozinha, disse bruscamente a Amelia:
+
+--Menina Amelia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas
+maneiras com que trata o senhor padre Amaro.
+
+Ella ergueu os olhos muito espantados:
+
+--Que maneiras?! Ora essa! então como quer que o trate? É um amigo da
+casa, esteve aqui d'hospede...
+
+--Pois sim, pois sim...
+
+--Ah! mas socegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar ao pé
+do homem.
+
+João Eduardo, tranquillisado, raciocinou--que «não havia nada». Aquelles
+modos eram excessos de beaterio. Enthusiasmo pela padraria!
+
+Amelia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre
+considerára o escrevente um pouco tapado--e se elle percebêra, que
+fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do conego que era cortida em
+malicia! Por isso mal sentia Amaro na escada, d'ahi por diante, tomava
+uma attitude distrahida, muito artificial: mas, ai! apenas elle lhe
+fallava com a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos negros
+que lhe faziam correr estremeções nos nervos,--como uma ligeira camada
+de neve que se derrete a um sol muito forte a sua attitude fria
+desapparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão continua de paixão.
+Ás vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava
+alli; e ficava toda surprehendida quando ouvia a um canto da sala a sua
+voz melancolica.
+
+Ella sentia de resto que as amigas da mãi envolviam a sua «inclinação»
+pelo parocho n'uma approvação muda e affavel. Elle era, como dizia o
+conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas
+exhalava-se uma admiração por elle que fazia ao desenvolvimento da
+paixão d'Amelia uma atmosphera favoravel. D. Maria da Assumpção
+dizia-lhe ás vezes ao ouvido:
+
+--Olha para elle! É d'inspirar fervor. É a honra do clero. Não ha
+outro!...
+
+E todas ellas achavam João Eduardo «um presta-p'ra-nada»! Amelia então
+já não disfarçava a sua indifferença por elle: as chinelas que lhe
+andava a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto do trabalho, e já
+não vinha á janella vel-o passar para o cartorio.
+
+A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo--na alma,
+que, como elle dizia, lhe andava mais negra que a noite.
+
+--A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido. E á dôr da sua
+felicidade destruida juntava-se a afflicção pela honra d'ella ameaçada.
+
+Uma tarde, tendo-a visto sahir da Sé, esperou-a adiante da botica, e
+muito decidido:
+
+--Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto não póde continuar assim...
+Eu não posso... A menina traz namoro com o parocho!
+
+Ella mordeu o beiço, toda branca:
+
+--O senhor está a insultar-me!--E queria seguir, indignada.
+
+Elle reteve-a pela manga do casabeque:
+
+--Ouça, menina Amelia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe...
+Tenho andado, que até se me parte o coração!--E perdeu a voz, de
+commovido.
+
+--Não tem razão... Não tem razão... balbuciava ella.
+
+--Jure-me então que não ha nada com o padre!
+
+--Pela minha salvação!... _Não ha nada!_... Mas tambem lhe digo, se
+torna a fallar em tal, ou a insultar-me, conto tudo á mamã, e o senhor
+escusa de nos voltar a casa.
+
+--Oh, menina Amelia...
+
+--Não podemos continuar aqui a fallar... Está alli já a D. Michaela a
+cocar...
+
+Era uma velha, que levantára a cortina de cassa n'uma janella baixa, e
+espreitava com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda resequida
+encostada sôfregamente á vidraça. Separaram-se então--e a velha
+desconsolada deixou cahir a cortina.
+
+Amelia n'essa noite--emquanto as senhoras discutiam com algazarra os
+missionarios que então prégavam na Barrosa--disse baixo a Amaro, picando
+vivamente a costura:
+
+--Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão
+chegado... Já houve quem reparasse.
+
+Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assumpção; e,
+apesar da recommendação d'Amelia, os seus olhos não se despregavam
+d'ella, n'uma interrogação muda e anciosa, já assustado que as
+desconfianças da mãi ou a malicia das velhas «andassem armando
+escandalo». Depois do chá, no rumor das cadeiras que se accommodavam ao
+_quino_, perguntou-lhe rapidamente:
+
+--Quem reparou?
+
+--Ninguem. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.
+
+Desde então cessaram as olhadellas dôces, os logares chegadinhos á mesa,
+os segredos; e sentiam um gozo picante em affectar maneiras frias, tendo
+a certeza vaidosa da paixão que os inflammava. Era para Amelia
+delicioso--emquanto o padre Amaro afastado tagarellava com as
+senhoras--adorar a sua presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos
+castamente applicados ás chinelas do João Eduardo que muito astutamente
+recomeçára a bordar.
+
+Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o
+parocho installado alli todas as noites, com a face próspera, a perna
+traçada, gozando a veneração das velhas. «A Ameliasinha, sim, agora
+portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...»: mas elle sabia que o
+parocho a desejava, a «cocava»; e apesar do juramento d'ella _pela sua
+salvação,_ da certeza _que não havia nada_--temia que ella fosse
+lentamente penetrada por aquella admiração caturra das velhas, para quem
+o senhor parocho _era um anjo_: só se contentaria em arrancar Amelia (já
+empregado no governo civil) áquella casa beata: mas essa felicidade
+tardava a chegar--e sahia todas as noites da rua da Misericordia mais
+apaixonado, com a vida estragada de ciumes, odiando os padres, sem
+coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até
+tarde; ás vezes voltava ainda vêr as janellas fechadas da casa d'ella;
+ia depois á alameda ao pé do rio, mas o frio ramalhar das arvores sobre
+a agua negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um
+momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que
+bocejava encostado ao _reste_. Um cheiro de mau petroleo suffocava.
+Sahia; e dirigia-se, devagar, á redacção da _Voz do Districto_.
+
+
+
+
+X
+
+
+O redactor da _Voz do Districto_, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu
+parente. Chamavam-lhe geralmente o _Rachitico_, por ter uma forte
+corcunda no hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente
+sujo; e a sua carita de femea, amarellada, d'olhos depravados, revelava
+vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a
+sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: «Se vossê não fosse
+um rachitico, quebrava-lhe os ossos»--que, vendo na sua corcunda uma
+protecção sufficiente, ganhára um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o
+tornava mais suspeito aos burguezes sérios: attribuia-se a sua voz rouca
+e acre «a fartar-lhe as campainhas»: e os seus dedos queimados
+terminavam em unhas muito compridas--porque tocava guitarra.
+
+A _Voz do Districto_ fôra creada por alguns homens, a quem chamavam em
+Leiria o _grupo da Maia_, particularmente hostis ao senhor governador
+civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do _grupo_, tinha
+encontrado em Agostinho, como elle dizia, o _homem que se precisa_: o
+que o _grupo_ precisava era um patife com orthographia, sem escrupulos,
+que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calumnias, as allusões
+que elles traziam informemente á redacção, em apontamentos. Agostinho
+era um estylista de vilezas. Davam-lhe quinze mil reis por mez e casa de
+habitação na redacção--um terceiro andar desmantelado n'uma viella ao pé
+da Praça.
+
+Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a _Correspondencia_ de
+Lisboa; e o bacharel Prudencio escrevia o folhetim litterario sob o
+titulo de _Palestras Leirienses_: era um moço muito honrado, a quem o
+snr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que
+se sujeitava a sentar-se todos os sabbados fraternalmente á mesma banca,
+a revêr as provas da sua prosa--prosa tão florida de imagens, que se
+murmurava na cidade, ao lêl-a: «_Que opulencia! Que opulencia, Jesus!_»
+
+João Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho era «um trastesito»; não
+se atreveria a passear com elle de dia nas ruas; mas gostava de ir para
+a redacção, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho fallar de
+Lisboa, do tempo que lá vivêra empregado na redacção de dois jornaes, no
+theatro da rua dos Condes, n'uma casa de penhores, e em outras
+instituições. Estas visitas eram _segredos_!
+
+Áquella hora da noite a sala da typographia no primeiro andar estava
+fechada (o jornal tirava-se aos sabbados); e João Eduardo encontrava em
+cima Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de pelles cujos colchetes
+de prata tinham sido empenhados--ruminando, curvado, á luz d'um medonho
+candieiro de petroleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o
+jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto d'uma caverna. João
+Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a
+velha guitarra de Agostinho repenicava o _fado corrido_. O jornalista no
+emtanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: «a
+coisa não lhe sahia catita»: e como nem o _fadinho_ o inspirava,
+erguia-se, ia a um armario engulir um copinho de genebra que gargarejava
+nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, accendia o
+cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
+
+
+Ora foi o fado tyranno
+Que me levou á má vida,
+
+
+E a guitarra: dir-lin, din, din, dir-lin, din, don.
+
+
+Na vida do negro fado
+Ai! Que me traz assim perdida...
+
+
+Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por
+dizer, com odio:
+
+--Que possilga de terra esta!
+
+Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu
+quartilho na taberna do tio João, á Mouraria, com a Anna alfaiata ou com
+o Bigodinho--ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o
+olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra
+dizendo a morte da Sophia!
+
+Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João
+Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se--porque essas
+«producções», sendo ultimamente sempre «desandas ao clero»,
+correspondiam ás suas preoccupações.
+
+Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericordia, o
+doutor Godinho se tornára muito hostil ao cabido e «á padraria». Sempre
+detestára padres; tinha uma má doença de figado, e como a Igreja o fazia
+pensar no cemiterio, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da
+mortalha. E Agostinho, que tinha um profundo deposito de fel a derramar,
+instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrínas: mas, com o
+seu fraco litterario, cobria o vituperio de tão espessas camadas de
+rhetorica que, como dizia o conego Dias, «aquillo era ladrar, não era
+morder»!
+
+Uma d'essas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo enthusiasmado
+com um artigo que compuzera de tarde, e que lhe «sahira cheio de piadas
+á Victor Hugo»!
+
+--Tu verás! Coisa de sensação!
+
+Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor
+Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, «_esse tão
+respeitavel chefe de familia_» e a sua eloquencia no tribunal que
+«_arrancára tantos desventurados ao cutelo da lei_», o artigo, tomando
+um tom roncante, apostrophava Christo:--«Quem te diria a ti (bradava
+Agostinho), ó immortal Crucificado! quem te diria, quando no alto do
+Golgotha expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, á tua
+sombra, seria expulso d'um estabelecimento de caridade o doutor
+Godinho,--a alma mais pura, o talento mais robusto...»--E as virtudes do
+doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solemnes e sublimadas,
+arrastando caudas de adjectivos nobres.
+
+Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho,
+Agostinho dirigia-se directamente a Roma:--«É no seculo XIX que vindes
+atirar á face de Leiria liberal os dictames do _Syllabus_! Pois bem.
+Quereis a guerra? Tel-a-heis!»
+
+--Hein, João?! dizia. Está forte! Está philosophico!
+
+E retomando a leitura:--«Quereis a guerra? Tel-a-heis! Levantaremos bem
+alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, comprehendei-o bem! e
+arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades
+publicas, gritaremos á face de Leiria, á face da Europa: Filhos do
+seculo XIX! ás armas! Ás armas pelo progresso!»
+
+--Hein? Está de os enterrar!
+
+João Eduardo, que ficára um momento calado, disse então, levantando as
+suas expressões em harmonia com a prosa sonora de Agostinho:
+
+--O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
+
+Uma phrase tão litteraria surprehendeu o jornalista: fitou João Eduardo,
+disse:
+
+--Porque não escreves tu alguma coisa, tambem?
+
+O escrevente respondeu, sorrindo:
+
+--E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu
+tocava-lhes os pôdres. Eu é que os conheço!...
+
+Agostinho instou logo com elle para que escrevesse a _desanda_.
+
+--Vem a calhar, menino!
+
+O doutor Godinho ainda na vespera lhe recommendára:--«Em tudo que
+cheirar a padre, para baixo! Havendo escandalo, conta-se! não havendo,
+inventa-se!»
+
+E Agostinho acrescentou, com benevolencia:
+
+--E não te dê cuidado o estylo, que eu cá o florearei!
+
+--Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
+
+Mas d'ahi por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
+
+--E o artigo, homem? Traze-me o artigo.
+
+Tinha avidez d'elle, porque sabendo como João Eduardo vivia na
+intimidade da «panellinha canonica da S. Joanneira» suppunha-o no
+segredo de infamias especiaes.
+
+João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber...?
+
+--Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da
+redacção. Quem diabo vai saber?
+
+Succedeu na noite seguinte que João Eduardo surprehendeu o padre Amaro
+resvalando sorrateiramente um segredinho a Amelia--e ao outro dia
+appareceu de tarde na redacção com a pallidez d'uma noite velada,
+trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escriptas n'uma letra
+de cartorio. Era o artigo, e intitulava-se: _Os modernos
+phariseus!_--Depois de algumas considerações, cheias de flôres, sobre
+Jesus e o Golgotha, o artigo de João Eduardo era, sob allusões tão
+diaphanas como teias d'aranha, um vingativo ataque ao conego Dias, ao
+padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!... Todos tinham a sua
+_dóse_, como exclamou cheio de jubilo o Agostinho.
+
+--E quando sae? perguntou João Eduardo.
+
+O Agostinho esfregou as mãos, reflectiu, disse:
+
+--É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes proprios! Mas
+descansa, eu arranjarei.
+
+Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho--que o achou «uma
+catilinaria atroz». Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um
+arrufo: elle reconhecia em geral a necessidade da religião entre as
+massas; sua esposa, a bella D. Candida, era além d'isso d'inclinações
+devotas, e começava a dizer que aquella guerra do jornal ao clero lhe
+causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho não queria provocar odios
+desnecessarios entre os padres, prevendo que o seu amor da paz
+domestica, os interesses da ordem e o seu dever de christão o forçariam
+bem cedo a uma reconciliação,--«muito contra as suas opiniões, mas...»
+
+Disse por isso a Agostinho sêccamente:
+
+--Isto não póde ir como artigo da redacção, deve apparecer como
+communicado. Cumpra estas ordens.
+
+E Agostinho declarou ao escrevente--que a coisa publicava-se como um
+_Communicado_, assignado: _Um liberal_. Sómente João Eduardo terminava o
+artigo exclamando:--_Álerta, mães de familia!_ O Agostinho suggeriu que
+este final _álerta_ podia dar logar á réplica jocosa--_Álerta está!_ E
+depois de largas combinações decidiram-se por este fecho:--_Cuidado,
+sotainas negras!_
+
+No domingo seguinte appareceu o communicado assignado: _Um liberal_.
+
+
+Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, á volta da Sé,
+estivera occupado em compôr laboriosamente uma carta a Amelia.
+Impaciente, como elle dizia, «com aquellas relações que não andavam nem
+desandavam, que era olhar e apertos de mão e d'alli não
+passava»--tinha-lhe dado uma noite, á mesa do quino, um bilhetinho onde
+escrevera com boa letra, a tinta azul:--_Desejo encontral-a só, porque
+tenho muito que lhe fallar. Onde póde ser sem inconveniente? Deus
+proteja o nosso affecto._ Ella não respondera:--E Amaro despeitado,
+descontente tambem por não a ter visto n'essa manhã á missa das nove,
+resolveu «pôr tudo a claro n'uma carta de sentimento»: e preparava os
+periodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela
+casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre
+o _Diccionario de synonymos_.
+
+
+«Ameliasinha do meu coração: (escrevia elle) Não posso atinar com as
+razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em
+casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha
+de lhe fallar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na innocencia
+d'esta alma que tanto lhe quer e que não medita o peccado.
+
+«Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente affecto, e pela sua
+parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os pharoes da
+minha vida, e como a estrella do navegante) que tambem tu, minha
+Ameliasinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro
+dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros numeros, e que todos
+fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com
+tanta ternura, que até me pareceu que o céo se abria e que eu sentia os
+anjos entoarem o Hossana! Porque não respondeste pois? Se pensas que o
+nosso affecto póde ser desagradavel aos nossos anjos da guarda, então te
+direi que maior peccado commettes trazendo-me n'esta incerteza e
+tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti,
+e nem me deixa elevar a minha alma no divino sacrificio. Se eu visse que
+este mutuo affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh minha bem
+amada filha, façamos o sacrificio a Jesus, para lhe pagar parte do
+sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e
+vejo n'ella a brancura dos lirios. E o teu amor tambem é puro como a tua
+alma, que um dia se unirá á minha, entre os córos celestes, na
+bemaventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliasinha,
+que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde
+pois, e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no
+Morenal, pela tarde. Pois eu anceio por te exprimir todo o fogo que me
+abraza, bem como fallar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão
+a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos extases
+d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a offerta do
+coração do teu amante e pai espiritual
+
+
+ «_Amaro_».
+
+
+Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ella bem dobrada
+no bolso da batina foi á rua da Misericordia. Logo da escada sentiu em
+cima a voz aguda de Natario, discutindo.
+
+--Quem está por cá?--perguntou á _Ruça_, que alumiava, encolhida no seu
+chale.
+
+--As senhoras todas. Está o senhor padre Brito.
+
+--Ólá! Bella sociedade!
+
+Galgou os degraus, e á porta da sala, com o seu capote ainda pelos
+hombros, tirando alto o chapéo:
+
+--Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.
+
+Natario, immediatamente, plantou-se diante d'elle e exclamou:
+
+--Então que lhe parece?
+
+--O quê? perguntou Amaro. E reparando no silencio, nos olhos cravados
+n'elle:--O que é? Alguma coisa de novo?
+
+--Pois não leu, senhor parocho!? exclamaram. Não leu o _Districto_!?
+
+Era papel em que elle não puzera os olhos, disse. Então as senhoras
+indignadas romperam:
+
+--Ai! é um desafôro!
+
+--Ai! é um escandalo, senhor parocho!
+
+Natario, com as mãos enterradas nas algibeiras, contemplava o parocho
+com um sorrisinho sarcastico, soltando d'entre os dentes:
+
+--Não leu! Não leu! Então que fez?
+
+Amaro reparava, já aterrado, na pallidez d'Amelia, nos seus olhos muito
+vermelhos. E emfim o conego erguendo-se pesadamente:
+
+--Amigo parocho, dão-nos uma desanda!...
+
+--Ora essa! exclamou Amaro.
+
+--Têsa!
+
+O senhor conego, que trouxera o jornal, devia ler alto--lembraram.
+
+--Leia, Dias, leia, acudiu Natario. Leia, para saborearmos!
+
+A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego Dias accommodou-se á
+mesa, desdobrou o jornal, pôz os oculos cuidadosamente, e, com o lenço
+do rapé nos joelhos, começou a leitura do _Communicado_ na sua voz
+pachorrenta.
+
+O principio não interessava: eram periodos enternecidos em que o
+_liberal_ exprobrava aos phariseus a crucifixão de Jesus:--«Por que o
+matasteis? (exclamava elle). Respondei!» E os phariseus
+respondiam:--«Matamol-o porque elle era a liberdade, a emancipação, a
+aurora de uma nova era», etc. O _liberal_ então esboçava, a largos
+traços, a noite do Calvario:--«Eil-o pendente da cruz, traspassado de
+lanças, a sua tunica jogada aos dados, a plebe infrene», etc. E,
+voltando a dirigir-se aos phariseus infelizes, o _liberal_ gritava-lhes
+com ironia:--«Contemplai a vossa bella obra!» Depois, por uma gradação
+habil, o _liberal_ descia de Jerusalem a Leiria:--«Mas pensam os
+leitores que os phariseus morreram? Como se enganam! Vivem!
+conhecemol-os nós; Leiria está cheia d'elles, e vamos apresental-os aos
+leitores...»
+
+--Agora é que ellas começam, disse o conego olhando para todos em redor,
+por cima dos oculos.
+
+Com effeito «ellas começavam»; era, n'uma fórma brutal, uma galeria de
+photographias ecclesiasticas: a primeira era a do padre Brito:--«Vêde-o,
+(exclamava o _liberal_) grosso como um touro, montado na sua egua
+castanha...»
+
+--Até a côr da egua! murmurou com uma indignação piedosa a snr.^a D.
+Maria da Assumpção.
+
+«...Estupido como um melão, sem sequer saber latim...»
+
+O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate,
+mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.
+
+«...Especie de caceteiro», continuava o conego que lia aquellas phrases
+crueis com uma tranquillidade dôce, «desabrido de maneiras, mas que não
+desgosta de se dar á ternura, e, segundo dizem os bem informados,
+escolheu para Dulcinêa a propria e legitima esposa do seu regedor...»
+
+O padre Brito não se dominou:
+
+--Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recahindo
+pesadamente na cadeira.
+
+--Escute, homem! disse Natario.
+
+--Qual escute! O que é, é que o racho!
+
+Mas se elle não sabia quem era o _liberal_!
+
+--Qual _liberal_! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é
+que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
+
+A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas á côxa.
+
+Lembraram-lhe o dever christão de perdoar as injurias. A S. Joanneira
+com unção citou a bofetada que Jesus Christo supportou. Devia imitar
+Christo.
+
+--Qual Christo, qual cabaça! gritou Brito apopletico.
+
+Aquella impiedade creou um terror.
+
+--Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou a irmã do conego recuando a
+cadeira.
+
+O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
+
+--Nossa Senhora das Dôres, que até póde cahir um raio!
+
+E, vendo mesmo Amelia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
+
+--Brito, realmente vossê excedeu-se.
+
+--Pois se estão a puxar por mim!...
+
+--Homem, ninguem puxou por vossê, disse severamente Amaro. E com um tom
+pedagogo:--Apenas lhe lembrarei, como devo, que em taes casos, quando se
+diz a _blasphemia má_, o reverendo padre Scomelli recommenda confissão
+geral e dois dias de recolhimento a pão e agua.
+
+O padre Brito resmungava.
+
+--Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu uma grande falta, mas
+saberá pedir perdão a Deus, e a misericordia de Deus é infinita!
+
+Houve uma pausa commovida em que se ouviu a snr.^a D. Maria da Assumpção
+murmurar «que ficára sem pinga de sangue»; e o conego, que durante a
+catastrophe pousára os oculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou
+serenamente a leitura:
+
+«...Conheceis um outro com cara de furão?...»
+
+Olhares de lado fixaram o padre Natario.
+
+«...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, não hesita; se puder
+prejudicar-vos, folga: as suas intrigas trazem o cabido n'uma confusão
+porque é a vibora mais damninha da diocese, mas com tudo isso muito dado
+á jardinagem, porque cultiva com cuidado _duas rosas do seu canteiro_.»
+
+--Homem, essa! exclamou Amaro.
+
+--É para que vossê veja, disse Natario erguendo-se lívido. Que lhe
+parece? Vossê sabe que eu, quando fallo das minhas sobrinhas, costumo
+dizer _as duas rosas do meu canteiro_. É um gracejo. Pois senhores, até
+vem com isto!--E com um sorriso macilento, de fel:--mas ámanhã hei de
+saber quem é! Ólaré! Eu hei de saber quem é!
+
+--Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite ao desprezo, disse a S.
+Joanneira pacificadora.
+
+--Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se com uma ironia
+rancorosa--obrigado! Cá recebi!
+
+Mas a voz imperturbavel do conego retomára a leitura. Agora era o
+retrato d'elle, traçado com odio:
+
+«...Conego bojudo e glutão, antigo caceteiro do senhor D. Miguel, que
+foi expulso da freguezia de Ourem, outr'ora mestre de Moral n'um
+seminario e hoje mestre de immoralidade em Leiria...»
+
+--Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
+
+O conego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
+
+--Vossê pensa que me dá isto cuidado? disse elle. Boa! Tenho que comer e
+que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
+
+--Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho
+de brio!
+
+--Ora, mana! replicou o conego Dias com um azedume de raiva concentrada.
+Ora, mana! ninguem lhe pede a sua opinião!
+
+--Nem preciso que m'a peçam! gritou ella impertigando-se. Sei-a dar
+muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
+
+--Então! então!... disseram em roda, acalmando-a.
+
+--Menos lingua, mana, menos lingua! disse o conego fechando os seus
+oculos. Olhe não lhe cáiam os dentes postiços!
+
+--Seu malcriado!
+
+Ia fallar, mas suffocou-se; e começou subitamente a soltar _ais_.
+
+Recearam logo que lhe désse o _flato_: a S. Joanneira e a D. Joaquina
+Gansoso levaram-na para o quarto, em baixo, amparando-a, com palavras
+brandas:
+
+--Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escandalo! Nossa Senhora te
+valha!
+
+Amelia mandava buscar agua de flôr de laranja.
+
+--Deixe-a lá, rosnou o conego, deixe-a lá! Aquillo passa-lhe. São
+calores!
+
+Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a
+snr.^a D. Maria da Assumpção e a Gansoso surda, que iam tambem «socegar
+a D. Josepha, coitadita»! Os padres agora estavam sós; e o conego
+voltando-se para Amaro:--Ouça vossê, que é a sua vez--disse retomando o
+jornal.
+
+--E verá que dóse! disse Natario.
+
+O conego escarrou, aproximou mais o candieiro, e declamou:
+
+«...Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, parochos por
+influencias de condes da capital, vivendo na intimidade das familias de
+bem onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se da influencia do
+seu sagrado ministerio para lançar na alma da innocente a semente de
+chammas criminosas!»
+
+--Pouca vergonha! murmurou Amaro livido.
+
+«...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar a impolluta virgem?
+Queres arrastal-a aos lodaçaes do vicio? Que vens fazer aqui ao seio
+d'esta respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua prêsa como o
+milhafre em torno da innocente pomba? Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe
+seductoras phrases, para a desviares do caminho da honra; condemnas á
+desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira offerecer sua mão
+trabalhadora; e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de lagrimas. E
+tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos de tua criminosa
+lascivia!...»
+
+--Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
+
+«...Mas acautela-te, presbytero perverso!» E a voz do conego tinha tons
+cavos ao soltar aquellas apostrophes. «Já o archanjo levanta a espada da
+justiça. E sobre ti, e teus cumplices, já a opinião da illustrada Leiria
+fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para
+vos marcar na fronte o estigma da infamia. Tremei, sectarios do
+_Syllabus_! Cuidado, sotainas negras!»
+
+--D'escacha! fez o conego suado, dobrando a _Voz do Districto_.
+
+O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de duas lagrimas de raiva:
+passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
+
+--Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto
+é a calumnia das calumnias.
+
+--Uma calumnia infame... rosnaram.
+
+-E a mim o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos á
+auctoridade!
+
+--É o que eu tinha dito, acudiu Natario, é necessario fallar ao
+secretario geral...
+
+--Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Auctoridade! O que é, é
+rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...
+
+O conego, que meditava coçando o queixo, disse então:
+
+--E vossê, Natario, é que deve ir ao secretario geral. Vossê tem lingua,
+tem logica.
+
+--Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se, vou. E hei de lh'as
+cantar, á auctoridade!
+
+Amaro ficára junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o
+Libaninho murmurava:
+
+--Ai, filhos, eu não é nada commigo, mas só de ouvir todo esse aranzel,
+até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
+
+Mas sentiram a voz da snr.^a Joaquina Gansoso subindo a escada; e o
+conego immediatamente com uma voz prudente:
+
+--Collegas, o melhor, diante das senhoras, é não se fallar mais n'isto.
+Bem basta o que basta.
+
+D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que
+estava com uma forte dôr de cabeça, e despediu-se das senhoras.
+
+--E sem tomar chá? acudiu a S. Joanneira.
+
+--Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se no seu capote, não me
+estou a sentir bem. Boas noites... E vossê, Natario, appareça ámanhã
+pela Sé á uma hora.
+
+Apertou a mão de Amelia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e
+molle,--e sahiu com os hombros vergados.
+
+A S. Joanneira notou, desconsolada:
+
+--O senhor parocho ia muito pallido...
+
+O conego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
+
+--Se ia pallido, ámanhã estará córado. E agora quero dizer uma coisa:
+esse aranzel do jornal é a calumnia das calumnias! Eu não sei quem o
+escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infamias. É
+pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e
+como já se tagarellou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá.
+E o que lá vai, lá vai, não se falla mais na questão.
+
+As faces em roda continuavam contristadas.--E então o conego
+acrescentou:
+
+--Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguem, não ha
+necessidade de estar aqui com cara de pezames. E tu, pequena, senta-te
+ao instrumento e repenica-me essa _Chiquita_!
+
+
+O secretario geral, o snr. Gouvêa Ledesma, antigo jornalista, e, em
+annos mais expansivos, auctor do livro sentimental _Devaneios de um
+sonhador_, estava então dirigindo o districto na ausencia do governador
+civil.
+
+Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representára de galan
+no theatro academico, em Coimbra, com muito applauso; e tomára a esse
+tempo o habito de passear á tarde na Sophia, com o ar fatal com que no
+palco arrepellava os cabellos, ou levava, nos transes d'amor, o lenço
+aos olhos. Depois em Lisboa arruinára um pequeno patrimonio com o amor
+de Lolas e de Carmens, ceias no Matta, muita calça no Xafredo e
+perniciosas convivencias litterarias: aos trinta annos estava pobre,
+saturado de mercurio e auctor de vinte folhetins romanticos na
+_Civilisação_: mas tornára-se tão popular, que era conhecido nos
+lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso--era o _Bibi_. Julgando
+então que conhecia a fundo a existencia, deixou crescer as suiças,
+começou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou na carreira
+administrativa; chamava agora á republica que tanto exaltára em Coimbra
+_uma absurda chimera_; e Bibi era um pilar das instituições.
+
+Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia ás senhoras, nas
+_soirées_ do deputado Novaes,--«que estava cansado da vida». Rosnava-se
+que a esposa do bom Novaes andava doida por elle: e em verdade Bibi
+escrevêra a um amigo da capital:--«emquanto a conquistas, pouco por ora;
+tenho apenas no papo a Novaesitos».
+
+Levantava-se tarde; e n'essa manhã, de robe-de-chambre á mesa do almoço,
+partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração
+apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o criado,--um gallego que
+trouxera de Lisboa--veio dizer que «estava alli um cura».
+
+--Um cura? Que entre para aqui!--E murmurou para sua satisfação
+pessoal:--O Estado não deve fazer esperar a Igreja.
+
+Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natario que entrava, muito
+composto, na sua longa batina de lustrina.
+
+--Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena de chá, senhor cura? Soberba
+manhã, hein? Estava justamente pensando em v. s.^a--isto é, estava
+pensando no clero em geral... Acabava de lêr as peregrinações que se
+estão fazendo a Nossa Senhora do Lourdes... Grande exemplo! Milhares de
+pessoas da melhor roda... É realmente consolador vêr renascer a fé...
+Ainda hontem eu disse em casa do Novaes: «no fim de tudo a fé é a mola
+real da sociedade». Tome uma chavena de chá... Ah! é um grande
+balsamo!...
+
+--Não, obrigado, almocei já.
+
+--Mas não! Quando digo um grande balsamo refiro-me á fé, não ao chá! Ah!
+ah! É boa, não?
+
+E prolongou a sua risadinha com complacencia. Queria agradar a Natario,
+pelo principio que repetia muito, com um sorriso astuto--«que quem está
+mettido na politica deve ter por si a padraria».
+
+--E depois, acrescentou, como eu dizia hontem em casa do Novaes, que
+vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola;
+pois com a affluencia dos devotos está uma cidade... Grandes hoteis,
+_boulevards_, bellas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento
+economico, correndo parelhas com o renascimento religioso.
+
+E deu com satisfação um puxãosinho grave ao collarinho.
+
+--Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.^a a respeito d'um communicado na
+_Voz do Districto_.
+
+--Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente, li! Uma famosa
+verrina... Mas litterariamente, como estylo e como imagens, que miseria!
+
+--E que tenciona v. exc.^a fazer, senhor secretario geral?
+
+O snr. Gouvéa Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou
+pasmado:
+
+--Eu!?
+
+Natario disse, distillando as palavras:
+
+--A auctoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e
+implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha v. exc.^a em vista, eu
+não venho aqui em nome do clero...
+
+E acrescentou com a mão sobre o peito:
+
+--Sou apenas um pobre padre sem influencia... Venho, como particular,
+perguntar ao senhor secretario geral se se póde permittir que caracteres
+respeitaveis da Igreja diocesana sejam assim diffamados...
+
+--É certamente lamentavel que um jornal...
+
+Natario interrompeu, impertigando o busto com indignação:
+
+--Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretario geral!
+
+--Suspenso!? Por quem é, senhor cura! Mas v. s.^a decerto não quer que
+eu volte aos tempos dos corregedores-móres! Suspender o jornal! Mas a
+liberdade de imprensa é um principio sagrado! Nem as leis de imprensa o
+permittem... Mesmo querelar pelo ministerio publico porque um periodico
+diz duas ou tres pilherias sobre o cabido, impossivel! Tínhamos de
+querelar de toda imprensa de Portugal, com excepção da _Nação_ e do _Bem
+Publico!_ Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta annos de
+progresso, a propria idéa governamental? Mas nós não somos os Cabraes,
+meu caro senhor! Nós queremos luz, muitissima luz! Justamente o que nós
+queremos é luz!
+
+Natario tossiu devagarinho, disse:
+
+--Perfeitamente. Mas então quando, pelas eleições, a auctoridade nos
+vier pedir o nosso auxilio, nós, vendo que não encontramos n'ella
+protecção, diremos simplesmente: _Non possumus_!
+
+--E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os
+senhores abbades, nós vamos trahir a civilisação?
+
+E o antigo _Bibi_, tomando uma grande attitude, soltou esta phrase:
+
+--Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãi!
+
+--Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é opposição, observou
+então Natario; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as
+manobras...
+
+O secretario geral teve um sorriso:
+
+--Meu caro senhor cura, v. s.^a não está no segredo da politica. Entre o
+doutor Godinho e o governo civil não ha inimizade, ha apenas um
+arrufo... O doutor Godinho é uma intelligencia... Vai reconhecendo que o
+_grupo da Maia_ não produz nada... O doutor Godinho aprecia a politica
+do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.
+
+E, rebuçando-se todo n'um mysterio d'Estado, acrescentou:
+
+--Coisas d'alta política, meu caro senhor.
+
+Natario ergueu-se:
+
+--De modo que...
+
+--_Impossibilis est_, disse o secretario. De resto acredite, senhor
+cura, que como particular revolto-me contra o _Communicado_; mas como
+auctoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e
+póde dizel-o a todo o clero diocesano, a Igreja catholica não tem um
+filho mais fervente que eu, Gouvêa Ledesma... Quero porém uma religião
+liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia... Foram sempre as
+minhas idéas; préguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no
+gremio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a
+poesia do christianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Sómente
+lamento que elle não arvore a bandeira da civilisação!--E o antigo Bibi,
+contente da sua phrase, repetia:--Sim, lamento que elle não arvore a
+bandeira da civilisação... O _Syllabus_ é impossivel n'este seculo de
+electricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar
+d'um jornal porque elle diz duas ou tres pilherias sobre o sacerdocio,
+nem nos convém, por altas razões de política, escandalisar o doutor
+Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
+
+--Senhor secretario geral... disse Natario curvando-se.
+
+--Um criado de v. s.^a Sinto que não tome uma chavena de chá... E como
+vai o nosso chantre?
+
+--S. exc.^a n'estes ultimos dias, segundo creio, tem tornado a soffrer
+de tonturas.
+
+--Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista... Tenha cuidado com
+o degrau!...
+
+Natario correu á Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera.
+Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atraz das costas: tinha
+as olheiras batidas e a face envelhecida.
+
+--Então? disse elle, indo rapidamente ao encontro de Natario.
+
+--Nada!
+
+Amaro mordeu o beiço: e emquanto Natario lhe contava, excitado, a
+conversação com o secretario geral, «e como argumentára com elle, e como
+o homem tagarellára, tagarellára»,--a face do parocho cobria-se d'uma
+sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do
+guardasol, a herva que crescia nas fendas do terraço.
+
+--Um patarata! resumiu o padre Natario com um grande gesto. Pela
+auctoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre
+mim e o _liberal_, padre Amaro! Eu hei de saber quem é, padre Amaro! E
+quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
+
+
+No emtanto João Eduardo desde o domingo triumphava: o artigo fizera
+escandalo: tinham-se vendido oitenta numeros avulsos do jornal, e o
+Agostinho affirmára-lhe que na botica da Praça a opinião era «que o
+_liberal_ conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça»!
+
+--És um genio, rapaz! disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me
+outro!
+
+João Eduardo gozava prodigiosamente «d'aquelle fallatorio que ia pela
+cidade».
+
+Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse
+escandalisar a S. Joanneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem
+alto--_fui eu, eu é que o escrevi!_--E já ruminava outro, mais terrivel,
+que se deveria intitular: _O diabo feito ermita_, ou _O sacerdocio de
+Leiria perante o seculo XIX_!
+
+O doutor Godinho encontrára-o na Praça, e parára com condescendencia,
+para lhe dizer:
+
+--A coisa tem feito barulho. Vossê é o diabo! E a piada ao padre Brito é
+bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do
+regedor...
+
+--V. exc.^a não sabia?
+
+--Não sabia, e saboreei. Vossê é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho
+que publicasse a coisa como um communicado. Vossê comprehende... Eu não
+me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem
+seus escrupulos... Emfim é mulher, e é conveniente que as mulheres
+tenham religião... Mas no meu fôro interior saboreei... Sobretudo a
+piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição
+passada... Ah! e outra coisa, o seu negocio arranja-se. Lá para o mez
+que vem tem vossê o seu emprego no governo civil.
+
+--Oh, snr. doutor... v. exc.^a...
+
+--Qual historia! vossê é um benemerito!
+
+João Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria. O snr. Nunes Ferral
+sahira: o escrevente aparou devagar uma penna, começou a cópia d'uma
+procuração--e de repente, agarrando o chapéo, correu á rua da
+Misericordia.
+
+A S. Joanneira costurava só á janella; Amelia fôra ao Morenal; e João
+Eduardo, logo da porta:
+
+--Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o
+mez que vem tenho o meu emprego...
+
+A S. Joanneira tirou a luneta, deixou cahir as mãos no regaço:
+
+--Que me diz?...
+
+--É verdade, é verdade...
+
+E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de jubilo.
+
+--Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliasinha estiver
+d'accordo...
+
+--Ai, João Eduardo! fez a S. Joanneira com um grande suspiro, que me
+tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho
+dormido!...
+
+João Eduardo presentiu que ella ia fallar do _Communicado_. Foi pôr o
+chapéo n'uma cadeira ao canto; e voltando á janella, com as mãos nos
+bolsos:
+
+--Então porquê, porquê?
+
+--Aquella pouca vergonha no _Districto!_ Que diz vossê? Aquella
+calumnia! Ai! tenho-me feito velha!
+
+João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciume, só para
+«enterrar» o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e
+vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no branco dos olhos,
+sentia-se _quasi arrependido_. Disse ambíguamente:
+
+--Eu li, é o diabo...
+
+Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira para servir a sua paixão,
+acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé d'ella:
+
+--Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta, mas... olhe que a
+Ameliasinha tratava o parocho com muita familiaridade... E pelas
+Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo,
+ia-se rosnando... Eu bem sei que ella, coitada, não via o mal, mas... a
+D. Augusta sabe o que é Leiria. Que linguas, hein!
+
+A S. Joanneira então declarou que lhe ia fallar como a um filho: o
+artigo affligira-a, sobretudo por causa d'elle, João Eduardo. Porque
+emfim elle podia acreditar tambem, desfazer o casamento, e que desgosto!
+E ella podia dizer-lhe, como mulher de bem, como mãi, que não havia
+entre a pequena e o senhor parocho nada, nada, nada! Era a rapariga que
+tinha aquelle genio communicativo! E o parocho tinha boas palavras,
+sempre muito delicado... Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro
+tinha maneiras que tocavam o coração...
+
+--Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.
+
+A S. Joanneira então poz a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e
+fitando-o:
+
+--E olhe, não sei se me fica mal dizer-lh'o, mas a rapariga quer-lhe
+devéras, João Eduardo.
+
+O coração do escrevente teve uma palpitação commovida.
+
+--E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ella... E lá
+do artigo que me importa a mim!
+
+Então a S. Joanneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma
+alegria para ella! Ella sempre o dissera, como rapaz de bem, não havia
+outro na cidade de Leiria!
+
+--Vossê sabe, quero-lhe como filho!
+
+O escrevente enterneceu-se:
+
+--Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo...
+
+E erguendo-se, com uma solemnidade engraçada:
+
+--Snr.^a D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...
+
+Ella riu-se--e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa,
+filialmente.
+
+--E falle á noite á Ameliasinha, disse ao sahir. Eu venho ámanhã, e
+felicidade não ha de faltar...
+
+--Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a S. Joanneira retomando a sua
+costura, com um suspiro de muito allivio.
+
+Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal, a S. Joanneira, que estava
+pondo a mesa, disse-lhe:
+
+--Esteve ahi o João Eduardo...
+
+--Ah!...
+
+--Ahi esteve a fallar, coitado...
+
+Amelia, calada, dobrava a sua manta de lã.
+
+--Ahi esteve a queixar-se... continuou a mãi.
+
+--Mas de quê? perguntou ella muito vermelha.
+
+--Ora de quê! Que se fallava muito na cidade do artigo do _Districto_;
+que se perguntava a quem alludia o periodico com as _donzellas
+inexperientes_, e que a resposta era: «Quem ha de ser? a Amelia da S.
+Joanneira, da rua da Misericordia!» O pobre João diz que tem andado tão
+desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a fallar-te... Emfim...
+
+--Mas que hei de eu fazer, minha mãi? exclamou Amelia com os olhos
+subitamente cheios de lagrimas áquellas palavras que cahiam sobre os
+seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
+
+--Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que quizeres, filha. Eu bem
+sei que são calumnias! Mas tu sabes o que são linguas do mundo... O que
+te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periodico. Que era isso
+que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o somno... Mas não, diz que não
+lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por
+que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda
+essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por elle, bem
+sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...
+
+--Vai ter o emprego!?
+
+--Pois foi o que elle me veio dizer tambem... Esteve com o doutor
+Godinho, diz que lá para o fim do mez está empregado... Emfim tu fazes o
+que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te
+d'um momento para o outro...
+
+Amelia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os
+pardaes--menos desassocegados, n'aquelle instante, que os seus
+pensamentos.
+
+
+Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a _donzella inexperiente_ a
+que alludia o _Communicado_ era ella, Amelia, e torturava-a o vexame de
+vêr assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ella pensava,
+mordendo o beiço n'uma raiva muda, com os olhos afogados de lagrimas),
+aquillo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com
+risinhos perversos:--«Então a Ameliasita da S. Joanneira mettida com o
+parocho, hein?» Decerto o senhor chantre, tão severo em «coisas de
+mulheres,» reprehenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns
+apertos de mão, ahi estava a sua reputação estragada, estragado o seu
+amor!
+
+Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas
+risinhos a escarnecel-a; no aceno que lhe fez da porta da botica o
+respeitavel Carlos julgou vêr uma seccura reprehensível; á volta
+encontrára o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéo, e
+ao entrar em casa julgava-se desacreditada--esquecendo que o bom Marques
+era tão curto da vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
+
+--Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as
+mãos apertadas na cabeça. O seu cerebro de devota apenas lhe fornecia
+soluções devotas--entrar n'um recolhimento, fazer uma promessa a Nossa
+Senhora das Dôres «para que a livrasse d'aquelle apuro», ir confessar-se
+ao padre Silverio... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé
+da mãi com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde
+pequena fôra sempre bem infeliz!
+
+A mãi não lhe fallára claramente sobre o _Communicado_; tivera apenas
+palavras ambíguas:
+
+--É uma pouca vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a
+sua consciencia socegada, o mais historias...
+
+Mas Amelia via-lhe bem o desgosto--na face envelhecida, nos tristes
+silencios, nos suspiros repentinos quando fazia meia á janella com a
+luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia «grande
+fallatorio na cidade», de que a mãi, coitada, estava informada pelas
+Gansosos e pela D. Josepha Dias--cuja boca produzia o mexerico mais
+naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
+
+E então o seu amor pelo parocho, que até ahi, n'aquella reunião de saias
+e batinas da rua da Misericordia se lhe afigurára natural, agora,
+julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a
+respeitar--os Guedes, os Marques, os Vazes,--apparecia-lhe já
+monstruoso: assim as côres d'um retrato pintado á luz d'azeite, e que á
+luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes
+cae em cima a luz do sol. E quasi estimava que o padre Amaro não tivesse
+voltado á rua da Misericordia.
+
+No emtanto, com que anciedade esperava todas as noites o seu toque de
+campainha! Mas elle não vinha; e aquella ausencia, que a sua razão
+julgava prudente, dava ao seu coração o desespero d'uma traição. Na
+quarta-feira á noite não se conteve, disse, córando sobre a sua costura:
+
+--Que será feito do senhor parocho?
+
+O conego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se,
+rosnou:
+
+--Mais que fazer... E escusam de esperar por elle tão cedo!...
+
+E Amelia, que ficára branca como a cal, teve immediatamente a certeza
+que o parocho, aterrado com o escandalo do jornal, aconselhado pelos
+padres timoratos zelosos «do bom nome do clero»--tratava de se descartar
+d'ella! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãi, escondeu o seu
+desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurkas tão
+estrondosas--que o conego, tornando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
+
+--Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
+
+Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo parocho
+flammejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal
+uma allusão n'um jornal o picára, ficára a tremer na sua batina,
+apavorado, não se atrevendo sequer a visital-a--sem se lembrar que
+tambem ella se via diminuida na sua reputação, sem ser satisfeita no seu
+amor! E fôra elle que a tentára com as suas palavrinhas dôces, as suas
+denguices! Infame!... Desejava violentamente apertal-o ao coração--e
+esbofeteal-o. Teve a idéa insensata de ir ao outro dia à rua das Sousas
+atirar-se-lhe aos braços, installar-se-lhe no quarto, fazer um escandalo
+que o obrigasse a fugir da diocese... Porque não? Eram novos, eram
+robustos, poderiam viver longe, n'outra cidade--e a sua imaginação
+começou a repastar-se logo hystericamente nas perspectivas deliciosas
+d'essa existencia, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos!
+Através da sua intensa excitação, aquelle plano parecia-lhe muito
+pratico, muito facil: fugiriam para o Algarve; lá, elle deixaria crescer
+o cabello (que mais bonito seria então!) e ninguem saberia que era um
+padre; poderia ensinar latim, ella coseria para fóra; e viveriam n'uma
+casinha--onde o que mais a attrahia era o leito com as duas
+travesseirinhas chegadas... E a unica difficuldade que via em todo este
+plano radiante era fazer sahir de casa, às escondidas da mãi, o bahú com
+a sua roupa!--Mas quando acordou, essas resoluções morbidas, á luz clara
+do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquillo lhe parecia agora tão
+impraticavel, e elle tão separado d'ella, como se entre a rua da
+Misericordia e a rua das Sousas se erguessem inaccessivelmente todas as
+montanhas da terra. Ai, o senhor parocho abandonára-a, era certo! Não
+queria perder os lucros da sua parochia nem a estima dos seus
+superiores!... Pobre d'ella! Considerou-se então para sempre infeliz e
+desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso o desejo de se
+vingar do padre Amaro.
+
+Foi então que reflectiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a
+publicação do _Communicado_ não apparecera na rua da Misericordia.
+Tambem me volta as costas--pensou com amargura. Mas que lhe importava!
+No meio da afflicção que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do
+amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem
+prazer, era uma contrariedade imperceptivel: uma infelicidade viera que
+lhe arrebatava bruscamente todas as affeições--a que lhe enchia a alma e
+a que apenas lhe acariciava a vaidadesinha: e irritava-a, sim, não
+sentir já o amor do escrevente collado a suas saias, com a docilidade
+d'um cão--mas todas as suas lagrimas eram para o senhor parocho, «que já
+não queria saber d'ella»! Só lamentava a deserção de João Eduardo,
+porque perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer o padre
+Amaro...
+
+
+Por isso n'essa tarde á janella, calada, olhando no telhado defronte
+voarem os pardaes--depois de saber que João Eduardo, certo do emprego,
+viera fallar emfim á mãi,--pensava com satisfação no desespero do
+parocho ao vêr publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as
+palavras muito praticas da S. Joanneira trabalhavam-lhe silenciosamente
+n'alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 reis mensaes; casando,
+reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãi morresse,
+com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com
+decencia, ir mesmo no verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito
+comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador
+civil.
+
+--Que lhe parece, minha mãi?--perguntou bruscamente. Estava decidida
+pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava
+ser persuadida e forçada.
+
+--Eu ia pelo seguro, filha--foi a resposta da S. Joanneira.
+
+--É sempre o melhor--murmurou Amelia entrando no quarto. E sentou-se
+muito triste aos pés da cama, porque a melancolia que lhe dava o
+crepusculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade «dos seus bons
+tempos com o senhor parocho».
+
+N'essa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S.
+Joanneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito
+somnolenta, a cada momento cabeceava com a meia cahida no regaço. Amelia
+então pousava a costura, e com o cotovêlo sobre a mesa, fazendo girar o
+_abat-jour_ verde do candieiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo
+era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido tão estimado na
+pequena burguezia--não era feio e tinha um emprego; decerto o
+offerecimento da sua mão, apesar das infamias do jornal, não lhe
+parecia, como a mãi dissera, «um rasgo de mão cheia»; mas a sua
+dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia
+dois annos que o pobre João gostava d'ella... Começou então
+laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle lhe agradava--o seu ar sério,
+os seus dentes muito brancos, a sua roupa aceada.
+
+Fóra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças,
+dava-lhe appetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o
+pequerrucho a dormir no berço--porque seria um rapaz, chamar-se-hia
+Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro!... Depois
+de casada, decerto, tornaria a encontrar o senhor padre Amaro... E então
+uma idéa atravessou todo o seu sêr, fêl-a erguer bruscamente, ir por
+instincto procurar a escuridão da janella para occultar a vermelhidão do
+rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéa
+implacavelmente apoderára-se d'ella como um braço muito forte que a
+suffocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o
+despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da_sua alma, rompeu,
+inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome
+d'Amaro: desejou avidamente os seus beijos--oh! adorava-o! E tudo tinha
+acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre d'ella!... Então á
+janella, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
+
+Ao chá a S. Joanneira disse-lhe, de repente:
+
+-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser já... Era começar o enxoval,
+e se fosse possivel casar-te para o fim do mez.
+
+Ella não respondeu--mas a sua imaginação alvoroçou-se áquellas palavras.
+Casada d'ahi a um mez, ella! Apesar de João Eduardo lhe ser
+indifferente, a idéa d'aquelle rapaz, novo e apaixonado, que ia viver
+com ella, dormir com ella, deu uma perturbação a todo o seu sêr.
+
+E quando a mãi ia descer ao quarto disse-lhe:
+
+--Que lhe parece, minha mãi? Eu está-me a custar entrar em explicações
+com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
+
+--Tambem acho, filha, escreve-lhe... A _Ruça_ leva a carta pela manhã...
+Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.
+
+Amelia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta.
+Dizia:
+
+
+ «Snr. João Eduardo,
+
+«A mamã cá me pôz ao facto da conversação que teve comsigo. E se a sua
+affeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou
+pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus
+sentimentos. E a respeito d'enxoval e papeis, ámanhã se fallará, pois
+que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que
+tudo seja para nossa felicidade, como espero ha de ser, com a ajuda de
+Deus. A mamã recommenda-se e eu sou
+
+ a que muito lhe quer,
+
+ _«Amelia Caminha»_.
+
+
+Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante
+d'ella deram-lhe o desejo d'escrever ao padre Amaro. Mas o quê?
+Confessar-lhe o seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma tinta, com
+que aceitava por marido o _outro_?... Accusal-o da sua cobardia, mostrar
+o seu desgosto--era humilhar-se! E, apesar de não ter motivo para lhe
+escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras _«Meu
+adorado Amaro...»_ Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar
+a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silencio, para sempre!...
+Separarem-se porquê?--pensou. Depois de casada podia bem vêr o senhor
+padre Amaro. E a mesma idéa voltava, subtilmente, mas n'uma fórma tão
+honesta agora, que a não repellia: decerto, o senhor padre Amaro podia
+ser o seu confessor; era em toda a christandade a pessoa que melhor
+guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciencia; haveria então
+entre elles uma troca deliciosa e constante de confidencias, de dôces
+admoestações; todos os sabbados iria receber ao confessionario, na luz
+dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e
+aquillo seria casto, muito picante, e para gloria de Deus.
+
+Sentiu-se quasi satisfeita com a impressão, que não definia bem, d'uma
+existencia em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma
+gozaria os encantos d'uma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por
+fim... E d'ahi a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na _sua_
+casa, com o _seu_ marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas,
+no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor
+parocho.
+
+Ao outro dia a _Ruça_ levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as
+duas senhoras, costurando á janella, fallaram do casamento. Amelia não
+se queria separar da mãi, e, como a casa tinha accommodações, os noivos
+viveriam no primeiro andar, e a S. Joanneira dormiria no quarto em cima;
+decerto o senhor conego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua
+de mel para a fazenda da D. Maria. E Amelia áquellas perspectivas
+felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãi que, de luneta na
+ponta do nariz, a admirava babosa.
+
+Ás Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo no seu quarto a rezar a
+sua corôa, e deixou Amelia só «para se entender com o rapaz».--D'ahi a
+pouco, com effeito, João Eduardo bateu á campainha. Vinha muito nervoso,
+de luvas pretas, enfrascado em agua de colonia. Quando chegou á porta da
+sala de jantar não havia luz, e a bonita fórma d'Amelia destacava de pé,
+junto á claridade da vidraça. Elle pôz o chale-manta a um canto como
+costumava, e vindo para ella que ficára immovel, disse-lhe, esfregando
+muito as mãos:
+
+--Lá recebi a cartinha, menina Amelia...
+
+--Eu mandei-a pela _Ruça_ logo pela manhã para o pilhar em casa, disse
+ella immediatamente com as faces a arder.
+
+--Eu ia para o cartorio, até já ia na escada... Haviam de ser nove
+horas...
+
+--Haviam de ser... disse ella.
+
+Calaram-se, muito perturbados. Elle então tomou-lhe delicadamente os
+pulsos, e baixo:
+
+--Então sempre quer?
+
+--Quero, murmurou Amelia.
+
+--E o mais depressa possivel, hein?
+
+--Pois sim...
+
+Elle suspirou, muito feliz.
+
+--Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem! dizia. E
+as suas mãos, com pressões ternas, iam-se apoderando dos braços d'ella,
+dos pulsos aos cotovêlos.
+
+--A mamã diz que podemos viver juntos, disse ella, esforçando-se por
+fallar tranquillamente.
+
+--Está claro, e eu vou mandar fazer lençoes, acudiu elle, todo alterado.
+
+Attrahiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os labios; ella teve um
+soluçosinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda
+languida.
+
+--Oh, filha! murmurava o escrevente.
+
+Mas os sapatos da mãi rangeram na escada, e Amelia foi vivamente para o
+aparador accender o candieiro.
+
+A S. Joanneira parou á porta; e para dar a sua primeira approvação
+maternal, disse, com bonhomia:
+
+--Então vossês estão aqui ás escuras, filhos?
+
+
+Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro o casamento d'Amelia,
+uma manhã, na Sé. Fallou no «a proposito do enlace», e acrescentou:
+
+--Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a
+pobre velha...
+
+--Está claro, está claro...--murmurou Amaro que se fizera muito branco.
+
+O conego pigarreou grosso, e ajuntou:
+
+--E vossê agora appareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria
+do jornal isso pertence á historia... O que lá vai, lá vai!
+
+--Está claro, está claro...--rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa,
+sahiu da igreja.
+
+Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. Á
+esquina da viella das Sousas quasi esbarrou com Natario, que o agarrou
+logo pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
+
+--Ainda não sei nada!
+
+--De quê?
+
+--Do _liberal_, do _Communicado_. Mas trabalho, trabalho!
+
+Amaro, que anciava por desabafar, disse logo:
+
+--Então ouviu a novidade? O casamento d'Amelia... Que lhe parece?
+
+--Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego...
+Foi o doutor Godinho... É outro que tal!... Veja vossê esta corja: o
+doutor Godinho no jornal ás bulhas com o governo civil, e o governo
+civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho... Vá lá
+entendel-os! Isto é um paiz de biltres!
+
+--Diz que grande alegrão na casa da S. Joanneira!--disse o parocho, com
+um azedume negro.
+
+--Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo
+para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o _liberal_ e
+escachal-o! Não posso vêr esta gente que leva a chicotada, coça-se, e
+curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as!--E, com uma contracção de
+rancor que lhe curvou os dedos em garra e lhe encolheu o peito magro.
+disse por entre os dentes cerrados:--Eu, quando odeio, odeio bem!
+
+Esteve um momento calado, gozando o sabôr do seu fel.
+
+--Vossê se fôr á rua da Misericordia dê lá os parabens a essa
+gente...--E acrescentou com os olhinhos em Amaro:--O palerma do
+escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
+
+--Até á vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
+
+Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera o _Communicado_, o
+padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preoccupára com
+as consequências--«consequencias fataes, santo Deus!»--que lhe podia
+trazer o escandalo. Hein! se pela cidade se espalhasse que era elle o
+_padre ajanotado_ que o _liberal_ apostrophava! Viveu dois dias
+aterrado, tremendo de vêr apparecer o padre Saldanha, com a sua cara
+ameninada e voz melliflua, a dizer-lhe «que sua excellencia o senhor
+chantre reclamava a sua presença»! Passava já o tempo preparando
+explicações, respostas habeis, lisonjas a sua excellencia.--Mas quando
+viu que, apesar da violencia do artigo, sua excellencia parecia disposto
+«a fazer a vista grossa», occupou-se então, mais tranquillo, dos
+interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o
+astucioso; e decidiu não voltar algum tempo á rua da Misericordia.
+
+--Deixar passar o aguaceiro, pensou.
+
+Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o artigo estivesse
+esquecido, appareceria de novo em casa da S. Joanneira: deixaria vêr bem
+á rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as
+conversasinhas baixas, os logarzinhos chegados ao quino; depois, pela D.
+Maria da Assumpção, pela D. Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse o
+padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam então entender-se, no
+segredo do confessionario: combinariam uma conducta discreta, encontros
+cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquelle amor assim
+conduzido, com prudenciasinha, não teria o perigo de apparecer uma manhã
+annunciado no periodico! E regosijava-se já da habilidade d'esta
+combinação, quando lhe vinha o grande choque--casava-se a rapariga!
+
+Depois dos primeiros desesperos, desabafados em patadas no soalho e
+blasphemias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz
+serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquella paixão?
+Ao escandalo. E assim, casada ella, cada um entrava no seu destino
+legitimo e sensato--ella na sua familia, elle na sua parochia. Depois,
+quando se encontrassem, um comprimento amavel; e elle poderia passear a
+cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos ápartes da Arcada, das
+insinuações da gazeta, das severidades de sua excellencia e das
+picadinhas da consciencia! E a sua vida seria feliz.--Não, por Deus! a
+sua vida não poderia ser feliz sem ella! Tirado á sua existencia aquelle
+interesse das visitas à rua da Misericordia, os apertosinhos de mão, a
+esperança de delicias melhores--que lhe restava a elle? Vegetar, como um
+dos tortolhos nos cantos humidos do adro da Sé! E ella, ella que o
+entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as
+costas mal lhe apparecia outro, bom para marido, com 25$000 reis por
+mez! Todos aquelles suspiros, aquellas mudanças de côr--chalaça! Mangára
+com o senhor parocho!...
+
+O que a odiava!--menos que o outro porém, o outro que triumphava porque
+era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode,
+um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação
+rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a
+da igreja triumphantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E
+a estas idéas dava patadas furiosas no soalho--que assustavam a Vicencia
+na cozinha.
+
+Depois procurava socegar, retomar a direcção das suas faculdades,
+applical-as todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava
+então o antigo desespero de não viver no tempo da inquisição, e com uma
+denuncia de irreligião ou de feiticeria, mandal-os ambos para um
+carcere. Ah! n'esse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores
+liberaes, tinha de vêr aquelle miseravel escrevente a seis vintens por
+dia apoderar-se-lhe da rapariga--e elle, sacerdote instruido, que podia
+ser bispo, que podia ser Papa, tinha de vergar os hombros e ruminar
+solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum
+valor--malditos fossem elles! Quereria vêl-os cheios de filhos, sem pão
+na prateleira, com o ultimo cobertor empenhado, resequidos de fome,
+injuriando-se,--e elle a rir-se, elle a regalar-se!...
+
+
+Na segunda-feira não se conteve, foi á rua da Misericordia. A S.
+Joanneira estava em baixo na saleta com o conego Dias. E apenas viu
+Amaro:
+
+--Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava a fallar em v. s.^a! Já
+estranhava não o vermos, agora que ha alegria em casa.
+
+--Já sei, já sei, murmurou Amaro pallido.
+
+--Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente. Deus os faça
+felizes e lhes dê poucos filhos, que a carne está cara.
+
+Amaro sorriu--escutando em cima o piano.
+
+Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa dos _Dois Mundos_; e João
+Eduardo, muito chegado a ella, voltava as folhas da musica.
+
+--Quem entrou, _Ruça_? gritou ella sentindo os passos da rapariga nas
+escadas.
+
+--O senhor padre Amaro.
+
+Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto--e o coração batia-lhe tão forte,
+que ficou um momento com os dedos immoveis sobre o teclado.
+
+--Não se precisava cá do senhor padre Amaro, rosnou João Eduardo por
+entre dentes.
+
+Amelia mordeu o beiço. Teve odio ao escrevente: n'um instante
+repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua figura de pé junto d'ella:
+pensou com deleite como depois de casada (já que tinha de casar) se
+confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia
+n'aquelle momento escrupulos; e quasi desejava que o escrevente lhe
+visse no rosto a paixão que a revolvia.
+
+--Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem
+me deixa os braços livres para tocar!
+
+Terminou bruscamente a valsa dos _Dois Mundos_, começou a cantar o
+_Adeus_:
+
+
+Ai! adeus! acabaram-se os dias
+Que ditosa vivi a teu lado!
+
+
+A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente,--dirigindo o canto,
+através do soalho, ao coração do parocho, em baixo.
+
+E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé,
+devorava todos os tons da voz d'ella--emquanto a S. Joanneira
+tagarellava, contando as peças de algodão que comprára para lençoes, os
+arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem
+juntos...
+
+--Uma felicidade por ahi além, interrompeu o conego erguendo-se
+pesadamente. E vamos lá para cima, que isto de noivos não se querem
+sós...
+
+--Ah, lá n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me n'elle, que é homem
+de bem ás direitas.
+
+Amaro, ao subir a escada, tremia--e, mal entrou na sala, o rosto
+d'Amelia, alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como
+se as vesperas do noivado a tivessem embellezado e a separação lh'a
+tornasse mais appetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro
+ao escrevente, disse baixo, sem os olhar:
+
+--Os meus parabens... Os meus parabens...
+
+Voltou as costas, e foi conversar com o conego que se enterrára na sua
+poltrona queixando-se d'enfastiamento e reclamando o chá.
+
+Amelia ficára como abstracta, correndo inconscientemente os dedos pelo
+teclado. Aquelle modo do padre Amaro confirmava a sua idéa: queria a
+todo o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia «como se nada tivesse
+havido», o villão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor
+chantre, do jornal, da Arcada, de tudo,--sacudia-a da sua imaginação, do
+seu coração, da sua vida, como se sacode um insecto que tem peçonha!...
+Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o
+escrevente; roçava-se-lhe pelo hombro, rendida, com risinhos,
+segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos;
+depois ella beliscou-o, elle deu um gritinho exagerado.--E a S.
+Joanneira contemplava-os babosa, emquanto o conego dormitava já, e o
+padre Amaro, abandonado a um canto como outr'ora o escrevente, ia
+folheando o velho album.
+
+Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os todos: passos
+rapidos galgaram a escada, pararam em baixo na saleta: e a _Ruça_
+appareceu dizendo «que era o senhor padre Natario, que não desejava
+subir, e queria dar uma palavra ao senhor conego».
+
+--Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego, arrancando-se com custo
+ao fundo confortavel da poltrona.
+
+Amelia fechou logo o piano--e a S. Joanneira pousando a meia foi em
+bicos de pés escutar ao alto da escada: fóra ventava forte, e para os
+lados da Praça afastava-se o toque de retreta.
+
+Emfim a voz do conego chamou, de baixo, da porta da saleta:
+
+--Ó Amaro!
+
+--Padre-Mestre?
+
+--Venha cá, homem. E diga á senhora que póde vir tambem.
+
+A S. Joanneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre
+Natario emfim descobrira o _liberal_!
+
+A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e
+na parede, n'um velho painel muito escuro--que ultimamente o conego dera
+á S. Joanneira--destacava uma face livida de monge e um osso frontal de
+caveira.
+
+O conego Dias accommodára-se ao canto do canapé, sorvendo
+reflectidamente a pitada; e Natario, que se agitava pela sala, exclamou
+logo:
+
+--Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quiz subir
+porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para
+nós. Estava a começar a dizer ao collega Dias... Tive lá em casa o padre
+Saldanha. Temol-as boas!
+
+O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já
+inquieto, perguntou:
+
+--Coisa que nos toca?
+
+Natario começou com solemnidade erguendo alto o braço:
+
+--_Primo_: o collega Brito mudado da freguezia d'Amor para ao pé
+d'Alcobaça, para a serra, para o inferno...
+
+--Que me diz!? exclamou a S. Joanneira.
+
+--Obras do _liberal_, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe
+tempo a meditar o _Communicado_ do _Districto_, mas por fim sahiu-se! O
+pobre Brito lá vai esfogueteado!...
+
+--Sempre é o que se dizia da mulher do regedor... murmurou a boa
+senhora.
+
+--Ólá! interrompeu severamente o conego. Então, senhora, então! Isto
+aqui não é casa de murmuração!... Siga com o seu recado, collega
+Natario.
+
+--_Secundo_, continuou Natario: é o que eu ia dizer ao collega Dias... O
+senhor chantre, em vista do _Communicado_ e d'outros ataques da
+imprensa, está decidido a «reformar os costumes do clero diocesano»,
+palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam summamente os
+conciliabulos de ecclesiasticos e de senhoras... Que quer saber o que é
+isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Emfim,
+palavras textuaes de sua excellencia--_está decidido a limpar as
+cavalhariças d'Augias_!...--o que quer dizer em bom portuguez, minha
+senhora, que vai andar tudo n'uma roda-viva.
+
+Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado no meio da saleta com
+as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:
+
+--Que lhes parece esta á ultima hora, hein?
+
+O conego ergueu-se pachorrentamente:
+
+--Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha de escapar alguem... E
+a senhora não se fique ahi com essa cara de _Mater-dolorosa_, e mande
+servir o chá, que é o importante.
+
+--Eu lá disse ao padre Saldanha...--começou Natario perorando.
+
+Mas o conego interrompeu-o com força:
+
+--O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós ás torradinhas, e lá em
+cima, diante dos rapazes, caluda.
+
+O chá foi silencioso. O conego, a cada bocado de torrada, respirava
+affrontado, franzia muito o sobr'olho; a S. Joanneira, depois de fallar
+da D. Maria da Assumpção que estava mal do catarrho, ficou toda murcha,
+com a testa sobre o punho; Natario, a grandes passadas, fazia uma
+ventania na sala com as abas do casacão.
+
+--E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando subitamente diante
+d'Amelia e do escrevente; que tomavam o chá sobre o piano.
+
+--Um dia cedo, respondeu ella sorrindo.
+
+Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu _cebolão_:
+
+--São horas de me ir chegando á rua das Sousas, minhas senhoras, disse
+com uma voz desalentada.
+
+Mas a S. Joanneira não consentiu. Credo, estavam todos mônos como se
+estivessem de pêzames!... Que fizessem um quino para espairecer...--O
+conego porém, sahindo do seu torpor, disse com severidade:
+
+--Está a senhora muito enganada, ninguem está môno. Não ha razões senão
+para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?
+
+João Eduardo mexeu-se, sorriu:
+
+--Eu cá por mim, senhor conego, não tenho razão senão para estar feliz.
+
+--Pois está claro, disse o conego. E agora Deus lhes dê boas noites a
+todos, que eu vou _quinar_ para valle de lençoes. E o Amaro tambem.
+
+Amaro foi apertar silenciosamente a mão d'Amelia,--e os tres padres
+desceram calados.
+
+Na saleta a vela ainda ardia com um murrão. O conego entrou a buscar o
+seu guardachuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a
+porta, disse-lhes baixo:
+
+--Eu, collegas, não quiz assustar ha pouco a pobre senhora, mas essas
+coisas do chantre, esses fallatorios... É o diabo!
+
+--É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natario, abafando a voz.
+
+--É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
+
+Estavam de pé no meio da saleta. Fóra o vento uivava: a luz da vela
+agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o
+osso frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a _Chiquita_.
+
+Amaro recordava outras noites felizes em que elle, triumphante e sem
+cuidados, fazia rir as senhoras,--e Amelia, gorgeando _Ai chiquita que
+si_, revirava-lhe olhares rendidos...
+
+--Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho que comer e beber, não me
+importa... Mas é necessario manter a honra da classe!
+
+--E não carece duvida, acrescentou Natario, que se ha outro artigo e
+mais fallatorios, estala com certeza o raio...
+
+--Olha o pobre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!...
+
+Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do
+escrevente.
+
+Amaro rosnou com rancor:
+
+--Grande galhofa, lá em cima!...
+
+Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natario
+d'uma chuva miudinha.
+
+--Olha que noite! exclamou furioso.
+
+Só o conego tinha guardachuva; e abrindo-o devagar:
+
+--Pois meninos, não ha que vêr, estamos em calças pardas...
+
+Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do piano, nos
+acompanhamentos da _Chiquita_. O conego soprava, agarrando fortemente o
+guardachuva contra o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava os
+dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça cahida, n'um
+abatimento de derrota; e emquanto os tres padres, assim agachados sob o
+guardachuva do conego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por
+traz a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
+
+
+
+
+XII
+
+
+D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o
+padre Natario e o doutor Godinho conversando em harmonia, á porta da
+loja de ferragens do Guedes. O recebedor,--que era escutado com
+deferencia em questões de politica estrangeira--observou-os com attenção
+através da porta vidrada da pharmacia, e declarou com um tom profundo
+«que não se admiraria mais se visse Victor Manoel e Pio IX passearem de
+braço dado»!
+
+O cirurgião da camara porém não estranhava aquelle «commercio
+d'amizade».--Segundo elle o ultimo artigo da _Voz do Districto_,
+evidentemente escripto pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo,
+cheio de logica, atulhado d'erudição!) mostrava que a gente da Maia se
+queria ir aproximando da gente da Misericordia. O doutor Godinho (na
+expressão do cirurgião da camara) fazia tagatés ao governo civil e ao
+clero diocesano: a ultima phrase do artigo era significativa--«não
+seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente
+a sua divina missão!»
+
+A verdade era (como observou um individuo obeso, o amigo Pimenta) que,
+se não havia ainda paz, já havia negociações--porque na vespera elle
+vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre
+Natario sahindo de manhã muito cedo da redacção da _Voz do Districto_!
+
+--Oh, amigo Pimenta, essa é fabricada!
+
+O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu um puxão grave ao cós das
+calças, e ia indignar-se--quando o recebedor acudiu:
+
+--Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu n'outro dia vi
+o patife do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natario. E que o
+Natario traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gósto d'observar as
+pessoas... Pois senhores, o Natario, que nunca apparecia aqui na Arcada,
+agora vejo-o sempre ahi com o nariz pelas lojas... Depois a grande
+amizade com o padre Silverio... Hão de reparar que são ambos certos ahi
+na Praça ás Ave-Marias... E é negocio com a gente do doutor Godinho... O
+padre Silverio é o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam
+com as outras!
+
+Era muito commentada, com effeito, a nova amizade do padre Natario com o
+padre Silverio. Havia cinco annos tinha occorrido na sacristia da Sé,
+entre os dois ecclesiasticos, uma questão escandalosa: Natario correra
+até de guardachuva erguido para o padre Silverio, quando o bom conego
+Sarmento, banhado em lagrimas, o reteve pela batina, gritando:--«Oh,
+collega, que é a perdição da religião»! Desde então Natario e Silverio
+não fallavam--com desgosto de Silverio, um bonacheirão, d'uma obesidade
+hydropica, que, segundo diziam as suas confessadas, «era todo affeição e
+perdão». Mas Natario, sêcco e pequeno, tinha tenacidade no rancor.
+Quando o snr. chantre Valladares começou a governar o bispado,
+chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloquencia a necessidade «de
+manter a paz na Igreja», de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e
+Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave para os braços do padre
+Silverio--que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do
+estomago, murmurando todo commovido:
+
+--Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
+
+Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o
+papelão, as dobras que tomava, conservou com o padre Silverio um tom
+amuado: na Sé ou na rua, resvalando junto d'elle com um geito brusco do
+pescoço, rosnava apenas: _Senhor padre Silverio, ás ordens!_
+
+Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natario fizera
+repentinamente uma visita ao padre Silverio--sob pretexto que «o pilhàra
+alli uma pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante».
+
+--E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dôr
+d'ouvidos, que uma das minhas sobrinhas, coitada, está como doida,
+collega!
+
+O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda n'essa manhã vira as duas
+sobrinhas de Natario sãs e satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a
+escrever a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos estudos de
+medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:
+
+--Ora que alegria, collega, vêl-o aqui de novo n'esta sua casa!
+
+A reconciliação foi tão publica--que o cunhado do senhor barão de
+Via-Clara, bacharel de grandes dotes poeticos, lhe dedicou uma
+d'aquellas satyras que elle intitulava _Ferrões_, que iam manuscriptas
+de casa em casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamára a
+composição, tendo presente decerto a figura dos dois sacerdotes: _Famosa
+reconciliação do Macaco e da Baleia!_ Era com effeito frequente, agora,
+vêr a pequena figura de Natario gesticulando e saltitando ao lado do
+vulto enorme e pachorrento do padre Silverio.
+
+Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no largo
+da Sé) gozaram muito, observando da sacada os dois padres que passeavam
+no terraço, ao tepido sol de maio. O senhor administrador,--que passáva
+as horas da repartição namorando com um binoculo, por traz da vidraça do
+seu gabinete, a esposa do Telles alfaiate--começára subitamente a dar
+gargalhadas á janella: o escrivão Borges correu logo, de penna na mão, á
+varanda, a vêr de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar,
+chamou á pressa o Arthur Couceiro que estava copiando, para estudar á
+guitarra, uma canção da _Grinalda_: o amanuense Pires, severo e digno,
+aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de sêda, com
+horror ás correntes d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam os
+dois padres, que tinham parado á esquina da igreja. Natario parecia
+excitado: procurava decerto persuadir, abalar o padre Silverio; e em
+bicos de pés, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente as mãos
+muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o
+ao comprido do terraço lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto
+largo e desolado, como attestando a perdição possivel d'elle, da Sé ao
+lado, da cidade, do universo em redor; o bom Silverio, com os olhos
+muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas Natario
+exaltava-se: dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo
+ao vasto estomago de Silverio, batia patadas furiosas nas lages polidas;
+e de repente, de braços pendentes, mostrava-se acabrunhado. Então o bom
+Silverio fallou um momento com a mão espalmada sobre o peito;
+immediatamente, a face biliosa de Natario illuminou-se; pulou, bateu no
+hombro do collega palmadinhas de muito jubilo,--e os dois sacerdotes
+entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.
+
+--Que patuscos! disse o escrivão Borges, que detestava sotainas.
+
+--Aquillo tudo é a respeito do jornal, disse Arthur Couceiro, vindo
+retomar o seu trabalho lyrico. O Natario não socega emquanto não souber
+quem escreveu o _Communicado_; disse-o elle em casa da S. Joanneira... E
+a coisa pelo Silverio vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.
+
+--Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o
+officio que compunha, remettendo para Alcobaça um preso--que ao fundo da
+saleta, entre dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e
+embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.
+
+
+D'ahi a dias tinha havido na Sé o Officio de corpo presente pelo rico
+proprietario Moraes, que morrera d'um aneurisma, e a quem sua esposa (em
+penitencia decerto dos desgostos que lhe dera com a sua affeição
+desordenada por tenentes d'infanteria) estava fazendo, como se disse,
+«exequias de pessoa real».--Amaro desvestira-se, e na sacristia, á luz
+d'um velho candieiro de latão, escrevia assentos atrazados, quando a
+porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natario disse:
+
+--Ó Amaro, vossê está ahi?
+
+--Que temos?
+
+O padre Natario fechou a porta, e atirando os braços para o ar:
+
+--Grande novidade, é o escrevente!
+
+--Que escrevente?
+
+--O João Eduardo! É elle! É o _liberal_! Foi elle que escreveu o
+_Communicado_!
+
+--Que me diz vossê!?--fez Amaro attonito.
+
+--Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto pela letra d'elle. O
+que se chama _vêr_! Cinco tiras de papel!
+
+Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natario.
+
+--Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de
+papel! E quer escrever outro! O senhor João Eduardo! O nosso rico amigo
+senhor João Eduardo!
+
+--Vossê está certo d'isso?
+
+--Se estou certo!... Estou a dizer-lhe que vi, homem!
+
+--E como soube vossê, Natario?
+
+Natario dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos hombros, arrastando as
+palavras:
+
+--Ah, collega, lá isso... Os _comos_ e os _porquês_... Vossê
+comprehende... _Sigillus magnus_!
+
+E com uma voz aguda de triumpho, a largos passos pela sacristia:
+
+--Mas ainda isto não é nada! O senhor Eduardo que nós viamos alli na
+casa da S. Joanneira, tão bom mocinho, é um patife antigo! É o intimo do
+Agostinho, o bandido da _Voz do Districto_! Está mettido na redacção até
+altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser
+atheu... Ha seis annos que se não confessa... Chama-nos a _canalha
+canonica_... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!
+
+Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente, com as mãos
+tremulas, papeis no gavetão da escrivaninha.
+
+--E agora?... perguntou.
+
+--Agora? exclamou Natario. Agora é esmagal-o!
+
+Amaro fechou o gavetão, e muito nervoso, passando o lenço pelos labios
+seccos:
+
+--Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com
+um homem d'esses... Um perdido!
+
+Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silencio, o velho
+relogio da sacristia punha o seu _tic-tac_ plangente. Natario tirou da
+algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em
+Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
+
+--Desmanchar-lhe o casamentosinho, hein?
+
+--Vossê acha? perguntou sôffregamente Amaro.
+
+--Caro collega, é uma questão de consciencia... Para mim era uma questão
+de dever! Não se póde deixar casar a pobre pequena com um bréjeiro, um
+pedreiro-livre, um atheu...
+
+--Com effeito! com effeito! murmurava Amaro.
+
+--Vem a calhar, hein? fez Natario; e sorveu com gozo a pitada.
+
+Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar a igreja; vinha
+perguntar se suas senhorias se demoravam.
+
+--Um instante, snr. Domingos.
+
+E, emquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do
+pateo, os dois padres muito chegados fallavam baixo.
+
+--Vossê vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario. Não, escute, é melhor
+que lhe falle o Dias; o Dias é que deve fallar á S. Joanneira. Vamos
+pelo seguro. Vossê falle á pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha
+fóra de casa!--E ao ouvido de Amaro:--Diga á rapariga que elle vive ahi
+de casa e pucarinho com uma desavergonhada!
+
+--Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!
+
+--Ha de ser. Elle é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a
+pequena...
+
+E foram descendo a igreja atraz do sacristão, que fazia tilintar o seu
+mólho de chaves, pigarreando grosso.
+
+Nas capellas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao
+centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso murrão, estava a eça,
+com o largo pano de velludilho cobrindo o caixão do Moraes, recahindo em
+pregas franjadas; á cabeceira tinha uma larga corôa de perpetuas; e aos
+pés pendia, d'um grande laço de fita escarlate, o seu habito de
+cavalleiro de Christo.
+
+O padre Natario então parou; e tomando o braço d'Amaro com satisfação:
+
+--E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...
+
+--O quê?
+
+--Cortar-lhe os víveres!
+
+--Cortar-lhe os víveres!?
+
+--O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro
+amanuense, hein? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes
+Ferral que é dos meus, homem de boas idéas, vai pôl-o fóra do
+cartorio... E que escreva então _Communicados_!
+
+Amaro teve horror áquella intriga rancorosa:
+
+--Deus me perdôe, Natario, mas isso é perder o rapaz...
+
+--Emquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o
+largo, padre Amaro, não o largo!
+
+--Oh, Natario! oh, collega! Isso é de pouca caridade... Isso não é de
+christão... E então aqui que Deus está a ouvil-o...
+
+--Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é
+a resmungar Padre-nossos. Para impíos não ha caridade! A inquisição
+atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacal-os pela fome. Tudo é
+permittido a quem serve uma causa santa... Que se não mettesse commigo!
+
+Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o caixão do morto, e
+apontando com o guarda-chuva:
+
+--Quem está alli?
+
+--O Moraes, disse Amaro.
+
+--O gordo, picado das bexigas?
+
+--Sim.
+
+--Boa bêsta!
+
+E depois d'um silencio:
+
+--Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei por isso, occupado cá na
+minha campanha... E a viuva fica rica. É generosa, é presenteadora...
+Quem a confessa é o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas de
+Leiria, aquelle elephante!
+
+Sahíram. A botica do Carlos estava fechada, o céo muito escuro.
+
+No largo, Natario parou:
+
+--Resumindo: o Dias falla á S. Joanneira, e vossê falla á pequena. Eu
+por mim me entenderei com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral.
+Encarreguem-se vossês do casamento, que eu me encarrego do emprego!--E
+batendo no hombro do parocho jovialmente:--É o que se póde dizer
+atacal-o pelo coração e pelo estomago! E adeusinho, que as pequenas
+estão á espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um
+defluxo!... É fraquita, aquella rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu
+em a vendo murcha até perco logo o somno. Que quer vossê? Quando se tem
+bom coração...--Até ámanhã, Amaro.
+
+--Até ámanhã, Natario.
+
+E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé.
+
+
+Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo, mas muito decidido, muito
+feliz: tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos
+graves pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade
+estimada:
+
+--É do meu dever! É do meu dever!
+
+Como christão, como parocho, como amigo da S. Joanneira o _seu dever_
+era procurar Amelia, e, com simplicidade, sem paixão interessada,
+contar-lhe que fôra João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o
+_Communicado_.
+
+Foi elle! Diffamou os íntimos da casa, sacerdotes de sciencia e de
+posição; desacreditou-a a ella; passa as noites em deboche na possilga
+do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; ha
+seis annos que se não confessa! Como diz o collega Natario, é uma fera!
+Pobre menina! Não, não podia casar com um homem que lhe impediria a
+_vida perfeita_, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria
+rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direcção salutar, e, como
+diz o santo padre Chrysostomo, «amadureceria a sua alma para o inferno»!
+Elle não era seu pai, nem seu tutor; mas era parocho, era pastor:--e se
+a não subtrahisse áquelle destino heretico pelos seus conselhos graves,
+pela influencia da mãi e das amigas,--seria como aquelle que tem a
+guarda d'um rebanho n'uma herdade, e abre indignamente a cancella ao
+lobo! Não, a Ameliasinha não havia de casar com o _atheu_!
+
+E o seu coração então batia forte sob a effusão d'aquella esperança.
+Não, o outro não a possuiria! Quando viesse a apoderar-se legalmente
+d'aquella cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella
+Ameliasinha,--elle, parocho, lá estava para lhe dizer alto: _Para traz,
+seu canalha! isto aqui é de Deus!_
+
+E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena á salvação! Agora o
+_Communicado_ estava esquecido, o senhor chantre tranquillisado: d'ahi a
+dias poderia voltar sem susto á rua da Misericordia, recomeçar os
+deliciosos serões--apoderar-se de novo d'aquella alma, formal-a para o
+paraiso...
+
+E aquillo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus
+motivos (e dizia-o alto, para se convencer melhor) eram muito rectos,
+muito puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar ao inferno:
+elle não a queria para si, queria-a para Deus!... _Casualmente_, sim, os
+seus interesses de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote.
+Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria igualmente à rua da
+Misericordia, em serviço do céo, desmascarar o snr. João Eduardo,
+diffamador e atheu!
+
+E, socegado por esta argumentação, deitou-se tranquillamente.
+
+Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido com ella: e ia-a
+levando por uma estrada que conduzia ao céo! O diabo perseguia-o; elle
+via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos
+os delicados seios das nuvens. E elle escondia Amelia no seu capote de
+padre, devorando-a por baixo de beijos! Mas a estrada do céo não
+findava.--«Onde é a porta do paraiso?» perguntava elle a anjos de
+cabelleiras d'ouro que passavam, n'um dôce rumor de azas, levando almas
+nos braços. E todos lhe respondiam:--«Na rua da Misericordia, na rua da
+Misericordia numero nove!» Amaro sentia-se perdido: um vasto ether côr
+de leite, penetravel e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o, e elle
+procurava debalde uma taboleta de hospedaria! Por vezes resvalava junto
+d'elle um globo reluzente d'onde sahia o rumor d'uma creação; ou um
+esquadrão d'archanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto espadas
+de fogo, galopavam n'um rhythmo nobre...
+
+Amelia tinha fome, tinha frio. «Paciencia, paciencia, meu amor!»
+dizia-lhe elle. Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que
+tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?» perguntou-lhe
+Amaro, com Amelia conchegada ao peito. A figura disse:--«Eu fui um
+confessor, e sou um santo: os seculos passam, e immutavelmente,
+sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um extase igual!
+Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação
+sacode o meu sêr para sempre immaculado; e immobilisado na
+bemaventurança, sinto a monotonia do céo pesar-me como uma capa de
+bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes
+da terra--ou bracejar, sob as variedades da dôr, nas chammas do
+purgatorio!»
+
+Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em peccar!»--Mas Amelia desfallecia
+fatigada. «Durmamos, meu amor!» E, deitados, viam estrellas fluctuando
+n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Então nuvens
+começaram a dispôr-se em torno d'elles, em pregas de cortinados, dando
+um perfume de _sachets_; Amaro pousou a sua mão sobre o peito d'Amelia:
+um enleio muito dôce enervava-os: enlaçaram-se, os seus labios
+pegavam-se humidos e quentes:--«Oh, Ameliasinha!» murmurava
+elle.--«Amo-te, Amaro, amo-te!» suspirava ella.--Mas de repente as
+nuvens afastaram-se como os cortinados d'um leito; e Amaro viu diante o
+diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca
+n'uma risada muda. Com elle estava outro personagem: era velho como a
+substancia; nos anneis dos seus cabellos vegetavam florestas; a sua
+pupilla tinha a vastidão azul d'um oceano; e nos dedos abertos, com que
+cofiava a barba infindavel, caminhavam, como em estradas, filas de raças
+humanas.--«Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe o diabo retorcendo a
+cauda.--E por traz Amaro via agglomerarem-se legiões de santos e de
+santas. Reconheceu S. Sebastião com as suas settas cravadas; Santa
+Cecilia trazendo na mão o seu orgão; por entre elles sentia balarem os
+rebanhos de S. João; e no meio erguia-se o bom gigante S. Christovão
+apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia
+desenlaçar de Amelia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam
+sobrenaturalmente collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella
+levantadas descobriam os seus joelhos brancos.--«Aqui estão os dois
+sujeitos», dizia o diabo ao velho personagem, «e repare o meu prezado
+amigo, porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena tem bonitas
+pernas!» Santos vetustos alçaram-se sôfregamente em bicos de pés,
+estendendo pescoços onde se viam cicatrizes de martyrios: e as onze mil
+virgens bateram o vôo como pombas espavoridas! Então o personagem,
+esfregando as mãos d'onde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico
+inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor parocho,
+vai-se á rua da Misericordia, arruina-se a felicidade do snr. João
+Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliasinha á mamã, e vem-se
+saciar concupiscencias reprimidas a um cantinho da Eternidade? Eu estou
+velho--está rouca esta voz que outr'ora tão sabiamente discursava pelos
+valles. Mas pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar, seu
+protector, apesar de ser um pilar da Igreja e uma columna da Ordem?
+Pharaó era um grande rei--e eu afoguei-o, e os seus principes captivos,
+os seus thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas dos seus
+escravos! Eu cá sou assim! E se os senhores ecclesiasticos continuarem a
+escandalisar Leiria--eu ainda sei queimar uma cidade como um papel
+inutil, e ainda me resta agua para diluvios!» E voltando-se para dois
+anjos armados de espadas e lanças, o personagem bradou: «Chumbem uma
+grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abysmo numero sete!» E o diabo
+gania: «Ahi estão as consequencias, senhor padre Amaro!» Elle sentiu-se
+arrebatado de sobre o seio d'Amelia por mãos de braza; e ia luctar,
+bradar contra o juiz que o julgava--quando um sol prodigioso que vinha
+nascendo do Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro, com um grito,
+reconheceu o Padre Eterno!
+
+Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava pela janella.
+
+
+N'essa noite João Eduardo, indo da Praça para casa da S. Joanneira,
+ficou assombrado, ao vêr apparecer á outra boca da rua, do lado da Sé, o
+Santissimo em procissão.
+
+E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantéo pela
+cabeça, as tochas faziam destacar opas de paninho escarlate; sob o
+pallio os dourados da estola do parocho reluziam; uma campainha tocava
+adiante, ás vidraças appareciam luzes;--e na noite escura o sino da Sé
+repicava, sem descontinuar.
+
+João Eduardo correu aterrado--e soube logo que era a extrema-unção á
+entrevada.
+
+Tinham posto na escada um candieiro de petroleo sobre uma cadeira. Os
+serventes encostaram á parede da rua os varaes do pallio, e o parocho
+entrou. João Eduardo, muito nervoso, subiu tambem: ia pensando que a
+morte da entrevada, o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a
+presença do parocho e a influencia que elle adquiria n'aquelle momento;
+e foi quasi quezilado que perguntou á _Ruça_ na saleta:
+
+--Então como foi isto?
+
+--Foi a pobre de Christo que esta tarde começou a esmorecer, o senhor
+doutor veio, diz que estava a acabar, e a senhora mandou pelos
+sacramentos.
+
+João Eduardo, então, julgou delicado ir assistir «á ceremonia».
+
+O quarto da velha era junto á cozinha, e tinha n'aquelle momento uma
+solemnidade lugubre.
+
+Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco
+bolinhas de algodão entre duas velas de cera. A cabeça da entrevada,
+toda branca, a sua face côr de cera mal se distinguiam do linho do
+travesseiro; tinha os olhos estupidamente dilatados; e ia apanhando
+incessantemente com um gesto lento a dobra do lençol bordado.
+
+A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas á beira da cama: a snr.^a D.
+Maria da Assumpção (que casualmente entrára, ao voltar da fazenda)
+ficára á porta do quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares,
+murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo, sem ruido, dobrou o joelho junto
+d'ella.
+
+O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada, exhortava-a a que
+se abandonasse á Misericordia divina; mas, vendo que ella não
+comprehendia, ajoelhou, recitou rapidamente o _Misereatur_; e no
+silencio, a sua voz erguendo-se nas syllabas latinas mais agudas, dava
+uma sensação de enterro que enternecia, fazia soluçar as duas senhoras.
+Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando as
+expressões penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as
+mãos--que ha dez annos só se moviam para chegar a escarradeira, e as
+plantas dos pés que ha dez annos só se applicavam a buscar o calor da
+botija. E depois de queimar as bolinhas de algodão humidas de oleo,
+ajoelhou-se, ficou immovel, com os olhos postos no Breviario.
+
+João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do
+piano: agora decerto, durante quatro ou cinco semanas. Amelia não
+tornaria a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no dôce
+progresso do seu amor aquella brusca interrupção da morte e dos seus
+ceremoniaes.
+
+A snr.^a D. Maria entrou então, toda transtornada d'aquella scena--e
+seguida d'Amelia que trazia os olhos muito vermelhos.
+
+--Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que
+quero que me faça um favor, que é acompanhar-me a casa... Estou toda a
+tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus seja dito, não posso
+ver gente na agonia... Que ella, coitadinha, vai-se como um
+passarinho... E peccados não os tem... Olhe, vamos pela Praça que é mais
+perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso ficar... É que
+me dava a dôr... Ai, que desgosto!... Que para ella até é melhor... Pois
+olhem, sinto-me a desfallecer...
+
+Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a baixo, ao quarto da S.
+Joanneira, a reconfortal-a caridosamente com um calix de geropiga.
+
+--Ameliasinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessario para
+alguma coisa...
+
+--Não, obrigada. Ella está por instantes, coitadinha.
+
+--Não te esqueças, filha, recommendou descendo a snr.^a D. Maria da
+Assumpção, põe-lhe as duas velas bentas á cabeceira... Allivia muito na
+agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas, em
+cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
+
+Á porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço
+de João Eduardo, collou-se toda a elle com terror--um pouco tambem, com
+o accesso de ternura que lhe dava sempre a geropiga.
+
+
+Amaro promettera voltar mais tarde, para «as acompanhar, como amigo,
+n'aquelle transe». E o conego (que chegára, quando a procissão com o
+pallio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado d'esta delicadeza
+do senhor parocho, declarou logo que visto que o collega Amaro vinha
+fazer a noitada, elle ia descansar o corpo porque, Deus bem o sabia,
+aquellas commoções arrazavam-lhe a saude.
+
+--E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma e me visse nos
+mesmos assados...
+
+--Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira, nem diga isso!...--E
+começou a choramingar, muito abalada.
+
+--Pois então boas noites, disse o conego, e nada de affligir. Olhe, a
+pobre creatura, alegria não a tinha: e como não tem peccados não lhe
+importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado, senhora, é
+uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...
+
+Tambem a S. Joanneira não se sentia bem. O choque, logo depois de
+jantar, dera-lhe ameaças de enxaqueca:--e quando Amaro voltou, ás onze,
+Amelia que fôra abrir a porta, disse-lhe, ao subir á sala de jantar:
+
+--O senhor parocho desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada...
+Estava que nem via... Deitou-se, pôz agua sedativa e adormeceu...
+
+--Ah! Deixal-a dormir!
+
+Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede;
+dos seus beiços abertos sahia um gemido muito debil e continuo. Sobre a
+mesa agora, uma grossa vela benta, de murrão negro, erguia uma luz
+triste; e ao canto, transida de medo, a _Ruça_, segundo as
+recommendações da S. Joanneira, ia rezando a corôa.
+
+--O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz
+que ha de gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...
+
+--Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.
+
+Voltaram á sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fóra ventava
+forte. Havia muitas semanas que não se encontravam assim sós. Muito
+embaraçado, Amaro aproximou-se da janella: Amelia encostou-se ao
+aparador.
+
+--Vamos ter uma noite d'agua, disse o parocho.
+
+--E está frio, disse ella, encolhendo-se no chale. Eu tenho estado
+passada de medo...
+
+--Nunca viu morrer ninguem?
+
+--Nunca.
+
+Calaram-se--elle immovel ao pé da janella, ella encostada ao aparador,
+de olhos baixos.
+
+--Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe
+ia dando a presença d'ella áquella hora da noite.
+
+--Na cozinha está a brazeira accêsa, disse Amelia. É melhor irmos para
+lá.
+
+--É melhor.
+
+Foram. Amelia levou o candieiro de latão: e Amaro, indo remexer com as
+tenazes o brazido vermelho, disse:
+
+--Ha que tempo que eu não entro aqui na cozinha!... Ainda tem os vasos
+com os raminhos fóra da janella?
+
+--Ainda, e um craveiro...
+
+Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da brazeira.--Amelia,
+inclinada para o lume, sentia os olhos do padre Amaro devora-la
+silenciosamente. Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer;
+não ousava mover-se, erguer as palpebras, com medo que lhe rompessem as
+lagrimas; mas anciava pelas suas palavras, ou amargas ou dôces...
+
+Ellas vieram emfim, muito graves.
+
+--Menina Amelia, disse, eu não esperava poder assim fallar-lhe a sós.
+Mas as coisas arranjaram-se... É decerto a vontade de Nosso Senhor! E
+depois, como as suas maneiras mudaram tanto...
+
+Ella voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho tremulo:
+
+--Mas bem sabe porquê! exclamou quasi chorando.
+
+--Sei. Se não fosse aquelle infame _Communicado_, e as calumnias... nada
+se tinha passado, e a nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É
+justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.
+
+Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito suave, muito
+tranquillo:
+
+--Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos da casa eram
+insultados? em que eu era arrastado pela rua da amargura? em que a
+menina mesma, a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein? Sabe quem o
+escreveu?
+
+--Quem? perguntou Amelia toda surprehendida.
+
+--O snr. João Eduardo! disse o parocho muito tranquillamente, cruzando
+os braços diante d'ella.
+
+--Não póde ser!
+
+Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer
+sentar; e a sua voz continuou paciente e suave:
+
+--Ouça. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube hontem tudo. O Natario
+viu o original escripto pela letra d'elle. Foi elle que descobriu. Por
+meios dignos decerto... e porque era a vontade de Deus que a verdade
+apparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem.--Então,
+baixo, contou-lhe o que sabia de João Eduardo, por Natario; as suas
+noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os padres, a sua
+irreligião...
+
+--Pergunte-lhe se elle se confessa ha seis annos, e peça-lhe os bilhetes
+da confissão!
+
+Ella murmurava, com as mãos cahidas no regaço:
+
+--Jesus... Jesus!...
+
+--Eu então entendi que como intimo da casa, como parocho, como christão,
+como seu amigo, menina Amelia... porque acredite que lhe quero... emfim,
+entendi que era o meu dever avisal-a! Se eu fosse seu irmão, dizia-lhe
+simplesmente: «Amelia, esse homem fóra de casa!» Não o sou,
+infelizmente. Mas venho, com dedicação d'alma, dizer-lhe: «O homem com
+quem quer casar surprehendeu a sua boa fé e de sua mamã; vem aqui, sim
+senhor, com apparencias de bom moço, e no fundo é...»
+
+Ergueu-se, como ferido d'uma indignação irreprimivel:
+
+--Menina Amelia, é o homem que escreveu esse _Communicado!_ que fez ir o
+pobre Brito para a serra de Alcobaça! que me chamou a mim _seductor!_
+que chamou devasso ao senhor conego Dias! _Devasso!_ Que lançou veneno
+nas relações de sua mamã com o conego! e que a accusou á menina, em bom
+portuguez, de se deixar seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
+
+Ella não respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lagrimas mudas
+sobre as faces.
+
+Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao pé d'ella, com a
+voz abrandada, gestos muito amigos:
+
+--Mas supponhamos que não era elle o auctor do _Communicado_, que não
+tinha insultado em letra redonda a sua mamã, o senhor conego, os seus
+amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse
+com elle! Ou teria de condescender com as opiniões do homem, abandonar
+as suas devoções, romper com os amigos de sua mãi, não pôr os pés na
+igreja, dar escandalo a toda a gente honesta, ou teria de se pôr em
+opposição com elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma questão!
+Por jejuar á sexta-feira, por ir á exposição do Santíssimo, por cumprir
+o domingo... Se se quizesse confessar, que desavenças! Um horror! E
+sujeitar-se a ouvil-o escarnecer os mysterios da fé! Ainda me lembro, na
+primeira noite que aqui passei, com que desacato elle fallou da santa da
+Arregassa!... E ainda me lembro uma noite que o padre Natario aqui
+fallava dos soffrimentos do nosso santo padre Pio IX, que seria preso,
+se os liberaes entrassem em Roma... Como elle tinha risinhos de
+escarneo, como disse que eram exagerações!... Como se não fosse
+perfeitamente certo que por vontade dos liberaes veriamos o chefe da
+Igreja, o vigario de Christo, dormir n'um calabouço em cima d'umas
+poucas de palhas! São as opiniões d'elle, que elle apregôa por toda a
+parte! O padre Natario diz que elle e o Agostinho estavam no café ao pé
+do Terreiro a dizer que o baptismo era um abuso, porque cada um devia
+escolher a religião que quizesse, e não ser forçado, de pequeno, a ser
+christão! Hein, que lhe parece? Como seu amigo lh'o digo... Para bem de
+sua alma antes a queria vêr morta do que ligada a esse homem! Case com
+elle, e perde para sempre a graça de Deus!
+
+Amelia levou as mãos ás fontes, e deixando-se cahir para as costas da
+cadeira, murmurou, muito desgraçada:
+
+--Oh, meu Deus, meu Deus!
+
+Amaro então sentou-se ao pé d'ella, tocando-lhe quasi o vestido com o
+joelho, pondo na voz uma bondade paternal:
+
+--E depois, minha filha, pensa que um homem assim póde ter bom coração,
+apreciar a sua virtude, querer-lhe como um marido christão? Quem não tem
+religião não tem moral. Quem não crê não ama, diz um dos nossos santos
+padres. Depois de lhe passar o fogacho da paixão, começaria a ser duro
+comsigo, mal humorado, voltaria a frequentar o Agostinho e as mulheres
+da vida, e maltrata-la-hia talvez... E que susto constante para si! Quem
+não respeita a religião não tem escrupulos: mente, rouba, calumnia...
+Veja o _Communicado_. Vir aqui apertar a mão ao senhor conego, e ir para
+o jornal chamar-lhe devasso! Que remorsos não sentiria a menina, mais
+tarde, á hora da morte! É muito bom emquanto se tem saude e se é nova;
+mas quando chegasse a sua ultima hora, quando se achasse, como aquella
+pobre creatura que está alli, nos ultimos arrancos, que terror não
+sentiria de ter de apparecer diante de Jesus Christo, depois de ter
+vivido em peccado ao lado d'esse homem! Quem sabe se elle não recusaria
+que lhe dessem a extrema-unção! Morrer sem sacramentos, morrer como um
+animal!...
+
+--Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor parocho! exclamou Amelia
+rompendo n'um chôro nervoso.
+
+--Não chore, disse elle tomando-lhe suavemente a mão entre as suas,
+muito tremulas. Escute, abra-se commigo... Vá, esteja socegada, tudo se
+remedeia. Não ha banhos publicados... Diga-lhe que não quer casar, que
+sabe tudo, que o odeia...
+
+Esfregava, apertava devagarinho a mão d'Amelia. E subitamente, com voz
+d'um ardor brusco:
+
+--Não se importa com elle, não é verdade?
+
+Ella respondeu muito baixo, com a cabeça cahida sobre o peito:
+
+--Não.
+
+--Então, ahi tem! fez excitado. E diga-me, gosta d'outro?
+
+Ella não respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados
+para o lume.
+
+--Gosta? diga, diga!
+
+Passou-lhe o braço sobre o hombro, attrahindo-a dôcemente. Ella tinha as
+mãos abandonadas no regaço; sem se mover voltou devagar para elle os
+olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas, e entreabriu devagar os
+labios, pallida, toda desfallecida. Elle estendeu os beiços a tremer--e
+ficaram immoveis, collados n'um só beijo, muito longo, profundo, os
+dentes contra os dentes.
+
+--Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, n'um terror, a voz da
+_Ruça_, dentro.
+
+Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto da entrevada. Amelia estava
+tão tremula, que precisou encostar-se á porta da cozinha um momento, com
+as pernas vergadas, a mão sobre o coração. Recuperou-se, desceu a
+acordar a mãe.
+
+Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quasi
+sobre o leito, rezava: as duas senhoras rojaram-se no chão; uma
+respiração accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha; e á medida
+que o arquejo se tornava mais rouco, o parocho precipitava as suas
+orações. Subitamente o som agonisante cessou: ergueram-se: a velha
+estava immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e baços. Expirára.
+
+O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a sala;--e ahi a S.
+Joanneira, curada, pelo choque, da sua enxaqueca, desabafou, em accessos
+de chôro, recordando o tempo em que a pobre mana era nova, e que bonita
+era! e que bom casamento estivera para fazer com o morgado da
+Vigareira!...
+
+--E o genio mais dado, senhor parocho! Uma santa! E quando a Amelia
+nasceu, e que eu estive tão mal, que não se tirou de ao pé de mim, noite
+e dia!... E alegre, não havia outra... Ai, Deus da minha alma, Deus da
+minha alma!
+
+Amelia, encostada á vidraça na sombra da janella, olhava entorpecida a
+noite negra.
+
+Bateram então á campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era João Eduardo,
+que ao vêr o parocho áquella hora na casa,--ficou petrificado, junto da
+porta aberta; emfim balbuciou:
+
+--Eu vinha saber se havia novidade...
+
+--A pobre senhora expirou agora mesmo...
+
+--Ah!
+
+Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
+
+--Se eu sou preciso para alguma coisa... disse João Eduardo.
+
+--Não, obrigado. As senhoras vão-se deitar.
+
+João Eduardo fez-se pallido da coléra que lhe davam aquelles modos de
+dono da casa. Esteve ainda um momento, hesitando--mas vendo o parocho
+abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:
+
+--Bem, boa noite, disse.
+
+--Boa noite.
+
+O padre Amaro subiu:--e depois de deixar as duas senhoras no quarto da
+S. Joanneira (porque, cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou
+ao quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa, accommodou-se n'uma
+cadeira, e começou a lêr o Breviario.
+
+Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o parocho, sentindo o
+somno entorpecel-o, veio á sala de jantar; reconfortou-se com um calix
+de vinho do Porto que achára no aparador; e saboreava regaladamente o
+cigarro, quando ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por
+baixo das janellas. Como a noite estava escura não pôde distinguir «o
+passeante».--Era João Eduardo que rondava a casa, furioso.
+
+
+
+
+XIII
+
+
+Ao outro dia cedo, a snr.^a D. Josepha Dias que entrára, havia pouco, da
+missa, ficou muito surprehendida, ouvindo a criada que lavava as escadas
+dizer de baixo:
+
+--Está aqui o senhor padre Amaro, snr.^a D. Josepha!
+
+O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa do conego; e D. Josepha
+gritou logo lisonjeada e já curiosa:
+
+--Que suba para aqui, não é de ceremonia! É como de familia. Que suba!
+
+Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa ladrilhos de
+marmelada, com um vestido de hareje preto esgaçado na ilharga e arqueado
+em redor dos tornozelos por uma _crinoline_ d'um só arco; trazia n'essa
+manhã oculos azues; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos
+chinelos d'ourêlo, e preparando, por debaixo do lenço preto repuxado
+sobre a testa, um ar agradavel para o senhor parocho.
+
+--Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho, e já cá tenho a
+primeira missinha. Fui hoje á capella de Nossa Senhora do Rosario...
+Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje, senhor
+parocho! Sente-se. Ahi não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre
+entrevada lá se foi... Conte lá, senhor parocho...
+
+O parocho teve de descrever a agonia da entrevada, a dôr da S.
+Joanneira; como depois de morta a face da velha parecera remoçar; o que
+as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...
+
+--Aqui para nós, D. Josepha, é um grande allivio para a S.
+Joanneira...--E de repente, puxando-se para a beira da cadeira,
+assentando as mãos nos joelhos:--E que me diz á do senhor João Eduardo?
+Já sabe? Foi elle que escreveu o artigo!
+
+A velha exclamou, levando as mãos á cabeça:
+
+--Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho! Nem me falle n'isso, que até
+tenho estado doente!
+
+--Ah, já sabe?
+
+--E mais que sei, senhor parocho! O senhor padre Natario, devo-lhe esse
+favor, esteve aqui hontem e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma
+perdida!
+
+--E sabe que é o intimo do Agostinho, que são bebedeiras na redacção até
+de madrugada, que vai para o bilhar do Terreiro achincalhar a
+religião...
+
+--Ai, por quem é, senhor parocho, nem me diga, nem me diga! Que hontem,
+quando o senhor padre Natario esteve ahi, até tive escrupulos d'ouvir
+tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor padre Natario, logo
+que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor
+parocho, a mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o
+disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôz em vidas
+alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria o
+jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que aquillo era para enganar a S.
+Joanneira e a pequena. Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu
+em graça! Nunca, senhor parocho!--E de repente, com os olhinhos luzidios
+d'uma alegria perversa:--E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?
+
+O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:
+
+--Elle, minha senhora, seria notorio que uma rapariga de bons principios
+fosse casar com um pedreiro-livre, que não se confessa ha seis annos!
+
+--Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É necessario dizer tudo á
+rapariga...
+
+O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé
+d'ella:
+
+--Pois foi justamente para isso que eu a vim procurar, minha senhora. Eu
+hontem já fallei com a pequena... Mas comprehende, no meio d'aquelle
+desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir
+muito. Emfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos,
+expuz-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o
+que pude, minha senhora, como amigo e como parocho. E como era o meu
+dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como
+christã e como senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.
+
+--E ella?
+
+O padre Amaro fez uma visagem descontente:
+
+--Não disse que _sim_ nem que _não_. Pôz-se a fazer biquinho, a
+choramingar. É verdade que estava muito alterada com a morte em casa.
+Que a rapariga não morre por elle, isso é claro; mas quer casar, tem
+medo que a mãi morra, que se veja só... Emfim sabe o que são raparigas!
+Que as minhas palavras fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada,
+etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora fallar-lhe. A
+senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou
+certo que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrança...
+Tudo isto são considerações...
+
+--Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou a velha; hei de
+lh'as cantar!...
+
+--A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem
+a confesse! Ella confessa-se ao padre Silverio; mas, sem querer dizer
+mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita
+virtude; mas o que se chama _geito_ não tem. Para elle a confissão é a
+_desobriga_. Pergunta doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos da
+lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta,
+nem mata, nem deseja a mulher do seu proximo! A confissão assim não lhe
+aproveita: o que ella precisa é um confessor _têso_, que lhe diga--_para
+alli!_ e sem réplica. A rapariga é um espirito fraco; como a maior parte
+das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor
+que a governe com uma vara de ferro, a quem ella obedeça, a quem conte
+tudo, de quem tenha medo... É como deve ser um confessor.
+
+--O senhor parocho é que lhe servia...
+
+Amaro sorriu modestamente:
+
+--Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem; sou amigo da mãi, acho
+que ella é boa rapariga e digna da graça de Deus. Que eu, sempre que
+converso com ella, todos os conselhos que posso, em tudo, dou-lh'os...
+Mas a senhora comprehende, ha coisas em que se não póde estar a fallar
+na sala, com gente á volta... Só se está á vontade no confessionario. E
+é o que me falta, são as occasiões de lhe fallar só. Mas emfim eu não
+posso ir dizer-lhe: «a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu
+n'isso sou muito escrupuloso...
+
+--Mas digo-lh'o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh'o eu!...
+
+--Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia áquella alma!
+Porque se a rapariga me entrega a direcção da sua alma, então podemos
+dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a no caminho da
+graça... E quando lhe vai fallar, D. Josepha?
+
+D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava decidida a fallar-lhe
+essa mesma noite.
+
+--Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de pezames... O escrevente
+naturalmente está lá...
+
+--Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar
+a noite debaixo das mesmas telhas com o hereje?
+
+--Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado da familia... Além
+d'isso, D. Josepha, a senhora, a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas
+da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude.
+Arriscamo-nos a perder-lhe todos os fructos. E é um acto de humildade,
+que agrada muito a Deus, o misturar-nos ás vezes com os maus; é como
+quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um trabalhador
+d'enxada... É como se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude, mas
+comparado com o que devia ser para entrar na gloria, quem sabe se não
+sou tão peccador como tu!...» E esta humilhação da alma é a melhor
+offerta que podemos fazer a Jesus.
+
+D. Josepha escutava-o, babosa; e n'uma admiração:
+
+--Ai, senhor parocho, que até dá virtude ouvil-o!
+
+Amaro curvou-se:
+
+--Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois
+minha senhora, eu não quero massar mais. Ficamos entendidos. A senhora
+falla á pequena ámanhã; e se, como é de crêr, ella consentir em escutar
+os meus conselhos, traz-m'a á Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe
+têso, D. Josepha!
+
+--Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então não quer provar da minha
+marmelada?
+
+--Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho em que cravou os dentes com
+dignidade.
+
+--É dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor que a das Gangosinhos...
+
+--Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que diz o nosso conego d'este
+caso do escrevente?
+
+--O mano?...
+
+N'este momento a campainha em baixo repicou com furor.
+
+--Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem zangado!
+
+Vinha, com effeito, da fazenda--furioso com o caseiro, o regedor, o
+governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de
+cebolinho; e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo com gozo o nome
+do Inimigo.
+
+--Credo, mano, que até lhe fica mal!--exclamou D. Josepha tomada
+d'escrupulos.
+
+--Ora mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo _co'os
+diabos!_ e repito _co'os diabos_! Mas eu lá disse ao caseiro, que se
+sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
+
+--Ha uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
+
+--Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou o conego. Um cebolinho que
+dava saude só olhar para elle! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu
+chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!--acrescentou
+convictamente; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho d'um conego,
+parecia-lhe um acto tão negro d'impiedade como se tivessem sido furtados
+os vasos santos da Sé.
+
+--Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josepha.
+
+--Qual falta de religião! replicou o conego exasperado. Falta de cabos
+de policia, é o que é!--E voltando-se para Amaro:--Hoje é o enterro da
+velha, hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta
+lavada e os sapatos de fivela!
+
+O padre Amaro então, retomado pela sua preoccupação:
+
+--Estavamos cá a fallar do caso do João Eduardo: o _Communicado_!
+
+--Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego. Vejam essa, tambem!
+Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha!--E ficou de braços
+cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de
+monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudencia contra
+as reputações, os principios da Igreja, a honra das familias e o
+cebolinho do clero.
+
+Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas recommendações a D.
+Josepha, que o acompanhára ao patamar:
+
+--Então hoje, noite de pezames, não se faz nada. Ámanhã falla á
+rapariga, e lá para o fim da semana leva-m'a á Sé. Bem. E convença a
+rapariga, D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que Deus tem os
+olhos em si. Falle-lhe têso, falle-lhe têso!... E o nosso conego que se
+entenda com a S. Joanneira.
+
+--Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha, e, quer ella queira
+quer não, hei de pôl-a no caminho da salvação...
+
+--Amen, disse o padre Amaro.
+
+N'essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez nada». Eram os pezames na
+rua da Misericordia. Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente
+por uma só vela com um _abat-jour_ verde-escuro. A S. Joanneira e
+Amelia, de luto, occupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor,
+nas fileiras de cadeiras apoiadas á parede, as amigas, cobertas de negro
+pesado, conservavam-se funebremente immoveis, de faces contristadas,
+n'um torpôr mudo: ás vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na
+sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou Arthur Couceiro, ia em
+bicos de pés espevitar o murrão da véla: a snr.^a D. Maria da Assumpção
+expectorava o seu catarrho com um som choroso: e no silencio ouviam
+tamancos bater o lagedo da rua, ou os quartos d'hora no relogio da
+Misericordia.
+
+A intervallos a _Ruça_, toda de negro, entrava com o taboleiro de dôces
+e copos de chasada; levantava-se então o _abat-jour_; e as velhas, que
+já iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo
+os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
+
+João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que
+dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o
+olhar d'Amelia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no
+regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro
+e o conego Dias vieram ás nove horas: o parocho com passos graves foi
+dizer á S. Joanneira:
+
+--Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua
+excellentissima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus
+Christo.
+
+Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras,
+os dois ecclesiasticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no
+meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram assim reconhecidos
+pessoas de familia; a snr.^a D. Maria da Assumpção notou baixinho a D.
+Joaquina Gansoso:
+
+--Ai, até dá gosto vêl-os assim todos quatro!
+
+E até ás dez horas a noite de pezames continuou soturna e somnolenta,
+perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava
+constipado, e que--na opinião da snr.^a D. Josepha Dias que o disse a
+todos, depois--«tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito
+aos mortos».
+
+
+D'ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a snr.^a D. Josepha Dias e
+Amelia entraram na Sé--depois de terem fallado no terraço á Amparo,
+mulher do boticario, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não
+ser coisa de cuidado, «viera á cautela fazer uma promessa».
+
+O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz parda. Amelia, pallida
+sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora
+das Dôres, deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o rosto
+sobre o livro de missa. A snr.^a D. Josepha Dias, com passos fôfos,
+depois de se ter prostrado diante da capella do Santíssimo e do
+altar-mór, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro
+lá passeava, com os hombros vergados, as mãos atraz das costas:
+
+--Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha a sua face muito
+barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.
+
+--Está alli, disse a velha baixinho, n'uma expressão de triumpho. Fui eu
+mesmo buscal-a! Ai, fallei-lhe têso, senhor parocho, não lh'as poupei!
+Agora é comsigo!
+
+--Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre, apertando-lhe as mãos
+ambas com força. Deus ha de lh'o levar em conta.
+
+Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos
+papeis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu á igreja.
+Amelia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel contra o
+pilar branco.
+
+--Pst, fez-lhe D. Josepha.
+
+Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as
+mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.
+
+--Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha. Vou á Amparo da
+botica, e venho depois por ella... Ora vai, filha, vai, Deus t'alumie
+essa alma!
+
+E sahiu, com mesuras a todos os altares.
+
+O Carlos da botica--que era inquilino do conego e um pouco ronceiro na
+renda--desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josepha appareceu á
+porta, e conduziu-a logo acima, á sala de cortinas de cassa, onde a
+Amparo costurava á janella.
+
+--Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus
+afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um
+bocadinho.
+
+--Então, se me dá licença... E como vai o nosso conego?
+
+--Não tornou a ter a dôr. Mas tem soffrido de tonturas.
+
+--Começos da primavera, disse o Carlos que retomára o seu ar magestoso,
+de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu
+me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas, soffremos
+sempre d'isto que se póde chamar o renascimento da seiva... Ha uma
+abundancia d'humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canaes
+proprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo,
+sob a fórma de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares bem
+incommodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por
+assim dizer, d'um cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se
+me dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use a magnesia de James!
+
+D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo. Mas não passou da
+porta do quarto, recommendando á pequena, que arregalava uns olhos de
+febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse das suas oraçõesinhas
+de manhã e á noite». Aconselhou á Amparo alguns remedios, que eram
+milagrosos no sarampo; mas se a promessa fôra feita com fé, a menina
+podia-se considerar curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se
+não ter casado! Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e com as
+quezilias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa d'uma mulher
+se descuidar das suas praticas e metter a alma no inferno...
+
+--Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco!
+Ás vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me
+a chorar só commigo...
+
+Tinham voltado para junto da janella, e gozaram muito, espreitando o
+senhor administrador do concelho, que, por traz da vidraça da
+repartição, namorava de binoculo a do Telles alfaiate.--Aí, era um
+escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades assim! O secretario
+geral em um desafôro com a Novaes... Que se podia esperar de homens sem
+religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha, estava
+predestinada a parecer como Gomorrha pelo fogo do céo?--A Amparo cosia
+com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante d'aquella indignação
+piedosa, dos desejos culpados que a roiam de vêr o Passeio Publico e de
+ouvir os cantores em S. Carlos.
+
+Mas bem depressa a snr.^a D. Josepha começou a fallar do escrevente. A
+Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar
+prolixamente, «tim-tim por tim-tim», a historia do _Communicado_, o
+desgosto na rua da Misericordia, e a campanha de Natario para descobrir
+o _liberal_. Alargou-se principalmente sobre o caracter de João Eduardo,
+a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de christã
+aniquilar o atheu, deu mesmo a entender que alguns roubos, ultimamente
+commettidos em Leiria, eram «obra de João Eduardo».
+
+A Amparo declarou-se «banzada». O casamento então, com a Ameliasinha...
+
+--Isso pertence á historia, declarou com jubilo D. Josepha Dias. Vão
+pôl-o fóra de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir
+parar ao banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia do mano e do
+senhor padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
+
+--Mas a pequena gostava d'elle, ao que parece.
+
+D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma rapariga de juízo, de
+muita virtude! Apenas conheceu os desafôros, foi a primeira a dizer que
+não, e que não! Ai! detestava-o...--E D. Josepha, baixando a voz em
+confidencia, contou «que era positivo que elle vivia com uma desgraçada
+para os lados do quartel».
+
+--Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E aquillo é homem que da
+sua boca nunca sae senão a verdade pura... Foi muito delicado commigo,
+devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo dizer a casa, pedir-me
+conselhos... Emfim, muito attencioso.
+
+Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento
+(que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer
+companhia ás senhoras.
+
+--Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D. Josepha, o caso do
+_Communicado_ e do João Eduardo?
+
+O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia
+entre um artigo tão indigno e esse mancebo que lhe parecia honesto?
+
+--Honesto!? ganiu a snr.^a D. Josepha Dias. Foi elle que o escreveu,
+snr. Carlos!
+
+E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza, D. Josepha, enthusiasmada,
+repetiu a historia da «maroteira».
+
+--Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece?
+
+O pharmaceutico deu a sua opinião, n'uma voz vagarosa, sobrecarregada da
+auctoridade d'um vasto entendimento:
+
+--N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão commigo, é uma
+vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o _Communicado_:
+a religião é a base da sociedade, e minal-a é, por assim dizer, querer
+aluir o edificio... É uma desgraça que haja na cidade d'esses sectarios
+do materialismo e da republica, que, como é sabido, querem destruir tudo
+o que existe: proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a
+promiscuidade de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a
+sciencia é a sciencia). Querem ter o direito de entrar em minha casa,
+levar-me as pratas e o suor do meu rosto; não admittem que haja
+auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada
+hostia...
+
+D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito arripiada.
+
+--E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem sou liberal... Que,
+francamente o digo, eu não sou fanatico... Nem pelo facto d'um homem
+pertencer ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre
+embirrei com o parocho Migueis... Era uma giboia! Desculpe-me a senhora,
+mas era uma giboia. Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas já lá
+vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente
+para não haver lei das rolhas... Disse-lh'o na cara: «V. s.^a é uma
+giboia!» Mas, emfim, quando um homem veste uma batina deve ser
+respeitado... E o _Communicado_, repito, é um vergonha para Leiria... E
+tambem lhe digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve haver
+consideração!... Eu sou homem pacifico, aqui a Amparosinho conhece-me
+bem; pois se eu tivesse d'aviar uma receita para um republicano
+declarado, não tinha duvida, em logar de lhe dar uma d'essas composições
+beneficas que são o orgulho de nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse
+d'acido prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido prussico...
+mas se estivesse no banco dos jurados havia de lhe fazer cahir em cima
+todo o peso da lei!
+
+E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande
+gesto em redor, como se esperasse os applausos d'um conselho de
+districto ou d'uma municipalidade em sessão.
+
+Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josepha embrulhou-se á
+pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia
+d'estar farta d'esperar.
+
+O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que
+remettia ao seu senhorio):
+
+--Repita ao nosso conego quaes são as minhas opiniões... Que n'essa
+questão do _Communicado_ e d'ataques ao clero, estou d'alma e coração
+com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a
+embrulhar.
+
+Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava ainda no
+confessionario. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a
+face, abysmou-se n'uma devoção á Senhora do Rosario. A igreja ficou
+n'uma immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha, voltando-se para
+o confessionario, espreitou por entre os dedos; Amelia conservava-se
+immovel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido
+negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu na sua reza. Uma chuva
+fina fustigava agora os vidros d'uma janella ao lado. Emfim houve no
+confessionario um rangido da madeira, um frou-frou de vestidos nas
+lages,--e D. Josepha, voltando-se, viu de pé diante d'ella Amelia com a
+face escarlate e o olhar reluzindo muito.
+
+--Está ha muito tempo á espera, madrinha!
+
+--Um bocadinho. Estás promptinha, hein?
+
+Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram da Sé. Ainda cahia
+uma chuva fina; mas o snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com
+officios para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia
+debaixo do seu guardachuva.
+
+
+
+
+XIV
+
+
+João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para a rua da Misericordia,
+levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para
+Amelia escolher, quando á porta encontrou a _Ruça_ que ia puxar a
+campainha.
+
+--Que é, _Ruça_?
+
+--As senhoras foram passar a noite fóra de casa, e aqui está esta carta
+que manda a menina.
+
+João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar
+pasmado a _Ruça_, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do
+candieiro, defronte, abriu a carta:
+
+
+ «Snr. João Eduardo.
+
+
+«O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão
+que era v. s.^a uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz; mas como
+se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do _Districto_, e
+calumniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes
+não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje
+considerar tudo acabado entre nós, pois não ha banhos publicados nem
+despezas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja
+bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua.
+O que tudo lhe communico por ordem da mamã, e sou
+
+
+ «criada de v. s.^a
+
+ «_Amelia Caminha_».
+
+
+João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a
+claridade do candieiro, immovel como uma pedra, com o seu rolo de papeis
+pintados debaixo do braço. Machinalmente voltou a casa. As mãos
+tremiam-lhe tanto, que mal podia accender o candieiro. De pé, junto da
+mesa, releu a carta. Depois ficou alli, fatigando a vista contra a
+chamma da torcida, com uma sensação arrefecedora de Immobilidade e de
+Silencio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse
+emmudecido e parado. Pensou onde teriam _ellas_ ido passar a noite.
+Lembranças de serões felizes na rua da Misericordia atravessaram-lhe
+devagar na memoria: Amelia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o
+cabello muito preto e o collar muito branco o seu pescoço tinha uma
+pallidez que a luz amaciava... Então a idéa de que a perdera para sempre
+varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as
+mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas
+relampejavam-lhe um momento no espirito, esvaiam-se. Queria
+escrever-lhe! tiral-a por justiça! ir para o Brazil! saber quem
+descobrira que elle era o auctor do artigo!--E como isto era o mais
+practicavel áquella hora, correu á redacção da _Voz do Districto_.
+
+Agostinho, estirado no canapé, com a véla ao pé sobre uma cadeira,
+saboreava os jornaes de Lisboa. A face decomposta de João Eduardo
+assustou-o.
+
+--Que é?
+
+--É que me perdeste, maroto!
+
+E d'um só fôlego accusou furiosamente o corcunda de o ter trahido.
+
+Agostinho erguera-se devagar, procurando imperturbavel a bolsa do tabaco
+na algibeira da jaqueta.
+
+--Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra d'honra
+que não disse a ninguem do _Communicado_. É verdade que ninguem me
+perguntou...
+
+--Mas quem foi, então? gritou o escrevente.
+
+Agostinho enterrou a cabeça nos hombros.
+
+--Eu o que sei é que os padres andavam n'uma azafama para saber quem
+era. O Natario esteve ahi uma manhã, por causa do annuncio de uma viuva
+que recorre á caridade publica, mas do _Communicado_ não se disse nem
+palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com elle! Mas então
+fizeram-te alguma?
+
+--Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
+
+Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e sahiu arremessando a
+porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, attrahido pela
+obscuridade, á estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intoleravel
+palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de
+ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por
+vezes a idéa da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então
+imaginava vêr toda a paizagem oscillar e o chão da estrada
+afigurava-se-lhe molle como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam
+onze horas; e achou-se na rua da Misericordia, com o olhar cravado para
+a janella da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto
+d'Amelia alumiou-se tambem; ella ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um
+desejo furioso da sua belleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para
+casa: uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade
+indefinida, profunda, foi-o amollecendo, e chorou muito tempo,
+enternecendo-se mais com o som dos seus proprios soluços,--até que ficou
+adormecido, de bruços, n'uma massa inerte.
+
+
+Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia para a Praça,
+quando ao pé do Arco João Eduardo lhe sahiu d'emboscada.
+
+--Quero-lhe fallar, menina Amelia.
+
+Ella recuou assustada, disse a tremer:
+
+--Não tem que me fallar...
+
+Mas elle plantára-se diante d'ella, muito decidido, com os olhos
+vermelhos como carvões:
+
+--Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi
+uma desgraça; mas a menina tinha-me ralado de ciumes... Mas o que a
+menina diz de maus costumes é uma calumnia. Eu sempre fui um homem de
+bem...
+
+--O senhor padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
+
+Ao nome do parocho, João Eduardo fez-se livido de raiva:
+
+--Ah! é o senhor padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos! Ouça...
+
+--Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada, tão alto, que um
+sujeito gordo de chale-manta parou olhando.
+
+João Eduardo recuou, tirando o chapéo; e ella, immediatamente,
+refugiou-se na loja do Fernandes.
+
+
+Então, n'um desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na vespera,
+por entre os seus-accessos de chôro, sentindo-se tão abandonado, se
+lembrára do doutor Godinho. Fôra outr'ora seu escrevente; e como por
+pedido d'elle entrára no cartorio do Nunes Ferral, e por sua influencia
+ia ser accommodado no governo civil, julgava-o uma Providencia prodiga e
+inesgotavel! Demais, desde que escrevera o _Communicado_ considerava-se
+da redacção da _Voz do Districto_, do grupo da Maia; agora, que era
+atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se á forte protecção
+do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reacção, o «Cavour de
+Leiria», como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor
+dos _Ferrões_.--E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarello, ao pé
+do Terreiro onde o doutor vivia, ia n'um alvoroço d'esperanças, contente
+com se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas d'aquelle
+colosso.
+
+O doutor Godinho descera já ao escriptorio, e repoltreado na sua
+poltrona abbacial de prégos amarellos, com os olhos no tecto de carvalho
+escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com magestade
+os «bons dias» de João Eduardo.
+
+--Então que temos, amigo?
+
+As altas estantes d'in-folios graves, as resmas d'autos, o apparatoso
+painel representando o marquez de Pombal, de pé n'um terraço sobre o
+Tejo, expulsando com o dedo a esquadra ingleza--acanharam como sempre
+João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha alli para que sua
+excellencia lhe désse remedio n'uma desgraça que lhe succedia.
+
+--Desordens, bordoada?
+
+--Não, senhor, negocios de familia.
+
+Contou então, prolixamente, a sua historia desde a publicação do
+_Communicado_: leu muito commovido, a carta d'Amelia; descreveu a scena
+ao pé do Arco... Alli estava agora, escorraçado da rua da Misericordia
+por obras do senhor parocho! E parecia-lhe a elle, apesar de não ser
+formado em Coimbra, que contra um padre que se introduzia n'uma familia,
+desinquietava uma menina simples, a levava por intrigas a romper com o
+noivo e ficava de portas a dentro senhor d'ella--devia haver leis!
+
+--Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!
+
+O doutor Godinho parecia contrariado.
+
+--Leis!? exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer vossê que
+haja? Quer querelar do parocho?... Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o
+relogio? insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
+
+--Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem
+de maus costumes, senhor doutor! Calumniou-me!
+
+--Tem testemunhas?
+
+--Não, senhor.
+
+--Então?
+
+E o doutor Godinho, assentando os cotovêlos sobre a banca, declarou que
+como advogado não tinha nada a fazer. Os tribunaes não tomavam
+conhecimento d'essas questões, d'esses dramas moraes por assim dizer,
+que se passavam nas alcovas domesticas... Como homem, como particular,
+como Alipio de Vasconcellos Godinho tambem não podia intervir porque não
+conhecia o senhor padre Amaro, nem essas senhoras da rua da
+Misericordia... Lamentava o facto, porque emfim fôra novo, sentira a
+poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses
+transes do coração... E ahi está tudo o que elle podia fazer--lamentar!
+Tambem para que tinha elle dado a sua affeição a uma beata?...
+
+João Eduardo interrompeu-o:
+
+--A culpa não é d'ella, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a
+desencaminhar! A culpa é d'essa canalha do cabido!
+
+O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o snr. João
+Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que
+o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia que não fosse a
+d'um habil director espiritual... E recommendava ao snr. João Eduardo,
+com a auctoridade que lhe davam os annos e a sua posição no paiz, que
+não fosse espalhar, por despeito, accusações que só serviam para
+destruir o prestigio do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem
+constituida!--Sem elle, tudo seria anarchia e orgia!
+
+E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava n'essa manhã com «o dom
+da palavra».
+
+Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto á
+banca, impacientava-o; e disse com seccura, puxando para diante de si um
+volume d'autos:
+
+--Emfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar
+remedio.
+
+João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:
+
+--Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim...
+Porque emfim eu fui uma victima... Tudo isto vem de se saber que eu
+escrevi o _Communicado_. E tinha-se combinado que havia de ser segredo.
+O Agostinho não o disse, só o senhor doutor o sabia...
+
+O doutor pulou de indignação na sua cadeira abbacial:
+
+--Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o
+disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque n'uma
+familia bem constituida não deve haver segredos entre esposo e esposa.
+Ella perguntou-me, disse-lh'o... Mas supponhamos que fui eu que o
+espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o _Communicado_ era uma calumnia, e
+então sou eu que devo accusal-o de ter polluido um jornal honrado com um
+acervo de diffamaçães; ou era verdade, e então que homem é o senhor que
+se envergonha das verdades que solta, e que não se atreve a manter á luz
+do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?
+
+Duas lagrimas ennevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante
+d'aquella expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma
+argumentação tão logica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:
+
+--Bem, não nos zanguemos, disse. Não se falla mais era pontos d'honra...
+O que póde acreditar é que lamento o seu desgosto.
+
+Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal. Que não succumbisse; havia
+mais meninas em Leiria e meninas de bons principios que não viviam sob a
+direcção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que
+elle, doutor Godinho--e era elle!--tambem tivera em moço desgostos do
+coração. Que evitasse o dominio das paixões que lhe seria prejudicial na
+carreira publica. E que se o não fizesse por seu interesse proprio, o
+fizesse ao menos em attenção a elle, doutor Godinho!
+
+João Eduardo sahiu do escriptorio, indignado, julgando-se «trahido» pelo
+doutor.
+
+--Isto succede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre diabo, não dou
+votos nas eleições, não vou ás _soirées_ do Novaes, não subscrevo para o
+club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de reis!...
+
+Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e
+da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escriptorio, e
+entreabrindo a porta:
+
+--Vossa excellencia ao menos agora dá licença que eu desabafe no
+jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar n'essa canalha...
+
+Esta audacia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com
+severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços:
+
+--O snr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem-me
+pedir que transforme um jornal d'idéas n'um jornal de diffamações!? Vá,
+não se prenda! Peça-me que insulte os principios da religião, que
+achincalhe o Redemptor, que repita as babuseiras de Renan, que ataque as
+leis fundamentaes do Estado, que injurie o rei, que vitupere a
+instituição da familia! O senhor está ebrio!
+
+--Oh, senhor doutor!
+
+--O senhor está ebrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai
+por um declive! É por esse caminho que se chega a perder o respeito da
+auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que
+se vai ao crime! Escusa d'arregalar os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu!
+Tenho a experiencia de vinte annos de fôro. Homem, detenha-se! refreie
+essas paixões! Safa! Que idade tem o senhor?
+
+--Vinte e seis annos.
+
+--Pois não ha desculpa para um homem de vinte e seis annos ter essas
+idéas subversivas. Adeus, feche a porta. E escute: escusa de pensar em
+mandar outro _Communicado_ para outro qualquer jornal. Não lh'o
+consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer
+espalhafato... Escusa de negar, estou-lh'o a lêr nos olhos. Pois não
+lh'o consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má acção social!
+
+Tomou uma grande attitude na poltrona, repetiu com força:
+
+--Uma pessima acção social! Aonde nos querem os senhores levar com os
+seus materialismos, os seus atheismos?! Quando tiverem dado cabo da
+religião de nossos paes, que têm os senhores para a substituir?! Que
+têm?! Mostre lá!
+
+A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha alli, para a
+mostrar, uma religião que substituisse a de nossos paes) fez triumphar o
+doutor.
+
+--Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavriado! Mas emquanto eu
+fôr vivo, pelo menos em Leiria, ha de ser respeitada a Fé e o principio
+da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão de
+erguer cabeça. Em Leiria estou eu álerta, e juro que lhes hei de ser
+funesto!
+
+João Eduardo recebia d'hombros vergados estas ameaças, sem as
+comprehender. Como podia o seu _Communicado_ e as intrigas da rua da
+Misericordia produzirem assim catastrophes sociaes e revoluções
+religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade
+do doutor, o emprego no governo civil... Quiz abrandal-o:
+
+--Oh, senhor doutor, mas vossa excellencia bem vê...
+
+O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
+
+--Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando
+por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham.
+Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
+
+João Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor
+Godinho, aquelle colosso, repellia-o com palavras tremendas! E que podia
+elle, pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro que tinha por
+si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o Papa, classe solidaria e
+compacta que lhe apparecia como uma medonha cidadella de bronze
+erguendo-se até ao céo?! Eram elles que tinham causado a resolução
+d'Amelia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de
+parochos, conegos e beatas. Se elle pudesse arrancal-a áquella
+influencia, ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha que lhe
+bordava chinelas, e que vinha toda córada vêl-o passar á janella! As
+suspeitas que outr'ora tivera tinham-se desvanecido n'aquelles serões
+felizes, depois de decidido o casamento, quando ella, costurando junto
+do candieiro, fallava da mobilia que havia de comprar e dos arranjos da
+sua casinha. Ella amava-o, decerto... Mas quê! tinham-lhe dito que elle
+era o auctor do _Communicado_, que era hereje, que tinha costumes
+devassos; o parocho, na sua voz pedante, ameaçára-a com o inferno; o
+conego, furioso, e todo poderoso na rua da Misericordia porque dava para
+a panella, fallára têso--e a pobre menina, assustada, dominada, com
+aquelle bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao
+ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa fé, que elle
+era uma fera! E áquella hora, emquanto elle alli andava pelas ruas,
+escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da rua da
+Misericordia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da
+rapariga, de perna traçada, palrava d'alto! Canalha! E não haver leis
+que o vingassem! e não poder sequer «fazer escandalo», agora que a _Voz
+do Districto_ se lhe tornava inaccessivel!
+
+Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o parocho aos murros, com a
+força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos
+tremendos n'um jornal que revelassem as intrigas da rua da Misericordia,
+amotinassem a opinião, cahissem sobre o padre como catastrophes, o
+forçassem a elle, ao conego e aos outros a desapparecerem corridos da
+casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a Ameliasinha, livre
+d'aquelles galfarros, correria logo aos seus braços, com lagrimas de
+reconciliação...
+
+Procurava assim á força convencer-se que «a culpa não era d'ella»;
+recordava os mezes de felicidade antes da chegada do parocho; arranjava
+explicações naturaes para aquellas maneirinhas ternas que ella outr'ora
+tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciumes
+desesperados:--era o desejo, coitada, de ser agradavel ao hospede, ao
+amigo do senhor conego, de o reter para vantagem da mãi e da casa! E
+além d'isso, como ella andava contente depois de resolvido o casamento!
+A sua indignação contra o _Communicado_, estava certo, não era natural
+d'ella--vinha-lhe soprada pelo parocho e pelas beatas. E achava uma
+consolação n'esta idéa que não era repellido como namorado, como
+marido--mas que era uma victima das intrigas do torpe padre Amaro, que
+lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto accumulava-lhe na
+alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava
+anciosamente uma vingança, atirando a imaginação aqui e além--mas
+vinha-lhe sempre a mesma idéa, o artigo de jornal, a verrina, a
+imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se
+tivesse por si um «figurão»!
+
+Um homem do campo, amarello como uma cidra, que ia caminhando devagar,
+com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor
+Gouvêa.
+
+--Na primeira rua, á esquerda, o portão verde ao pé do lampeão, disse
+João Eduardo.
+
+E uma esperança immensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouvêa
+é que o podia salvar! O doutor era seu amigo: tratava-o por _tu_ desde
+que o curára havia tres annos da pneumonia; approvava muito o seu
+casamento com Amelia; havia ainda semanas perguntára-lhe ao pé da
+Praça:--«Então, quando se faz essa rapariga feliz?» E que respeitado,
+que temido na rua da Misericordia! Era medico de todas as amigas da casa
+que, apesar de se escandalisarem com a sua irreligião, dependiam
+humildemente da sua sciencia para os achaques, os flatos, os xaropes.
+Além d'isso, o doutor Gouvêa, inimigo decidido da «padraria», decerto se
+ia indignar com aquella intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando
+na rua da Misericordia atraz do doutor Gouvêa, que reprehendia a S.
+Joanneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas,--e a sua
+felicidade recomeçava, inabalavel agora!
+
+--O senhor doutor está? perguntou elle quasi alegre, á criada que no
+pateo estendia a roupa ao sol.
+
+--Está na consulta, snr. Joãosinho, faça favor d'entrar.
+
+Em dias de mercado os doentes do campo affluiam sempre. Mas áquella
+hora--quando os visinhos das freguezias se reunem nas tabernas--havia só
+um velho, uma mulher com uma criança ao collo e o homem do braço ao
+peito, esperando n'uma saleta baixa com bancos, dois manjaricões na
+janella e uma grande gravura da Coroação da Rainha Victoria. Apesar do
+sol claro que entrava do pateo, e de uma fresca folhagem de tilia que
+roçava o peitoril da janella, a saleta dava tristeza, como se as
+paredes, os bancos, os mesmos manjaricões estivessem saturados da
+melancolia das doenças que alli tinham passado. João Eduardo entrou e
+sentou-se a um canto.
+
+Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado
+tanto: era de uma freguezia distante, deixára no mercado a irmã, e havia
+uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a
+criança rabujava, ella sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho
+arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canella
+envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que
+tornavam mais lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora
+enervava, amollecia o escrevente; sentia perder gradualmente o animo de
+occupar o doutor Gouvêa; preparava laboriosamente a sua historia, mas
+ella parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar. Vinha-lhe
+então um desalento, que as faces insipidas dos doentes tornavam ainda
+mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só
+de miserias, de sentimentos trahidos, de afflicções, de doenças!
+Erguia-se; e com as mãos atraz das costas ia olhar desconsoladamente a
+Coroação da Rainha Victoria.
+
+De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas
+senhoras ainda lá estariam. Lá estavam; e através do batente de baeta
+verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes
+pachorrentas palrarem.
+
+--Em cahindo aqui é dia perdido! rosnava o velho.
+
+Tambem elle deixára a cavalgadura á porta do Fumaça, e a rapariga na
+praça... E o que teria a esperar na botica, depois! Com tres legoas
+ainda a fazer para voltar á freguezia!... Ser doente é bom, mas para
+quem é rico e tem vagares!
+
+A idéa da doença, da solidão que ella traz, faziam agora parecer a João
+Eduardo mais amarga a perda de Amelia. Se adoecesse teria de ir para o
+hospital. O malvado do padre tirára-lhe tudo--mulher, felicidade,
+confortos de familia, dôces companhias da vida!
+
+Emfim sentiram no corredor as duas senhoras que sahiam. A mulher com a
+criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando-se
+logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
+
+--Agora cá o patrão!
+
+--Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.
+
+--Não senhor, é só receber a receita.
+
+E immediatamente contou a historia da sua chaga: fôra uma trave que lhe
+cahira em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhára-se; e agora
+alli estava, manco e cortidinho de dôres.
+
+--E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou elle.
+
+--Eu não estou doente, disse o escrevente. São negocios com o senhor
+doutor.
+
+Os dois homens olharam-n'o com inveja.
+
+Emfim foi a vez do velho, depois a do homem amarello de braço ao peito.
+João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito
+difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protecção ao doutor. Com que
+direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dôres do peito ou
+desarranjos de estomago, e depois, incidentalmente, contar os seus
+infortunios...
+
+Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante d'elle, com a sua longa
+barba grisalha que lhe cahia sobre a quinzena de velludo preto, o largo
+chapéo desabado na cabeça, calçando as luvas de fio d'Escocia.
+
+--Ólá! és tu, rapaz! Ha novidade na rua da Misericordia?
+
+João Eduardo córou.
+
+--Não senhor, senhor doutor, queria-lhe fallar em particular.
+
+Seguiu-o ao gabinete--o conhecido gabinete do doutor Gouvêa, que com o
+seu cahos de livros, o seu tom poeirento, uma panoplia de flechas
+selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação d'uma
+«cella d'alchimista».
+
+O doutor puxou o seu _cebolão_.
+
+--Um quarto para as duas. Sê breve.
+
+A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão
+complicada.
+
+--Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não ha nada mais
+difficil que ser claro e breve; é necessario ter genio. Que é?
+
+João Eduardo então tartamudeou a sua historia, insistindo sobretudo na
+perfidia do padre, exagerando a innocencia de Amelia...
+
+O doutor escutava-o, cofiando a barba.
+
+--Vejo o que é. Tu e o padre, disse elle, quereis ambos a rapariga. Como
+elle é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a elle. É lei natural:
+o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e a prêsa
+pertencem-lhe.
+
+Aquillo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse com a voz perturbada:
+
+--Vossa excellencia está a caçoar, senhor doutor, mas a mim
+retalha-se-me o coração!
+
+--Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a philosophar, não estou a
+caçoar... Mas emfim, que queres tu que eu te faça?
+
+Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem, com mais pompa!
+
+--Eu tenho a certeza que se vossa excellencia lhe fallasse...
+
+O doutor sorriu:
+
+--Eu posso receitar á rapariga _este ou aquelle xarope_, mas não lhe
+posso impôr _este ou aquelle homem_! Queres que lhe vá dizer: «A menina
+ha de preferir aqui o snr. João Eduardo?» Queres que vá dizer ao padre,
+um maganão que eu nunca vi: «O senhor faz favor de não seduzir esta
+menina?»
+
+--Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de
+maus costumes, um patife...
+
+--Não, não te calumniaram. Sob o ponto de vista do padre e d'aquellas
+senhoras que jogam á noite o quino na rua da Misericordia tu és um
+patife: um christão que nos periodicos vitupera abbades, conegos, curas,
+personagens tão importantes para se communicar com Deus e para se salvar
+a alma, é um patife. Não te calumniaram, amigo!
+
+--Mas, senhor doutor...
+
+--Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediencia ás
+instrucções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa
+catholica. É o que te digo. Toda a vida do bom catholico, os seus
+pensamentos, as suas idéas, os seus sentimentos, as suas palavras, o
+emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de familia e
+de visinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuario e os seus
+divertimentos--tudo isto é regulado pela auctoridade ecclesiastica
+(abbade, bispo ou conego), approvado ou censurado pelo confessor,
+aconselhado e ordenado pelo _director da consciencia_. O bom catholico,
+como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem
+arbitrio, nem sentir proprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente
+por ella. O seu unico trabalho n'este mundo, que é ao mesmo tempo o seu
+unico direito e o seu unico dever, é aceitar esta direcção; aceital-a
+sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ella contraria as suas
+idéas, deve pensar que as suas idéas são falsas; se ella fere as suas
+affeições, deve pensar que as suas affeições são culpadas. Dado isto, se
+o padre disse á pequena que não devia nem casar, nem sequer fallar
+comtigo, a creatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa catholica, uma
+devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que
+escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.
+
+João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas phrases, a que a face
+placida, a bella barba grisalha do doutor davam uma auctoridade maior.
+Parecia-lhe agora quasi impossivel recuperar Amelia, se ella pertencia
+assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas
+emfim, porque era elle considerado um marido prejudicial?
+
+--Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem de maus costumes, senhor
+doutor. Mas eu porto-me bem; eu não faço senão trabalhar; eu não
+frequento tabernas nem troças; eu não bebo, eu não jógo; as minhas
+noites passo-as na rua da Misericordia, ou em casa a fazer serão para o
+cartorio...
+
+--Meu rapaz, tu pódes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a
+religião de nossos paes, todas as virtudes que não são catholicas são
+inuteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo,
+verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não
+contam. Se tu fôres um modelo de bondade mas não fôres á missa, não
+jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor
+cura--és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja
+alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impeccavel, têm sido julgados
+verdadeiros canalhas porque não foram baptisados antes de ter sido
+perfeitos. Has de ter ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado
+Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes.
+Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das
+virtudes d'esses homens estava cheio o inferno... Isto prova que a moral
+catholica é differente da moral natural e da moral social... Mas são
+coisas que tu comprehendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo
+a doutrina catholica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as
+ruas da cidade; e o meu visinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas
+e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez annos, é
+entre o clero um homem excellente porque cumpre os seus deveres de
+devoto e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo, estas coisas são
+assim. E parece que são boas, porque ha milhares de pessoas respeitaveis
+que as consideram boas, o Estado mantem-as, gasta até um dinheirão para
+as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as--e eu, que estou aqui a
+fallar, pago todos os annos um quartinho para que ellas continuem a ser
+assim. Tu naturalmente pagas menos...
+
+--Pago sete vintens, senhor doutor.
+
+--Mas emfim vaes ás festas, ouves musica, sermão, desforras-te dos teus
+sete vintens. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéa
+de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja--da Igreja que em vida
+me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um
+inferno de primeira classe. Emfim, parece-me que temos cavaqueando
+bastante... Que queres mais?
+
+João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor,
+parecia-lhe, mais que nunca, que se um homem de palavras tão sabias, de
+tantas idéas, se interessasse por elle, toda a intriga seria facilmente
+desfeita e a sua felicidade, o seu logar na rua da Misericordia
+recobrados para sempre.
+
+--Então vossa excellencia não póde fazer nada por mim? disse muito
+desconsolado.
+
+--Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia. Tens outra pneumonia a
+curar? Não? Então...
+
+João Eduardo suspirou:
+
+--Sou uma victima, senhor doutor!
+
+--Fazes mal. Não deve haver victimas, quando não seja senão para impedir
+que haja tyrannos--disse o doutor, pondo o seu largo chapéo desabado.
+
+--Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao
+doutor com uma sofreguidão d'afogado, no fim de tudo o que o patife do
+parocho quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ella fosse
+um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um impio ou não! O
+que elle quer é a rapariga!
+
+O doutor encolheu os hombros.
+
+--É natural, coitado--disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres
+tu? Elle tem para as mulheres, como homem, paixões e orgãos; como
+confessor, a importancia d'um Deus. É evidente que ha de utilisar essa
+importancia para satisfazer essas paixões; e que ha de cobrir essa
+satisfação natural com as apparencias e com os pretextos do serviço
+divino... É natural.
+
+João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que
+o trouxera alli, disse, furioso, vergastando o ar com o chapéo:
+
+--Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a vêr varrida
+da face da terra, senhor doutor!
+
+--Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutal-o ainda,
+e parando á porta do quarto. Ouve lá. Tu crês em Deus? no Deus do céo,
+no Deus que lá está no alto do céo, e que é lá de cima o principio de
+toda a justiça e de toda a verdade?
+
+João Eduardo, surprehendido, disse:
+
+--Eu creio, sim senhor.
+
+--E no peccado original?
+
+--Tambem...
+
+--Na vida futura, na redempção, etc?
+
+--Fui educado n'essas crenças...
+
+--Então para que queres varrer os padres da face da terra? Deves pelo
+contrario ainda achar que são poucos. És um liberal racionalista nos
+limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do céo, que nos
+dirige lá de cima, e no peccado original, e na vida futura, precisas
+d'uma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral
+revelada de Deus, que te ajudem a purificar da macula original e te
+preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas dos padres. E parece-me
+mesmo uma terrivel falta de logica que os desacredites pela imprensa...
+
+João Eduardo, attonito, balbuciou:
+
+--Mas vossa excellencia, senhor doutor... Desculpe-me vossa excellencia,
+mas...
+
+--Dize, homem. Eu quê?
+
+--Vossa excellencia não precisa dos padres n'este mundo...
+
+--Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso
+do Deus do céo. Isto quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro
+em mim, isto é, o principio que dirige as minhas acções e os meus
+juizos. Vulgo Consciencia... Talvez não comprehendas bem... O facto é
+que estou aqui a expôr doutrinas subversivas... E realmente são tres
+horas...
+
+E mostrou-lhe o _cebolão_.
+
+Á porta do pateo, João Eduardo disse-lhe ainda:
+
+--Vossa excellencia então desculpe, senhor doutor...
+
+--Não ha de quê... Manda a rua da Misericordia ao diabo!
+
+João Eduardo interrompeu com calor:
+
+--Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá
+por dentro!...
+
+--Ah! fez o doutor, é uma bella e grande coisa a paixão! O amor é uma
+das grandes forças da civilisação. Bem dirigida levanta um mundo e
+bastava para nos fazer a revolução moral...--E mudando de tom:--Mas
+escuta. Olha que isso ás vezes não é paixão, não está no coração... O
+coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decencia,
+para designar outro orgão. É precisamente esse orgão o unico que está
+interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E
+n'esses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!
+
+
+
+
+XV
+
+
+João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado,
+todo cansado da noite desesperada que passára, d'aquella manhã cheia de
+passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouvêa.
+
+--Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É aguentar.
+
+Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, d'esperança e de
+cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, n'um sitio isolado, longe
+de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante mezes. Mas como
+já passava das tres horas, apressava-se para o cartorio do Nunes. Teria
+talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a
+sua!
+
+Dobrára a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osorio
+se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra
+muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço sobre as
+suas feições extremamente pallidas.
+
+--Ólé! Que é feito, João Eduardo?
+
+Era um Gustavo, typographo da _Voz do Districto_, que havia dois mezes
+fôra para Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era «rapaz de cabeça e
+instruidote, mas d'idéas do diabo». Escrevia ás vezes artigos de
+Politica Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas e retumbantes,
+amaldiçoando Napoleão III, o czar e os oppressores do povo, chorando a
+escravidão da Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre elle
+e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos
+exhalavam o seu odio ao clero e a sua admiração por Jesus Christo. A
+revolução d'Hespanha enthusiasmára-o tanto que aspirára a pertencer á
+Internacional; e o desejo de viver n'um centro operario, onde houvesse
+associações, discursos e fraternidade, levára-o a Lisboa. Encontrára lá
+bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãi, velha e
+doente, e como era mais economico viverem juntos, voltára a Leiria. O
+_Districto_, além d'isso, na perspectiva d'eleições, prosperava a ponto
+de augmentar o salario aos tres typographos.
+
+--De modo que lá estou outra vez com o rachitico...
+
+Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia.
+Não havia d'acabar o mundo, que diabo, por elle faltar um dia ao
+cartorio!
+
+João Eduardo então lembrou-se que desde a vespera não tinha comido. Era
+talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão prompto a
+desanimar... Decidiu-se logo--contente, depois das emoções e das fadigas
+da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante d'um prato cheio, na
+intimidade com um camarada d'odios iguaes aos seus. Demais, os repellões
+que soffrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de sympathia; e foi
+com calor que disse:
+
+--Homem, valeu! Caes-me do céo! Este mundo é uma choldra. Se não fosse
+por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar
+por cá!
+
+Este modo, tão novo no João Eduardo, no _Pâcatinho_, espantou Gustavo.
+
+--Porquê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hein?
+perguntou-lhe.
+
+--Não. Um bocado de _spleen_.
+
+--Isso de _spleen_ é d'inglez! Oh menino, havias de vêr o Taborda no
+_Amor londrino_!... Deixa lá o _spleen_. É deitar lastro para dentro e
+carregar no liquido!
+
+Travou-lhe do braço, metteu-o pela porta da taberna.
+
+--Viva o tio Osorio! Saude e fraternidade!
+
+O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem obeso e contente da
+vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos hombros, os braços nús
+muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finoria,
+felicitou logo Gustavo de o vêr de novo em Leiria. Achava-o mais
+magrito... Havia de ser das más aguas de Lisboa e do muito _pau
+campeche_ nos vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?
+
+Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéo para a nuca,
+apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o enthusiasmára em Lisboa:
+
+--Tio Osorio, sirva-nos figado de rei, com rim grelhado de padre!
+
+O tio Osorio, prompto á réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha
+sobre o zinco do contador:
+
+--Não temos cá d'isso, snr. Gustavo. Isso é petisco da capital.
+
+--Então estão vossês muito atrazados! Em Lisboa era todos os dias o meu
+almoço... Bem, acabou-se, dê-nos duas iscas com batatas... E bem
+saltadinho, isso!
+
+--Hão de ser servidos como amigos.
+
+Accommodaram-se á «mesa dos envergonhados», entre dois tabiques de pinho
+fechados por uma cortina de chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo,
+«moço instruido e de pouca troça», veio elle mesmo trazer a garrafa do
+tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:
+
+--Então que ha de novo pela capital, snr. Gustavo? Como vai por lá
+aquillo?
+
+O typographo deu immediatamente seriedade ao rosto; passou a mão pelos
+cabellos, e deixou cahir algumas phrases enigmaticas:
+
+--Tremidito... Muito pouca vergonha em politica... A classe operaria
+começa a mexer-se... Falta d'união, por ora... Está-se á espera de vêr
+como as coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas! Tudo
+depende d'Hespanha ...
+
+Mas o tio Osorio, que juntára alguns vintens e comprára uma fazenda,
+tinha horror a tumultos... O que se queria no paiz era paz... Sobretudo
+o que lhe desagradava era contar-se com hespanhoes... De Hespanha,
+deviam os cavalheiros sabel-o, «nem bom vento nem bom casamento»!
+
+--Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar d'atirar
+abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não ha
+portuguezes nem hespanhoes, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio
+Osorio!
+
+--Pois então é beber-lhe á saude, e beber-lhe rijo, que isso é que faz
+andar o negocio, disse o tio Osorio tranquillamente, rolando a sua
+obesidade para fóra do cubiculo.
+
+--Elephante! rosnou o typographo, chocado com aquella indifferença pela
+Fraternidade dos Povos. Que se podia esperar, de resto, d'um
+proprietario e d'um agente d'eleições?
+
+Trauteou a _Marselheza_, enchendo os copos d'alto, e quiz saber o que
+tinha feito o amigo João Eduardo... Já se não ia pelo _Districto_? O
+rachitico dissera-lhe que não havia despegal-o da rua da Misericordia...
+
+--E quando é esse casamento, por fim?
+
+João Eduardo córou, disse vagamente:
+
+--Nada decidido... Tem havido difficuldades.--E acrescentou com um
+sorriso desconsolado:--Temos tido arrufos.
+
+--Pieguices! soltou o typographo, com um movimento d'hombros, que
+exprimia um desdem de revolucionario pelas frivolidades do sentimento.
+
+--Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é
+que dão desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...
+
+Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.
+
+Mas o typographo achava todas essas historias de mulheres ridiculas. O
+tempo não estava para amores... O homem do povo, o operario que se
+agarrava a uma saia para não despegar, era um inutil... era um vendido!
+Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao
+povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopolios,
+trabalhar para a republica! Não se queria lamuria, queria-se acção,
+queria-se a força!--E carregava furiosamente no _r_ da palavra--a
+forrrça!--agitando os seus pulsos magrissimos de tisico sobre o grande
+prato d'iscas que o moço trouxera.
+
+João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o typographo,
+doido pela Julia padeira, apparecia sempre com os olhos vermelhos como
+carvões, e atroava a typographia com suspiros medonhos. A cada _ai_ os
+camaradas, troçando, davam uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo,
+Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pateo...
+
+--Olha quem falla! disse por fim. És como os outros... Estás ahi a
+palrar, e quando te chega és como os outros.
+
+O typographo então--que, desde que em Lisboa frequentára um Club
+democratico d'Alcantara e ajudára a redigir um manifesto aos irmãos
+cigarreiros em _grève_, se considerava exclusivamente votado ao serviço
+do Proletariado e da Republica--escandalisou-se. Elle? Elle como os
+outros? Perder o seu tempo com saias?...
+
+--Está vossa senhoria muito enganado!--E recolheu-se a um silencio
+chocado, partindo com furor a sua isca.
+
+João Eduardo receou tel-o offendido.
+
+--Ó Gustavo, sejamos razoaveis: um homem póde ter os seus principios,
+trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma
+família.
+
+--Nunca! exclamou o typographo exaltado. O homem que casa está perdido!
+D'ahi por diante é ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um
+momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando elles
+berram com os dentes... É um inutil! é um vendido! As mulheres não
+entendem nada de politica. Têm medo que o homem se metta em barulhos,
+tenha turras com a policia... Está um patriota atado de pés e mãos! E
+quando ha um segredo a guardar? O homem casado não póde guardar um
+segredo!... E ahi está ás vezes uma revolução compremettida... Sêbo
+p'r'á familia! Outra de azeitonas, tio Osorio!
+
+A pansa do tio Osorio appareceu entre os tabiques.
+
+--Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram
+os da _Maia_ no conselho de districto?
+
+Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de perna estirada, e
+interpellando-o d'alto:
+
+--O tio Osorio é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de
+mudar as suas opiniões politicas para fazer a vontade á sua patrôa?
+
+O tio Osorio acariciou o cachaço e disse com um tom finorio:
+
+--Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós...
+E em politica, como em negocio, quem fôr com o que ellas dizem vai pelo
+seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai em
+vinte annos e não me tenho achado mal.
+
+Gustavo pulou no banco:
+
+--Vossê é um vendido! gritou.
+
+O tio Osorio, acostumado áquella expressão querida do typographo, não se
+escandilisou; gracejou até, com o seu amor ás boas réplicas:
+
+--Vendido não direi, mas vendedor p'r'ó que quizer... Pois é o que lhe
+digo, snr. Gustavo. O senhor casará, e depois m'as contará.
+
+--O que lhe hei de contar, é quando houver uma revolução, entrar-lhe por
+aqui d'espingarda ao hombro, e mettel-o em conselho de guerra, seu
+capitalista!
+
+--Pois emquanto isso não chega é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio
+Osorio retirando-se com pachorra.
+
+--Hippopotamo! resmungou o typographo.
+
+E, como adorava discussões, recomeçou logo--sustentando que o homem,
+embeiçado por uma saia, não tem firmeza nas suas convicções politicas...
+
+João Eduardo sorria tristemente, n'uma negação muda, pensando comsigo
+que, apesar da sua paixão por Amelia, não se tinha confessado nos dois
+ultimos annos!
+
+--Tenho provas! berrava Gustavo.
+
+Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz
+domestica, se sujeitava a jejuar ás sextas-feiras, e a palmilhar aos
+domingos o caminho da capella de ripanço debaixo do braço...
+
+--E é o que te ha de succeder!... Tu tens idéas menos más a respeito de
+religião, mas ainda te hei de vêr d'opa vermelha e cirio na mão na
+procissão do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo não custam nada
+quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas pratical-os em
+familia, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te
+ha de succeder, se é que te não vai succedendo já: has de atirar as tuas
+convicções liberaes para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao
+confessor da casa!
+
+João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua
+felicidade, quando tinha Amelia certa, aquella accusação (que o
+typographo fazia só para questionar, para palrar) tel-o-hia
+escandalisado. Mas hoje! Justamente quando elle perdera Amelia por ter
+dito d'alto, n'um jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava
+alli, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exactamente
+pelas suas opiniões liberaes!...
+
+--Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.
+
+O typographo galhofou:
+
+--Homem, não me constou ainda que fosses um _martyr da liberdade_!
+
+--Por quem és não me apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito
+chocado. Tu não sabes o que se tem passado. Se soubesses não me dizias
+isso...
+
+Contou-lhe então a historia do _Communicado_--calando todavia que o
+escrevera n'um fogo de ciumes, e apresentando-o como uma pura affirmação
+de principios... E que notasse esta circumstancia, ia então casar com
+uma rapariga devota, n'uma casa que era mais frequentada por padres que
+a sacristia da Sé...
+
+--E assignaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.
+
+--O doutor Godinho não quiz, disse o escrevente córando um pouco.
+
+--E déste-lhes uma desanda, hein?
+
+--A todos, de rachar!
+
+O typographo, enthusiasmado, berrou por «outra de tinto»!
+
+Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saude a João Eduardo.
+
+--Caramba, quero vêr isso! Quero mandal-o á rapaziada em Lisboa!... E
+que effeito fez?
+
+--Um escandalo mestre.
+
+--E os padrecas?
+
+--Em braza!
+
+--Mas como souberam que eras tu?
+
+João Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava
+da mulher do Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fôra metter no
+bico do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio da rua das
+Therezas...
+
+--Um gordo, que parece hydropico?
+
+--Sim.
+
+--Que bêsta! rugiu o typographo com rancor.
+
+Olhava agora João Eduardo com respeito, aquelle João Eduardo que se lhe
+revelava inesperadamente um paladino do livre-pensamento.
+
+--Bebe, amigo, bebe!--dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com affecto, como
+se aquelle esforço heroico de liberalismo necessitasse ainda, depois de
+tantos dias, reconfortos excepcionaes.
+
+E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da rua da Misericordia?
+
+Tanto interesse commoveu João Eduardo: e d'um fôlego fez a sua
+confidencia. Mostrou-lhe mesmo a carta d'Amelia que ella decerto,
+coitada, fôra levada a escrever n'um terror do inferno, sob a pressão
+dos padres furiosos...
+
+--E aqui tens a victima que eu sou, Gustavo!
+
+Era-o com effeito; e o typographo considerava-o com uma admiração
+crescente. Já não era o _Pacatinho_, o escrevente do Nunes, o chichisbéo
+da rua da Misericordia--era uma _victima das perseguições religiosas_.
+Era a primeira que o typographo via; e, apesar de não lhe apparecer na
+attitude tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de
+fogueira ou fugindo com a familia espavorida a soldados que galopam da
+sombra do ultimo plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente
+aquella honra social. Que _chic_ que lhe daria a elle entre a rapaziada
+d'Alcantara! Famosa pechincha, ser uma _victima da reacção_ sem perder o
+conforto das iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!--Mas
+sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem d'um
+liberal, intrigarem-no, tiraram-lhe a noiva!--Oh, que canalha!... E
+esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e á Familia, trovejou d'alto
+contra o clero, que é quem sempre destroe essa instituição social,
+perfeita, d'origem divina!
+
+--Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessario arrasal-os!
+
+Uma vingança? João Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?
+
+--Qual? Contar tudo no _Districto_, n'um artigo tremendo!
+
+João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: d'alli por diante
+o _Districto_ estava fechado aos senhores livre-pensadores!
+
+--Cavalgadura! rugiu o typographo.
+
+Mas tinha uma idéa, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte
+paginas, o que se chama no Brazil uma _mofina_, mas n'um estylo floreado
+(elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero com um desabamento
+de verdades mortaes!
+
+João Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella sympathia activa de
+Gustavo, vendo n'elle um irmão, soltou as ultimas confidencias, as mais
+dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre Amaro
+pela pequena, e era para se apoderar d'ella que o escorraçava a elle...
+O inimigo, o malvado, o carrasco--era o parocho!
+
+O typographo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era
+para elle trivial, nas locaes que compunha) succedido a um amigo seu que
+estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe monstruoso,
+alguma coisa semelhante aos furores de Tiberio na velhice, violando, em
+banhos perfumados, as carnes delicadas de mancebos patricios.
+
+Não queria acreditar. João Eduardo accumulou as provas. E então Gustavo,
+que tinha molhado vastamente de tinta as iscas de figado, ergueu os
+punhos fechados, e com a face entumecida, dente rilhado, berrou em
+rouco:
+
+--Abaixo a religião!
+
+Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em réplica:
+
+--Viva Pio Nono!
+
+Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido. Mas João Eduardo
+socegou-o. E o typographo, sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo
+do copo.
+
+Então, com os cotovêlos sobre a mesa, a garrafa entre elles, conversaram
+baixo, de rosto a rosto, sobre o plano do folheto. A coisa era facil:
+escrevel-o-hiam ambos. João Eduardo queria-o em fórma de romance,
+d'enredo negro, dando ao personagem do parocho os vicios e as
+perversidades de Caligula e d'Hellogabalo. O typographo porém queria um
+livro philosophico, de estylo e de principios, que **demolisse** d'uma
+vez para sempre o Ultramontanismo! Elle mesmo se encarregava de imprimir
+a obra aos serões, _gratis_, já se sabe.--Mas appareceu-lhes então,
+bruscamente, uma difficuldade.
+
+--O papel? Como se ha de arranjar o papel?
+
+Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum os tinha--nem um amigo
+que, por dedicação aos principios, lh'os adiantasse.
+
+--Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o
+typographo.
+
+João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente
+pensando no Nunes e na sua indignação de devoto, de membro da junta de
+parochia, d'amigo do chantre, apenas lêsse o pamphleto! E se soubesse
+que era o seu escrevente que o compuzera, com as pennas do cartorio, no
+papel almaço do cartorio... Via-o já rôxo de cólera, alçando sobre o
+bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e gritando na voz de
+grillo:--«Fóra d'aqui, pedreiro-livre, fóra d'aqui!»
+
+--Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher
+nem pão!
+
+Isto fez lembrar tambem a Gustavo a cólera provavel do doutor Godinho,
+dono da typographia. O doutor Godinho, que depois da reconciliação com a
+gente da rua da Misericordia, retomára publicamente a sua consideravel
+posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...
+
+--É o diabo, póde-nos sahir caro, disse elle.
+
+--É impossivel! disse o escrevente.
+
+Então praguejaram de raiva. Perder uma occasião d'aquellas para pôr a
+calva á mostra ao clero!
+
+O plano do folheto, como uma columna tombada que parece maior,
+afigurava-se-lhes, agora que estava derrubado, d'uma altura, d'uma
+importancia colossal. Não era já a demolição local d'um parocho
+scelerado, era a ruina, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos
+jesuitas, do poder temporal, de outras coisas funestas...--Maldição! se
+não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil
+reis do papel...
+
+Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro e dependencia do
+patrão, que até para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a
+sociedade.
+
+--Positivamente é necessario uma revolução! affirmou o typographo. É
+necessario arrasar tudo, tudo!--E o seu largo gesto sobre a mesa
+indicava, n'um formidavel nivelamento social, uma demolição de igrejas,
+palacios, bancos, quarteis e predios de Godinhos!--Outra do tinto, tio
+Osorio!...
+
+Mas o tio Osorio não apparecia. Gustavo martellou a mesa a toda a força
+com o cabo da faca. E emfim, furioso, sahiu fóra ao contador «para
+arrebentar a pansa áquelle vendido que fazia assim esperar um cidadão».
+
+Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de
+Via-Clara, que, em vesperas d'eleições, vinha pelas casas de pasto
+apertar a mão aos compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o
+barão, com a sua luneta d'ouro, os botins de verniz sobre o sólo terreo,
+tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das emanações das borras
+de vinho.
+
+Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubiculo.
+
+--Está com o barão, disse n'uma surdina respeitosa.
+
+Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o
+typographo exhortou-o a não esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de
+casar com uma beata...
+
+--Não me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu João Eduardo com um
+repellão no prato.
+
+--Não te afflijas, prometteu o typographo com solemnidade, que a
+vingança não vem longe!
+
+Fez-lhe então, baixo, a confidencia «das coisas que se preparavam em
+Lisboa». Tinham-lhe afiançado que havia um club republicano a que até
+pertenciam figurões--o que era para elle uma garantia superior de
+triumpho. Além d'isso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Elle mesmo--e
+murmurava quasi contra a face de João Eduardo, estirado sobre a
+mesa--fôra fallado para pertencer a uma secção da Internacional, que
+devia organisar um hespanhol de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se
+disfarçava por causa da policia; e a coisa falhára porque o _Comité_
+tinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuia um
+talho, que promettera cem mil reis... O exercito, além d'isso, estava na
+coisa: tinha visto n'uma reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham
+dito que era major, e que tinha cara de major...--De modo que, com todos
+estes elementos, a opinião d'elle Gustavo, era que dentro de mezes,
+governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam
+pelos ares!
+
+--E então somos nós os reisinhos, menino! Godinho, Nunes, toda a cambada
+ferramol-a na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao
+Godinho... Padres, derreamol-os á pancada! E o povo respira, emfim!
+
+--Mas d'aqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que
+quando a revolução viesse já seria tarde para recuperar a Ameliasinha...
+
+O tio Osorio então appareceu com a garrafa.
+
+--Ora até que emfim, «seu fidalgo»! disse o typographo a trasbordar de
+sarcasmo.
+
+--Não se pertence á classe, mas é-se tratado por ella com consideração,
+replicou logo o tio Osorio, a quem a satisfação fazia parecer mais
+pansudo.
+
+--Por causa de meia duzia de votos!
+
+--Dezoito na freguezia, e esperanças de dezenove. E que se ha de servir
+mais aos cavalheiros? Nada mais? Pois é pena. Então é beber-lhe, é
+beber-lhe!
+
+E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia,
+aspirarem a uma Revolução que lhes permittisse--a um rehaver a menina
+Amelia, a outro espancar o patrão Godinho.
+
+Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim do cubiculo. O tio Osorio,
+que se interessava por elles por serem rapazes d'instrucção, notou logo,
+examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu _Popular_, que
+«vinham tocaditos». João Eduardo, sobretudo, de chapéo carregado e beiço
+trombudo: «pessoa de mau vinho», pensou o tio Osorio, que o conhecia
+pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre, depois dos seus tres litros,
+resplandecia de jubilo. Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e
+gingando para o balcão, batendo d'alto com as suas duas placas:
+
+--Encafua mais essas na burra, Osorio pipa!
+
+--O que é pena é que sejam só duas, snr. Gustavo.
+
+--Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para
+encher a pansa dos Philistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste
+de contas quem ha de ter a honra de te furar esse bandulho ha de ser cá
+o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João,
+quem é o Bibi?
+
+João Eduardo não o escutava: muito carrancudo, olhava com desconfiança
+um borracho, que na mesa do fundo, diante do seu litro vazio, com o
+queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes, embasbacára,
+maravilhado, para os dois amigos.
+
+O typographo puxou-o para o balcão:
+
+--Dize aqui ao tio Osorio quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe p'ra
+isto, tio Osorio! Rapaz de talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas
+pennadas dá cabo do ultramontanismo! É cá dos meus! Tambem entre nós é
+p'r'á vida e p'r'á morte. Deixa lá a conta, Osorio barrigudo, ouve o que
+te digo! Este é dos bons... E se elle aqui voltar e quizer dois litros a
+credito, é dar-lh'os... Cá o Bibi responde por tudo.
+
+--Temos pois, começou o tio Osorio, iscas a dois, salada a dois...
+
+Mas o borracho arrancára-se com esforço ao seu banco: de cachimbo
+espetado, arrotando forte, veio plantar-se diante do typographo, e,
+tremeleando nas pernas, estendeu-lhe a mão aberta.
+
+Gustavo considerou-o d'alto, com nojo:
+
+--Que quer vossê? Aposto que foi vossê que berrou ha pouco «Viva Pio
+Nono»? Seu vendido... Tire p'ra lá a pata!
+
+O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando contra João Eduardo,
+offereceu-lhe a mão espalmada.
+
+--Arrede p'ra lá, seu animal! disse-lhe o escrevente desabrido.
+
+--Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava o borracho.
+
+E não se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um
+halito fetido.
+
+João Eduardo, furioso, atirou-o de repellão contra o contador.
+
+--Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo severamente o tio Osorio.
+Brutalidades, não!
+
+--Que se não mettesse commigo, rosnou o escrevente. E a vossê faço-lhe o
+mesmo...
+
+--Quem não tem decencia vai p'r'á rua, disse muito grave o tio Osorio.
+
+--Quem vai p'r'á rua, quem vai p'r'á rua? rugiu o escrevente,
+empinando-se, de punho fechado. Repita lá isso d'ir p'r'á rua! Com quem
+está vossê a fallar?
+
+O tio Osorio não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando
+os seus enormes braços que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
+
+Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os dois, e declarou que era
+necessario ser-se cavalheiro! Questões e más palavras, não! Podia-se
+chalacear e troçar os amigos, mas como cavalheiros! E alli só havia
+cavalheiros!
+
+Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava muito resentido.
+
+--Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes gestos, isso não é d'um
+homem illustrado!
+
+Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho
+desordeiro, não havia pandega, nem sociedade, nem fraternidade!
+
+Voltou ao tio Osorio, fallando-lhe sobre o hombro, excitado:
+
+--Eu respondo por elle, Osorio! É um cavalheiro! Mas tem tido desgostos,
+e não está acostumado a um litro de mais. É o que é! Mas é dos bons...
+Vossê desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por elle...
+
+Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osorio. O
+taberneiro declarou com emphase que não quizera insultar o cavalheiro.
+Os _shake-hands_ então succederam-se com vehemencia. Para consolidar a
+reconciliação, o typographo pagou tres «canas brancas». João Eduardo,
+por brio, offereceu tambem um «giro» de cognac. E com os copos em fila
+sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de
+cavalheiros--emquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para
+cima da mesa, a cabeça sobre os punhos e o nariz sobre o litro, se
+babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.
+
+--D'isto é que eu gósto! dizia o typographo a quem a aguardente
+augmentára a ternura. Harmonia! Cá o meu fraco é a harmonia! Harmonia
+entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era vêr uma
+grande mesa, e toda a humanidade sentada n'um banquete, e fogo preso, e
+chalaça, e decidirem-se as questões sociaes! E o dia não vem longe em
+que vossê o ha de vêr, tio Osorio!... Em Lisboa as coisas vão-se
+preparando p'ra isso. E o tio Osorio é que ha de fornecer o vinho...
+Hein, que negociosinho! Diga que não sou amigo!
+
+--Obrigado, snr. Gustavo, obrigado...
+
+--Isto aqui entre nós, hein, que somos todos cavalheiros! E cá
+este--abraçava João Eduardo--é como se fosse irmão! Entre nós é p'r'á
+vida e p'r'á morte! E é mandar a tristeza ao diabo, rapaz! Toca a
+escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...
+
+--O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente, que, depois das
+«saudes» com cana, parecia mais sombrio.
+
+Dois soldados entraram então na taberna--e Gustavo julgou que eram horas
+d'ir para a typographia. Senão, não se haviam de separar todo o dia, não
+se haviam de separar toda a vida!... Mas o trabalho é dever, o trabalho
+é virtude!
+
+Sahiram, emfim, depois de mais _shake-hands_ com o tio Osorio. Á porta,
+Gustavo jurou ainda ao escrevente uma lealdade d'irmão; obrigou-o a
+aceitar a sua bolsa de tabaco; e desappareceu á esquina da rua, de
+chapéo para a nuca, trauteando o _Hymno do trabalho_.
+
+
+João Eduardo, só, abalou logo para a rua da Misericordia. Ao chegar á
+porta da S. Joanneira, apagou com cuidado o cigarro na sola do sapato, e
+deu um puxão tremendo ao cordão da campainha.
+
+A _Ruça_ veio, correndo.
+
+--A Ameliasinha? Quero-lhe fallar!
+
+--As senhoras sahiram, disse a _Ruça_ espantada do modo do snr.
+Joãosinho.
+
+--Mente, sua bebeda! berrou o escrevente.
+
+A rapariga, aterrada, fechou a porta d'estalo.
+
+João Eduardo foi-se encostar á parede defronte, e ficou alli, de braços
+cruzados, observando a casa: as janellas estavam fechadas, as cortinas
+de cassa corridas: dois lenços de rapé do conego seccavam em baixo na
+varanda.
+
+Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com
+furor a campainha. Ninguem appareceu: então, indignado, partiu para os
+lados da Sé.
+
+Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando
+em redor com o sobr'olho carregado: mas o largo parecia deserto; á porta
+da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau, guardava pela
+arreata um burro carregado de herva; aqui e além, gallinhas iam picando
+o chão vorazmente; o portão da igreja estava fechado; e apenas se ouvia
+o ruido de martelladas n'uma casa ao pé em que havia obras.
+
+E João Eduardo ia seguir para os lados da Alameda--quando appareceram no
+terraço da igreja, da banda da sacristia, o padre Silverio e o padre
+Amaro, conversando, devagar.
+
+Batia então um quarto na torre, e o padre Silverio parou a acertar o seu
+_cebolão_. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janella da
+administração, de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do
+senhor administrador de binoculo cravado para a casa do Telles alfaiate.
+E desceram emfim a escadaria da Sé, rindo d'hombro a hombro, divertidos
+com aquella paixão que escandalisava Leiria.
+
+Foi então que o parocho viu João Eduardo que estacára no meio do largo.
+Parou para voltar á Sé decerto, evitar o encontro; mas viu o portão
+fechado, e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio que tirava
+tranquillamente a sua caixa de rapé,--quando João Eduardo,
+arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a força um murro ao
+hombro d'Amaro.
+
+O parocho, aturdido, ergueu frouxamente o guardachuva.
+
+--Acudam! berrou logo o padre Silverio, recuando de braços no ar.
+Acudam!
+
+Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o
+escrevente pela gola:
+
+--Está preso! rugia. Está preso!
+
+--Acudam, acudam! berrava Silverio a distancia.
+
+Janellas no largo abriam-se á pressa. A Amparo da botica, em saia
+branca, appareceu á varanda, espavorida; o Carlos precipitára-se do
+laboratorio em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada,
+bracejava, com o binoculo na mão.
+
+Emfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave,
+de mangas de lustrina enfiadas: e com o cabo de policia levou logo para
+a administração o escrevente, que não resistia, todo pallido...
+
+O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor parocho para a botica;
+fez preparar, com estrepito, flôr de laranja e ether; gritou pela
+esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o hombro de sua
+senhoria: haveria intumecencia?
+
+--Obrigado, não é nada, dizia o parocho muito branco. Não é nada. Foi um
+raspão. Basta-me uma gota d'agua...
+
+Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho do Porto; e correu acima a
+buscar-lh'o, tropeçando nos pequenos que se lhe penduravam das saias,
+dando ais, explicando pela escada á criada que tinham querido matar o
+senhor parocho!
+
+Á porta da botica juntára-se gente, que embascava para dentro; um dos
+carpinteiros que trabalhavam nas obras affirmava que «fôra uma facada»;
+e uma velha por traz debatia-se, de pescoço esticado, para vêr o
+_sangue_. Emfim, a pedido do parocho, que receava escandalo, o Carlos
+veio magestosamente declarar que não queria motim à porta! O senhor
+parocho estava melhor. Fôra apenas um sôco, um raspão de mão... Elle
+respondia por sua senhoria.
+
+E, como o burro ao lado começára a ornear, o pharmaceutico voltando-se
+indignado para o rapazito que o segurava pela arreata:
+
+--E tu não tens vergonha, no meio d'um desgosto d'estes, um desgosto
+para toda a cidade, de ficar aqui com esse animal, que não faz senão
+zurrar! Para longe, insolente, para longe!
+
+Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para
+evitar a «curiosidade da populaça». E a boa Amparo appareceu logo com
+dois calices do Porto, um para o senhor parocho, outro para o senhor
+padre Silverio que se deixára cahir a um canto do canapé, apavorado
+ainda, extenuado d'emoção.
+
+--Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois de ter chupado a
+ultima gota de _porto_, e é a primeira vez que me vejo n'um barulho!
+
+O padre Amaro, mais socegado agora, affectando bravura, chasqueou o
+padre Silverio:
+
+--Vossê tomou o caso muito ao tragico, collega... E lá ser a primeira,
+vamos lá... Todos sabem que o collega esteve pegado com o Natario...
+
+--Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era entre sacerdotes, amigo!
+
+Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo outro calix ao senhor
+parocho, quiz saber «os particulares, todos os particulares...»
+
+--Não ha particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o collega...
+Vinhamos cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava
+desprevenido, deu-me um raspão no hombro.
+
+--Mas porquê? porquê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, n'um
+assombro.
+
+O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, elle dissera, diante
+da Amparosinho e de D. Josepha, a irmã do respeitavel conego Dias, que
+estas idéas de materialismo e atheismo estavam levando a mocidade aos
+mais perniciosos excessos... E mal sabia elle então que estava
+prophetisando!
+
+--Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os
+deveres de christão (assim nol-o affirmou D. Josepha), associa-se com
+bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas
+senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos
+periodicos ataques abjectos contra a **religião**... E emfim, possuido
+de uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo da cathedral, sobre
+um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta
+assassinal-o! Ora, pergunto eu, o que ha no fundo de tudo isto? Odio,
+puro odio á religião de nossos paes!
+
+--**Infelizmente** assim é, suspirou o padre Silverio.
+
+Mas a Amparo, indifferente ás causas philosophicas do delicto, ardia na
+curiosidade de saber o que se passaria na administração, o que diria o
+escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se logo
+a ir averiguar.
+
+De resto, disse elle, era o seu dever, como homem de sciencia,
+esclarecer a justiça sobre as consequencias que **podia ter** trazido um
+murro, a força de braço, na região delicada da clavicula... (ainda que,
+louvado Deus, não havia fractura, nem inchaço), e sobretudo queria
+revelar á auctoridade, para que ella tomasse as suas providencias, que
+aquella tentativa d'espancamento não provinha de vingança pessoal. Que
+podia ter feito o senhor parocho da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha
+d'uma vasta conspiração d'atheus e republicanos contra o sacerdocio de
+Christo!
+
+--Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
+
+--E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do
+concelho!
+
+Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de
+chinelas e quinzena de laboratorio: mas Amparo alcançou-o no corredor:
+
+--Oh, filho! a sobrecasaca, põe a sobrecasaca ao menos, que o
+administrador é de ceremonia!
+
+Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o Carlos, com a imaginação
+trabalhando viva (aquella desgraçada imaginação que, como elle dizia,
+até ás vezes lhe dava dôres de cabeça), ia preparando o seu depoimento,
+que faria ruido na cidade. Fallaria de pé. Na saleta da administração
+seria um apparato judicial: á sua mesa, o senhor administrador, grave
+como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses, activos sobre o
+seu papel sellado; e o réo, defronte, na attitude tradicional dos
+criminosos politicos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta
+desafiando a morte. Elle, Carlos, então, entraria e diria: _Senhor
+administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindicta
+social_!
+
+--Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro, que é tudo resultado
+d'uma conspiração do racionalismo. Pódes estar certa, Amparosinho, é uma
+conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido d'esforço, as
+presilhas dos botins de cano.
+
+--E repara se elle falla da pequena, da S. Joanneira...
+
+--Hei de tomar notas. Mas não se trata da S. Joanneira. Isto é um
+processo politico!
+
+Atravessou o largo magestosamente, certo que os visinhos, pelas portas,
+murmuravam: _Lá vai o Carlos depôr_... Ia depôr, sim, mas não sobre o
+murro no hombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o
+que estava por traz do murro--uma conspiração contra a Ordem, a Igreja,
+a Carta e a Propriedade! É o que elle provaria d'alto ao senhor
+administrador. Este murro, excellentissimo senhor, é o primeiro excesso
+d'uma grande revolução social!
+
+E empurrando o batente de baeta que dava accesso para a administração do
+concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o
+vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o apparato judicial
+que elle concebera. O réo lá estava, sim, pobre João Eduardo, mas
+sentado á beira do banco, com as orelhas em braza, olhando estupidamente
+o soalho. Arthur Couceiro, embaraçado com a presença d'aquelle intimo
+dos serões da S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o não olhar
+fixára o nariz sobre o immenso copiador d'officios, onde desdobrára o
+_Popular_ da vespera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas
+e muito sérias, embebia-se na ponta da penna de pato que aparava sobre a
+unha. O escrivão Domingos, esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis
+rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo
+de trazer a sua idéa... E o Carlos então adiantando-se:
+
+--Meus senhores! O senhor administrador?
+
+Justamente a voz de sua excellencia chamou de dentro do seu gabinete:
+
+--Ó snr. Domingos?
+
+O escrivão perfilou-se, puxando os oculos para a testa.
+
+--Senhor administrador!
+
+--O senhor tem phosphoros?
+
+O Domingos procurou anciosamente pela algibeira, na gaveta, entre os
+papeis...
+
+--Algum dos senhores tem phosphoros?
+
+Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa... Não, não havia phosphoros.
+
+--Ó snr. Carlos, o senhor tem phosphoros?
+
+--Não tenho, snr. Domingos. Sinto.
+
+O senhor administrador appareceu então, ageitando as suas lunetas de
+**tartaruga**:
+
+--Ninguem tem phosphoros, hein? É extraordinario que não haja aqui nunca
+phosphoros! Uma repartição d'estas sem um phosphoro... Que fazem os
+senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez meia duzia de caixas!
+
+Os empregados olhavam-se consternados d'essa falta flagrante no material
+do serviço administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presença e
+da attenção de sua excellencia:
+
+--Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e
+espontaneo, por assim dizer...
+
+--Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu a auctoridade. O parocho e
+o outro ainda estão lá na botica?
+
+--O senhor parocho e o senhor padre Silverio ficaram com minha esposa a
+repousar da commoção que...
+
+--Tem a bondade de lhes ir dizer que são cá precisos...
+
+--Eu estou á disposição da lei.
+
+--Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir
+embora! Vejam que massada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição
+fecha-se ás tres!
+
+E sua excellencia, rodando sobre os tacões, foi debruçar-se á sacada do
+seu gabinete--áquella sacada d'onde elle diariamente, das onze ás tres,
+retorcendo o bigode louro e entesando o plastron azul, depravava a
+mulher do Telles.
+
+O Carlos abria já o batente verde, quando um _pst_ do Domingos o deteve.
+
+--Ó amigo Carlos--e o sorrisinho do escrivão tinha uma supplicação
+tocante--desculpe, hein? Mas... Traz-me de lá uma caixita de phosphoros?
+
+N'este momento à porta apparecia o padre Amaro; e por traz a massa
+enorme do Silverio.
+
+--Eu desejava fallar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.
+
+Todos os empregados se ergueram; João Eduardo tambem, branco como a cal
+do muro. O parocho, com as suas passadas subtis d'ecclesiastico,
+atravessou a repartição, seguido do bom Silverio que ao passar diante do
+escrevente descreveu d'esguelha um semi-circulo cauteloso, com terror ao
+réo; o senhor administrador acudira a receber suas senhorias; e a porta
+do gabinete fechou-se discretamente.
+
+--Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos
+collegas.
+
+O Carlos sentára-se descontente. Viera alli para esclarecer a
+auctoridade sobre os perigos sociaes que ameaçavam Leiria, o Districto e
+a Sociedade, para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo elle,
+era um processo politico--e alli estava calado, esquecido, no mesmo
+banco ao lado do réo! Nem lhe tinham offerecido uma cadeira! Seria
+realmente intoleravel que as coisas se arranjassem entre o parocho e o
+administrador sem o consultarem a elle! Elle, o unico que percebera
+n'aquelle murro dado no hombro do padre--não o punho do escrevente, mas
+a mão do Racionalismo! Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe um
+erro funesto na administração do Estado. Positivamente o administrador
+não tinha a capacidade necessaria para salvar Leiria dos perigos da
+revolução! Bem se dizia na Arcada--era uma bambocha!
+
+A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador
+reluziram.
+
+--Ó snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar? disse sua excellencia.
+
+O escrivão apressou-se com importancia; e a porta cerrou-se de novo,
+confidencialmente. Ah! aquella porta, fechada diante d'elle, deixando-o
+de fóra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires, com o Arthur,
+entre as intelligencias subalternas, elle que promettera á Amparosinho
+fallar d'alto ao administrador! E quem era ouvido, e quem era chamado? O
+Domingos, um animal notorio, que começava _satisfação_ com um _c_
+cedilhado! Que se podia de resto esperar d'uma auctoridade que passava
+as manhãs de binoculo a deshonrar uma familia? Pobre Telles, seu
+visinho, seu amigo!... Não, realmente devia fallar ao Telles!
+
+Mas a sua indignação cresceu quando viu o Arthur Couceiro, um empregado
+da repartição, na ausencia do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha,
+vir familiarmente junto do réo, dizer-lhe com melancolia:
+
+--Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja-se,
+verás!
+
+João tinha encolhido tristemente os hombros. Havia meia hora que alli
+estava, sentado á beira d'aquelle banco, sem se mexer, sem despregar os
+olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de idéas, como se
+lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osorio e
+no largo da Sé lhe accendia na alma fogachos de cólera, lhe retesava os
+pulsos n'um desejo de desordem, parecia subitamente eliminado do seu
+organismo. Sentia-se agora tão inoffensivo como quando no cartorio
+aparava cautelosamente a sua penna de pato. Um grande cansaço
+entorpecia-o; e alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo o
+seu sêr, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S.
+Francisco, dormir n'uma palhoça, comer da Misericordia... Não tornaria a
+passear na Alameda, não veria mais Amelia... A casita em que vivia seria
+alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho,
+ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugenia, a visinha, o
+recolhesse...
+
+O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua excellencia, e fechando
+vivamente a porta sobre si, em triumpho:
+
+--Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se tudo!
+
+E para João Eduardo:
+
+--Seu felizão! Parabens! parabens!
+
+O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo administrativo desde o
+tempo dos Cabraes! E ia retirar-se enojado (como no quadro classico o
+Stoico que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor administrador
+abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
+
+Sua excellencia deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade,
+distillando as palavras, com as lunetas cravadas no réo:
+
+--O senhor padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade,
+veio-me expôr... Emfim, veio-me supplicar que não désse mais andamento a
+este negocio... Sua senhoria com razão não quer vêr o seu nome arrastado
+nos tribunaes. Além d'isso, como sua senhoria disse muito bem, a
+religião, de que elle é... de que elle é, posso dizel-o, a honra e o
+modêlo, impõe-lhe o perdão da offensa... Sua senhoria reconhece que o
+ataque foi brutal, mas frustrado... Além d'isso parece que o senhor
+estava bebedo...
+
+Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquillo
+pareceu-lhe n'esse momento peor que a prisão.
+
+--Emfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei
+devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se
+porta. A auctoridade não o perde d'olho... Bem, póde ir com Deus!
+
+E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou immovel,
+como parvo.
+
+--Posso ir, hein? balbuciou.
+
+--P'r'á China, p'ra onde quizer! _Liberus, libera, liberum!_ exclamou o
+Domingos que, interiormente detestando padres, jubilava com aquelle
+final.
+
+João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo
+Carlos; duas lagrimas bailavam-lhe nas palpebras; de repente agarrou o
+chapéo e abalou.
+
+--Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente
+as mãos.
+
+Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, á pressa. É que era
+tarde! O Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha
+de vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica. E no vão da
+janella, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.
+
+Emfim os dois padres sahiram acompanhados até á porta pelo senhor
+administrador, que, terminados os deveres publicos, reapparecia homem de
+sociedade.--Então porque não tinha o amigo Silverio vindo a casa da
+baroneza de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levára
+dois codilhos. Tinha dito blasphemias medonhas!... Criado de suas
+senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse harmonisado. Cuidado com o
+degrau... Ás ordens de suas senhorias...
+
+Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do
+Domingos, e retomando alguma solemnidade:
+
+--A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta
+já os ataques que ha contra o clero nos jornaes... A coisa podia fazer
+barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciumes do padre, que
+queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa...
+Quanto mais que, segundo o parocho me provou, toda a influencia que elle
+tem exercido na rua da Misericordia ou onde diabo é, tem tido por fim
+livrar a rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se vê, é um
+bebedo e uma fera!
+
+O Carlos roia-se. Todas aquellas explicações eram dadas ao Domingos! A
+elle, nada! Alli ficava, esquecido no vão da janella!
+
+Mas não! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete, chamou-o
+mysteriosamente com o dedo.
+
+Emfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a
+auctoridade.
+
+--Eu estava para passar pela botica--disse-lhe o administrador baixo e
+sem transição, dando-lhe um papel dobrado--para que me mandasse isto a
+casa, hoje. É uma receita do doutor Gouvêa... Mas já que o amigo aqui
+está...
+
+--Eu tinha vindo para me pôr á disposição da vindicta...
+
+--Isso está acabado! interrompeu vivamente sua excellencia. Não se
+esqueça, mande-me isso antes das seis. É para tomar ainda esta noite.
+Adeus. Não se esqueça!
+
+--Não faltarei, disse sêccamente o Carlos.
+
+Ao entrar na botica, a sua cólera flammejava. Ou elle não se chamava
+Carlos, ou havia de mandar uma correspondencia tremenda ao _Popular_!...
+Mas a Amparo, que lhe espreitára a volta da varanda, correu,
+atirando-lhe as perguntas:
+
+--Então? Que se passou? O rapaz foi p'r'á rua? Que disse elle? Como foi?
+
+O Carlos fixava-a, com as pupillas chammejantes.
+
+--Não foi culpa minha, mas triumphou o materialismo! Elles o pagarão!
+
+--Mas tu que disseste?
+
+Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar
+a citação do seu depoimento--o Carlos, tendo de resalvar a dignidade de
+esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
+
+--Dei a minha opinião, com firmeza!
+
+--E elle que disse, o administrador?
+
+Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotára na
+mão. A indignação emmudeceu-o--vendo que era aquelle todo o resultado da
+sua grande entrevista com a auctoridade!
+
+--Que é? perguntou sôfregamente a Amparo.
+
+O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom
+renome da auctoridade, o Carlos exclamou:
+
+--É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Ahi tem a
+receita, snr. Augusto.
+
+A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia, conhecia os beneficios
+do mercurio, fez-se tão escarlate como as fitas flammejantes que lhe
+enfeitavam a cuia.
+
+
+Toda essa tarde se fallou com excitação pela cidade «da tentativa
+d'assassinato de que estivera para ser victima o senhor parocho».
+Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os
+cavalheiros da opposição sobretudo, que viram na debilidade d'aquelle
+funccionario uma prova incontestavel de que o governo ia, com os seus
+desperdicios e as suas corrupções, levando o paiz a um abysmo!
+
+Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que
+mansidão! O senhor chantre mandou-o chamar á noitinha, recebeu-o
+paternalmente com um «viva o meu cordeiro paschal»! E depois de escutar
+a historia do insulto, a generosa intervenção...
+
+--Filho, exclamou, isso é alliar a mocidade de Telemacho á prudencia de
+Mentor! Padre Amaro, vossê era digno de ser sacerdote de Minerva na
+cidade de Salento!
+
+Quando Amaro entrou á noite em casa da S. Joanneira--foi como a
+apparição d'um santo escapo ás feras do Circo ou á plebe de Diocleciano!
+Amelia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as mãos, muito
+tempo, toda tremula, com os olhos humidos. Deram-lhe, como nos grandes
+dias, a poltrona verde do conego. A snr.^a D. Maria da Assumpção quiz
+mesmo que se lhe puzesse uma almofada para elle apoiar o hombro dorido.
+Depois teve de contar miudamente toda a scena, desde o momento em que,
+conversando com o collega Silverio (que se portára muito bem), avistára
+o escrevente no meio do largo, de bengalão alçado e ar de matamouros...
+
+Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente apparecia-lhes
+peor que Longuinhos e que Pilatos. Que malvado! O senhor parocho devia-o
+ter calcado aos pés! Ah! era d'um santo, ter perdoado!
+
+--Fiz o que me inspirou o coração, disse elle baixando os olhos.
+Lembrei-me das palavras de Nosso Senhor Jesus Christo: elle manda
+offerecer a face esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face
+direita...
+
+O conego, a isto, escarrou grosso e observou:
+
+--Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão á face direita... Emfim,
+são ordens de Nosso Senhor Jesus Christo, offereço a face esquerda. São
+ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdote,
+oh, senhoras, desanco o patife!
+
+--E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou do canto uma vozinha
+expirante e desconhecida.
+
+Acontecimento extraordinario! Era a snr.^a D. Anna Gansoso que fallára
+depois de dez longos annos de taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor
+que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim, sob um impulso de
+sympathia pelo senhor parocho, uma vibração humana!--Todas as senhoras
+lhe sorriram, agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
+
+--Quasi nada, snr.^a D. Anna, quasi nada, minha senhora... Que elle deu
+de rijo! Mas eu sou de boa carnadura.
+
+--Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias, furiosa á idéa do punho do
+escrevente descarregado sobre aquelle hombro santo. Que monstro! Eu
+queria-o vêr com uma grilheta a trabalhar na estrada! Que eu é que o
+conhecia! A mim nunca elle me enganou... Sempre lhe achei cara
+d'assassino!
+
+--Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S.
+Joanneira.
+
+Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilegio! Era
+uma fera, era uma fera!
+
+E a exultação foi grande quando Arthur Couceiro, apparecendo, deu logo
+da porta a novidade, a ultima: o Nunes mandára chamar o João Eduardo e
+dissera-lhe (palavras textuaes): «Eu, bandidos e malfeitores não os
+quero no meu cartorio. Rua!»
+
+A S. Joanneira então commoveu-se:
+
+--Pobre rapaz, fica sem ter que comer...
+
+--Que beba! que beba! gritou a snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+Todos riram. Só Amelia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito
+pallida, aterrada áquella idéa que João Eduardo teria talvez fome...
+
+--Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joanneira. É até coisa
+que me vai tirar o somno... Pensar que o rapaz ha de querer um bocado de
+pão e não ha de ter... Credo! Não, isso não! E o senhor padre Amaro
+desculpe...
+
+Mas Amaro tambem não desejava que o rapaz cahisse em miseria! Não era
+homem de rancor, elle! E se o escrevente viesse á sua porta com
+necessidade, duas ou tres placas (não era rico, não podia mais), mas
+tres ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as de coração.
+
+Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo! Olhavam-n'o, babosas, com
+as mãos vagamente postas. A sua presença, como a d'um S. Vicente de
+Paulo, exhalando caridade, dava á sala uma suavidade de capella: e a
+snr.^a D. Maria da Assumpção suspirou de gozo devoto.
+
+Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor,
+rompeu em triumpho:
+
+--Então já sabem? O **patife**, o assassino, escorraçado de toda a parte
+como um cão! O Nunes expulsou-o do cartorio. O doutor Godinho disse-me
+agora que no governo civil não punha elle os pés. Enterrado, demolido! É
+um allivio p'r'á gente de bem!
+
+--E ao senhor padre Natario se deve! exclamou D. Josepha Dias.
+
+Todos o reconheciam. Fôra elle, com a sua habilidade, a sua labia, que
+descobrira a perfidia de João Eduardo, salvára a Ameliasinha, Leiria, a
+Sociedade.
+
+--E em tudo o que pretender, o maroto, ha de me encontrar pela frente.
+Emquanto elle estiver em Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minhas
+senhoras?... «Eu é que o esmago!» Pois ahi o têm esmagado!
+
+A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente,
+no repouso merecido de uma victoria difficil. E voltando-se para Amelia:
+
+--E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe
+posso dizer!
+
+Então os louvores--que já lhe tinham repetido prolixamente desde que
+ella rompera com a fera--recomeçaram, mais vivos:
+
+--Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua vida!
+
+--É a graça de Deus que te tocou!
+
+--Estás em graça, filha!
+
+--Emfim é Santa Amelia, disse o conego erguendo-se, enfastiado
+d'aquellas glorificações. Pois parece-me que temos fallado bastante do
+patife... Mande agora a senhora vir o chá, hein?
+
+Amelia permanecia calada, cosendo á pressa; erguia ás vezes rapidamente
+para Amaro um olhar desassocegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças
+de Natario; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome,
+foragido, dormindo pelas portas dos casaes... E emquanto as senhoras se
+accommodavam, palrando, á mesa do chá, ella pôde dizer baixo a Amaro:
+
+--Não posso socegar com a idéa que o rapaz soffra necessidades... Eu bem
+sei que é um malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me
+toda a alegria.
+
+O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior
+á injuria, n'um alto espirito de caridade christã:
+
+--Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguem
+morre de fome em Portugal. É novo, tem saude, não é tolo, ha de se
+arranjar... Não pense n'isso... Aquillo é palavriado do padre Natario...
+O rapaz naturalmente sae de Leiria, não tornamos a ouvir fallar
+d'elle... E em toda a parte ha de ganhar a vida... Eu por mim
+perdoei-lhe, e Deus ha de tomar isso em conta.
+
+Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante,
+tranquillisaram-na inteiramente. A clemencia, a caridade do senhor
+parocho pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e
+de monges piedosos.
+
+Depois do chá, ao quino, ficou junto d'elle. Uma alegria plena e suave
+penetrava-a deliciosamente. Tudo o que até ahi a importunára e a
+assustára, João Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera emfim da
+sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se--e o senhor parocho alli
+estava, todo d'ella, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os
+seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento em que todos faziam um
+alarido indignado contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quinára e
+brandia o cartão triumphante, foram as mãos que se encontraram, se
+acariciaram; um pequeno suspiro simultaneo, perdido na gralhada das
+velhas, ergueu o peito d'ambos; e até ao fim da noite foram marcando os
+seus cartões, muito calados, com as faces accêsas, sob a pressão brutal
+do mesmo desejo.
+
+Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia aproximou-se do piano para
+correr uma escala, e Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
+
+--Oh, filhinha, que te quero tanto! E não podermos estar sós...
+
+Ella ia responder--quando a voz de Natario, que se embrulhava no seu
+capote ao pé do aparador, exclamou, muito severa:
+
+--Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?
+
+Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella indignação, a olhar o
+largo volume encadernado que Natario indicava com a ponta do
+guardachuva, como um objecto abominavel. D. Maria da Assumpção
+aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando que seria alguma d'essas
+novellas, tão famosas, em que se passam coisas immoraes. E Amelia
+chegando-se tambem, disse, admirada de tal reprovação:
+
+--Mas é o _Panorama_... É um volume do _Panorama_...
+
+--Que é o _Panorama_ vejo eu, disse Natario com seccura. Mas tambem vejo
+isto.--Abriu o volume na primeira pagina branca, e leu
+alto:--«_Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me
+de recreio nos meus ocios_.» Não comprehendem, hein? Pois é muito
+simples... Parece incrivel que as senhoras não saibam que esse homem,
+desde que poz as mãos n'um sacerdote, está _ipso facto_ excommungado, e
+excommungados todos os objectos que lhe pertencem!
+
+Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se do aparador onde jazia
+aberto o _Panorama_ fatal, arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo,
+áquella idéa da Excommunhão que se lhes representava como um desabamento
+de catastrophes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus
+Vingador: e alli ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado, em torno de
+Natario, que, de capotão pelos hombros e braços cruzados, gozava o
+effeito da sua revelação.
+
+Então a S. Joanneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:
+
+--O senhor padre Natario está a fallar sério?
+
+Natario indignou-se:
+
+--Se estou a fallar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar
+sobre um caso d'excommunhão, minha senhora? Pergunte ahi ao senhor
+conego se eu estou a gracejar!
+
+Todos os olhos se voltaram para o conego, essa inesgotavel fonte de
+saber ecclesiastico.
+
+Elle então, tomando logo o ar pedagogico que lhe voltava dos seus
+antigos habitos do seminario sempre que se tratava de doutrina, declarou
+que o collega Natario tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo
+que é um sacerdote, está _ipso facto_ excommungado. É doutrina assente.
+É o que se chama a excommunhão latente; não necessita a declaração do
+pontifice ou do bispo, nem o ceremonial, para ser valida, e para que
+todos os fieis considerem o offensor como excommungado. Devem-no tratar
+portanto como tal... Evital-o a elle, e ao que lhe pertence... E este
+caso de pôr mãos sacrilegas n'um sacerdote era tão especial, continuava
+o conego n'um tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando os
+casos de excommunhão tacita, conserva-a todavia para o que maltrata um
+sacerdote...--Citou ainda mais bullas, as Constituições de Innocencio IX
+e de Alexandre VII, a Constituição Apostolica, outras legislações
+temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras.
+
+--Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se
+fazer d'isso espalhafato...
+
+D. Josepha Dias acudiu logo:
+
+--Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por
+cima das mesas coisas excommungadas.
+
+--É destruir! exclamou D. Maria da Assumpção. É queimar! é queimar!
+
+D. Joaquina Gansoso arrastára Amelia para o vão da janella,
+perguntando-lhe se tinha outros objectos pertencentes ao homem. Amelia,
+atarantada, confessou que tinha algures, não sabia onde, um lenço, uma
+luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
+
+--É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
+
+A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas n'um furor
+santo. D. Josepha Dias, D. Maria da Assumpção fallavam com gozo do
+_fogo_, enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial de
+exterminação devota. Amelia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas
+gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, á caça dos
+«objectos excommungados». E a S. Joanneira assistia, attonita e
+assustada, áquelle alarido d'auto-de-fé que atravessava bruscamente a
+sua sala pacata, refugiada ao pé do conego, que depois de ter rosnado
+algumas palavras sobre «a Inquisição em casas particulares», se
+enterrára commodamente na poltrona.
+
+--É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito á
+batina, dizia Natario baixo a Amaro.
+
+O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente d'aquellas
+cóleras beatas que eram como a affirmação ruidosa do amor que lhe tinham
+as senhoras.
+
+Mas D. Josepha impacientava-se. Agarrára já o _Panorama_ com as pontas
+do chale, para evitar o contagio, e gritava para dentro, para o quarto,
+onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
+
+--Então appareceu?
+
+--Cá está, cá está!
+
+Era a Gansoso que entrava triumphante com a cigarreira, a velha luva e o
+lenço de algodão.
+
+E as senhoras, em alarido, arremetteram para a cozinha. A mesma S.
+Joanneira as seguiu, como boa dona de casa, para fiscalisar a fogueira.
+
+Os tres padres então, sós, olharam-se--e riram.
+
+--As mulheres têm o diabo no corpo, disse o conego philosophicamente.
+
+--Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natario fazendo-se
+sério. Eu rio porque a coisa, assim vista, parece patusca. Mas o
+sentimento é bom. Prova a verdadeira devoção ao sacerdocio, horror á
+impiedade... Emfim o sentimento é excellente.
+
+--O sentimento é excellente, confirmou Amaro, tambem sério.
+
+O conego ergueu-se:
+
+--E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lh'o
+digo a brincar, que a mana tem figados para isso... É um Torquemada de
+saias...
+
+--Está na verdade, está na verdade, affirmou Natario.
+
+--Eu não resisto a ir vêr a execução! exclamou o conego. Eu quero vêr
+com os meus olhos!
+
+E os tres padres então foram até á porta da cozinha. As senhoras lá
+estavam, em pé diante da lareira, batidas da luz violenta da fogueira
+que fazia destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que já se
+tinham coberto. A _Ruça_, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado
+com o facão a encardernação do _Panorama_; e as folhas retorcidas e
+negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas linguas do
+fogo claro. Só a luva de pellica não se consumia. Debalde com as tenazes
+a punham no vivo da chamma: tisnava, reduzida a um caroço engorolado;
+mas não ardia. E a sua resistencia aterrava as senhoras.
+
+--É que é a da mão direita com que commetteu o desacato! dizia furiosa
+D. Maria da Assumpção.
+
+--Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe! aconselhava da porta o conego muito
+divertido.
+
+--O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josepha.
+
+--Oh, mana! a senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se
+queima um impio? A pretenção não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
+
+Então, confiadas na sciencia do senhor conego, a Gansoso e D. Maria da
+Assumpção, acocoradas, bufaram tambem. As outras olhavam, n'um sorriso
+mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella exterminação grata a
+Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na gloria
+da sua antiga funcção de purificador dos peccados.--E por fim sobre as
+achas em braza, nada restou do _Panorama_, do lenço e da luva do impio.
+
+A essa hora João Eduardo, o impio, no seu quarto, sentado aos pés da
+cama, soluçava, com a face banhada em lagrimas, pensando em Amelia, nos
+bons serões da rua da Misericordia, na cidade para onde iria, na roupa
+que empenharia, e perguntando em vão a si mesmo porque o tratavam assim,
+elle que era tão trabalhador, que não queria mal a ninguem, e que a
+adorava tanto, a ella?
+
+
+
+
+XVI
+
+
+No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joanneira e Amelia
+atravessaram a Praça para ir buscar D. Maria da Assumpção, que em dias
+de mercado e de «populacho» nunca sahia só, receosa que lhe roubassem as
+joias ou lhe insultassem a castidade.
+
+N'essa manhã, com effeito, a affluencia das freguezias enchia a Praça:
+os homens em grupo, atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados,
+de jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhões
+e de corações d'ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros
+azafamavam-se por traz dos balcões alastrados de lençaria e de chitas;
+nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os saccos
+de farinha, os montões de louça, os cestos de brôa, ia um regatear sem
+fim; havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos
+redondos e transbordam os mólhos de rosarios; velhas faziam pregão por
+traz dos seus taboleiros de cavacas; e os pobres, afreguezados á cidade,
+choramingavam Padre-nossos pelas esquinas.
+
+Já senhoras passavam para a missa, todas em sêdas, de rostinho sisudo; e
+a Arcada estava cheia de cavalheiros, têsos nos seus fatos de casimira
+nova, fumando caro, gozando o domingo.
+
+Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo
+alto d'um grupo: _Ai, que me leva o coração!_ E as duas senhoras,
+apressando-se, dobravam para a rua do Correio, quando lhes appareceu o
+Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde «o
+desacato do largo da Sé», e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que
+desgosto aquelle! O malvado do escrevente! Elle tinha tido tanto que
+fazer, que só n'essa manhã é que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os
+sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; elle
+quiz-lhe vêr o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura...
+E se ellas vissem, que carnadura tão delicada, que pelle tão branca...
+Uma pellinha d'archanjo!
+
+--Mas querem vossês saber, filhas? Encontrei-o n'uma grande afflicção!
+
+As duas senhoras assustaram-se. Porquê, Libaninho?
+
+A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava, tinha ido n'essa
+madrugada para o hospital com um febrão...
+
+--E alli está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vossês! Para
+hoje bem, que vai jantar com o nosso conego (tambem lá estive, ai, que
+santo!), mas ámanhã, mas depois? Que elle já tem em casa a irmã da
+Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas, a Dionysia! Foi o que eu lhe
+disse: a Dionysia póde ser uma santa, mas que reputação!... É que não ha
+peor em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a
+certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!
+
+As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia (mulher que não cumpria
+os preceitos, que representára em theatros de curiosos) não convinha ao
+senhor parocho...
+
+--Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu lá
+lh'o disse, lá lhe fiz a proposta. É ferrar-se outra vez em tua casa.
+Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa,
+que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Elle não disse que _não_
+nem que _sim_. Mas olha que se lhe podia lêr na cara que está a morrer
+por isso... Tu é que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!
+
+Amelia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de sêda da India. E a
+S. Joanneira disse ambiguamente:
+
+--Fallar-lhe não... Eu n'essas coisas sou muito delicada... Bem
+comprehendes...
+
+--Era como teres um santo de portas a dentro, filha! disse com calor o
+Libaninho. Lembra-te d'isso! E era um gosto para todos... Tenho a
+certeza que até Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora adeus,
+pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a
+cahir.
+
+As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assumpção.
+Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade
+tão inesperada, tão grave, do senhor parocho voltar para a rua da
+Misericordia! Foi só quando pararam que a S. Joanneira disse, ao puxar à
+campainha:
+
+--Ai, o senhor parocho realmente não póde ter a Dionysia de portas a
+dentro...
+
+--Credo, até causa horror!
+
+Foi tambem a expressão da snr.^a D. Maria da Assumpção quando lhe
+contaram, em cima, a doença da Vicencia e a installação da Dionysia:
+causava horror!
+
+--Que eu não a conheço, disse a excellente senhora. E tenho até vontade
+de a conhecer. Que me dizem que é dos pés à cabeça uma crosta de
+peccado!
+
+A S. Joanneira então fallou da «proposta do Libaninho». D. Maria da
+Assumpção declarou logo com ardor que era uma inspiração de Nosso
+Senhor. Que nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da
+Misericordia! Até parece que mal elle se fôra embora, Deus retirára a
+sua graça da casa... Não houvera senão desgostos--o _Communicado_, a dôr
+de estomago do conego, a morte da entrevadinha, aquelle desgraçado
+casamento (que estivera por um _triz_, que horror!), o escandalo do
+largo da Sé... A casa tinha parecido enguiçada!... E era até peccado
+deixar viver o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da Vicencia,
+que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!
+
+--Em parte nenhuma póde estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que
+necessita, de portas a dentro... E para ti é uma honra, é estar em
+graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o hospedava
+era eu! Que aqui é que elle estava bem... Que salinha para elle, hein?
+
+Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
+
+A sala com effeito era toda ella uma immensa armazenagem de santaria e
+de _bric-à-brac_ devoto: sobre as duas commodas de pau preto com
+fechaduras de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas, as Nossas
+Senhoras vestidas de sêda azul, os Meninos Jesus frizados com o
+ventresinho gordo e a mão abençoadora, os Santo Antonios no seu burel,
+os S. Sebastiões bem fréchados, os S. Josés barbudos. Havia santos
+exoticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça--S.
+Paschoal Baylão, S. Didacio, S. Chrisolo, S. Gorislano... Depois eram os
+bentinhos, os rosarios de metal e de caroços d'azeitonas, contas de
+côres, rendas amarellas d'antigas alvas, corações de vidro escarlate,
+almofadinhas com J. M. entrelaçados a missanga, ramos bentos, palmas de
+martyres, cartuchinhos d'incenso. As paredes desappareciam forradas de
+estampas de Virgens de todas as devoções,--equilibradas sobre o orbe,
+enrodilhadas aos pés da cruz, trespassadas d'espadas. Corações d'onde
+gotejava sangue, corações d'onde sahia uma fogueira, corações d'onde
+dardejavam raios: orações encaixilhadas para as festas particularmente
+amadas--o _Casamento de Nossa Senhora_, a _Invenção da Santa Cruz_, os
+_Estigmas de S. Francisco_, sobretudo o _Parto da Santa Virgem_, a mais
+devota, que vem pelas quatro temporas. Sobre as mesas lamparinas
+accêsas, para serem collocadas sem demora aos santos especiaes, quando a
+boa senhora tivesse a sua sciatica, ou que o catarrho se assanhasse, ou
+lhe viessem as caimbras. Ella mesma, só ella, arrumava, espanejava,
+lustrava toda aquella santa população celeste, aquelle arsenal beato,
+que era apenas sufficiente para a salvação da sua alma e o allivio dos
+seus achaques. O seu grande cuidado era a collocação dos santos;
+alterava-a constantemente, porque ás vezes, por exemplo, sentia que
+Santo Eleuterio não gostava d'estar ao pé de S. Justino, e ia então
+pendural-o a distancia, n'uma companhia mais sympathica ao santo. E
+distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe
+explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e não tendo por S. José de
+segunda classe o respeito que sentia por S. José de primeira classe.
+Aquella riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos curiosos, e
+fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a vinha visitar, abrangendo a
+sala n'um olhar langoroso:--Ai, filha, é o reininho dos céos!
+
+--Não é verdade, continuava a excellente senhora radiante, que elle aqui
+é que estava bem, o santinho do parocho? É como ter o céo debaixo da
+mão!
+
+As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a sua casa arranjada com
+devoção, ella que era rica...
+
+--Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil reis. Sem
+contar o que está no relicario...
+
+Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim! Tinha lá uma
+lascasinha da verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Corôa,
+um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume,
+entre as devotas, que coisas tão preciosas, d'origem divina, deviam
+estar no sacrario da Sé. D. Maria da Assumpção, temendo que o senhor
+chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, só o mostrava ás intimas,
+mysteriosamente. E o santo sacerdote, que lh'o obtivera, fizera-a jurar
+sobre o Evangelho de não revelar a procedencia «para evitar
+fallatorios».
+
+A S. Joanneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
+
+--Que reliquia, que reliquia! murmurava.
+
+E D. Maria da Assumpção muito baixo:
+
+--Não ha melhor. Trinta mil reis me custou... Mas dava sessenta, mas
+dava cem! mas dava tudo!--E babando-se toda, diante do trapinho
+precioso:--O cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino, o seu
+cueirinho...
+
+Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicario no gavetão.
+
+Mas o meio dia ia bater--e as tres senhoras apressaram-se para a Sé,
+para pilhar logar no altar-mór.
+
+Já no largo encontraram D. Josepha Dias, que se precipitava para a
+igreja, sôfrega da missa, com o mantelete descahido sobre o hombro e uma
+pluma do chapéo a despregar-se. Tinha estado toda a manhã n'um phrenesi
+com a criada! Fôra necessario fazer ella todos os preparos para o
+jantar... Ai, tinha medo que nem a missinha lhe dêsse virtude, de
+nervosa que estava...
+
+--Que temos lá o senhor parocho hoje... Vossês sabem que adoeceu a
+criada... Ah, já me esquecia, o mano quer que tu lá vás jantar tambem,
+Amelia. Diz que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...
+
+Amelia riu d'alegria.
+
+--E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, á noitinha... Credo, vesti-me
+tanto á pressa, que até parece que me está a cahir o saiote!
+
+Quando as quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma
+missa cantada ao Santissimo. E apesar de contrario ao rigor do ritual,
+por um costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto na
+liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a
+Eucharistia, musica de rebeca, violoncello e flauta. O altar, muito
+ornado, com as reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva;
+docel, frontal, paramentos dos missaes eram brancos, com relevos d'ouro
+desmaiado; nos vasos erguiam-se ramos pyramidaes de flôres e folhagens
+brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como velarios, punham dos
+dois lados do tabernaculo a brancura de duas vastas azas desdobradas,
+lembrando a Pomba Espiritual; e os vinte castiçaes erguiam as suas
+chammas amarellas em throno até ao sacrario aberto, que mostrava d'alto,
+engastada n'um rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e baça. Por
+toda a igreja apinhada corria uma susurração lenta; aqui e além um
+catarrho expectorava, uma criança choramigava; o ar adensava-se já dos
+halitos juntos e d'um cheiro d'incenso; e do côro, onde as figuras dos
+musicos se moviam por traz dos braços dos rebecões e das estantes, vinha
+a cada momento um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim. As
+quatro amigas tinham-se apenas accommodado junto do altar-mór, quando os
+dois acolythos, um têso como um pinheiro, o outro gordalhufo e
+enxovalhado, entraram do lado da sacristia, sustentando alto e direito
+nas mãos os dois castiçaes consagrados; atraz o Pimenta vesgo, com uma
+sobrepelliz muito vasta para elle, lançando os seus sapatões em passadas
+pomposas, trazia o incensador de prata; depois successivamente, durante
+o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os
+dois diaconos; e emfim, paramentado de branco, d'olhos baixos e mãos
+postas, com aquelle recolhimento humilde que pede o ritual e que exprime
+a mansidão de Jesus marchando ao Calvario, entrou o padre Amaro--ainda
+vermelho da questão furiosa que tivera na sacristia, antes de se
+revestir, por causa da lavagem das alvas.
+
+E o côro immediatamente atacou o _Introito_.
+
+
+Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada para o parocho--que era,
+como dizia o conego, «um grande artista para missas cantadas»; todo o
+cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade, que
+cavalheirismo nas saudações ceremoniosas aos diaconos! Como se prostrava
+bem diante do altar, aniquilado e escravisado, sentindo-se cinza,
+sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado da sua
+côrte e da sua familia celeste! Mas era sobretudo admiravel nas bençãos;
+passava devagar as mãos sobre o altar como para apanhar, recolher a
+graça que alli cahia do Christo presente, e atirava-a depois com um
+gesto largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços
+brancos de cabeça, até ao fundo onde os homens do campo muito apertados,
+de varapau na mão, pasmavam para a scintillação do sacrario! Era então
+que Amelia o amava mais, pensando que aquellas mãos abençoadoras lh'as
+apertava ella com paixão por baixo da mesa do quino: aquella voz, com
+que elle lhe chamava _filhinha_, recitava agora as orações ineffaveis, e
+parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a mais que os
+graves do orgão! Imaginava com orgulho que todas as senhoras decerto o
+admiravam tambem; mas só tinha ciumes, um ciume de devota que sente os
+encantos do céo, quando elle ficava diante do altar, na posição extatica
+que manda o ritual, tão immovel como se a sua alma se tivesse remontado
+longe, para as alturas, para o Eterno e para o Insensivel. Preferia-o,
+por o sentir mais humano e mais accessivel, quando, durante o _Kirie_ ou
+a leitura da Epistola, elle se sentava com os diaconos no banco de
+damasco vermelho; ella queria então attrahir-lhe um olhar; mas o senhor
+parocho permanecia de olhos baixos n'uma compostura modesta.
+
+Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada n'um sorriso,
+admirava-lhe o perfil, a cabeça bem feita, os paramentos dourados--e
+lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da rua da
+Misericordia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passára desde
+essa noite! Recordava o Morenal, o salto do vallado, a scena da morte da
+titi, aquelle beijo ao pé da lareira... Ai, como acabaria tudo aquillo?
+Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe á idéa o que o
+Libaninho n'essa manhã dissera: «o senhor parocho tinha uma pellesinha
+tão branca como um archanjo...» Devia-a ter decerto muito delicada,
+muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma
+tentadora visitação do demonio,--e para a repellir arregalava os olhos
+para o sacrario e para o throno que o padre Amaro, cercado dos diaconos,
+incensava em semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores,
+emquanto o côro berrava o _Offertorio_... Depois elle mesmo, de pé, no
+segundo degrau do altar, de mãos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo
+fazia ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero; um
+perfume d'incenso derramava-se, como uma annunciação celeste;
+ennevoava-se o sacrario sob os rolos alvos de fumo; e o parocho
+apparecia a Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh, adorava-o
+então!
+
+A igreja tremia ao clamor do orgão em pleno; de bocas abertas, os
+coristas solfejavam a toda a força; em cima, alçando-se entre os braços
+dos rebecões, o mestre da capella, no fogo da execução, brandia
+desesperadamente a sua batuta feita d'um rolo de canto-chão.
+
+
+Amelia sahiu da igreja muito fatigada, muito pallida.
+
+Ao jantar, em casa do conego, a snr.^a D. Josepha censurou-a
+repetidamente de «não dar palavra».
+
+Não fallava, mas debaixo da mesa o seu pésinho não cessava de roçar,
+pisar o do padre Amaro. Como escurecera cedo tinham accendido as velas;
+o conego abrira uma garrafa, não do seu famoso _duque_ de 1815, mas do
+«1847», para acompanhar a travessa d'aletria, que enchia o centro da
+mesa, com as iniciaes do parocho desenhadas a canella; era, como
+explicára o conego, «uma galanteria da mana ao convidado». Amaro fizera
+logo uma saude com o 1847 «á digna dona da casa». Ella resplandecia,
+medonha no seu vestido de bareje verde. O que sentia é que o jantar
+fosse tão mau... Que aquella Gertrudes estáva-se a fazer uma
+desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!
+
+--Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o parocho.
+
+--São favores do senhor parocho. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais
+uma colhérzinha d'aletria, senhor parocho.
+
+--Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.
+
+--Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o conego.
+
+Elle mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um _ah_ de satisfação, e
+repoltreando-se:
+
+--Boa gota! Assim póde-se viver!
+
+Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de
+flanella e o guardanapo atado ao pescoço.
+
+--Boa gota! repetiu, d'este não provou hoje vossê nas galhetas...
+
+--Credo, mano! exclamou D. Josepha com a boca cheia de fios d'aletria,
+muito escandalisada da irreverencia.
+
+O conego encolheu os hombros com desprezo.
+
+--O credo é p'r'á missa! Esta pretenção de se metter sempre em questões
+que não percebe! Pois fique sabendo que é d'uma grande importancia a
+questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessario que o vinho
+seja bom...
+
+--Concorre para a dignidade do santo sacrificio, disse o parocho muito
+sério, fazendo uma caricia de joelho a Amelia.
+
+--E não é só isso, disse o conego tomando logo o tom pedagogo. É que o
+vinho, quando não é bom e tem ingredientes, deixa um deposito nas
+galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas
+ganham um cheiro pessimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que
+o sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Christo,
+não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora ahi tem a senhora!
+
+E deu um forte chupão ao calix. Mas estava fallador n'essa noite, e
+depois d'arrotar devagar, interpellou de novo D. Josepha, assombrada de
+tanta sciencia.
+
+--E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora: o vinho, no divino
+sacrificio, deve ser branco ou tinto?
+
+D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o
+sangue de Nosso Senhor.
+
+--Emende a menina, mugiu o conego de dedo em riste para Amelia.
+
+Ella recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia...
+
+--Emende o senhor parocho!
+
+Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...
+
+--E porquê?
+
+Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
+
+--E porque? continuava o conego, pedante e roncão.
+
+Não sabia.
+
+--Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando pela primeira vez consagrou,
+fel-o com vinho branco. E a razão é muito simples: é porque na Judéa
+n'esse tempo, como é notorio, não se fabricava vinho tinto... Repita-me
+a senhora a aletria, faça favor.
+
+Então, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro
+queixou-se do Bento sacristão. N'essa manhã antes de se
+paramentar--justamente quando entrára o senhor conego na
+sacristia--acabava de lhe dar uma desanda a respeito das alvas. Em
+primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia que vivia amancebada com um
+carpinteiro, em grande escandalo, e que era indigna de tocar os
+paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as tão
+enxovalhadas que era um desacato usal-as no divino sacrificio...
+
+--Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as a mim, acudiu D.
+Josepha. Dou-as á minha lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz
+a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as passava
+a ferro, e até se podia benzer o ferro...
+
+Mas o conego (que positivamente estava n'aquella noite d'uma loquacidade
+copiosa) interrompeu-a, e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o
+profundamente:
+
+--Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer,
+amigo e collega, que commetteu hoje um erro de palmatoria.
+
+Amaro pareceu inquieto.
+
+--Que erro, padre-mestre?
+
+--Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente, já com os
+diaconos ao lado, quando fez a cortezia á imagem da sacristia, em logar
+de fazer a cortezia profunda, fez só a meia cortezia.
+
+--Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica.
+_Facta reverentia cruci_, feita a reverencia á cruz: isto é, a
+reverencia simples, abaixar ligeiramente a cabeça...
+
+E, para **exemplificar**, fez uma cortezia a D. Josepha que lhe sorriu
+toda, torcendo-se.
+
+--Nego! exclamou formidavelmente o conego que em sua casa, á sua mesa,
+punha d'alto as suas opiniões. E nego com os meus auctores. Elles ahi
+vão!--E deixou-lhe cahir em cima, como penedos d'autoridade, os nomes
+venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavonio.
+
+Amaro afastára a cadeira, puzera-se em attitude de controversia,
+contente de poder, diante d'Amelia, «enterrar» o conego, mestre de
+theologia moral e um colosso de liturgia pratica.
+
+--Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
+
+--Alto, ladrão, bramiu o conego, Castaldus é meu!
+
+--Castaldus é meu, padre-mestre!
+
+E encarniçaram-se, puxando cada um para si o veneravel Castaldus e a
+auctoridade da sua facundia. D. Josepha pulava de gozo na cadeira,
+murmurando para Amelia com a cara franzida de riso:
+
+--Ai, que gostinho vêl-os! Ai, que santos!
+
+Amaro continuava, com o gesto alto:
+
+--E além d'isso tenho por mim o bom-senso, padre-mestre. _Primò_, a
+rubrica, como expuz. _Secundò_, o sacerdote, tendo na sacristia o
+barrete na **cabeça**, não deve fazer cortezia inteira, porque lhe póde
+cahir o barrete e temos desacato maior. _Tertiò_, seguir-se-hia um
+absurdo, porque então a cortezia antes da missa á cruz da sacristia
+seria maior que a que se faz depois da missa á cruz do altar!
+
+--Mas a cortezia á cruz do altar... bradou o conego.
+
+--É meia cortezia. Leia a rubrica: _Caput inclinat_. Leia Gavantus, leia
+Garriffaldi. E nem podia deixar de ser assim! Sabe porquê? Porque depois
+da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma vez que tem dentro
+em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto é
+meu!
+
+E de pé, esfregou vivamente as mãos, triumphando.
+
+O conego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi
+atordoado. E depois d'um momento:
+
+--Vossê não deixa de ter razão... Eu foi para o ouvir... Faz-me honra cá
+o discipulo, acrescentou piscando o olho a Amelia. Pois é beber, é
+beber! E depois salta o cafésinho bem quente, mana Josepha!
+
+Mas um forte repique á campainha sobresaltou-os.
+
+--É a S. Joanneira, disse D. Josepha.
+
+A Gertrudes entrou com um chale e uma manta de lã:
+
+--Aqui está isto que vem de casa da menina Amelia. A senhora manda
+muitos recados, que não póde vir, que se achou incommodada.
+
+--Então com quem hei de eu ir? disse logo Amelia, inquieta.
+
+O conego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na
+mão:
+
+--Em ultimo caso com este seu criado. E essa virtudesinha podia ir
+socegada...
+
+--Tem coisas, mano! gritou a velha.
+
+--Deixe lá, mana. O que passa pela boca d'um santo, santo fica.
+
+O parocho approvou ruidosamente:
+
+--Tem muita razão o senhor conego Dias! O que passa pela pela boca d'um
+santo, santo fica! Para que viva!
+
+--Á sua!
+
+E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controversia.
+
+Mas Amelia ficára assustada.
+
+--Jesus, que terá a mamã! Que será?
+
+--Ora o que ha de ser! preguiça! disse-lhe o parocho, rindo.
+
+--Não te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te eu levar, vamos todos
+levar-te...
+
+--Vai a menina em charola, rosnou o conego descascando a sua pêra.
+
+Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a
+mão pelo estomago:
+
+--Pois olhem, disse, não me estou tambem a sentir bem...
+
+--Que é? que é?
+
+--Um ameaçosito da dôr. Passou, não vale nada.
+
+D. Josepha, já assustada, não queria que elle comesse a pêra. Que a
+ultima vez que lhe dera fôra por causa da fructa...
+
+Mas elle, obstinado, cravou os dentes na pêra.
+
+--Passou, passou, rosnava.
+
+--Foi sympathia com a mamã, disse o parocho baixo a Amelia.
+
+De repente o conego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
+
+--Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai!
+morro!
+
+Alvoroçaram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o pelo braço até ao
+quarto, gritando á criada que fosse buscar o doutor. Amelia correu á
+cozinha a aquecer uma flanella para lhe pôr no estomago. Mas não
+apparecia flanella. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, á
+procura do seu chale para sahir.
+
+--Vá sem chale, sua estupida! gritou-lhe Amaro.
+
+A rapariga abalou. Dentro o conego dava urros.
+
+Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josepha de
+joelhos diante da commoda gemia orações a uma grande lithographia de
+Nossa Senhora das Dôres; e o pobre padre-mestre, estirado de barriga
+sobre a cama, rilhava o travesseiro.
+
+--Mas, minha senhora, disse o parocho severamente, não se trata agora de
+rezar. É necessario fazer-lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
+
+--Ai, senhor parocho, não ha nada, não ha nada, choramingou a velha. É
+uma dôr que vem e vai n'um momento. Não dá tempo p'ra nada! Um chá de
+tilia allivia-o ás vezes... Mas por desgraça hoje nem tilia tenho! Ai,
+Jesus!
+
+Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a pouco voltava esbaforido
+com a Dionysia, que vinha offerecer a sua actividade e a sua
+experiencia.
+
+Mas o senhor conego, felizmente, sentira-se de repente alliviado!
+
+--Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha. Rica tilia! É de
+muita caridade. Elle agora naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe
+sempre depois da dôr... Eu vou para ao pé d'elle, desculpem-me... Esta
+foi peor que as outras... São estas fructas mald...--Reteve a
+blasphemia, aterrada.--São as fructas de Nosso Senhor. É a sua divina
+vontade... Desculpem-me, sim?
+
+Amelia e o parocho ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo
+do desejo de se tocar, de se beijar, mas as portas estavam abertas; e
+sentiam no quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse
+então alto:
+
+--Pobre padre-mestre! É uma dôr terrivel.
+
+--Dá-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A mamã já andava com o
+presentimento. Ainda me tinha dito antes d'hontem: é o tempo da dôr do
+senhor conego, estou com mais cuidado...
+
+O parocho suspirou, e baixinho:
+
+--Eu é que não tenho quem pense nas minhas dôres...
+
+Amelia pousou n'elle longamente os seus bellos olhos humedecidos de
+ternura:
+
+--Não diga isso...
+
+As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D.
+Josepha appareceu, encolhida no seu chale. O mano tinha adormecido. E
+ella estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aquelles abalos
+arrazavam-lhe a saude! Accendera duas velas a S. Joaquim e fizera uma
+promessa a Nossa Senhora da Saude. Era a segunda aquelle anno, por causa
+da dôr do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...
+
+--Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o
+padre Amaro.
+
+O alto relogio d'armario bateu então cavamente oito horas. Amelia fallou
+outra vez no cuidado em que estava pela mamã... Demais a mais ia-se a
+fazer tão tarde...
+
+--E é que quando eu sahi estava a choviscar, disse Amaro.
+
+Amelia correu á janella, inquieta. O lagedo defronte, debaixo do
+candieiro, reluzia muito molhado. O céo estava tenebroso.
+
+--Jesus, vamos ter uma noite d'agua!
+
+D. Josepha estava afflicta com o contratempo; mas a Amelia bem via, ella
+agora não podia despegar de casa; a Gertrudes fôra ao doutor;
+naturalmente não o encontrára, andava a procural-o de casa em casa, quem
+sabe quando viria...
+
+O parocho então lembrou que a Dionysia (que viera com elle e esperava na
+cozinha) podia ir acompanhar a snr.^a D. Amelia. Eram dois passos, não
+havia ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas até á esquina da
+Praça... Mas deviam apressar-se, que ia cahir agua!
+
+D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para Amelia. Recommendou-lhe
+muito que contasse á mamã o que tinha succedido. Mas que não se
+affligisse ella, que o mano estava melhor...
+
+--E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada, dize-lhe que se fez tudo o
+que se pôde, mas que a dôr não deu tempo para nada!
+
+--Sim, lá direi. Boa noite.
+
+Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia então quiz esperar. Mas
+o parocho, apressado, puxou-a pelo braço:
+
+--Não vale nada, não vale nada!
+
+Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guardachuva, com a
+Dionysia ao lado, muito calada, de chale pela cabeça. Todas as janellas
+estavam apagadas; no silencio as goteiras cantavam d'enxurrão.
+
+--Jesus, que noite! disse Amelia. Vai-se-me a perder o vestido.
+
+Estavam então na rua das Sousas.
+
+--É que agora cae a cantaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o
+melhor é entrar no pateo de minha casa e esperar um bocado...
+
+--Não, não! acudiu Amelia.
+
+--Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É
+um instante, é um aguaceiro. Para aquelle lado, vê, está a alliviar. Vai
+passar... É uma tolice... A mamã, se a visse apparecer debaixo d'uma
+carga d'agua, zangava-se, e com razão!
+
+--Não, não!
+
+Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, e empurrando Amelia de leve:
+
+--É um instante, vai passar, entre...
+
+E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando as cordas d'agua que
+reluziam á luz do candieiro defronte. Amelia estava toda atarantada. A
+negrura do pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe delicioso
+estar assim n'aquella escuridão, ao pé d'elle, ignorada de todos...
+Insensivelmente attrahida, roçava-se-lhe pelo hombro; e recuava logo,
+inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o sentir tão junto
+das saias. Percebia por traz, sem a vêr, a escada que levava ao quarto
+d'elle; e tinha um desejo immenso de lhe ir vêr acima os seus moveis, os
+seus arranjos... A presença da Dionysia, encolhida contra a porta e
+muito calada, embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para
+ella, receando que desapparecesse, se sumisse na negrura do pateo ou da
+noite...
+
+Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos,
+arripiado.
+
+--Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages estão regeladas...
+Realmente era melhor esperar em cima na sala de jantar...
+
+--Não, não! disse ella.
+
+--Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionysia, accenda luz
+em cima.
+
+A matrona immediatamente galgou os degraus.
+
+Elle então, muito baixo, tomando o braço d'Amelia:
+
+--Porque não? Que pensas tu? É uma pieguice. É emquanto não passa o
+aguaceiro. Dize...
+
+Ella não respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mão sobre
+o hombro, sobre o peito, apertando-lh'o, acariciando a sêda. Toda ella
+estremeceu. E foi-o emfim seguindo pela escada, como tonta, com as
+orelhas a arder, tropeçando a cada degrau na roda do vestido.
+
+--Entra p'r'áhi, é o quarto, disse-lhe elle ao ouvido.
+
+Correu á cozinha. Dionysia accendia a vela.
+
+--Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina
+Amelia. É um caso muito sério... Volta d'aqui a meia hora.
+Toma.--Metteu-lhe tres placas na mão.
+
+A Dionysia descalçou os sapatos, desceu em pontas de pés e fechou-se na
+loja do carvão.
+
+Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia lá estava, immovel, toda
+pallida. O parocho fechou a porta--e foi para ella, calado, com os
+dentes cerrados, soprando como um touro.
+
+
+Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia desceu logo, muito
+embrulhada na manta: ao abrirem a porta do pateo passavam na rua dois
+borrachos galrando: Amelia recuou rapidamente para o escuro. Mas
+Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
+
+--Está a barra livre, minha rica menina...
+
+Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a rua da
+Misericordia. Já não chovia; havia estrellas; e uma frialdade sêcca
+annunciava o norte e o bom tempo.
+
+
+
+
+XVII
+
+
+Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha á cabeceira que ia
+chegando a hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o
+velho paletot que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa outra
+manhã em Feirão em que acordára aterrado por ter na vespera, pela
+primeira vez depois de padre, peccado brutalmente sobre a palha da
+estrebaria da residencia com a Joanna Vaqueira. E não se atrevera a
+dizer missa com aquelle crime na alma, que o abafava com um peso de
+penedo. Considerára-se contaminado, immundo, maduro para o inferno,
+segundo todos os santos padres e o seraphico concilio de Trento. Tres
+vezes chegára á porta da igreja, tres vezes recuára assombrado. Tinha a
+certeza de que, se ousasse tocar na Eucharistia com aquellas mãos com
+que repanhára os saiotes da Vaqueira, a capella se aluiría sobre elle,
+ou ficaria paralysado vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada alta,
+a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montára a cavallo e trotára
+duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir á Gralheira confessar-se
+ao bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de innocencia, de
+exagerações piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos
+em redor á realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e monsenhores
+não peccavam sobre a palha da estrebaria, não--era em alcovas commodas,
+com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluiam, e S. Miguel Vingador não
+abandonava por tão pouco os confortos do céo!
+
+Não era isso o que o inquietava--o que o inquietava era a Dionysia, que
+elle ouvia na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a
+pedir-lhe agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella matrona
+introduzida, installada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua
+discrição, era o seu _officio_; e algumas meias libras manteriam a sua
+fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquella velha
+concubina de auctoridades civis e militares, que rolára a sua massa de
+gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas
+fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam sob a batina de parocho.
+Preferiria que fosse o Silverio ou Natario que o tivesse visto na
+vespera, todo inflammado: era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o
+incommodava era a idéa de ser observado por aquelles olhinhos cynicos,
+que não se impressionavam nem com a austeridade das batinas nem com a
+respeitabilidade dos uniformes, porque sabiam que por baixo estava
+igualmente a mesma miseria bestial da carne...
+
+--Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
+
+Nós de dedos bateram discretamente à porta do quarto.
+
+--Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a
+mesa, como absorvido, abysmado nos seus papeis.
+
+A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre o lavatorio, tossiu, e
+fallando sobre as costas d'Amaro:
+
+--Ó senhor parocho, olhe que isto assim não tem geito. Hontem iam vendo
+sahir daqui a pequena. É muito sério, menino... Para bem de todos é
+necessario segredo!
+
+Não, não a podia impôr! A mulher estabelecia-se, à força, na sua
+confidencia. Aquellas palavras mesmo, murmuradas com medo das paredes,
+revelando uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem d'uma
+cumplicidade tão experiente.
+
+Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
+
+--Iam vendo, hein?
+
+--Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.
+
+--É verdade.
+
+--E na sua posição, senhor parocho, na posição da pequena!... Tudo se
+deve fazer pelo calado... Nem os moveis do quarto devem saber! Em coisas
+que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse de morte!
+
+Amaro então decidiu-se bruscamente a aceitar a _protecção_ da Dionysia.
+
+Rebuscou n'um canto da gaveta, metteu-lhe meia libra na mão.
+
+--Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ella.
+
+--Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou elle recostado na
+cadeira, esperando os conselhos da matrona.
+
+Ella disse muito naturalmente, sem affectação de mysterio ou de malicia:
+
+--A mim parece-me que para vêr a pequena não ha como a casa do sineiro!
+
+--A casa do sineiro!?
+
+Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente disposição do
+sitio. Um dos quartos ao pé da sacristia, como elle sabia, dava para um
+pateo onde se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois bem,
+justamente do outro lado eram as trazeiras da casa do sineiro... A porta
+da cozinha do tio Esguelhas abria para o pateo: era sahir da sacristia,
+atravessal-o, e o senhor parocho estava no ninho!
+
+--E ella?
+
+--Ella entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que dá para o
+adro. Não passa viva alma, é um ermo. E se alguem visse, nada mais
+natural, era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro... Isto, já
+se vê, é ainda pelo alto, que o plano póde-se aperfeiçoar...
+
+--Sim, comprehendo, é um esboço, disse Amaro que passeava pelo quarto
+reflectindo.
+
+--Eu conheço bem o sitio, senhor parocho, e creia o que lhe digo: para
+um senhor ecclesiastico que tem o seu arranjinho, não ha melhor que a
+casa do sineiro!
+
+Amaro parou diante d'ella, rindo, familiarisando-se:
+
+--Ó tia Dionysia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que vossê
+aconselha a casa do sineiro, hein?
+
+Ella então negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio
+Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo aquella idéa de noite, a malucar na cama.
+Pela manhã cedo fôra examinar o sitio, e reconhecera que estava a
+calhar.
+
+Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta; e voltando-se ainda,
+com um ultimo conselho:
+
+--Tudo está em que vossa senhoria se entenda bem com o sineiro.
+
+
+Era isso agora o que preoccupava o padre Amaro.
+
+O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por
+um _macambusio_. Tinha uma perna cortada e usava muleta: e alguns
+sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus protegidos,
+sustentavam mesmo que aquelle defeito o tornava, segundo a Regra,
+improprio para o serviço da Igreja. Mas o antigo parocho José Migueis,
+em obediencia ao senhor bispo, conservára-o na Sé, argumentando que o
+trambolhão desastroso que motivára a amputação fôra na torre, n'uma
+occasião de festa, collaborando no culto: _ergo_ estava claramente
+indicada a intenção de Nosso Senhor em não prescindir do tio Esguelhas.
+E quando Amaro tomára conta da parochia, o côxo valera-se da influencia
+da S. Joanneira e d'Amelia para conservar, como elle dizia, a _corda do
+sino_. Era além d'isso (e fôra a opinião da rua da Misericordia) uma
+obra de caridade. O tio Esguelhas, viuvo, tinha uma filha de quinze
+annos paralytica, desde pequena, das pernas. «O diabo embirrou com as
+pernas da familia», costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta
+desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga
+(cujo nome era Antonia, e que o pai chamava Tótó) o torturava com
+perrices, phrenesis, caprichos abominaveis. O doutor Gouvêa declarára-a
+_hysterica_: mas era uma certeza, para as pessoas de bons principios,
+que a Tótó estava _possuida do Demonio_. Houvera mesmo o plano de a
+exorcismar: o senhor vigario geral, porém, sempre assustado com a
+imprensa, hesitára em conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito
+apenas, sem resultado, as aspersões simples de agua benta. De resto não
+se sabia a natureza do _endemoninhamento_ da paralytica: a snr.^a D.
+Maria da Assumpção ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a
+Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava
+com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela
+rapariga, respondia sêccamente:
+
+--Lá está.
+
+Os intervallos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no
+casebre. Só atravessava o largo para ir á botica por algum remedio, ou
+comprar bolos á confeitaria da Thereza. Todo o dia aquelle recanto da
+Sé, o pateo, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietarias, a
+casa ao fundo com a sua janella de portada negra n'uma parede
+lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma sombra humida: e os meninos
+do côro, que ás vezes se arriscavam a ir pé-ante-pé, pelo pateo,
+espreitar o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado á lareira,
+com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.
+
+Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor parocho.
+E Amaro, n'essa manhã, ao revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo
+a muleta, ia já ruminando a sua historia--porque não podia pedir ao tio
+Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, d'algum modo, que o
+desejava para um serviço religioso... E que serviço, a não ser preparar,
+em segredo e longe das opposições mundanas, alguma alma terna para o
+convento e para a santidade?
+
+Ao vêl-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns «bons dias» amaveis.
+Achou-lhe uma bella cara de saude! Tambem não admirava--porque, segundo
+todos os santos padres, a frequentação dos sinos, pela virtude
+particular que lhes communica a consagração, dão uma alegria e um
+bem-estar especiaes. Contou então com bonhomia ao tio Esguelhas e aos
+dois sacristães que, quando era pequeno, em casa da senhora marqueza
+d'Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...
+
+Riram muito, extasiando-se com a pilheria de sua senhoria.
+
+--Não se riam, é verdade. E não me ficava mal... N'outros tempos eram
+clerigos d'ordens menores que tocavam os sinos. Os nossos santos padres
+consideram-n'os um dos meios mais efficazes da piedade. Lá disse a glosa
+pondo o verso na bôca do sino:
+
+
+_Laudo Deum, populum voco, congrego clerum.
+Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro..._
+
+
+O que quer dizer, como sabem: _Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o
+clero, choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas_.
+
+Citava a glosa com respeito, já revestido d'amicto e alva, no meio da
+sacristia; e o tio Esguelhas impertigava-se sobre a sua muleta áquellas
+palavras que lhe davam uma auctoridade e uma importancia imprevista.
+
+O sacristão tinha-se aproximado com a casula rôxa. Mas Amaro não
+terminára a glorificação dos sinos;--explicou ainda a sua grande virtude
+em dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns sabios
+presumpçosos), não só porque communicam ao ar a unção que recebem da
+benção, mas porque dispersam os demonios que erram entre os vendavaes e
+os trovões. O santo concilio de Milão recommenda que se toquem os sinos
+sempre que haja tormenta...
+
+--Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude
+pelo sineiro, aconselho-lhe que n'esses casos é melhor não se arriscar.
+Sempre é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio
+Mathias.
+
+E recebeu sobre os hombros a casula, murmurando com muita compostura:
+
+-_Domine, quis dixisti jugum meum_... Aperte mais os cordões por traz,
+tio Mathias. _Suave est, et onus meum leve_...
+
+Fez uma cortezia á imagem e entrou na igreja, na attitude da rubrica,
+d'olhos baixos e corpo direito; emquanto o Mathias, depois de ter tambem
+saudado com um raspão de pé o Christo da sacristia, se apressava com as
+galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.
+
+Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no _Offertorio_ e ao
+_Orate fratres_, o padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolencia
+que o ritual permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse por
+sua intenção particular;--e o tio Esguelhas, com a sua muleta pousada ao
+lado, abysmava-se então n'uma devoção mais respeitosa. Mesmo ao
+_Benedicat_, depois de ter começado a benção voltado para o altar para
+recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia, terminou-a, virando-se
+devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a elle só
+as Graças e Dons de Nosso Senhor!
+
+--E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, vá-me
+esperar ao pateo que temos que conversar.
+
+Não tardou a vir ter com elle, com uma face grave que impressionou o
+sineiro.
+
+--Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho fallar-lhe d'um caso
+sério... Verdadeiramente pedir-lhe um favor...
+
+--Oh, senhor parocho!
+
+Não, não era um favor... Porque, quando se tratava do serviço de Deus,
+todos tinham o dever de concorrer na proporção das suas forças...
+Tratava-se d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim, para lhe
+provar a confiança que tinha n'elle, ia-lhe dizer o nome...
+
+--É a Ameliasinha da S. Joanneira!
+
+--Que me diz, senhor parocho?!
+
+--Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o dedo de Deus! É extraordinario...
+
+Contou-lhe então uma historia diffusa que ia forjando laboriosamente,
+segundo as sensações que imaginava vêr na face pasmada do sineiro. A
+rapariga desgostára-se da vida, com as desavenças que tivera com o
+noivo. Mas a mãi, que estava velha, que a necessitava para o governo da
+casa, não queria consentir, suppondo que era uma velleidade... Mas não,
+era vocação... Elle sabia-o... Infelizmente, quando havia opposição, a
+conducta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornaes
+impios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influencias do
+clero... As auctoridades, mais impias que os jornaes, punham
+obstaculos... Havia leis terriveis... Se soubessem que elle andava a
+instruir a menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que queria o
+tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do tempo! Ora, elle necessitava
+ter com a pequena muitas e muitas conferencias: para a experimentar,
+para conhecer as suas disposições, vêr bem se é para a Solidão que ella
+tem geito, ou para a Penitencia, ou para o serviço dos enfermos, ou para
+a Adoração Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a por dentro e
+por fóra.
+
+--Mas onde? exclamou, abrindo os braços como na desolação d'um santo
+dever contrariado. Onde? Em casa da mãi não póde ser, já andam
+desconfiados. Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua. Em minha
+casa, já vê, menina nova...
+
+--Está claro.
+
+--De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que vossê m'o ha de
+agradecer... pensei na sua casa...
+
+--Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está
+tudo ás ordens!
+
+--Bem vê, é no interesse d'aquella alma, é um regosijo para Nosso
+Senhor...
+
+--E p'ra mim, senhor parocho, e p'ra mim!
+
+O que o tio Esguelhas receava é que a casa não fosse decente e não
+tivesse as commodidades...
+
+--Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento de todos os confortos
+humanos. Comtanto que haja duas cadeiras e uma mesa para pôr o livro da
+oração...
+
+De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como sitio retirado e casa
+socegada estava a preceito. Ficavam alli, elle e a menina, como os
+monges no deserto. Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle sahia a
+dar o seu giro. Na cozinha não poderiam accommodar-se, porque o quartito
+da pobre Tótó era ao pé... Mas tinham o quarto d'elle, em cima.
+
+O padre Amaro bateu com a mão na testa. Não se lembrára da paralytica!
+
+--Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas! exclamou.
+
+Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava agora todo interessado
+n'aquella conquista d'uma noiva para Nosso Senhor; queria por força que
+o seu telhado abrigasse a santa preparação da alma da menina... Talvez
+lhe attrahisse a elle a piedade de Deus! Mostrou com calor as vantagens,
+as facilidades da casa. A Tótó não embaraçava. Não se mexia da cama. O
+senhor parocho entrava pela cozinha do lado da sacristia, a menina vinha
+pela porta da rua: subiam, fechavam-se no quarto...
+
+--E ella que faz, a Tótó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
+
+Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e
+apaixonava-se por ellas a ponto de ter febre; outros dias passava-os
+n'um silencio medonho com os olhos cravados na parede. Mas ás vezes
+estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!
+
+--Devia-se entreter, devia lêr, disse o padre Amaro para mostrar
+interesse.
+
+O sineiro suspirou. Não sabia lêr, a pequena, nunca quizera aprender.
+Era o que elle lhe dizia--se pudesses lêr já te não pesava tanto a vida!
+Mas então? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre Amaro devia ter
+a caridade de a persuadir, quando viesse a casa...
+
+Mas o parocho não o escutava, todo abysmado n'uma idéa que lhe alumiára
+a face d'um sorriso. Achára subitamente a explicação natural a dar á S.
+Joanneira e ás amigas das visitas d'Amelia a casa do sineiro: era a
+ensinar a lêr a paralytica! A educal-a! A abrir-lhe a alma ás bellezas
+dos livros santos, da historia dos martyres e da oração!...
+
+--Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mãos de jubilo.
+É em sua casa que se ha de fazer da rapariga uma santa. E d'isto--e a
+sua voz deu um grave profundo--um segredo inviolavel!
+
+--Oh, senhor parocho! fez o sineiro, quasi offendido.
+
+--Conto comsigo! disse Amaro.
+
+Veio logo á sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a
+Amelia, em que lhe explicava detalhadamente «o arranjinho que fizera
+para gozarem novas e divinas felicidades». Prevenia-a que o pretexto
+para ella vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da
+paralytica: elle mesmo o proporia á noite em casa da mamã. «Que n'isto,
+dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus que se alumiasse com
+uma boa instrucção religiosa as trevas d'aquella alma. E matamos assim,
+querido anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!»
+
+Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente á mesa do almoço, com
+um contentamento pleno de si, da vida e das dôces facilidades que n'ella
+encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo, solidão da carne, tudo
+o que o consumira mezes e mezes, além na rua da Misericordia e alli na
+rua das Sousas, passára. Estava emfim installado á larga na felicidade!
+E recordava, abysmado n'um gozo mudo, com o garfo esquecido na mão, toda
+aquella meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os
+mentalmente um a um, saturando-se da deliciosa certeza da posse--como o
+lavrador que percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos
+invejaram muitos annos. Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume,
+os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço!
+Tambem elle agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda, que o
+adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho
+d'agua de colonia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o seu
+grande argumento: é que o comportamento do padre, logo que não dê
+escandalo entre os fieis, em nada prejudica a efficacia, a utilidade, a
+grandeza da religião. Todos os theologos ensinam que a ordem dos
+sacerdotes foi instituida para administrar os sacramentos; o essencial é
+que os homens recebam a santidade interior e sobrenatural que os
+sacramentos contêm; e comtanto que elles sejam dispensados segundo as
+formulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou
+peccador? O sacramento communica a mesma virtude. Não é pelos meritos do
+sacerdote que elles operam, mas pelos meritos de Jesus Christo. O que é
+baptisado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica
+igualmente bem lavado da macula original, ou bem preparado para a vida
+eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico
+concilio de Trento. Os fieis nada perdem, na sua alma e na sua salvação,
+com a indignidade do parocho. E se o parocho se arrepende á hora
+extrema, tambem se lhe não fecham as portas do céo. Logo em definitiva
+tudo acaba bem, e em paz geral...--E o padre Amaro, raciocinando assim,
+sorvia com prazer o seu café.
+
+A Dionysia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor
+parocho fallára ao tio Esguelhas...
+
+--Fallei por alto, disse elle ambiguamente. Não ha nada decidido... Roma
+não se construiu n'um dia.
+
+--Ah! fez ella.
+
+E recolheu-se á cozinha, pensando que o senhor parocho mentia como um
+hereje. Tambem, não se importava... Nunca gostára de arranjos com os
+senhores ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...
+
+E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu á escada a dizer-lhe--que emfim,
+ella tinha a olhar pela sua casa, e quando o senhor parocho tivesse
+arranjado criada...
+
+--A snr.^a D. Josepha Dias anda-me a tratar d'isso, Dionysia. Espero ter
+alguem ámanhã. Mas vossê appareça... Agora que somos amigos...
+
+--Quando o senhor parocho quizer é chamar-me da janella para o quintal,
+disse ella do alto da escada. Para tudo que precisar. De tudo sei um
+bocadinho, até de desarranjos e de partos... E n'este ponto posso até
+dizer...
+
+Mas o padre não a escutava: atirára com a porta de repellão, fugindo,
+indignado d'aquella utilidade torpe assim brutalmente offerecida.
+
+
+Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S. Joanneira da filha do
+sineiro.
+
+Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa noite, emquanto na sala se
+galrava alto, aproximára-se do piano, onde Amelia, com os dedos
+preguiçosos, corria escalas, e abaixando-se para accender o cigarro á
+vela, murmurára:
+
+--Leu?
+
+--Optimo!
+
+Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava
+contando uma catastrophe que lêra n'um jornal, succedida em Inglaterra:
+uma mina de carvão que desabára, sepultando cento e vinte trabalhadores.
+As velhas arripiavam-se horrorisadas. A Gansoso então, gozando o
+effeito, accumulou loquazmente os detalhes: a gente que estava fóra
+esforçára-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes em baixo os
+gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
+
+--Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se na sua poltrona,
+gozando o calor da sala e a segurança dos tectos.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção declarou que todas essas minas, essas
+machinas estrangeiras lhe causavam medo. Vira uma fabrica ao pé
+d'Alcobaça, e parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso
+Senhor não as via com bons olhos...
+
+--É como os caminhos de ferro, disse D. Josepha. Tenho a certeza que
+foram inspirados pelo demonio! Não o digo a rir. Mas vejam aquelles
+uivos, aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!
+
+O padre Amaro galhofou,--assegurando á snr.^a D. Josepha que eram
+ricamente commodos para andar depressa! Mas, tornando-se logo sério,
+acrescentou:
+
+--Em todo o caso é incontestavel, que ha n'essas invenções da sciencia
+moderna muito do demonio. E é por isso que a nossa santa Igreja as
+abençôa, primeiro com orações e depois com agua benta. Hão de saber que
+é o costume. Com agua benta para lhes fazer o exorcismo, expulsar o
+espirito inimigo: e com orações para as resgatar do peccado original que
+não só existe no homem, mas nas coisas que elle construe. É por isso que
+se benzem e se purificam as locomotivas... Para que o demonio não se
+possa servir d'ellas para seu uso.
+
+D. Maria da Assumpção quiz immediatamente uma explicação. Como era a
+maneira usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
+
+O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas
+maneiras, mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que
+morressem passageiros, e como essas almas não estavam preparadas pela
+Extrema-Unção, o demonio alli mesmo, zás, apoderava-se d'ellas!
+
+--É de velhaco! rosnou o conego, com uma admiração secreta por aquella
+manha tão habil do Inimigo.
+
+Mas D. Maria da Assumpção abanou-se langorosamente, com o rosto banhado
+n'um sorriso de beatitude:
+
+--Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a nós é que não nos
+succedia isso... Que não nos pilhava desprevenidas!
+
+Era verdade; e todas gozaram um momento aquella certeza deliciosa de
+estarem preparadas, de poderem lograr a malicia do Tentador!
+
+O padre Amaro então tossiu como para preparar as vias, e apoiando as
+duas mãos sobre a mesa, n'um tom de pratica:
+
+--É necessario muita vigilancia para conservar de longe o demonio. Ainda
+hoje eu estava a pensar n'isso (foi mesmo a minha meditação) a respeito
+de um caso bem triste que tenho lá ao pé da Sé... É a filhita do
+sineiro.
+
+As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, n'uma
+curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a historia picante
+d'alguma façanha de Satanaz. E o parocho continuou com uma voz a que o
+silencio em redor dava solemnidade:
+
+--Alli está aquella rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não
+sabe lêr, não tem devoções habituaes, não tem o costume da meditação; é
+por consequencia, para empregar a expressão de S. Clemente--_uma alma
+sem defeza_. O que succede? Que o demonio, que ronda constantemente e
+não perde dentada, estabelece-se alli como em sua casa! Por isso, como
+me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são phrenesis, desesperos, furores
+sem razão... Emfim o pobre homem tem a vida estragada.
+
+--E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assumpção,
+indignada d'aquella impudencia de Satanaz, **installando-se** n'um
+corpo, n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava dos
+contrafortes da Sé.
+
+Amaro acudiu:
+
+--Tem a D. Maria razão. O escandalo é enorme. Mas então? Se a rapariga
+não sabe lêr! Se não sabe uma oração, se não tem quem a instrua, quem
+lhe leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o segredo
+de frustrar o Inimigo!...
+
+Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de hombros vergados,
+n'uma mágoa de pastor a quem uma força desproporcional arrebata uma
+ovelha amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com effeito, uma
+piedade que o invadia, uma compaixão verdadeira por aquella pobre
+creatura, a quem a falta de consolações devia tornar mais intensa a
+agonia da immobilidade...
+
+As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle caso triste d'abandono
+d'alma,--sobretudo pela dôr que elle parecia trazer ao senhor parocho.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção, que percorria em imaginação o abundante
+arsenal da devoção, lembrára logo que se lhe puzessem alguns santos á
+cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o
+silencio das amigas exprimiu bem a insufficiencia d'aquella galeria
+devota.
+
+--As senhoras dir-me-hão talvez, disse o padre Amaro sentando-se de
+novo, que se trata apenas da filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma
+alma como as nossas!
+
+--Todos têm direito á graça do Senhor, disse o conego gravemente, n'um
+sentimento d'imparcialidade, admittindo a igualdade das classes logo que
+não se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos do céo.
+
+--P'ra Deus não ha pobre nem rico, suspirou a S. Joanneira. Antes pobre,
+que dos pobres é o reino do céo!
+
+--Não, antes rico, acudiu o conego, estendendo a mão para deter aquella
+falsa interpretação da lei divina. Que o céo tambem é para os ricos. A
+senhora não comprehende o preceito. _Beati pauperes_, bemditos os
+pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não
+desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que
+têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não
+serem bemditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que préga
+que os trabalhadores e as clases baixas devem viver melhor do que vivem,
+vai d'encontro á expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não
+merece senão chicote, como excommungados que são! Ouf!
+
+E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O padre Amaro, esse,
+permanecia calado, com o cotovêlo sobre a mesa, esfregando devagar a
+testa. Ia lançar a sua idéa, como vinda d'uma inspiração divina, propôr
+que fosse Amelia levar uma educação devota á triste paralytica... E
+hesitava supersticiosamente diante do seu motivo todo carnal, todo de
+concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora, exageradamente,
+abysmada n'uma treva d'agonia. Sentia toda a caridade que haveria em
+consolal-a, entretel-a, fazer-lhe os dias menos amargos... Esta acção
+redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita n'um
+puro espirito de fraternidade christã! Vinha-lhe uma compaixão
+sentimental de bom rapaz por aquelle miseravel corpo pregado n'uma cama,
+sem nunca vêr o sol nem a rua... E alli estava embaraçado, n'aquella
+piedade que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido quasi
+de ter fallado ás senhoras da Tótó...
+
+Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéa:
+
+--Ó senhor padre Amaro, se se lhe mandasse aquelle livro com pinturas de
+vidas dos santos? Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me alma...
+Não és tu que o tens, Amelia?
+
+--Não, disse ella, sem erguer os olhos da costura.
+
+Amaro então olhou-a. Tinha-a quasi esquecido. Estava agora do outro lado
+da mesa, abainhando um esfregão: a risca muita fina desapparecia na
+abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro ao lado punha um
+traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a
+pelle da face, d'um trigueiro calido, que uma tinta rosada aquecia; o
+vestido justo, que se franzia n'uma prega sobre o hombro, elevava-se
+amplamente sobre a fórma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo da
+respiração igual... Era aquella a belleza que mais appetecia n'ella;
+imaginava-os d'uma côr de neve, redondos e cheios; tivera-a nos braços,
+sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham **encontrado** só a
+sêda fria... Mas na casa do sineiro seriam d'elle, sem obstaculo, sem
+vestidos, á disposição dos seus labios. Por Deus! e nada impedia que ao
+mesmo tempo consolassem a alma da Tótó! Não hesitou mais. E erguendo a
+voz, no meio do palratorio das velhas que discutiam agora a desapparição
+da _Vida dos Santos_:
+
+--Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale á rapariga... Sabem
+a idéa que me veio? Era um de nós, o que estiver menos occupado,
+levar-lhe a palavra de Deus e educar aquella alma!--E acrescentou,
+sorrindo:--E a fallar a verdade, a pessoa mais desoccupada aqui de todos
+nós é a menina Amelia...
+
+Então foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda
+n'uma revelação. Os olhos de todas accenderam-se n'uma excitação devota,
+á idéa d'aquella missão de caridade, que partia alli d'ellas, da rua da
+Misericordia... Extasiavam-se, no ante-gosto guloso dos elogios do
+senhor chantre e do cabido! Cada uma dava o seu conselho, n'uma
+assiduidade de participar da santa obra, de partilharem as recompensas
+que o céo certamente prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com
+calor que invejava Amelia; e chocou-se muito vendo-a de repente rir.
+
+--Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com o orgulho
+da boa acção... Olha que assim não t'aproveita!
+
+Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso, deitada para as costas
+da cadeira, suffocando-se para se conter.
+
+Os olhinhos de D. Joaquina chammejavam.
+
+--É indecente, é indecente! gritava.
+
+Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhos que fôra
+uma idéa extravagante que tivera, que era nervoso...
+
+--Ai, disse D. Maria da Assumpção, ella tem razão em s'orgulhar. Que é
+uma honra p'r'á casa! Em se sabendo...
+
+O parocho interrompeu com severidade:
+
+--Mas não se deve saber, snr.^a D. Maria da Assumpção! De que serve, aos
+olhos do Senhor, uma boa obra de que se tire alarde e vangloria?
+
+D. Maria vergou os hombros, humilhando-se á reprehensão. E Amaro, com
+gravidade:
+
+--Isto não deve sahir d'aqui. É entre Deus e nós. Queremos salvar uma
+alma, consolar uma enferma, e não ter elogios nos periodicos. Pois não é
+assim, padre-mestre?
+
+O conego ergueu-se pesadamente:
+
+--Vossê esta noite tem fallado com a lingua de ouro de S. Chrysostomo.
+Eu estou edificado; e não se me dava agora de vêr apparecer as torradas.
+
+Foi então, emquanto a _Ruça_ não trazia o chá, que se decidiu que
+Amelia, todas as semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoção,
+**iria em** segredo, para que a acção fosse mais valiosa aos olhos de
+Deus, passar uma hora à cabeceira da paralytica, lêr-lhe a _Vida dos
+Santos_, ensinar-lhe rezas e insufflar-lhe a virtude.
+
+--Emfim, resumiu a snr.^a D. Maria da Assumpção voltando-se para Amelia,
+não te digo senão uma coisa: abichaste!
+
+A _Ruça_ entrou com o taboleiro, no meio dos risos que provocára a
+«tolice de D. Maria», como disse Amelia, que se fizera escarlate.--E foi
+assim que ella e o padre Amaro se puderam vêr livremente, para gloria do
+Senhor e humilhação do Inimigo.
+
+
+Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as
+suas visitas caridosas á paralytica perfizessem ao fim do mez o numero
+symbolico de sete, que devia corresponder, na idéa das devotas, ás _Sete
+lições de Maria_. Na vespera o padre Amaro tinha prevenido o tio
+Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de ter
+varrido toda a casa e preparado o quarto para a pratica do senhor
+parocho. Amelia n'esses dias erguia-se cedo: tinha sempre alguma saia
+branca a engommar, algum laçarote a compôr; a mãi estranhava-lhe
+aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua de colonia de que ella se
+inundava; mas Amelia explicava que «era para inspirar á Tótó idéas de
+aceio e de frescura». E depois de vestida sentava-se, esperando as onze
+horas, muito séria, respondendo distrahidamente ás conversas da mãi, com
+uma côr nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relogio: emfim a
+velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ella, depois d'uma
+olhadella ao espelho, sahia, dando uma beijoca á mamã.
+
+Ia sempre receosa, n'uma inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs
+pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e
+se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os
+gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a
+assustava era o largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando
+por traz da janella, exercia uma vigilancia incessante. Fazia-se então
+pequenina no seu mantelete, e abaixando o guardasol sobre o rosto,
+entrava emfim na Sé, sempre com o pé direito.
+
+Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida n'uma luz fusca,
+amedrontava-a: parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das
+cruzes, uma reprehensão ao seu peccado; imaginava que os olhos de vidro
+das imagens, as pupillas pintadas dos paineis se fixavam n'ella, com uma
+insistencia cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança
+do prazer. Ás vezes mesmo, atravessada d'uma superstição, para dissipar
+o descontentamento dos santos, promettia dar-se n'essa manhã toda á
+Tótó, occupar-se caridosamente só d'ella, e não se deixar tocar sequer
+no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro
+o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tótó, postar-se
+à janella da cozinha, vigiando a porta massiça da sacristia de que ella
+conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
+
+Elle apparecia, emfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado
+as andorinhas; ouviam-n'as chilrear, n'aquelle silencio melancolico,
+esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos logares
+humidos cobriam os cantos d'uma verdura escura. Amaro, ás vezes muito
+galante, ia procurar uma florzinha. Amelia impacientava-se, rufava na
+vidraça da cozinha. Elle apressava-se; ficavam um momento á porta,
+apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim
+vêr a Tótó--e dar-lhe os bolos que o parocho lhe trazia no bolso da
+batina.
+
+A cama da Tótó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de
+tisica quasi não fazia saliencia enterrado na cova da enxerga, sob os
+cobertores enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses dias
+tinha vestido um chambre branco, os cabellos reluziam-lhe d'oleo; porque
+ultimamente, desde as visitas d'Amaro, viera-lhe «uma birra de parecer
+alguem», como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer
+separar d'um espelho e d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e
+obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que
+agora desprezava.
+
+Amelia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se
+estudára o A B C, obrigando-a a dizer aqui e além o nome d'uma letra.
+Depois queria que ella repetisse sem a errar a oração que lhe andava
+ensinando;--emquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos
+nos bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da paralytica
+que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e
+com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto
+trigueiro tão chupado que se lhe via a saliencia das maxillas. Não
+sentia agora nem compaixão nem caridade pela Tótó; detestava aquella
+demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem pesavam
+aquelles momentos em que, para não escandalisar muito Nosso Senhor, se
+resignava a fallar à paralytica. A Tótó parecia odial-a; respondia-lhe
+muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio rancoroso,
+voltada para a parede; um dia despedaçára o alphabeto; e encolhia-se
+toda encruada se Amelia lhe queria compor o chale sobre os hombros ou
+conchegar-lhe a roupa...
+
+Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a Amelia; ella punha logo
+diante da Tótó o livro com estampas da _Vida dos Santos_.
+
+--Vá, ficas agora a vêr as figuras... Olha, este é S. Matheus, esta
+Santa Virginia... Adeus, eu vou lá a cima com o senhor parocho rezarmos
+para que Deus te dê saude e te deixe ir passear... Não estragues o
+livro, que é peccado.
+
+E subiam a escada, emquanto a paralytica, estendendo o pescoço
+sôfregamente, os seguia, escutando o ranger dos degraus, com olhos
+chammejantes que lagrimas de raiva ennevoavam. O quarto, em cima, era
+muito baixo, sem forro, com um tecto de vigas negras sobre que
+assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a candeia que puzera sobre
+a parede um penacho negro do fumo. E Amaro ria sempre dos preparativos
+que fizera o tio Esguelhas--a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
+caneca d'agua, e duas cadeiras dispostas ao lado...
+
+--É p'r'á nossa conferencia, para te ensinar os deveres de freira, dizia
+elle, galhofando.
+
+--Ensina, então! murmurava ella de braços abertos, pondo-se diante do
+padre, com um sorriso calido onde brilhava um branquinho dos dentes,
+n'um abandono que se offerecia.
+
+Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabellos; às vezes
+mordia-lhe a orelha; ella dava um gritinho; e ficavam então muito
+quedos, escutando, com medo da paralytica em baixo. O parocho depois
+fechava as portadas da janella e a porta muito perra que tinha
+d'empurrar com o joelho. Amelia ia-se despindo devagar; e com as saias
+cahidas aos pés ficava um momento immovel, como uma fórma branca na
+escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte.
+Ella então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava
+um suspirosinho triste.
+
+Amelia só podia demorar-se até ao meio dia. O padre Amaro por isso
+pendurava o seu _cebolão_ no prego da candeia. Mas quando não ouviam as
+badaladas da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar d'um gallo
+visinho.
+
+--Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
+
+--Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
+
+Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassidão dôce, muito chegados um
+ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e além
+fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as suas passadas fofas,
+vadiar, fazendo bolir alguma telha solta; ou um passaro, pousando,
+chilreava e ouviam-lhe o fremito das azas.
+
+--Ai, são horas, dizia Amelia.
+
+O padre queria detel-a; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.
+
+--Lambão! murmurava ella. Deixa-me!
+
+Vestia-se á pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janella, vinha
+ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficára estatelado sobre o leito; e
+ia emfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralytica sentir em
+baixo, saber que tinha acabado a conferencia.
+
+Amaro não findava ainda de a beijocar: ella então, para acabar,
+fugia-lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava
+em duas passadas a cozinha sem olhar para a Tótó, e entrava na
+sacristia.
+
+Amelia, essa, antes de sahir, vinha vêr a paralytica, saber se gostára
+das estampas. Encontrava-a ás vezes com a cabeça debaixo dos cobertores,
+que entalava e prendia com as mãos para se **esconder**; outras vezes,
+sentada na cama, examinava Amelia com olhos em que se accendia uma
+curiosidade viciosa; chegava o rosto para ella, com as narinas dilatadas
+que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta, córando tambem;
+queixava-se então de ser tarde, recolhia a _Vida dos Santos_,--e sahia,
+amaldiçoando aquella creatura tão maliciosa na sua mudez.
+
+
+Ao passar no largo, áquella hora, via sempre a Amparo á janella.
+Ultimamente mesmo julgára prudente contar-lhe em segredo a sua caridade
+com a Tótó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e debruçando-se toda na
+varanda:
+
+--Então como vai a Tótó?
+
+--Lá vai.
+
+--Já lê?
+
+--Já soletra.
+
+--E a oração a Nossa Senhora?
+
+--Já a diz.
+
+--Ai, que devoção a tua, filha!
+
+Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava tambem no
+segredo, deixava o balcão para vir á porta admirar Amelia.
+
+--Vem da sua grande missão de caridade, hein? dizia, d'olho arregalado,
+balanceando-se na ponta das chinelas.
+
+--Estive um bocado com a pequena, a entretel-a...
+
+--Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa
+menina, recados á mamã.
+
+Voltava-se então para dentro, para o praticante:
+
+--Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de passar o seu tempo, como as
+outras, em namoros, faz-se anjo da guarda! Passa a flôr dos annos com
+uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o materialismo, e essas
+porcarias são capazes d'inspirar acções d'este jaez... Só a religião,
+meu caro senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada de philosophos
+vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a philosophia, mas
+quando ella, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou
+homem de sciencia e admiro um Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor
+estas palavras) se a philosophia se afasta da religião... (grave bem
+estas palavras) dentro de dez annos, snr. Augusto, está a philosophia
+enterrada!
+
+E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos lentos, de mãos atraz
+das costas, ruminando o fim da philosophia.
+
+
+
+
+XVIII
+
+
+Foi aquelle o periodo mais feliz da vida de Amaro.
+
+«Ando na graça de Deus», pensava elle ás vezes á noite, ao despir-se,
+quando por um habito ecclesiastico, fazendo o exame dos seus dias, via
+que elles se seguiam faceis, tão confortaveis, tão regularmente gozados.
+Não houvera, nos ultimos dois mezes, nem attritos nem difficuldades no
+serviço da parochia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava
+d'um humor de santo. D. Josepha Dias arranjára-lhe muito barata uma
+cozinheira excellente, e que se chamava Escolastica. Na rua da
+Misericordia tinha a sua côrte admiradora e devota; cada semana, uma ou
+duas vezes, vinha áquella hora deliciosa e celeste na casa do tio
+Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que
+já no Morenal começavam a abrir as rosas.
+
+Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguem da
+sacristia suspeitava os seus _rendez-vous_ com Amelia. Aquellas visitas
+á Tótó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe «as devoções da
+pequena»; e não a interrogavam com particularidades, pelo principio
+beato que as devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só ás
+vezes alguma das senhoras perguntava a Amelia--como ia a doente; ella
+assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos á lei
+de Deus; então, muito discretamente, fallavam de coisas differentes.
+Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando a Tótó
+soubesse bem o seu catecismo e pela efficacia da oração se tivesse
+tornado boa, admirar em romaria a obra santa de Amelia e a humilhação do
+Inimigo.
+
+Amelia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propuzera
+um dia a Amaro, como muito habil--dizer ás amigas que o senhor parocho
+ás vezes vinha assistir á pratica piedosa que ella fazia á Tótó...
+
+--Assim, se alguem te surprehendesse a entrar para a casa do tio
+Esguelhas, já não havia suspeitas.
+
+--Não me parece necessario, disse elle. Deus está comnosco, filha, é
+claro. Não queiramos intrometter-nos nos seus planos. Elle vê mais longe
+que nós...
+
+Ella concordou logo--como em tudo que sahia dos seus labios. Desde a
+primeira manhã, na casa do tio Esguelhas, ella abandonára-se-lhe
+absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não
+havia na sua pelle um cabellinho, não corria no seu cerebro uma idéa a
+mais pequenina, que não pertencesse ao senhor parocho. Aquella possessão
+de todo o seu sêr não a invadira gradualmente; fôra completa, no momento
+que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia que os
+beijos d'elle lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma
+dependencia inerte da sua pessoa. E não lh'o occultava; gozava em se
+humilhar, offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda escrava;
+queria que elle pensasse por ella e vivesse por ella; descarregára-se
+n'elle, com satisfação, d'aquelle fardo da responsabilidade que sempre
+lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe formados do cerebro
+do parocho, tão naturalmente como se sahisse do coração d'elle o sangue
+que lhe corria nas veias. «O senhor parocho queria ou o senhor parocho
+dizia» era para ella uma razão toda sufficiente e toda poderosa. Vivia
+com os olhos n'elle, n'uma obediencia animal: tinha só a curvar-se
+quando elle fallava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.
+
+Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ella desforrava-o de todo
+um passado de dependencias--a casa do tio, o seminario, a sala branca do
+senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre era uma curvatura
+humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á
+camara ecclesiastica, aos canones, á Regra que nem lhe permittia ter uma
+vontade propria nas suas relações com o sacristão. E agora, emfim, tinha
+alli aos seus pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo sobre
+quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão,
+louvando, adorando e incensando Deus,--era elle tambem agora o Deus
+d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ella ao
+menos, era bello, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra
+como os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois de ter
+estado um momento pensativa:
+
+--Tu podias chegar a Papa!
+
+--D'esta massa se fazem, respondeu elle com seriedade.
+
+Ella acreditava-o--com um receio, todavia, que as altas dignidades o
+afastassem d'ella, o levassem para longe de Leiria. Aquella paixão, em
+que estava abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e obtusa a tudo
+o que não respeitava ao senhor parocho ou ao seu amor. Amaro de resto
+não lhe consentia interesses, curiosidades alheias á sua pessoa.
+Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias. Para que se havia de
+fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ella
+fallára, com algum appetite, d'um baile que iam dar os Vias-Claras,
+offendeu-se como d'uma traição. Fez-lhe em casa do tio Esguelhas
+accusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de
+Satanaz!...
+
+--Mas mato-te! Percebes? Mato-te!--exclamou, agarrando-lhe os pulsos,
+fulminando-a com o olhar accêso.
+
+Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se ao seu imperio,
+perder-lhe a adoração muda e absoluta. Pensava ás vezes que ella se
+fatigaria, com o tempo, d'um homem que não lhe satisfazia as vaidades e
+os gostos de mulher, sempre mettido na sua batina negra, com a cara
+rapada e a corôa aberta. Imaginava que as gravatas de côres, os bigodes
+bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme de lanceiros exercem
+sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d'algum
+official do destacamento, d'algum cavalheiro da cidade, eram ciumes
+desabridos...
+
+--Góstas d'elle? Hein? É pelos trapos, pelo bigode?...
+
+--Gósto d'elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
+
+Mas escusava de fallar da creatura, então! Era ter curiosidade, pôr o
+pensamento n'outro! D'essas faltas de vigilancia sobre a alma e a
+vontade é que se aproveitava o demonio!...
+
+Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular--que a poderia
+attrahir, arrastar para fóra da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com
+pretextos complicados, toda a communicação com a cidade. Convenceu mesmo
+a mãi que a não deixasse ir só á Arcada e ás lojas. E não cessava de lhe
+representar os homens como monstros d'impiedade, cobertos de peccados
+como d'uma crosta, estupidos e falsos, votados ao inferno! Contava-lhe
+horrores de quasi todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe
+aterrada, mas curiosa:
+
+--Como sabes tu?
+
+--Não te posso dizer, respondia com uma reticencia, indicando que lhe
+fechava os labios o segredo da comfissão.
+
+E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos com a glorificação do
+sacerdocio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos
+compendios, fazendo-lhe o elogio das funcções, da superioridade do
+padre. No Egypto, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei
+se era sacerdote! Na Persia, na Ethiopia, um simples padre tinha o
+privilegio de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde havia uma
+auctoridade igual á sua? Nem mesmo na côrte do céo. O padre era superior
+aos anjos e aos seraphins--porque a elles não fôra dado como ao padre o
+poder maravilhoso de perdoar os peccados! Mesmo a Virgem Maria, tinha
+ella um poder maior que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito
+devido à magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer com S. Bernardino
+de Sena: «o sacerdote excede-te, ó mãi amada!»--porque, se a Virgem
+tinha incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma vez, e o padre,
+no santo sacrificio da missa, incarnava Deus todos os dias! E isto não
+era argucia d'elle, todos os santos padres o admittiam...
+
+--Hein, que te parece?
+
+--Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida de voluptuosidade.
+
+Então deslumbrava-a com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao
+padre «o Deus da terra»; o eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o
+padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus». E Santo Ambrosio
+que escreveu: «entre a dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior
+differença que a que existe entre o chumbo e o ouro»!
+
+--E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te
+parece?
+
+Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar,
+possuir n'elle o «ouro de Santo Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo
+o que na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que excede em graça
+os archanjos!
+
+Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou
+mais que a influencia da sua voz--que a faziam crêr na promessa que elle
+lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ella o
+interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam
+tomal-a pela mão para a acompanhar e desfazer todas as duvidas que
+pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que na sua sepultura, como
+succedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam
+espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade
+não se estraga nos abraços santos d'um padre...
+
+Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova perfumada de rosas brancas,
+ficava toda pensativa, n'um antegosto de felicidades mysticas, com
+suspirinhos de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
+
+Amaro galhofava.
+
+--A fallar da morte, com essas carnesinhas...
+
+Engordára com effeito. Estava agora d'uma belleza ampla e toda igual.
+Perdera aquella expressão inquieta que lhe punha nos labios uma seccura
+e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e
+humido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa
+uma apparencia madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a
+cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar longamente com um
+sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a
+agulha, o panno que ella costurava, toda a sua pessoa... Estava revendo
+o quarto do sineiro, o catre, o senhor parocho em mangas de camisa.
+
+Passava os seus dias esperando as oito horas, em que elle apparecia
+regularmente com o conego. Mas os serões agora pezavam-lhe. Elle
+recommendára-lhe muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de
+obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d'elle ao chá, e de nem
+mesmo lhe offerecer bolos. Odiava então a presença das velhas, a
+gralhada das vozes, as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel
+no mundo, excepto estar só com elle... Mas depois, em casa do sineiro,
+que desforra! Aquelle rosto todo alterado, aquellas suffocações de
+delirio, aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da morte,
+assustavam ás vezes o padre. Erguia-se no cotovêlo, inquieto:
+
+--Estás incommodada?
+
+Ella abria os olhos espantados, como resurgindo de muito longe; e era
+realmente bella, cruzando os braços nús sobre o peito descoberto,
+dizendo lentamente com a cabeça que não...
+
+
+
+
+XIX
+
+
+Uma circumstancia inesperada veio estragar aquellas manhãs da casa do
+sineiro. Foi a extravagancia da Tótó. Como disse o padre Amaro, «a
+rapariga sahia-lhes um monstro»!
+
+Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida. Apenas ella se aproximava
+da cama, atirava a cabeça para debaixo dos cobertores, torcendo-se com
+phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia, impressionada com a
+idéa de que o diabo que habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella
+trazia da igreja nos vestidos, impregnados d'incenso e salpicados d'agua
+benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...
+
+Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas,
+a sua ingratidão demoniaca para com a menina Amelia que vinha
+entretel-a, ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralytica
+rompeu n'um chôro hysterico; depois, de repente, ficou immovel, hirta,
+esbugalhando os olhos em alvo, com uma escuma branca na bôca. Foi um
+grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua; Amaro, por prudencia, recitou
+os exorcismos... E Amelia desde então resolveu «deixar a fera em paz».
+Não tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem orações a Sant'Anna.
+
+Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a um instante. Não passavam
+da porta da alcova, perguntando-lhe d'alto «como ia». Nunca respondia. E
+elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos selvagens e
+brilhantes, que os devoravam, indo d'um a outro, percorrendo-lhes o
+corpo, fixando-se com uma faiscação metallica nos vestidos d'Amelia e na
+batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por baixo, n'uma
+curiosidade avida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe
+arreganhava os beiços lividos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa,
+que os incommodava sobretudo. Amaro, que não acreditava muito em
+possessos e endemoninhados, via alli os symptomas de _loucura furiosa_.
+Os sustos d'Amelia augmentaram.--Felizmente que as pernas inertes
+cravavam a Tótó alli na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar
+no quarto e mordêl-os n'um accesso!
+
+Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, «depois
+d'aquelle espectaculo»; e decidiu então, d'ahi por diante, subir para o
+quarto sem fallar á Tótó.
+
+Foi peor. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Tótó
+debruçava-se para fóra do leito, agarrada ás bordas da enxerga, n'um
+esforço ancioso para a seguir, para a vêr, com a face toda descomposta
+do desespero da sua immobilidade. E Amelia ao entrar no quarto sentia
+vir de baixo uma risadinha sêcca, ou um _ui!_ prolongado e uivado que a
+gelava...
+
+Andava agora aterrada: viera-lhe a idéa que Deus estabelecera alli, ao
+lado do seu amor com o parocho, um demonio implacavel para a escarnecer
+e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe que o nosso santo
+padre Pio IX, ultimamente, declarára peccado crêr em _pessoas
+possessas_...
+
+--Mas para que ha rezas, então, e exorcismos?
+
+--Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Emfim a
+sciencia é a sciencia...
+
+Ella presentia que Amaro a enganava--e a Tótó estragava a sua
+felicidade. Emfim Amaro achou o meio de escaparem «á maldita rapariga»:
+era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a cozinha
+para subir a escada, e a posição da cama da Tótó, na alcova, não lhe
+permittia vêl-os, quando elles cautelosamente passassem pé ante pé. Era
+facil, de resto, porque á hora do _rendez-vous_, entre as onze e o meio
+dia, nos dias de semana, a sacristia estava deserta.
+
+Mas succedia que, quando elles entravam em pontas de pés e mordendo a
+respiração, os seus passos, por mais subtis, faziam ranger os velhos
+degraus da escada. E então a voz da Tótó sahia da alcova, uma voz rouca
+e aspera, berrando:
+
+--Passa fóra cão! passa fóra cão!
+
+Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralytica. Amelia
+tremia, toda branca.
+
+E a creatura uivava de dentro:
+
+--Lá vão os cães! lá vão os cães!
+
+Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquella
+voz d'um desolamento lugubre, que lhes parecia vir dos infernos,
+chegava-lhes ainda, perseguia-os:
+
+--Estão a pegar-se os cães! estão a pegar-se os cães!
+
+Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de terror. Jurava não voltar
+áquella casa maldita...
+
+--Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos
+de vêr então? Queres que nos deitemos nos bancos da sacristia?
+
+--Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amelia, apertando as
+mãos.
+
+--Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto...
+Emfim, que queres que lhe faça?
+
+Ella não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia de
+_rendez-vous_, começava a tremer á idéa d'aquella voz que lhe atroava
+sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a
+despertando lentamente do adormecimento de todo o sêr, era que cahira
+nos braços do parocho. Interrogava-se agora: não andaria commettendo um
+peccado irremissivel? As affirmações de Amaro, assegurando-lhe o perdão
+do Senhor, já não a tranquillisavam. Ella bem via, quando a Tótó uivava,
+uma pallidez cobrir o rosto do parocho, como correr-lhe no corpo um
+calefrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava--porque deixava
+assim o demonio atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e o
+escarneo?
+
+Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa
+Senhora das Dôres, pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que
+era aquella perseguição da Tótó, e se era sua intenção divina mandar-lhe
+assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a
+sentia como outr'ora descer do céo ás suas orações, entrar-lhe na alma
+aquella tranquillidade suave como uma onda de leite que era uma
+visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada
+da graça. Promettia então não voltar a casa do sineiro;--mas quando o
+dia chegava, á idéa d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos que lhe levavam
+a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a
+tentação; vestia-se, jurando que era a ultima vez; e ao toque das onze
+partia, com as orelhas a arder, o coração tremendo da voz da Tótó que ia
+ouvir, as entranhas abrazando-se no desejo do homem que a ia atirar para
+cima da enxerga.
+
+Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
+
+Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á
+auctoridade sagrada da sua batina. Elle então, vendo-a chegar tão
+pallida e tão transtornada, galhofava para a tranquillisar. Não, era uma
+tolice, se iam agora estragar o regalosinho d'aquellas manhãs, porque
+havia uma doida na casa! Promettera-lhe de resto procurar outro sitio
+para se vêrem: e mesmo com o fim de a distrahir, aproveitando a solidão
+da sacristia, mostrava-lhe ás vezes os paramentos, os calices, as
+vestimentas, procurando interessal-a por um frontal novo ou por uma
+antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela familiaridade com que
+tocava nas reliquias, que era ainda o senhor parocho e não perdera o seu
+credito no céo.
+
+Foi assim que uma manhã lhe fez vêr uma capa de Nossa Senhora, que havia
+dias chegára de presente d'uma devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a
+muito. Era de setim azul, representando um firmamento, com estrellas
+bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flammejava um coração d'ouro
+cercado de rosas d'ouro. Amaro desdobrára-a, fazendo scintillar junto da
+janella os bordados espessos.
+
+--Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a hontem na
+imagem... Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez...--E
+olhando Amelia, n'uma comparação da sua alta estatura com a figura
+atarracada da imagem da Senhora:--A ti é que te havia de ficar bem.
+Deixa vêr...
+
+Ella recuou:
+
+--Não, credo, que peccado!
+
+--Tolice! disse elle adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro
+de setim branco, d'uma alvura de nuvem matutina. Não está benzida... É
+como se viesse da modista.
+
+--Não, não, dizia ella frouxamente, com os olhos já luzidios de desejo.
+
+Elle então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que elle o que era
+peccado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que se deve
+aos vestuarios dos santos?
+
+--Ora não seja tola. Deixe vêr.
+
+Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata
+lavrada. E afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto,
+assustada e immovel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
+
+--Oh filhinha, que linda que ficas!
+
+Ella então, movendo-se com uma cautela solemne, chegou-se ao espelho da
+sacristia--um antigo espelho de reflexo esverdeado com um caixilho negro
+de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento,
+n'aquella sêda azul celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo
+das estrellas, com uma magnificencia sideral. Sentia-lhe o peso rico. A
+santidade que o manto adquirira no contacto com os hombros da imagem
+penetrava-a d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais dôce que o ar da
+terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a caricia do ether do
+paraiso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no céo...
+
+Amaro babava-se para ella:
+
+--Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora!
+
+Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto
+como Nossa Senhora... Mas com o seu rosto trigueiro, de labios rubros,
+alumiado por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o
+altar, com cantos ao orgão e um culto susurrando em redor, faria
+palpitar bem forte o coração dos fieis...
+
+Amaro então chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe os braços sobre o
+seio, apertou-a toda--e estendendo os labios por sobre os d'ella,
+deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia cerravam-se, a
+cabeça inclinava-se-lhe para traz, pesada de desejo. Os beiços do padre
+não se desprendiam, avidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração d'ella
+apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfalleceu sobre
+o hombro do padre, descórada e morta de gozo.
+
+Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as palpebras como
+acordada de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
+
+--Oh Amaro, que horror, que peccado!...
+
+--Tolice! disse elle.
+
+Mas ella desprendia-se do manto, toda afflicta:
+
+--Tira-m'o, tira-m'o! gritava, como se a sêda a queimasse.
+
+Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com
+coisas sagradas...
+
+--Mas não está benzida... Não tem duvida...
+
+Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, collocou-o
+no gavetão, sem uma palavra. Amelia olhava-o petrificada: e só os seus
+labios pallidos se moviam n'uma oração.
+
+Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas d'irem a casa do
+sineiro--recuou, como diante do demonio que a chamasse.
+
+--Hoje não! exclamou, implorando-o.
+
+Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ella bem
+sabia que não era peccado, quando as coisas não estavam benzidas... Era
+ser muito pobre d'espirito... Que demonio, só meia hora, ou um quarto
+d'hora!
+
+Ella, sem responder, ia-se aproximando da porta.
+
+--Então não queres?
+
+Ella voltou-se, e com uns olhos supplicantes:
+
+--Hoje não!
+
+Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou rapidamente a igreja, de
+cabeça baixa e olhos nas lages, como se passasse entre as ameaças
+cruzadas dos santos indignados.
+
+
+No dia seguinte de manhã, a S. Joanneira, que estava na sala de jantar,
+sentindo o senhor conego subir soprando forte, veio encontral-o á escada
+e fechou-se com elle na saleta.
+
+Queria contar-lhe a afflicção que tivera de madrugada. A Amelia acordára
+de repente aos gritos, que Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no
+pescoço! que suffocava! que a Tótó a queimava por detraz! e que as
+labaredas do inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Emfim um
+horror!... Viera encontral-a em camisa a correr pelo quarto, como doida.
+D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque de nervos. Toda a casa
+estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a
+manhã apenas tocára n'uma colher de caldo.
+
+--Pesadêlos, disse o conego. Indigestão!
+
+--Ai, senhor conego, não! exclamou a S. Joanneira, que parecia
+acabrunhada, sentada diante d'elle na borda d'uma cadeira. É outra
+coisa: são aquellas desgraçadas visitas á filha do sineiro!
+
+E então desabafou, com a effusão labial de quem abre os diques a um
+descontentamento accumulado. Nunca quizera dizer nada, porque emfim
+reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquillo
+começára, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de
+todo. Ora alegrias sem razão, ora umas trombas de dar melancolia aos
+moveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir as
+janellas... Ás vezes tinha até medo de lhe vêr o olhar tão exquisito:
+quando vinha de casa do sineiro era sempre branca como a cal, a cahir de
+fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Emfim, dizia-se que a Tótó
+tinha o demonio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido
+(Deus lhe falle n'alma), costumava dizer que n'este mundo as duas coisas
+que se pegavam mais ás mulheres eram tisicas e demonio no corpo.
+Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do
+sineiro, sem estar certa que aquillo nem lhe prejudicava a saude nem lhe
+prejudicava a alma. Emfim, queria que uma pessoa de juizo,
+d'experiencia, fosse examinar a Tótó...
+
+--N'uma palavra, disse o conego que escutára d'olhos cerrados aquella
+verbosidade repassada de lamuria, o que a senhora quer é que eu vá vêr a
+paralytica e saber á justa o que se passa...
+
+--Era um allivio p'ra mim, riquinho!
+
+Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade de matrona,
+reservava para a intimidade das séstas, enterneceu o conego. Fez uma
+caricia ao pescoço gordo da sua velhota, prometteu com bondade ir
+estudar o caso...
+
+--Ámanhã, que a Tótó está só, lembrou logo a S. Joanneira.
+
+Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente. Podia assim vêr
+como as duas se davam, se havia influencia do espirito maligno...
+
+--Que isto que eu faço é d'agradecer... É por ser p'ra quem é... Que bem
+me bastam os meus achaques, sem me occupar dos negocios de Satanaz.
+
+A S. Joanneira recompensou-o com uma beijoca sonora.
+
+--Ah, sereias, sereias!... murmurou o conego philosophicamente.
+
+No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus
+habitos, toda uma manhã desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo
+d'exercitar a sua sagacidade; além d'isso odiava o espectaculo de
+doenças e de todas as circumstancias humanas relacionadas com a morte.
+Mas, emfim, fiel á sua promessa, d'ahi a dias, na manhã em que fôra
+prevenido que Amelia ia á Tótó, arrastou-se contrariado para a botica do
+Carlos; e installou-se, com um olho no _Popular_ e outro na porta, á
+espera que a rapariga **atravessasse** para a Sé. O amigo Carlos estava
+ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares sentado á escrivaninha,
+de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fóra, o sol já
+quente dos fins de abril fazia rebrilhar o lageado do largo; não passava
+ninguem; e só quebravam o silencio as martelladas nas obras do doutor
+Pereira. Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado longo
+tempo, com o _Popular_ cahido nos joelhos, o medonho sacrificio que
+fazia pela sua velhota, ia cerrando as palpebras, já tomado da
+quebreira, n'aquelle repouso calado do meio dia proximo--quando entrou
+na botica um ecclesiastico.
+
+--Oh, abbade Ferrão, vossê pela cidade! exclamou o conego Dias
+despertando do seu quebranto.
+
+--De fugida, collega, de fugida, disse o outro collocando
+cuidadadosamente sobre uma cadeira dois grossos volumes que trazia,
+amarrados n'um barbante.
+
+Depois voltou-se e tirou com respeito o seu chapéo ao praticante.
+
+Tinha o cabello todo branco; devia passar já dos sessenta annos; mas era
+robusto, uma alegria bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha
+dentes magnificos a que uma saude de granito conservava o esmalte; o que
+o desfigurava era um nariz enorme.
+
+Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava alli de visita ou
+infelizmente por motivo de doença.
+
+--Não, estou aqui á espera... Uma embaixada de truz, amigo Ferrão!
+
+--Ah, fez o velho discretamente.--E emquanto tirava com methodo d'uma
+carteira atulhada de papeis a receita para o praticante, deu ao conego
+noticias da freguezia. Era lá, nos Poyaes, que o conego tinha a fazenda,
+a Ricoça. O abbade Ferrão passára de manhã diante da casa e ficára
+surprehendido vendo que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo Dias
+tinha algumas idéas d'ir lá passar o verão?
+
+Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma
+vergonha, mandára-lhe dar uma mão d'oca. Emfim era necessario alguma
+apparencia, sobretudo n'uma casa que estava á beira da estrada, onde
+passava todos os dias o morgadelho dos Poyaes, um parlapatão que
+imaginava que só elle tinha um palacete decente em dez leguas á roda...
+Só para metter ferro áquelle atheu! Pois não lhe parecia, amigo Ferrão?
+
+O abbade estava justamente lamentando comsigo aquelle sentimento de
+vaidade n'um sacerdote; mas, por caridade christã, para não contrariar o
+collega, apressou-se a dizer:
+
+--Está claro, está claro. A limpeza é a alegria das coisas...
+
+O conego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi á
+porta affirmar-se se era Amelia. Não era. E voltando, retomado agora da
+sua preoccupação, vendo que o praticante fôra dentro ao laboratorio,
+disse ao ouvido do Ferrão:
+
+--Uma embaixada da fortuna! Vou vêr uma endemoninhada!
+
+--Ah, fez o abbade, todo sério á idéa d'aquella responsabilidade.
+
+--Quer vossê vir commigo, abbade? É aqui perto...
+
+O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar ao senhor vigario geral,
+fôra depois ao Silverio para lhe pedir aquelles dois volumes, vinha alli
+aviar uma receita para um velho da freguezia, e tinha d'estar de volta
+aos Poyaes ao toque das duas horas.
+
+O conego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...
+
+O abbade então confessou ao caro collega que eram coisas que não gostava
+d'examinar. Aproximava-se sempre d'ellas com um espirito rebelde á
+crença, com desconfianças e suspeitas que lhe diminuiam a
+imparcialidade.
+
+--Mas emfim ha prodigios! disse o conego.--Apesar das suas proprias
+duvidas, não gostava d'aquella hesitação do abbade, a proposito d'um
+phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias, estava interessado.
+Repetiu com seccura:--Tenho alguma experiencia, e sei que ha prodigios.
+
+--Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade. Negar que Deus ou a
+Rainha do céo possa apparecer a uma creatura é contra a doutrina da
+Igreja... Negar que o demonio possa habitar o corpo de um homem, seria
+estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e á
+familia de Sara. Está claro, ha prodigios. Mas que rarissimos que são,
+conego Dias!
+
+Calou-se um momento olhando o conego, que tapava o nariz com rapé em
+silencio--e continuou mais baixo, com o olho brilhante e fino:
+
+--E depois não tem o collega notado que é uma coisa que só succede ás
+mulheres? É só a ellas, cuja **malicia** é tão grande que o proprio
+Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso, tão
+contradictorio que os medicos não as comprehendem. É só a ellas que
+succedem prodigios!... O collega já ouviu de ter apparecido a nossa
+Santa Virgem a um respeitavel tabellião? Já ouviu d'um digno juiz de
+direito possuido do espirito maligno? Não. Isto faz reflectir... E eu
+concluo que é malicia n'ellas, illusão, imaginação, doença, etc... Não
+lhe parece? A minha regra n'esses casos é vêr tudo isso d'alto e com
+muita indifferença.
+
+Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guardasol,
+fazendo para o largo:
+
+--Pst, pst! Eh lá!
+
+Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada d'aquelle encontro que a
+ia ainda retardar mais. E já o senhor parocho devia estar desesperado...
+
+--De modo que, disse o conego á porta abrindo o seu guardasol, vossê,
+abbade, era lhe cheirando a prodigio...
+
+--Suspeito logo escandalo.
+
+O conego contemplou-o um momento, com respeito:
+
+--Vossê, Ferrão, é capaz de dar quinaus a Salomão em prudencia!
+
+--Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade, offendido com aquella
+injustiça feita á incomparavel sabedoria de Salomão.
+
+--Ao proprio Salomão! affirmou ainda o conego da rua.
+
+Tinha preparado uma historia habil para justificar a sua visita á
+paralytica; mas durante a sua conversação com o abbade ella
+escapára-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatorios da
+memoria; e foi sem transição que disse simplesmente a Amelia:
+
+--Vamos lá, tambem quero ir vêr essa Tótó!
+
+Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente, já lá
+estava! Mas sua madrinha Nossa Senhora das Dôres, que ella invocou logo
+n'aquella afflicção, não a deixou enleada no embaraço.--E o conego, que
+caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido ouvindo-lhe dizer com um
+risinho:
+
+--Viva, hoje é o dia das visitas á Tótó! O senhor parocho disse-me que
+tambem talvez hoje apparecesse por lá... Talvez lá esteja até.
+
+--Ah! O amigo parocho tambem? Está bom, está bom. Faremos uma consulta á
+Tótó!
+
+Amelia então, contente da sua malicia, tagarellou sobre a Tótó. O senhor
+conego ia vêr... Era uma creatura incomprehensivel... Ultimamente, ella
+não tinha querido contar em casa, mas a Tótó tomára-lhe birra... E dizia
+coisas, tinha um modo de fallar de cães e d'animaes, d'arripiar!... Ai,
+era um encargo que já lhe pesava... Que a rapariga não lhe escutava as
+lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma fera!
+
+--O cheiro é desagradavel! rosnou o conego entrando.
+
+Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tel-a arranjado. O pai,
+esse, um desleixado tambem...
+
+--É aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta da alcova--que agora, em
+obediencia ás ordens do senhor parocho, o tio Esguelhas deixava sempre
+fechada.
+
+Encontraram a Tótó meio erguida sobre a cama, com a face accêsa n'uma
+curiosidade, áquella voz do conego que não conhecia.
+
+--Ora viva lá a snr.^a Tótó! disse elle da porta, sem se aproximar.
+
+--Vá, comprimenta o senhor conego, disse Amelia, começando logo, com uma
+caridade desacostumada, a compôr a roupa da cama, a arrumar a alcova.
+Dize-lhe como estás... Não te faças amuada!
+
+Mas a Tótó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha á
+cabeceira, examinando muito aquelle sacerdote tão gordo, tão grisalho,
+tão differente do senhor parocho... E os seus olhos, mais brilhantes
+todos os dias á medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de
+costume, do homem para Amelia, n'uma anciedade de perceber porque o
+trazia ella alli, aquelle velho obeso, e se ia tambem subir com elle
+para o quarto.
+
+Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse, e alli, diante do
+cónego, a Tótó, tomada do seu phrenesi, rompesse aos gritos, tratando-os
+de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadella foi à cozinha vigiar o
+pateo. Faria um signal da janella, apenas Amaro apparecesse.
+
+E o conego, só na alcova da Tótó, preparando-se para começar as suas
+observações, ia perguntar-lhe quantas eram as pessoas da Santissima
+Trindade,--quando ella, adiantando a face, lhe disse n'uma voz subtil
+como um sôpro:
+
+--E o outro?
+
+O conego não comprehendeu. Que fallasse alto! Que era?
+
+--O outro, o que vem com ella!
+
+O conego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:
+
+--Que outro?
+
+--O bonito. O que vai com ella p'ró quarto. O que a belisca...
+
+Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo, repousada, com os
+olhos cerrados e respirando regaladamente, como n'um allivio repentino
+de todo o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado d'assombro,
+permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para ascultar a
+Tótó. Ergueu-se por fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu
+d'espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta entre os dedos, os
+olhos muito vermelhos cravados na colcha da Tótó.
+
+--Então, senhor conego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou
+Amelia.
+
+Elle respondeu, sem a olhar:
+
+--Sim senhor, muito bem... Vai bem... É exquisita... Pois é andar, é
+andar... Adeus...
+
+Sahiu, resmungando que tinha negocios,--e voltou immediatamente á
+botica.
+
+--Um copo d'agua! exclamou, cahindo em cheio sobre a cadeira.
+
+O Carlos, que voltára, apressou-se, offerecendo flôr de laranja,
+perguntando se sua excellencia estava incommodado...
+
+--Cansadote, disse.
+
+Tomou o _Popular_ de sobre a mesa, e alli ficou, sem se mexer, abysmado
+nas columnas do periodico. O Carlos tentou fallar da politica do paiz,
+depois dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios que
+ameaçavam a Sociedade, depois da deficiencia da administração do
+concelho de que era agora um adversario feroz... Debalde. Sua
+excellencia grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos, emfim,
+recolheu-se a um silencio chocado, comparando, n'um desdem interior que
+lhe vincava de sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna
+d'aquelle sacerdote à palavra inspirada d'um Lacordaire e d'um Malhão!
+Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal erguia a sua
+cabeça d'hydra...
+
+Batia uma hora na torre quando o conego, que vigiava a Praça pelo canto
+do olho, vendo passar Amelia, arremessou o jornal, sahiu da botica sem
+dizer uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para casa do tio
+Esguelhas. A Tótó estremeceu de medo ao vêr de novo aquella figura
+bojuda apparecer á porta da alcova. Mas o conego riu-se para ella,
+chamou-lhe Tótósinha, prometteu-lhe um pinto para bolos; e mesmo
+sentou-se aos pés da cama com um _ah!_ regalado, dizendo:
+
+--Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita
+doente, hein? Coitadita! Deixa que te has de curar... Hei de pedir a
+Deus... Fica por minha conta.
+
+Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além,
+inquieta, na perturbação que lhe dava aquelle homem a sós com ella tão
+perto que lhe sentia o halito forte.
+
+--Então, ouve cá, disse elle chegando-se mais para ella, fazendo ranger
+o catre com o seu peso. Ouve cá, quem é o outro? Quem é que vem com a
+Amelia?
+
+Ella respondeu logo, atirando as palavras d'um fôlego:
+
+--É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem p'r'ó quarto, fecham-se por
+dentro, são como cães!
+
+Os olhos do conego injectaram-se para fóra das orbitas:
+
+--Mas quem é elle, como se chama? O teu pai que te disse?
+
+--É o outro, é o parocho, o Amaro! fez ella impaciente.
+
+--E vão p'r'ó quarto, hein? lá p'ra cima? E tu que ouves, tu que ouves?
+Dize tudo, pequena, dize tudo!
+
+A paralytica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua
+voz de tisica,--como ambos entravam, e a vinham vêr, e se roçavam um
+pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam lá uma hora
+fechados...
+
+Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que lhe punha uma chamma nos
+olhos mortiços, queria saber os detalhes torpes:
+
+--E ouve lá, Tótósinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?
+
+Ella respondeu com a cabeça affirmativamente, toda pallida, os dentes
+cerrados.
+
+--E olha, Tótósinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, dize,
+que te dou dois pintos.
+
+Ella não descerrava os labios; e a sua face transtornada parecia ao
+conego selvagem.
+
+--Tu embirras com ella, não é verdade?
+
+Ella fez que sim n'uma affirmação feroz de cabeça.
+
+--E vistel-os beliscarem-se?
+
+--São como cães! soltou ella por entre os dentes.
+
+O conego então endireitou-se, bufou outra vez com o seu grande sôpro
+d'encalmado, e coçou vivamente a corôa.
+
+--Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. Não te
+constipes...
+
+Sahiu; e ao fechar com força a porta exclamou alto:
+
+--Isto é a infamia das infamias! Eu mato-o! eu perco-me!
+
+Esteve um momento considerando e partiu para a rua das Sousas, de
+guardasol em riste, apressando a sua obesidade, com a face apopletica de
+furor. No largo da Sé, porém, parou a reflectir ainda; e rodando sobre
+os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um habito de
+quarenta annos, não dobrou o joelho ao Santissimo. E arremessou-se para
+a sacristia--justamente quando o padre Amaro sahia, calçando
+cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para agradar á
+Ameliasinha.
+
+O aspecto descomposto do conego assombrou-o.
+
+--Que é isso, padre-mestre?
+
+--O que é? exclamou o conego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a
+sua infamia! é a sua infamia!...
+
+E emmudeceu, suffocado de cólera.
+
+Amaro, que se fizera muito pallido, balbuciou:
+
+--Que está vossê a dizer, padre-mestre?
+
+O conego tomára fôlego:
+
+--Não ha padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é
+uma canalhice mestra!
+
+O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente d'um gracejo:
+
+--Que rapariga!? O senhor está a brincar...
+
+Sorriu mesmo, affectando segurança; e os seus beiços brancos tremiam.
+
+--Homem, eu vi! berrou o conego.
+
+O parocho, subitamente aterrado, recuou:
+
+--Viu!?
+
+Imaginára n'um relance uma traição, o conego escondido n'um recanto da
+casa do tio Esguelhas...
+
+--Não vi, mas é como se visse!--continuou o conego n'um tom tremendo.
+Sei tudo. Venho de lá. Disse-m'o a Tótó. Fecham-se no quarto horas e
+horas! Até se ouve em baixo ranger a cama! É uma ignominia !
+
+O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a
+um canto, uma resistencia de desespero.
+
+--Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?
+
+O conego pulou.
+
+--O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor ainda me falla n'esse tom!?
+O que tenho é que vou d'aqui immediatamente dar parte de tudo ao senhor
+vigario geral!
+
+O padre Amaro, livido, foi para elle com o punho fechado:
+
+--Ah, seu maroto!
+
+--Que é lá? que é lá? exclamou o conego de guardasol erguido. Vossê
+quer-me pôr as mãos?
+
+O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os
+olhos cerrados; e depois de um momento, fallando com uma serenidade
+forçada:
+
+--Ouça lá, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na
+cama com a S. Joanneira...
+
+--Mente! mugiu o conego.
+
+--Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa...
+O senhor estava em mangas de camisa, ella tinha-se erguido, estava a
+apertar o collete. Até o senhor me perguntou «_quem está ahi?_» Vi, como
+estou a vêl-o agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que
+o senhor vive ha dez annos amigado com a S. Joanneira, á face de todo o
+clero! Ora ahi tem!
+
+O conego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora,
+áquellas palavras, como um boi atordoado. Só pôde dizer d'ahi a pouco,
+muito murcho:
+
+--Que traste que vossê me sae!
+
+O padre Amaro então, quasi tranquillo, certo do silencio do conego,
+disse com bonhomia:
+
+--Traste porquê? Diga-me lá! Traste porquê? Temos ambos culpas no
+cartorio, eis ahi está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a
+Tótó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com
+coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escóla e para o
+sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquillo, os outros fazem o
+que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se á velha, eu que sou
+novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que
+manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que
+temos é fazer costas!
+
+O conego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda d'aquellas
+verdades. Tinha-se deixado cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta
+cólera inutil; e erguendo os olhos para Amaro:
+
+--Mas vossê, homem, no começo da carreira!
+
+--E vossê, padre-mestre, no fim da carreira!
+
+Então riram ambos. Immediatamente cada um declarou retirar as palavras
+offensivas que tinha dito; e apertaram-se gravemente a mão. Depois
+conversaram.
+
+O conego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena de casa. Se
+fosse com outra... até estimava! Mas a Ameliasinha!... Se a pobre mãi
+viesse a saber estourava de desgosto.
+
+--Mas a mãi escusa de saber! exclamou Amaro. Isto é entre nós,
+padre-mestre! Isto é segredo de morte! Nem a mãi sabe de nada, nem eu
+mesmo digo á pequena o que se passou hoje entre nós. As coisas ficam
+como estavam, e o mundo continua a rolar... Mas vossê, padre-mestre,
+tenha cuidado!... Nem uma palavra á S. Joanneira... Que não haja agora
+traição!
+
+O conego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra d'honra
+de cavalheiro e de sacerdote que aquelle segredo ficava para sempre
+sepultado no seu coração.
+
+Então apertaram ainda uma outra vez affectuosamente a mão.
+
+Mas a torre gemeu as tres badaladas. Era a hora de jantar do conego.
+
+E ao sahir, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho
+d'entendedor:
+
+--Pois seu velhaco, tem dedo!
+
+--Que quer vossê? Que diabo... Começa-se por brincadeira...
+
+--Homem! disse o conego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor
+d'este mundo.
+
+--É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor
+d'este mundo.
+
+
+Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade d'alma. Até ahi
+incommodava-o, por vezes, a idéa de que correspondera ingratamente á
+confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado na rua da
+Misericordia. Mas a tacita approvação do conego viera tirar-lhe, como
+elle dizia, aquelle espinho da consciencia. Porque emfim, o chefe de
+familia, o cavalheiro respeitavel, o cabeça--era o conego. A S.
+Joanneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo, às vezes agora, em
+tom de galhofa, tratava o Dias de _seu caro sogro_.
+
+Outra circumstancia viera alegral-o: a Tótó adoecera de repente: o dia
+seguinte ao da visita do conego, passára-o soltando golfadas de sangue:
+o doutor Cardoso, chamado á pressa, fallára de tisica galopante, questão
+de semanas, caso decidido...
+
+--É d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que é trás... trás...--Era a
+sua maneira de pintar a morte, que, quando tem pressa, conclue o seu
+trabalho com uma fouçada aqui, outra além.
+
+As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora tranquillas. Amelia e o
+parocho já não entravam em pontas de pés, tentando esgueirar-se para o
+prazer, despercebidos da Tótó. Batiam com as portas, palravam forte,
+certos que a Tótó estava bem prostrada de febre, sob os lençoes humidos
+dos suores constantes. Mas Amelia, por escrupulo, não deixava de rezar
+todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras da Tótó. Ás vezes mesmo
+ao despir-se, no quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um
+rostinho triste:
+
+--Ai, filho! até me parece peccado, nós aqui a gozarmos, e a pobre
+pequena lá em baixo a luctar com a morte...
+
+Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles de fazer, se era a
+vontade de Deus?...
+
+E Amelia, resignando-se á vontade de Deus em tudo, ia deixando cahir as
+sáias.
+
+Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que impacientavam o padre
+Amaro. Em certos dias apparecia muito murcha; trazia sempre algum sonho
+lugubre a contar, que a torturára toda a noite, e em que ella pretendia
+descobrir avisos de desgraças...
+
+Perguntava-lhe ás vezes:
+
+--Se eu morresse, tinhas muita pena?
+
+Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham apenas uma hora para
+se verem, e haviam d'estar a estragal-a com lamurias?
+
+--É que não imaginas, dizia ella, trago o coração negro como a noite.
+
+Com effeito as amigas da mãi estranhavam-na. Ás vezes durante serões
+inteiros não descerrava os labios, pendida sobre a sua costura, picando
+mollemente a agulha; ou então, muito cansada mesmo para trabalhar,
+ficava junto da mesa fazendo girar devagar o _abat-jour_ verde do
+candieiro, com o olhar vazio e a alma muito longe.
+
+--Ó rapariga, deixa esse _abat-jour_ em paz! diziam-lhe as senhoras
+nervosas.
+
+Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a
+sáia branca que havia semanas andava abainhando. A mãi, vendo-a sempre
+tão pallida, pensára em chamar o doutor Gouveia.
+
+--Não é nada, minha mãi, é nervoso, passa...
+
+O que provava a todos que era nervoso eram os sustos subitos que a
+tomavam--a ponto de dar um grilo, quasi desmaiar, se de repente uma
+porta batia. Certas noites mesmo, exigia que a mãi viesse dormir ao pé
+d'ella, com medo de pesadêlos e de visões.
+
+--É o que diz sempre o senhor doutor Gouveia, observava a mãi ao conego,
+é uma rapariga que necessita casar...
+
+O conego pigarreava grosso.
+
+--Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais,
+ao que parece...
+
+Era com effeito a idéa do conego, que a rapariga (como elle dizia só
+comsigo) «andava-se a arrasar de felicidade». Nos dias em que sabia que
+ella fôra vêr a Tótó, não se fartava de a estudar, cocando-a do fundo da
+poltrona com um olho pesado e lubrico. Prodigalisava-lhe agora as
+familiaridades paternaes. Nunca a encontrava na escada sem a deter, com
+coceguinhas aqui e alli, palmadinhas na face muito prolongadas. Queria-a
+em casa repetidas vezes pela manhã; e emquanto Amelia palrava com D.
+Josepha, o conego não cessava de rondar em torno d'ella, arrastando as
+chinelas com um ar de velho gallo. E eram entre Amelia e a mãi conversas
+sem fim sobre esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria um
+bom dote.
+
+--Seu maganão, tem dedo!--dizia sempre o conego quando estava só com
+Amaro, arregalando os olhos redondos. Aquillo é um bocado de rei!
+
+Amaro entufava-se:
+
+--Não é mau bocado, padre-mestre, é um bom bocado.
+
+Era este um dos **grandes** gozos d'Amaro--ouvir gabar aos collegas a
+belleza d'Amelia, que era chamada entre o clero «a flôr das devotas».
+Todos lhe invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito com ella
+em que se ajanotasse nos domingos, á missa; zangára-se mesmo ultimamente
+de a vêr quasi sempre entrouxada n'um vestido de merino escuro, que lhe
+dava um ar de velha penitente.
+
+Mas Amelia, agora, já não tinha aquella necessidade amorosa de contentar
+em tudo o senhor parocho. Acordára quasi inteiramente d'aquelle
+adormecimento estupido d'alma e do corpo, em que a lançára o primeiro
+abraço de Amaro. Vinha-lhe apparecendo distinctamente a consciencia
+pungente da sua culpa. N'aquelles negrumes d'um espirito beato e
+escravo, fazia-se um amanhecimento de razão.--O que era ella no fim? A
+concubina do senhor parocho. E esta idéa, posta assim descarnadamente,
+parecia-lhe terrivel. Não que lamentasse a sua virgindade, a sua honra,
+o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda por elle, pelos delirios
+que elle lhe dava. Mas havia alguma coisa peor a temer que as
+reprovações do mundo: eram as vinganças de Nosso Senhor. Era da perda
+possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou de mais medonho ainda,
+d'algum castigo de Deus, não das punições transcendentes que acabrunham
+a alma além da tumba, mas dos tormentos que vêm durante a vida, que a
+feririam na sua saude, no seu bem-estar e no seu corpo. Eram vagos medos
+de doenças, de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de fome--de
+todas essas penalidades de que ella suppunha prodigo o Deus do seu
+catecismo. Como em pequena, nos dias em que se esquecia de pagar á
+Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia que ella a fizesse
+cahir na escada ou levar palmatoadas na mestra, arrefecia de medo agora,
+á idéa de que Deus, em castigo d'ella se deitar na cama com um padre,
+lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a reduzisse a pedir esmola
+pelas viellas. Estas idéas não a deixavam, desde o dia em que na
+sacristia peccára de concupiscencia dentro do manto de Nossa Senhora.
+Tinha a certeza que a Santa Virgem a odiava, e que não cessava de
+reclamar contra ella; debalde procurava abrandal-a, com um fluxo
+incessante de orações humilhadas; sentia bem Nossa Senhora, inaccessivel
+e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe
+sorrira; nunca mais aquellas mãos se tinham aberto para receber com
+agrado as suas orações, como ramos congratulatorios. Era um silencio
+sêcco, uma hostilidade gelada de divindade offendida. Ella conhecia o
+credito que Nossa Senhora tem nos concilios do céo; desde pequena lh'o
+tinham ensinado; tudo o que ella deseja o obtem, como uma recompensa
+devida aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe á sua direita,
+o Deus-Padre falla-lhe á esquerda... E comprehendia bem que para ella
+não havia esperança--e que alguma coisa medonha se preparava lá era
+cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia sobre o corpo e sobre a alma,
+esmagando-a com um desabamento de catastrophe. Que seria?
+
+Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quasi
+tanto a sua cólera como a de Deus. Que seria d'ella, se tivesse contra
+si Nossa Senhora e o senhor parocho? Além d'isso, amava-o. Nos seus
+braços, todo o terror do céo, a mesma idéa do céo desapparecia;
+refugiada alli, contra o seu peito, não tinha medo das iras divinas: o
+desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe uma
+coragem colerica; era com um brutal desafio ao céo que se enroscava
+furiosamente ao seu corpo.--Os terrores vinham depois, só no seu quarto.
+Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas d'envelhecimento ao
+canto dos labios seccos e ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga
+que irritava o padre Amaro.
+
+--Mas que tens tu, que parece te espremeram o succo? perguntava-lhe elle
+quando aos primeiros beijos a sentia toda fria, toda inerte.
+
+--Passei mal a noite... Nervoso.
+
+--Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
+
+Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora
+todos os dias. Se tinha dito a missa com fervor? Se tinha lido o
+Breviario? Se tinha feito a oração mental?...
+
+--Sabes tu que mais? disse elle furioso. Sêbo! E esta! Tu pensas que eu
+sou ainda seminarista, e que tu és o padre examinador, que verifica se
+cumpri a Regra? Ora a tolice!
+
+--É que é necessario estar bem com Deus, murmurava ella.
+
+Era com effeito a sua preoccupação, agora, que Amaro _fosse um bom
+padre_. Contava, para se salvar e para se livrar da cólera de Nossa
+Senhora, com a influencia do parocho na côrte de Deus: e temia que elle
+por negligencia de devoção a perdesse, e que, diminuindo o seu fervor,
+diminuissem os seus meritos aos olhos do Senhor. Queria-o conservar
+santo e favorito do céo, para colher os proveitos da sua protecção
+mystica.
+
+Amaro chamava a isto «caturrices de freira velha». Detestava-as, por as
+achar frivolas--e porque tomavam um tempo precioso, n'aquellas manhãs da
+casa do sineiro...
+
+--Nós não viemos aqui para lamurias, dizia elle, muito sêccamente. Fecha
+a porta, se queres.
+
+Ella obedecia,--e então aos primeiros beijos na penumbra da janella
+cerrada, elle reconhecia emfim a sua Amelia, a Amelia dos primeiros
+dias, o delicioso corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos de
+paixão.
+
+E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo e tyrannico, que
+aquellas horas escassas não satisfaziam. Ah! positivamente, como mulher
+não havia outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa,
+mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices, sim, mas era não as tomar a
+sério, e gozar emquanto era novo!
+
+E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e doçuras--como
+uma d'estas salas onde tudo é acolchoado, não ha moveis duros nem
+angulos, e o corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade molle
+d'uma almofada.
+
+Decerto, o melhor eram as suas manhãs em casa do tio Esguelhas. Mas
+tinha outros regalos. Comia bem: fumava caro n'uma boquilha d'espuma:
+toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprára alguma mobilia: e
+não tinha, como outr'ora, embaraços de dinheiro, porque a snr.^a D.
+Maria da Assumpção, a sua melhor confessada, lá estava com a bolsa
+prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma pechincha: uma noite em casa
+da S. Joanneira, a excellente senhora, a proposito d'uma familia
+d'inglezes que vira passar n'um _char-á-banc_ para ir visitar a Batalha,
+exprimira a opinião que os inglezes eram herejes.
+
+--São baptisados como nós, observára D. Joaquina Gansoso.
+
+--Pois sim, filha, mas é um baptismo para rir. Não é o nosso rico
+baptismo, não lhes vale.
+
+O conego então, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a
+snr.^a D. Maria dissera uma blasphemia. O santo concilio de Trento, no
+seu canon IV, sessão VII, lá determinára «que aquelle que disser que o
+baptismo dado aos herejes, em nome do Padre, do Filho e do Espirito, não
+é o verdadeiro baptismo, seja excommungado!» E a D. Maria, segundo o
+santo concilio, estava desde esse momento excommungada!...
+
+A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lançar-se aos pés
+d'Amaro, que em penitencia da sua injuria feita ao canon IV, sessão VII
+do santo concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de intenção
+pelas almas do purgatorio--que D. Maria lhe estava pagando a cinco
+tostões cada uma.
+
+Assim, elle podia ás vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de
+satisfação mysteriosa e um embrulhosinho na mão. Era algum presente para
+Amelia, um lenço de sêda, uma gravatinha de côres, um par de luvas. Ella
+extasiava-se com aquellas provas da affeição do senhor parocho; e era
+então no quarto escuro um delirio d'amor, emquanto em baixo a tisica,
+sobre a Tótó, ia fazendo «trás... trás...»
+
+
+
+
+XX
+
+
+--O senhor conego? Quero-lhe fallar. Depressa!
+
+A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio, e correu acima
+contar a D. Josepha que o senhor parocho viera procurar o senhor conego,
+e com uma cara tão transtornada que decerto tinha succedido alguma
+desgraça!
+
+Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio, fechou-a de repellão,
+e sem mesmo dar os bons dias ao collega, exclamou:
+
+--A rapariga está gravida!
+
+O conego, que estava escrevendo, cahiu como uma massa fulminada para as
+costas da cadeira:
+
+--Que me diz vossê!?
+
+--Gravida!
+
+E no silencio que se fez o soalho gemia sob os passeios furiosos do
+parocho da janella para a estante.
+
+--Está vossê certo d'isso? perguntou emfim o conego com pavor.
+
+--Certissimo! A mulher já ha dias andava desconfiada. Já não fazia senão
+chorar... Mas agora é certo... As mulheres conhecem, não se enganam. Ha
+todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?
+
+--Olha que espiga! ponderou o conego atordoado.
+
+--Imagine vossê o escandalo! A mãi, a visinhança... E se suspeitam de
+mim?... Estou perdido... Eu não quero saber, eu fujo!
+
+O conego coçava estupidamente o cachaço, com o beiço cahido como uma
+tromba. Representavam-se-lhe já os gritos em casa, a noite do parto, a
+S. Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade extincta
+para sempre...
+
+--Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado. Que pensa vossê?
+Veja se tem alguma idéa... Eu não sei, eu estou idiota, estou de todo!
+
+--Ahi estão as consequencias, meu caro collega.
+
+--Vá p'r'ó inferno, homem! Não se trata de moral... Está claro que foi
+uma asneira... Adeus, está feita!
+
+--Mas então que quer vossê? disse o conego. Não quer decerto que se dê
+uma droga á rapariga, que a arrase...
+
+Amaro encolheu os hombros, impaciente com aquella idéa insensata. O
+padre-mestre, positivamente, estava divagando...
+
+--Mas então que quer vossê? repetia o conego n'um tom cavo, arrancando
+as palavras do abysmo do thorax.
+
+--Que quero!? quero que não haja escandalo! Que hei de eu querer?
+
+--De quantos mezes está ella?
+
+--De quantos mezes? Está d'agora, está d'um mez...
+
+--Então é casal-a! exclamou o conego com explosão. Então é casal-a com o
+escrevente!
+
+O padre Amaro deu um pulo:
+
+--C'os diabos, tem vossê razão! É de mestre!
+
+O conego affirmou gravemente com a cabeça que era «de mestre».
+
+--Casal-a já! Emquanto é tempo! _Pater est quem nuptiæ demonstrant_...
+Quem é marido é que é pai.
+
+Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos azues, a touca negra de D.
+Josepha. Não se pudera conter em cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi
+agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas e collára o ouvido á
+fechadura do escriptorio; mas o grosso reposteiro de baetão estava
+cerrado por dentro, um ruido de lenha que se descarregava na rua abafava
+as vozes. A boa senhora então decidiu-se a entrar, «a dar os bons dias
+ao senhor parocho».
+
+Mas debalde, por detraz dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos
+esquadrinharam anciosamente o carão espesso do mano e a face pallida
+d'Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como duas janellas
+fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente do rheumatico do senhor
+chantre, da notícia que corria sobre o casamento do senhor secretario
+geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou que tinha n'esse dia uma
+famosa orelheira para o jantar--e a snr.^a D. Josepha, roendo-se, viu-o
+abalar depois de ter dito já por detraz do reposteiro ao conego:
+
+--Então até á noite em casa da S. Joanneira, padre-mestre, hein?
+
+--Até á noite.
+
+E o conego, muito grave, continuou a escrever. D. Josepha então não se
+conteve; e depois de arrastar um momento as chinelas em torno da banca
+do mano:
+
+--Ha novidade?
+
+--Grande novidade, mana! disse-lhe o conego, sacudindo os bicos da
+penna. Morreu o senhor D. João VI!
+
+--Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapatões, cruelmente perseguida
+por uma risadinha do mano.
+
+Foi á noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira, emquanto Amelia em
+cima, com a morte n'alma, martellava a _Valsa dos dois mundos_, que os
+dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro nos dentes, por
+debaixo do tenebroso painel onde a vaga mão do cenobita se estendia em
+garra sobre a caveira, cochicharam o seu plano:--antes de tudo era
+**necessario** achar João Eduardo, que desapparecera de Leiria; a
+Dionysia, mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para
+descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois, immediatamente,
+porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia... Só quatro palavras
+simples: que soubera que elle fôra victima d'uma intriga; que nunca
+perdera nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma reparação; e
+que **viesse** vêl-a... Se o rapaz hesitasse agora, o que não era
+provavel (o conego affirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperança do
+emprego no governo civil, facil d'obter pelo Godinho, inteiramente
+governado pela mulher, que era uma escravasinha do padre Silverio...
+
+--Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta o escrevente, que
+dirá elle a esta revolução?
+
+--Homem, exclamou o conego com uma grande palmada na côxa, que me tinha
+esquecido! Pois vossê não sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...
+
+Amaro não sabia.
+
+--Quebrou uma perna! Cahiu da egoa!
+
+--Quando?
+
+--Esta manhã. Eu soube-o agora à noitinha. Eu sempre lh'o disse: homem,
+esse animal ferra-lhe alguma! Pois senhores, ferrou-lh'a. E têsa! Tem
+p'ra pêras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras lá em cima
+sabem nada.
+
+Foi uma desolação, em cima, quando souberam. Amelia fechou o piano.
+Todos lembraram logo remedios que se lhe devia mandar, foi uma gralhada
+de offerecimentos--ligaduras, fios, um unguento das freiras d'Alcobaça,
+meia garrafinha d'um licôr dos monges do deserto d'ao pé de Cordova...
+Era necessario tambem assegurar a intervenção do céo: e cada uma se
+promptificou a usar do seu valimento com os santos da sua intimidade: D.
+Maria da Assumpção, que ultimamente praticava com Santo Eleuterio,
+offereceu a sua influencia; D. Josepha Dias encarregava-se d'interessar
+Nossa Senhora da Visitação; D. Joaquina Gansoso afiançou S. Joaquim...
+
+--E lá a menina? perguntou o conego a Amelia.
+
+--Eu?...
+
+E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua alma, pensando que ella,
+com os seus peccados e os seus delírios, perdera a util amizade de Nossa
+Senhora das Dôres.--E não poder ella tambem concorrer com a sua
+influencia no céo para restabelecer a perna de Natario, foi uma das
+amarguras maiores, talvez a punição mais viva que sentira desde que
+amava o padre Amaro.
+
+
+Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro participou a Amelia o
+plano do padre-mestre. Preparou-a, revelando-lhe primeiro que o conego
+sabia tudo...
+
+--Sabe tudo em segredo de confissão, acrescentou para a socegar. Além
+d'isso elle e tua mãi têm culpas em cartorio... Tudo fica em familia...
+
+Depois tomou-lhe a mão, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se já
+das lagrimas afflictas que ella ia chorar:
+
+--E agora escuta, filha. Não te afflijas com o que te vou dizer, mas é
+necessario, é a nossa salvação...
+
+Ás primeiras palavras, porém, do casamento com o escrevente, Amelia
+indignou-se com espalhafato.
+
+--Nunca, antes morrer!
+
+O quê? Elle punha-a n'aquelle estado e agora queria descartar-se d'ella
+e passal-a a outro? Era ella porventura um trapo que se usa e que se
+atira a um pobre? Depois de ter posto fóra de casa o homem, havia de
+humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe nos braços?... Ah, não! Tambem ella
+tinha o seu brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era no
+Brazil!
+
+Enterneceu-se então. Ah, elle já não a amava, estava farto d'ella! Ah,
+que desgraçada, que desgraçada que era!--Atirou-se de bruços para a cama
+e rompeu n'um chôro estridente.
+
+--Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado,
+sacudindo-a pelo braço.
+
+--Não me importa! Que ouçam! P'r'á rua vou eu gritar que estou n'este
+estado, que foi o senhor padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
+
+Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo furioso de lhe bater. Mas
+conteve-se; e com uma voz que tremia sob a sua serenidade:
+
+--Tu estás fóra de ti, filha... Dize lá, posso eu casar comtigo? Não!
+Bem, então que queres? Se se percebe que estás assim, se tens o filho em
+casa, vê o escandalo!... Por ti, estás perdida, perdida p'ra sempre! E
+eu, se se souber, que me succede? Perdido tambem, suspenso, mettido em
+processo talvez... De que queres tu que eu viva? Queres que morra de
+fome?
+
+Enterneceu-se tambem áquella idéa das privações e das miserias do padre
+interdicto.--Ah, era ella, era ella que o não amava, e que depois d'elle
+ter sido tão carinhoso e tão delicado, lhe queria pagar com o escandalo
+e com a desgraça...
+
+--Não, não! exclamou Amelia em soluços, lançando-se-lhe ao pescoço.
+
+E ficaram abraçados, tremendo no mesmo **enternecimento**,--ella
+molhando de pranto o hombro do parocho, elle mordendo o beiço com os
+olhos todos turvos d'agua.
+
+Desprendeu-se brandamente, emfim, e limpando as lagrimas:
+
+--Não, filha, é uma desgraça que nos succede, mas tem de ser. Se tu
+soffres, imagina eu! Vêr-te casada, a viver com outro... Nem fallemos
+n'isso... Mas então, é a fatalidade, é Deus que a manda!
+
+Ella ficára aniquilada, á beira do leito, tomada ainda de grandes
+soluços. Tinha chegado emfim o castigo, a vingança de Nossa Senhora, que
+ella sentia preparar-se ha tempos no fundo dos céos, como uma tormenta
+complicada. Ahi estava, agora, peor que os fogos do Purgatorio! Tinha de
+se separar de Amaro que imaginava amar mais, e ir viver com o outro, com
+o excommungado! Como poderia ella nunca reentrar na graça de Deus,
+depois de ter dormido e vivido com um homem que os canones, o Papa, toda
+a terra, todo céo consideravam maldito?... E devia ser esse seu marido,
+talvez o pai d'outros filhos... Ah, Nossa Senhora vingava-se de mais!
+
+--E como posso eu casar com elle, Amaro, se o homem está excommungado?!
+
+Amaro então apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando os argumentos.
+Era necessario não exagerar... O rapaz, verdadeiramente, excommungado
+não estava... Natario e o conego tinham interpretado mal os canones e as
+bullas... Bater n'um sacerdote que não estava revestido não era motivo
+d'excommunhão _ipso facto_, segundo certos auctores... Elle, Amaro, era
+d'essa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe a excommunhão.
+
+--Tu comprehendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como
+sabes, _nós atamos e desatamos_. O moço foi excommungado?... Bem,
+levantamos-lhe a excommunhão... Fica tão limpo como d'antes. Não, isso
+não te dê cuidado.
+
+--Mas de que havemos de viver, se elle perdeu o emprego?
+
+--Tu não me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lh'o o
+padre-mestre. Está tudo combinadinho, filha!
+
+Ella não respondeu, muito quebrada e muito triste, com duas lagrimas
+persistentes ao comprido das faces.
+
+--Dize cá, tua mãi não desconfia de nada?
+
+--Não, por ora não se percebe, respondeu ella com um grande ai.
+
+Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando para sahir; elle
+de cabeça baixa, trilhando lugubremente o soalho do quarto, pensando nas
+boas manhãs d'outr'ora, quando só havia alli beijos e risadinhas
+abafadas; tudo mudára agora, até o tempo que estava todo nublado, um dia
+de fim de verão, ameaçando chuva.
+
+--Percebe-se que estive a chorar? perguntou ella, compondo ao espelho o
+cabello.
+
+--Não. Vaes-te?
+
+--A mamã está á minha espera...
+
+Deram um beijo triste, e ella sahiu.
+
+
+No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na pista de João Eduardo. A
+sua actividade desenvolvera-se, sobretudo, mal soubera que o conego
+Dias, o ricaço, estava interessado na «pesquiza». E todos os dias, á
+noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo portão d'Amaro a dar-lhe as
+novidades: já sabia que o escrevente estivera ao principio em Alcobaça
+com um primo boticario; depois fôra para Lisboa; ahi, com uma carta de
+recommendação do doutor Gouvêa, empregára-se no cartorio d'um
+procurador; mas o procurador, passados dias, por uma fatalidade, morrera
+de apoplexia; e desde então o rasto de João Eduardo perdia-se no vago,
+no cahos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada
+e os passos: era o typographo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo,
+depois d'uma questão com o Agostinho, deixára o _Districto_ e
+desapparecera. Ninguem sabia para onde fôra; por desgraça, a mãi do
+typographo não a podia informar--porque morrera tambem.
+
+--Oh, senhores! dizia o conego quando o padre Amaro lhe ia levar estes
+fios d'informação. Oh, senhores! mas então n'essa historia toda a gente
+morre! Isso é uma hecatombe!
+
+--Vossê graceja, padre-mestre, mas é sério. Olhe que um homem em Lisboa
+é agulha em palheiro. É uma fatalidade!
+
+Então, afflicto já, vendo passar os dias, escreveu á tia, pedindo-lhe
+que esquadrinhasse por toda a Lisboa, a vêr se por lá apparecera «um tal
+João Eduardo Barbosa...» Recebeu uma carta da tia em garatujas de tres
+paginas, queixando-se do Joãosinho, do seu Joãosinho, que lhe fizera a
+vida um inferno, embebedando-se com genebra a ponto que não lhe paravam
+hospedes em casa. Mas estava agora mais tranquilla: o pobre Joãosinho
+havia dias jurára-lhe pela alma da mamã que d'ahi por diante não beberia
+senão gazosa. Emquanto ao tal João Eduardo perguntára na visinhança e ao
+snr. Palma do ministerio das obras publicas, que conhecia toda a gente,
+mas nada averiguára. Havia, sim, um Joaquim Eduardo que tinha uma loja
+de quinquilherias no bairro... E se fosse o negocio com elle bem ia, que
+era um homem de bem...
+
+--Lérias! lérias! interrompeu o conego impaciente.
+
+Resolveu-se elle então a escrever. E instado pelo padre Amaro (que não
+cessava de lhe representar o que a S. Joanneira e elle mesmo, conego
+Dias, soffreria com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu amigo da
+capital as despezas necessarias para empregar a policia. A resposta
+demorou-se, mas veio emfim, promettedora e magnifica! O habil policia
+Mendes descobrira João Eduardo! Somente não lhe sabia ainda a morada,
+avistára-o apenas n'um café; mas em dois ou tres dias o amigo Mendes
+promettia informações precisas.
+
+O desespero dos dois sacerdotes, porém, foi grande quando, d'ahi a dias,
+o amigo do conego escreveu que o indivíduo, que o habil policia Mendes
+tomára por João Eduardo, n'um café da Baixa, sobre signaes incompletos,
+era um moço de Santo Thyrso que estava na capital a fazer concurso para
+delegado... E havia tres libras e dezesete tostões de despeza.
+
+--Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando para Amaro furioso. E no
+fim de contas foi o senhor que gozou, que se refocillou, e sou eu que
+estou aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e a fazer
+desembolsos d'esta ordem!
+
+Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os hombros á injuria.
+
+Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A Dionysia lá andava no
+faro!
+
+
+Amelia recebia estas noticias com desconsolação. Depois das primeiras
+lagrimas, a irremediavel necessidade impuzera-se-lhe, muito forte. Por
+fim que lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle seu
+desgraçado corpo de cinta fina e quadris estreitos, não poderia esconder
+o seu estado. E que faria então? Fugir de casa, ir como a filha do tio
+Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos
+inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que fôra a amiga do padre Abilio,
+levar pela cara os ratos mortos que lhe atiravam os soldados? Não.
+Então, tinha de casar...
+
+Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete mezes (era tão frequente!),
+legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu
+filho teria um papá, receberia uma educação, não seria um engeitado...
+
+Desde que o senhor parocho lhe affirmára, em juramento, que o escrevente
+_não estava realmente excommungado_, que com algumas orações se lhe
+levantaria a excommunhão, os seus escrupulos devotos esmoreciam como
+brazas que se apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ella só
+podia descobrir a incitação do ciume e do amor: fôra n'um despeito de
+namorado que escrevera o _Communicado_, fôra n'um furor de paixão
+trahida que espancára o senhor parocho... Ah! não lhe perdoava esta
+brutalidade! Mas que castigado fôra! Sem emprego, sem casa, sem mulher,
+tão perdido na miseria anonyma de Lisboa que nem a policia o achava! E
+tudo por ella. Pobre rapaz! No fim não era feio... Fallavam da sua
+impiedade; mas vira-o sempre muito attento á missa, rezava todas as
+noites uma oração especial a S. João que ella lhe dera impressa n'um
+cartão bordado...
+
+Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada...
+Porque não seria feliz, por fim? Elle não era rapaz de botequins, nem de
+vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impôr os seus gostos e as
+suas devoções. E seria agradavel sahir aos domingos de manhã para a
+missa, arranjada, de marido ao lado, comprimentada de todos, podendo, á
+face da cidade, passear o seu filho muito vistoso na sua touca de rendas
+e na sua grande capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos que
+désse ao pequerrucho e pelos confortos de que cercasse o homem, o céo e
+Nossa Senhora se não abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter
+outra vez no céo aquella amiga, a sua querida Nossa Senhora, amavel e
+confidente, sempre prompta a curar-lhe as dôres, a livral-a de
+infortunios, occupada a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!
+
+Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura; pensava assim, mesmo
+no caminho para casa do sineiro; e depois de ter estado um momento com a
+Tótó, muito quieta agora, extenuada da febre lenta, quando subia ao
+quarto, a primeira pergunta a Amaro era:
+
+--Então, ha alguma novidade?
+
+Elle franzia a testa, rosnava:
+
+--A Dionysia lá anda... Porquê, tens muita pressa?
+
+--Tenho muita pressa, tenho, respondia ella muito séria, que a vergonha
+é para mim.
+
+Elle calava-se; e havia tanto odio como amor nos beijos que lhe
+dava--áquella mulher que se resignava assim tão facilmente a ir dormir
+com outro!
+
+
+Tinha ciumes d'ella--que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira
+conformar-se áquelle casamento odioso! Agora, que ella já não chorava,
+começava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas; e secretamente
+desesperava-se d'ella não preferir a vergonha com elle á rehabilitação
+com o outro. Não lhe custaria tanto se ella continuasse a barafustar, a
+fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova séria de amor, em que
+a sua vaidade se banharia deliciosamente; mas aquella aceitação do
+escrevente agora, sem repugnancia e sem gestos d'horror, indignava-o
+como uma traição. Viera a suspeitar que a ella no fundo não lhe
+_desagradava a mudança_. João Eduardo por fim era um homem; tinha a
+força dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello bigode. Ella
+teria nos braços d'elle o mesmo delirio que tinha nos seus... Se o
+escrevente fosse um velho consumido de rheumatismo, ella não mostraria a
+mesma resignação. Então, por vingança do padre, para «lhe desmanchar o
+arranjo», desejava que João Eduardo não apparecesse: e muitas vezes,
+quando a Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe com um mau
+sorriso:
+
+--Não se canse. O homem não apparece. Deixe lá... Não vale a pena ganhar
+dôr de peito...
+
+Mas a Dionysia tinha o peito forte--e uma noite veio, triumphante,
+dizer-lhe que estava na pista do homem! Vira emfim o Gustavo, o
+typographo, entrar para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia
+ia-lhe fallar, e havia de se saber tudo...
+
+Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle casamento, por que anciára
+no primeiro momento de terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a
+catastrophe da sua vida.
+
+Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem que elle expulsára, que elle
+supprimira, alli lhe vinha, por uma d'estas peripecias malignas em que a
+Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idéa que
+elle ia tel-a nos braços, que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe
+dava a elle, que balbuciaria _oh, João!_--como agora murmurava _oh,
+Amaro!_--enfurecia-o. E não podia evitar o casamento; todos o queriam,
+ella, o conego, até a Dionysia com o seu zêlo venal!
+
+De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixões fortes
+d'um corpo são? Tinha de dizer adeus á rapariga,--vêl-a partir de braço
+dado com o _outro_, com o marido, irem ambos para casa brincar com o
+filho, um filho que era seu! E elle assistiria á destruição da sua
+alegria de braços cruzados, esforçando-se por sorrir, voltaria a viver
+só, eternamente só, e a relêr o Breviario!... Ah! se fosse no tempo em
+que se supprimia um homem com uma denuncia d'heresia!... Que o mundo
+recuasse duzentos annos, e o snr. João Eduardo havia de saber o que
+custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amelia...
+
+E esta idéa absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se
+tão fortemente da sua imaginação que toda a noite a sonhou--n'um sonho
+vivido, que muitas vezes depois contou rindo ás senhoras. Era uma rua
+estreita batida d'um sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma
+populaça apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados retorciam o
+bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas,
+accêsos n'um furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé
+movia-se devagar, n'um vasto ruido, sob o tremendo dobre a finados de
+todos os sinos visinhos. Adiante os flagellantes semi-nus, de capuz
+branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o _Miserere_, com as
+costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia João Eduardo, idiota de
+terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos côr
+de fogo, tendo ao peito um rotulo em que estava escripto--POR HEREJE;
+por traz um medonho servente do Santo Officio espicaçava furiosamente o
+jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos
+ouvidos os conselhos do arrependimento. E elle, Amaro, caminhava ao lado
+cantando o _Requiem_, de Breviario aberto n'uma mão, com a outra
+abençoando as velhas, as amigas da rua da Misericordia que se agachavam
+para lhe beijar a alva. Ás vezes voltava-se para gozar aquella pompa
+lugubre, e via então a longa fila da confraria dos Nobres: aqui era um
+personagem pansudo e apopletico, além uma face de mystico com um bigode
+feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava uma tocha accêsa, e na
+outra mão sustentava o chapéo cuja pluma negra varria o chão. Os
+capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota contorcia as
+faces esfomeadas do populacho; e o prestito ondeava nas tortuosidades da
+rua, entre o clamor do canto-chão, os gritos dos fanaticos, o dobrar
+aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um terror que enchia toda
+a cidade,--aproximando-se da platafórma de tijolo onde já fumegavam as
+pilhas de lenha.
+
+E o seu desengano foi grande, depois d'aquella gloria ecclesiastica do
+sonho, quando a criada o veio acordar cedo com agua quente para a barba.
+
+Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. João Eduardo, e
+escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se com Amelia ás onze horas; e foi a
+primeira coisa que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau modo:
+
+--O homem appareceu... Pelo menos appareceu o amigo intimo, o
+typographo, que sabe onde a bêsta pára...
+
+Amelia, que estava n'um dia de desalento e terror, exclamou:
+
+--Ainda bem, que se acaba este tormento!
+
+Amaro teve um risinho repassado de fel:
+
+--Então agrada-te, hein?
+
+--Se te parece, n'este susto em que ando...
+
+Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia. Susto! Não estava má
+hypocrisia! Susto de quê? Com uma mãi que era uma babosa, que lhe
+consentia tudo... O que era, era que queria casar... Queria outro! Não
+lhe agradava aquelle divertimento pela manhã, de fugida... Queria a
+coisa commodamente, em casa. Imaginava a menina que o illudia a elle, um
+homem de trinta annos e quatro annos de experiencia de confissão? Via
+bem através d'ella... Era como as outras, queria mudar d'homem.
+
+Ella não respondia, muito pallida. E Amaro, furioso com o seu silencio:
+
+--Calas-te, está claro... Que has de tu dizer? Se é a verdade pura!...
+Depois dos meus sacrificios... Depois do que tenho soffrido por ti...
+Apparece-te o outro, larga para o outro!
+
+Ella ergueu-se, e batendo o pé, desesperada:
+
+--Foste tu que quizeste, Amaro!
+
+--Pudera! Se imaginas que me havia de perder por tua causa! Está claro
+que quiz!...--E olhando-a d'alto, fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma
+muito recta:--Mas nem vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de ir
+para o homem!... És uma desavergonhada, é o que é...
+
+Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para
+sahir.
+
+Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo braço:
+
+--P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. És uma desavergonhada... Estou-te a
+dizer. Estás morta por dormir com o outro...
+
+--Pois acabou-se, estou! disse ella.
+
+Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
+
+--Não me mates! gritou ella. É o teu filho!
+
+Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: áquella palavra, áquella
+idéa do seu filho, uma piedade, um amor desesperado revolveu todo o seu
+sêr: e arremessando-se sobre ella, n'um abraço que a esmagava, como
+querendo sepultal-a no peito, absorvel-a toda só para si, atirando-lhe
+beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos cabellos:
+
+--Perdôa, murmurava, perdôa, minha Ameliasinha! Perdôa, que estou doido!
+
+Ella soluçava, n'um pranto nervoso;--e toda a manhã foi no quarto do
+sineiro um delirio d'amor a que aquelle sentimento da maternidade,
+ligando-os como um sacramento, dava uma ternura maior, um renascimento
+incessante de desejo, que os lançava cada vez mais ávidos nos braços um
+do outro.
+
+Esqueceram as horas; e Amelia só se decidiu a saltar do leito quando
+ouviram em baixo na cozinha a muleta do tio Esguelhas.
+
+Emquanto ella se arranjava á pressa diante do bocado d'espelho que
+ornava a parede, Amaro diante d'ella contemplava-a com melancolia,
+vendo-a a passar o pente nos cabellos--nos cabellos que elle dentro em
+breve não tornaria a vêr pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe
+enternecido:
+
+--Estão a acabar os nossos bons dias, Amelia. És tu que queres... Has de
+te lembrar algumas vezes d'estas boas manhãs...
+
+--Não digas isso! fez ella com os olhos arrazados d'agua.
+
+E atirando-se-lhe de repente ao pescoço, com a antiga paixão dos tempos
+felizes, murmurou-lhe:
+
+--Hei de ser sempre a mesma para ti... Mesmo depois de casada.
+
+Amaro agarrou-lhe as mãos sôfregamente:
+
+--Juras?
+
+--Juro.
+
+--Pela hostia sagrada?
+
+--Juro pela hostia sagrada, juro por Nossa Senhora!
+
+--Sempre que tenhas occasião?
+
+--Sempre!
+
+--Oh, Ameliasinha! oh, filha! não te trocava por uma rainha!
+
+Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella ao leito, ouvia-a em
+baixo fallar tranquillamente com o tio Esguelhas; e dizia comsigo que
+era uma grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que havia de fazer
+andar n'uma roda viva o pateta do escrevente.
+
+
+Aquelle «pacto», como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre elles
+tão irrevogavel que já lhe discutiam tranquillamente os detalhes. O
+casamento com o escrevente consideravam-no como uma d'estas necessidades
+que a sociedade impõe e que suffoca as almas independentes, mas a que a
+natureza se subtrae pela menor fenda, como um gaz irreductivel. Diante
+de Nosso Senhor, o verdadeiro marido d'Amelia era o senhor parocho; era
+o marido da alma, para quem seriam guardados os melhores beijos, a
+obediencia intima, a vontade; o outro teria quando muito o _cadaver_...
+Já ás vezes mesmo tramavam o plano habil das correspondencias secretas,
+dos logares occultos de _rendez-vous_...
+
+Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da
+paixão. Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar
+«tudo branco como a neve», os seus transes tinham desapparecido, o mesmo
+terror da vingança do céo calmára-se. Depois, a bofetada que lhe dera
+Amaro fôra como a chicotada que esperta um cavallo que preguiça e se
+atraza: e a sua paixão, sacudindo-se e relinchando forte, ia-a de novo
+levando no impeto d'uma carreira fogosa.
+
+Amaro, esse regosijava-se. Ainda ás vezes, decerto, a idéa d'aquelle
+homem, de dia e de noite com ella, importunava-o... Mas, no fundo, que
+compensações! Todos os perigos desappareciam magicamente, e as sensações
+requintavam. Findavam para elle aquellas atrozes responsabilidades da
+seducção, e ficava-lhe a mulher mais appetitosa.
+
+Instava agora com a Dionysia para que acabasse emfim aquella fastidiosa
+campanha. Mas a boa mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
+multiplicidade d'esforços, não podia descobrir o typographo--aquelle
+famoso Gustavo que possuia, como os anões de romance de cavallaria, o
+segredo da torre maravilhosa onde vive o principe encantado.
+
+--Oh, senhor! dizia o conego, isso até já cheira mal! Ha quasi dois
+mezes á busca d'um patife!... Homem, escreventes não faltam. Arranje-se
+outro!
+
+Mas emfim, uma noite em que elle entrára a descansar em casa do parocho,
+a Dionysia appareceu; e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde
+os dois padres tomavam o seu café:
+
+--Até que emfim!
+
+--Então, Dionysia?
+
+A mulher, porém, não se apressou: sentou-se mesmo, com licença dos
+senhores, porque vinha derreada... Não, o senhor conego não imaginava os
+passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo lembrava-lhe a
+historia, que lhe contavam em pequena, d'um veado que estava sempre á
+vista e que os caçadores a galope nunca alcançavam. Uma perseguição
+assim!... Mas, finalmente apanhára-o... E tocadito, por signal.
+
+--Acabe, mulher! berrou o conego.
+
+--Pois aqui está, disse ella. Nada!
+
+Os dois sacerdotes olharam-na mystificados.
+
+--Nada quê, creatura?
+
+--Nada. O homem foi p'r'ó Brazil!
+
+O Gustavo recebera de João Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe
+dava a morada, para o lado do Poço do Borratem, annunciava-lhe a
+resolução de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que mudára de casa,
+sem lhe indicar a nova _adresse_, e declarava que pelo proximo paquete
+embarcava para o Rio; não dizia nem com que dinheiro, nem com que
+esperanças. Tudo era vago e mysterioso. Desde então, havia um mez, o
+rapaz não tornára a escrever, d'onde o typographo concluia que ia a essa
+hora nos altos mares...--«Mas havemos de vingal-o!» tinha elle dito a
+Dionysia.
+
+O conego remexia pausadamente o seu café, embatocado.
+
+--E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito branco.
+
+--Acho-a boa.
+
+--Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda! disse surdamente
+Amaro.
+
+--Amen, respondeu gravemente o conego.
+
+
+
+
+XXI
+
+
+Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A sua honra, a paz da sua
+vida, tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do
+mar, a caminho para o Brazil!
+
+Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o parocho, banhada em
+lagrimas, perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.
+
+Amaro, succumbido, sem idéa, ia para o padre-mestre.
+
+--Fez-se tudo o que se pôde, dizia o conego desolado. É aguentar. Não se
+mettesse n'ellas!
+
+E Amaro voltava para Amelia com consolações muito murchas:
+
+--Tudo se ha de arranjar, é esperar em Deus!
+
+Era bom o momento para contar com Deus, quando Elle, indignado, a
+acabrunhava de miserias! E aquella indecisão, n'um homem e n'um padre,
+que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperavam-na; a sua
+ternura por elle sumia-se como a agua que a areia absorve; e ficava um
+sentimento confuso em que sob o desejo persistente já transluzia o odio.
+
+Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro
+não se queixava; aquellas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram
+sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de soluços;
+e aquillo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem
+de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
+
+No fundo accusava-a de exagerar os seus embaraços, de lhe communicar um
+terror desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, não faria
+semelhante espalhafato... Mas quê, uma beata hysterica, toda nervos,
+toda medo, toda exaltação!... Ah, não havia duvida, fôra «uma famosa
+asneira»!
+
+Tambem Amelia pensava que fôra «uma asneira». E não ter nunca imaginado
+que aquillo lhe poderia succeder! Qual! Como mulher, correra para o
+amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,--e agora que sentia nas
+entranhas o filho, eram as lagrimas e os espantos e as queixas! A sua
+vida era lugubre: de dia tinha de se conter diante da mãi, applicar-se á
+sua costura, conversar, affectar felicidade... Era de noite que a
+imaginação desencadeada a torturava com uma incessante phantasmagoria de
+castigos, d'este e do outro mundo, miserias, abandonos, desprezo da
+gente honrada e chammas do purgatorio...
+
+Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão áquella
+anciedade que se ia tornando um habito morbido do seu espirito. Uma
+noite a criada do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer que a
+snr.^a D. Josepha estava á morte.
+
+Na vespera a excellente senhora sentira-se doente com uma pontada no
+lado, mas insistira em ir á Senhora da Incarnação rezar a sua corôa;
+voltou transida, com uma dôr maior e uma ponta de febre; e n'essa tarde,
+quando o doutor Gouvêa foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia
+aguda.
+
+A S. Joaneira correu logo a installar-se lá como enfermeira. E então,
+durante semanas, na tranquilla casa do conego, foi um alvoroço de
+dedicações afflictas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas
+a fazer promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em
+permanencia, sahindo e entrando no quarto da doente com passos de
+phantasmas, accendendo aqui e além lamparinas ás imagens, torturando o
+doutor Gouvêa com perguntas piegas. Á noite na sala, com o candieiro a
+meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lugubres; e ao chá,
+entre cada mastigadella de torrada, havia suspiros, lagrimas
+furtivamente limpadas...
+
+O conego lá estava a um canto, aniquilado, succumbido com aquella brusca
+apparição da doença e do seu scenario melancolico--as garrafadas de
+botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do medico, as faces
+compungidas que vem saber se ha melhoras, o halito febril espalhado em
+toda a casa, o timbre funerario que toma o relogio de parede no
+abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam dias no logar em
+que cahiram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva eterna...
+De resto, um pezar sincero prostrava-o; havia cincoenta annos que vivia
+com a mana e era animado por ella; o longo habito tornára-lh'a cara; e
+as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa
+faziam como uma parte mesma de seu sêr... Além d'isso, quem sabe se a
+morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o não levaria
+tambem!...
+
+Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao menos ninguem pensava,
+ninguem reparava n'ella; nem a sua face triste e os vestigios de
+lagrimas pareceriam estranhos, n'aquelle perigo em que estava a
+madrinha. Demais os serviços de enfermeira occupavam-n'a: como era a
+mais forte e a mais nova, agora que a S. Joaneira estava estafada de
+vigilias, era ella que passava as longas noites á beira de D. Josepha: e
+não havia então desvelos que não tivesse, para abrandar Nossa Senhora e
+o céo com aquella caridade pela doente, para merecer igual piedade
+quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada n'um leito...
+Vinha-lhe agora, sob a impressão funebre que se exhalava da casa, o
+presentimento repetido que morreria de parto; ás vezes só, embrulhada no
+seu chale aos pés da doente, ouvindo-lhe o gemer monotono, enternecia-se
+sobre a sua propria morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos
+de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma, da sua mocidade e dos seus
+amores... Ia então ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina
+bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o papel claro da parede
+a sua sombra disforme que se quebrava no tecto; e alli ficava rezando,
+pedindo a Nossa Senhora que não lhe recusasse o paraiso... Mas a velha
+mexia-se com um ai doloroso; ia então aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe
+baixo. Vinha depois á sala vêr no relogio se era o momento do remedio; e
+estremecia ás vezes, sentindo vir do quarto proximo um pio de flautim ou
+um som rouco de trombone; era o conego a resonar.
+
+Emfim, uma manhã, o doutor Gouvêa declarou D. Josepha livre de perigo.
+Foi um vivo regosijo para as senhoras--certa, cada uma, que aquillo era
+devido á intervenção particular do seu santo devoto. E d'ahi a duas
+semanas houve uma festa na casa, quando D. Josepha, pela primeira vez,
+amparada nos braços de todas as amigas, deu dois passos tremulos no
+quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a doença! Aquella vozinha
+irritada, em que as palavras eram despedidas como settas envenenadas,
+assemelhava-se agora apenas a um som expirante, quando, n'um esforço
+ancioso da vontade, pedia a escarradeira ou o xarope. Aquelle olhar
+sempre álerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo
+das orbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E
+o seu corpo, tão têso outr'ora, d'uma seccura de ramo de sarmento, agora
+ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia
+um trapo tambem.
+
+Mas emfim o doutor Gouvêa, apesar d'annunciar uma convalescença longa e
+delicada, dissera rindo ao conego, diante das amigas (depois de ter
+visto D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar
+á janella), que com muita cautela, tonicos, e as orações de todas
+aquellas boas senhoras--a mana estava ainda para amores...
+
+--Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas orações não lhe hão de
+faltar...
+
+--E eu não lhe hei de faltar com os tonicos, disse o doutor. De modo
+que, o que resta é congratularmo-nos.
+
+Aquella jovialidade do doutor era para todos como a certeza da saude
+proxima.
+
+E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se o fim d'agosto, fallou de
+alugar casa na Vieira, como costumava um anno sim outro não, para ir
+tomar os seus banhos de mar. O anno passado não fôra. Este era o anno de
+praia...
+
+--E a mana lá, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar, é que acaba de
+ganhar forças e carnes...
+
+Mas o doutor Gouvêa desapprovou a jornada. O ar muito picante e muito
+rico do mar não convinha á fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem
+para a quinta da Ricoça, nos Poyaes, logar abrigado e muito temperado.
+
+Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou as lamurias. O
+quê! ir enterrar-se todo o verão, o melhor tempo do anno, na Ricoça! E
+os seus banhos, meu Deus, os seus banhos?
+
+--Veja o senhor,--dizia elle a Amaro, uma noite no escriptorio,--veja o
+que eu tenho sofrido... Durante a doença, que desarranjo, que desordem
+na casa! Chá fôra d'horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive, que
+me emmagreceram... E agora, quando eu pensava poder ir refazer-me para a
+praia, não senhor, vai p'r'á Ricoça, dispensa os teus banhos... Isto é o
+que eu chamo sofrer! E no fim de tudo não fui eu que estive doente. Mas
+sou eu que as aguento... Perder dois annos a fio os meus banhos!...
+
+Amaro, então, deu de repente uma punhada na mesa, e exclamou:
+
+--Homem, veio-me uma boa idéa!
+
+O conego olhou-o com duvida, como se não achasse possivel a uma
+intelligencia humana descobrir o fim dos seus males.
+
+--Quando digo uma boa idéa, padre-mestre, devia dizer uma idéa sublime!
+
+--Acabe, creatura...
+
+--Escute. O senhor vai p'r'á Vieira, e a S. Joanneira, está claro, vai
+tambem. Naturalmente alugam casa um ao pé do outro, como ella me disse
+que tinham feito ha dois annos...
+
+--Adiante...
+
+--Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira. Agora, a senhora sua mana
+parte p'r'á Ricoça.
+
+--E então a creatura ha de ir só?
+
+--Não! exclamou Amaro em triumpho. Vai com a Amelia! A Amelia vai-lhe
+servir de enfermeira! Vão ambas sós! e lá na Ricoça, n'aquelle buraco
+onde não vai viva alma, n'aquelle casarão onde póde uma pessoa viver sem
+que ninguem em roda suspeite, lá é que a rapariga tem o filho! Hein, que
+lhe parece?
+
+O conego erguera-se com os olhos redondos d'admiração.
+
+--Homem, famosa idéa!
+
+--É que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joanneira,
+longe, não sabe o que se passa. Sua mana goza os ares... A Amelia tem um
+sitio escondido p'r'á coisa... Á Ricoça ninguem a vai vêr... A D. Maria
+tambem vai p'r'á Vieira. As Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom
+successo ahi pelos principios de novembro... Da Vieira, e isso fica por
+sua conta, não volta ninguem dos nossos até principios de dezembro... E
+quando nos reunirmos de novo está a rapariga limpa e fresca.
+
+--Pois senhores, por ser a primeira idéa que vossê tem n'estes dois
+ultimos annos, é uma grande idéa!
+
+--Obrigado, padre-mestre.
+
+Mas havia uma difficuldade feia: era o ir á D. Josepha, á rigorista D.
+Josepha, tão implacavel ás fraquezas do sentimento, á D. Josepha que
+pedia para as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas--as
+letras marcadas na testa com ferro em braza, os açoutes nas praças
+publicas, os _in pace_ tenebrosos--ir á D. Josepha e pedir-lhe para ser
+cumplice d'um parto!
+
+--A mana vai dar urros! disse o conego.
+
+--Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouçando
+a perna, muito certo do seu prestigio devoto. Nós veremos... Hei de lhe
+eu fallar... E quando lhe tiver contado umas lérias... Quando lhe tiver
+representado que é para ella um caso de consciencia encobrir a
+pequena... Quando lhe lembrar que nas vesperas da morte é que se deve
+fazer alguma boa acção, para não se apresentar á porta do paraiso com as
+mãos vazias... Nós veremos!
+
+--Talvez, talvez, disse o conego. A occasião é boa, porque a pobre mana
+está fraquita do juizo e leva-se como uma criança.
+
+Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mãos:
+
+--Pois é mãos á obra! É mãos á obra!
+
+--E é necessario não perder tempo, porque o escandalo estala. Olhe que
+esta manhã, lá em casa, a besta do Libaninho pôz-se a gracejar com a
+rapariga, a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
+
+--Oh, que patife! rugiu o parocho.
+
+Não, não seria por mal. Mas que a rapariga tem engrossado, é facto...
+Com esta atarantação da doença ninguem tem tido olhos para nada... Mas
+agora póde-se reparar... É sério, amigo, é sério!
+
+
+Por isso, logo na manhã seguinte, Amaro foi, segundo a expressão do
+conego, «dar a grande abordagem á mana».
+
+Antes, porém, explicou em baixo no escriptorio ao padre-mestre o seu
+plano: primeiro, ia dizer a D. Josepha que o conego estava na inteira
+ignorancia do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia, não
+em segredo de confissão (n'esse caso não o poderia revelar) mas pelas
+confidencias secretas dos dois--de Amelia e do homem casado que a
+seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque emfim era necessario provar
+á velha que havia a impossibilidade d'uma reparação legitima...
+
+O conego coçava a cabeça descontente:
+
+--Isso não vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe bem que não iam
+homens casados á rua da Misericordia.
+
+--E o Arthur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrupulo.
+
+O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur, sem dentes, cheio de
+filhos, com os seus olhos de carneiro triste, accusado de perder
+virgens!... Não, essa era boa!
+
+--Não péga, parocho amigo, não péga! Outra, outra...
+
+Mas então subitamente partiu dos labios d'ambos o mesmo nome,--o
+Fernandes, o Fernandes da loja de panos! Bello homem, que Amelia
+admirava muito! Sempre que sahia ia-lhe á loja: tinha mesmo havido
+indignação na rua da Misericordia, havia dois annos, com a ousadia do
+Fernandes que acompanhára Amelia pela estrada de Marrazes até ao
+Morenal!
+
+Já se sabe, não se dizia explicitamente á mana,--mas dava-se-lhe a
+entender que fôra o Fernandes.
+
+E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do
+escriptorio. Esteve lá meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o
+conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem as solas d'Amaro,
+ora a tosse cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo
+escriptorio, da estante para a janella, com as mãos atraz das costas e a
+caixa de rapé nos dedos, ia considerando quantos incommodos, quantas
+despezas lhe traria ainda aquelle «divertimento do senhor parocho»!
+Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis mezes... Depois o
+medico, a parteira que era elle naturalmente que havia de pagar...
+Depois algum enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao
+pequeno?... Na cidade, a Roda fôra supprimida; em Ourem, como os
+recursos da Misericordia eram escassos e a affluencia dos engeitados
+escandalosa, tinham posto um homem ao pé da sineta da Roda, para
+interrogar e pôr embaraços; havia indagações de paternidade,
+restituições de crianças; e a auctoridade, finoria, combatia o excesso
+dos engeitamentos com o terror dos vexames...
+
+Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo um erriçamento de
+difficuldades para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a
+digestão...--Mas o excellente conego, no fundo, não se indignava; sempre
+tivera uma affeição de velho mestre pelo parocho; para a Amelia sempre o
+inclinára um fraco meio paternal, meio lubrico; e mesmo já sentia pelo
+«pequeno» uma vaga condescendencia d'avô.
+
+A porta abriu-se, e o parocho appareceu triumphante.
+
+--Tudo ás mil maravilhas, padre-mestre! Que lhe dizia eu?
+
+--Consentiu?
+
+--Em tudo. Não foi sem difficuldade... Ia-se abespinhando. Fallei-lhe do
+homem casado... Que a rapariga estava com a cabeça perdida, queria-se
+matar... Que se ella não consentisse em encobrir a coisa era responsavel
+por uma desgraça... Lembre-se a senhora que está com os pés p'r'á cova,
+que Deus póde chamal-a d'um momento a outro, e que se tiver na
+consciencia este peso, não ha padre que lhe dê a absolvição!...
+Lembre-se que morre p'r'áhi como um cão!...
+
+--Emfim, disse o conego approvando, fallou-lhe com prudencia...
+
+--Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar á S. Joanneira, e de a
+levar p'r'á Vieira quanto antes...
+
+--Outra coisa, amigo, interrompeu o conego. Tem vossê pensado no destino
+que se ha de dar ao fructo?
+
+O parocho coçou desconsoladamente a cabeça:
+
+--Ah, padre-mestre... Isso é outra difficuldade... Tem-me apoquentado
+muito... Naturalmente dal-o a criar a alguma mulher, longe, lá p'ra
+Alcobaça ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre, era que a criança
+nascesse morta!
+
+--Era um anjinho mais... rosnou o conego sorvendo a sua pitada.
+
+
+Logo n'essa noite elle fallou á S. Joanneira da ida para a Vieira, em
+baixo na saleta onde ella estava arranjando pires de marmelada que
+andavam a seccar para a convalescença de D. Josepha. Começou por dizer
+que lhe alugára a casa do Ferreiro...
+
+--Mas isso é um nicho! exclamou ella logo. Onde hei de eu metter a
+pequena?
+
+--Ora ahi é que está. É que justamente a Amelia d'esta vez não vai á
+Vieira.
+
+--Não vai!?
+
+Foi só então que o conego lhe explicou que a mana não podia ir só para a
+Ricoça, e que elle tinha pensado em mandar com ella Amelia... Era uma
+idéa que lhe viera n'essa manhã.
+
+--Eu não posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe...
+A pobre de Christo não ha de estar para lá só, com uma criada.
+Portanto...
+
+A S. Joanneira teve um silenciosinho desconsolado:
+
+--Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem
+deixar a pequena... Se eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.
+
+--Qual ia! A senhora vem p'r'á Vieira. Eu tambem não hei de estar lá
+só... Sua ingrata, sua ingrata!...--E tomando um tom muito sério:--A
+senhora veja bem. A Josepha está com os pés p'r'á cova. Ella sabe que o
+que eu tenho para mim chega. Ella tem affeição á pequena, sempre é
+madrinha; se a vir agora a tratal-a na doença, a estar alli só com ella
+uns mezes, fica pelo beiço. Olhe que a mana ainda vale um par de mil
+cruzados. A pequena póde apanhar um bom dote. Não lhe digo mais nada...
+
+E a S. Joanneira concordou logo--uma vez que era vontade do senhor
+conego.
+
+Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amelia «o grande plano», a
+scena com a velha: que ella se promptificára logo, coitadinha, já cheia
+de caridade, desejando até ajudar para o enxoval do pequeno...
+
+--N'ella pódes ter confiança, é uma santa... De modo que está tudo
+salvo, filha. É estar mettida quatro ou cinco mezes na Ricoça.
+
+Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a estação da Vieira, o
+divertimento dos banhos!... Ir enterrar-se todo um verão n'aquelle
+sinistro casarão da Ricoça! A unica vez que lá fôra, já ao fim da tarde,
+ficára estarrecida de medo. Tudo tão escuro, d'um echo tão concavo...
+Tinha a certeza que ia lá morrer, n'aquelle degredo.
+
+--Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de me ter inspirado esta
+idéa de salvação. Demais tens a D. Josepha, tens a Gertrudes, o pomar
+para passear... E eu vou-te lá vêr todos os dias. Até has de gostar,
+verás.
+
+--Emfim que lhe hei de eu fazer? É aguentar. E com duas grossas lagrimas
+nas palpebras, amaldiçoava intimamente aquella paixão que só amarguras
+lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forçava
+a ella a ir fechar-se na solidão da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os
+cães uivar na quinta...--E a mamã, que diria a mamã?
+
+--Que ha de dizer? A D. Josepha não póde ir p'r'á quinta só, sem uma
+enfermeira de confiança! Não te dê cuidado. O padre-mestre está lá em
+baixo a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que já aqui estou só ha
+bocado comtigo, e n'estes ultimos dias é necessario ter cautelinha...
+
+Desceu. Justamente o conego subia, e encontraram-se na escada.
+
+--Então? perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
+
+--Tudo arranjado. E por lá?
+
+--Idem.
+
+E no escuro da escada os dois padres apertaram-se silenciosamente a mão.
+
+
+D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos, Amelia partiu com D.
+Josepha para a Ricoça n'um _char-à-banc_.
+
+Tinham arranjado, com almofadas, um recanto commodo para a
+convalescente. O conego acompanhava-a, furioso com aquelle incommodo. E
+a Gertrudes ia em cima na almofada, á sombra da montanha que faziam
+sobre o tope do carro os bahús de couro, os cestos, as latas, as
+trouxas, os saccos de chita, o açafate onde miava o gato, e um fardo
+amarrado com cordas contendo os paineis dos santos mais queridos de D.
+Josepha.
+
+Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joanneira para a Vieira,
+de noite, por causa da calma. A rua da Misericordia estava atravancada
+com o carro de bois, que conduzia as louças, os enxergões, o trem de
+cozinha; e no mesmo _char-à-banc_ que fôra á Cortegassa, ia agora a S.
+Joanneira e a _Ruça_ que levava tambem no regaço um açafate com o gato.
+
+O conego fôra na vespera, só Amaro assistia á partida da S. Joanneira. E
+depois de toda uma azafama, de galgarem cem vezes de baixo a cima as
+escadas por um cestinho que esquecera ou um embrulho que desapparecia,
+quando a _Ruça_ emfim fechou a porta á chave, a S. Joanneira, já no
+estribo do _char-à-banc_, rompeu a chorar.
+
+--Então, minha senhora, então! disse Amaro.
+
+--Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa...
+Parece que a não torno a vêr. Appareça pela Ricoça, faça-me essa esmola.
+Veja se ella está contente...
+
+--Vá descansada, minha senhora.
+
+--Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por tudo... Ai os favores que
+lhe devo!
+
+--Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê noticias! Recados ao
+padre-mestre. Adeus, minha senhora! adeus, Ruça...
+
+O _char-à-banc_ partiu. E pelo mesmo caminho por onde elle ia rolando,
+Amaro foi andando devagar até á estrada da Figueira. Eram então nove
+horas, nascera já o luar d'uma noite calida e serena de agosto. Uma
+tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem calada. Aqui e além uma
+fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do
+arvoredo. Ao pé da ponte, parou a olhar melancolicamente o rio que
+corria sobre a areia com uma susurração monotona; nos logares em que as
+arvores se debruçavam, havia escuridões cerradas; e adiante uma
+claridade tremia sobre a agua, como um tecido de filigrana faiscante.
+Alli esteve, n'aquelle silencio que o calmava, fumando cigarros e
+atirando as pontas para o rio, embebido n'uma tristeza vaga. Depois,
+ouvindo as onze, veio voltando para a cidade, passou pela rua da
+Misericordia n'um enternecimento de recordações: a casa, com as janellas
+fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para sempre; os
+vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos da janella...
+Quantas vezes Amelia e elle se tinham encostado áquella varanda! Havia
+então um craveiro fresco, e conversando, ella cortava uma folha,
+trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha acabado agora!--E na Misericordia,
+ao lado, o piar das corujas no silencio dava-lhe uma sensação de ruina,
+de solidão e de fim eterno.
+
+Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrazados d'agua.
+
+A criada veio logo á escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, n'uma
+afflicção, viera procural-o duas vezes, haviam de ser nove horas. A Tótó
+estava a morrer, e só queria receber os sacramentos da mão do senhor
+parocho.
+
+Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa em voltar assim n'essa
+noite, para um fim tão triste, ao meio das recordações felizes da sua
+paixão, foi, para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquella
+morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e como completando a subita
+dispersão de quanto até ahi o interessára ou estivera misturado á sua
+vida.
+
+A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escuridão da entrada
+topou com duas mulheres que sahiam suspirando. Foi logo direito á alcova
+da paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam
+sobre uma mesa; um lençol branco cobria o corpo da Tótó; e o padre
+Silverio, que fôra decerto chamado por estar de semana, lia o Breviario,
+com o lenço nos joelhos, os seus grandes oculos na ponta do nariz.
+Ergueu-se apenas viu Amaro:
+
+--Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o por toda a
+parte... A pobre de Christo queria-o a vossê... Eu, quando me foram
+buscar, ia fazer a partida a casa do Novaes. É a partida do sabbado...
+Que scena! Morreu na impenitencia, como era dos livros. Quando me viu, e
+que vossê não vinha, que espectaculo! Até tive medo que me cuspisse no
+crucifixo...
+
+Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lençol, mas deixou-o
+logo recahir sobre a face da morta. Depois subiu acima ao quarto onde o
+sineiro, estirado sobre a cama, voltado para a parede, soluçava
+desesperadamente; estava com elle outra mulher, que se conservava a um
+canto, muda e immovel, com os olhos no chão, no vago aborrecimento que
+lhe dava aquelle pesado dever de visinha. Amaro tocou no hombro do
+sineiro, fallou-lhe:
+
+--É necessario resignação, tio Esguelhas... São decretos do Senhor...
+Para ella é até uma felicidade.
+
+O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho, por entre o véo das
+lagrimas que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mão, quiz beijar-lh'a.
+Amaro recuou:
+
+--Então, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso, ha de lhe
+levar em conta a sua dôr...
+
+Elle não o escutava, sacudido d'um pranto convulsivo,--emquanto a
+mulher, muito tranquillamente, limpava ora um ora outro canto do olho.
+
+Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio d'aquelle serviço
+excepcional, tomou o seu logar ao pé da vela, com o Breviario na mão.
+
+Alli ficou até tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe que o tio
+Esguelhas tinha pegado a dormir; e ella promettia voltar com a
+amortalhadeira, mal rompesse a manhã.
+
+Toda a casa então ficou n'aquelle silencio, que a visinhança do vasto
+edificio da Sé fazia parecer mais soturno; só ás vezes um mocho piava
+debilmente nos contrafortes, ou o grosso bordão batia os quartos. E
+Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas preso alli por uma força
+superior da consciencia sobresaltada, ia precipitando as orações... Ás
+vezes o livro cahia-lhe sobre os joelhos; e então, immovel, sentindo por
+detraz a presença d'aquelle cadaver coberto do lençol, recordava, n'um
+contraste amargo, outras horas em que o sol banhava o pateo, as
+andorinhas esvoaçavam, e elle e Amelia subiam rindo para aquelle quarto
+onde agora, sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluços
+mal acalmados...
+
+
+
+
+XXII
+
+
+O conego Dias recommendára muito a Amaro que ao menos nas primeiras
+semanas, para evitar as suspeitas da mana e da criada, não fosse á
+Ricoça. E a vida d'Amaro tornou-se então mais triste, mais vazia que
+outr'ora, quando pela primeira vez deixando a casa da S. Joanneira viera
+para a rua das Sousas. Todos os seus conhecidos estavam fóra de Leiria:
+D. Maria da Assumpção na Vieira; as Gansosinhos ao pé d'Alcobaça com a
+tia, a famosa tia que havia dez annos estava para morrer e para lhes
+deixar uma grande herdade. Depois do serviço da Sé, as horas, todo o
+longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. Não estaria mais separado
+de toda a communicação humana, se como Santo Antonio vivesse nos areaes
+do deserto libyco. Só o coadjutor que, coisa singular, nunca lhe
+apparecia nos tempos felizes, voltára agora, como o companheiro fatidico
+das horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana, ao fim do
+jantar, mais magro, mais chupado, mais soturno, com o seu eterno
+guardachuva na mão. Amaro odiava-o; ás vezes, para o impôr, fingia-se
+todo occúpado n'uma leitura; ou precipitando-se para a mesa, mal lhe
+sentia nos degraus as passadas lentas:
+
+--Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.
+
+Mas o homem installava-se, com o odioso guardachuva entre os joelhos:
+
+--Não se prenda, senhor parocho, não se prenda.
+
+E Amaro, torturado por aquella figura lugubre que não se mexia na
+cadeira, atirava a penna, furioso, agarrava o chapéo:
+
+--Não estou hoje p'r'á coisa, vou espairecer.
+
+E á primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.
+
+Ás vezes, farto de solidão, ia visitar o Silverio. Mas a felicidade
+pachorrenta d'aquelle sêr obeso, occupado em colleccionar receitas de
+medicina caseira e em observar as perturbações phantasticas da sua
+digestão; os seus constantes louvores do doutor Godinho, dos pequenos e
+da senhora; as chalaças obsoletas que elle repetia havia quarenta annos
+e a innocente hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam Amaro.
+Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga era a felicidade por fim:
+porque não havia de elle ser tambem um bom padre caturra, com uma
+pequenina mania tyrannica, parasita regalado d'uma familia respeitavel,
+tendo um d'estes sangues tranquillos que giram sob camadas de gordura,
+sem perigo de transbordar e de causar desgraças, como um riacho que
+corre por debaixo d'uma montanha?...
+
+Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura, mal tratada ao
+principio, o retinha ainda na cama com o apparelho na perna. Mas ahi,
+enjoava-o o aspecto do quarto--impregnado d'um cheiro d'arnica e de
+suor, com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e
+esquadrões de garrafas sobre a commoda entre fileiras de santos.
+Natario, mal o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras dos
+medicos! A sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atrazo
+em que estava a medicina n'este maldito paiz!... E ia salpicando o
+soalho negro de expectorações e de pontas de cigarro. Desde que estava
+doente, a saude dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma
+offensa pessoal.
+
+--E vossê sempre rijo, hein? Pudera!--murmurava com rancor.
+
+E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o
+alarve do abbade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete
+da manhã! Animaes!
+
+Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do conego,
+da Vieira, as melhoras da D. Josepha...
+
+Mas Natario não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a
+convivencia e a amizade; interessavam-n'o só os seus inimigos, com quem
+tinha ligações d'odio. Queria saber do escrevente, se já tinha estourado
+de fome...
+
+--Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir aqui n'esta maldita
+cama!...
+
+As sobrinhas appareciam então--duas creaturinhas sardentas, d'olhos
+muito pisados. O seu grande desgosto era que o titi não mandasse vir a
+_benzedeira_ pôr-lhe _virtude_ na perna: era o que tinha curado o
+morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...
+
+Natario, na presença das _duas rosas do seu canteiro_, calmava-se.
+
+--Coitaditas, não é por falta de cuidados d'ellas que eu ainda não
+arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
+
+E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo, voltavam-se para o
+lado limpando os olhos aos lenços.
+
+Amaro sahia d'alli, mais enfastiado.
+
+Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas
+apenas se afastava do movimento da cidade, a sua tristeza tornava-se
+mais intensa, concordando com aquella paizagem de collinas tristes e
+arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe como essa mesma estrada
+monotona e longa, sem um incidente que a alegrasse, estirando-se
+desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo. Ás vezes, ao
+voltar, entrava no cemiterio, ia passeando entre os renques de
+cyprestes, sentindo áquella hora do fim da tarde a emanação adocicada
+das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se á grade dourada do
+jazigo da familia Gouvêa, contemplando os emblemas em relevo, um chapéo
+armado e um espadim, seguindo as negras letras da famosa ode que lhe
+adorna a lapida:
+
+
+Caminhante, detem-te a contemplar
+ Estes restos mortaes;
+E, se sentires a mágoa a transbordar,
+ Detem teus ais.
+Que Julio Cabral da Silva Maldonado
+ Mendonça de Gouvêa,
+Moço fidalgo, bacharel formado,
+ Filho da illustre Cêa,
+Ex-administrador d'este concelho,
+ Commendador de Christo,
+Foi de virtudes singular espelho,
+ Caminhante, crê n'isto.
+
+
+Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua esposa, que agora, rica e
+quarentona, vivia em concubinagem com o bello capitão Trigueiros, fizera
+gravar uma piedosa quadra:
+
+
+Entre os anjos espera, ó esposo,
+A metade do teu coração
+Que no mundo ficou, tão sózinha,
+Toda entregue ao dever da oração!...
+
+
+Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao muro, via um homem
+ajoelhado ao pé d'uma cruz negra, que um chorão assombreava, ao lado da
+valla dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta no chão, rezando
+sobre a sepultura da Tótó. Ia fallar-lhe, e mesmo, n'uma igualdade que
+aquelle logar justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro,
+conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de que servia á
+desgraçada rapariga a vida para a passar estirada n'uma cama?
+
+--Sempre era viver, senhor parocho... E eu, veja agora isto, sósinho de
+dia e de noite!
+
+--Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia melancolicamente
+Amaro.
+
+O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.^a D. Josepha, pela
+menina Amelia...
+
+--Lá está na quinta.
+
+--Coitadita, não está má estopada...
+
+--Cruzes da vida, tio Esguelhas.
+
+E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros
+cheios do negrejamento das cruzes e da brancura das lapidas novas.
+Amaro, ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo tinha
+aspergido e consagrado: onde estariam aquellas almas que elle
+recommendára a Deus em latim, distrahido, engorolando á pressa as
+orações para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da cidade; elle
+conhecia de vista as pessoas da familia; vira-as então lavadas em
+lagrimas, e agora passeavam em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao
+balcão das lojas...
+
+Voltava para casa mais triste,--e a sua longa noite começava,
+infindavel. Tentava lêr; mas ao fim das dez primeiras linhas bocejava de
+tedio e de fadiga. Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas tomava
+chá; e depois era um passear sem fim pelo quarto, fumando maços de
+cigarros, parando á janella a olhar a negrura da noite, lendo aqui e
+além uma noticia ou um annuncio do _Popular_ e recomeçando a passear com
+bocejos tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.
+
+Para entreter estas noites melancolicas, e por um excesso de
+sensibilidade ociosa, tentára fazer versos, pondo o seu amor e a
+historia dos dias felizes nas formulas conhecidas da saudade lyrica:
+
+
+Lembras-te d'esse tempo da delicias,
+Ó anjo feiticeiro, Amelia amada,
+Quando tudo eram risos e ventura
+E a vida nos corria socegada?
+
+Lembras-te d'essa noite de poesia
+Em que a lua brilhava pelos céos,
+E nós unindo as almas, ó Amelia,
+Erguemos nossa prece para Deus?...
+
+
+Mas a despeito de todos os esforços nunca passára d'estas duas
+quadras--apesar de as ter produzido com uma facilidade
+promettedora--como se o seu sêr contivesse apenas estas duas gottas
+isoladas de poesia, e, soltas ellas á primeira pressão, nada mais
+restasse senão a sêcca prosa do temperamento carnal.
+
+E esta existencia varia relaxára-lhe tão subtilmente todo o machinismo
+da vontade e da acção, que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a
+fastidiosa concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso como o peso
+d'um fardo injusto. Preferia ainda os tedios da ociosidade aos tedios da
+occupação. A não serem os deveres estrictos que elle não podia desleixar
+sem escandalo e sem censura--desembaraçára-se, pouco a pouco, de todas
+as praticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas
+regulares ao Santissimo, nem as meditações espirituaes, nem o rosario á
+Virgem, nem a leitura á noite do Breviario, nem o exame de
+consciencia--todas estas obras da devoção, estes meios secretos de
+santificação progressiva substituia-os pelos infindaveis passeios pelo
+quarto, do lavatorio á janella, e por maços de cigarros fumados até ao
+negro dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o
+serviço da parochia feito com surdas revoltas de impaciencia; tornára-se
+consummadamente o _Indignus sacerdos_ dos ritualistas; e tinha na sua
+ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que
+os theologos attribuem ao _mau padre_.
+
+Só lhe restava através da sua sentimentalidade um appetite tremendo. E
+como a cozinheira era excellente, e a snr.^a D. Maria da Assumpção,
+antes da sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento de cento
+e cincoenta missas a cruzado--banqueteava-se, tratando-se a gallinha e a
+geleia, regando-se d'um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre lhe
+escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas, de perna esticada,
+fumando sobre o café, e lamentando não ter á mão a sua Ameliasita...
+
+--Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita! pensava, espreguiçando-se
+com tedio e com langor.
+
+
+A pobre Ameliasita, na Ricoça, amaldiçoava a sua vida.
+
+Logo durante a jornada no _char-à-banc_ D. Josepha lhe fizera
+tacitamente sentir que d'ella não tinha a esperar nem a antiga amizade,
+nem o perdão do escandalo... E assim foi, quando se installaram. A velha
+tornou-se intratavel: era todo um modo cruel de abandonar o _tu_, de a
+tratar por _menina_; uma recusa rispida se Amelia lhe queria arranjar a
+almofada ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo quando ella
+lhe passava o serão no quarto, costurando; e a todo o momento allusões
+suspiradas ao triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos seus
+dias...
+
+Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe que a madrinha
+seria toda caridade, toda cumplicidade; entregava-a por fim a uma
+semelhante ferocidade de velha virgem devota!...
+
+Quando se viu n'aquelle casarão da Ricoça, n'um quarto regelado, pintado
+a côr de canario, lugubremente mobilado com uma cama de docel e duas
+cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça, enterrada no
+travessseiro--torturada por um cão que debaixo das janellas, estranhando
+sem duvida as luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.
+
+Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros. Era talvez boa gente com
+quem podia distrahir-se. Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um
+cypreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito puxado
+para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha
+uma tristeza de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda peor,
+semelhante a um ourango-tango, com duas orelhas enormes muito despegadas
+do craneo, uma saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas, um
+corpo desengonçado de tisico, de peito mettido para dentro. Abalou bem
+depressa, foi vêr o pomar: andava maltratado; as ruasitas estavam
+invadidas por um hervaçal humido; e a sombra das arvores muito juntas,
+n'um terreno baixo, cercado d'altos muros, dava uma sensação doentia.
+
+Era ainda preferivel passar os seus dias mettida no casarão; dias
+infindaveis em que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso d'um
+desfilar funerario.
+
+O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas recebia a impressão
+triste da paizagem que se estendia defronte, uma ondulação monotona de
+terras estereis com alguma magra arvore aqui e além, um ar abafado em
+que parecia errar constantemente a exhalação de paues proximos e de
+baixas humidas, e a que nem o sol de setembro dissipava o tom
+sezonatico.
+
+Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha, accommodal-a no canapé;
+depois vinha costurar para ao pé d'ella--como outr'ora na rua da
+Misericordia para ao pé da mãi; mas agora em logar das boas
+«cavaqueiras» tinha só o silencio intratavel da velha e a sua ronqueira
+incessante. Pensára em fazer vir o seu piano da cidade; mas, apenas em
+tal fallou, a velha exclamou com azedume:
+
+--A menina está doida... Não tenho saude para tocatas! Ora o
+desproposito!
+
+A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava
+ao pé da velha, ou na cozinha, desapparecia; era justamente d'aquella
+freguezia, e passava o seu tempo pelos casaes, palrando com as antigas
+visinhas.
+
+A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rozario, ficava
+junto á janella olhando estupidamente as gradações da luz poente; todos
+os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silencio
+parecia descer, pousar sobre a terra; depois uma primeira estrellinha
+tremeluzia e brilhava; e diante d'ella era então só uma massa inerte de
+sombra muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um momento uma delgada
+tira côr de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz
+ou contorno de objecto em redor que o prendesse, ia muito saudoso para
+longe, para a Vieira; áquella hora a mãi e as amigas recolhiam do
+passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos
+palheiros começam a apparecer as luzes; é a hora do chá, dos quinos
+alegres, quando os rapazes da cidade vão em rancho pelas casas amigas,
+com uma viola e uma flauta, improvisando _soirées_. E ella alli, só!...
+
+Era então necessario deitar a velha, rezar com ella e com a Gertrudes o
+terço. Accendiam depois o candieiro de latão, pondo-lhe diante uma velha
+chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o serão, no
+silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava
+agachada a um canto.
+
+Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, n'um medo constante
+de ladrões; e então começava para Amelia a hora dos terrores
+supersticiosos. Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura d'aquellas
+antigas salas deshabitadas e em redor o tenebroso silencio dos campos.
+Ouvia ruidos inexplicaveis: era o soalho do corredor que estalava, sob
+passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava como
+sob um halito invisivel; ou a distancia, para os lados da cozinha, o
+baque surdo d'um corpo. Accumulava então as orações, encolhida debaixo
+da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadêlo continuavam-lhe os
+terrores da vigilia. Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia,
+gemendo, por traz da alta barra da cama:--_Amelia, prepara-te, o teu fim
+chegou!_ Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi
+refugiar-se na cama da Gertrudes.
+
+Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou quando ella ia adormecer:
+_Amelia, lembra-te dos teus peccados! Prepara-te, Amelia!_ Deu um grito,
+desmaiou. Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára, correu
+áquelle ai agudo que cortára o silencio do casarão. Achou-a estirada ao
+través do leito, com os cabellos soltos da rede rojando no chão, as mãos
+geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do caseiro, e até de
+madrugada foi uma azafama para a chamar á vida. Desde esse dia a
+Gertrudes dormia ao pé d'ella--e a voz não tornou a ameaçal-a por traz
+da barra.
+
+Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa da morte e o pavor do
+inferno. Por esse tempo, um vendedor ambulante d'estampas passou pela
+Ricoça; e a snr.^a D. Josepha comprou-lhe duas lithographias--a _Morte
+do Justo_ e a _Morte do Peccador_.
+
+--Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse
+ella.
+
+Amelia não duvidou ao principio que a velha, que contava morrer no mesmo
+apparato de gloria com que expirava o _Justo_ da estampa, lhe quizera
+mostrar a ella, a _peccadora_, a scena pavorosa que a esperava. Odiou-a
+por aquella «picardia». Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar á
+compra da estampa outra explicação: era Nossa Senhora que alli mandára o
+vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo na lithographia da _Morte
+do Peccador_ o espectaculo da sua agonia: e estava então certa que tudo
+seria assim, traço por traço--o seu anjo da guarda fugindo aos soluços;
+Deus-Padre desviando o rosto d'ella com repugnancia; o esqueleto da
+morte rindo ás gargalhadas; e demonios de côres rutilantes, com todo um
+arsenal de torturas, apoderando-se d'ella, uns pelas pernas, outros
+pelos cabellos, arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna
+chammejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna
+Dôr... E ella podia vêr ainda, no fundo dos céos, a grande balança--com
+um dos pratos muito alto onde as suas orações não pesavam mais que uma
+penna de canario, e o outro prato cahido, de cordas retesadas,
+sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
+
+Cahiu então n'uma melancolia hysterica que a envelhecia; passava os dias
+suja e desarranjada, não querendo dar cuidado ao seu corpo peccador;
+todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe
+custavam, como se as julgasse inuteis; e tinha atirado para o fundo
+d'uma arca o enxoval que andava a costurar para o filho--porque o
+odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e que
+era a causa da sua perdição. Odiava-o--mas menos que o outro, o parocho
+que lh'o fizera, o padre malvado que a tentára, a estragára, a atirára
+ás chammas do inferno! Que desespero quando pensava n'elle! Estava em
+Leiria socegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez--e
+ella alli sósinha, com o ventre condemnado e enfartado do peccado que
+elle lá depuzera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!
+
+Decerto esta excitação a teria matado--se não fosse o abbade Ferrão que
+começára então a vir vêr muito regularmente a irmã do amigo conego.
+
+Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua da Misericordia;
+dizia-se lá que o Ferrão tinha «idéas exquisitas»: mas não era possivel
+recusar-lhe nem a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia
+muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se succedido na
+diocese, e elle alli ficára esquecido n'aquella freguezia pobre, de
+congrua atrazada, n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo
+vigario geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe
+todavia, liberal de palavriado:
+
+--Vossê é um dos bons theologos do reino. Vossê está predestinado por
+Deus para um bispado. Vossê ainda apanha a mitra. Vossê ha de ficar na
+historia da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!
+
+--Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom! Mas era necessario que eu
+tivesse o arrojo d'um Affonso d'Albuquerque ou d'um D. João de Castro,
+para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
+
+E alli ficára, entre gente pobre, n'uma aldeia de terra escassa, vivendo
+de dois pedaços de pão e uma chavena de leite, com uma batina limpa onde
+os remendos faziam um mappa, precipitando-se a uma meia legua por um
+temporal desfeito se um parochiano tinha uma dôr de dentes, passando uma
+hora a consolar uma velha a quem tinha morrido uma cabra... E sempre de
+bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma
+necessidade do seu visinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem
+fazia botes de cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma
+rapariga bonita, o que era raro na freguezia, e exclamar: «Linda moça,
+Deus a abençôe!»
+
+E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão celebre, que lhe
+chamavam «a donzella».
+
+De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas d'estação aos
+pés do Santissimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as
+menores praticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia
+com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, d'onde a sua alma
+sahia mais agil, como d'um banho fortificante; preparando-se para o
+somno com um d'estes longos e piedosos exames de consciencia, tão uteis,
+que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarcho e
+Seneca, e que são a correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos,
+o aperfeiçoamento meticuloso da virtude activa, emprehendido com um
+fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha
+vago, abysmava-se n'um cahos de livros.
+
+Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de caçar! Cohibia-se,
+porque a caça tira muito tempo, e é sanguinario matar uma pobre ave que
+anda azafamada pelos campos nos seus negocios domesticos. Mas nas claras
+manhãs d'inverno, quando ainda ha orvalho nas giestas, se via passar um
+homem d'espingarda ao hombro, o passo vivo, seguido do seu
+perdigueiro--iam-se-lhe os olhos n'elle... Ás vezes porém, a tentação
+vencia: agarrava furtivamente a espingarda, assobiava á _Janota_, e com
+as abas do casacão ao vento, lá ia o theologo illustre, o espelho de
+piedade, através de campos e valles... E d'ahi a pouco--pum... pum! Uma
+codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a
+espingarda debaixo do braço, os dois passaros na algibeira, cosendo-se
+com os muros, rezando o seu rosario á Virgem, e respondendo aos _bons
+dias_ da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.
+
+O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto «gêbo» e do seu grande nariz,
+agradou a Amelia, logo desde a primeira visita á Ricoça; e a sua
+sympathia cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com pouco
+alvoroço, apesar do respeito que o mano conego tinha pela sciencia do
+abbade.
+
+A velha, com effeito depois de ter estado só com elle n'uma pratica
+d'horas, condemnára-o com uma unica palavra, na sua auctoridade de velha
+devota experiente:
+
+--É relaxado!
+
+Não se tinham realmente comprehendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos
+annos n'aquella parochia de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de
+mães a filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso Senhor, Nossa
+Senhora e S. Vicente, patrono da freguezia, tendo pouca experiencia de
+confissão, encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada de
+devota de cidade, d'um beaterio caturra e atormentado; e ao ouvir
+aquella extraordinaria lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
+
+--É estranho, é estranho...
+
+Percebera bem ao principio que tinha diante de si uma d'essas
+degenerações morbidas do sentimento religioso, que a theologia chama
+_Doença dos escrupulos_--e de que na sua generalidade estão affectadas
+hoje todas as almas catholicas; mas depois, a certas revelações da
+velha, receou estar realmente em presença d'uma maniaca perigosa; e
+instinctivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos
+doidos, recuou a cadeira.
+
+Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em que chegára á Ricoça
+(contava ella), ao começar o rosario a Nossa Senhora, lembrára-lhe de
+repente que lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era tão
+efficaz nas dôres das pernas... Trinta e oito vezes de seguida
+recomeçára o rosario, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre
+ella e Nossa Senhora!... Então desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E
+immediatamente sentira dôres vivas nas pernas, e tivera como uma voz de
+dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe
+alfinetes nas pernas...
+
+O abbade pulou:
+
+--Oh, minha senhora!...
+
+--Ai, não é tudo, senhor abbade!
+
+Havia outro peccado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir
+a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na bôca,
+tinha de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera pensando
+que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia d'embrulhada para o estomago
+e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?
+
+O abbade, d'olhar esgazeado, limpava o suor da testa.
+
+Mas isto não era o peor: o grave era, que na noite antecedente estava
+toda socegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier--e de
+repente, nem ella soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco
+Xavier nú em pêllo!
+
+O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim, vendo-a a olhar anciosa
+para elle, á espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:
+
+--E ha muito que sente esses terrores, essas duvidas...?
+
+--Sempre, senhor abbade, sempre!
+
+--E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas
+inquietações?
+
+--Todas as pessoas que conheço, duzias d'amigas, todo o mundo... O
+Inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...
+
+--E que remedio dava a essas anciedades d'alma...?
+
+--Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade, o senhor parocho, o snr.
+Silverio, o snr. Guedes, todos, todos nos tiravam sempre d'embaraços...
+E com uma habilidade, com uma virtude...
+
+O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que
+por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim
+voluntariamente o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo o mundo dos
+fieis n'um terror abjecto do céo, representando Deus e os seus santos
+como uma côrte que não é menos corrompida nem melhor que a de Caligula e
+dos seus libertos.
+
+Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de devota, povoado de
+phantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as
+suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror d'offender
+a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai
+indulgente e amigo... Que é por amor que é necessario servil-o, não por
+medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes,
+o nome de Deus a cahir no estomago, eram perturbações da razão doente.
+Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regimen para ganhar forças. Que
+não se cansasse em orações exageradas...
+
+--E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se e despedindo-se,
+continuaremos a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
+
+--Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha sêccamente.
+
+E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os
+pés, D. Josepha exclamou, toda indignada, quasi choramingando:
+
+--Ai, não presta p'ra nada, não presta p'ra nada!... Não me percebeu...
+É um tapado... É um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n'um
+sacerdote do Senhor...
+
+Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade os peccados medonhos que
+continuava a commetter; e quando elle, por dever, quiz recomeçar a
+educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se
+confessava com o senhor padre Gusmão, não sabia se seria delicado
+receber d'outro a direcção moral...
+
+O abbade fez-se vermelho, respondeu:
+
+--Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza
+n'essas coisas...
+
+Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe
+da saude, de ter fallado do tempo, da estação, das doenças que iam,
+d'alguma festa na igreja,--apressava-se em se despedir e ir para o
+terraço conversar com Amelia.
+
+Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por ella; para Amelia, as
+visitas do abbade eram uma distracção, n'aquella solidão da Ricoça; e
+assim se iam familiarisando, a ponto que nos dias em que elle
+regularmente vinha, Amelia punha um mantelete e ia pelo caminho dos
+Poyaes esperal-o até junto á casa do ferrador. As conversas do abbade,
+fallador incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos da
+rua da Misericordia,--como o espectaculo d'um largo valle com arvores,
+plantações, aguas, pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos
+habituados ás quatro paredes caiadas d'uma trapeira da cidade. Tinha com
+effeito uma d'estas conversações semelhantes aos _jornaes semanaes de
+recreio_, o Thesouro das familias ou as Leituras para serões, em que de
+ha tudo--doutrina moral, historias de viagens, anecdotas dos grandes
+homens, dissertações sobre a lavoura, citação d'uma boa chalaça, traços
+sublimes da vida d'um santo, um verso aqui e além, e até receitas, como
+uma muito util que deu a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem.
+Só era monotono quando fallava da sua familia parochiana, dos
+casamentos, baptisados, doenças, questões, ou quando começava as suas
+historias de caça.
+
+--Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego das Tristes, quando
+uma revoada de perdizes...
+
+Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da _Janota_,
+pontarias fabulosas contadas em mimica, com imitações de vozes de
+passaros, e _pum, pum_ de fusilaria. Ou então eram descripções das
+caçadas selvagens que elle lêra com gula--a caça ao tigre do Nepal, ao
+leão d'Argelia e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a
+imaginação da rapariga para longe, para os paizes exoticos onde a herva
+é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em braza, e entre
+cada ramagem reluzem os olhos d'uma fera... E depois, a proposito de
+tigres e de malaios, lembrava-lhe uma historia curiosa de S. Francisco
+Xavier, e eil-o lançado, o terrivel palrador, na descripção dos feitos
+da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas do cerco de Diu!
+
+Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que o abbade, tendo começado por
+enumerar as vantagens que o conego tiraria de transformar o pomar em
+terra de lavoura, acabára por contar perigos e valores dos missionarios
+da India e do Japão--que Amelia, então em toda a intensidade dos seus
+terrores nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e dos
+sobresaltos que lhe davam.
+
+--Oh, que vergonha! disse o abbade rindo; uma senhora da sua idade ter
+medo de papões...
+
+Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor abbade, contou-lhe
+as vozes que ouvia de noite por detraz da barra da cama.
+
+O abbade pôz-se sério:
+
+--Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar...
+Decerto tem havido prodigios no mundo, mas Deus não se põe assim a
+fallar a qualquer, por detraz das barras das camas, nem permitte ao
+demonio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus peccados são
+grandes, não vêm de detraz da cama, vêm-lhe de si mesmas, da sua
+consciencia... E póde então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e cem
+Gertrudes, e todo o batalhão de infanteria, que as ha de continuar a
+ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessario é
+calmar a consciencia que reclama penitencia e purificação...
+
+Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia sentára-se fatigada
+n'um dos bancos de pedra que alli havia, e ficára a olhar a quinta ao
+longe, os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a eira, e a
+distancia os campos que se succediam planos e avivados do tom humido que
+lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora a tarde estava d'uma placidez
+clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava
+de vivos côr de rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras tão sensatas
+do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado que lhe pesava na
+alma como um penedo se tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da
+penitencia. E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso igual á quietação
+dos campos que se estendiam diante d'ella.
+
+Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou d'ahi a um momento com
+um trinado tão vibrante, tão alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
+
+--É um rouxinol...
+
+--Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o abbade. É um melro... Ahi
+está um que não tem medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que
+enthusiasmo, o maganão!
+
+Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio de melro feliz, que
+dera de repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
+
+E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um passaro contente,
+subitamente, sem razão, n'um d'estes abalos nervosos que vem às mulheres
+hystericas, rompeu a chorar.
+
+--Então, que é isso, que é isso? fez o abbade muito surprehendido.
+
+Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e d'amigo, calmando-a.
+
+--Que infeliz que sou!... murmurou ella aos soluços.
+
+Elle então muito paternal:
+
+--Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem as afflicções, as
+inquietações, uma alma christã tem sempre a consolação á mão... Não ha
+peccado que Deus não perdôe, nem dôr que não calme, lembre-se d'isso...
+O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que a suffoca,
+que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, socegal-a, é procurar-me...
+
+--Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar na protecção
+d'aquelle santo homem.
+
+--Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho horas para consolar... A
+igreja está sempre aberta, Deus está sempre presente...
+
+Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amelia foi á
+residencia; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno
+confessionario de pinho--que o bom abbade por suas mãos pintára d'azul
+escuro, com extraordinarias cabecinhas d'anjos que em logar d'orelhas
+tinham azas, uma obra d'alta arte de que elle fallava com uma secreta
+vaidade.
+
+
+
+
+XXIII
+
+
+O padre Amaro acabára de jantar, e fumava, com os olhos no tecto, para
+não vêr o carão chupado do coadjutor que havia meia hora alli estava,
+immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que cahia no
+silencio da sala como os quartos melancolicos que dá de noite um relogio
+de cathedral.
+
+--O senhor parocho já não é assignante da _Nação_?
+
+--Não senhor, leio o _Popular_.
+
+O coadjutor recahiu no silencio, começando logo a colligir
+laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a emfim, com
+lentidão:
+
+--Não se tornou a saber d'aquelle infame que escreveu o _Communicado_?
+
+--Não senhor, foi para o Brazil.
+
+A criada entrou, n'este momento, dizendo que «estava alli uma pessoa que
+queria fallar ao senhor parocho». Era a sua maneira d'annunciar a
+presença de Dionysia na cozinha.
+
+Havia semanas que ella não apparecia--e Amaro, curioso, sahiu logo da
+sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.
+
+--Grande novidade, senhor parocho! E vim a correr, que é sério. Está cá
+o João Eduardo!
+
+--Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente a fallar d'elle! É
+extraordinario! Olha que coincidencia...
+
+--É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo.
+O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.
+
+--Que Morgadinho?
+
+--O Morgadinho dos Poyaes... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem á
+noite, isso não sei. O que sei é que voltou... E janota, fato novo... Eu
+entendi que devia avisar, porque póde estar certo que elle, mais dia
+menos dia, dá pela Ameliasinha lá na Ricoça... É no caminho p'ra casa do
+Morgado... Que lhe parece?...
+
+--Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que apparece.
+Então por fim não foi para o Brazil?
+
+--Pelos modos, não... Que a sombra d'elle não era, era elle mesmo em
+carne e osso... A sahir da loja do Fernandes por signal, e todo
+peralta... Sempre é bom avisar a rapariga, senhor parocho, que se não vá
+ella plantar de janella...
+
+Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava--e d'ahi a um quarto
+d'hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.
+
+
+Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarello, pintado de
+novo, o largo terraço lateral em linha com o muro do pomar, ornado
+d'espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia emfim,
+depois de tão longas semanas, vêr a sua Ameliasinha! E já se alvoroçava
+á idéa das exclamações apaixonadas com que ella lhe cahiria nos braços.
+
+Ao rez do chão eram as cavallariças, do tempo da familia morgada que
+outr'ora alli habitára, agora abandonadas ás ratazanas e aos tortulhos,
+recebendo a luz por estreitas janellas gradeadas que quasi desappareciam
+sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um immenso pateo escuro,
+onde havia longos annos se acastellava a um canto toda uma montanha de
+pipas vazias; e o lance d'escadaria nobre, que levava aos aposentos, era
+á direita, flanqueado de dois leõesinhos de pedra, benignos e
+somnolentos.
+
+Amaro subiu até um sotão de tecto de carvalho apainelado, sem mobilia,
+com a metade do soalho coberta de feijão sêcco.
+
+E, embaraçado, bateu as palmas.
+
+Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante, toda despenteada e em
+saia branca; deu um gritinho, bateu com a porta--e o parocho sentiu-a
+fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio do
+salão, com o seu guardasol debaixo do braço, pensando na boa
+familiaridade com que entrava na rua da Misericordia--que até pareciam
+as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se
+d'alegria.
+
+Ia bater as palmas outra vez, já quesilado, quando a Gertrudes
+**appareceu**.
+
+--Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho! Ora até que emfim! Minha
+senhora, é o senhor parocho!--gritava, na alegria de vêr emfim uma
+visita querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro da Ricoça.
+
+Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao fundo da casa, um quarto
+enorme, onde, n'um pequeno canapé perdido a um canto, a velha passava os
+dias encolhida no seu chale, com os pés embrulhados n'um cobertor.
+
+--Oh, D. Josepha! Como está? Como está?
+
+Ella não pôde responder, tomada d'um accesso de tosse que lhe dera a
+commoção da visita.
+
+--Como vê, senhor parocho, murmurou emfim muito fraca. Para aqui vou,
+arrastando esta velhice. E vossa senhoria? Porque não tem apparecido?
+
+Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da Sé. E comprehendia
+agora, ao vêr aquella face amarella e cavada, com uma medonha touca de
+rendas negras, que tristes horas Amelia alli devia passar. Perguntou por
+ella; avistára-a de longe, mas ella deitára a fugir...
+
+--É que não estava decente para apparecer, disse a velha. Hoje foi dia
+de barrela.
+
+Amaro quiz então saber em que se entretinham, como passavam os dias
+n'aquella solidão...
+
+--Eu para aqui estou. A pequena para ahi anda.
+
+Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma fadiga e a sua ronqueira
+crescia.
+
+--Então não se tem dado bem com a mudança, minha senhora?
+
+Ella disse que não, n'um movimento de cabeça.
+
+--Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes que ficára de pé, ao
+lado do canapé, gozando a presença do senhor parocho.--Deixe fallar... É
+que a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os dias, dá o seu
+passeinho até á sala, come a sua azita de frango... Temol-a aqui,
+temol-a arribada... É o que diz o senhor abbade Ferrão, a saude foge a
+toda a brida e para voltar vem a passo...
+
+A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate, com o seu antigo
+robe-de-chambre de merino rôxo, o cabello arranjado á pressa.
+
+--Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de
+balburdia...
+
+Elle apertou-lhe a mão gravemente: e ficaram calados, como se estivessem
+separados pela distancia d'um deserto. Ella não tirava os olhos do chão,
+enrolando com a mão tremula uma ponta da manta de lã que trazia solta
+pelos hombros. Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com
+uma ruga de velhice aos cantos da bôca. Para romper aquelle silencio
+estranho, perguntou-lhe tambem se se dava bem...
+
+--Para aqui vou indo... É um pouco triste isto. É como diz o senhor
+abbade Ferrão, é muito grande para a gente se sentir em familia.
+
+--Ninguem veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar
+as palpebras, com uma voz sêcca que perdera toda a fadiga.
+
+Amelia baixou a cabeça, fazendo-se pallida.
+
+Amaro então, comprehendendo n'um relance que a velha torturava Amelia,
+disse com muita severidade:
+
+--É verdade, não foi para se divertirem... Mas tambem não foi para se
+entristecerem de proposito... Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
+outros a vida negra, é uma falta horrivel de caridade; não ha peccado
+peor aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal
+pratica...
+
+A velha rompeu a choramingar, muito excitada:
+
+--Ai, o que Deus me guardou para os ultimos annos da vida...
+
+Gertrudes amimou-a. Então, senhora, que até lhe fazia peor estar a
+affligir-se assim... Ora o disparate! Tudo se havia de remediar com a
+ajuda de Deus. Saude não havia de faltar, nem alegria...
+
+Amelia chegára-se á janella, decerto para esconder tambem as lagrimas
+que lhe saltavam dos olhos. E o parocho, consternado com a scena,
+começou a dizer que D. Josepha não estava supportando com a verdadeira
+resignação d'uma christã aquelles dias de doença... Nada escandalisava
+mais Nosso Senhor que vêr as creaturas revoltarem-se contra as dôres ou
+os encargos que elle mandava... Era insultar a justiça dos seus
+decretos...
+
+--Tem razão, senhor parocho, tem razão, murmurou a velha muito contrita.
+Eu ás vezes nem sei o que digo... São coisas da doença.
+
+--Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e tratar de vêr tudo côr de
+rosa. É o sentimento que Deus mais aprecia. Eu comprehendo que é duro,
+estar para aqui enterrada...
+
+--É o que diz o senhor abbade Ferrão, acudiu Amelia voltando da janella,
+a madrinha estranha... Assim arrancada aos habitos de tantos annos...
+
+Notando então a citação repetida das palavras do abbade Ferrão, Amaro
+perguntou se elle costumava vir vêl-as...
+
+--Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia. Vem quasi todos os
+dias.
+
+--É um santo! exclamou a Gertrudes.
+
+--Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente d'um enthusiasmo tão
+vivo. Pessoa de muita virtude...
+
+--De muita virtude, suspirou a velha. Mas...--Calou-se, não ousando
+decerto exprimir as suas reservas de devota.--E exclamou n'uma
+supplica:--Ai, o senhor parocho é que devia vir por aqui, ajudar-me a
+levar esta cruz da doença...
+
+--Hei de vir, minha senhora, hei de vir. É bom para a distrahir, para
+lhe dar as noticias... E a proposito, tive hontem carta do nosso conego.
+
+Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da carta. O padre-mestre já
+tinha quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passára
+doente com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes
+passeatas a vêr recolher as rêdes. A S. Joanneira, boa, mas fallando
+sempre na filha...
+
+--Pobre mamã... choramingou Amelia.
+
+Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua
+ronqueira. Foi Amelia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo senhor
+padre Natario, pelo senhor padre Silverio...
+
+Ia escurecendo já: a Gertrudes fôra preparar o candieiro. Amaro emfim
+ergueu-se:
+
+--Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei de apparecer
+de vez em quando. E nada d'affligir... Agasalho, boa dieta, e a
+misericordia de Deus não a ha de abandonar...
+
+--Não nos falte, senhor parocho, não nos falte!...
+
+Amelia estendera-lhe a mão, para se despedir alli no quarto; mas Amaro
+gracejando:
+
+--Se não lhe causa incommodo, menina Amelia, sempre é bom vir mostrar-me
+o caminho, que eu perco-me n'este casarão.
+
+Sahiram ambos. E apenas no salão, a que as tres largas vidraças davam
+ainda uma claridade:
+
+--A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.
+
+--Que mereço eu mais? respondeu ella baixando os olhos.
+
+--Desavergonhada, eu lh'as cantarei!... Minha Ameliasinha, se soubesses
+o que me tem custado...
+
+E fallando, ia abraçal-a pelo pescoço.
+
+Mas ella recuou, toda perturbada.
+
+--Que é isso? fez Amaro assombrado.
+
+--O quê?
+
+--Esse modo! Tu não me queres dar um beijo, Amelia? Tu estás doida?
+
+Ella ergueu as mãos para elle, n'uma supplicação anciosa, fallando toda
+tremula:
+
+--Não, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que
+peccamos... Quero morrer na graça de Deus... Que nunca mais se falle em
+semelhante coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se... Agora o que quero
+é o socego de minha alma...
+
+--Tu estás tola! Quem te metteu isso na cabeça? Ouve cá...
+
+Foi para ella outra vez, com os braços abertos.
+
+--Não me toque, pelo amor de Deus,--e vivamente recuou até á porta.
+
+Elle olhou-a um momento, n'uma cólera muda.
+
+--Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero prevenil-a que
+o João Eduardo voltou, que passa aqui todos os dias, e que é bom não se
+pôr de janella.
+
+--Que me importa a mim o João Eduardo e os outros e tudo o que
+passou?...
+
+Elle acudiu, trasbordando d'um sarcasmo amargo:
+
+--Está claro, agora o grande homem é o senhor abbade Ferrão!
+
+--Devo-lhe muito, é o que sei...
+
+A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro accêso. E Amaro, sem
+se despedir d'Amelia, abalou, de guardachuva em riste, rilhando os
+dentes de raiva.
+
+
+Mas a longa caminhada até á cidade calmou-o. Aquillo na rapariga por fim
+era apenas um accesso de virtude e d'escrupulos! Vira-se alli só
+n'aquelle casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos palavrões
+do moralista Ferrão, longe d'elle, e tinha-lhe vindo aquella reacção de
+devota com os seus terrores do outro-mundo e appetites de innocencia...
+Chalaça! Se elle começasse a ir á Ricoça, n'uma semana reganhava todo o
+seu dominio... Ah, conhecia-a bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o
+olho... Estava logo rendida.
+
+Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro
+dia á uma hora marchou para a Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
+
+A velha ficou toda contente ao vêl-o. É que lhe dava saude a presença do
+senhor parocho! E se não fosse a distancia havia de lhe pedir a esmola
+de vir todas as manhãs. Até depois d'aquella visitinha rezava com mais
+fervor...
+
+Amaro sorria, distrahido, com os olhos cravados na porta.
+
+--E a menina Amelia? perguntou por fim.
+
+--Sahiu... Isso agora todas as manhãs é a passeata, disse a velha com
+azedume. Vai á residencia, é tôda do abbade...
+
+--Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova devoção, hein?... é pessoa
+de muitos meritos, o abbade.
+
+--Ai, não presta, não presta! exclamou D. Josepha. Não me percebe. Tem
+idéas muito exquisitas. Não dá virtude...
+
+--Homem de livros... disse Amaro.
+
+Mas a velha erguera-se sobre o cotovêlo, e baixando a voz, com o magro
+carão accêso em odio:
+
+--E aqui p'ra nós, a Amelia tem-se portado muito mal! Nunca lh'o hei de
+perdoar... Confessou-se ao abbade... É uma indelicadeza, sendo a
+confessada do senhor parocho, não tendo recebido de vossa senhoria senão
+favores... É uma ingrata, é uma traiçoeira!...
+
+Amaro fizera-se pallido.
+
+--Que me diz a senhora?
+
+--A verdade! Que ella não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, é uma
+perdida! Depois do favor que lhe estamos a fazer...
+
+Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessario não
+exagerar... Não havia ingratidão. Era uma questão de fé. Se a rapariga
+pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir com
+elle... O que todos queriam é que ella salvasse a sua alma... Que fosse
+pela direcção de fulano ou sicrano, isso não importava... E nas mãos do
+abbade estava bem.
+
+E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
+
+--E então agora, todas as manhãs vai à residencia?
+
+--Quasi todas... Que ella não ha de tardar, vai depois d'almoço, volta
+sempre a esta hora... Ai, tem-me causado isto um desgosto!...
+
+Amaro deu um passeiosinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mão á
+velha:
+
+--Pois minha senhora, eu não me posso demorar, que vim de fugida... Até
+um dia cedo.
+
+E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade que ficasse para
+jantar---desceu os degraus como uma pedra que rola, metteu furioso pelo
+caminho da residencia, ainda com o seu ramo na mão.
+
+Esperava encontrar Amelia na estrada; e não tardou em a avistar quasi ao
+pé da casa do ferreiro, agachada ao pé do vallado, apanhando
+sentimentalmente florinhas silvestres.
+
+--Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto d'ella.
+
+Ella ergueu-se, com um gritinho.
+
+--Que fazes tu aqui!? repetiu.
+
+Áquelle _tu_, e áquella voz colerica, ella poz rapidamente um dedo na
+bôca, assustada. O senhor abbade estava dentro da casa com o ferreiro...
+
+--Ouve lá, disse Amaro com os olhos chammejantes, agarrando-lhe o
+braço--tu confessaste-te ao abbade?...
+
+--P'ra que quer saber? Confessei... Não é vergonha nenhuma...
+
+--Mas confessaste _tudo, tudo_? perguntou elle com os dentes cerrados de
+raiva.
+
+Ella perturbou-se, e tratando-o ainda por _tu_:
+
+--Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior peccado
+n'este mundo, esconder alguma coisa ao confessor!
+
+--Bebeda! rugiu Amaro.
+
+Os seus olhos devoravam-na. E, através da nevoa de cólera que lhe enchia
+o cerebro e lhe fazia latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita,
+com umas redondezas em todo o corpo que ardia por abraçar, com uns
+labios vermelhos avivados pelo largo ar do campo que elle queria morder
+até ao sangue.
+
+--Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal do desejo. Ouve...
+Acabou-se, não me importa. Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas has
+de ser a mesma para mim!
+
+--Não, não! disse ella com força, desprendendo-se, prompta a fugir para
+casa do ferreiro.
+
+--Tu m'as pagarás, maldita!--rosnou o padre por entre dentes, voltando
+as costas, descendo o caminho com passadas de desesperado.
+
+E não abrandou o passo até á cidade, levado de um impulso d'indignação
+que, sob aquella dôce paz d'um meio d'outono, lhe suggeria planos de
+vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mão. Mas
+ahi, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua
+impotencia. Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ella
+estava gravida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava amigada com
+o abbade Ferrão? Era absurdo: um velho de quasi setenta annos, d'uma
+fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa... Mas
+perdel-a, não tornar a ter nos braços aquelle corpo de neve, não ouvir
+mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para
+alguma coisa de melhor que o céo... Isso não!
+
+E era possivel que ella, em seis ou sete semanas, tivesse assim
+esquecido tudo? N'aquellas longas noites na Ricoça, só na cama, não lhe
+viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto:
+elle sabia-o da experiencia de tantas confessadas que lhe tinham
+revelado afflictas a tentação muda e teimosa que não deixa a carne que
+uma vez peccou...
+
+Não: devia perseguil-a, e por todos os modos soprar-lhe aquelle desejo
+que agora ardia n'elle mais alto e mais ruidoso.
+
+Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis paginas, absurda, cheia
+d'implorações apaixonadas, de argucias mysticas, de pontos d'exclamação
+e de ameaças de suicidio...
+
+Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta veio só á noite,
+por um rapazito da quinta. Com que sofreguidão rasgou o sobrescripto!
+Eram apenas estas palavras: «Peço-lhe que me deixe em paz com os meus
+peccados.»
+
+Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amelia
+achava-se no quarto de D. Josepha, quando elle appareceu. Fez-se muito
+pallida; mas os seus olhos não deixaram a costura--durante a meia hora
+que elle alli ficou, ora n'um silencio sombrio acabrunhado para o fundo
+da poltrona, ora respondendo distrahidamente á tagarellice da velha,
+muito falladora essa manhã.
+
+E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se
+rapidamente no quarto: só vinha, se a velha mandava a Gertrudes
+dizer-lhe «que estava alli o senhor o parocho que a queria vêr». Ia
+então, estendia-lhe a mão, que elle achava sempre a escaldar--e tomando
+a sua eterna costura, junto da janella, ia picando o posponto com uma
+taciturnidade que desesperava o padre.
+
+Tinha-lhe escripto outra carta. Ella não respondera.
+
+Então jurava não voltar á Ricoça, desprezal-a,--mas depois de ter
+passado a noite, rolando-se pela cama sem poder dormir, com a mesma
+visão da nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro, lá partia de
+manhã para a Ricoça, córando quando o apontador das obras na estrada,
+que o via passar todos os dias, lhe tirava o seu boné d'oleado.
+
+N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casarão, dera com o abbade
+Ferrão que á porta abria o seu guardachuva.
+
+--Olá, por aqui, senhor abbade! disse elle.
+
+O abbade respondeu naturalmente:
+
+--Em vossa senhoria é que não ha que estranhar, que vem por aqui todos
+os dias...
+
+Amaro não se conteve; e tremendo de cólera:
+
+--E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho ou não? A casa é sua?
+
+Aquella brutalidade tão injustificavel offendeu o abbade:
+
+--Pois era melhor para todos que não viesse...
+
+--E porque, senhor abbade? e porque?--gritou Amaro, perdido.
+
+Então o bom homem estremeceu. Commettera, alli, a culpa mais grave do
+sacerdote catholico: o que sabia d'Amaro, dos seus amores, era em
+segredo de confissão; e era trahir o mysterio do sacramento, mostrar que
+desapprovava aquella insistencia no peccado. Tirou muito baixo o seu
+chapéo e disse humildemente:
+
+--Tem vossa senhoria razão. Peço perdão do que disse, sem reflectir.
+Muito boas tardes, senhor parocho.
+
+--Muito boas tardes, senhor abbade.
+
+Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia
+forte agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amelia, em
+que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o
+d'accusações--sobretudo de lhe trahir indirectamente o segredo da
+confissão. Como das outras, d'esta carta não veio resposta da Ricoça.
+
+Então Amaro começou a acreditar que tanta resistencia não podia vir só
+do arrependimento e do terror do inferno... «Alli ha homem», pensou. E
+devorado d'um ciume negro principiou a rondar de noite a Ricoça; mas não
+viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma occasião,
+porém, ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que
+desce dos Poyaes uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos _Dois
+mundos_, e um ponto brilhante de charuto accêso adiantar-se na
+escuridão. Assustado, refugiou-se n'um casebre que desmantelava em
+ruinas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando,
+viu então um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta claro, parado,
+contemplando as janellas da Ricoça. Um furor de ciume apossou-se d'elle,
+e ia saltar e atacar o homem--quando o viu seguir tranquillamente ao
+comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:
+
+
+Ouves ao longe retumbar na serra
+O som do bronze que nos causa horror...
+
+
+Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo.
+Mas teve a certeza que se um homem fallava de noite a Amelia ou entrava
+na quinta--não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser
+descoberto, não tornou a rondar o casarão.
+
+
+Era com effeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia
+ou de noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que
+_ella_ habitava. Porque apesar de tantas desillusões, Amelia permanecera
+para o pobre rapaz a _ella_, a bem amada, a coisa mais preciosa da
+terra. Nem em Ourem, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errára,
+nem em Lisboa onde chegára como vem á praia uma quilha de barco
+naufragado, deixára um momento de a ter presente na alma e de se
+enternecer com as saudades d'ella. Durante esses dias tão amargos de
+Lisboa, os peores da sua vida, em que fôra fiel de feitos d'um cartorio
+obscuro, perdido n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastidão d'uma
+Roma ou d'uma Babylonia e em que sentia o duro egoismo das multidões
+azafamadas, esforçava-se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe
+dava como a doçura d'uma companhia. Achava-se menos isolado, tendo
+sempre no espirito aquella imagem com quem travava dialogos imaginados,
+nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do Sodré, accusando-a das
+tristezas que o envelheciam.
+
+E esta paixão, sendo para elle como a indefinida justificação das suas
+miserias, tornava-o aos seus proprios olhos interessante. Era «um martyr
+de amor»; isto consolava-o, como o consolára nas suas primeiras
+desesperações considerar-se «uma victima das perseguições religiosas».
+Não era um pobre diabo banal a quem o acaso, a preguiça, a falta
+d'amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas
+privações da dependencia: era um homem de grande coração, a quem uma
+catastrophe em parte amorosa e em parte politica, um drama domestico e
+social, forçára assim, depois de luctas heroicas, a viajar d'um a outro
+cartorio com um sacco de lustrina cheio d'autos. O destino tornára-o
+igual a tantos heroes que lera nas novellas sentimentaes... E o seu
+paletot coçado, os seus jantares a quatro vintens, os dias em que não
+tinha dinheiro para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia e á
+perseguição d'uma classe poderosa, dando assim, por um instincto muito
+humano, uma origem grandiosa ás suas miserias triviaes... Quando via
+passar os que elle chamava os _felizes_--individuos batendo tipoia,
+rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo braço, gente bem
+atabafada que se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgraçado
+pensando que tambem elle possuia um grande luxo interior que era aquelle
+amor infeliz. E quando emfim por um acaso obteve a certeza d'um emprego
+no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua aventura banal
+d'emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares,
+exilado do seu paiz por uma tyrannia combinada de padres e auctoridades
+e por ter amado uma mulher!
+
+Quem lhe diria então, ao emmalar o seu fato no bahú de lata, que d'ahi a
+semanas estaria outra vez a meia legua d'esses padres e d'essas
+auctoridades, contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! Fôra aquelle
+singular Morgadinho de Poyaes,--que não era nem Morgadinho nem de
+Poyaes, e apenas um ricaço excentrico de ao pé d'Alcobaça que comprára
+aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e que com a posse da
+terra recebia do povo da freguezia a honra do titulo: fôra esse santo
+cavalheiro que o livrára dos enjôos no paquete e dos acasos da
+emigração. Encontrára-o casualmente no cartorio onde elle ainda
+trabalhava nas vesperas da viagem. O Morgadinho, cliente do velho Nunes,
+conhecia-lhe a historia, a façanha do _Communicado_, o escandalo no
+largo da Sé; e já de ha muito concebera por elle uma sympathia ardente.
+
+O Morgadinho tinha com effeito por padres um odio maniaco, a ponto de
+não lêr no jornal a noticia d'um crime, sem decidir (ainda mesmo quando
+o culpado estava já sentenciado) que «no fundo devia d'haver na historia
+um sotaina». Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe
+dera sua primeira mulher, devota celebre d'Alcobaça. Apenas viu João
+Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima, teve immediatamente a idéa
+de o trazer para Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a
+educação das primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto
+estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava de resto João
+Eduardo um impio; e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar os
+rapazitos n'um «atheismo desbragado». João Eduardo aceitou, com as
+lagrimas nos olhos: era um salario magnifico que lhe vinha, uma posição,
+uma familia, uma rehabilitação estrondosa...
+
+--Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o que faz por mim!...
+
+--É p'ra meu gosto proprio!... É p'ra arreliar a canalha! E partimos
+ámanhã!
+
+Em Chão de Maçãs, apenas desceu do wagon, exclamou logo para o chefe da
+estação que não conhecia João Eduardo, nem a sua historia:
+
+--Cá o trago, cá o trago em triumpho! Vem p'ra quebrar a cara a toda a
+padraria... E se houver custas a pagar, sou eu que as pago!
+
+O chefe da estação não estranhou--porque o Morgadinho passava no
+districto por maluco.
+
+Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua chegada, que João Eduardo
+soube que Amelia e D. Josepha estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abbade
+Ferrão, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava, e que recebia em
+casa, não como padre, mas como cavalheiro.
+
+--Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferrão, costumava elle dizer, mas
+como padre abomino-o!
+
+E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquella ferocidade d'impio
+obtuso, havia um santo coração, um pai-de-pobres na freguezia...
+
+O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios, questionador
+incansavel; ás vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre historia,
+botanica, systemas de caça... Quando o abbade, no fogo da controversia,
+punha d'alto alguma opinião contraria:
+
+--O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava,
+empinando-se, o Morgado.
+
+--Como cavalheiro, senhor Morgado.
+
+--Então aceito a objecção. É sensata. Mas se fosse como padre,
+quebrava-lhe os ossos.
+
+Ás vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe João Eduardo, batendo
+d'alto no hombro do rapaz, n'uma caricia de amador, como um cavallo
+favorito:
+
+--Veja-me isto! Já ia dando cabo d'um. E ainda ha de matar dois ou
+tres... E se o prenderem hei de eu livral-o da forca!
+
+--Isso não é difficil, senhor Morgado, dizia o abbade tomando
+tranquillamente a sua pitada. Que já não ha forcas em Portugal...
+
+Então era uma indignação do Morgado. Não havia forcas? E porque não?
+Porque tinhamos um governo livre e um rei constitucional! Que se se
+seguisse a vontade dos padres, havia uma forca em cada praça e uma
+fogueira em cada esquina!
+
+--Diga-me uma coisa, snr. Ferrão, o senhor vem defender aqui em minha
+casa a inquisição?
+
+--Oh, senhor Morgado, eu nem sequer fallei da inquisição...
+
+--Não fallou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma
+faca no estomago!
+
+E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as
+abas prodigiosas do seu robe-de-chambre amarello.
+
+--No fundo um anjo, diria o abbade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa
+mesmo a um padre, se o soubesse em necessidade... E vossê aqui está bem,
+João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...
+
+Tinha tomado affeição a João Eduardo, o abbade Ferrão: e sabendo por
+Amelia a famosa legenda do _Communicado_ quizera, segundo a sua
+expressão querida, «folhear o homem aqui e além». Conversára com elle
+tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residencia onde João
+Eduardo se ia fornecer de livros; e sob o «exterminador de padres», como
+dizia o Morgado, encontrára um pobre moço sensivel, com uma religião
+sentimental, ambições de paz domestica, e prezando muito o trabalho.
+Então viera-lhe uma idéa que, sobretudo por lhe ter acudido um dia que
+sahia das suas devoções ao Santissimo, lhe pareceu descida de cima, da
+vontade do Senhor: era o casal-o com Amelia. Não seria difficil levar
+aquelle coração fraco e terno a perdoar o erro d'ella; e a pobre
+rapariga, depois de tantos transes, extincta aquella paixão que lhe
+entrára na alma como um sôpro do Demonio, levando-lhe a vontade, a paz e
+o pudor d'empurrão para o abysmo, encontraria na companhia de João
+Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave
+d'interior, refugio dôce e purificação do passado. Não fallou nem a um,
+nem a outro, n'esta idéa que o enternecia. Não era o momento agora, que
+ella trazia nas entranhas o filho do _outro_. Mas ia preparando com amor
+aquelle resultado,--sobretudo quando estava com Amelia, contando-lhe as
+suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que elle
+tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo na
+educação dos Morgaditos.
+
+--É um bom rapaz, dizia. Homem de familia... D'estes a quem uma mulher
+póde realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse
+ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...
+
+Amelia não respondia, córando.
+
+Já não podia objectar áquelles elogios persuasivos a antiga, a grande
+objecção--o _Communicado_, a impiedade! O abbade Ferrão destruira-lh'a
+um dia, com uma palavra:
+
+--Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu contra os
+sacerdotes, escreveu contra os phariseus!
+
+E para attenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera
+havia muitos annos, acrescentou:
+
+--Emfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com
+lagrimas, e com fome.
+
+E isto enternecia Amelia.
+
+
+Fôra tambem por esse tempo que o doutor Gouvéa começára a vir á Ricoça,
+porque D. Josepha tinha peorado com os dias mais frios do outono.
+Amelia, ao principio, á hora da visita, fechava-se no seu quarto,
+tremendo á idéa de vêr o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouvêa,
+o medico da casa, aquelle homem d'uma severidade legendaria. Mas emfim
+fôra necessario apparecer no quarto da velha, para receber as suas
+instrucções de enfermeira sobre as horas dos remedios e as dietas. E um
+dia que acompanhára o doutor até á porta, ficou gelada, vendo-o parar,
+voltar-se para ella cofiando a sua grande barba branca que lhe cahia
+sobre o jaquetão de velludo, e dizer-lhe sorrindo:
+
+--Eu bem tinha dito a tua mãi que te casasse!
+
+Duas lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
+
+--Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A
+natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula
+administrativa...
+
+Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as duas lagrimas muito
+redondinhas a correrem-lhe devagar pela face. Elle bateu-lhe com os
+dedos no queixo, muito paternal:
+
+--Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me. Acho que te tornaste
+util á ordem geral das coisas. Vamos ao que importa...
+
+Deu-lhe então conselhos sobre a hygiene que devia ter.
+
+--E quando chegar a occasião, se te vires atrapalhada, manda-me
+chamar...
+
+Ia descer; Amelia deteve-o, e com uma supplicação assustada:
+
+--Mas o senhor doutor não vai dizer nada na cidade...
+
+O doutor Gouvéa parou:
+
+--Então não é estupida?... Está bom, tambem t'o perdôo. Está na logica
+do teu temperamento. Não, não digo nada, rapariga. Mas p'ra que diabo,
+então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz
+como o outro, e já não tinhas de pedir segredo... Emfim, isso para mim é
+um detalhe secundario... O essencial é o que te disse... Manda-me
+chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais d'isso que
+Santa Brigida ou lá quem é. Que tu és forte, e has de dar um bom mocetão
+ao Estado.
+
+Todas estas palavras que em parte não comprehendera bem, mas em que
+sentia uma vaga justificação e uma bondade d'avô indulgente, sobretudo
+aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que as barbas grisalhas
+do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar d'infallibilidade,
+reconfortaram-na, augmentaram a serenidade que havia semanas gozava,
+desde a sua confissão desesperada na capella dos Poyaes.
+
+Ah, fôra decerto Nossa Senhora, compadecida emfim dos seus tormentos,
+que lhe mandára do céo aquella inspiração de se ir entregar toda dorida
+aos cuidados do abbade Ferrão! Parecia-lhe que deixára lá, no seu
+confessionario azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra
+farrapagem de remorso que lhe abafava a alma. A cada uma das suas
+consolações tão persuasivas sentira desapparecer o negrume que lhe
+tapava o céo: agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não
+desviava o rosto indignado. É que era tão differente aquella maneira de
+confessar do abbade! Os seus modos não eram os do representante rigido
+d'um Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino e de
+maternal que passava na alma como uma caricia; em logar de lhe erguer
+diante dos olhos o sinistro scenario das chammas do Inferno,
+mostrára-lhe um vasto céo misericordioso com as portas largamente
+abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão faceis e tão
+dôces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tental-os.
+Deus apparecia, n'aquella suave interpretação da outra vida, como um bom
+bisavô risonho; Nossa Senhora era uma irmã de caridade; os santos,
+camaradas hospitaleiros! Era uma religião amavel, toda banhada de graça,
+em que uma lagrima pura basta para remir uma existencia de peccado. Que
+differente da soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada e
+tremula! Tão differente--como aquella pequena capella d'aldeia da vasta
+massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de
+covados separavam da vida humana e natural: tudo era escuridão,
+melancolia, penitencia, faces severas d'imagens; nada do que faz a
+alegria do mundo alli entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o
+ar largo dos prados, nem os risos dos labios vivos; alguma flôr que
+havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não
+deixar passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que
+havia vinha dos lampadarios funebres. E alli, na capellita dos Poyaes,
+que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas
+penetrava a aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos brincando
+faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um
+pomar; pardaes atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestaes das
+cruzes; ás vezes um boi grave mettia o focinho pela porta com a antiga
+familiaridade do curral de Belem, ou uma ovelha tresmalhada vinha
+regosijar-se de vêr um da sua raça, o Cordeiro Paschal, dormir
+regaladamente ao fundo do altar com a santa cruz entre as patas.
+
+Além d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera, «não queria
+impossiveis». Sabia bem que ella não podia arrancar n'um momento aquelle
+amor culpado, que ganhára raizes até ás profundezas do seu sêr. Queria
+apenas que quando a assaltasse a idéa de Amaro se abrigasse logo na idéa
+de Jesus. Com a força colossal de Satanaz, que tem o poder d'um
+Hercules, uma pobre rapariga não póde luctar braço a braço: póde sómente
+refugiar-se na oração quando o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e
+espumar em torno d'esse asylo impenetravel. Elle mesmo cada dia a ia
+ajudando n'aquella repurificação da alma, com uma solicitude de
+enfermeiro: fôra elle que lhe marcára, como um ensaiador n'um theatro, a
+attitude que devia ter na primeira visita de Amaro á Ricoça; era elle
+que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial, se
+a via vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se a noite fôra
+agitada das lembranças calidas dos prazeres passados, era durante toda a
+manhã uma boa palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava
+familiarmente que o céo lhe daria alegrias maiores que o quarto
+enxovalhado do sineiro. Chegára, com uma subtileza de theologo, a
+demonstrar-lhe que no amor do parocho não havia senão brutalidade e
+furor bestial; que, dôce como era o amor do homem, o amor do padre só
+podia ser uma explosão momentanea do desejo comprimido; quando tinham
+começado as cartas do parocho, analysára-lh'as phrase a phrase,
+revelando-lhe o que ellas continham de hypocrisia, de egoismo, de
+rhetorica, e de desejo torpe...
+
+Ia-a assim lentamente desgostando do parocho. Mas não a desgostava do
+amor legitimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ella era
+toda de carne e de desejos, e que lançal-a violentamente no mysticismo
+seria apenas torcer-lhe um momento o instincto natural e não crear-lhe
+uma paz duradoura. Não tentava arrancal-a bruscamente á realidade
+humana; elle não a queria para freira; só desejava que aquella força
+amante que sentia n'ella servisse á alegria d'um esposo e á util
+harmonia d'uma familia, e não se gastasse erradamente em concubinagens
+casuaes... No fundo, o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma de
+sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os
+interesses egoistas do amor individual, e se désse, como irmã da
+caridade, como enfermeira d'um recolhimento, ao amor mais largo de toda
+a humanidade. Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito bonita e muito
+fraca; não seria prudente assustal-a com sacrificios tão altos; era toda
+mulher--toda mulher devia ficar; limitar-lhe a acção era estragar-lhe a
+utilidade. Christo não lhe bastava com os seus membros ídeaes pregados
+na cruz: era-lhe necessario um homem como todos, de bigode e chapéo
+alto. Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob a legitimação
+sacramental...
+
+Assim a ia curando d'aquella paixão morbida com uma direcção de todos os
+dias, uma d'estas persistencias de missionario que só dá a fé sincera,
+pondo a subtileza d'um casuista ao serviço da moralidade d'um
+philosopho, paternal e habil--uma cura maravilhosa de que o bom abbade
+em segredo tirava alguma vaidade.
+
+E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que emfim a paixão por
+Amaro já não era na alma d'ella um sentimento vivo; mas estava morto,
+embalsamado, arrumado no fundo da sua memoria como n'um jazigo,
+escondido já sob a delicada florescencia d'uma virtude nova. Assim
+julgava pelo menos o bom Ferrão--vendo-a agora alludir ao passado com o
+olhar tranquillo, sem aquelles rubores que outr'ora lhe escaldavam a
+face ao simples nome de Amaro.
+
+Ella, com effeito, já não pensava no senhor parocho com a commoção
+d'outr'ora: o terror do peccado, a influencia penetrante do abbade,
+aquella brusca separação do meio devoto em que o seu amor se
+desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade maior, sem sustos
+nocturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrêra para que o
+fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo a alguma braza que
+rebrilhava surdamente. O parocho estivera ao principio na sua alma com o
+prestigio d'um idolo coberto d'oiro; mas tantas vezes, desde a sua
+gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento
+hysterico, aquelle idolo, que todo o dourado lhe ficára nas mãos, e a
+fórma trivial e escura que apparecia por baixo já não a deslumbrava; viu
+por isso o abbade derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar.
+Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa
+do sineiro; mas o que a tentava ainda era o prazer e não o parocho.
+
+E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero
+pelo abbade. Como dissera a Amaro n'aquella tarde, «devia-lhe tudo». Era
+o que sentia agora tambem pelo doutor Gouvêa, que vinha regularmente vêr
+a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás
+que o céo lhe mandava--um que lhe promettia a saude, outro a graça.
+
+Refugiada n'aquellas duas protecções, gozou uma paz adoravel nas ultimas
+semanas de outubro. Os dias iam muito serenos e muito tepidos. Era bom
+estar no terraço, pelas tardes, n'aquella serenidade outonal dos campos.
+O doutor Gouvêa ás vezes encontrava-se com o abbade Ferrão; ambos se
+estimavam; depois da visita á velha, iam para o terraço, e começavam
+logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.
+
+Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo os seus dois amigos
+ao pé, aquelles dois colossos de sciencia e de santidade, abandonava-se
+ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as arvores já
+empallideciam. Pensava no futuro; elle apparecia-lhe agora facil e
+seguro; era forte, e o parto, com a presença do doutor, seria apenas uma
+hora de dôres; depois, livre d'aquella complicação, voltaria para a
+cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das
+conversas constantes do abbade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na
+imaginação. Porque não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e
+perdoasse!... Elle nunca lhe repugnára como homem, e seria um casamento
+esplendido agora que elle tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que João
+Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos
+Poyaes, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma
+campainha, servida por um escudeiro de libré... Ficava muito tempo
+immovel, banhada na doçura d'esta perspectiva, emquanto o abbade e o
+doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da
+Consciencia, e monotonamente a agua das regas murmurava no pomar.
+
+Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de não vêr apparecer o
+senhor parocho, mandára expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua
+senhoria a esmola d'uma visita. O homem voltára com a espantosa noticia
+de que o senhor parocho partira para a Vieira, e não viria senão d'ahi a
+duas semanas. A velha choramingou de desgosto. E Amelia, n'essa noite,
+no seu quarto, não pôde adormecer--na irritação que lhe dava aquella
+idéa do senhor parocho a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella
+decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de serão em
+serão...
+
+
+Com a primeira semana de novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia
+agora mais lugubre n'aquelles dias curtos, banhados d'agua, sob um céo
+de tempestade. O abbade Ferrão, tolhido de rheumatismo, já não apparecia
+na quinta. O doutor Gouvêa, depois da visita de meia hora, abalava no
+seu velho _cabriolet_. A unica distracção de Amelia era estar á janella
+por dentro dos vidros: tres vezes vira passar João Eduardo na estrada;
+mas elle ao avistal-a baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o
+guardachuva.
+
+A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia ser a parteira, apesar do
+doutor Gouvêa ter aconselhado a Michaela, matrona d'uma experiencia de
+trinta annos. Mas Amelia «não queria mais gente no segredo», e além
+d'isso Dionysia trazia-lhe as noticias d'Amaro, que ella sabia pela
+cozinheira. O senhor parocho tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia
+demorar até dezembro. Aquelle «procedimento infame» indignava-a: não
+duvidava que o parocho queria estar longe quando chegassem os transes,
+os perigos do parto. Além d'isso era decidido d'ha muito que a criança
+havia de ser entregue a uma ama de ao pé de Ourem, que a criaria na
+aldeia: e agora o tempo chegava, e a ama não estava fallada, e o senhor
+parocho apanhava conchinhas á beira-mar!...
+
+--É indecente, Dionysia, exclamava Amelia furiosa.
+
+--Ah! não me parece bem, não. Que eu podia fallar á ama... Mas bem vê,
+são coisas muito sérias... O senhor parocho é que se encarregou de
+tudo...
+
+--É infame!
+
+Além d'isso ella descuidára-se do enxoval--e alli estava na vespera de
+ter a criança, sem um trapo para a cobrir, sem dinheiro para lh'o
+comprar! A Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas peças de enxoval,
+que uma mulher que ella tivera em casa lhe deixára empenhadas. Mas
+Amelia recusára-se a que o seu filho usasse cueiros alheios,
+trazendo-lhe talvez um contagio de doença ou uma sorte infeliz.
+
+E por orgulho não queria escrever a Amaro.
+
+Além d'isso as impertinencias da velha tornavam-se odiosas. A pobre D.
+Josepha, privada dos auxilios devotos d'um padre, um verdadeiro padre
+(não um abbade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas
+as audacias de Satanaz: a visão singular que tivera de S. Francisco
+Xavier nú, repetia-se agora com uma insistencia pavorosa a respeito de
+todos os santos: era toda uma côrte do céo, arrojando tunicas e habitos,
+e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pêllo: e a velha estava
+morrendo da perseguição d'estes espectaculos dispostos pelo demonio.
+Reclamára o padre Silverio, mas parecia que um rheumatismo geral tolhia
+todo o clero diocesano: desde o principio do inverno o Silverio estava
+tambem de cama. O abbade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio--mas
+para lhe communicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau à
+biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que
+recahia sobre Amelia n'uma chuva de impertinencias.
+
+E a boa senhora estava pensando sériamente em mandar a Amor pelo padre
+Brito--quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor
+parocho appareceu!
+
+Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e
+botins de verniz. E palrando longamente ácerca da Vieira, dos conhecidos
+que estavam, da pesca que fizera, dos soberbos quinos fazia passar
+n'aquelle triste quarto de doente velha todo um sopro vivificante da
+vida divertida á beira-mar. D. Josepha tinha duas lagrimas nas palpebras
+do gozo de vêr o senhor parocho, de o ouvir.
+
+--E a mamã passa bem, disse elle a Amelia. Já tem os seus trinta banhos.
+Ganhou outro dia quinze tostões a uma batotinha que se arranjou... E por
+cá que têm feito?
+
+Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de
+chuva! Uma falta de amizades! Ai! ella estava alli a perder a sua alma
+n'aquella quinta fatal...
+
+--Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna, dei-me tão bem que
+estou com idéas de voltar para a semana.
+
+Amelia, sem se conter, exclamou:
+
+--Ora essa! outra vez!
+
+--Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der uma licença d'um mez, vou
+lá passal-o... Fazem-me uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e
+tomo um par de banhos... Estava farto de Leiria, e d'aquelle
+aborrecimento...
+
+A velha parecia desolada. O quê, voltar! Deixal-as alli a estarrecer de
+tristeza!
+
+Elle galhofou:
+
+--Ora, as senhoras não precisam cá de mim. Estão bem acompanhadas...
+
+--Eu não sei, disse a velha com azedume, se os _outros_--e accentuou com
+rancor a palavra--se os _outros_ não precisam do senhor parocho... Eu é
+que não estou _bem acompanhada_, estou aqui a perder a minha alma... Que
+as companhias que ahi vêm não dão honra nem proveito.
+
+Mas Amelia acudiu para contrariar a velha:
+
+--E de mais a mais o senhor abbade Ferrão tem estado doente... Está com
+rheumatismo. Sem elle a casa parece uma prisão.
+
+D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre Amaro, erguendo-se para
+sahir, lamentou o bom abbade:
+
+--Coitado! Santo homem... Hei de ir vêl-o em tendo vagar. Pois ámanhã cá
+appareço, D. Josepha, e havemos de pôr essa alma em paz... Não se
+incommode, snr.^a D. Amelia, eu sei agora o caminho.
+
+Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra.
+Amaro calçava as suas luvas novas de pellica preta. E no alto da escada,
+muito ceremoniosamente, tirando o chapéo:
+
+--Minha senhora...
+
+E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito tranquillo--como se ella
+lhe fosse mais indifferente que os dois leões de pedra, que em baixo
+dormiam com o focinho nas patas.
+
+Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama, de raiva e de
+humilhação. O infame! E nem uma palavra sobre o filho, sobre a ama,
+sobre o enxoval! Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado
+por aquella prenhez que elle lhe dera! Nem uma queixa irritada por todos
+os desprezos que ella lhe mostrára!... Nada! Calçava as luvas, com o
+chapéo ao lado. Que indigno!
+
+Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no
+quarto com a velha.
+
+Amelia, impaciente, rondava no salão com os olhos como carvões. Elle
+appareceu emfim, como na vespera, calçando as suas luvas com um ar
+prospero.
+
+--Então já? disse ella n'uma voz que tremia.
+
+-Já, sim, minha senhora. Estive n'uma praticasinha com a D. Josepha.
+
+Tirou o chapéo, comprimentando muito profundamente:
+
+--Minha senhora...
+
+Amelia, livida, murmurou:
+
+--Infame!
+
+Elle olhou-a, como assombrado:
+
+--Minha senhora...--repetiu.
+
+E, como na vespera, desceu vagarosamente a larga escadaria de pedra.
+
+O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o ao vigario geral. Depois
+passou a noite escrevendo-lhe uma carta--tres paginas de accusações e de
+lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia, mandada verbalmente
+pelo Joãosito da quinta, foi «que talvez apparecesse por lá na
+quinta-feira».
+
+Teve outra noite de lagrimas--emquanto na rua das Sousas o padre Amaro
+esfregava as mãos, no regosijo do seu «famoso estratagema». E todavia
+não o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido na Vieira, onde
+fôra para desabafar com o padre-mestre e espalhar a mágoa nos ares da
+praia; fôra lá que elle o aprendera, o «famoso estratagema», n'uma
+_soirée_, ouvindo dissertar sobre o amor o brilhante Pinheiro, premiado
+em direito e gloria d'Alcobaça.
+
+--Eu n'isso, minhas senhoras--dizia o Pinheiro, passando a mão pela
+cabelleira de poeta, ao semi-círculo de damas que pendiam dos seus
+labios d'ouro--eu n'isso sou da opinião de Lamartine (era alternadamente
+da opinião de Lamartine ou de Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher é
+igual á sombra; se correis atraz d'_ella_, foge-vos; se fugis d'_ella_,
+corre atraz de vós!
+
+Houve um _muito bem_, exclamado com convicção: mas uma senhora de
+grandes proporções, mãi de quatro deliciosos anjos todos Marias (como
+dizia o Pinheiro), quiz explicações, porque nunca tinha visto fugir uma
+sombra.
+
+O Pinheiro deu-as, scientificamente:
+
+--É muito facil d'observar, snr.^a D. Catharina. Colloque-se vossa
+excellencia na praia, quando o sol começa a declinar, com as costas para
+o astro. Se vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a sombra,
+ella vai-lhe adiante, fugindo...
+
+--Physica recreativa, muito interessante! murmurou o escrivão de direito
+ao ouvido d'Amaro.
+
+Mas o parocho não o escutava; bailava-lhe já na imaginação «o famoso
+estratagema». Ah! mal voltasse a Leiria, havia de tratar Amelia como uma
+sombra e fugir-lhe para ser seguido...--E o resultado delicioso alli
+estava--tres paginas de paixão, com manchas de lagrimas no papel.
+
+Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia esperava-o no terraço,
+d'onde estivera desde manhã vigiando a estrada com um binoculo de
+theatro. Correu a abrir-lhe o portãosinho verde no muro do pomar.
+
+--Então, por aqui! disse-lhe o parocho, subindo atraz d'ella ao terraço.
+
+--É verdade, como estou sósinha...
+
+--Sósinha?
+
+--A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi á cidade... Tenho estado
+toda a manhã aqui ao sol.
+
+Amaro ía penetrando pela casa, sem responder; diante d'uma porta aberta
+parou, vendo um grande leito de docel, e em redor cadeiras de couro de
+convento.
+
+--É o seu quarto aqui, hein?
+
+--É.
+
+Elle entrou familiarmente, com o chapéo na cabeça.
+
+--Muito melhor que o da rua da Misericordia. E boas vistas... São as
+terras do Morgado, além...
+
+Amelia cerrára a porta, e indo direita a elle, com os olhos
+chammejantes:
+
+--Porque não respondeste á minha carta?
+
+Elle riu:
+
+--É boa! E porque não respondeste tu ás minhas? Quem começou? Foste tu.
+Dizes que não queres peccar mais. Tambem eu não quero peccar mais.
+Acabou-se...
+
+--Mas não é isso! exclamou ella pallida d'indignação. É que ha a pensar
+na criança, na ama, no enxoval... Não é abandonar-me p'r'áqui!...
+
+Elle poz-se sério, e com um tom resentido:
+
+--Peço perdão... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso ha de ficar
+arranjado antes de voltar p'r'á Vieira...
+
+--Tu não voltas p'r'á Vieira!
+
+--Quem é que diz isso?
+
+--Eu, que não quero que vás!
+
+Puzera-lhe fortemente as mãos nos hombros, retendo-o, apoderando-se
+d'elle: e alli mesmo, sem reparar na porta apenas cerrada,
+abandonou-se-lhe como outr'ora.
+
+
+D'ahi a dois dias o abbade Ferrão appareceu restabelecido do seu ataque
+de rheumatismo. Contou a Amelia a bondade do Morgado, que chegára a
+mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata com agua quente, uma
+gallinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a
+caridade melhor; todas as suas horas vagas as passava ao pé da cama,
+lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com elle até á uma hora da
+noite n'um zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!
+
+E de repente, tomando as mãos ambas d'Amelia, exclamou:
+
+--Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que
+arranje que elle perdôe. e esqueça... E que se faça este casamento, se
+faça esta felicidade?
+
+Ella balbuciou espantada, toda escarlate:
+
+--Assim de repente... Não sei... Hei de pensar...
+
+--Pense. E Deus a alumie! disse o velho com fervor.
+
+Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que
+Amelia lhe dera a chave. Infelizmente tinham esquecido a matilha do
+caseiro. E apenas Amaro pôz o pé dentro do pomar, rompeu pelo silencio
+da noite escura um tão desabrido ladrar de cães--que o senhor parocho
+abalou pela estrada, batendo o queixo de terror.
+
+
+
+
+XXIV
+
+
+Amaro n'essa manhã mandou á pressa chamar a Dionysia, apenas recebeu o
+seu correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando elle
+á volta da missa acabava d'almoçar.
+
+Amaro queria saber _ao certo e immediatamente_ para quando estava a
+_coisa_...
+
+--O bom successo da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Porquê, ha
+novidade?
+
+Havia; e o parocho leu-lhe então em confidencia uma carta que tinha ao
+lado.
+
+Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo «que a S. Joanneira tinha
+já trinta banhos e queria voltar! Eu, (acrescentava), perco quasi todas
+as semanas tres, quatro banhos, de proposito para os espaçar e dar
+tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cincoenta não
+vai. Ora já tenho quarenta, veja lá vossê. Demais por aqui começa a
+fazer frio devéras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois dizer
+pela volta do correio em que estado estão as coisas.» E n'um
+_post-scriptum_ dizia: «Tem vossê pensado que destino se ha de dar ao
+_fructo_?»
+
+--Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionysia.
+
+E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego, que a Dionysia devia
+levar ao correio: «A coisa póde estar prompta d'aqui a vinte dias.
+Suspenda por todo o modo a volta da mãi! Isso de modo nenhum! Diga-lhe
+que a pequena não escreve nem vai, porque a excellentissima mana passa
+sempre adoentada.»
+
+E traçando a perna:
+
+--E agora, Dionysia, como diz o nosso conego, que destino se ha de dar
+ao _fructo_?
+
+A matrona arregalou os olhos de surpreza:
+
+--Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado tudo... Que se ia dar a
+criança a criar fóra da terra...
+
+--Está claro, está claro, interrompeu o parocho com impaciencia. Se a
+criança nascer viva é evidente que se ha de dar a criar, e que ha de ser
+fóra da terra... Mas ahi é que está! Quem ha de ser a ama? É isso que eu
+quero que vossê me arranje. Vai sendo tempo...
+
+A Dionysia pareceu muito embaraçada. Nunca gostára de inculcar amas.
+Ella conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de
+confiança; mas infelizmente entrára no hospital, doente... Sabia d'outra
+tambem, até tivera negocios com ella. Era uma Joanna Carreira. Mas não
+convinha porque vivia justamente nos Poyaes, ao pé da Ricoça.
+
+--Qual não convém! exclamou o parocho. Que tem que viva na Ricoça?... Em
+a rapariga convalescendo as senhoras vêm p'r'á cidade, e não se falla
+mais na Ricoça.
+
+Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambem
+sabia d'outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distancia...
+Criava em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!
+
+--Mulher fraca, doente?
+
+A Dionysia chegou-se ao parocho, e baixando a voz:
+
+--Ai, menino, eu não gosto d'accusar ninguem. Mas, está provado, é uma
+tecedeira d'anjos!
+
+--Uma quê?
+
+--_Uma tecedeira d'anjos!_
+
+--O que é isso? Que significa isso? perguntou o parocho.
+
+A Dionysia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam
+crianças a criar em casa. E sem excepção as crianças morriam... Como
+tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e as criancinhas iam
+para o céo... D'ahi é que vinha o nome.
+
+--Então as crianças morrem sempre?
+
+--Sem falhar.
+
+O parocho passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.
+
+--Diga lá tudo, Dionysia. As mulheres matam-n'as?
+
+Então a excellente matrona declarou que não queria accusar ninguem! Ella
+não fôra espreitar. Não sabia o que se passava nas casas alheias. Mas as
+crianças morriam todas...
+
+--Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher d'essas?
+
+A Dionysia sorriu, apiedada d'aquella innocencia d'homem.
+
+--Entregam, sim senhor, ás duzias!
+
+Houve um silencio. O parocho continuava o seu passeio do lavatorio para
+a janella, de cabeça baixa.
+
+--Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de
+repente. Perde as soldadas...
+
+--É que se lhe paga um anno de criação adiantado, senhor parocho. A dez
+tostões ao mez, ou quartinho, segundo as posses...
+
+O parocho agora, encostado á janella, rufava devagar nos vidros.
+
+--Mas que fazem as auctoridades, Dionysia?
+
+A boa Dionysia encolheu silenciosamente os hombros.
+
+O parocho então sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:
+
+--Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer é fallar á tal ama que
+vive ao pé da Ricoça, á Joanna Carreira. Eu arranjarei isso...
+
+A Dionysia fallou ainda das peças d'enxoval que já tinha comprado por
+conta do parocho, d'um berço muito barato em segunda mão que vira no Zé
+Carpinteiro--e ia sahir com a carta para o correio, quando o parocho
+erguendo-se e galhofando:
+
+--Ó tia Dionysia, essa coisa da _tecedeira d'anjos_ é uma historia,
+hein?
+
+Então a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho sabia que ella não
+era mulher d'intrigas. Conhecia a tecedeira d'anjos ha mais d'oito
+annos, de lhe fallar e de a vêr na cidade quasi todas as semanas. Ainda
+no sabbado passado a vira sahir da taberna do Grego... O senhor parocho
+já tinha ido á Barrosa?
+
+Esperou a resposta do parocho, e continuou:
+
+--Pois bem, sabe o começo da freguezia. Ha um muro cahido. Depois é um
+caminho que desce. Ao fundo d'esse corregosito encontra um poço
+atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem um alpendre. É lá que
+ella vive... Chama-se Carlota... Isto é p'ra lhe mostrar que sei,
+amiguinho!
+
+O parocho ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando
+o chão de pontas de cigarros. Alli estava agora diante d'aquelle
+episodio fatal que até ahi fôra apenas um cuidado distante--dispôr do
+filho!
+
+Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãi,
+naturalmente, havia de querer ir a todo o momento vêl-o, a ama poderia
+fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia, o _filho do
+parocho_... Algum invejoso, que lhe cubiçasse a parochia, poderia
+denuncial-o ao senhor vigario geral. Escandalo, sermão, devassa: e, se
+não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado para longe,
+para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o _fructo_ nascesse
+morto! Que solução natural e perpetua! E para a criança, uma felicidade!
+Que destino podia elle ter n'este duro mundo? Era o _engeitado_, era o
+_filho do padre_. Elle era pobre, a mãi pobre... O rapaz cresceria na
+miseria, vadiando, apanhando o estrume das bestas, ramelloso e tosco...
+De necessidade em necessidade iria conhecendo todas as fórmas do inferno
+humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna,
+a cadeia por fim. Uma enxerga na vida, a valla na morte... E se
+morresse--era um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...
+
+E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem
+posto, _tecedeira d'anjos_... Com razão, quem prepara uma criança para a
+vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as
+lagrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandal-a direita para a
+eternidade bemaventurada! Olha elle! Que vida a sua, n'esses trinta
+annos atraz! Uma infancia melancolica, com aquella pêga da marqueza
+d'Alegros; depois a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro; e
+d'ahi as clausuras do seminario, a neve constante de Feirão, e alli em
+Leiria tantos transes, tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o
+craneo ao nascer, estava agora com duas azas brancas, cantando nos córos
+eternos.
+
+Mas emfim não havia que philosophar: era partir para Poyaes e fallar á
+ama, á snr.^a Joanna Carreira.
+
+Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe
+porém de repente a idéa, a curiosidade de ir á Barrosa vêr a
+_tecedeira_... Não lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura da
+mulher, os aspectos sinistros do sitio... Demais como parocho, como
+auctoridade ecclesiastica, devia observar aquelle peccado organisado
+n'um recanto d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denuncial-o ao
+senhor vigario geral ou ao secretario do governo civil...
+
+Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquella tarde suave e
+lustrosa fazia-lhe bem um passeio a cavallo. Não hesitou, então; foi
+alugar uma egoa á estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco, d'espora no pé
+esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.
+
+Ao chegar ao corrego, de que lhe fallára a Dionysia, apeou, foi andando
+com a egoa pela arreata. A tarde estava admiravel; muito alto no azul,
+uma grande ave fazia semi-circulos vagarosos.
+
+Encontrou emfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde passaros
+ainda chilreavam; adiante n'um terreno plano, muito isolada, lá estava a
+casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe na unica janella do
+lado, accendendo-a n'um resplendor d'ouro e braza; e, muito delgado,
+elevava-se da chaminé um fumo claro no ar sereno.
+
+Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos
+pinheiros baixos, a capellinha da Barrosa punha a alvura alegre da sua
+parede muito caiada.
+
+Amaro ia imaginando então a figura da _tecedeira_; sem saber porque,
+suppunha-a muito alta, com um carão trigueiro onde dois olhos de bruxa
+refulgiam.
+
+Defronte da casa prendeu a egoa á cancella, e olhou pela porta aberta:
+era uma cozinha terrea, de grande lareira, com sahida para o pateo
+estradado de matto onde dois bacorinhos foçavam. Na prateleira da
+chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes cassarolas
+de cobre, d'um lustro de casa rica. N'um velho armario meio aberto
+branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma claridade
+parecia sahir do aceio e do arranjo das coisas.
+
+Amaro então bateu forte as palmas. Uma rôla pulou assustada, dentro da
+sua gaiola de vime pendurada da parede. Depois chamou alto:
+
+--Senhora Carlota!
+
+Immediatamente do lado do pateo uma mulher appareceu, com um crivo na
+mão. E Amaro, surprehendido, viu uma agradavel creatura de quasi
+quarenta annos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no
+pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram
+os d'Amelia ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joanneira.
+
+Assombrado, balbuciou:
+
+--Creio que me enganei... Aqui é que mora a senhora Carlota?
+
+Não se enganára, era ella; mas com a idéa que a figura medonha «que
+tecia os anjos» devia estar algures, agachada n'um vão tenebroso da
+casa, perguntou ainda:
+
+--Vossemecê vive aqui só?
+
+A mulher olhou-o desconfiada:
+
+--Não senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...
+
+Justamente o marido sahia do pateo,--medonho, esse, quasi anão, com a
+cabeça embrulhada n'um lenço e muito enterrada nos hombros, a face d'uma
+amarellidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo annelavam-se os pêllos
+raros d'uma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas,
+vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos d'insomnia e de
+bebedeira.
+
+--Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito
+collado á saia da mulher.
+
+Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma historia que ia
+forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom successo.
+O marido não pudéra vir fallar-lhes porque estava doente... Queriam uma
+ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
+
+--Não, fóra de casa, não. Cá em casa--disse o anão que não se despegava
+das saias da mulher, mirando o parocho de lado com o seu medonho olho
+injectado.
+
+Ah, então tinham-n'o informado mal... Sentia; mas o que o parente queria
+era uma ama para casa.
+
+Veio dirigindo-se para a egoa, devagar; parou, e abotoando o casacão:
+
+--Mas em casa recebem crianças para criação?...--perguntou ainda.
+
+--Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.
+
+Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se,
+rondando em torno da cavalgadura:
+
+--É necessario trazer-lh'a cá, já se sabe.
+
+O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficára á porta da
+cozinha.
+
+--Tambem se lhe vai buscar, disse.
+
+Amaro batia palmadas no pescoço da egoa.
+
+--Mas sendo a coisa de noite, agora com este frio, é matar a criança...
+
+Então os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram que não lhe fazia
+mal. Havendo, já se sabe, carinho e agasalho...
+
+Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas tardes, e trotou pelo
+corrego.
+
+
+Amelia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava
+n'aquellas horas, que se avisinhavam, em que devia sentir chegarem as
+dôres. Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha tonturas,
+perversões de gosto--que o doutor Gouvêa observava, franzindo a testa
+descontente. As noites eram más, n'uma turbação de pesadêlos. Já não
+eram as allucinações religiosas: isso cessára n'uma subita aplacação de
+todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma
+santa canonisada. Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe
+representava de modos monstruosos: ora era um sêr medonho que lhe
+saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra
+infindavel que lhe sahia de dentro, durante horas, como uma fita de
+leguas, enrolando-se no quarto em roscas successivas que ganhavam a
+altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas que a deixavam
+prostrada.
+
+Mas anciava por ter a criança. Estremecia á idéa de vêr um dia
+inesperadamente a mãi apparecer na Ricoça. Ella escrevera-lhe,
+queixando-se do senhor conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que
+já reinavam, da solidão que se ia fazendo na praia. Além d'isso D. Maria
+da Assumpção voltára; felizmente, uma noite providencialmente gelada
+dera-lhe durante a jornada uma inflammação dos bronchios--e estava de
+cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouvêa. O Libaninho, esse,
+tambem viera á Ricoça; e sahira lastimando-se de não ter visto a
+Amelinha «que tinha n'esse dia enxaqueca».
+
+--Se isto se demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia
+ella, choramigando, a Amaro.
+
+--Paciencia, filha. Não se póde forçar a natureza...
+
+--O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella, o que tu me tens feito
+soffrer!
+
+Elle calava-se resignado--muito bom, muito terno agora com ella. Vinha-a
+vêr quasi todas as manhãs, porque não queria pelas tardes encontrar o
+abbade Ferrão.
+
+Tranquillisára-a a respeito da ama, dizendo-lhe que fallára á mulher da
+Ricoça inculcada pela Dionysia. Era uma escolha rica a snr.^a Joanna
+Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e dentes
+de marfim...
+
+--Fica-me tão longe para vir vêr depois a criança...--suspirava ella.
+
+Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos de mãi. Desesperava-se
+em não poder ella mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o
+rapaz--porque havia de ser um rapaz!--se chamasse Carlos. Scismava-o já
+homem, e official de cavallaria. Enternecia-se com a esperança de o vêr
+gatinhar...
+
+--Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a vergonha!...
+
+--Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
+
+Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idéa de elle
+ser um engeitadinho!
+
+Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario «que lhe inspirára
+Nossa Senhora»: ella casaria já com João Eduardo, mas o rapaz devia por
+uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que o anjinho não fosse um
+engeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos
+do abbade, n'uma supplicação loquaz. Que convencesse João Eduardo, que
+désse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos pés d'elle, do senhor
+abbade, que era o seu pai e o seu protector.
+
+--Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse é tambem o meu desejo, como
+lhe disse. E ha de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho,
+atarantado d'aquella excitação.
+
+Depois, d'ahi a dias, foi outra exaltação; descobrira de repente, uma
+manhã, que não devia trahir Amaro, «porque era o papá do seu Carlinhos».
+E disse-o ao abbade; fez córar os sessenta annos do bom velho, palrando
+muito convencidamente dos seus deveres d'esposa para com o parocho.
+
+O abbade, que ignorava as visitas do parocho todas as manhãs,
+assombrou-se.
+
+--Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que
+vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.
+
+--Mas é o pai do meu filho, senhor abbade, disse ella, olhando-o muito
+séria.
+
+Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe
+cada meia hora que era o «papá do seu Carlinhos».
+
+--Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente. Obrigado. Não me gabo
+da honra...
+
+Ella chorava, então, aninhada no sofá. Era necessaria toda uma
+complicação de caricias para a calmar. Fazia-o sentar n'um banquinho
+junto d'ella; tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe
+devagarinho a corôa; queria que se tirasse a photographia ao Carlinhos
+para a trazerem ambos n'uma medalha ao pescoço; e se ella morresse, elle
+havia de levar o Carlinhos á sepultura, ajoelhal-o, pôr-lhe as
+mãosinhas, fazel-o rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada,
+tapando o rosto com as mãos:
+
+--Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!
+
+--Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
+
+Ah, aquellas manhãs na Ricoça! Eram para elle como uma penalidade
+injusta. Ao entrar tinha de ir á velha escutar-lhe as lamurias. Depois,
+era aquella hora com Amelia, que o torturava com as pieguices d'um
+sentimentalismo hysterico,--estirada no sofá, grossa como um tonel, com
+a face entumecida, os olhos papudos...
+
+N'uma d'essas manhãs, Amelia, que se queixava de caimbras, quiz dar um
+passeio pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu
+velho robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo no caminho, passos
+de cavallos: chegaram á janella--mas Amaro recuou vivamente, deixando
+Amelia que embasbacára com a face contra a vidraça. Na estrada,
+galhardamente montado n'uma egoa baia, passava João Eduardo de paletot
+branco e chapéo alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um
+poney, outro acorreado n'um burro; e atraz, a distancia, n'um passo de
+respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de cano e esporões
+enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas
+grotescas, e no chapéo a roseta escarlate. Ella ficára assombrada,
+seguindo-os até que as costas do lacaio desappareceram à esquina da
+casa. Sem uma palavra, veio sentar-se no sofá. Amaro, que continuava
+passeando pelo quarto, teve então um risinho sarcastico:
+
+--O idiota, de lacaio á retaguarda!
+
+Ella não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, sahiu atirando
+com a porta, foi para o quarto de D. Josepha contar-lhe a cavalgada, e
+vituperar o Morgado.
+
+--Um excommungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as
+mãos apertadas na cabeça. Que vergonha, senhor parocho, que vergonha
+para a nobreza d'estes reinos!
+
+Desde esse dia Amelia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor
+parocho não vinha. Quem esperava agora com impaciencia era o senhor
+abbade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o n'uma cadeira
+junto ao canapé: e depois de rodeios demorados d'ave que tenteia a
+presa, cahia sobre a pergunta fatal--se tinha visto o senhor João
+Eduardo?
+
+Queria saber o que elle dissera, se fallára n'ella, se a avistára á
+janella. Torturava-o com curiosidades sobre a casa do Morgado, a mobilia
+da sala, o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de farda servia
+á mesa...
+
+E o bom abbade respondia com paciencia--contente de a vêr esquecida do
+parocho, occupada de João Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle
+casamento se faria: ella evitava, de resto, pronunciar sequer o nome
+d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu ao abbade que lhe perguntava se o
+senhor parocho voltára á Ricoça:
+
+--Ai, vem pela manhã vêr a madrinha... Mas eu não lhe appareço, que nem
+estou decente...
+
+Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o agora á janella, muito
+arranjada da cinta para cima que era o que se podia vêr da
+estrada--enxovalhada das saias para baixo. Estava esperando João
+Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em quando, com effeito,
+o gozo de os vêr passar, n'aquelle passo bem lançado de cavallos de
+preço, sobretudo o da egoa baia de João Eduardo, que elle defronte da
+Ricoça fazia sempre ladear, de chicote atravessado e perna á Marialva,
+como lhe ensinára o Morgado. Mas era o lacaio, sobretudo, que a
+encantava: e com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso, até que
+á volta da estrada via desapparecer o pobre velho, de dorso corcovado,
+com a gola da farda até á nuca e as pernas bamboleantes.
+
+E para João Eduardo que delicia aquelles passeios com os Morgaditos, na
+egoa baia! Nunca deixava de ir á cidade: fazia-lhe bater o coração o som
+das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da Amparo da botica,
+diante do cartorio do Nunes que tinha a sua banca ao pé da janella,
+diante da Arcada, diante do senhor administrador que lá estava na
+varanda de binoculo para a Telles--e o seu desgosto era não poder entrar
+com a egoa, os Morgaditos e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho
+que era no interior da casa.
+
+Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes, que voltando ás
+duas horas da Barrosa, ao chegar ao Poço das Bentas e ao subir para o
+caminho de carros, viu de repente o senhor padre Amaro que descia
+montado n'um garrano. Immediatamente João Eduardo fez caracolar a egoa.
+O caminho era tão estreito, que apesar de se chegarem às sebes quasi
+roçaram os joelhos--e João Eduardo pôde então, do alto da sua egoa de
+cincoenta moedas, agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar com um
+olhar o padre Amaro que se encolhia muito pallido, com a barba por
+fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o garrano ronceiro. No alto
+do caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sella, e viu o
+parocho que apeava á porta do casebre isolado onde ha pouco, ao passar,
+os Morgaditos tinham rido «do anão».
+
+--Quem vive alli? perguntou João Eduardo ao lacaio.
+
+--Uma Carlota... Má gente, snr. Joãosinho!
+
+Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre, poz a passo a egoa baia.
+Mas não viu por traz dos vidros a costumada face pallida sob o lenço
+escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas; e ao portão,
+desatrellado com os varões em terra, o _cabriolet_ do doutor Gouvêa.
+
+
+É que tinha chegado emfim o dia! N'essa manhã viera da Ricoça um moço da
+quinta com um bilhete de Amelia quasi inintelligivel--_Dionysia
+depressa, a coisa chegou!_ Trazia ordem tambem de ir chamar o senhor
+doutor Gouvêa. Amaro foi elle mesmo avisar a Dionysia.
+
+Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria D. Josepha, lhe
+inculcára uma ama--que elle já ajustára, grande mulher, rija como um
+castanheiro. E agora combinaram rapidamente que n'essa noite Amaro se
+postaria com a ama á portinha do pomar, e Dionysia viria dar-lhe a
+criança bem atabafada.
+
+--Ás nove da noite, Dionysia. E não nos faça esperar!--recommendou-lhe
+ainda Amaro vendo-a abalar n'um espalhafato.
+
+Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquella
+difficuldade que elle sentia como uma coisa viva fixal-o e
+interrogal-o:--Que havia de fazer á criança? Tinha ainda tempo d'ir aos
+Poyaes ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionysia conhecia; ou podia
+montar a cavallo e ir á Barrosa fallar á Carlota... E alli estava,
+diante d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia. Queria serenar,
+discutir aquelle caso como se fosse um ponto de theologia, pesando-lhe
+os _prós_ e os _contras_: mas tinha temerariamente diante de si, em
+logar de dois argumentos, duas visões:--a criança a crescer e a viver
+nos Poyaes, ou a criança esganada pela Carlota a um canto da estrada da
+Barrosa...--E, passeando pelo quarto, suava d'angustia, quando no
+patamar a voz inesperada do Libaninho gritou:
+
+--Abre, parochosinho, que sei que estás em casa!
+
+Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mão, offerecer-lhe uma
+cadeira. Mas o Libaninho felizmente não se podia demorar. Passára na
+rua, e subira a saber se o amigo parocho tinha noticias d'aquellas
+santinhas da Ricoça.
+
+--Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a
+prazentear.
+
+--Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado mais occupado!... Estou de
+serviço no quartel... Não te rias, parochosinho, que estou lá fazendo
+muita virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes das chagas de
+Christo...
+
+--Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papeis da
+mesa, passeava, n'uma inquietação d'animal preso.
+
+--Não é para as minhas forças, parocho, que se eu pudesse!... Olha,
+agora vou eu levar a um sargento uns bentinhos... Foram benzidos pelo
+Saldanhinha, vão cheios de virtude. Hontem dei outros iguaes a um
+anspeçada, perfeito rapaz, um amor de rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por
+baixo da camisola... Perfeito rapaz!...
+
+--Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro
+abrindo a janella, abafando d'impaciencia.
+
+--Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava o regimento. Pois
+adeus, parochosinho. Estás amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei
+o que isso é.
+
+Ia a sahir, mas á porta, parando:
+
+--Ai, dize cá, parochosinho, dize cá: tu ouviste alguma coisa?
+
+--De quê?
+
+--Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que o nosso chantre declarára
+(palavras do Saldanhinha) que lhe constava que ia na cidade um escandalo
+com um senhor ecclesiastico... Mas não disse _quem_ nem o _quê_... O
+Saldanha quil-o sondar, mas o chantre diz que recebera só uma denuncia
+vaga, sem nome... Tenho estado a pensar: quem será?
+
+--Pataratas do Saldanha...
+
+--Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem folga são os impios...
+Quando fôres pela Ricoça dá recados áquellas santinhas...
+
+E pulou pelos degraus a ir levar «a virtude» ao batalhão.
+
+Amaro ficára aterrado. Era elle decerto, eram os seus amores com Amelia
+que já iam chegando ao vigario geral em denuncias tortuosas! E alli
+vinha agora aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar como uma
+prova viva!... Parecia-lhe extraordinario, quasi sobrenatural, ter o
+Libaninho, que em dois annos não lhe viera a casa duas vezes, ter o
+Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando elle estava alli
+n'uma batalha com a consciencia. Era como a Providencia, que sob a fórma
+grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe: «Não
+deixes viver quem te póde trazer o escandalo! Olha que já se suspeita de
+ti!»
+
+Era decerto Deus apiedado que não queria que houvesse na terra mais um
+engeitado, mais um miseravel,--e que _reclamava o seu anjo_!...
+
+Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e d'ahi a cavallo para a
+casa de Carlota.
+
+Demorou-se lá até ás quatro horas.
+
+De volta a casa atirou o chapéo para cima da cama, e sentiu emfim um
+allivio de todo o seu sêr. Estava acabado! Lá fallára á Carlota e ao
+anão; lá lhe pagára um anno adiantado; agora era esperar pela noite!...
+
+Mas na solidão do quarto toda a sorte de imaginações morbidas o
+assaltavam: via a Carlota a esganar a criancinha rôxa; via os cabos de
+policia mais tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da administração
+redigindo sobre um joelho o auto de corpo de delicto, e elle, de batina,
+arrastado para a cadeia de S. Francisco, em ferros, ao lado do anão!
+Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar á Barrosa desfazer o
+ajuste. Mas uma inercia retinha-o. Depois, nada o forçava á noite a
+entregar a criança á Carlota... Podia leval-a bem agasalhada á Joanna
+Carreira, a boa ama dos Poyaes...
+
+Para escapar áquellas idéas que lhe faziam sob o craneo um ruido de
+tormenta, sahiu, foi vêr Natario que já se erguia--e que lhe gritou
+immediatamente do fundo da poltrona:
+
+--Então vossê viu, Amaro! O idiota, de lacaio atraz!
+
+João Eduardo passára-lhe na rua, na egoa baia, com os Morgadinhos; e
+Natario desde então rugia de impaciencia de estár alli amarrado á
+cadeira e não poder recomeçar a campanha, expulsal-o por uma boa intriga
+da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa e o lacaio.
+
+--Mas não as perde, em Deus me dando pernas...
+
+--Deixe lá o homem, Natario, disse Amaro.
+
+Deixal-o! quando tinha uma idéa prodigiosa--que era provar ao Morgado,
+com documentos, que o João Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao
+amigo Amaro?
+
+Era engraçado, com effeito. O homem não deixava de o merecer, só pela
+maneira como olhava para a gente de bem, do alto da egoa...--E Amaro
+fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro, de manhã, no caminho de
+carros da Barrosa.
+
+--Está claro! exclamou Natario. Para que somos nós sacerdotes de
+Christo? Para exaltar os humildes e derrubar os soberbos.
+
+D'alli Amaro foi vêr D. Maria da Assumpção--que já se erguera
+tambem--que lhe fez a historia da sua bronchite e a enumeração dos
+ultimos peccados: o peor era que, para se distrahir um bocado na
+convalescença, recostava-se por traz da vidraça, e um carpinteiro que
+mórava defronte embasbacava para ella; e por influencia do maligno, não
+tinha forças para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos
+maus...
+
+--Mas vossa senhoria não está com attenção, senhor parocho.
+
+--Ora essa, minha senhora!
+
+E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos--porque a salvação d'aquella
+velha alma idiota era para elle um emprego melhor que a mesma parochia.
+
+Já escurecia quando entrou em casa. A Escolastica queixou-se da demora
+que lhe esturrára o jantar. Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho e
+uma garfada d'arroz, que enguliu de pé, olhando com terror pela janella
+a noite que impassivelmente cahia.
+
+Entrava no quarto a vêr se os candieiros já estavam accêsos, quando o
+coadjutor appareceu. Vinha fallar-lhe sobre o baptisado do filho do
+Guedes, que estava marcado para o dia seguinte ás nove horas.
+
+--Trago luz?--disse de dentro a criada sentindo a visita.
+
+--Não! gritou logo Amaro.
+
+Temia que o coadjutor visse a alteração que sentia nas faces, ou que se
+installasse para toda a noite.
+
+--Diz que vem na _Nação_ d'antes d'hontem um artigo muito bom, observou
+o coadjutor, grave.
+
+--Ah! fez Amaro.
+
+Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio para a janella; parava ás
+vezes a rufar nos vidros; já se tinham accendido os candieiros.
+
+Então o coadjutor, chocado com aquella treva do quarto e aquelle passear
+de fera n'uma jaula, ergueu-se, e com dignidade:
+
+--Estou a incommodar talvez...
+
+--Não!
+
+E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu guardachuva entre os
+joelhos.
+
+--Agora anoitece mais cedo, disse.
+
+--Anoitece...
+
+Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que
+se ia encostar: e o homem sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado
+do menino do seu amigo Guedes.
+
+Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a noite estava tenebrosa e
+quente, annunciando chuva. Ia agora tomado d'uma esperança que lhe fazia
+bater o coração: era que a criança nascesse morta! E era bem possivel. A
+S. Joanneira em nova tivera duas crianças mortas; a anciedade em que
+vivera Amelia devia ter perturbado a gestação. E se ella morresse
+tambem? Então a esta idéa, que nunca lhe acudira, invadiu-o bruscamente
+uma piedade, uma ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto, e
+que agora, por obra d'elle, gritava dilacerada de dôres. E todavia, se
+ambos morressem, ella e a criança, era o seu peccado e o seu erro que
+cahiam para sempre nos escuros abysmos da eternidade... Elle ficava,
+como antes da sua vinda a Leiria, um homem tranquillo, occupado da sua
+igreja, d'uma vida limpa e lavada como uma pagina branca!
+
+Parou junto ao casebre em ruinas á beira da estrada, onde devia estar a
+pessoa que da Barrosa vinha buscar a criança: não se tinha decidido se
+seria o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar o anão, para lhe
+levar o filho, com aquelles olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para
+dentro, para as trevas do casebre:
+
+--Olá!
+
+Foi um allivio quando a clara voz da Carlota disse da negrura:
+
+--Cá está!
+
+--Bem, é esperar, snr.^a Carlota.
+
+Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada a temer, se o filho
+partisse aninhado contra aquelle robusto seio de quarentona fecunda, tão
+fresca e tão lavada.
+
+Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento
+mais denso de sombra n'aquella lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda
+de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No ar muito pesado nenhuma
+folhagem ramalhava. E a Dionysia não apparecia.
+
+Aquella demora torturava-o. Podia passar gente e vél-o rondar na
+estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se no casebre em ruinas ao pé de
+Carlota. Foi andando ao comprido do muro do pomar, voltou,--e viu então
+na porta envidraçada do terraço uma claridade de luz apparecer.
+
+Correu para a portinha verde do pomar que quasi immediatamente se abriu;
+e a Dionysia, sem uma palavra, poz-lhe nos braços um embrulho.
+
+--Morta? perguntou elle.
+
+--Qual! Vivo! Um rapagão!
+
+E fechou a porta devagarinho, quando os cães, farejando rumor, começavam
+a ladrar.
+
+Então o contacto do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um
+vendaval todas as idéas d'Amaro. O quê! ir dal-o áquella mulher, á
+tecedeira d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado, ou em casa
+o arremessaria á latrina? Ah! não, era o seu filho!
+
+Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr aos Poyaes e acordar a
+outra ama... A Dionysia não tinha leite... Não o podia levar para a
+cidade... Oh! que desejo furioso de bater áquella porta da quinta,
+precipitar-se para o quarto d'Amelia, metter-lhe o pequerruchinho na
+cama, muito agasalhado, e todos tres ficarem alli como no conchego d'um
+céo! Mas quê, era padre! Maldita fosse a religião que assim o esmagava!
+
+De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu então para o
+casebre--quasi esbarrou com a Carlota, que se apoderou logo da criança.
+
+--Ahi está, disse elle. Mas ouça lá. Isto agora é sério. Agora é outra
+coisa. Olhe que o não quero morto... É para o tratar. O que se passou
+não vale... É para o criar! é para viver. Vossê tem a sua fortuna...
+Trate d'elle!...
+
+--Não tem duvida, não tem duvida, dizia a mulher apressada.
+
+--Escute... A criança não vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.
+
+--Vai bem, senhor, vai bem.
+
+--Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Ha de levar o capote! Não
+quero que morra de frio!
+
+Atirou-lh'o aos hombros com força, traçando-lh'o sobre o peito,
+agasalhando a criança;--e a mulher já enfastiada metteu rapidamente pela
+estrada.
+
+Amaro ficou alli plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na
+negrura. Então todos os seus nervos, depois d'aquelle choque, se
+relaxaram n'uma fraqueza de mulher sensivel--e rompeu a chorar.
+
+Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia na mesma escuridão,
+n'aquelle silencio que o aterrava. Depois, triste e fatigado, veio
+voltando para a cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.
+
+
+A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor Gouvêa ceava
+tranquillamente o frango assado que lhe preparára a Gertrudes, para
+depois das canceiras do dia. O abbade Ferrão, sentado junto da mesa,
+assistia-lhe á ceia; viera munido dos sacramentos para o caso de haver
+perigo. Mas o doutor estava satisfeito; durante as oito horas de dôres a
+rapariga mostrára-se corajosa; o parto fôra feliz, de resto, e sahira um
+rapagão que fazia muita honra ao papá.
+
+O bom abbade Ferrão baixava castamente os olhos áquelles detalhes, no
+seu pudor de sacerdote.
+
+--E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu
+introduzi a criança no mundo, os senhores (e quando digo os senhores,
+quero dizer a Igreja) apoderam-se d'elle e não o largam até á morte. Por
+outro lado, ainda que menos sôfregamente, o Estado não o perde de
+vista... E ahi começa o desgraçado a sua jornada do berço á sepultura,
+entre um padre e um cabo de policia!
+
+O abbade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a
+controversia.
+
+--A Igreja, continuava o doutor com serenidade, começa, quando a pobre
+creatura ainda nem tem sequer a consciencia da vida, por lhe impôr uma
+religião...
+
+O abbade interrompeu, meio sério, meio rindo:
+
+--Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua alma, devo
+advertil-o que o sagrado Concilio de Trento, canon decimo terceiro,
+commina a pena d'excommunhão contra todo o que disser que o baptismo é
+nullo, por ser imposto sem a aceitação da razão.
+
+--Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do
+Concilio de Trento para commigo e outros collegas...
+
+--Era uma assembléa respeitavel! acudiu o abbade já escandalisado.
+
+--Sublime, abbade. Uma assembléa sublime. O Concilio de Trento e a
+Convenção foram as duas mais prodigiosas assembléas d'homens que a terra
+tem presenciado...
+
+O abbade fez uma visagem de repugnacia áquelle cotejo irreverente entre
+os santos auctores da doutrina e os assassinos do bom rei Luiz XVI.
+
+Mas o doutor proseguiu:
+
+--Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum tempo emquanto ella faz
+a sua dentição e tem o seu ataque de lombrigas...
+
+--Vá, vá, doutor! murmurava o abbade, escutando-o pacientemente, de
+olhos cerrados--como significando «anda, anda, enterra bem essa alma no
+abysmo de fogo e pez»!
+
+--Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros symptomas de razão,
+continuava o doutor, quando se torna necessario que elle tenha, para o
+distinguir dos animaes, uma noção de si mesmo e do universo, então
+entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente,
+que um gaiato de seis annos que não sabe ainda o _b-a-bá_ tem uma
+sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes academias combinadas de
+Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como
+se fez o universo e os seus systemas planetarios; como appareceu na
+terra a creação; como se succederam as raças; como passaram as
+revoluções geologicas do globo; como se formaram as linguas; como se
+inventou a escripta... Sabe tudo: possue completa e immutavel a regra
+para dirigir todas as acções e formar todos os juizos; tem mesmo a
+certeza de todos os mysterios; ainda que seja myope como uma toupeira vê
+o que se passa na profundidade dos céos e no interior do globo; conhece,
+como se não tivesse feito senão assistir a esse espectaculo, o que lhe
+ha de succeder depois de morrer... Não ha problema que não decida... E
+quando a Igreja tem feito d'este marmanjo uma tal maravilha de saber,
+manda-o então aprender a lêr... O que eu pergunto é: para que?
+
+A indignação tinha emmudecido o abbade.
+
+--Diga lá abbade, para que os mandam os senhores ensinar a lêr? Toda a
+sciencia universal, o _res scibilis_, está no Catecismo: é metter-lh'o
+na memoria, e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia de tudo...
+Sabe tanto como Deus... De facto, é Deus mesmo.
+
+O abbade pulou.
+
+--Isso não é discutir, exclamou, isso não é discutir!... Isso são
+chalaças á Voltaire! Essas coisas devem-se tratar mais d'alto...
+
+--Como chalaças, abbade? Tome um exemplo: a formação das linguas. Como
+se formaram? Foi Deus, que descontente com a Torre de Babel...
+
+Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia. Havia pouco o
+doutor tinha-lhe dado uma desanda no quarto d'Amelia; e agora a matrona
+fallava-lhe sempre encolhida de terror.
+
+--Senhor doutor, disse ella no silencio que se fez, a menina acordou e
+diz que quer o filho.
+
+--E então? A criança levaram-n'a, não?
+
+--A criança levaram-n'a... disse a Dionysia.
+
+--Bem, acabou-se...
+
+Dionysia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
+
+--Ouça lá, diga-lhe que a criança vem ámanhã... Que ámanhã sem falta que
+lh'a trazem. Minta. Minta como um cão; aqui o senhor abbade dá
+licença... Que durma, que socegue.
+
+A Dionysia retirou-se. Mas a controversia não recomeçou: diante
+d'aquella mãi que acordava depois da fadiga do parto e reclamava o seu
+filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre, os dois
+velhos esqueceram a Torre de Babel e a formação das linguas. O abbade
+sobretudo parecia commovido. Mas o doutor não tardou, sem piedade, a
+lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da situação do padre na
+sociedade...
+
+O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada, sem responder, como
+ignorando que houvesse um padre n'aquella historia infeliz.
+
+O doutor então, seguindo a sua idéa, discursou contra a preparação e
+educação ecclesiastica.
+
+--Ahi tem o abbade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo:
+resistencia ás mais justas solicitações da natureza, e resistencia aos
+mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é crear um monstro
+que ha de passar a sua desgraçada existencia n'uma batalha desesperada
+contra os dois factos irresistiveis do universo--a força da Materia e a
+força da Razão!
+
+--Que está o senhor a dizer? exclamou assombrado o abbade.
+
+--Estou a dizer a verdade. Era que consiste a educação d'um sacerdote?
+_Primò_: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para
+a suppressão violenta dos sentimentos mais naturaes. _Secundò_: em
+evitar todo o conhecimento e toda a idéa que seja capaz d'abalar a fé
+catholica; isto é, a suppressão forçada do espirito d'indagação e
+d'exame, portanto de toda a sciencia real e humana...
+
+O abbade erguera-se, ferido d'uma piedosa indignação:
+
+--Pois o senhor nega á Igreja a sciencia?
+
+--Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente o doutor, Jesus, os
+seus primeiros discipulos, o illustre S. Paulo representaram em
+parabolas, em epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as producções
+do espirito humano eram inuteis, pueris, e sobretudo perniciosas...
+
+O abbade passeava pela sala, indo contra um e outro movel como um boi
+espicaçado, apertando as mãos na cabeça na desolação d'aquellas
+blasphemias; não se conteve, gritou:
+
+--O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor, peço-lhe humildemente
+perdão... O senhor faz-me cahir em peccado mortal... Mas isso não é
+discutir... Isso é fallar com a leviandade d'um jornalista...
+
+Lançou-se então com calor n'uma dissertação sobre a sabedoria da Igreja,
+os seus altos estudos gregos e latinos, toda uma philosophia creada
+pelos santos padres...
+
+--Leia S. Basilio! exclamou. Lá verá o que elle diz dos estudos dos
+auctores profanos, que são a melhor preparação para os estudos sagrados!
+Leia a _Historia dos mosteiros na meia idade_! Era lá que estava a
+sciencia, a philosophia...
+
+--Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia! Por philosophia meia
+duzia de concepções d'um espirito mythologico, em que o mysticismo é
+posto em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia! Sciencia de
+commentadores, sciencia de grammaticos... Mas vieram outros tempos,
+nasceram sciencias novas que os antigos tinham ignorado, a que o ensino
+ecclesiastico não offerecia nem base nem methodo, estabeleceu-se logo o
+antagonismo entre ellas e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos,
+a Igreja ainda tentou supprimil-as pela perseguição, a masmorra, o fogo!
+Escusa de se torcer, abbade... O fogo, sim, o fogo e a masmorra. Mas
+agora não o póde fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim... E no
+emtanto continúa a dar nos seus seminarios e nas suas escólas o ensino
+do passado, o ensino anterior a essas sciencias, ignorando-as, e
+desprezando-as, refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar as mãos
+na cabeça... Estranha ao espirito moderno, hostil nos seus principios e
+nos seus methodos ao desenvolvimento espontaneo dos conhecimentos
+humanos... O senhor não é capaz de negar isto! Veja o _Syllabus_ no seu
+canon terceiro excommungando a Razão... No seu canon decimo terceiro...
+
+A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionysia:
+
+--A pequena está a choramingar, diz que quer a criança.
+
+--Mau, mau! disse o doutor.
+
+E depois d'um momento:
+
+--Que tal aspecto tem ella? Está córada? Está inquieta?
+
+--Não senhor, está bem. Só a choramingar, a fallar no pequeno... Diz que
+o quer hoje por força...
+
+--Converse com ella, distraia-a... Veja se ella adormece...
+
+A Dionysia retirou-se; e o abbade logo com cuidado:
+
+--Ó doutor, suppõe que lhe possa fazer mal o affligir-se?
+
+--Póde-lhe fazer mal, abbade, póde--disse o doutor que rebuscava na sua
+pharmacia portatil. Mas eu vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a
+Igreja hoje é uma intrusa, abbade!
+
+O abbade tornou a levar as mãos á cabeça.
+
+--Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja em Portugal. É grato
+observar-lhe o estado de decadencia...
+
+Pintou-lh'o a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja
+fôra a Nação; hoje era uma minoria tolerada e protegida pelo Estado.
+Dominára nos tribunaes, nos conselhos da corôa, na fazenda, na armada,
+fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que
+todo o clero do reino. Fôra a sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia
+era algum latim macarronico. Fôra rica, tinha possuido no campo
+districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu
+triste pão diario do ministro da justiça, e pedia esmola á porta das
+capellas. Recrutára-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e
+hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar
+aos engeitados da Misericordia. Fôra a depositaria da tradição nacional,
+do ideal collectivo da patria; e hoje, sem communicação com o pensamento
+nacional (se é que o ha) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma,
+recebendo de lá a lei e o espirito...
+
+--Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar!--disse o
+abbade, erguendo-se escarlate.
+
+Mas a Dionysia tinha de novo apparecido á porta.
+
+--Que temos mais?
+
+--A menina está-se a queixar d'um peso na cabeça. Diz que sente faíscas
+diante dos olhos...
+
+O doutor então immediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionysia. O
+abbade, só, passeava pela sala ruminando toda uma argumentação erriçada
+de textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia fazer desabar sobre
+o doutor Gouvêa. Mas, meia hora passou, a luz do candieiro ia
+esmorecendo, e o doutor não voltou.
+
+
+Então aquelle silencio da casa, onde só o som dos seus passos sobre o
+soalho da sala punha uma nota viva, começou a impressionar o velho.
+Abriu a porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia era muito
+afastado, ao fim da casa, ao pé do terraço; não vinha de lá nem rumor
+nem luz. Recomeçou o seu passeio solitario na sala, n'uma tristeza
+indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir vêr tambem a doente; mas
+o seu caracter, o pudor sacerdotal não lhe permittiam aproximar-se
+sequer d'uma mulher no leito, em trabalho de parto, a não ser que o
+perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais funebre,
+passou. Então, em pontas de pés, córando na escuridão d'aquella audacia,
+foi até ao meio do corredor: agora, aterrado, sentia no quarto d'Amelia
+um ruido confuso e surdo de pés movendo-se vivamente no soalho, como
+n'uma lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu á sala, e abrindo o
+seu Breviario começou a rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem
+rapidamente, n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia bater. Depois o
+arrastar no soalho d'uma bacia de latão. E emfim o doutor appareceu.
+
+A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha sem gravata, com o
+collarinho espedaçado; os botões do collete tinham saltado; e os punhos
+da camisa, voltados para traz, estavam todos manchados de sangue.
+
+--Alguma coisa, doutor?
+
+O doutor não respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo,
+com a face animada d'um calor de batalha. Ia já sahir com o estojo, mas
+lembrando-lhe a pergunta anciosa do abbade:
+
+--Tem convulsões, disse.
+
+O abbade então deteve-o á porta, e muito grave, muito digno:
+
+--Doutor, se ha perigo, peço-lhe que se lembre... É uma alma christã em
+agonia, e eu estou aqui.
+
+--Certamente, certamente...
+
+O abbade tornou a ficar só, esperando. Tudo dormia na Ricoça, D.
+Josepha, os caseiros, a quinta, os campos em redor. Na sala, um relogio
+de parede, enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca do sol e
+em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau d'uma coruja
+pensativa, um movel de castello antigo, bateu a meia noite, depois uma
+hora. O abbade a cada momento ia até ao meio do corredor: era o mesmo
+rumor de pés n'uma lucta; outras vezes um silencio tenebroso. Voltava
+então para o seu Breviario. Meditava n'aquella pobre rapariga que, além
+no quarto, estava talvez no momento que ia decidir da sua eternidade:
+não tinha ao pé nem a mãi, nem as amigas: na memoria apavorada devia
+passar-lhe a visão do peccado: diante dos olhos turvos apparecia-lhe a
+face triste do Senhor offendido: as dôres contorciam o seu corpo
+miseravel: e na escuridão em que ia penetrando, sentia já o halito
+ardente da aproximação de Satanaz. Temeroso fim do tempo e da
+carne!--Então rezava fervorosamente por ella.
+
+Mas depois pensava no outro que fôra uma metade do seu peccado, e que
+agora na cidade, estirado na cama, resonava tranquillamente. E rezava
+então tambem por elle.
+
+Tinha sobre o Breviario um pequeno **crucifixo**. E contemplava-o com
+amor, abysmava-se enternecido na certeza da sua força, contra a qual era
+bem pouca a sciencia do doutor e todas as vaidades da razão!
+Philosophias, idéas, glorias profanas, gerações e imperios passam: são
+como os suspiros ephemeros do esforço humano: só ella permanece e
+permanecerá, a cruz--esperança dos homens, confiança dos desesperados,
+amparo dos frageis, asylo dos vencidos, força maior da humanidade: _crux
+triumphus adversus demonios, crux oppugnatorum murus_...
+
+Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante d'aquella tremenda
+batalha que estava dando lá dentro á morte; vinha buscar outro frasco;
+mas abriu a janella, sem uma palavra, para respirar um momento uma
+golfada d'ar fresco.
+
+--Como vai ella? perguntou o abbade.
+
+--Mal, disse o doutor sahindo.
+
+O abbade, então, ajoelhou, balbuciou a oração de S. Fulgencio:
+
+--Senhor, dá-lhe primeiro a paciencia, dá-lhe depois a misericordia...
+
+E alli ficou, com a face nas mãos, apoiado á beira da mesa.
+
+A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça. Era a Dionysia, que
+suspirava, recolhendo todos os guardanapos que encontrava nas gavetas do
+aparador.
+
+--Então, senhora, então? perguntou-lhe o abbade.
+
+--Ai, senhor abbade, está perdidinha... Depois das convulsões que foram
+d'arripiar, cahiu n'aquelle somno, que é o somno da morte...
+
+E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solidão, disse
+muito excitada:
+
+--Eu não quiz dizer nada... Que o senhor doutor tem um genio!... Mas
+sangrar a rapariga n'aquelle estado é querer matal-a... Que ella tinha
+perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se sangra ninguem em
+semelhante momento. Nunca, nunca!
+
+--O senhor doutor é homem de muita sciencia...
+
+--Póde ter a sciencia que quizer... Eu tambem não sou nenhuma tola...
+Tenho vinte annos d'experiencia... Nunca me morreu nenhuma nas mãos,
+senhor abbade... Sangrar em convulsões! Até causa horror!...
+
+Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a creaturinha. Até lhe
+quizera administrar chloroformio...
+
+Mas a voz do doutor Gouvêa berrou por ella do fundo do corredor--e a
+matrona abalou, com o seu mólho de guardanapos.
+
+O medonho relogio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas,
+depois as tres... O abbade, agora, cedia a espaços a uma fadiga de
+velho, cerrando um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente: ia
+respirar o ar pesado da noite, olhar aquella treva de toda a aldeia; e
+voltava a sentar-se, a murmurar, com a cabeça baixa, as mãos postas
+sobre o Breviario:
+
+--Senhor, volta os teus olhos misericordiosos para aquelle leito
+d'agonia...
+
+Foi então Gertrudes que appareceu commovida. O senhor doutor mandára-a a
+baixo acordar o moço para pôr a egoa ao _cabriolet_.
+
+--Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia tão bem, e de repente isto...
+Que foi por lhe tirarem o filho... Eu não sei quem é o pai, mas o que
+sei é que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...
+
+O abbade não respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.
+
+O doutor então entrou com o seu estojo na mão:
+
+--Se quizer, abbade, póde ir, disse.
+
+Mas o abbade não se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a
+bailar-lhe nos labios entreabertos, e retendo-a por timidez: emfim, não
+se conteve, e n'um tom de medo:
+
+--Fez-se tudo, não ha remedio, doutor?
+
+--Não.
+
+--É que nós, doutor, não devemos aproximar-nos d'uma mulher em parto
+illegitimo senão n'um caso extremo...
+
+--Está n'um caso extremo, senhor abbade, disse o doutor, vestindo já o
+seu grande casacão.
+
+O abbade então recolheu o Breviario, a cruz--mas antes de sahir,
+julgando do seu dever de sacerdote pôr diante do medico racionalista a
+certeza da eternidade mystica que se desprende do momento da morte,
+murmurou ainda:
+
+--É n'este instante que se sente o terror de Deus, o vão do orgulho
+humano...
+
+O doutor não respondeu, occupado a afivelar o seu estojo.
+
+O abbade sahiu--mas, já no meio do corredor, voltou ainda, e fallando
+com inquietação:
+
+--O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos soccorros da
+religião, os moribundos voltarem a si de repente, por uma graça
+especial... A presença do medico então póde ser util...
+
+--Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo
+involuntariamente de vêr a presença da Medicina reclamada para auxiliar
+a efficacia da Graça.
+
+Desceu, a vêr se estava prompto o _cabriolet_.
+
+Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e a Gertrudes, de rojos ao
+lado da cama, rezavam. O leito, todo o quarto estava revolvido como um
+campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se. Amelia estava
+immovel, com os braços hirtos, as mãos crispadas d'uma côr de purpura
+escura--e a mesma côr mais arroxeada cobria-lhe a face rigida.
+
+E debruçado sobre ella, com o crucifixo na mão, o abbade dizia ainda,
+n'uma voz d'angustia:
+
+--_Jesu, Jesu, Jesu!_ Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericordia
+divina! Arrepende-te no seio do Senhor! _Jesu, Jesu, Jesu!_
+
+Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o _Miserere_. O doutor
+que ficára á porta retirou-se devagarinho, atravessou em bicos de pés o
+corredor, e desceu á rua, onde o moço segurava a egoa atrellada.
+
+--Vamos ter agua, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de somno.
+
+O doutor Gouvêa ergueu a gola do paletot, accommodou o seu estojo no
+assento--e d'ahi a um momento o _cabriolet_ rodava surdamente pela
+estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da noite
+com o clarão vermelho das suas duas lanternas.
+
+
+
+
+XXV
+
+
+Ao outro dia desde as sete da manhã, o padre Amaro esperava a Dionysia
+em casa, postado á janella, com os olhos cravados na esquina da rua, sem
+reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionysia não
+apparecia: e elle teve de partir para a Sé, amargurado e doente, a
+baptisar o filho do Guedes.
+
+Foi uma pesada tortura para elle vêr aquella gente alegre que punha na
+gravidade da Sé, mais sombria por esse escuro dia de dezembro, todo um
+rumor mal contido de regosijo domestico e de festa paterna; o papá
+Guedes resplandecente de casaca e gravata branca, o padrinho
+compenetrado com uma grande camelia ao peito, as senhoras de gala, e
+sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com pompa um montão de
+rendas engommadas e de laçarotes azues onde mal se percebiam duas
+bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento bem longe
+na Ricoça e na Barrosa, foi engorolando á pressa as ceremonias: soprando
+em cruz sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio que já
+habitava aquellas carninhas tenras; impondo-lhe o sal sobre a bôca para
+que elle se desgostasse para sempre do sabor amargo do peccado e tomasse
+gosto a nutrir-se só da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas
+e nas narinas, para que elle não escutasse jámais as solicitações da
+carne e jámais respirasse os perfumes da terra. E em roda, com tochas na
+mão, os padrinhos, os convidados, na fadiga que davam tantos latins
+rosnados á pressa, só se occupavam do pequeno, n'um receio que elle não
+respondesse com algum desacato impudente ás tremendas exhortações que
+lhe fazia a Igreja sua Mãi.
+
+Amaro, então, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do
+pequerrucho que elle, alli em plena Sé, renunciasse para sempre a
+Satanaz, ás suas pompas e ás suas obras. O sacristão Mathias, que dava
+em latim as respostas rituaes, renunciou por elle--emquanto o pobre
+pequerrucho abria a boquinha a procurar o bico da mama. Emfim o parocho
+dirigiu-se á pia baptismal seguido de toda a familia, das velhas devotas
+que se tinham juntado, de gaiatos que esperavam uma distribuição de
+patacos. Mas foi toda uma atrapalhação para fazer as unções: a parteira
+commovida não atinava a desapertar os laçarotes do chambre, para pôr a
+nú os hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz ajudal-a: mas
+deixou escorregar a tocha, alastrou de cera derretida o vestido d'uma
+senhora, uma visinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
+
+--Franciscus, credis?--perguntava Amaro.
+
+O Mathias apressou-se a affirmar, em nome de Francisco:
+
+--Credo.
+
+--Franciscus, vis baptisari?
+
+O Mathias:
+
+--Volo.
+
+Então a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda como um melão
+tenro: a criança agora perneava n'uma perrice.
+
+--Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris... et Filiis... et
+Espiritus Sancti...
+
+Emfim, acabára! Amaro correu á sacristia a desvestir-se--emquanto a
+parteira grave, o papá Guedes, as senhoras enternecidas, as velhas
+devotas e os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados sob os
+guardachuvas, chapinhando a lama, lá iam levando em triumpho Francisco,
+o novo christão.
+
+Amaro galgou os degraus de casa com o presentimento que ia encontrar a
+Dionysia.
+
+Lá estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada,
+enxovalhada da lucta da noite e da lama da estrada: e apenas o viu
+começou a choramingar.
+
+--Que é, Dionysia?
+
+Ella rompeu em soluços, sem responder.
+
+--Morta! exclamou Amaro.
+
+--Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou emfim a matrona.
+
+Amaro tombou para os pés da cama como morto tambem.
+
+A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a face d'agua, de vinagre.
+Elle recuperou-se um pouco, muito pallido: afastou-as com a mão, sem
+fallar; e atirou-se de bruços para sobre o travesseiro, n'um chôro
+desesperado,--emquanto as duas mulheres consternadas iam recolhendo á
+cozinha.
+
+--Parece que tinha muita amizade á menina, começou a Escolastica,
+fallando baixo como na casa d'um moribundo.
+
+--Costume d'ir por lá. Foi hospede tanto tempo... Ai, eram como
+irmãos...--disse a Dionysia, ainda chorosa.
+
+Fallaram então de doenças de coração--porque a Dionysia contára á
+Escolastica que a pobre menina tinha morrido d'um aneurisma rebentado. A
+Escolastica tambem soffria do coração; mas n'ella eram flatos, dos maus
+tratos que lhe dera o marido... Ah, tinha sido bem infeliz tambem!
+
+--Vossemecê toma uma gotinha de café, snr.^a Dionysia?
+
+--Olhe, a fallar a verdade, snr.^a Escolastica, tomava uma gotinha de
+geropiga...
+
+A Escolastica correu á taberna ao fim da rua, trouxe a geropiga n'um
+copo de quartilho debaixo do avental: e ambas á mesa, uma molhando sopas
+no café, outra escorropichando o copo, concordavam, com suspiros, que
+n'este mundo tudo eram sustos e lagrimas.
+
+Deram onze horas: e a Escolastica pensava em levar um caldo ao senhor
+parocho, quando elle chamou de dentro. Estava de chapéo alto, com o
+casaco abotoado, os olhos vermelhos como carvões...
+
+--Escolastica, vá a correr ao Cruz que me mande um cavallo... Mas
+depressa.
+
+Chamou então a Dionysia: e sentado ao pé d'ella, quasi contra os joelhos
+da mulher, com a face rigida e livida como um marmore, escutou em
+silencio a historia da noite--as convulsões de repente, tão fortes que
+ella, a Gertrudes e o senhor doutor mal a podiam segurar! o sangue, as
+prostrações em que cahia! depois a anciedade da asphyxia que a fazia tão
+rôxa como a tunica d'uma imagem...
+
+Mas o moço do Cruz chegára com o cavallo. Amaro tirou d'uma gaveta,
+d'entre roupa branca, um pequeno crucifixo, deu-o á Dionysia que ia
+voltar á Ricoça para ajudar a amortalhar a menina.
+
+--Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-m'o ella dado...
+
+Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa despediu a galope. Não
+chovia, agora; e entre as nuvens pardas algum raio fraco do sol de
+dezembro fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.
+
+Quando chegou ao pé do poço entulhado, d'onde se avistava a casa de
+Carlota, teve de parar, para deixar passar um longo rebanho d'ovelhas
+que tomava o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra ao hombro e a
+borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar de repente Feirão, toda a vida
+passada, que lhe voltava por fragmentos bruscos--aquellas paizagens
+afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna rindo estupidamente
+dependurada da corda do sino; as suas ceias de cabrito assado na
+Gralheira, com o abbade, defronte da chaminé, onde a lenha verde
+estalava; os longos dias em que se desesperava na tristeza da
+residencia, vendo fóra sem cessar cahir a neve... E veio-lhe um desejo
+ancioso d'essas solidões da serra, d'essa existencia de lobo, longe dos
+homens e das cidades, sepultado lá com a sua paixão.
+
+A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de roda chamar, atirando a
+voz por cima do telhado dos curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar
+os gallos. Ninguem respondeu. Seguiu então pelo caminho da aldeia,
+levando a egoa pela arreata; parou na taberna, onde uma mulher obesa
+fazia meia sentada á porta. Dentro, no escuro da baiuca, dois homens com
+os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas n'uma bisca renhida; e um
+rapazola d'uma amarellidão de sezões, com um lenço amarrado na cabeça,
+olhava-lhes o jogo tristemente.
+
+A mulher tinha justamente visto passar a snr.^a Carlota, que até parára
+a comprar um quartilho de azeite. Devia estar em casa da Michaela, ao
+adro. Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu de traz da
+sombra das pipas.
+
+--Corre, vai á Michaela, dize à snr.^a Carlota que está aqui um senhor
+da cidade.
+
+Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado n'uma pedra, com o
+seu cavallo pela redea. Mas aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi
+pôr o ouvido á fechadura, na esperança d'ouvir um chôro, uma rabuje de
+criança. Dentro pesava um silencio de caverna abandonada. Mas
+tranquillisava-o a idéa que a Carlota teria levado a criança comsigo,
+para Michaela. Devia realmente ter perguntando á mulher na taberna, se a
+Carlota trazia uma criança ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a
+sua janella em cima que tinha uma cortininha de cassa, um luxo tão raro
+n'aquellas freguezias pobres; recordava a boa ordem, o escarolado da
+louça da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambem um berço
+aceado...
+
+Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera alli, na mesa da
+cozinha, quatro libras em ouro, preço adiantado d'um anno de criação, e
+dissera cruelmente ao anão--«conto comsigo»! Pobre pequerruchinho!...
+Mas a Carlota comprehendera bem, á noite na Ricoça, que elle agora
+queria-o vivo, o seu filho, e creado com mimo!... Todavia não o deixaria
+alli, não, sob o olho raiado de sangue do anão... Leval-o-hia essa noite
+á Joanna Carreira dos Poyaes...
+
+Que as sinistras historias da Dionysia, a _tecedeira d'anjos_, eram uma
+legenda insensata. A criança estava muito regalada em casa de Michaela,
+chupando aquelle bom peito de quarentona sã... E vinha-lhe então o mesmo
+desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se em Feirão, levar comsigo a
+Escolastica, educar lá a criança como sobrinho, revivendo n'elle
+largamente todas as emoções d'aquelle romance de dois annos; e alli
+passaria n'uma paz triste, na saudade de Amelia, até ir como o seu
+antecessor, o abbade Gustavo que tambem creára um sobrinho em Feirão,
+repousar para sempre no pequeno cemiterio, de verão sob as flôres
+silvestres, de inverno sob a neve branca.
+
+Então a Carlota appareceu; e ficou attonita ao reconhecer Amaro, sem
+passar da cancella, com a testa franzida, a sua bella face muito grave.
+
+--A criança? exclamou Amaro.
+
+Depois d'um momento, ella respondeu, sem perturbação:
+
+--Nem me falle n'isso, que me tem dado um desgosto... Hontem mesmo, duas
+horas depois de ter chegado... O pobre anjinho começa a fazer-se rôxo, e
+alli me morreu debaixo dos olhos...
+
+--Mente! gritou Amaro. Quero vêr.
+
+--Entre, senhor, se quer vêr.
+
+--Mas que lhe disse eu hontem, mulher?
+
+--Que quer, senhor? Morreu. Veja...
+
+Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem cólera nem receio. Amaro
+entreviu n'um relance, ao pé da chaminé, um berço coberto com um saiote
+escarlate.
+
+Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima do cavallo. Mas a
+mulher, muito loquaz subitamente, rompeu a dizer que tinha ido
+justamente à aldeia para encommendar um caixãosinho decente... Como vira
+que era filho de pessoa de bem, não o quisera enterrar embrulhado n'um
+trapo. Mas emfim, como o senhor alli estava, parecia-lhe razoavel que
+désse algum dinheiro para a despeza... Uns dois mil reis que fossem.
+
+Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal de a esganar; por
+fim, metteu-lhe o dinheiro na mão. E ia trotando no carreiro, quando a
+sentiu ainda correndo, gritando _pst! pst!_ A Carlota queria-lhe
+restituir o capote que elle emprestára na vespera: tinha feito muito bom
+serviço, que a criança chegára quente como um rojãosinho...
+Infelizmente...
+
+Amaro já a não escutava, esporeando furiosamente a ilharga da
+cavalgadura.
+
+Na cidade, depois de apear à porta do Cruz, não entrou em casa. Foi
+direito ao paço do bispo. Tinha agora uma idéa só: era deixar aquella
+cidade maldita, não vêr mais as faces das devotas, nem a fachada odiosa
+da Sé...
+
+Foi só ao subir a larga escadaria de pedra do paço, que lhe lembrou com
+inquietação o que o Libaninho dissera na vespera da indignação do senhor
+vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade do padre
+Saldanha, o confidente do paço, que o introduziu logo na livraria de sua
+excellencia, tranquillisou-o. O senhor vigario geral foi muito amavel.
+Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...
+
+--É que tenho um grande desgosto, senhor vigario geral. Minha irmã está
+a morrer em Lisboa. E venho pedir a vossa excellencia licença para lá
+ir, por uns dias...
+
+O senhor vigario geral consternou-se com bondade.
+
+--Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros forçados da barca de
+Charonte.
+
+
+Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat
+Et ferruginea subvectat corpora cymba.
+
+
+Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... Não me esquecerei de a recommendar
+nas minhas orações...
+
+E muito methodico, sua excellencia tomou uma nota a lapis.
+
+Amaro, ao sahir do paço, foi direito á Sé. Fechou-se na sacristia, a
+essa hora deserta: e depois de pensar muito tempo com a cabeça entre os
+punhos, escreveu ao conego Dias:
+
+«Meu caro padre-mestre.--Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A
+infeliz morreu. Eu não posso, bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui
+ficasse, estalava-me o coração. Sua excellentissima irmã lá estará
+tratando do enterro... Eu, como comprehende, não posso. Muito lhe
+agradeço tudo... Até um dia, se Deus quizer que nos tornemos a vêr. Por
+mim conto ir para longe, para alguma pobre parochia de pastores, acabar
+meus dias nas lagrimas, na meditação e na penitencia. Console como puder
+a desgraça da mãi. Nunca me esquecerei do que lhe devo, emquanto tiver
+um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça.--Seu amigo
+do C.--_Amaro Vieira_.»
+
+«P. S. A criança morreu tambem, já se enterrou.»
+
+
+Fechou a carta com uma obreia preta; e depois d'arranjar os seus papeis,
+foi abrir o grande portão chapeado de ferro, olhar um momento o pateo, o
+barracão, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras chuvas já davam
+áquelle recanto da Sé o seu ar lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar,
+sob o silencio triste dos altos contrafortes, espreitou á vidraça da
+cozinha do tio Esguelhas: elle lá estava, sentado á chaminé, com o
+cachimbo na bôca, cuspilhando tristemente para as cinzas. Amaro bateu de
+leve nos vidros--e quando o sineiro abriu a porta, aquelle interior
+conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tótó, a escada
+que ia para o quarto, agitaram o parocho de tantas recordações e de
+saudades tão bruscas, que não pôde fallar um momento, com a garganta
+tomada de soluços.
+
+--Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou por fim. Vou a Lisboa,
+tenho minha irmã a morrer...
+
+E acrescentou com os beiços tremulos d'um chôro que ia romper:
+
+--Todas as desgraças vêm juntas. Sabe, a pobre Ameliasinha lá morreu de
+repente...
+
+O sineiro emmudeceu, assombrado.
+
+--Adeus, tio Esguelhas. Dê cá a mão, tio Esguelhas. Adeus...
+
+--Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho com os olhos arrazados
+d'agua.
+
+Amaro fugiu para casa, contendo-se para não soluçar alto pelas ruas.
+Disse logo á Escolastica que ia partir n'essa noite para Lisboa. O tio
+Cruz devia mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a Chão de
+Maçãs.
+
+--Eu não tenho senão o dinheiro que é necessario para a jornada. Mas o
+que ahi me fica em lençoes e toalhas é para vossê...
+
+A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho, quiz beijar-lhe a
+mão por tanta generosidade: offereceu-se para fazer a mala...
+
+--Eu mesmo a arranjo, Escolastica, não se incommode.
+
+Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando, foi logo
+recolher, examinar as poucas roupas que estavam pelos armarios. Mas
+Amaro d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma harpa e uma
+rebeca, em desafinação, tocavam a valsa dos _Dois mundos_.
+
+--Dê um tostão a esses homens, disse o padre furioso. E diga-lhe que vão
+p'r'ó inferno... Que está aqui gente doente!
+
+E até ás cinco horas a Escolastica não tornou a sentir rumor no quarto.
+
+Quando o moço do Cruz veio com o cavallo, pensando que o senhor parocho
+adormecera, ella foi-lhe bater devagarinho á porta do quarto,
+choramingando já da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de capote
+aos hombros; no meio do quarto prompta e acorreada a mala de lona que
+devia ir á garupa da egoa. Deu-lhe um maço de cartas para ir entregar
+n'essa noite à snr.^a D. Maria da Assumpção, ao padre Silverio e a
+Natario: e ia descer, entre os prantos da mulher, quando sentiu na
+escada um ruido conhecido de muleta, e o tio Esguelhas appareceu muito
+commovido.
+
+--Entre, tio Esguelhas, entre.
+
+O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um momento:
+
+--Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me esquecido de todo, com
+os desgostos que tenho passado. Já ha tempo que achei no quarto isto, e
+pensei que...
+
+E metteu na mão de Amaro um brinco d'ouro. Elle reconheceu-o logo: era
+d'Amelia. Muito tempo ella o procurára debalde; soltára-se decerto
+n'alguma manhã d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro então,
+suffocado, abraçou o tio Esguelhas.
+
+--Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por cá de mim. Dê lembranças ao
+Mathias, tio Esguelhas...
+
+O moço afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu, deixando a
+Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar ambos á porta.
+
+Mas depois de ter passado os açudes, ao pé d'uma volta da estrada, teve
+de apear para compôr o estribo: e ia montar, quando appareceram dobrando
+o muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor administrador do
+concelho, muito amigos agora, e que vinham, depois do passeio,
+recolhendo para a cidade. Pararam logo a fallar ao senhor
+parocho--admirando-se de o vêr alli, de maleta na garupa, com ares de
+jornada...
+
+--É verdade, disse, vou para Lisboa!
+
+O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe a
+felicidade.--Mas quando o parocho fallou da irmã moribunda,
+affligiram-se com polidez; e o senhor administrador disse:
+
+--Deve estar muito sentido, comprehendo... De mais a mais essa outra
+desgraça na casa d'aquellas senhoras suas amigas... A pobre Ameliasinha,
+morta assim de repente...
+
+O antigo Bibi exclamou:
+
+--O quê? A Ameliasinha, aquella bonita que morava na rua da
+Misericordia? Morreu?
+
+O doutor Godinho tambem o ignorava, e pareceu consternado.
+
+O senhor administrador soubera-o pela sua criada, que o ouvira da
+Dionysia. Dizia-se que fôra um aneurisma.
+
+--Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe se afflijo as suas
+crenças respeitaveis, que são as minhas de resto... Mas Deus commetteu
+um verdadeiro crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da cidade! Que
+olhos, senhores! E depois com aquelle picantesinho da virtude...
+
+Então, n'um tom de pezames, todos lamentaram aquelle golpe que devia ter
+affectado tanto o senhor parocho.
+
+Elle disse muito grave:
+
+--Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com as suas boas qualidades,
+devia fazer, sem duvida, uma esposa modêlo... Senti-o muito.
+
+Apertou silenciosamente as mãos em redor--e emquanto os cavalheiros
+recolhiam á cidade, o padre Amaro foi trotando pela estrada, que já
+escurecia, para a estação de Chão de Maçãs.
+
+
+Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia sahiu da Ricoça. Era
+uma manhã aspera: o céo e os campos estavam afogados n'uma nevoa
+pardacenta; e cahia, muito miuda, uma chuva regelada. Era longe da
+quinta a capella dos Poyaes. O menino do côro adiante, de cruz alçada,
+apressava-se, chapinhando a lama a grandes pernadas; o abbade Ferrão,
+d'estola negra, abrigava-se, murmurando o _Exultabunt Domino_, sob o
+guardachuva que sustentava ao lado o sacristão com o hyssope; quatro
+trabalhadores da quinta, abaixando a cabeça contra a chuva obliqua,
+levavam n'uma padiola o esquife que tinha dentro o caixão de chumbo; e,
+sob o vasto guardachuva do caseiro, a Gertrudes de mantéo pela cabeça ia
+desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o valle triste dos Poyaes
+cavava-se, todo pardo na neblina, n'um grande silencio; e a voz enorme
+do vigario, mugindo o _Miserere_, rolava pela quebrada humida onde
+murmuravam os riachos muito cheios.
+
+Mas ás primeiras casas da aldeia os moços do caixão pararam derreados; e
+então um homem, que estava esperando debaixo d'uma arvore sob o seu
+guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro. Era João
+Eduardo, de luvas pretas, carregado de luto, com as olheiras cavadas em
+dois sulcos negros, grossas lagrimas a correrem-lhe nas faces. E
+immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se dois criados de
+farda, com as calças muito arregaçadas e tochas na mão--dois lacaios que
+mandára o Morgado, para honrar o enterro d'uma d'essas senhoras da
+Ricoça, amigas do abbade.
+
+Então, vendo estas duas librés que vinham afidalgar o prestito, o menino
+do côro rompeu logo, erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, já sem
+fadiga, impertigaram-se ás varas da padiola: o sacristão bramiu um
+_Requiem_ tremendo. E pelas lamas do íngreme caminho da aldeia foi
+subindo o enterro, emquanto às portas as mulheres se ficavam
+persignando, olhando as sobrepellizes brancas e o caixão de galões
+d'ouro, que se iam afastando seguidos do grupo de guardachuvas abertos,
+sob a chuva triste.
+
+A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras: o sino dobrava: e o
+enterro sumiu-se para o interior da igreja escura, ao canto do
+_Subvenite sancti_ que o sacristão entoou em ronco.--Mas os dois criados
+de farda não entraram porque o senhor Morgado assim o tinha ordenado.
+
+Ficaram á porta, sob o guardachuva, escutando, batendo os pés regelados.
+Dentro seguia o cantochão; depois era um ciciar d'orações que se
+amortecia: e de repente latins funebres lançados pela voz grossa do
+vigario.
+
+Então os dois homens, enfastiados, desceram do adro, entraram um momento
+na taberna do tio Seraphim. Dois moços de gado da quinta do Morgado, que
+bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se logo vendo apparecer os
+dois criados de farda.
+
+--Á vontade, rapazes, é sentar e beber, disse o velho baixito que
+acompanhava João Eduardo a cavallo. Nós lá estamos, na massada do
+enterro... Boas tardes, snr. Seraphim.
+
+Apertaram a mão ao Seraphim, que lhes mediu duas aguardentes--e
+informou-se se a defunta era a noiva do snr. Joãosinho. Tinham-lhe dito
+que morrera d'uma veia rebentada.
+
+O baixito riu:
+
+--Qual veia rebentada! Não lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe
+rebentou foi um rapagão pelo ventre...
+
+--Obra do snr. Joãosinho? perguntou o Seraphim, arregalando o olho
+bréjeiro.
+
+--Não me parece, disse o outro com importancia. O snr. Joãosinho estava
+em Lisboa... Obra d'algum cavalheiro da cidade... Sabe vossemecê de quem
+eu desconfio, snr. Seraphim?...
+
+Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o
+sahimento já ia ao pé do cemiterio, e que não faltavam senão «aquelles
+senhores»! Os lacaios abalaram logo, e alcançaram o enterro quando ia
+passando a pequena grade do cemiterio, ao ultimo versiculo do
+_Miserere_. João Eduardo agora levava uma vela na mão, ia logo atraz do
+caixão d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados de lagrimas
+fitos no velludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino na capella
+dobrava desoladamente. A chuva cahia mais miuda. E todos calados, no
+silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela terra molle,
+iam-se dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a
+cova d'Amelia, negra e profunda entre a relva humida. O menino do côro
+cravou no chão a haste da cruz prateada, e o abbade Ferrão,
+adiantando-se até á beira do buraco escuro, murmurou o _Deus cujus
+miseratione_... Então João Eduardo, muito pallido, vacillou de repente,
+e o guardachuva cahiu-lhe das mãos; um dos criados de farda correu,
+segurou-o pela cinta; queriam-no levar, arrancal-o d'ao pé da cova; mas
+elle resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados, segurando-se
+desesperadamente á manga do criado, vendo o coveiro e os dois moços
+amarrarem as cordas no caixão, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
+esfarellada que rolava, com um ranger de taboas mal pregadas.
+
+--_Requiem aeternam donna ei, Domine!_
+
+--_Et lux perpetua luceat ei_, mugiu o sacristão.
+
+O caixão bateu no fundo com uma pancada surda: o abbade espalhou em cima
+uma pouca de terra em fórma de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope
+sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:
+
+--_Requiescat in pace_.
+
+--_Amen_, responderam a voz cava do sacristão e a voz aguda do menino do
+côro.
+
+--_Amen_, disseram todos n'um murmurio, que ciciou, se perdeu entre os
+cyprestes, as hervas, os tumulos e as nevoas frias d'aquelle triste dia
+de dezembro.
+
+
+
+
+XXVI
+
+
+Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havaneza, ao
+Chiado, em Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos
+que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam o pescoço,
+por entre a massa dos chapeus, para a grade do balcão, onde n'uma
+taboleta suspensa se collavam os telegrammas da _Agencia Havas_;
+sujeitos de faces espantadas sahiam consternados, exclamando logo para
+algum amigo mais pacato que os esperára fóra:
+
+--Tudo perdido! Tudo a arder!
+
+Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão,
+questionava-se forte; e pelo passeio, no largo do Loreto, defronte ao pé
+do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquelle dia já quente
+do começo de verão, toda uma gralhada de vozes impressionadas onde as
+palavras--_Communistas! Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime!
+Internacional!_ voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o
+ruido das tipoias e os pregões dos garotos gritando _supplementos_.
+
+Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas annunciando os episodios
+successivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris: telegrammas
+despedidos de Versailles n'um terror dizendo os palacios que ardiam, as
+ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa nos pateos dos quarteis e
+entre os mausoleus dos cemiterios; a vingança que ia saciar-se até á
+escuridão dos esgotos; a fatal demencia que desvairava as fardas e as
+blusas; e a resistencia que tinha o furor de uma agonia com os methodos
+d'uma sciencia, e fazia saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela
+dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convulsão, um fim de mundo--que
+vinte, trinta palavras de repente mostravam, n'um relance, a um clarão
+de fogueira.
+
+O Chiado lamentava com indignação aquella ruina de Paris. Recordavam-se
+com exclamações os edificios ardidos, o Hotel de Ville, «tão bonito», a
+rua Royale, «aquella riqueza». Havia individuos tão furiosos com o
+incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade sua: os que tinham
+estado em Paris um ou dois mezes abriam-se em invectivas, arrogando-se
+uma participação de parisiense na riqueza da cidade, escandalisados por
+a insurreição não ter respeitado monumentos em que elles tinham posto os
+seus olhos.
+
+--Vejam vossês! exclamava um sujeito gordo. O palacio da Legião d'Honra
+destruido! Ainda não ha um mez que eu lá estive com minha mulher... Que
+infamia! Que patifaria!
+
+Mas espalhára-se que o ministerio recebera outro telegramma mais
+desolador: toda a linha do _boulevard_ da Bastilha á Magdalena ardia, e
+ainda a praça da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos até ao Arco
+do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado, n'uma demencia, todo
+aquelle systema de restaurantes, cafés-concertos, bailes publicos, casas
+de jogo e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o largo do Loreto
+até ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chammas
+aniquilado aquella centralisação tão commoda da patuscada! Oh que
+infamia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em Paris? Onde se
+encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a vêr aquelle
+desfilar prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e seccos
+d'inverno, quando as victorias das cocottes resplandeciam ao pé dos
+phaetons dos agentes da Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as
+bibliothecas e os museus: mas a saudade era sincera pela destruição dos
+cafés e pelo incendio dos lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da
+França!
+
+N'um grupo ao pé da Casa Havaneza os questionadores politicavam:
+pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo, se começava a
+citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas
+rompiam contra Proudhon. A maior parte imaginava que era elle que tinha
+incendiado. Mas o poeta estimado das _Flôres e Ais_ acudiu dizendo «que,
+à parte as asneiras que Proudhon dizia, era ainda assim um estylista
+bastante ameno». Então o jogador França berrou:
+
+--Qual estylo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os
+ossos!
+
+E rachava. Depois do cognac o França era uma fera.
+
+Alguns moços porém, a quem o elemento dramatico da catastrophe revolvia
+o instincto romantico, applaudiam a heroicidade da Communa--Vermorel
+abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas que o trespassavam
+gritando: Viva a humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de
+santo, dictando do seu leito d'agonia as violencias da resistencia...
+
+--São grandes homens! exclamava um rapaz exaltado.
+
+Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pallidas, vendo
+já as suas casas na Baixa a escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza
+presa de chammas socialistas. Então era em todos os grupos um furor
+d'auctoridade e repressão: era necessario que a sociedade, atacada pela
+Internacional, se refugiasse na força dos seus principios conservadores
+e religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes com tendas de
+capellistas fallavam da «canalha» com o desdem imponente d'um La
+Tremouille ou d'um Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a
+vingança. Vadios pareciam furiosos «contra o operario que quer viver
+como principe». Fallava-se com devoção na propriedade, no capital!
+
+D'outro lado eram moços verbosos, localistas excitados que declamavam
+contra o velho mundo, a velha idéa, ameaçando-os d'alto, propondo-se a
+derruil-os em artigos tremendos.
+
+E assim uma burguezia entorpecida esperava deter, com alguns policias,
+uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de litteratura, decidia
+destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos. Mas ninguem se
+mostrava mais exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do
+degrau da Casa Havaneza brandia a bengala, aconselhando á França a
+restauração dos Bourbons.
+
+Então um homem vestido de preto, que sahira do estanco e atravessava por
+entre os grupos, parou, sentindo uma voz espantada que exclamava ao
+lado:
+
+--Ó padre Amaro! ó maganão!
+
+Voltou-se: era o conego Dias. Abraçaram-se com vehemencia, e para
+conversarem mais tranquillamente foram andando até ao largo de Camões, e
+alli pararam, junto á estatua:
+
+--Então vossê quando chegou, padre-mestre?
+
+Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira
+por causa d'uma servidão na quinta, tinha appellado para a Relação, e
+vinha seguir de perto a questão na capital.
+
+--E vossê, Amaro? Na ultima carta dizia-me que tinha vontade de sahir de
+Santo Thyrso.
+
+Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas vagára Villa-Franca, e
+elle, para estar mais perto da capital, viera fallar com o senhor conde
+de Ribamar, o seu conde, que lá andava obtendo a transferencia.
+Devia-lhe tudo, sobretudo á senhora condessa!
+
+--E de Leiria? A S. Joanneira, vai melhor?
+
+--Não, coitada... Vossê sabe, ao principio tivemos um susto dos
+diabos... Pensavamos que lhe ia succeder como á Amelia. Mas não, era
+hydropesia... E alli o que ha é anasarca...
+
+--Coitada, santa senhora! E o Natario?
+
+--Avelhado. Tem tido seus desgostos. Muita lingua.
+
+--E diga lá, padre-mestre, o Libaninho?
+
+--Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o conego rindo.
+
+O padre Amaro riu tambem: e durante um momento os dois sacerdotes
+pararam, apertando as ilhargas.
+
+--Pois é verdade, disse emfim o conego. A coisa tinha sido realmente
+escandalosa... Porque emfim, repare o amigo que o pilharam com o
+sargento, de tal modo que não havia a duvidar... E ás dez horas da
+noite, na alameda! Já é imprudencia... Mas emfim a coisa esqueceu, e
+quando o Mathias morreu, lá lhe demos o logar de sacristão, que é bem
+boa posta... Muito melhor que o que elle tinha no cartorio... E ha de
+cumprir com zelo!
+
+--Ha de cumprir com zelo, concordou muito sério o padre Amaro. E a
+proposito, a D. Maria da Assumpção?
+
+--Homem, rosnam-se coisas... Criado novo... Um carpinteiro que morava
+defronte... O rapaz anda no trinque.
+
+--Palavra?
+
+--No trinque. Charuto, relogio, luva! Tem pilheria, hein?
+
+--É divino!
+
+--As Gansosos na mesma, continuou o conego. Têm agora a sua criada, a
+Escolastica.
+
+--E da besta do João Eduardo?
+
+--Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está ainda nos Poyaes. O Morgado está mal
+do figado. E o João Eduardo diz que está tisico... que eu não sei, nunca
+mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferrão.
+
+--Como vai elle, o Ferrão?
+
+--Bem. Sabe quem eu vi ha dias? A Dionysia.
+
+--E então?
+
+O conego disse uma palavra baixo ao ouvido do padre Amaro.
+
+--Deveras, padre-mestre?
+
+--Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Luiz da
+Barrosa é que lhe deu o dinheiro para montar o estabelecimento. Pois
+aqui estão as novidades. E vossê está mais forte, homem! Fez-lhe bem a
+mudança...
+
+E pondo-se diante, galhofando:
+
+--Ó Amaro, e vossê a escrever-me que queria retirar-se para a serra, ir
+para um convento, passar a vida em penitencia...
+
+O padre Amaro encolheu os hombros:
+
+--Que quer vossê, padre-mestre?... N'aquelles primeiros momentos... Olhe
+que me custou! Mas tudo passa...
+
+--Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma pausa:--Ah! Mas Leiria já
+não é Leiria!
+
+Passearam então um momento em silencio, n'uma recordação que lhes vinha
+do passado, os quinos divertidos da S. Joanneira, as palestras ao chá,
+as passeatas ao Morenal, o _Adeus_ e o _Descrido_ cantados pelo Arthur
+Couceiro e acompanhados pela pobre Amelia, que agora lá dormia, no
+cemiterio dos Poyaes, sob as flôres silvestres...
+
+--E que me diz vossê a estas coisas de França, Amaro? exclamou de
+repente o conego.
+
+--Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma sucia de padres
+fuzilados!... Que brincadeira!
+
+--Má brincadeira, rosnou o conego.
+
+E o padre Amaro:
+
+--E cá pelo nosso canto parece que começam tambem essas idéas...
+
+O conego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de
+maçons, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de
+tudo o que é respeitavel--o clero, a instrucção religiosa, a familia, o
+exercito e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros
+desencadeados! Eram necessarias as antigas repressões, a masmorra e a
+forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.
+
+--Ahi ó que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem
+senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo
+sacerdocio...
+
+--Calumniam-nos infamamente, disse n'um tom profundo o conego.
+
+Então junto d'elles passaram duas senhoras, uma já de cabellos brancos,
+o ar muito nobre; a outra, uma creaturinha delgada e pallida, d'olheiras
+batidas, os cotovêlos agudos collados a uma cinta d'esterilidade,
+_pouff_ enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
+
+--Caspitè! disse o conego baixo, tocando o cotovêlo do collega. Hein,
+seu padre Amaro?... Aquillo é que vossê queria confessar.
+
+--Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o parocho rindo, já as não
+confesso senão casadas!
+
+O conego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o
+seu ar ponderoso de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente o
+chapéo a um cavalheiro de bigode grisalho e oculos d'ouro, que entrava
+na praça, do lado do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o
+guardasol debaixo do braço.
+
+Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com bonhomia para os dois
+sacerdotes; e Amaro, descoberto e perfilado, apresentou «o seu amigo, o
+senhor conego Dias, da Sé de Leiria». Conversaram um momento da estação,
+que já ia quente. Depois o padre Amaro fallou dos ultimos telegrammas.
+
+--Que diz vossa excellencia a estas coisas de França, senhor conde?
+
+O estadista agitou as mãos, n'uma desolação que lhe assombreava a face:
+
+--Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem me falle n'isso... Vêr
+meia duzia de bandidos destruir Paris... O meu Paris!... Creiam vossas
+senhorias que tenho estado doente.
+
+Os dois sacerdotes, com uma expressão consternada, uniram-se á dôr do
+estadista.
+
+E então o conego:
+
+--E qual pensa vossa excellencia que será o resultado?
+
+O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras que sabiam devagar,
+sobrecarregadas do peso das idéas, disse:
+
+--O resultado?... Não é difficil prevel-o. Quando se tem alguma
+experiencia da Historia e da Politica, o resultado de tudo isto vê-se
+distinctamente. Tão distinctamente como os vejo a vossas senhorias.
+
+Os dois sacerdotes pendiam dos labios propheticos do homem de governo.
+
+--Suffocada a insurreição--continuou o senhor conde olhando a direito
+diante de si com o dedo no ar, como seguindo, apontando os futuros
+historicos que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro,
+penetrava--suffocada a insurreição, dentro de tres mezes temos de novo o
+imperio... Se vossas senhorias tivessem visto como eu uma recepção nas
+Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio, haviam de dizer,
+como eu, que a França é profundamente imperialista e só imperialista...
+Temos pois Napoleão III: ou talvez elle abdique, e a imperatriz tome a
+regencia na menoridade do principe imperial... Eu aconselharia antes, e
+já o fiz saber, que era esta talvez a solução mais prudente. Como
+consequencia immediata temos o Papa em Roma outra vez senhor do poder
+temporal... Eu, a fallar a verdade, e já o fiz saber, não approvo uma
+restauração papal. Mas eu não lhes estou aqui a dizer o que approvo, ou
+o que reprovo. Felizmente não sou o dono da Europa... Seria um encargo
+superior á minha idade e ás minhas enfermidades. Estou a dizer o que a
+minha experiencia da Politica e da Historia me aponta como certo...
+Dizia eu...? Ah! a imperatriz no throno de França, Pio Nono no throno de
+Roma, ahi temos a democracia esmagada entre estas duas forças sublimes,
+e creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa e os
+elementos de que se compõe a sociedade moderna, creiam que depois d'este
+exemplo da Communa não se torna a ouvir fallar de republica, nem de
+questão social, nem de povo, n'estes cem annos mais chegados!...
+
+--Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o conego.
+
+Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma praça de Lisboa, em
+conversação intima com um estadista illustre, perguntou ainda, pondo nas
+palavras uma anciedade de conservador assustado:
+
+--E crê vossa excellencia que essas idéas de republica, de materialismo,
+se possam espalhar entre nós?
+
+O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quasi junto
+das grades que cercam a estatua de Luiz de Camões:
+
+--Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É
+possivel que haja ahi um ou dois esturrados que se queixem, digam
+tolices sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um marasmo, e
+que vamos cahindo no embrutecimento, e que isto assim não póde durar dez
+annos. etc. etc. Babuseiras!...
+
+Tinha-se encostado quasi ás grades da estatua, e tomando uma attitude de
+confiança:
+
+--A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que
+vou a dizer não é para lisonjear a vossas senhorias: mas emquanto n'este
+paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas senhorias, Portugal ha
+de manter com dignidade o seu logar na Europa! Porque a fé, meus
+senhores, é a base da ordem!
+
+--Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram com força os dois
+sacerdotes.
+
+--Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que
+prosperidade!
+
+E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do Loreto, que áquella hora,
+n'um fim de tarde serena concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias
+rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto,
+com os movimentos derreados, a pallidez chlorotica d'uma degeneração de
+raça; n'alguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome historico,
+com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça
+gente estirava-se n'um torpôr de vadiagem; um carro de bois, aos
+solavancos sobre as suas altas rodas, era como o symbolo de agriculturas
+atrazadas de seculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum
+burguez enfastiado lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas; nas
+faces enfezadas de operarios havia como a personificação das industrias
+moribundas... E todo este mundo decrepito se movia lentamente, sob um
+céo lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a
+batota publica, e rapazitos de voz plangente offerecendo o _Jornal das
+pequenas novidades_: e iam, n'um vagar madraço, entre o largo onde se
+erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das
+casarias da praça onde brilhavam tres taboletas de casas de penhores,
+negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo
+d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro de prostituição e de
+crime.
+
+--Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade,
+este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que sejamos a
+inveja da Europa!
+
+E o homem d'estado, os dois homens de religião, todos tres em linha,
+junto ás grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza
+gloriosa da grandeza do seu paiz,--alli ao pé d'aquelle pedestal, sob o
+frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos
+hombros de cavalleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme,
+cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da antiga patria--patria
+para sempre passada, memoria quasi perdida!
+
+Outubro 1878--Outubro 1879.
+
+
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ |#pág. 81| ?uz | luz |
+ |#pág. 88| arcepispo | arcebispo |
+ |#pág. 95| branços | braços |
+ |#pág. 152| elle | ella |
+ |#pág. 344| demolissse | demolisse |
+ |#pág. 357| religão | religião |
+ |#pág. 357| Infelimente | Infelizmente |
+ |#pág. 357| podia ter ter | podia ter |
+ |#pág. 360| tataruga | tartaruga |
+ |#pág. 372| patite | patife |
+ |#pág. 396| exemplicar | exemplificar |
+ |#pág. 397| cebeça | cabeça |
+ |#pág. 425| installado-se | installando-se |
+ |#pág. 428| encondo | encontrado |
+ |#pág. 430| iria em em | iria em |
+ |#pág. 436| enconder | esconder |
+ |#pág. 460| atravessassse | atravessasse |
+ |#pág. 463| malacia | malicia |
+ |#pág. 478| grades | grandes |
+ |#pág. 489| necesario | necessario |
+ |#pág. 489| viessa | viesse |
+ |#pág. 492| entercimento | enternecimento |
+ |#pág. 558| appareeeu | appareceu |
+ |#pág. 634| cruxifico | crucifixo |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+
+O original não tem capítulo XI, no entanto, a numeração das páginas não
+apresenta quebra na narração. Optámos por não corrigir a numeração dos
+capítulos.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O crime do padre Amaro, by
+José Maria Eça de Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
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+electronic work, or any part of this electronic work, without
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+form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
+License as specified in paragraph 1.E.1.
+
+1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
+performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
+unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
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+access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
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+
+- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
+ the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
+ you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
+ owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
+ has agreed to donate royalties under this paragraph to the
+ Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
+ must be paid within 60 days following each date on which you
+ prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
+ sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
+ address specified in Section 4, "Information about donations to
+ the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
+
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+ License. You must require such a user to return or
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+ and discontinue all use of and all access to other copies of
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+ money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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+electronic work or group of works on different terms than are set
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+opportunities to fix the problem.
+
+1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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+If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
+the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
+
+1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
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+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
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+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
+ https://www.gutenberg.org
+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
+subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
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+ <title>O Crime do Padre Amaro</title>
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+<pre>
+
+Project Gutenberg's O crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
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+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: O crime do padre Amaro
+ scenas da vida devota
+
+Author: José Maria Eça de Queirós
+
+Release Date: April 13, 2010 [EBook #31971]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
+
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+
+<div>
+<div class="fbox"><b>Nota de editor:</b>
+Devido &agrave;
+quantidade de erros tipogr&aacute;ficos existentes neste texto,
+foram tomadas v&aacute;rias decis&otilde;es quanto &agrave;
+vers&atilde;o final. Em caso de d&uacute;vida, a grafia foi
+mantida de acordo com o original. No final deste livro
+encontrar&aacute; a lista de erros corrigidos.<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: right; font-style: italic;">Rita
+Farinha (Abril 2010)
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h2>
+O CRIME<br />
+
+<br />
+
+DO<br />
+
+<br />
+
+PADRE AMARO
+</h2>
+
+<div style="text-align: justify;"><br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Obras do mesmo auctor:
+<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+<table style="text-align: left; width: 100%;" border="0" cellpadding="2" cellspacing="2">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="justify">
+
+ <td valign="top"><b>Os Maias.</b> 2
+grossos
+volumes.</td>
+
+ <td valign="top">2$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: justify;" valign="top"><b>O
+Crime do Padre Amaro.</b> Terceira
+edi&ccedil;&atilde;o inteiramente
+refundida, recomposta, e differente na f&oacute;rma
+e na ac&ccedil;&atilde;o da edi&ccedil;&atilde;o
+primitiva. 1 grosso
+volume.</td>
+
+ <td style="text-align: right; vertical-align: bottom;">1$200</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td align="left" valign="top"><b>O
+Primo Bazilio.</b> Segunda
+edi&ccedil;&atilde;o. 1 grosso
+volume.</td>
+
+ <td style="text-align: right;" valign="top">1$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td align="left" valign="top"><b>A
+Reliquia.</b> 1 grosso
+volume.</td>
+
+ <td style="text-align: right;" valign="top">1$000</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td align="left" valign="top"><b>O
+Mandarim.</b> Segunda
+edi&ccedil;&atilde;o. 1
+volume.</td>
+
+ <td style="text-align: right;" valign="top">500</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<br />
+
+<br />
+
+No prelo:
+<br />
+
+<br />
+
+<b>Correspondencia de Fradique Mendes.</b>
+1 volume.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="bbox">
+<h4>E&Ccedil;A DE QUEIROZ</h4>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<h2>
+O CRIME<br />
+
+<br />
+
+DO<br />
+
+<br />
+
+PADRE AMARO
+</h2>
+
+<br />
+
+<h4>SCENAS DA VIDA DEVOTA
+</h4>
+
+<div class="sbreak">
+<hr /></div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">TERCEIRA
+EDI&Ccedil;&Atilde;O
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<div class="tinyl"><em>Inteiramente refundida,
+recomposta, e differente na f&oacute;rma<br />
+
+e na ac&ccedil;&atilde;o da edi&ccedil;&atilde;o
+primitiva</em></div>
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;"><img style="width: 83px; height: 84px;" alt="" src="images/fig01.png" /><br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">PORTO<br />
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON<br />
+
+Casa editora<br />
+
+<b>LUGAN &amp; GEMELIOUX,
+Successores</b><br />
+
+1889<br />
+
+<br />
+
+Todos os direitos reservados<br />
+
+<br />
+
+</div>
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<hr />
+<div style="text-align: center;">Porto: Typ. de
+A. J. da
+Silva Teixeira, Cancella Velha, 70
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>NOTA
+</h3>
+
+<div style="text-align: center;"><span style="font-weight: bold;">
+(DA 2.&ordf; EDI&Ccedil;&Atilde;O)</span>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O Crime do Padre Amaro recebeu no
+Brazil e em Portugal alguma atten&ccedil;&atilde;o
+da Critica, quando foi publicado
+ulteriormente um romance intitulado&mdash;<span class="smallcaps">O
+Primo Bazilio</span>. E no Brazil e
+em Portugal escreveu-se (sem todavia se adduzir
+nenhuma prova effectiva) que <span class="smallcaps">O
+Crime do
+Padre Amaro</span> era uma imita&ccedil;&atilde;o
+do romance do
+snr. E. Zola&mdash;<span class="smallcaps">La Faute de
+l'Abb&eacute;
+Mouret</span>;
+ou que este livro do auctor do
+<span class="smallcaps">Assomoir</span> e de
+outros magistraes estudos sociaes suggerira a
+id&eacute;a, os personagens, a inten&ccedil;&atilde;o do
+<span class="smallcaps">Crime do
+Padre Amaro</span>.
+<span class="pagenum">[VI]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Eu tenho algumas raz&otilde;es para cr&ecirc;r que
+isto n&atilde;o &eacute; correcto. <span class="smallcaps">O
+Crime do
+Padre Amaro</span>
+foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em
+1872, e publicado em 1874. O livro do snr.
+Zola, <span class="smallcaps">La Faute de
+l'Abb&eacute;
+Mouret</span> (que &eacute; o
+quinto volume da s&eacute;rie <span class="smallcaps">Rougon
+Macquart</span>), foi
+escripto e publicado em 1875.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas (ainda que isto pare&ccedil;a sobrenatural)
+eu considero esta raz&atilde;o apenas como subalterna
+e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado
+no cerebro, no pensamento do snr.
+Zola, e ter avistado, entre as f&oacute;rmas ainda
+indecisas das suas crea&ccedil;&otilde;es futuras, a figura
+do abbade Mouret,&mdash;exactamente como o veneravel
+Anchises no valle dos Elyseos podia
+v&ecirc;r, entre as sombras das ra&ccedil;as vindouras
+fluctuando
+na nevoa luminosa do Lethes, aquelle
+que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas
+s&atilde;o possiveis. Nem o homem prudente as deve
+considerar mais extraordinarias que o carro
+de fogo que arrebatou Elias aos c&eacute;os&mdash;e outros
+prodigios provados.
+<br />
+
+<br />
+
+O que, segundo penso, mostra melhor que
+a accusa&ccedil;&atilde;o carece de exactid&atilde;o,
+&eacute; a simples
+compara&ccedil;&atilde;o dos dois romances.
+<span class="smallcaps">La Faute de</span>
+<span class="pagenum">[VII]</span>
+<span class="smallcaps">l'Abb&eacute; Mouret</span>
+&eacute;, no seu episodio central, o
+quadro allegorico da inicia&ccedil;&atilde;o do primeiro homem
+e da primeira mulher no amor. O abbade
+Mouret (Sergio), tendo sido atacado d'uma febre
+cerebral, trazida principalmente pela sua
+exalta&ccedil;&atilde;o mystica no culto da Virgem, na
+solid&atilde;o
+d'um valle abrazado da Proven&ccedil;a (primeira
+parte do livro), &eacute; levado para convalescer
+ao <em>Paradou</em>, antigo parque do seculo
+XVII
+a que o abandono refez uma virgindade selvagem,
+e que &eacute; a representa&ccedil;&atilde;o allegorica do
+Paraiso. Ahi, tendo perdido na febre a consciencia
+de si mesmo a ponto de se esquecer
+do seu sacerdocio e da existencia da aldeia, e
+a consciencia do universo a ponto de ter medo
+do sol e das arvores do <em>Paradou</em> como
+de
+monstros estranhos&mdash;erra, durante mezes,
+pelas profundidades do bosque inculto, com
+Albina que &eacute; o genio, a Eva d'esse logar de
+legenda; Albina e Sergio, semi-n&uacute;s como no
+Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto
+que os impelle, uma arvore mysteriosa, da
+rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da
+materia procreadora; sob este symbolo da Arvore
+da Sciencia se possuem, depois de dias
+<span class="pagenum">[VIII]</span>
+angustiosos em que tentam descobrir, na sua
+innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar
+o amor; depois, n'uma mutua vergonha
+subita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens;
+e d'ahi os expulsa, os arranca o padre
+Archangins, que &eacute; a personifica&ccedil;&atilde;o
+theocratica
+do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro
+o abbade Mouret recupera a consciencia de si
+mesmo, subtrae-se &aacute; influencia dissolvente da
+adora&ccedil;&atilde;o da Virgem, obtem por um
+esfor&ccedil;o da
+ora&ccedil;&atilde;o e um privilegio da gra&ccedil;a a
+extinc&ccedil;&atilde;o
+da sua virilidade, e torna-se um asceta sem
+nada d'humano, uma sombra cahida aos p&eacute;s
+da cruz; e, &eacute; sem que lhe mude a c&ocirc;r ao rosto
+que asperge e responsa o esquife de Albina,
+que se asphyxiou no <em>Paradou</em> sob um
+mont&atilde;o
+de fl&ocirc;res de perfumes fortes.
+<br />
+
+<br />
+
+Os criticos intelligentes que accusaram <span class="smallcaps">O
+Crime do Padre Amaro</span> de ser apenas uma
+imita&ccedil;&atilde;o da <span class="smallcaps">Faute
+de
+l'Abb&eacute; Mouret</span> n&atilde;o tinham
+infelizmente lido o romance maravilhoso
+do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a
+sua gloria. A semelhan&ccedil;a casual dos dois titulos
+induziu-os em erro.
+<br />
+
+<br />
+
+Com conhecimento dos dois livros, s&oacute; uma
+<span class="pagenum">[IX]</span>
+obtusidade cornea ou m&aacute; f&eacute; cynica poderia
+assemelhar
+esta bella allegoria idyllica, a que
+est&aacute; misturado o pathetico drama d'uma alma
+mystica, ao <span class="smallcaps">Crime do Padre Amaro</span>
+que, como
+podem v&ecirc;r n'este novo trabalho, &eacute; apenas, no
+fundo, uma intriga de clerigos e de beatas tramada
+e murmurada &aacute; sombra d'uma velha S&eacute;
+de provincia portugueza.
+<br />
+
+<br />
+
+Aproveito este momento para agradecer &aacute;
+Critica do Brazil e de Portugal a atten&ccedil;&atilde;o que
+ella tem dado aos meus trabalhos.<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="quote">
+Bristol, 1 de janeiro de 1880.</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature"><em>E&ccedil;a do Queiroz.</em>
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h2>
+O CRIME<br />
+
+<br />
+
+DO<br />
+
+<br />
+
+PADRE AMARO
+</h2>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+I
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi no domingo de Paschoa que se soube em
+Leiria que o parocho da S&eacute;, Jos&eacute; Migueis, tinha
+morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho
+era um homem sanguineo e nutrido, que passava
+entre o clero diocesano pelo <em>comil&atilde;o dos
+comil&otilde;es</em>.
+Contavam-se historias singulares da sua voracidade.
+O Carlos da Botica&mdash;que o detestava&mdash;costumava
+dizer, sempre que o via sahir depois da s&eacute;sta, com
+a face afogueada de sangue, muito enfartado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; vai a giboia esmoer. Um dia estoura!
+<br />
+
+<br />
+
+Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe&mdash;&aacute;
+hora em que defronte, na casa do dr. Godinho
+que fazia annos, se polkava com alarido. Ninguem
+o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em
+<span class="pagenum">[2]</span>
+geral n&atilde;o era estimado. Era um alde&atilde;o; tinha os
+modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos
+nos ouvidos, palavras muito rudes.
+<br />
+
+<br />
+
+Nunca f&ocirc;ra querido das devotas: arrotava no confessionario;
+e, tendo vivido sempre em freguezias da
+aldeia ou da serra, n&atilde;o comprehendia certas sensibilidades
+requintadas da devo&ccedil;&atilde;o: perdera por isso,
+logo ao principio, quasi todas as confessadas, que tinham
+passado para o polido padre Gusm&atilde;o, t&atilde;o
+cheio de <em>labia</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam
+fallar de escrupulos, de vis&otilde;es, Jos&eacute; Migueis
+escandalisava-as,
+rosnando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora historias, santinha! Pe&ccedil;a juizo a Deus!
+Mais mi&ocirc;lo na bola!
+<br />
+
+<br />
+
+As exagera&ccedil;&otilde;es dos jejuns sobretudo irritavam-no:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe
+e beba-lhe, creatura!
+<br />
+
+<br />
+
+Era miguelista&mdash;e os partidos liberaes, as suas
+opini&otilde;es, os seus jornaes enchiam-no d'uma c&oacute;lera
+irracionavel:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu
+enorme guardasol vermelho.
+<br />
+
+<br />
+
+Nos ultimos annos tom&aacute;ra habitos sedentarios e
+vivia isolado&mdash;com uma criada velha e um c&atilde;o, o
+<em>Joli</em>. O seu unico amigo era o
+chantre Valladares
+que governava ent&atilde;o o bispado, porque o senhor
+bispo D. Joaquim gemia, havia dois annos, o seu
+rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho
+tinha um grande respeito pelo chantre, homem s&ecirc;cco,
+<span class="pagenum">[3]</span>
+de grande nariz, muito curto de vista, admirador
+d'Ovidio&mdash;que fallava fazendo sempre boquinhas
+e com allus&otilde;es mythologicas.
+<br />
+
+<br />
+
+O chantre estimava-o. Chamava-lhe <em>Frei
+Hercules</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Hercules</em> pela for&ccedil;a,
+explicava sorrindo, <em>Frei</em>
+pela gula.
+<br />
+
+<br />
+
+No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova;
+e, como costumava offerecer-lhe todos os dias
+rap&eacute; da sua caixa d'ouro, disse aos outros conegos,
+baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caix&atilde;o, segundo
+o ritual, o primeiro torr&atilde;o de terra:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a ultima pitada que lhe dou!
+<br />
+
+<br />
+
+Todo o cabido riu muito com esta gra&ccedil;a do senhor
+governador do bispado; o conego Campos contou-a
+&aacute; noite ao ch&aacute; em casa do deputado Novaes;
+foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram
+as virtudes do chantre, e affirmou-se com
+respeito&mdash;<em>que
+sua excellencia tinha muita pilheria!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+Dias depois do enterro appareceu, errando pela
+Pra&ccedil;a, o c&atilde;o do parocho, o
+<em>Joli</em>. A criada entr&aacute;ra
+com sez&otilde;es no hospital; a casa f&ocirc;ra fechada; o
+c&atilde;o,
+abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era
+um g&ocirc;so pequeno, extremamente gordo,&mdash;que tinha
+vagas semelhan&ccedil;as com o parocho. Com o habito
+das batinas, avido d'um dono, apenas via um
+padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum
+queria o infeliz <em>Joli</em>; enxotavam-no
+com as
+ponteiras dos guardasoes; o c&atilde;o, repellido como
+um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma
+<span class="pagenum">[4]</span>
+manh&atilde; appareceu morto ao p&eacute; da Misericordia; a
+carro&ccedil;a
+do estrume levou-o e, como ninguem tornou a
+v&ecirc;r o c&atilde;o na Pra&ccedil;a, o parocho
+Jos&eacute; Migueis foi definitivamente
+esquecido.
+<br />
+
+<br />
+
+Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava
+nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem
+muito novo, sahido apenas do seminario. O seu
+nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a
+influencias politicas, e o jornal de Leiria, <em>A Voz do
+Districto</em>, que estava na
+opposi&ccedil;&atilde;o, fallou com amargura,
+citando o Golgotha, no <em>favoritismo da
+c&ocirc;rte</em> e
+na <em>reac&ccedil;&atilde;o
+clerical</em>. Alguns padres tinham-se escandalisado
+com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente,
+diante do senhor chantre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, l&aacute; que ha favor, ha; e que
+o homem
+tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem
+me escreveu para a confirma&ccedil;&atilde;o foi o Brito
+Correia
+(Brito Correia era ent&atilde;o ministro da justi&ccedil;a).
+At&eacute;
+me diz na carta que o parocho &eacute; um bello rapag&atilde;o.
+De sorte que&mdash;acrescentou sorrindo com
+satisfa&ccedil;&atilde;o&mdash;depois
+de <em>Frei Hercules</em> vamos talvez ter
+<em>Frei
+Apollo</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Em Leiria havia s&oacute; uma pessoa que conhecia o
+parocho novo: era o conego Dias que f&ocirc;ra, nos primeiros
+annos do seminario, seu mestre de Moral. No
+seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz
+franzino, acanhado, cheio de espinhas carnaes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece que o estou a v&ecirc;r com a batina muito
+co&ccedil;ada e cara de quem tem lombrigas!... De resto
+bom rapaz. E espertote...
+<span class="pagenum">[5]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias era muito conhecido em Leiria.
+Ultimamente engord&aacute;ra, o ventre saliente enchia-lhe
+a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas,
+o bei&ccedil;o espesso faziam lembrar velhas anecdotas
+de frades lascivos e glot&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Patricio, o <em>antigo</em>, negociante
+da Pra&ccedil;a,
+muito liberal, e que quando passava pelos padres
+rosnava como um velho c&atilde;o de fila, dizia &aacute;s vezes
+ao v&ecirc;l-o atravessar a Pra&ccedil;a, pesado, ruminando a
+digest&atilde;o, encostado ao guardachuva:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que maroto! Parece mesmo D. Jo&atilde;o VI!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego vivia s&oacute; com uma irm&atilde; velha, a snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam
+tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um
+chale tingido de negro e arrastando pesadamente as
+suas chinelas de ourelo. O conego Dias passava por
+ser rico; trazia ao p&eacute; de Leiria propriedades arrendadas,
+dava jantares com per&uacute;, e tinha
+reputa&ccedil;&atilde;o o
+seu vinho <em>duque</em> de 1815. Mas o facto
+saliente da
+sua vida&mdash;o facto commentado e murmurado&mdash;era
+a sua antiga amizade com a snr.<sup>a</sup> Augusta
+Caminha,
+a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural
+de S. Jo&atilde;o da Foz. A S. Joanneira morava na rua da
+Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma filha, a
+Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita,
+forte, muito desejada.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias mostr&aacute;ra um grande contentamento
+com a nomea&ccedil;&atilde;o de Amaro Vieira. Na botica
+do Carlos, na Pra&ccedil;a, na sacristia da S&eacute; exaltou
+os
+seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de
+<span class="pagenum">[6]</span>
+costumes, a sua obediencia: gabava-lhe mesmo a
+voz: &laquo;<em>um timbre que &eacute; um
+regalo!</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para um bocado de sentimento nos serm&otilde;es
+da Semana Santa est&aacute; a calhar!
+<br />
+
+<br />
+
+Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma
+conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!
+<br />
+
+<br />
+
+E um dia, emfim, mostrou com satisfa&ccedil;&atilde;o ao
+coadjutor
+da S&eacute;, creatura servil e calada, uma carta que
+recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma tarde de agosto e passeavam ambos
+para os lados da Ponte Nova. Andava ent&atilde;o a construir-se
+a estrada da Figueira: o velho passadi&ccedil;o
+de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido,
+j&aacute; se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada,
+com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e
+atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas
+por quest&otilde;es de expropria&ccedil;&atilde;o; ainda se
+via o
+lodoso caminho da freguezia de Marrazes, que a estrada
+nova devia desbastar e encorporar; camadas
+de cascalho cobriam o ch&atilde;o; e os grossos cylindros
+de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se
+na terra negra e humida das chuvas.
+<br />
+
+<br />
+
+Em roda da Ponte a paizagem &eacute; larga e tranquilla.
+Para o lado d'onde o rio vem s&atilde;o collinas
+baixas, de f&oacute;rmas arredondadas, cobertas da rama
+verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura
+dos arvoredos, est&atilde;o os casaes que d&atilde;o
+&aacute;quelles logares melancolicos uma
+fei&ccedil;&atilde;o mais viva
+e humana&mdash;com as suas alegres paredes caiadas
+que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela
+<span class="pagenum">[7]</span>
+tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados.
+Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas
+terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos,
+estende-se at&eacute; os primeiros areaes o campo de
+Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas abundantes,
+cheio de luz. Da Ponte pouco se v&ecirc; da cidade;
+apenas uma esquina das cantarias pesadas e
+jesuiticas da S&eacute;, um canto do muro do cemiterio
+coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos
+cyprestes; o resto est&aacute; escondido pelo duro monte
+ouri&ccedil;ado de vegeta&ccedil;&otilde;es rebeldes, onde
+destacam as
+ruinas do Castello, todas envolvidas &aacute; tarde nos largos
+v&ocirc;os circulares dos mochos, desmanteladas e com
+um grande ar historico.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao p&eacute; da Ponte, uma rampa desce para a alameda
+que se estende um pouco &aacute; beira do rio. &Eacute;
+um logar recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe
+a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar,
+fallando baixo, o conego consultava o coadjutor
+sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre &laquo;uma id&eacute;a
+que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De
+mestre!&raquo; Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse
+uma casa de aluguel, barata, bem situada,
+e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de
+quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. &laquo;Bem
+v&ecirc; o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era
+isto o que verdadeiramente me convinha; eu n&atilde;o
+quero luxos, est&aacute; claro: um quarto e uma saleta seria
+o bastante. O que &eacute; necessario &eacute; que a casa seja
+respeitavel, socegada, central; que a patr&ocirc;a tenha
+<span class="pagenum">[8]</span>
+bom genio e que n&atilde;o pe&ccedil;a mundos e fundos; deixo
+tudo isto &aacute; sua prudencia e capacidade, e creia que
+todos estes favores n&atilde;o cahir&atilde;o em terreno
+ingrato.
+Sobretudo que a patr&ocirc;a seja pessoa accommodada e
+de boa lingua.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Ora a minha id&eacute;a, amigo Mendes, &eacute; esta:
+mett&ecirc;l-o
+em casa da S. Joanneira! resumiu o conego
+com um grande contentamento. &Eacute; rica id&eacute;a, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Soberba id&eacute;a! disse o coadjutor com a sua voz
+servil.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada
+e o outro quarto que p&oacute;de servir de escriptorio. Tem
+boa mobilia, boas roupas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego continuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um bello negocio para a S. Joanneira: dando
+os quartos, roupas, comida, criada, p&oacute;de muito
+bem pedir os seus seis tost&otilde;es por dia. E depois
+sempre tem o parocho de casa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Por causa da Ameliasinha &eacute; que eu n&atilde;o sei,
+considerou timidamente o coadjutor. Sim, p&oacute;de ser
+reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor
+parocho &eacute; ainda novo... Vossa senhoria sabe o que
+s&atilde;o linguas do mundo.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego tinha parado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora historias! Ent&atilde;o o padre Joaquim n&atilde;o vive
+debaixo das mesmas telhas com a afilhada da m&atilde;i?
+E o conego Pedroso n&atilde;o vive com a cunhada, e uma
+irm&atilde; da cunhada, que &eacute; uma rapariga de dezenove
+annos? Ora essa!
+<span class="pagenum">[9]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu dizia... attenuou o coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o vejo mal nenhum. A S. Joanneira
+aluga os seus quartos, &eacute; como se fosse uma hospedaria.
+Ent&atilde;o o secretario geral n&atilde;o esteve l&aacute;
+uns
+poucos de mezes?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias!
+exclamou o conego. E parando, com uma attitude
+confidencial:&mdash;E depois a mim &eacute; que me convinha,
+Mendes! A mim &eacute; que me convinha, meu amigo!
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse,
+baixando a voz:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, vossa senhoria faz muito bem &aacute; S. Joanneira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fa&ccedil;o o que posso, meu caro amigo, fa&ccedil;o o que
+posso, disse o conego. E com uma entona&ccedil;&atilde;o terna,
+risonhamente paternal:&mdash;que ella &eacute; merecedora, &eacute;
+merecedora. Boa at&eacute; alli, meu amigo!&mdash;Parou, esgazeando
+os olhos:&mdash;Olhe que dia em que eu n&atilde;o
+lhe appare&ccedil;a pela manh&atilde; &aacute;s nove em
+ponto, est&aacute;
+n'um phrenesi! &laquo;Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora
+rala-se sem raz&atilde;o.&raquo; Mas ent&atilde;o,
+&eacute; aquillo! Pois quando
+eu tive a colica o anno passado! Emmagreceu, snr.
+Mendes! E depois n&atilde;o ha lembran&ccedil;a que
+n&atilde;o tenha!
+Agora, pela matan&ccedil;a do porco, o melhor do animal
+&eacute; para o <em>padre santo</em>,
+voss&ecirc; sabe? &eacute; como ella
+me chama.
+<br />
+
+<br />
+
+Fallava com os olhos luzidios, uma satisfa&ccedil;&atilde;o
+babosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, Mendes! acrescentou, &eacute; uma rica mulher!
+<span class="pagenum">[10]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; isso! exclamou o conego parando outra
+vez. L&aacute; isso! Bem conservada at&eacute; alli! Pois olhe
+que j&aacute; n&atilde;o &eacute; crian&ccedil;a! Mas
+nem um cabello branco,
+nem um, nem um s&oacute;! E ent&atilde;o que c&ocirc;r de
+pelle!&mdash;E
+mais baixo, com um sorriso guloso:&mdash;E isto
+aqui! &oacute; Mendes, e isto aqui!&mdash;Indicava o lado do
+pesco&ccedil;o debaixo do queixo, passando-lhe devagar
+por cima a sua m&atilde;o papuda:&mdash;&Eacute; uma
+perfei&ccedil;&atilde;o! E
+depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que
+lembran&ccedil;asinhas! N&atilde;o ha dia que me n&atilde;o
+mande o
+seu presente! &eacute; o covilhete de geleia, &eacute; o
+pratinho
+d'arroz d&ocirc;ce, &eacute; a bella murcella d'Arouca! Hontem
+me mandou ella uma torta de ma&ccedil;&atilde;. Ora havia
+de voss&ecirc; v&ecirc;r aquillo! A ma&ccedil;&atilde;
+parecia um creme! At&eacute;
+a mana Josepha disse: &laquo;Est&aacute; t&atilde;o boa que
+parece
+que foi cozida em agua benta!&raquo;&mdash;E pondo a m&atilde;o
+espalmada sobre o peito:&mdash;S&atilde;o coisas que tocam a
+gente c&aacute; por dentro, Mendes! N&atilde;o, n&atilde;o
+&eacute; l&aacute; por dizer,
+mas n&atilde;o ha outra.
+<br />
+
+<br />
+
+O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu bem sei, disse o conego parando de novo
+e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que
+por ahi rosnam, rosnam... Pois &eacute; uma grandissima
+calumnia! O que &eacute;, &eacute; que eu tenho muito
+ap&ecirc;go
+&aacute;quella gente. J&aacute; o tinha em tempo do marido.
+Voss&ecirc;
+bem o sabe, Mendes.
+<br />
+
+<br />
+
+O coadjutor teve um gesto affirmativo.
+<span class="pagenum">[11]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A S. Joanneira &eacute; uma pessoa de bem! olhe
+que &eacute; uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o
+conego batendo no ch&atilde;o fortemente com a ponteira
+do guardasol.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As linguas do mundo s&atilde;o venenosas, senhor
+conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E
+depois d'um silencio acrescentou baixo:&mdash;Mas aquillo
+a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois ahi est&aacute;, meu amigo! Imagine voss&ecirc; que
+desde que o secretario geral se foi embora a pobre
+da mulher tem tido a casa vazia: eu &eacute; que tenho
+dado para a panella, Mendes!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que ella tem uma fazendita, considerou o
+coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma
+nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes!
+Por isso digo eu, o parocho &eacute; uma mina. Com os
+seis tost&otilde;es que elle der, com o que eu ajudar, com
+alguma coisa que ella tire da hortali&ccedil;a que vende
+da fazenda, j&aacute; se governa. E para mim &eacute; um
+allivio,
+Mendes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida;
+o alto c&eacute;o tinha uma pallida c&ocirc;r azul; o ar estava
+immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; peda&ccedil;os
+de areia reluziam em s&ecirc;cco; e a agua baixa
+arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada
+do ro&ccedil;ar dos seixos.
+<br />
+
+<br />
+
+Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram
+<span class="pagenum">[12]</span>
+ent&atilde;o pelo caminho lodoso que do outro lado
+do rio, defronte da alameda, corre junto d'um silvado;
+entraram no rio devagar, e estendendo o pesco&ccedil;o
+pellado da canga, bebiam de leve, sem ruido;
+a espa&ccedil;os erguiam a cabe&ccedil;a bondosa, olhavam em
+redor com a passiva tranquillidade dos s&ecirc;res fartos&mdash;e
+fios de agua, babados, luzidios &aacute; luz, pendiam-lhes
+dos cantos do focinho. Com a inclina&ccedil;&atilde;o do sol
+a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se
+as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas
+ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens
+c&ocirc;r de sanguinea e c&ocirc;r de laranja que annunciam
+o calor faziam, sobre os lados do mar, uma
+decora&ccedil;&atilde;o
+muito rica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bonita tarde! disse o coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o
+bocejo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamo-nos chegando &aacute;s Ave-Marias, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias
+da S&eacute;, o conego parou, e voltando-se para o
+coadjutor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois est&aacute; decidido, amigo Mendes, ferro o
+Amaro na casa da S. Joanneira! &Eacute; uma pechincha
+para todos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma grande pechincha! disse respeitosamente
+o coadjutor. Uma grande pechincha!
+<br />
+
+<br />
+
+E entraram na igreja, persignando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+II
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma semana depois soube-se que o novo parocho
+devia chegar pela diligencia de Ch&atilde;o de
+Ma&ccedil;&atilde;s,
+que traz o correio &aacute; tarde; e desde as seis horas o
+conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do
+Chafariz, &aacute; espera de Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Era ent&atilde;o nos fins de agosto. Na longa alameda
+macadamisada que vai junto do rio, entre os dois
+renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos
+claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na
+correnteza de casebres pobres, velhas fiavam &aacute; porta;
+crian&ccedil;as sujas brincavam pelo ch&atilde;o, mostrando
+os seus enormes ventres n&uacute;s; e gallinhas em redor
+iam picando vorazmente as immundicies esquecidas.
+Em redor do chafariz cheio de ruido, onde os cantaros
+<span class="pagenum">[14]</span>
+arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com
+a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam,
+meneando a chibata de junco; com o seu cantaro
+bojudo de barro equilibrado &aacute; cabe&ccedil;a sobre a
+rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os
+quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada
+sobre o estomago, conversavam, esperando,
+<em>a v&ecirc;r quem viria</em>. A
+diligencia tardava. Quando o
+crepusculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do
+santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando
+uma a uma, com uma luz soturna, as janellas
+do hospital.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; tinha anoitecido quando a diligencia, com as
+lanternas accesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado
+dos seus magros cavallos brancos, e veio parar
+ao p&eacute; do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz;
+o caixeiro do tio Patricio partiu logo a correr para
+a Pra&ccedil;a com o ma&ccedil;o dos <em>Diarios
+Populares</em>; o tio
+Baptista, o patr&atilde;o, com o cachimbo negro ao canto
+da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente;
+e um homem que vinha na almofada, ao p&eacute; do cocheiro,
+de chap&eacute;o alto e comprido capote ecclesiastico,
+desceu cautelosamente, agarrando-se &aacute;s guardas de
+ferro dos assentos, bateu com os p&eacute;s no ch&atilde;o para
+os desentorpecer, e olhou em redor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado,
+oh, ladr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria.
+E abra&ccedil;aram-se, emquanto o coadjutor, todo curvado,
+tinha o barrete na m&atilde;o.
+<span class="pagenum">[15]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas
+viram atravessar a Pra&ccedil;a, entre a corpulencia vagarosa
+do conego Dias e a figura esguia do coadjutor,
+um homem um pouco curvado, com um capote de padre.
+Soube-se que era o parocho novo; e disse-se logo
+na botica que era <em>uma boa figura de
+homem</em>. O Jo&atilde;o
+Bicha levava adiante um bah&uacute; e um sacco de chita;
+e como &aacute;quella hora j&aacute; estava bebedo, ia
+resmungando
+o <em>Bemdito</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Eram quasi nove horas, a noite cerr&aacute;ra. Em redor
+da Pra&ccedil;a as casas estavam j&aacute; adormecidas: das
+lojas debaixo da arcada sahia a luz triste dos candieiros
+de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas,
+caturrando em cavaqueira, ao balc&atilde;o. As
+ruas que vinham dar &aacute; Pra&ccedil;a, tortuosas,
+tenebrosas,
+com um lampe&atilde;o morti&ccedil;o, pareciam deshabitadas. E
+no silencio o sino da S&eacute; dava vagarosamente o toque
+das almas.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias ia explicando pachorrentamente
+ao parocho &laquo;o que lhe arranj&aacute;ra&raquo;.
+N&atilde;o lhe tinha
+procurado casa: seria necessario comprar mobilia,
+buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe
+melhor tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes
+respeitavel, de muito conchego&mdash;e n'essas
+condi&ccedil;&otilde;es
+(e alli estava o amigo coadjutor que o podia
+dizer), n&atilde;o havia como a da S. Joanneira. Era bem
+arejada, muito aceio, a cozinha n&atilde;o deitava cheiro;
+tinha l&aacute; estado o secretario geral e o inspector dos
+estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a
+bem) era uma mulher temente a Deus, de boas
+<span class="pagenum">[16]</span>
+contas, muito economica e cheia de condescendencias...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; est&aacute; alli como em sua casa! Tem o seu
+<em>cozido</em>, prato de meio,
+caf&eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamos a saber, Padre-Mestre: pre&ccedil;o? disse o
+parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seis tost&otilde;es. Que diabo, &eacute; de gra&ccedil;a!
+Tem um
+quarto, tem uma saleta...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; longe da S&eacute;? perguntou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dois passos. P&oacute;de-se ir dizer missa de chinelos.
+Na casa ha uma rapariga, continuou com a sua
+voz pausada o conego Dias. &Eacute; a filha da S. Joanneira.
+Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha
+de genio, mas bom fundo... Aqui tem v&ocirc;sse a
+sua rua.
+<br />
+
+<br />
+
+Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada
+pelas altas paredes da velha Misericordia, com um
+lampe&atilde;o lugubre ao fundo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E aqui tem voss&ecirc; o seu palacio! disse o conego,
+batendo na aldraba de uma porta esguia.
+<br />
+
+<br />
+
+No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto
+antigo, faziam saliencia, com os seus arbustos
+de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas
+de madeira; as janellas de cima, pequeninas,
+eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades,
+fazia lembrar uma lata amolgada.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma
+criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candieiro
+<span class="pagenum">[17]</span>
+de petroleo; e a figura da S. Joanneira destacava
+plenamente na luz sobre a parede caiada. Era
+gorda, alta, muito branca, d'aspecto pachorrento.
+Os seus olhos pretos tinham j&aacute; em redor a pelle engelhada;
+os cabellos arripiados, com um enfeite escarlate,
+eram j&aacute; raros aos cantos da testa e no come&ccedil;o
+da risca; mas percebiam-se uns bra&ccedil;os rechonchudos,
+um collo copioso e roupas aceadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego
+subindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muita honra em receber o senhor parocho!
+muita honra! Ha de vir muito cansado! por for&ccedil;a!
+Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.
+<br />
+
+<br />
+
+Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello,
+com um vasto canap&eacute; de palhinha encostado &agrave;
+parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta
+verde.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira.
+Para receber, para espairecer... Aqui&mdash;acrescentou
+abrindo uma porta&mdash;&eacute; o seu quarto de dormir.
+Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...&mdash;Abriu
+os gavet&otilde;es, gabou a cama batendo a elasticidade
+dos colx&otilde;es&mdash;Uma campainha para chamar
+sempre que queira... As chavinhas da commoda est&atilde;o
+aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto...
+Tem um cobertor s&oacute;, mas querendo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; bem, est&aacute; tudo muito bem, minha senhora,
+disse o parocho com a sua voz baixa e suave.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; pedir! O que ha, da melhor vontade...
+<span class="pagenum">[18]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh creatura de Deus! interrompeu o conego
+jovialmente, o que elle quer agora &eacute; cear!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as
+seis que est&aacute; o caldo a apurar...
+<br />
+
+<br />
+
+E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do
+fundo da escada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute;, <em>Ru&ccedil;a</em>,
+mexe-te, mexe-te!...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego sentou-se pesadamente no canap&eacute;, e sorvendo
+a sua pitada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; contentar, meu rico. Foi o que se p&ocirc;de
+arranjar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre,
+disse o parocho, cal&ccedil;ando os seus chinelos de ourelo.
+Olha o seminario!... E em Feir&atilde;o! Cahia-me a
+chuva na cama.
+<br />
+
+<br />
+
+Para o lado da Pra&ccedil;a, ent&atilde;o, sentiu-se o toque
+de cornetas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; aquillo? perguntou Amaro, indo &aacute; janella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute;s nove e meia, o toque de recolher.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro abriu a vidra&ccedil;a. Ao fim da rua um candieiro
+esmorecia. A noite estava muito negra. E havia
+sobre a cidade um silencio concavo, de abobada.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois das cornetas, um rufar lento de tambores
+afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janella
+um soldado, que se demor&aacute;ra n'alguma viella
+do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia
+sahia constantemente o agudo piar das
+corujas.
+<span class="pagenum">[19]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; triste isto, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a S. Joanneira gritou de cima:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P&oacute;de subir, senhor conego! Est&aacute; o caldo na
+mesa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora v&aacute;, v&aacute;, que voss&ecirc; deve estar a
+cahir de
+fome, Amaro!&mdash;disse o conego, erguendo-se muito
+pesado.
+<br />
+
+<br />
+
+E detendo um momento o parocho pela manga
+do casaco:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai voss&ecirc; v&ecirc;r o que &eacute; um caldo de
+gallinha
+feito c&aacute; pela senhora! Da gente se babar!...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro,
+a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha
+muito branca, a lou&ccedil;a, os copos reluzindo &aacute; luz
+forte d'um candieiro d'<em>abat-jour</em>
+verde. Da terrina
+subia o vapor cheiroso do caldo, e na larga travessa
+a gallinha gorda, afogada n'um arroz humido e
+branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma
+apparencia succulenta de prato morgado. No armario
+envidra&ccedil;ado, um pouco na sombra, viam-se c&ocirc;res
+claras de porcelana; a um canto, ao p&eacute; da janella,
+estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado.
+Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro
+fresco que vinha d'um taboleiro de roupa lavada, o
+parocho esfregou as m&atilde;os, regalado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a
+<span class="pagenum">[20]</span>
+S. Joanneira. D'ahi p&oacute;de-lhe vir frio.&mdash;Foi fechar
+as portadas das janellas; chegou-lhe um caix&atilde;o de
+areia para as pontas dos cigarros.&mdash;E o senhor conego
+toma um copinho de geleia, sim?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute; l&aacute;, para fazer companhia, disse jovialmente
+o conego, sentando-se e desdobrando o guardanapo.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala,
+ia admirando o parocho que, com a cabe&ccedil;a sobre o
+prato, comia em silencio o seu caldo, soprando a
+colh&eacute;r. Parecia bem feito: tinha um cabello muito
+preto, levemente annelado. O rosto era oval, de pelle
+trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas
+compridas.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, que n&atilde;o o via desde o seminario, achava-o
+mais forte, mais viril.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; era enfezadito...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me
+bem.&mdash;Contou ent&atilde;o a sua triste existencia em
+Feir&atilde;o,
+na alta Beira, durante a aspereza do inverno, s&oacute;,
+com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto,
+fazendo-o espumar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois &eacute; beber-lhe, homem! &eacute; beber-lhe! D'esta
+gota n&atilde;o pilhava voss&ecirc; no seminario.
+<br />
+
+<br />
+
+Fallaram do seminario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que ser&aacute; feito do Rabicho, o despenseiro? disse
+o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E do Car&ocirc;cho, que roubava as batatas?
+<br />
+
+<br />
+
+Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias,
+recordavam as historias de ent&atilde;o, o catarrho do reitor,
+<span class="pagenum">[21]</span>
+e o mestre de canto-ch&atilde;o que deix&aacute;ra um dia
+cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como o tempo passa, como o tempo passa!
+diziam.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira ent&atilde;o poz na mesa um prato covo
+com ma&ccedil;&atilde;s assadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva! N&atilde;o, l&aacute; n'isso tambem eu entro! exclamou
+logo o conego. A bella ma&ccedil;&atilde; assada! nunca
+me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica
+dona de casa, c&aacute; a nossa S. Joanneira! Grande dona
+de casa!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante,
+grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de
+vinho do Porto; poz no prato do conego, com requintes
+devotos, uma ma&ccedil;&atilde; desfeita polvilhada de
+assucar; e batendo-lhe nas costas com a m&atilde;o papuda
+e molle:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto &eacute; um santo, senhor parocho, isto &eacute; um
+santo!
+Ai, devo-lhe muitos favores!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe fallar, deixe fallar..., dizia o conego.&mdash;Espalhava-se-lhe
+no rosto um contentamento baboso.&mdash;Boa
+gota! acrescentou, saboreando o seu calix
+de <em>porto</em>. Boa gota!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe que ainda &eacute; dos annos da Amelia, senhor
+conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E onde est&aacute; ella, a pequena?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi ao <em>Morenal</em> com a D. Maria.
+Aquillo naturalmente
+foram para casa das Gansosos passar a
+noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C&aacute; esta senhora &eacute; proprietaria, explicou o
+conego,
+<span class="pagenum">[22]</span>
+fallando do <em>Morenal</em>. &Eacute; um
+condado!&mdash;Ria
+com bonhomia, e os seus olhos luzidios percorriam
+ternamente a corpulencia da S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, senhor parocho, deixe fallar, &eacute; uma nesga
+de terra..., disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas vendo a criada encostada &aacute; parede, sacudida
+com afflic&ccedil;&otilde;es de tosse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; mulher, vai tossir l&aacute; p'ra dentro! credo!
+<br />
+
+<br />
+
+A mo&ccedil;a sahiu, pondo o avental sobre a boca.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece doente, coitada, observou o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Muito achacada, muito!... A <em>pobre de
+Christo</em> era
+sua afilhada, orph&atilde;, e estava quasi tisica. Tinha-a
+tomado por piedade...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E tambem porque a criada que c&aacute; tinha foi para
+o hospital, a desavergonhada... Metteu-se ahi
+com um soldado!...
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro baixou devagar os olhos&mdash;e trincando
+migalhas perguntou se havia muitas doen&ccedil;as
+n'aquelle ver&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego.
+Mettem-se pelas melancias, depois tarra&ccedil;adas de
+agua... E suas febritas...
+<br />
+
+<br />
+
+Fallaram ent&atilde;o das sez&otilde;es do campo, dos ares
+de Leiria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando
+mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo,
+tenho saude, tenho!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe
+o bem que &eacute;! exclamou a S. Joanneira.&mdash;Contou immediatamente
+a grande desgra&ccedil;a que tinha em casa,
+<span class="pagenum">[23]</span>
+uma irm&atilde; meia idiota entrevada havia dez annos!
+Ia fazer sessenta annos... No inverno viera-lhe um
+catarrho, e desde ent&atilde;o, coitadinha, definhava, definhava...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque
+de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou
+mais...
+<br />
+
+<br />
+
+Continuou a fallar &laquo;d'aquella tristeza&raquo;, depois
+da sua Ameliasinha, das Gansosos, do antigo chantre,
+da carestia de tudo&mdash;sentada, com o gato no
+collo, rolando com os dois dedos, monotonamente,
+bolinhas de p&atilde;o. O conego, pesado, cerrava as palpebras;
+tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo;
+a luz do candieiro esmorecia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se,
+isto s&atilde;o horas!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos
+deu as <em>gra&ccedil;as</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho quer lamparina? perguntou
+cuidadosamente a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, minha senhora. N&atilde;o uso. Boas noites!
+<br />
+
+<br />
+
+E desceu devagar, palitando os dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro.
+Mas nos primeiros degraus o parocho parou,
+e voltando-se, affectuosamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, minha senhora, &aacute;manh&atilde;
+&eacute; sexta-feira,
+&eacute; jejum...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, acudiu o conego que se embrulhava
+na capa de lustrina, bocejando, voss&ecirc;
+&aacute;manh&atilde;
+janta commigo. Eu venho por c&aacute;, vamos ao chantre,
+<span class="pagenum">[24]</span>
+&aacute; S&eacute;, e por ahi... E olhe que tenho lulas.
+&Eacute; um milagre,
+que isto aqui nunca ha peixe.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, &eacute; escusado lembrar os jejuns, senhor parocho.
+Tenho o maior escrupulo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente
+hoje em dia ninguem cumpre...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem vossa senhoria muita raz&atilde;o, atalhou ella.
+Mas eu! credo!... A salva&ccedil;&atilde;o da minha alma antes
+de tudo!
+<br />
+
+<br />
+
+A campainha em baixo, ent&atilde;o, retiniu fortemente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira.
+Abre, <em>Ru&ccedil;a</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
+<br />
+
+<br />
+
+-&Eacute;s tu, Amelia?
+<br />
+
+<br />
+
+Uma voz disse <em>adeusinho! adeusinho!</em>
+E appareceu,
+subindo quasi a correr, com os vestidos um
+pouco apanhados adiante, uma bella rapariga, forte,
+alta, bem feita, com uma manta branca pela cabe&ccedil;a
+e na m&atilde;o um ramo de alecrim.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sobe, filha. Aqui est&aacute; o senhor parocho. Chegou
+agora &aacute; noitinha, sobe!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia tinha parado um pouco embara&ccedil;ada,
+olhando para os degraus de cima, onde o parocho
+fic&aacute;ra, encostado ao corrim&atilde;o. Respirava
+fortemente
+de ter corrido; vinha c&oacute;rada; os seus olhos vivos
+e negros luziam; e sahia d'ella uma sensa&ccedil;&atilde;o de
+frescura e de prados atravessados.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho desceu, cingido ao corrim&atilde;o, para a
+deixar passar, murmurando <em>boas
+noites!</em> com a cabe&ccedil;a
+<span class="pagenum">[25]</span>
+baixa. O conego, que descia atraz, pesadamente,
+tomou o meio da escada, diante de Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o isto s&atilde;o horas, sua br&eacute;jeira!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella teve um risinho, encolheu-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora v&aacute;-se encommendar a Deus, v&aacute;! disse
+batendo-lhe
+no rosto devagarinho com a sua m&atilde;o grossa
+e cabelluda.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois
+d'ir buscar o guardasol &aacute; saleta, sahia, dizendo
+&aacute;
+criada, que erguia o candieiro sobre a escada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; bom, eu vejo, n&atilde;o apanhes frio, rapariga.
+Ent&atilde;o &aacute;s oito, Amaro! Esteja a p&eacute;!
+Vai-te, rapariga,
+adeus! Reza &aacute; Senhora da Piedade que te seque
+essa catarrheira.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da
+cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho
+lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura
+antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu
+Breviario, ajoelhou aos p&eacute;s da cama, persignou-se;
+mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e
+ent&atilde;o por cima, sobre o tecto, atrav&eacute;s das
+ora&ccedil;&otilde;es
+rituaes que machinalmente ia lendo, come&ccedil;ou a sentir
+o <em>tic-tic</em> das botinas de Amelia e o
+ruido das
+saias engommadas que ella sacudia ao despir-se.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+III
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora
+marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do
+marquez; a m&atilde;i era criada de quarto, quasi uma amiga
+da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um
+livro, o <em>Menino das selvas</em>, com
+barbaras imagens
+coloridas, que tinha escripto na primeira pagina
+branca: <em>&Aacute; minha muito estimada criada
+Joanna
+Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,&mdash;Marqueza
+d'Alegros</em>. Possuia tambem um daguerreotypo
+de sua m&atilde;i: era uma mulher forte, de sobrancelhas
+cerradas, a boca larga e sensualmente
+fendida, e uma c&ocirc;r ardente. O pai de Amaro tinha
+morrido de apoplexia; e a m&atilde;i, que f&ocirc;ra sempre
+t&atilde;o
+s&atilde;, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge.
+Amaro complet&aacute;ra ent&atilde;o seis annos. Tinha
+<span class="pagenum">[28]</span>
+uma irm&atilde; mais velha que desde pequena vivia com
+a av&oacute; em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do
+bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganh&aacute;ra
+amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por
+uma adop&ccedil;&atilde;o tacita; e come&ccedil;ou, com
+grandes escrupulos,
+a vigiar a sua educa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A marqueza d'Alegros fic&aacute;ra viuva aos quarenta
+e tres annos e passava a maior parte do anno retirada
+na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa
+passiva, de bondade indolente, com capella em casa,
+um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre
+preoccupada dos interesses da Igreja. As suas
+duas filhas, educadas no receio do C&eacute;o e nas
+preoccupa&ccedil;&otilde;es
+da Moda, eram beatas e faziam o <em>chic</em>
+fallando
+com igual fervor da humildade christ&atilde; e do
+ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de ent&atilde;o
+dissera d'ellas:&mdash;Pensam todos os dias na
+<em>toilette</em>
+com que h&atilde;o de entrar no paraiso.
+<br />
+
+<br />
+
+No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta
+de alamedas aristocraticas onde os pav&otilde;es gritavam,
+as duas meninas enfastiavam-se. A Religi&atilde;o, a Caridade
+eram ent&atilde;o occupa&ccedil;&otilde;es avidamente
+aproveitadas:
+cosiam vestidos para os pobres da freguezia,
+bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio
+a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho
+de <em>salvar a sua alma</em>; liam os livros
+beatos
+e d&ocirc;ces; como n&atilde;o tinham S. Carlos, as visitas, a
+Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a
+virtude dos santos. Deus era o seu luxo de ver&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A senhora marqueza resolvera desde logo fazer
+<span class="pagenum">[29]</span>
+entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada
+e magrita pedia aquelle destino recolhido:
+era j&aacute; affei&ccedil;oado &aacute;s coisas de
+capella, e o seu encanto
+era estar aninhado ao p&eacute; de mulheres, no calor
+das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora
+marqueza n&atilde;o o quiz mandar ao collegio porque receava
+a impiedade dos tempos e as camaradagens
+immoraes. O capell&atilde;o da casa ensinava-lhe o latim, e
+a filha mais velha, a snr.<sup>a</sup> D. Luiza, que tinha
+um
+nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe
+li&ccedil;&otilde;es
+de francez e de geographia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro era, como diziam os criados, <em>um mosquinha
+morta</em>. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se
+&aacute; tarde acompanhava a senhora marqueza &aacute;s
+alamedas
+da quinta quando ella descia pelo bra&ccedil;o do padre
+Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia
+a seu lado, m&ocirc;no, muito encolhido, torcendo com as
+m&atilde;os humidas o forro das algibeiras&mdash;vagamente
+assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das
+relvas altas.
+<br />
+
+<br />
+
+Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina,
+ao p&eacute; d'uma ama velha. As criadas de resto
+feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no
+no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas,
+e elle rolava por entre as saias, em contacto com
+os corpos, com gritinhos de contentamento. &Aacute;s vezes,
+quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no
+de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se,
+meio n&uacute;, com os seus modos languidos, os olhos
+quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas,
+<span class="pagenum">[30]</span>
+al&eacute;m d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas
+umas com as outras: era Amaro o que <em>fazia as
+queixas</em>.
+Tornou-se enredador, muito mentiroso.
+<br />
+
+<br />
+
+Aos onze annos, ajudava &aacute; missa, e aos sabbados
+limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se
+por dentro, collocava os santos em plena luz em
+cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas
+e satisfa&ccedil;&otilde;es gulosas; e toda a manh&atilde;,
+muito atarefado,
+cantarolando o Santissimo, ia tirando a tra&ccedil;a
+dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e
+cr&eacute; as aur&eacute;olas dos Martyres.
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo,
+miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada,
+trazia sempre as m&atilde;os dos bolsos. Estava constantemente
+mettido nos quartos das criadas, remexendo
+as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algod&otilde;es
+posti&ccedil;os. Era extremamente pregui&ccedil;oso, e custava
+de manh&atilde; arrancal-o a uma somnolencia doentia
+em que ficava amollecido, todo embrulhado nos
+cobertores e abra&ccedil;ado ao travesseiro. J&aacute;
+corcovava
+um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+N'um domingo gordo, uma manh&atilde;, depois da
+missa, ao chegar-se ao terra&ccedil;o, a senhora marqueza
+de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava
+no seu testamento um legado para que Amaro, o filho
+da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no
+seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado
+<span class="pagenum">[31]</span>
+de realisar esta disposi&ccedil;&atilde;o piedosa. Amaro
+tinha ent&atilde;o treze annos.
+<br />
+
+<br />
+
+As filhas da senhora marqueza deixaram logo
+Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.<sup>a</sup>
+D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi
+mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro
+era um homem obeso, casado com a filha d'um
+pobre empregado publico, que o aceit&aacute;ra para sahir
+da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia
+fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o
+marido, as suas m&atilde;os cabelludas, a loja, o bairro e
+o seu apellido de snr.<sup>a</sup> Gon&ccedil;alves. O
+marido esse
+adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo;
+carregava-a de joias e chamava-lhe <em>a sua
+duqueza</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o encontrou alli o elemento feminino e
+carinhoso em que estivera tepidamente envolvido
+em Carcavellos. A tia quasi n&atilde;o reparava n'elle; passava
+os seus dias lendo romances, as analyses dos
+theatros nos jornaes, vestida de s&ecirc;da, coberta de
+p&oacute;
+d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em
+que passava debaixo das janellas, puxando os punhos,
+o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro
+apropriou-se ent&atilde;o de Amaro como d'uma utilidade
+imprevista, mandou-o para o balc&atilde;o. Fazia-o erguer
+logo &aacute;s cinco horas da manh&atilde;; e o rapaz tremia
+na sua jaqueta de pano azul, molhando &aacute; pressa
+o p&atilde;o na chavena de caf&eacute;, ao canto da mesa da
+cozinha.
+De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe
+o <em>cebola</em> e o tio chamava-lhe o
+<em>burro</em>. Pesava-lhes
+at&eacute; o magro peda&ccedil;o de vacca que elle comia ao
+jantar.
+<span class="pagenum">[32]</span>
+Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.
+<br />
+
+<br />
+
+Sabia j&aacute; que aos quinze annos devia entrar no
+seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem,
+burro! Em tendo quinze annos &eacute; para o
+seminario. N&atilde;o tenho obriga&ccedil;&atilde;o de
+carregar comtigo!
+Besta na argola, n&atilde;o est&aacute; nos meus principios!
+<br />
+
+<br />
+
+E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.
+<br />
+
+<br />
+
+Nunca ninguem consult&aacute;ra as suas tendencias ou
+a sua voca&ccedil;&atilde;o. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a
+sua
+natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a,
+como aceitaria uma farda. De resto n&atilde;o lhe desagradava
+<em>ser padre</em>. Desde que sahira das
+rezas perpetuas
+de Carcavellos conserv&aacute;ra o seu medo do inferno,
+mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe
+por&eacute;m os padres que vira em casa da senhora
+marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam
+ao lado das fidalgas e tomavam rap&eacute; em caixas
+d'ouro; e convinha-lhe aquella profiss&atilde;o em que se
+falla baixo com as mulheres,&mdash;vivendo entre ellas,
+cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,&mdash;e
+se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava
+o padre Liset com um annel de rubi no dedo
+minimo; monsenhor S&aacute;vedra com os seus bellos oculos
+d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de
+<em>madeira</em>.
+As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes
+chinelas. Um dia tinha visto um bispo que f&ocirc;ra padre
+na Bahia, viaj&aacute;ra, estivera em Roma, era muito
+<span class="pagenum">[33]</span>
+jovial; e na sala, com as suas m&atilde;os ungidas que cheiravam
+a agua de colonia apoiadas ao cast&atilde;o d'ouro
+da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e
+cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter,
+com a sua bella voz:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry">Mulatinha da Bahia,<br />
+
+Nascida no Capuj&aacute;...</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Um anno antes de entrar para o seminario o tio
+fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim,
+e dispensou-o de estar ao balc&atilde;o. Pela primeira
+vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia s&oacute;
+&aacute; esc&oacute;la, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o
+exercicio
+de infanteria, espreitou &aacute;s portas dos caf&eacute;s, leu
+os cartazes dos theatros. Sobretudo come&ccedil;&aacute;ra a
+reparar
+muito nas mulheres&mdash;e vinham-lhe, de tudo
+o que via, grandes melancolias. A sua hora triste
+era ao anoitecer, quando voltava da esc&oacute;la, ou aos
+domingos depois de ter ido passear com o caixeiro
+ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima,
+na trapeira, com uma janellinha n'um v&atilde;o sobre os
+telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da
+cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de
+pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de l&aacute;,
+um rumor indefinido: era a vida que n&atilde;o conhecia
+e que julgava maravilhosa, com caf&eacute;s abrazados de
+luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de s&ecirc;das
+pelos perystillos dos theatros; perdia-se em
+imagina&ccedil;&otilde;es
+vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo
+negro da noite f&oacute;rmas femininas, por fragmentos,
+<span class="pagenum">[34]</span>
+uma perna com botinas de duraque e a meia muito
+branca, ou um bra&ccedil;o roli&ccedil;o arrega&ccedil;ado
+at&eacute; ao hombro...
+Mas em baixo, na cozinha, a criada come&ccedil;ava
+a lavar a lou&ccedil;a, cantando: era uma rapariga gorda,
+muito sardenta; e vinham-lhe ent&atilde;o desejos de descer,
+ir ro&ccedil;ar-se por ella, ou estar a um canto a v&ecirc;l-a
+escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres
+que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas,
+passeando em cabello, com botinas cambadas:
+e, da profundidade do seu s&ecirc;r, subia-lhe uma
+pregui&ccedil;a,
+como que a vontade de abra&ccedil;ar alguem, de n&atilde;o
+se sentir s&oacute;. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se.
+Mas o tio chamava-o de baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o tu n&atilde;o estudas, mariola?
+<br />
+
+<br />
+
+E d'ahi a pouco, sobre o <em>Tito-Livio</em>,
+cabeceando
+de somno, sentindo-se desgra&ccedil;ado, ro&ccedil;ando os
+joelhos
+um contra o outro, torturava o diccionario.
+<br />
+
+<br />
+
+Por esse tempo come&ccedil;ava a sentir um certo afastamento
+pela vida de padre, <em>porque n&atilde;o poderia
+casar</em>.
+J&aacute; as convivencias da esc&oacute;la tinham introduzido
+na sua natureza effeminada curiosidades,
+corrup&ccedil;&otilde;es.
+&Aacute;s escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava
+mais amarello.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos
+corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas
+tristes, os quartos estreitos e gradeados, as
+batinas negras, o silencio regulamentado, o toque
+<span class="pagenum">[35]</span>
+das sinetas&mdash;deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada.
+Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito
+agradou. Come&ccedil;aram a tratal-o por
+<em>tu</em>, a admittil-o,
+durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo,
+&aacute;s conversas em que se contavam anecdotas
+dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente
+se lamentavam as melancolias da clausura: porque
+quasi todos fallavam com saudade das existencias livres
+que tinham deixado: os da aldeia n&atilde;o podiam
+esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas
+cheias de cantigas e de abra&ccedil;os, as filas da boiada
+que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados;
+os que vinham das pequenas villas lamentavam
+as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram
+as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes
+aventuras do tempo em que se estuda latim. N&atilde;o
+lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas
+arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o
+monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos
+corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam
+as medita&ccedil;&otilde;es da manh&atilde; e se estudavam
+&aacute; noite
+as li&ccedil;&otilde;es; e invejavam todos os destinos livres
+ainda
+os mais humildes&mdash;o almocreve que viam passar na
+estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia
+cantarolando ao aspero chiar das rodas, e at&eacute; os
+mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o
+seu alforge escuro.
+<br />
+
+<br />
+
+Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada;
+&aacute; tardinha uma diligencia costumava passar,
+levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao
+<span class="pagenum">[36]</span>
+trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros
+alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados,
+sopravam o fumo dos charutos; quantos
+olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando
+com elles para as alegres villas e para as cidades,
+pela frescura das madrugadas ou sob a claridade
+das estrellas!
+<br />
+
+<br />
+
+E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortali&ccedil;a,
+quando o regente de voz grossa come&ccedil;ava a
+l&ecirc;r monotonamente as cartas d'algum missionario da
+China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades
+dos jantares de familia! As boas postas de peixe!
+o tempo da matan&ccedil;a! os roj&otilde;es quentes que chiam
+no prato! os sarrabulhos cheirosos!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o deixava coisas queridas: vinha da brutalidade
+do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de
+p&oacute; d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a
+ter saudades dos seus passeios aos domingos, da
+claridade do gaz e das voltas da esc&oacute;la com os livros
+n'uma correia, quando parava encostado &aacute; vitrina
+das lojas a contemplar a nudez das bonecas!
+<br />
+
+<br />
+
+Lentamente, por&eacute;m, com a sua natureza incaracteristica,
+foi entrando como uma ovelha indolente na regra do
+seminario. Decorava com regularidade os
+seus compendios; tinha uma exactid&atilde;o prudente nos
+servi&ccedil;os ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se
+muito baixo diante dos lentes&mdash;chegou a ter
+boas notas.
+<br />
+
+<br />
+
+Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar
+o seminario com beatitude e maceravam os joelhos,
+<span class="pagenum">[37]</span>
+ruminando, com a cabe&ccedil;a baixa, textos da
+<em>Imita&ccedil;&atilde;o</em>
+ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos
+em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recr&eacute;io,
+ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de
+<em>Louvores a Maria</em>; e cumpriam com
+delicia as regras
+mais miudas&mdash;at&eacute; subir s&oacute; um degrau de cada vez,
+como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario
+dava um ante-gosto do c&eacute;o: a elle s&oacute; lhe
+offerecia
+as humilha&ccedil;&otilde;es d'uma pris&atilde;o, com os
+tedios
+d'uma esc&oacute;la.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o comprehendia tambem os ambiciosos: os que
+queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas
+dos pa&ccedil;os episcopaes erguer os reposteiros de
+velho damasco; os que desejavam viver nas cidades
+depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica,
+e, diante das devotas ricas que se accumulam no
+<em>frou-frou</em>
+das s&ecirc;das sobre o tapete do altar-m&oacute;r, cantar
+com voz sonora. Outros sonhavam at&eacute; destinos f&oacute;ra
+da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas
+ruas lageadas o <em>tlim-tlim</em> d'um
+sabre; ou a farta vida
+da lavoura, e desde a madrugada, com um chap&eacute;o
+desabado e bem montados, trotar pelos caminhos,
+dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear
+&aacute; porta das adegas. E, a n&atilde;o ser alguns devotos,
+todos,
+ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares,
+queriam deixar a estreiteza do seminario para
+comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o desejava nada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente.
+<span class="pagenum">[38]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+No entretanto, escutando por sympathia aquelles
+para quem o seminario era o &laquo;tempo das
+gal&eacute;s&raquo;, sahia
+muito perturbado d'aquellas conversas cheias de
+impaciente ambi&ccedil;&atilde;o da vida livre. &Aacute;s
+vezes fallavam
+de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas,
+as peripecias da noite negra pelos negros caminhos:
+anteviam balc&otilde;es de tabernas onde se bebe, salas
+de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava
+todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se
+sem dormir e, no fundo das suas imagina&ccedil;&otilde;es
+e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa,
+o desejo da Mulher.
+<br />
+
+<br />
+
+Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada
+de estrellas, pousada sobre a esphera, com o
+olhar errante pela luz immortal, calcando aos p&eacute;s a
+serpente. Amaro voltava-se para ella como para um
+refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a
+contemplar a lithographia, esquecia a santidade da
+Virgem, via apenas diante de si uma linda mo&ccedil;a loura;
+amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez
+lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava
+erguer as pregas castas da tunica azul da imagem
+e supp&ocirc;r f&oacute;rmas, redondezas, uma carne branca...
+Julgava ent&atilde;o v&ecirc;r os olhos do Tentador luzir na
+escurid&atilde;o
+do quarto; aspergia a cama d'agua benta;
+mas n&atilde;o se atrevia a revelar estes delirios, no
+confessionario,
+ao domingo.
+<br />
+
+<br />
+
+Quantas vezes ouvira, nas pr&eacute;dicas, o mestre de
+Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado,
+comparal-o &aacute; serpente e, com palavras unctuosas e
+<span class="pagenum">[39]</span>
+gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a
+pompa mell&iacute;flua dos seus periodos, aconselhar os
+seminaristas
+a que, imitando a Virgem, calcassem aos
+p&eacute;s a <em>serpente ominosa</em>! E
+depois era o mestre de
+Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rap&eacute;,
+no dever de <em>vencer a Natureza</em>! E
+citando S. Jo&atilde;o de
+Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo,
+explicava os anathemas dos santos contra a Mulher,
+a quem chamava, segundo as express&otilde;es da
+Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do
+inferno, Cabe&ccedil;a do crime, Escorpi&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E como disse o nosso padre S. Jeronymo,&mdash;e
+assoava-se estrondosamente&mdash;Caminho de iniquidades,
+<em>iniquitas via</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+At&eacute; nos compendios encontrava a
+preoccupa&ccedil;&atilde;o da
+Mulher! Que s&ecirc;r era esse, pois, que atrav&eacute;s de
+toda
+a theologia ora era collocada sobre o altar como a
+Rainha da Gra&ccedil;a, ora amaldi&ccedil;oada com apostrophes
+barbaras? Que poder era o seu, que a legi&atilde;o dos
+santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paix&atilde;o
+extatica, dando-lhe por acclama&ccedil;&atilde;o o profundo
+reino dos c&eacute;os,&mdash;ora vai fugindo diante d'ella como
+do Universal Inimigo, com solu&ccedil;os de terror e
+gritos d'odio, e escondendo-se, para a n&atilde;o v&ecirc;r,
+nas
+thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal
+de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas
+perturba&ccedil;&otilde;es!
+ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente:
+e j&aacute; antes de fazer os seus votos desfallecia
+no desejo de os quebrar.
+<br />
+
+<br />
+
+E em redor d'elle sentia iguaes rebelli&otilde;es da
+<span class="pagenum">[40]</span>
+natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam
+domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro
+os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um
+ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam
+eram os sanguineos, t&atilde;o doloridamente apertados na
+Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos
+das camisas. Assim, quando estavam s&oacute;s, o
+temperamento irrompia: luctavam, faziam for&ccedil;as,
+provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza
+comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios
+molles: desforravam-se ent&atilde;o no amor dos pequenos
+v&iacute;cios: jogar com um velho baralho, l&ecirc;r um
+romance, obter de intrigas demoradas um ma&ccedil;o de
+cigarros&mdash;quantos encantos do peccado!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao
+menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente,
+escrevinhavam notas no silencio da alta livraria,
+eram respeitados, usavam oculos, tomavam
+rap&eacute;. Elle mesmo tinha &aacute;s vezes
+ambi&ccedil;&otilde;es repentinas
+da sciencia; mas diante dos vastos
+<em>in-folios</em> vinha-lhe
+um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto:
+rezava, tinha f&eacute; illimitada em certos santos, um
+terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do
+seminario! A capella, os chor&otilde;es do pateo, as comidas
+monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros
+dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada:
+parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse
+na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal,
+f&oacute;ra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha
+suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois
+<span class="pagenum">[41]</span>
+do servi&ccedil;o pesado da Semana Santa, como come&ccedil;avam
+os calores, entrou na enfermaria com uma febre
+nervosa.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus;
+e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario,
+esta carta do snr. padre Liset:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Meu querido filho e novo collega.&mdash;Agora que
+est&aacute; ordenado, entendo em minha consciencia que
+devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios,
+pois quero cumprir at&eacute; ao fim o encargo com que
+carregou os meus hombros debeis a nossa chorada
+marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o
+legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens
+mundanos pouco deviam importar a uma alma votada
+ao sacerdocio, s&atilde;o sempre as boas contas que fazem
+os bons amigos. Saber&aacute;, pois, meu querido filho,
+que o legado da querida marqueza&mdash;para quem deve
+erguer em sua alma uma gratid&atilde;o eterna&mdash;est&aacute;
+inteiramente exhausto. Aproveito esta occasi&atilde;o para
+lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia,
+tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um
+caminho que o respeito me impede de qualificar:
+cahiu sob o imperio das paix&otilde;es, e tendo-se ligado
+illegitimamente,
+viu os seus bens perdidos juntamente
+com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de
+hospedes na rua dos Calafates n.&ordm; 53. Se toco n'estas
+impurezas, t&atilde;o improprias de que um tenro levita
+<span class="pagenum">[42]</span>
+como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento,
+&eacute; porque lhe quero dar cabal rela&ccedil;&atilde;o
+da sua
+respeitavel familia. Sua irm&atilde;, como decerto sabe,
+casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento
+n&atilde;o &eacute; o ouro que devemos apreciar, &eacute;
+todavia importante,
+para futuras circumstancias, que o meu querido
+filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu
+o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos
+para a freguezia de Feir&atilde;o, na Gralheira,
+vou fallar com algumas pessoas importantes que t&ecirc;m
+a extrema bondade de attender um pobre padre que
+s&oacute; pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir.
+Persevere, meu querido filho, nos caminhos
+da virtude, de que sei que a sua boa alma est&aacute; repleta,
+e creia que se encontra a felicidade n'este nosso
+santo ministerio quando sabemos comprehender
+quantos s&atilde;o os balsamos que derrama no peito e quantos
+os refrigerios que d&aacute;&mdash;o servi&ccedil;o de Deus! Adeus,
+meu querido filho e novo collega. Creia que sempre
+o meu pensamento estar&aacute; com o pupillo da nossa
+chorada marqueza, que decerto do c&eacute;o, onde a elevaram
+as suas virtudes, supplica &aacute; Virgem, que ella
+tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.&raquo;
+<em>Liset</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;P. S.&mdash;O appellido do marido de sua irm&atilde;
+&eacute;
+Trigoso.&raquo; <em>Liset</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho
+de Feir&atilde;o, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve
+alli desde outubro at&eacute; ao fim das neves.
+<br />
+
+<br />
+
+Feir&atilde;o &eacute; uma parochia pobre de pastores e
+<span class="pagenum">[43]</span>
+n'aquella &eacute;poca quasi deshabitada. Amaro passou o
+tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio &aacute; lareira,
+ouvindo f&oacute;ra o inverno bramir na serra. Pela primavera
+vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria
+parochias populosas, com boas congruas. Amaro
+escreveu logo &aacute; irm&atilde; contando a sua pobreza em
+Feir&atilde;o; ella mandou-lhe, com
+recommenda&ccedil;&otilde;es de
+economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer.
+Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos
+da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava
+robusto, direito, sympathico, com uma boa c&ocirc;r na
+pelle trigueira.
+<br />
+
+<br />
+
+Logo que chegou a Lisboa foi &aacute; rua dos Calafates
+n.&ordm; 53, a casa da tia: achou-a velha, com la&ccedil;os
+vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de p&oacute;
+d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria
+piedosa que abriu os seus magros bra&ccedil;os a Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+-Como est&aacute;s bonito! Ora n&atilde;o ha! Quem te viu!
+Ih, Jesus! que mudan&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+Admirava-lhe a batina, a cor&ocirc;a: e contando-lhe
+as suas desgra&ccedil;as, com exclama&ccedil;&otilde;es
+sobre a salva&ccedil;&atilde;o
+da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o
+levando para o terceiro andar, a um quarto que dava
+para o sagu&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E
+baratinho!... Ai! ter-te de gra&ccedil;a queria eu, mas...
+Tenho sido muito infeliz, Jo&atilde;osinho!... Ai! desculpa,
+Amaro! Estou sempre com o Jo&atilde;osinho na cabe&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset
+em S. Luiz. Tinha ido para Fran&ccedil;a. Lembrou-se
+ent&atilde;o
+<span class="pagenum">[44]</span>
+da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros,
+a snr.<sup>a</sup> D. Luiza, que estava casada com o conde
+de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia,
+regenerador fiel desde cincoenta e um e duas
+vezes ministro do reino.
+<br />
+
+<br />
+
+E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o
+seu requerimento, foi uma manh&atilde; a casa da snr.<sup>a</sup>
+condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. &Aacute; porta um
+<em>coup&eacute;</em> esperava.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A senhora condessa vai sahir, disse um criado
+de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado
+&aacute; hombreira do pateo, de cigarro na boca.
+<br />
+
+<br />
+
+N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena
+verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do
+pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro.
+Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados
+sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido
+e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos
+claros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A senhora condessa j&aacute; me n&atilde;o conhece..., disse
+Amaro com o chap&eacute;o na m&atilde;o, adiantando-se curvado.
+Sou o Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Amaro!? disse ella como estranha ao nome.
+Ah! bom Jesus, quem elle &eacute;! Ora n&atilde;o ha!
+Est&aacute; um
+homem! Quem diria!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sorria-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu podia l&aacute; esperar! continuou ella admirada.
+E est&aacute; agora em Lisboa?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro contou a sua nomea&ccedil;&atilde;o para
+Feir&atilde;o, a pobreza
+da parochia...
+<span class="pagenum">[45]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De maneira que vim requerer, senhora condessa.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella escutava-o com as m&atilde;os apoiadas n'uma alta
+sombrinha de s&ecirc;da clara, e Amaro sentia vir d'ella
+um perfume de p&oacute; d'arroz e uma frescura de cambraias.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois deixe estar, disse ella, fique descansado.
+Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso.
+Olhe, venha por c&aacute;.&mdash;E com o dedo sobre o canto
+da boca:&mdash;Espere, &aacute;manh&atilde; vou para Cintra.
+Domingo,
+n&atilde;o. O melhor &eacute; d'aqui a quinze dias. D'aqui
+a quinze dias pela manh&atilde;, sou certa.&mdash;E rindo com
+os seus largos dentes frescos:&mdash;Parece que o estou
+a v&ecirc;r traduzir Chateaubriand com a mana Luiza!
+Como o tempo passa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Passa bem a senhora sua mana? perguntou
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, bem. Est&aacute; n'uma quinta em Santarem.
+<br />
+
+<br />
+
+Deu-lhe a m&atilde;o, cal&ccedil;ada de <em>peau
+de su&egrave;de</em>, n'um
+aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes
+d'ouro, e saltou para o
+<em>coup&eacute;</em>, magra e ligeira,
+com um movimento que levantou brancuras de
+saias.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro come&ccedil;ou ent&atilde;o a esperar. Era em julho,
+no pleno calor. Dizia missa pela manh&atilde; em S. Domingos,
+e durante o dia, de chinelos e casaco de
+ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. &Aacute;s vezes
+ia conversar com a tia para a sala de jantar; as
+janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona
+susurra&ccedil;&atilde;o das moscas; a tia a um canto do
+<span class="pagenum">[46]</span>
+velho canap&eacute; de palhinha fazia
+<em>crochet</em>, com a luneta
+encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando,
+folheava um antigo volume do
+<em>Panorama</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se,
+no ar pesado e immovel: a todos os cantos se
+apregoava monotonamente <em>agua fresca!</em>
+Pelos bancos,
+debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam;
+em redor da pra&ccedil;a, sem cessar, caleches de
+aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades
+dos caf&eacute;s reluziam; e gente encalmada, sem destino,
+movia, bocejando, a sua pregui&ccedil;a pelos passeios das
+ruas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o recolhia, e no seu quarto, com a
+janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da
+cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros,
+ruminava as suas esperan&ccedil;as. A cada momento
+lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras
+da senhora condessa: <em>fique descansado, meu
+marido ha de fallar!</em> E via-se j&aacute; parocho
+n'uma bonita
+villa, n'uma casa com quintal cheio de couves
+e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo
+bandejas de d&ocirc;ce das devotas ricas.
+<br />
+
+<br />
+
+Vivia ent&atilde;o n'um estado de espirito muito repousado.
+As exalta&ccedil;&otilde;es, que no seminario lhe causava
+a continencia, tinham-se acalmado com as
+satisfa&ccedil;&otilde;es
+que lhe dera em Feir&atilde;o uma grossa pastora,
+que elle gostava de v&ecirc;r ao domingo tocar &aacute; missa,
+dependurada da corda do sino, rolando nas saias de
+sarago&ccedil;a, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno,
+pagava pontualmente ao c&eacute;o as ora&ccedil;&otilde;es
+que manda
+<span class="pagenum">[47]</span>
+o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava
+estabelecer-se regaladamente.
+<br />
+
+<br />
+
+No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o est&aacute;, disse-lhe um criado da
+cavallari&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia voltou, j&aacute; inquieto. Os batentes verdes
+estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando,
+muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado
+com var&otilde;es de metal. Da alta claraboia cahia
+uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar,
+sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate,
+um criado encostado &aacute; parede branca envernizada,
+com a cabe&ccedil;a pendente e o bei&ccedil;o cahido, dormia.
+Fazia um grande calor; aquelle alto silencio
+aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento
+com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando;
+tossiu devagarinho, para acordar o criado
+que lhe pareceia terrivel com a sua bella sui&ccedil;a preta,
+o seu rico grilh&atilde;o d'ouro; e ia descer quando
+ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de
+homem. Sacudiu com o len&ccedil;o o p&oacute;
+esbranqui&ccedil;ado
+dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho
+n'uma larga sala com estofos de damasco
+amarello; uma grande luz entrava das varandas
+abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da
+sala tres homens de p&eacute; conversavam. Amaro adiantou-se,
+balbuciou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o sei se incomm&oacute;do...
+<br />
+
+<br />
+
+Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de
+ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto
+<span class="pagenum">[48]</span>
+da boca e as m&atilde;os nos bolsos. Era o senhor
+conde.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sou Amaro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conhe&ccedil;o
+muito bem! Tem a bondade... Minha mulher
+fallou-me. Tem a bondade...
+<br />
+
+<br />
+
+E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi
+calvo, de cal&ccedil;as brancas muito curtas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a pessoa de quem lhe fallei.&mdash;Voltou-se
+para Amaro:&mdash;&Eacute; o senhor ministro.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro curvou-se, servilmente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar,
+foi creado de pequeno em casa de minha sogra.
+Nasceu l&aacute;, creio eu...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro
+que se conservava afastado, com o guardasol na
+m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha sogra, que era toda devota e uma completa
+senhora,&mdash;j&aacute; n&atilde;o ha d'isso!&mdash;fel-o padre.
+Houve at&eacute; um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos
+parocho... Onde, senhor padre Amaro?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Feir&atilde;o, excellentissimo senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Feir&atilde;o!?... disse o ministro estranhando o
+nome.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na serra da Gralheira, informou logo o outro
+sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado
+n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com
+soberbas sui&ccedil;as d'um negro de tinta e um admiravel
+cabello lustroso de pomada, apartado at&eacute; ao
+cacha&ccedil;o
+n'uma risca perfeita.
+<span class="pagenum">[49]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra,
+uma freguezia pobre, sem distrac&ccedil;&otilde;es, com um
+clima horrivel...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu metti j&aacute; requerimento, excellentissimo senhor,
+arriscou Amaro timidamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.&mdash;E
+mascava o seu charuto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; uma justi&ccedil;a, disse o conde. Mais,
+&eacute; uma necessidade!
+Os homens novos e activos devem estar
+nas parochias difficeis, nas cidades... &Eacute; claro! Mas
+n&atilde;o: olhe, l&aacute; ao p&eacute; da minha quinta,
+em Alcoba&ccedil;a,
+ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo,
+um imbecil!... Assim perde-se a f&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, disse o ministro, mas essas
+colloca&ccedil;&otilde;es
+nas boas parochias devem naturalmente ser
+recompensas dos bons servi&ccedil;os. &Eacute; necessario o
+estimulo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perfeitamente, replicou o conde; mas servi&ccedil;os
+religiosos, profissionaes, servi&ccedil;os &aacute; Igreja,
+n&atilde;o
+servi&ccedil;os aos governos.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem das soberbas sui&ccedil;as negras teve um
+gesto d'objec&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o acha? perguntou-lhe o conde.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Respeito muito a opini&atilde;o de vossa excellencia,
+mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos
+na cidade s&atilde;o-nos d'um grande servi&ccedil;o nas crises
+eleitoraes. D'um grande servi&ccedil;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim. Mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe vossa excellencia, continuou elle, s&ocirc;frego
+da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar.
+<span class="pagenum">[50]</span>
+Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada
+mais.
+<br />
+
+<br />
+
+O conde acudiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas perd&atilde;o, n&atilde;o deve ser assim; a
+religi&atilde;o,
+o clero n&atilde;o s&atilde;o agentes eleitoraes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perd&atilde;o... queria interromper o outro.
+<br />
+
+<br />
+
+O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e
+gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade
+d'um vasto entendimento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A religi&atilde;o, disse elle, p&oacute;de, deve mesmo
+auxiliar
+os governos no seu estabelecimento, operando,
+por assim dizer, como freio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro,
+cuspindo pelliculas mascadas de charuto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas descer &aacute;s intrigas, continuou o conde devagar,
+aos <em>imbroglios</em>...
+Perd&ocirc;e-me, meu caro amigo,
+mas n&atilde;o &eacute; d'um christ&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem
+das sui&ccedil;as soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou
+liberal. E entendo que no governo representativo...
+Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso
+faz? desacredita o clero e desacredita a politica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas s&atilde;o ou n&atilde;o as maiorias um principio
+<em>sagrado</em>?
+gritava rubro o das sui&ccedil;as, accentuando o
+adjectivo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o um principio
+<em>respeitavel</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro escutava, immovel.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha mulher ha de querer v&ecirc;l-o, disse-lhe
+<span class="pagenum">[51]</span>
+ent&atilde;o o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que
+levantou:&mdash;Entre. &Eacute; o senhor padre Amaro, Joanna!
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma sala forrada de papel branco assetinado,
+com moveis estofados de casimira clara. Nos
+v&atilde;os das janellas, entre as cortinas de pregas largas
+d'uma fazenda adamascada c&ocirc;r de leite, apanhadas
+quasi junto do ch&atilde;o por faxas de s&ecirc;da, arbustos
+delgados, sem fl&ocirc;r, erguiam em vasos brancos
+a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava
+a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem.
+Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada,
+firme n'um s&oacute; p&eacute; negro, co&ccedil;ava
+vagarosamente,
+com contrac&ccedil;&otilde;es aduncas, a sua cabe&ccedil;a
+verde. Amaro,
+embara&ccedil;ado, curvou-se logo para um canto do
+sof&aacute;, onde viu os cabellinhos louros e frisados da
+senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a
+testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um
+rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante
+d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotov&ecirc;los sobre
+os joelhos abertos, occupava-se em balan&ccedil;ar, como
+um pendulo, um <em>pince-nez</em> de
+tartaruga. A condessa
+tinha no rega&ccedil;o uma cadellinha, e com a sua m&atilde;o
+s&ecirc;cca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o p&ecirc;llo
+branco como algod&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como est&aacute;, snr. Amaro?&mdash;A cadella rosnou.&mdash;Quieta,
+<em>Joia</em>... Sabe que j&aacute;
+fallei no seu negocio?
+Quieta, <em>Joia</em>... O ministro
+est&aacute; alli.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, minha senhora, disse Amaro, de p&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sente-se aqui, senhor padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro pousou-se &aacute; beira d'um
+<em>fauteil</em>, com o
+<span class="pagenum">[52]</span>
+seu guardasol na m&atilde;o&mdash;e reparou ent&atilde;o n'uma
+senhora
+alta que estava de p&eacute;, junto do piano, fallando
+com um rapaz louro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse
+a condessa. Diga-me uma coisa: sua irm&atilde;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; em Coimbra, casou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar
+os seus anneis.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava,
+com um gesto embara&ccedil;ado e errante, os dedos
+pelos bei&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Liset est&aacute; para f&oacute;ra? perguntou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; em Nantes. Tinha uma irm&atilde; a morrer,
+disse a condessa. Est&aacute; o mesmo sempre; muito amavel,
+muito d&ocirc;ce. &Eacute; a alma mais virtuosa!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo
+estirando as pernas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o diga isso, primo! Jesus, brada aos c&eacute;os!
+Pois ent&atilde;o o padre Liset, t&atilde;o respeitavel!... E
+depois
+outras maneiras de dizer as coisas, com uma
+bondade... V&ecirc;-se que &eacute; um
+cora&ccedil;&atilde;o delicado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim, mas o padre Felix...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, nem diga isso! Que o padre Felix &eacute; uma
+pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset
+tem uma religi&atilde;o mais...&mdash;E com um gesto delicado
+procurava a palavra:&mdash;mais fina, mais distincta...
+Emfim, vive com outra gente.&mdash;E sorrindo
+para Amaro:&mdash;Pois n&atilde;o acha?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o conhecia o padre Felix, n&atilde;o se
+recordava
+do padre Liset.
+<span class="pagenum">[53]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; &eacute; velho o senhor padre Liset, observou ao
+acaso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cr&ecirc;? disse a condessa. Mas muito bem conservado!
+E que vivacidade, que enthusiasmo!... Ai,
+&eacute; outra coisa!&mdash;E voltando-se para a senhora que
+estava junto do piano:&mdash;Pois n&atilde;o achas, Thereza?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; vou, respondeu Thereza, toda absorvida.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro afirmou-se ent&atilde;o n'ella. Pareceu-lhe uma
+rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura,
+uma linha de hombros e de seio magnifica; os
+cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre
+a pallidez do rosto aquilino semelhante ao perfil
+dominador de Marie Antoinette; o seu vestido preto,
+de mangas curtas e decote quadrado, quebrava,
+com as pregas da cauda muito longa toda adornada
+de rendas negras, o tom monotono das alvuras
+da sala; o collo, os bra&ccedil;os estavam cobertos por uma
+gaze preta, que fazia apparecer atrav&eacute;s a brancura
+da carne; e sentia-se nas suas f&oacute;rmas a firmeza
+dos marmores antigos, com o calor d'um sangue
+rico.
+<br />
+
+<br />
+
+Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que
+Amaro n&atilde;o comprehendia, cerrando e abrindo o seu
+leque preto&mdash;e o rapaz louro, bonito, escutava-a
+retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado
+de vidro entalado no olho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Havia muita devo&ccedil;&atilde;o na sua parochia, snr.
+Amaro? perguntava no emtanto a condessa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muita, muito boa gente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; onde ainda se encontra alguma f&eacute;,
+&eacute; nas aldeias,
+<span class="pagenum">[54]</span>
+considerou ella com um tom piedoso.&mdash;Queixou-se
+da obriga&ccedil;&atilde;o de viver na cidade, nos captiveiros
+do luxo: desejaria habitar sempre na sua
+quinta de Carcavellos, rezar na pequena capella antiga,
+conversar com as boas almas da aldeia!&mdash;e a
+sua voz torn&aacute;ra-se terna.
+<br />
+
+<br />
+
+O rapaz rechonchudo ria-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, prima! dizia; ora, prima!&mdash;N&atilde;o, elle,
+se o obrigassem a ouvir missa n'uma capellinha de
+aldeia, at&eacute; lhe parecia que perdia a f&eacute;!...
+N&atilde;o comprehendia,
+por exemplo, a religi&atilde;o sem musica...
+Era l&aacute; possivel uma festa religiosa sem uma boa
+voz de contralto!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre &eacute; mais bonito, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro que &eacute;. &Eacute; outra coisa! Tem
+<em>cachet</em>!
+&Oacute; prima, lembra-se d'aquelle tenor... como se chamava
+elle? O Vidalti. Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira
+de Endoen&ccedil;as, nos Inglezinhos? O <em>tantum
+ergo</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu preferia-o no <em>Baile de
+mascaras</em>, disse a
+condessa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe que n&atilde;o sei, prima, olhe que n&atilde;o sei!
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto o rapaz louro viera apertar a m&atilde;o &aacute;
+senhora condessa, fallando-lhe baixo, muito risonho.
+Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a do&ccedil;ura
+do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma
+luva, e apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu
+Thereza, depois de se ter aproximado vagarosamente
+da janella e olhado para a rua&mdash;foi sentar-se n'uma
+<em>causeuse</em> com um abandono que punha
+em rel&ecirc;vo a
+<span class="pagenum">[55]</span>
+magnifica esculptura do seu corpo; e voltando-se
+pregui&ccedil;osamente
+para o rapaz rechonchudo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamo-nos, Jo&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+A condessa disse-lhe ent&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabes que o senhor padre Amaro foi creado
+commigo em Bemfica?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava
+sobre elle os seus bellos olhos d'um negro
+humido como o setim preto coberto de agua.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; na provincia agora? perguntou ella, bocejando
+um pouco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, minha senhora, vim ha dias.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando
+vagarosamente o seu leque.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus
+dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na serra, minha senhora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Imagina tu, acudiu a condessa, &eacute; um horror!
+Ha sempre neve, diz que a igreja n&atilde;o tem telhado,
+s&atilde;o tudo pastores. Uma desgra&ccedil;a! Eu pedi ao
+ministro
+a v&ecirc;r se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O qu&ecirc;? disse Thereza.
+<br />
+
+<br />
+
+A condessa contou que Amaro requerera para
+uma parochia melhor. Fallou de sua m&atilde;i, da amizade
+que ella tinha a Amaro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe
+dava... N&atilde;o se lembra?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o sei, minha senhora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Frei <em>Maleitas</em>!... Tem
+gra&ccedil;a! Como o snr.
+Amaro era amarellito, sempre mettido na capella...
+<span class="pagenum">[56]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Thereza, dirigindo-se &aacute; condessa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabes com que se parece este senhor?
+<br />
+
+<br />
+
+A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou
+a luneta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se parece com aquelle pianista do anno
+passado? continuou Thereza. N&atilde;o me lembra agora
+o nome...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante.
+No cabello, n&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; visto, o outro n&atilde;o tinha cor&ocirc;a!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando
+a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabe musica? perguntou, voltando-se para
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A gente aprende no seminario, minha senhora.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella correu a m&atilde;o, um momento, sobre o teclado
+de sonoridades profundas, e tocou a phrase do
+<em>Rigoleto,</em>
+parecida com o <em>Minuete de Mozart</em>,
+que diz
+Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro
+acto, da senhora de Cr&eacute;cy&mdash;e cujo rhythmo desolado
+tem a abandonada tristeza de amores que findam,
+e de bra&ccedil;os que se desenla&ccedil;am em despedidas
+supremas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as
+suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o collo
+de Thereza que elle via sob a negra transparencia
+da gaze, as suas tran&ccedil;as de deusa, os tranquillos arvoredos
+de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a
+id&eacute;a d'uma existencia superior, de romance, passada
+<span class="pagenum">[57]</span>
+sobre alcatifas preciosas, em
+<em>coup&eacute;s</em> acolchoados,
+com arias de operas, melancolias de bom gosto
+e amores d'um gozo raro. Enterrado na elasticidade
+da <em>causeuse</em>, sentindo a musica
+chorar aristocraticamente,
+lembrava-lhe a sala de jantar da tia
+e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo
+que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu
+prazer&mdash;pensando que vai voltar &aacute; dureza das
+c&ocirc;deas
+s&ecirc;ccas e &aacute; poeira dos caminhos.
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto Thereza, mudando bruscamente de
+melodia, cantou a antiga aria inglesa de Haydn, que
+diz t&atilde;o finamente as melancolias da
+separa&ccedil;&atilde;o:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+<em>The village seems dead and asleep<br />
+
+When Lubin is away!...</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bravo! bravo! exclamou o ministro da justi&ccedil;a
+apparecendo &aacute; porta, batendo d&ocirc;cemente as palmas.
+Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia,
+disse Thereza erguendo-se logo.
+<br />
+
+<br />
+
+O ministro veio, com uma pressa galante:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;, minha senhora? que &eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+O conde e o sujeito de magnificas sui&ccedil;as tinham
+entrado discutindo ainda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse
+Thereza ao ministro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu j&aacute; pedi! j&aacute; pedi mesmo duas vezes! acudiu
+a condessa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se
+confortavelmente, com as pernas muito estiradas,
+<span class="pagenum">[58]</span>
+a face satisfeita: de que se trata? &Eacute; uma
+coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque
+no bra&ccedil;o. Ent&atilde;o qual &eacute; a melhor
+parochia vaga?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando
+para Amaro, que vergou os hombros, c&oacute;rado.
+<br />
+
+<br />
+
+O homem das sui&ccedil;as, que estava de p&eacute; fazendo
+saltar circumspectamente os berloques, adiantou-se,
+cheio de informa&ccedil;&otilde;es:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Das vagas, minha senhora, &eacute; Leiria, capital
+do districto e s&eacute;de do bispado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leiria? disse Thereza. Bem sei, &eacute; onde ha
+umas ruinas?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um castello, minha senhora, edificado por D.
+Diniz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leiria &eacute; excellente!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas perd&atilde;o, perd&atilde;o! disse o ministro, Leiria,
+s&eacute;de do bispado, uma cidade... O senhor padre Amaro
+&eacute; um ecclesiastico novo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor
+n&atilde;o &eacute; novo?
+<br />
+
+<br />
+
+O ministro sorriu, curvando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu
+marido, que co&ccedil;ava ternamente a cabe&ccedil;a da arara.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece-me inutil, o pobre Correia est&aacute; vencido!
+A prima Thereza chamou-lhe novo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas perd&atilde;o, protestou o ministro. N&atilde;o me parece
+que seja uma lisonja excepcional; eu n&atilde;o sou
+tambem t&atilde;o antigo...
+<span class="pagenum">[59]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, desgra&ccedil;ado! gritou o conde, lembra-te
+que j&aacute; conspiravas em 1820!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era meu pai, calumniador, era meu pai!
+<br />
+
+<br />
+
+Todos riram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Snr. Correia, disse Thereza, est&aacute; entendido. O
+senhor padre Amaro vai para Leiria!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, succumbo, disse o ministro com
+gesto resignado. Mas &eacute; uma tyrannia!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Thank you</em>, fez Thereza,
+estendendo-lhe a
+m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse
+o ministro fixando-a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento
+para o ch&atilde;o, distrahida, dando pequeninas
+pancadas no vestido de s&ecirc;da, levantou-se, foi sentar-se
+ao piano bruscamente, e recome&ccedil;ou a d&ocirc;ce
+aria ingleza:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+<em>The village seems dead and asleep<br />
+
+When Lubin is away!...</em></div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro,
+que se erguera.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se
+com o bispo. D'aqui a uma semana est&aacute;
+nomeado. P&oacute;de ir descansado.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro
+que estava junto do piano:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor ministro, eu agrade&ccedil;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute; senhora condessa, &aacute; senhora condessa, disse
+o ministro sorrindo.
+<span class="pagenum">[60]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora, eu agrade&ccedil;o, veio elle dizer &aacute;
+condessa, todo curvado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, agrade&ccedil;a a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias,
+parece.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Lembre-me nas suas ora&ccedil;&otilde;es, senhor padre
+Amaro, disse ella. E continuou, com a sua voz magoada,
+dizendo ao piano&mdash;as tristezas da aldeia
+quando Lubin esta ausente!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho.
+Mas n&atilde;o torn&aacute;ra a esquecer aquella
+manh&atilde; em
+casa da senhora condessa de Ribamar,&mdash;o ministro
+de cal&ccedil;as muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo
+o seu despacho; a luz clara e calma do
+jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia
+<em>yes</em>...Cantava-lhe sempre no cerebro
+aquella aria
+triste do <em>Rigoleto</em>; e perseguia-o a
+brancura dos
+bra&ccedil;os de Thereza sob a gaze negra! Instinctivamente
+via-os enla&ccedil;arem-se devagar, devagar, em
+torno do pesco&ccedil;o airoso do rapaz louro:&mdash;detestava-o
+ent&atilde;o, e a l&iacute;ngua barbara que fallava, e a terra
+heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as fontes &aacute;
+id&eacute;a de que um dia poderia confessar aquella mulher
+divina e sentir o seu vestido de s&ecirc;da preta ro&ccedil;ar
+pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade
+do confessionario.
+<br />
+
+<br />
+
+Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abra&ccedil;os
+<span class="pagenum">[61]</span>
+da tia, partiu para Santa Apolonia, com um gallego
+que lhe levava o bah&uacute;. A madrugada rompia.
+A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se.
+&Aacute;s vezes uma carro&ccedil;a passava rolando, abalando
+a cal&ccedil;ada; as ruas pareciam-lhe interminaveis; saloios
+come&ccedil;avam a chegar montados nos seus burros,
+com as pernas balou&ccedil;adas, cobertas de altas botas
+enlameadas; n'uma ou n'outra rua uma voz aguda
+j&aacute; apregoava os jornaes; e os mo&ccedil;os dos theatros
+corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas
+os cartazes.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do
+sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda:
+o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes
+de c&ocirc;r de a&ccedil;o sem lustre; e j&aacute; alguma
+vela
+de falua passava, vagarosa e branca.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+IV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada
+do parocho novo, e todos sabiam j&aacute; que tinha trazido
+um bah&uacute; de lata, que era magro e alto, e que
+chamava <em>Padre-Mestre</em> ao conego Dias.
+<br />
+
+<br />
+
+As amigas da S. Joanneira,&mdash;as intimas&mdash;a D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, as Gansosos, tinham ido logo
+pela manh&atilde; a casa d'ella <em>para se
+p&ocirc;rem ao facto</em>...
+Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A
+S. Joanneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto
+da escada, de mangas arrega&ccedil;adas, nos arranjos da
+manh&atilde;; e immediatamente, com anima&ccedil;&atilde;o,
+contou
+a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o
+que tinha dito...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas venham voss&ecirc;s c&aacute; abaixo, sempre quero
+que vejam.
+<span class="pagenum">[64]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bah&uacute; de
+lata, uma prateleira que lhe arranj&aacute;ra para os livros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; muito bem, est&aacute; tudo muito bem, diziam
+as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito,
+como n'uma igreja.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso
+apalpando o panno das largas bandas que pendiam
+ao comprido do cabide.&mdash;&Eacute; obra para um par de
+moedas!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira
+erguendo a tampa do bah&uacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+O grupo das velhas curvou-se com admira&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A mim o que me consola &eacute; que elle seja um
+rapaz novo, disse D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o,
+piedosamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tambem a mim, disse com auctoridade a D.
+Joaquina Gansoso. Estar a gente a confessar-se e a
+v&ecirc;r o pingo do rap&eacute;, como era com o Raposo, credo!
+at&eacute; se perde a devo&ccedil;&atilde;o! E o bruto do
+Jos&eacute; Migueis!
+N&atilde;o, l&aacute; isso Deus me mate com gente nova!
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas
+do parocho,&mdash;um crucifixo que estava ainda embrulhado
+n'um jornal velho, o album de retratos, onde
+o primeiro cart&atilde;o era uma photographia do Papa
+aben&ccedil;oando a christandade. Todas se extasiaram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o mais que se p&oacute;de, diziam, &eacute; o
+mais que
+se p&oacute;de!
+<br />
+
+<br />
+
+Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na
+porque adquirira, hospedando o parocho,
+uma auctoridade quasi ecclesiastica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc;s apparecem &aacute; noite, disse ella do alto
+da escada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pudera!... gritou D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o,
+j&aacute;
+&aacute; porta da rua, tra&ccedil;ando o seu
+mantelete.&mdash;Pudera!...
+Para o vermos &aacute; vontade!
+<br />
+
+<br />
+
+Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo
+de Leiria; e subindo a correr os degraus, j&aacute; gritava
+com a sua voz fina:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; S. Joanneira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava
+&aacute; janella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o o senhor parocho veio, hein? perguntou
+o Libaninho, mostrando &aacute; porta da sala de jantar o
+seu rosto gordinho c&ocirc;r de lim&atilde;o, a calva luzidia;
+e
+vindo para ella com o passinho miudo, um gingar
+de quadris:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que tal, que tal? tem bom feitio?
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joaneira recome&ccedil;ou a glorifica&ccedil;&atilde;o
+de Amaro:
+a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura
+dos seus dentes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se
+de ternura devota.&mdash;Mas n&atilde;o se podia
+demorar, ia para a reparti&ccedil;&atilde;o!&mdash;Adeus, filhinha,
+adeus!&mdash;E batia com a sua m&atilde;o papuda no hombro
+da S. Joanneira.&mdash;Est&aacute;s cada vez mais gordinha!
+Olha que rezei hontem a Salve-Rainha que tu me
+pediste, ingrata!
+<br />
+
+<br />
+
+A criada tinha entrado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeus, <em>Ru&ccedil;a</em>!
+Est&aacute;s magrinha: pega-te com
+a Senhora M&atilde;i dos Homens.&mdash;E avistando Amelia
+<span class="pagenum">[66]</span>
+pela porta do quarto entreaberta:&mdash;Ai, que est&aacute;s
+mesmo uma fl&ocirc;r, M&eacute;linha! Quem se salvava na tua
+gra&ccedil;a bem eu sei!
+<br />
+
+<br />
+
+E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho
+agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeusinho! adeusinho, pequenas!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Libaninho, vens &aacute; noite?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o posso, filha, n&atilde;o posso!&mdash;E a sua
+vozinha era quasi chorosa.&mdash;Olha que &aacute;manh&atilde;
+&eacute;
+Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de direito!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro f&ocirc;ra visitar o chantre com o conego Dias,
+e tinha-lhe entregado uma carta de recommenda&ccedil;&atilde;o
+do senhor conde de Ribamar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Conheci muito o senhor conde de Ribamar,
+disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos
+amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso:
+ha que annos isso vai!
+<br />
+
+<br />
+
+E, reclinando-se na velha poltrona de damasco,
+fallou com satisfa&ccedil;&atilde;o do seu tempo: contou
+anecdotas
+da Junta, apreciou os homens de ent&atilde;o, imitou-lhes
+a voz (era uma especialidade de sua excellencia),
+os <em>tics</em>, as caturrices&mdash;sobretudo
+Manoel Passos,
+que elle descrevia passeando na Pra&ccedil;a Nova,
+com o comprido casaco pardo e o chap&eacute;o de grandes
+abas, dizendo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Animo, patriotas! o Xavier
+aguenta-se!</em>
+<span class="pagenum">[67]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Os senhores ecclesiasticos da camara riram com
+gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro sahiu
+muito lisonjeado.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois jantou em casa do conego Dias, e foram
+passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz
+d&ocirc;ce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia
+nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso,
+de meiga tranquilidade; fumos esbranqui&ccedil;ados
+sahiam dos casaes, e sentiam-se os chocalhos
+melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou
+junto da ponte, e disse, olhando em redor a paizagem
+suave:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois senhores, parece-me que me hei de dar
+bem aqui!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego,
+sorvendo o seu rap&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Eram oito horas quando recolheram a casa da
+S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+As velhas amigas estavam j&aacute; na sala de jantar.
+Ao p&eacute; do candieiro de petroleo, Amelia costurava.
+<br />
+
+<br />
+
+A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o vestira-se, como
+nos domingos, de s&ecirc;da preta: o seu
+<em>chin&oacute;</em>, d'um louro
+avermelhado, estava coberto com as rendas d'um
+<em>enfeite</em> negro; as m&atilde;os
+descarnadas, cal&ccedil;adas de mitenes,
+solemnemente pousadas no rega&ccedil;o, reluziam
+de anneis; do broche sobre o pesco&ccedil;o at&eacute; ao
+cinto,
+um grosso grilh&atilde;o d'ouro cahia com passadores lavrados.
+Conservava-se direita e ceremoniosa, com a
+cabe&ccedil;a um pouco de lado, os oculos d'ouro assentes
+sobre o nariz acavallado: tinha no queixo um grande
+<span class="pagenum">[68]</span>
+signal cabelludo; e quando se fallava de devo&ccedil;&otilde;es
+ou de milagres dava um geito ao pesco&ccedil;o, e abria
+um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes
+esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas.
+Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria,
+disse-lhe a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento
+de quadris, commovida.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estas s&atilde;o as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido...,
+disse a S. Joanneira ao parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro comprimentou timidamente. Eram duas
+irm&atilde;s. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam
+receber hospedes. A mais velha, a snr.<sup>a</sup> D.
+Joaquina Gansoso, era uma pessoa s&ecirc;cca, com uma
+testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz
+arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no
+seu chale, direita, com os bra&ccedil;os cruzados, fallava
+perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia
+de opini&otilde;es. Dizia mal dos homens e dava-se toda
+&aacute;
+Igreja.
+<br />
+
+<br />
+
+A irm&atilde;, a snr.<sup>a</sup> D. Anna, era
+extremamente surda.
+Nunca fallava, e com os dedos cruzados sobre o
+rega&ccedil;o, os olhos baixos, fazia girar tranquillamente
+os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido
+preto de riscas amarellas, um rolo de arminho
+ao pesco&ccedil;o, dormitava toda a noite, e s&oacute;
+accentuava a
+sua presen&ccedil;a de vez em quando por suspiros agudos:
+dizia-se que tinha uma paix&atilde;o funesta pelo recebedor
+do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua
+<span class="pagenum">[69]</span>
+habilidade em recortar papeis para caixas de d&ocirc;ce.
+<br />
+
+<br />
+
+Estava tambem a snr.<sup>a</sup> D. Josepha, a
+irm&atilde; do conego
+Dias. Tinha a alcunha de <em>castanha
+pilada</em>. Era
+uma creaturinha mirrada, de linhas aduncas, pelle
+engelhada e c&ocirc;r de cidra, voz sibilante; vivia n'um
+perpetuo estado de irrita&ccedil;&atilde;o, os olhinhos sempre
+assanhados, contrac&ccedil;&otilde;es nervosas de birra, toda
+saturada
+de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho
+chamava-lhe a <em>esta&ccedil;&atilde;o
+central</em> das intrigas de
+Leiria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o passeou muito, senhor parocho? perguntou
+ella logo impertigando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fomos quasi at&eacute; l&aacute; ao fim da estrada de
+Marrazes,
+disse o conego, sentando-se pesadamente por
+detraz da S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o achou bonito, senhor parocho? acudiu
+snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito bonito.
+<br />
+
+<br />
+
+Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas
+vistas: a snr.<sup>a</sup> D. Josepha gostava muito do
+passeio
+ao p&eacute; do rio; at&eacute; j&aacute; ouvira dizer que
+nem em Lisboa
+havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a
+igreja da Encarna&ccedil;&atilde;o, no alto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desfruta-se muito d'alli.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia disse sorrindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu por mim g&oacute;sto d'aquelle bocado ao p&eacute; da
+ponte, debaixo dos chor&otilde;es.&mdash;E partindo com os
+dentes o fio da costura:&mdash;&Eacute; t&atilde;o triste!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro olhou para ella, ent&atilde;o, pela primeira vez.
+Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito;
+<span class="pagenum">[70]</span>
+pesco&ccedil;o branco e cheio sahia d'um collarinho voltado;
+entre os bei&ccedil;os vermelhos e frescos o esmalte
+dos dentes brilhava; e pareceu ao parocho que um
+bu&ccedil;osinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra
+subtil e d&ocirc;ce.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um pequeno silencio&mdash;o conego Dias
+com o bei&ccedil;o descahido ia j&aacute; cerrando as
+palpebras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que ser&aacute; feito do senhor padre Brito? perguntou
+D. Joaquina Gansoso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; talvez com a enxaqueca, pobre de Christo!
+lembrou piedosamente a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Um rapaz que estava junto do aparador disse
+ent&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da
+Barrosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem! disse logo com azedume a irm&atilde; do
+conego, a snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias, &eacute;
+milagre ter o
+senhor reparado!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porqu&ecirc;, minha senhora? disse elle erguendo-se
+e chegando-se ao grupo das velhas.
+<br />
+
+<br />
+
+Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de
+pelle branca, regular, um pouco fatigado, destacava
+bem um bigode pequeno muito negro, cahido aos
+cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.<sup>a</sup> D.
+Josepha Dias. O senhor, que nem lhe tira o chap&eacute;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante.
+<span class="pagenum">[71]</span>
+E acrescentou: Ai, senhor parocho, bem p&oacute;de
+chamar o snr. Jo&atilde;o Eduardo para o bom caminho!&mdash;E
+teve um risinho maligno.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas eu parece-me que n&atilde;o ando no mau caminho,
+disse elle rindo, com as m&atilde;os nos bolsos. E
+a cada momento os seus olhos se voltavam para
+Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; uma gra&ccedil;a! exclamou a snr.<sup>a</sup>
+D. Joaquina
+Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje l&aacute; em
+casa, de tarde, da Santa da Arregassa, n&atilde;o ha de ganhar
+o c&eacute;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! gritou a irm&atilde; do conego voltando-se
+bruscamente para Jo&atilde;o Eduardo. Ent&atilde;o o que tem
+o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que &eacute; uma
+impostora?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, Jesus! disse a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+apertando as m&atilde;os e fitando Jo&atilde;o Eduardo
+com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer
+isso? Cruzes!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, o snr. Jo&atilde;o Eduardo, affirmou gravemente
+o conego, que espert&aacute;ra, desdobrando o seu len&ccedil;o
+vermelho&mdash;n&atilde;o era capaz de dizer uma d'essas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro perguntou ent&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem &eacute; a Santa da Arregassa?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo! Pois n&atilde;o tem ouvido fallar, senhor parocho?
+exclamou n'uma admira&ccedil;&atilde;o a snr.<sup>a</sup>
+D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de ter ouvido, affirmava a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+Dias com auctoridade. Diz que os jornaes de Lisboa
+vem cheios d'isso!
+<span class="pagenum">[72]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; com effeito uma coisa bem extraordinaria,
+ponderou com um tom profundo o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a
+luneta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o imagina, senhor parocho, &eacute; o milagre
+dos milagres!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se &eacute;! se &eacute;! disseram.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um recolhimento devoto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas ent&atilde;o...? perguntou Amaro, todo curioso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, senhor parocho, come&ccedil;ou a snr.<sup>a</sup>
+D. Joaquina
+Gansoso endireitando-se no chale, fallando com
+solemnidade: a Santa &eacute; uma mulher que aqui ha
+n'uma freguezia perto, que est&aacute; ha vinte annos na
+cama...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, tocando-lhe com o leque no
+bra&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre
+ouvi eu dizer vinte.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S.
+Joanneira. E o conego apoiou-a, oscillando gravemente
+a cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; entrevadinha de todo, senhor parocho!
+rompeu a irm&atilde; do conego, avida de fallar. Parece
+uma alminha de Deus! Os bracinhos s&atilde;o isto!&mdash;E
+mostrava o dedo minimo.&mdash;Para a gente a ouvir &eacute;
+necessario p&ocirc;r-lhe a orelha ao p&eacute; da boca!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois se ella se sustenta da gra&ccedil;a de Deus!
+disse lamentosamente a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+Coitadinha! que at&eacute; a gente lembrar-se...
+<br />
+
+<br />
+
+Houve entre as velhas um silencio commovido.
+<span class="pagenum">[73]</span>
+Jo&atilde;o Eduardo, que por traz das velhas, de p&eacute;, com
+as m&atilde;os nos bolsos, sorria mordicando o bigode,
+disse ent&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, senhor parocho, a coisa &eacute; o que os medicos
+dizem: &eacute; que aquillo &eacute; uma doen&ccedil;a
+nervosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas,
+um escandalo; a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+persignou-se logo &laquo;&aacute; cautela&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pelo amor de Deus! gritou a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+Dias, o senhor diga isso diante de quem quizer, menos
+de mim! &Eacute; uma affronta!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que at&eacute; p&oacute;de cahir um raio, dizia
+para os
+lados, baixo, a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o,
+muito
+aterrada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.<sup>a</sup> D.
+Josepha Dias, o senhor &eacute; um homem sem religi&atilde;o
+e sem respeito pelas coisas santas.&mdash;E voltando-se
+para o lado de Amelia, muito azeda:&mdash;Olhe, filha
+minha &eacute; que eu lhe n&atilde;o dava!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia c&oacute;rou; e Jo&atilde;o Eduardo, fazendo-se vermelho
+tambem, curvou-se sarcasticamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu digo o que dizem os medicos. E de resto,
+acredite que n&atilde;o tenho prenten&ccedil;&otilde;es a
+casar com pessoa
+da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.<sup>a</sup> D.
+Josepha!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego deu uma risada muito pesada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que faz ent&atilde;o a Santa? perguntou o padre
+Amaro, para pacificar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo, senhor parocho, disse a snr.<sup>a</sup> D.
+Joaquina
+<span class="pagenum">[74]</span>
+Gansoso: est&aacute; sempre de cama, sabe rezas
+para tudo; pessoa por quem ella pe&ccedil;a tem a gra&ccedil;a
+do Senhor; &eacute; a gente apegar-se com ella e cura-se
+de toda a molestia. E depois, quando communga,
+come&ccedil;a a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar,
+com os olhos erguidos para o c&eacute;o, que at&eacute; chega a
+fazer terror.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas n'este momento uma voz disse &aacute; porta da
+sala:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora viva a sociedade! Isto hoje est&aacute; de truz!
+<br />
+
+<br />
+
+Era um rapaz extremamente alto, amarello, com
+as faces cavadas, uma grenha ri&ccedil;ada, um bigode &aacute;
+D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca,
+porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante;
+e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras,
+errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra
+na m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o como vai isso hoje? perguntaram-lhe
+logo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se.
+Sempre as d&ocirc;res no peito, a tossesita ...
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o n&atilde;o se dava bem com o oleo de figados
+de bacalhau?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual! fez elle desconsoladamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma viagem &aacute; Madeira, isso &eacute; que era, isso
+&eacute;
+que era! disse a snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso com
+auctoridade.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle riu, com uma jovialidade subita:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma viagem &aacute; Madeira! N&atilde;o est&aacute;
+m&aacute;! A D.
+Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense
+<span class="pagenum">[75]</span>
+de administra&ccedil;&atilde;o com dezoito vintens por dia,
+mulher
+e quatro filhos... Para a Madeira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E como vai ella, a Joannita?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitadita, l&aacute; vai! Tem saude, gra&ccedil;as a Deus!
+Gorda, sempre com bom appetite. Os pequenos, os
+dois mais velhos &eacute; que est&atilde;o doentes; de mais a
+mais agora a criada tambem cahiu de cama! &Eacute; o diacho!
+Paciencia! paciencia!&mdash;E encolhia os hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe
+uma palmada no joelho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E como vai a nossa Madre-Abbadessa?
+<br />
+
+<br />
+
+Todos riram: e a snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso
+informou
+o parocho que aquelle rapaz, o Arthur Couceiro,
+era muito engra&ccedil;ado e tinha uma bella voz. Era
+a melhor da cidade para modinhas.
+<br />
+
+<br />
+
+A <em>Ru&ccedil;a</em> tinha
+ent&atilde;o entrado com o ch&aacute;; a S.
+Joanneira, enchendo as chavenas d'alto, dizia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este &eacute;
+do bom! &Eacute; da loja do Sousa...
+<br />
+
+<br />
+
+E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se est&aacute; azedinho &eacute; carregar-lhe no sal!
+<br />
+
+<br />
+
+As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires,
+escolhiam cuidadosamente as torradas, sentia-se o
+mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos
+pingos da manteiga e das nodoas do ch&aacute; estendiam
+prudentemente os len&ccedil;os sobre o rega&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia,
+apresentando-lhe o prato. S&atilde;o da
+Encarna&ccedil;&atilde;o,
+muito fresquinhos.
+<span class="pagenum">[76]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aquelle alli. &Eacute; toucinho do c&eacute;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! se &eacute; do c&eacute;o... disse elle todo risonho. E
+olhou para ella, tomando o bolo com a ponta dos
+dedos.
+<br />
+
+<br />
+
+O snr. Arthur costumava cantar depois do ch&aacute;.
+Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de musica;
+e Amelia, logo que a <em>Ru&ccedil;a</em>
+levou a bandeja,
+accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado
+amarello.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o hoje que ha de ser? perguntou Arthur.
+<br />
+
+<br />
+
+Os pedidos cruzaram-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>O guerrilheiro! O noivado do sepulchro! O
+descrido! o Nunca mais!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Couceiro, v&aacute; l&aacute; aquella do
+<em>Tio Cosme, meu
+br&eacute;jeiro!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+As mulheres reprovaram:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo! por quem &eacute;, senhor conego! Que
+lembran&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+E a snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso resumiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada: uma coisa de sentimento para o senhor
+parocho fazer id&eacute;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento,
+&oacute; Arthur, uma coisa de sentimento!
+<br />
+
+<br />
+
+Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente
+&aacute; face uma express&atilde;o dolorosa, ergueu a voz,
+cantou lugubremente:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div style="text-align: center;">Adeus, meu anjo! eu vou
+partir sem ti!
+<span class="pagenum">[77]</span>
+<br />
+
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma can&ccedil;&atilde;o dos tempos romanticos de 51, o
+<em>Adeus!</em> Dizia uma suprema despedida,
+n'um bosque,
+por uma tarde pallida d'outono; depois, o homem
+solitario e precito, que inspir&aacute;ra um amor funesto,
+ia errar desgrenhado &aacute; beira do mar; havia uma
+sepultura esquecida n'um valle distante, brancas
+virgens vinham chorar &aacute; claridade do luar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
+<br />
+
+<br />
+
+Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas
+nos intervallos, durante o acompanhamento, sorria
+em redor&mdash;e na sua boca cheia de sombra viam-se
+os restos de dentes p&ocirc;dres. O padre Amaro, ao p&eacute;
+da janella, fumando, contemplava Amelia, enlevado
+n'aquella melodia sentimental e morbida: o seu perfil
+fino, de encontro &aacute; luz, tinha uma linha luminosa;
+destacava harmoniosamente a curva do seu peito;
+e elle seguia as suas palpebras de grandes pestanas,
+que do teclado para a musica se erguiam e
+se abaixavam com um movimento d&ocirc;ce. Jo&atilde;o Eduardo,
+junto d'ella, voltava-lhe as folhas da musica.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Arthur, com a m&atilde;o sobre o peito, a outra
+erguida no ar, n'um gesto desolado e vehemente,
+soltou a ultima estrophe:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+E um dia, emfim, d'este viver fatal,<br />
+
+Repousarei na escurid&atilde;o da campa!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bravo! bravo! exclamaram.
+<br />
+
+<br />
+
+E o conego Dias commentou baixo ao parocho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! para coisas de sentimento n&atilde;o ha outro.&mdash;E
+<span class="pagenum">[78]</span>
+bocejando enormemente: Pois menino, tenho
+tido toda a noite as lulas a conversar c&aacute; por dentro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas cheg&aacute;ra a hora do loto. Cada um escolhia
+os seus cart&otilde;es habituaes; e a snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha Dias,
+com o seu olho d'avara a luzir, chocalhava j&aacute; vivamente
+o grosso sacco dos numeros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui tem um logar, senhor parocho, disse
+Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto
+espa&ccedil;o, e veio sentar-se um pouco c&oacute;rado,
+ageitando
+timidamente a <em>volta</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz
+dormente, o conego come&ccedil;ou a tirar os numeros. A
+snr.<sup>a</sup> D. Anna Gansoso dormitava ao seu canto,
+resonando
+ligeiramente.
+<br />
+
+<br />
+
+Com o <em>abat-jour</em> as
+cabe&ccedil;as estavam na penumbra;
+e a luz crua, cahindo sobre o chale escuro que
+cobria a mesa, fazia destacar os cart&otilde;es ennegrecidos
+do uso e as m&atilde;os s&ecirc;ccas das velhas, pousadas
+em attitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro.
+Sobre o piano aberto a vela derretia-se com
+uma chamma alta e direita.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego rosnava os numeros com as pilherias
+veneraveis da tradi&ccedil;&atilde;o: 1, cabe&ccedil;a de
+porco!&mdash;3,
+figura de entremez!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ternei, murmurava outra com gozo.
+<br />
+
+<br />
+
+E a irm&atilde; do conego, s&ocirc;frega:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Chocalhe esses numeros, mano Placido! V&aacute;!
+<span class="pagenum">[79]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E traga-me esse quarenta e sete ainda que
+seja de rastos, dizia o Arthur Couceiro, com a cabe&ccedil;a
+entre os punhos.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim o conego <em>quinou</em>. E Amelia
+olhando em
+redor pela sala:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o n&atilde;o joga, snr. Jo&atilde;o Eduardo?
+disse
+ella. Onde est&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo sahiu da sombra da janella, por
+traz da cortina.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tome l&aacute; este cart&atilde;o, ande, jogue.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E receba as entradas, j&aacute; que est&aacute; de
+p&eacute;, disse
+a S. Joanneira. Seja o senhor recebedor!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo foi em roda com o pires de porcelana.
+No fim faltavam dez reis.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu j&aacute; dei, eu j&aacute; dei! exclamavam todos,
+excitados.
+<br />
+
+<br />
+
+F&ocirc;ra a irm&atilde; do conego que n&atilde;o
+toc&aacute;ra no seu
+cobre acastellado. Jo&atilde;o Eduardo disse, curvando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece-me que a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+n&atilde;o entrou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas!
+At&eacute; fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco
+reis, por signal! Que tal est&aacute; o homem!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! bem, disse elle ent&atilde;o, fui eu que me esqueci!
+C&aacute; ponho.&mdash;E rosnou: Beata e ladra!
+<br />
+
+<br />
+
+E a irm&atilde; do conego dizia no emtanto baixo &aacute;
+snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Queria v&ecirc;r se escapava, o melro! Falta de temor
+a Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&oacute; quem n&atilde;o est&aacute; feliz &eacute;
+o senhor parocho,
+observaram.
+<span class="pagenum">[80]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; &aacute;s
+vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amelia dizia-lhe,
+tocando-lhe no cotov&ecirc;lo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe que n&atilde;o marcou, senhor parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham j&aacute; apostado dois ternos: ella ganh&aacute;ra;
+depois faltou a ambos para <em>quinarem</em>
+o numero
+trinta e seis.
+<br />
+
+<br />
+
+Em roda repararam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora vamos a v&ecirc;r se
+<em>quinam</em> ambos, disse a
+snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, envolvendo-os no
+mesmo
+olhar baboso.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o trinta e seis n&atilde;o sah&iacute;a; havia outras
+quadras
+nos cart&otilde;es alheios; Amelia receava que
+<em>quinasse</em>
+a snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso, que se mexia
+muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro
+ria, involuntariamente interessado.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego tirava os numeros com uma pachorra
+maliciosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute;! v&aacute;! ande com isso, senhor conego!
+diziam-lhe.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, debru&ccedil;ada, os olhos vivos, murmurou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dava tudo para que sahisse o trinta e seis!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim? Ahi o tem... Trinta e seis! disse o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Quinamos!</em> gritou ella,
+triumphante; e tomando
+o cart&atilde;o do parocho e o seu mostrava-os,
+para conferirem, orgulhosa, muito c&oacute;rada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora Deus os aben&ccedil;&ocirc;e, disse o conego, jovial,
+entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de
+dez reis.
+<span class="pagenum"><a name="p81" id="p81">[81]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece milagre! considerou a snr.<sup>a</sup> D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o, piedosamente.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas tinham dado onze horas; e depois da
+<em>tumba</em>
+final as velhas come&ccedil;aram a agasalhar-se. Amelia
+sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polka.
+Jo&atilde;o Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muitos parabens por ter <em>quinado</em>
+com o senhor
+parocho. Que enthusiasmo!&mdash;E como ella ia responder:&mdash;Boa
+noite! disse elle s&ecirc;ccamente, embrulhando-se
+no seu chale-manta com despeito.
+<br />
+
+<br />
+
+A <em>Ru&ccedil;a</em> alumiava. As
+velhas, pela escada, empacotadas
+nos abafos, iam ganindo <em>adeusinhos</em>.
+O
+snr. Arthur harpejava a guitarra, cantarolando o
+<em>Descrido</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro foi para o seu quarto, come&ccedil;ou a rezar no
+Breviario; mas distrahia-se, lembravam-lhe as figuras
+das velhas, os dentes p&ocirc;dres de Arthur, sobretudo
+o perfil de Amelia. Sentado &aacute; beira da cama,
+com o Breviario aberto, fitando a luz, via o seu penteado,
+as suas m&atilde;os pequenas com os dedos um
+pouco trigueiros picados da agulha, o seu bu&ccedil;osinho
+gracioso...
+<br />
+
+<br />
+
+Sentia a cabe&ccedil;a pesada do jantar do conego e da
+monotonia do <em>quino</em>, com uma grande
+s&ecirc;de al&eacute;m
+d'isso das lulas e do vinhito do Porto. Quiz beber,
+mas n&atilde;o tinha agua no quarto. Lembrou-se ent&atilde;o
+que na sala de jantar havia uma bilha d'Extremoz
+com agua fresca, muito boa, da nascente do Morenal.
+Cal&ccedil;ou as chinelas, tomou o casti&ccedil;al, subiu
+devagarinho. Havia <a href="#e1">luz</a> na sala,
+estava o reposteiro
+<span class="pagenum">[82]</span>
+corrido: ergueu-o e recuou com um
+<em>ah!</em> Vira n'um
+relance Amelia, em saia branca, a desfazer o atacador
+do collete: estava junto do candieiro e as mangas
+curtas, o decote da camisa deixavam v&ecirc;r os seus
+bra&ccedil;os brancos, o seio delicioso. Ella deu um pequeno
+grito, correu para o quarto.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ficou immovel, com um suor &aacute; raiz dos
+cabellos. Poderiam suspeitar uma offensa! Palavras
+indignadas iam sahir decerto atrav&eacute;s do reposteiro
+do quarto, que ainda se balou&ccedil;ava agitado!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a voz de Amelia, serena, perguntou de dentro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que queria, senhor parocho?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vinha buscar agua... balbuciou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aquella <em>Ru&ccedil;a</em>! aquella
+desleixada! Desculpe,
+senhor parocho, desculpe. Olhe ahi ao p&eacute; da mesa,
+a bilha. Achou?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Achei! achei!
+<br />
+
+<br />
+
+Desceu devagar com o copo cheio: a m&atilde;o tremia-lhe,
+a agua escorria-lhe pelos dedos.
+<br />
+
+<br />
+
+Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por
+baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro
+que, com o capote aos hombros e em chinelas, fumava,
+excitado, pelo quarto.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+V
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ella, em cima, n&atilde;o dormia tambem. Sobre a commoda,
+dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se,
+com um mau cheiro de murr&atilde;o de azeite; brancuras
+de saias cahidas no ch&atilde;o destacavam; e os
+olhos do gato, que n&atilde;o socegava, reluziam pela
+escurid&atilde;o
+do quarto com uma claridade phosphorica
+verde.
+<br />
+
+<br />
+
+Na casa visinha uma crian&ccedil;a chorava sem cessar,
+Amelia sentia a m&atilde;i embalar-lhe o ber&ccedil;o,
+cantar-lhe
+baixo:<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Dorme, dorme, meu menino,<br />
+
+Que a tua m&atilde;i foi &aacute; fonte!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente
+Sousa deix&aacute;ra com um filho no ber&ccedil;o, e gravida
+<span class="pagenum">[84]</span>
+d'outro&mdash;para ir casar a Extremoz! T&atilde;o bonita era,
+t&atilde;o loura&mdash;e mirrada agora, t&atilde;o chupada!<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Dorme, dorme, meu menino.<br />
+
+Que a tua m&atilde;i foi &aacute; fonte!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha
+sete annos sua m&atilde;i dizia-a, nas longas noites
+de inverno, ao irm&atilde;osinho que morrera!
+<br />
+
+<br />
+
+Lembrava-se bem! Moravam ent&atilde;o n'outra casa,
+ao p&eacute; da estrada de Lisboa; &aacute; janella do seu
+quarto
+havia um limoeiro e a m&atilde;i punha, na sua ramagem
+luzidia, os coeiros do Jo&atilde;osinho a seccarem ao
+sol. N&atilde;o conhecera o pap&aacute;. F&ocirc;ra
+militar, morrera
+novo; e a m&atilde;i ainda suspirava ao fallar da sua bella
+figura com o uniforme de cavallaria. Aos oito annos
+ella foi para a mestra. Como se lembrava! A
+mestra era uma velhita roli&ccedil;a e branca, que f&ocirc;ra
+tacho
+das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os
+seus oculos redondos, junto &aacute; janella, empurrando a
+agulha, morria-se por contar historias do convento:
+as perrices da escriv&atilde;, sempre a escabichar os dentes
+furados; a madre rodeira, pregui&ccedil;osa e pacata,
+com uma pronuncia minhota; a mestra de cantoch&atilde;o,
+admiradora de Bocage e que se dizia descendente
+dos Tavoras; e a legenda de uma freira que
+morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites
+percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos
+e clamando:&mdash;Augusto! Augusto!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava
+ent&atilde;o tanto de festas d'igreja e da convivencia
+<span class="pagenum">[85]</span>
+dos santos, que desejava ser uma &laquo;freirinha,
+muito bonita, com um v&eacute;osinho muito branco.&raquo; A
+mam&atilde; era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa,
+um homem velho e robusto, que soprava
+de asthma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa,
+vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia
+chamava-lhe <em>padrinho</em>. Quando ella
+voltava da
+mestra, &aacute; tarde, encontrava-o sempre a palestrar
+com a m&atilde;i, na sala, de batina desabotoada, deixando
+v&ecirc;r o longo collete de velludo preto com raminhos
+bordados a amarello. O senhor chantre perguntava-lhe
+pelas li&ccedil;&otilde;es e fazia-a dizer a taboada.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; noite havia reuni&otilde;es: vinha o padre Valente;
+o conego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de passaro,
+com oculos azues, que f&ocirc;ra frade franciscano
+e a quem chamavam frei Andr&eacute;. Vinham as amigas
+da m&atilde;i, com as suas
+<em>meias</em>; e um capit&atilde;o
+Couceiro,
+de ca&ccedil;adores, que tinha os dedos negros do cigarro
+e trazia sempre a sua viola. Mas &aacute;s nove horas mandavam-na
+deitar; pela frincha do quarto ella via a
+luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silencio, e o
+capit&atilde;o, repenicando a guitarra, cantava o
+<em>lundum
+da Figueira</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns
+eram-lhe antipathicos: sobretudo o padre Valente,
+t&atilde;o gordo, t&atilde;o suado, com umas m&atilde;os
+papudas e
+molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os
+joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ella sentia
+o seu halito impregnado de cebola e de cigarro.
+O seu amiguinho era o conego Cruz, magro, com o
+<span class="pagenum">[86]</span>
+cabello todo branco, a volta sempre aceada, as fivelas
+luzidias; entrava devagarinho, comprimentando
+com a m&atilde;o sobre o peito e uma voz suave cheia
+de ss. J&aacute; ent&atilde;o sabia o catecismo e a doutrina:
+na
+mestra, em casa, por qualquer &laquo;bagatella&raquo;
+fallavam-lhe
+sempre dos castigos do c&eacute;o; de tal sorte
+que Deus apparecia-lhe como um s&ecirc;r que s&oacute; sabe
+dar o soffrimento e a morte e que &eacute; necessario abrandar,
+rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando
+os padres. Por isso, se &aacute;s vezes ao deitar lhe esquecia
+uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro
+dia, porque temia que Deus lhe mandasse sez&otilde;es ou
+a fizesse cahir na escada.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o seu melhor tempo foi quando come&ccedil;ou a
+tomar li&ccedil;&otilde;es de musica. A m&atilde;i tinha na
+sala de jantar,
+ao canto, um velho piano, coberto com um pano
+verde, t&atilde;o desafinado, que servia de aparador!
+Amelia costumava cantarolar pela casa; a sua voz fina
+e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas
+da m&atilde;i diziam-lhe:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu tens ahi um piano, porque n&atilde;o mandas
+ensinar a rapariga? Sempre &eacute; uma prenda! olha
+que lhe p&oacute;de servir de muito!
+<br />
+
+<br />
+
+O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista
+da S&eacute; d'Evora, extremamente infeliz: a filha
+unica, muito linda, fugira-lhe com um alferes
+para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da
+Pra&ccedil;a, que ia muito &aacute; capital, vira-a descer a
+rua do
+Norte, de <em>garibaldi</em> escarlate e
+alvaiade n'um olho,
+com um marinheiro inglez. O velho cahira em grande
+<span class="pagenum">[87]</span>
+melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe
+dado um emprego no cartorio da camara
+ecclesiastica. Era uma figura triste de romance picaresco.
+Muito magro, alto como um pinheiro, deixava
+crescer at&eacute; aos hombros os seus cabellos brancos
+e finos; os olhos, cansados, lagrimejavam-lhe
+sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia:
+e parecia muito transido, no seu capote c&ocirc;r
+de vinho que s&oacute; lhe chegava &aacute; cintura e que tinha
+uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o <em>Tio
+Cegonha</em>
+pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia
+um dia tinha-lhe chamado <em>Tio
+Cegonha</em>; mas mordeu
+logo o bei&ccedil;o, toda envergonhada.
+<br />
+
+<br />
+
+O velho poz-se a sorrir:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, chame, minha rica menina, chame! <em>Tio
+Cegonha</em>?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem
+cegonha!
+<br />
+
+<br />
+
+Era ent&atilde;o no inverno. As grandes chuvas com
+os sudoestes n&atilde;o cessavam; a aspera
+esta&ccedil;&atilde;o opprimia
+os pobres. Viam-se n'aquelle anno familias esfomeadas
+indo &aacute; camara pedir p&atilde;o. O <em>Tio
+Cegonha</em>
+vinha sempre ao meio-dia dar a li&ccedil;&atilde;o; o seu
+guardachuva
+azul deixava um ribeiro na escada; tiritava;
+e quando se sentava escondia, na sua vergonha
+de velho, as botas encharcadas com a sola aberta.
+Queixava-se sobretudo do frio das m&atilde;os, que o impedia
+de ferir com justeza o teclado e n&atilde;o o deixava
+escrever no cartorio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Prendem-se-me os dedos... dizia tristemente.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro
+<span class="pagenum"><a name="p88" id="p88">[88]</a></span>
+mez das li&ccedil;&otilde;es, o velho appareceu muito contente,
+com umas grossas luvas de l&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, <em>Tio Cegonha</em>, como vem
+quentinho! disse-lhe
+Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora
+ando a juntar para umas meias de l&atilde;. Deus a
+aben&ccedil;&ocirc;e, minha menina, Deus a
+aben&ccedil;&ocirc;e!
+<br />
+
+<br />
+
+E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas.
+Amelia torn&aacute;ra-se a &laquo;sua rica
+amiguinha&raquo;. J&aacute; lhe
+fazia confidencias: contava-lhe as suas necessidades,
+as saudades da filha, as suas glorias na S&eacute; d'Evora,
+quando diante do senhor <a href="#e2">arcebispo</a>,
+vistoso na sua
+sobrepelliz escarlate, acompanhava o
+<em>Lausperenne</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n&atilde;o se esqueceu das meias de l&atilde; do
+<em>Tio
+Cegonha</em>. Pediu ao chantre que lhe d&eacute;sse
+umas
+meias de l&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! para qu&ecirc;? para ti? disse elle com
+o seu riso grosso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para mim, sim senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe fallar, senhor chantre! disse a S. Joanneira.
+Olha a id&eacute;a!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o deixe fallar, n&atilde;o! d&ecirc;, sim?
+<br />
+
+<br />
+
+Lan&ccedil;ou-lhe os bra&ccedil;os ao pesco&ccedil;o,
+fez-lhe olhinhos
+d&ocirc;ces.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperan&ccedil;as!
+ha de ser o diabo!... Pois sim, ahi tens.&mdash;E
+deu-lhe dois pintos para umas meias de l&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um
+papel, que dizia por f&oacute;ra em letras garrafaes:
+<em>Ao
+meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discipula</em>.
+<span class="pagenum">[89]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde;, depois, viu-o mais amarello, mais
+chupado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; <em>Tio Cegonha</em>, disse de
+repente, quanto lhe
+d&atilde;o l&aacute; no cartorio?
+<br />
+
+<br />
+
+O velho sorriu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, minha rica menina, quanto me h&atilde;o de
+dar? uma bagatella. Quatro vintens por dia. Mas o
+snr. Netto faz-me algum bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E chegam-lhe, quatro vintens?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora! como h&atilde;o de chegar!
+<br />
+
+<br />
+
+Sentiram-se os passos da m&atilde;i; e Amelia, retomando
+gravemente a attitude de li&ccedil;&atilde;o,
+come&ccedil;ou a
+solfejar alto, com um ar profundo.
+<br />
+
+<br />
+
+E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou,
+que levou a m&atilde;i a dar de almo&ccedil;ar e de jantar ao
+<em>Tio Cegonha</em> nos dias de
+li&ccedil;&atilde;o. Assim se estabeleceu
+entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre
+<em>Tio Cegonha</em>, sahindo do seu frio
+isolamento,
+acolhia-se &aacute;quella amizade inesperada, como a um
+conchego tepido. Encontrava n'ella o elemento feminino
+que amam os velhos, com as caricias, as suavidades
+de voz, as delicadezas de enfermeira; achava
+n'ella a unica admiradora da sua musica; e
+via-a sempre attenta &aacute;s historias do seu tempo,
+&aacute;s
+recorda&ccedil;&otilde;es da velha S&eacute; d'Evora que
+elle amava
+tanto, e que lhe fazia dizer, quando se fallava de
+prociss&otilde;es ou de festas de igreja:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para isso Evora! em Evora &eacute; que &eacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa
+boa e delicada da sua vida: j&aacute; tocava contradansas
+<span class="pagenum">[90]</span>
+e antigas arias de velhos compositores; a
+snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o estranhava que o
+mestre lhe n&atilde;o ensinasse o
+<em>Trovador</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coisa mais linda! dizia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o <em>Tio Cegonha</em> s&oacute;
+conhecia a musica classica,
+arias ingenuas e d&ocirc;ces de Lully, motivos de minuetes,
+motetes floridos e piedosos dos d&ocirc;ces tempos
+freiraticos.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde; o <em>Tio Cegonha</em>
+encontrou Amelia
+muito amarella e triste. Desde a vespera queixava-se
+de &laquo;mal-estar&raquo;. Era um dia nublado, muito
+frio. O velho queria ir-se embora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, <em>Tio
+Cegonha</em>, disse ella, toque alguma
+coisa para eu me entreter.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma
+melodia simples, mas extremamente melancolica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lindo! que lindo! dizia Amelia, de p&eacute;
+junto ao piano.
+<br />
+
+<br />
+
+E quando o velho deu as ultimas notas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que &eacute;? perguntou ella.
+<br />
+
+<br />
+
+O <em>Tio Cegonha</em> contou-lhe que era o
+come&ccedil;o de
+uma <em>Medita&ccedil;&atilde;o</em>
+feita por um frade seu amigo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se
+no mocho do piano, embrulhando-se no seu chale:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga, <em>Tio Cegonha</em>, diga!
+<br />
+
+<br />
+
+Era um homem que tivera em novo uma grande
+paix&atilde;o por uma freira; ella morrera no convento
+d'aquelle amor infeliz; e elle, de d&ocirc;r e de saudade,
+fizera-se frade franciscano...
+<span class="pagenum">[91]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece que o estou a v&ecirc;r...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era bonito?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se era! Um rapaz na fl&ocirc;r da vida, rico... Um
+dia veio ter commigo ao org&atilde;o: &laquo;Olha o que eu
+fiz&raquo;,
+disse-me elle. Era um papel de musica. Abria em r&eacute;
+menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina,
+que musica! Mas n&atilde;o me lembra o resto!
+<br />
+
+<br />
+
+E o velho, commovido, repetiu no piano as notas
+plangentes da
+<em>Medita&ccedil;&atilde;o</em> em
+r&eacute; menor.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De
+noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos,
+em que dominava a figura do frade frasciscano,
+na sombra do org&atilde;o da S&eacute; d'Evora. Via os seus
+olhos profundos reluzirem n'uma face encovada: e,
+longe, a freira pallida, nos seus habitos brancos, encostada
+&aacute;s grades negras do mosteiro, sacudida pelos
+prantos do amor! Depois, no longo claustro, a
+ala dos frades franciscanos caminhava para o c&ocirc;ro:
+elle ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre
+o rosto, arrastando as sandalias, emquanto um grande
+sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados.
+Ent&atilde;o o sonho mudava: era um vasto c&eacute;o negro,
+onde duas almas enla&ccedil;adas e amantes, com habitos
+de convento e um ruido ineffavel de beijos insaciaveis,
+giravam, levadas por um vento mystico; mas
+desvaneciam-se como nevoas, e na vasta escurid&atilde;o
+ella via apparecer um grande cora&ccedil;&atilde;o em carne
+viva,
+todo trespassado de espadas&mdash;e as gotas de
+sangue que cahiam d'elle enchiam o c&eacute;o d'uma chuva
+escarlate.
+<span class="pagenum">[92]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouv&ecirc;a
+tranquillisou a S. Joanneira com uma simples palavra:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada de sustos, minha rica senhora, s&atilde;o os
+quinze annos da rapariga. H&atilde;o de lhe vir
+&aacute;manh&atilde;
+as vertigens e os enj&ocirc;os... Depois acabou-se. Temol-a
+mulher.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira comprehendeu.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter
+as paix&otilde;es fortes! acrescentou o velho pratico, sorrindo
+e sorvendo a sua pitada.
+<br />
+
+<br />
+
+Por esse tempo o senhor chantre, uma manh&atilde;,
+depois do seu almo&ccedil;o d'a&ccedil;orda, cahiu de repente
+morto
+com uma apoplexia. Que consterna&ccedil;&atilde;o inesperada
+para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada,
+em saias brancas, chorou, gemeu pelos quartos.
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, as snr.<sup>as</sup>
+Gansosos
+vieram
+acalmar, amansar a sua d&ocirc;r: e a snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha
+Dias resumiu as consola&ccedil;&otilde;es de todas, dizendo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixa, filha, que te n&atilde;o ha de faltar quem te
+ampare!
+<br />
+
+<br />
+
+Era ent&atilde;o no come&ccedil;o de setembro; a snr.<sup>a</sup>
+D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, que tinha uma casa na praia
+da Vieira, prop&ocirc;z levar a S. Joanneira e Amelia para
+a esta&ccedil;&atilde;o dos banhos, para ella espalhar, nos
+bons
+ares saudaveis, em logar differente, aquella d&ocirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; uma esmola que me fazes, dissera a S.
+Joanneira. Sempre me lembra que era alli que elle
+punha o guardachuva... Alli que elle se sentava a
+v&ecirc;r-me costurar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; bom, est&aacute; bom, deixa-te d'isso. Come e
+<span class="pagenum">[93]</span>
+bebe, toma os teus banhos, e o que l&aacute; vai l&aacute; vai.
+Olha que elle tinha bem os seus sessenta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, minha rica! a gente &eacute; pela amizade que
+lhes ganha!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia tinha ent&atilde;o quinze annos, mas era j&aacute; alta
+e de bonitas f&oacute;rmas. Foi uma alegria para ella a
+esta&ccedil;&atilde;o
+na Vieira! Nunca vira o mar; e n&atilde;o se fartava
+de estar sentada na areia, fascinada pela vasta
+agua azul, muito mansa, cheia de sol; &aacute;s vezes no
+horisonte passava um fumo delgado de paquete; a
+monotona e gemente cadencia da vaga adormentava-a;
+e em redor o areal faiscava, a perder de vista,
+sob o c&eacute;o azul-ferrete.
+<br />
+
+<br />
+
+Como se lembrava bem! Logo pela manh&atilde; estava
+a p&eacute;. Era a hora do banho: as barracas de lona
+alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras,
+sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas,
+olhavam o mar, palrando; os homens, de sapatos
+brancos, estendidos em esteiras, chupavam o cigarro,
+riscavam emblemas na areia; emquanto o poeta Carlos
+Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava
+s&oacute;, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova.
+Ella sahia ent&atilde;o da barraca com o seu vestido
+de flanella azul, a toalha no bra&ccedil;o, tiritando de
+susto e de frio: tinha-se persignado &aacute;s escondidas e
+toda tremula, agarrada &aacute; m&atilde;o do banheiro,
+escorregando
+na areia, entrava na agua, rompendo a custo
+a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda
+vinha espumando, ella mergulhava, e ficava aos
+saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua salgada.
+<span class="pagenum">[94]</span>
+Mas, quando sahia do mar, como vinha satisfeita!
+Arfava, com a toalha pela cabe&ccedil;a, arrastando-se
+para a barraca, mal podendo com o peso do vestido
+encharcado, risonha, cheia de reac&ccedil;&atilde;o; e em redor
+vozes amigas perguntavam:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que tal, que tal? Mais fresquinha, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, de tarde, eram os passeios &agrave; beira-mar,
+a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde a
+sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre
+a areia molhada; e que longas perspectivas de
+occasos ricamente dourados, sobre a vastid&atilde;o do
+mar triste, que escurece e geme!
+<br />
+
+<br />
+
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o tinha sido visitada, logo
+ao chegar, por um rapaz, filho do snr. Brito de Alcoba&ccedil;a,
+seu parente. Chamava-se Agostinho, ia frequentar
+o quinto anno de direito na Universidade.
+Era um mo&ccedil;o delgado, de bigode castanho, pera,
+cabello comprido deitado para traz, e luneta: recitava
+versos, sabia tocar guitarra, contava anecdotas de
+caloiros, fazia <em>partidas</em>, e era
+famoso na Vieira, entre
+os homens, &laquo;por saber conversar com senhoras&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Agostinho, patife! diziam. &Eacute; chala&ccedil;a a esta,
+chala&ccedil;a &aacute;quella. L&aacute; para sociedade
+n&atilde;o ha outro!
+<br />
+
+<br />
+
+Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que
+os olhos do snr. Agostinho Brito se fitavam constantemente
+n'ella, &laquo;p'ra namoro&raquo;. Amelia c&oacute;rava
+muito,
+sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido;
+e admirava-o, achava-o muito &laquo;dengueiro&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Um dia em casa da snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+pediram a Agostinho para recitar.
+<span class="pagenum"><a name="p95" id="p95">[95]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, minhas senhoras, isto aqui n&atilde;o &eacute; forja de
+ferreiro! exclamou elle, jovial.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora v&aacute;! n&atilde;o se fa&ccedil;a rogado,
+disseram, insistindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, por isso n&atilde;o nos havemos de zangar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A <em>Judia</em>, Brito, lembrou o
+recebedor de Alcoba&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual <em>Judia</em>! disse elle, ha de ser
+mas ha do
+ser a <em>Morena</em>!&mdash;E olhou para
+Amelia.&mdash;Foi uma
+poesia que fiz hontem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Valeu, valeu!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E c&aacute; o rapaz acompanha, disse um sargento
+do 6 de ca&ccedil;adores, tomando logo a guitarra.
+<br />
+
+<br />
+
+Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o
+cabello para traz, fincou a luneta, apoiou as duas
+m&atilde;os &aacute;s costas d'uma cadeira, e fitando Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute; <em>Morena</em> de Leiria!
+disse.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Nasceste nos verdes campos<br />
+
+Onde Leiria &eacute; famosa,<br />
+
+Tens a frescura da rosa,<br />
+
+E o teu nome sabe a mel...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perd&atilde;o! exclamou o recebedor, a snr.<sup>a</sup>
+D.
+Juliana n&atilde;o est&aacute; boa...
+<br />
+
+<br />
+
+Era a filha do escriv&atilde;o de direito de Alcoba&ccedil;a;
+tinha-se feito muito pallida, e, lentamente, desmaiava
+na cadeira, com os <a href="#e3">bra&ccedil;os</a>
+pendentes, o queixo
+sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a
+para o quarto de Amelia; quando lhe desapertaram
+<span class="pagenum">[96]</span>
+o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu-se
+sobre o cotov&ecirc;lo, olhou em redor, come&ccedil;aram a
+tremer-lhe os bei&ccedil;os e rompeu a chorar. F&oacute;ra, os
+homens em grupo, commentavam:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi o calor, diziam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento
+de ca&ccedil;adores.
+<br />
+
+<br />
+
+O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado.
+Algumas senhoras foram a casa acompanhar a snr.<sup>a</sup>
+D. Juliana. D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o e a S.
+Joanneira,
+atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia
+vento, um criado levava um lampe&atilde;o, e todos caminhavam
+na areia, calados.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo isto &eacute; teu proveito, disse a snr.<sup>a</sup>
+D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o baixo &aacute; S. Joanneira,
+demorando-se
+um pouco atraz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Meu!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Teu. Pois tu n&atilde;o percebeste? A Juliana, em
+Alcoba&ccedil;a, era namoro do Agostinho. Mas o rapaz aqui
+anda pelo bei&ccedil;o pela Amelia. A Juliana percebeu,
+viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, z&aacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa!... disse a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixa l&aacute;, o Agostinho tem um par de mil cruzados
+que lhe deixam as tias. &Eacute; um partid&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, &aacute; hora do banho, a S. Joanneira
+vestia-se na sua barraca, e Amelia, sentada na areia,
+esperava, pasmada para o mar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ol&aacute;! s&oacute;sinha! disse uma voz por detraz.
+<br />
+
+<br />
+
+Era Agostinho. Amelia, calada, come&ccedil;ou a riscar
+a areia com a sombrinha. O snr. Agostinho suspirou,
+<span class="pagenum">[97]</span>
+alisou outro peda&ccedil;o d'areia com o p&eacute;,
+escreveu&mdash;<span class="smallcaps">Amelia</span>.
+Ella, muito vermelha, quiz apagar com a
+m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o! disse elle. E debru&ccedil;ando-se,
+baixo:&mdash;&Eacute;
+o nome da <em>Morena</em>, bem v&ecirc;.
+<em>O seu nome sabe a
+mel!</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella sorriu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ande que fez hontem desmaiar aquella pobre
+Juliana, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou
+farto d'aquelle estafermo! Ent&atilde;o que quer? Eu c&aacute;
+sou assim. Tanto digo que me n&atilde;o importo com ella,
+como digo que ha uma pessoa por quem dava
+tudo... Eu sei...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem &eacute;? &Eacute; a snr.<sup>a</sup> D.
+Bernarda?
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma velha hedionda, viuva de um coronel.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute;, disse elle rindo. &Eacute; justamente por quem eu
+ando apaixonado, &eacute; pela D. Bernarda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar,
+com os olhos baixos, riscando a areia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga-me uma coisa, est&aacute; a mangar commigo?
+exclamou Agostinho puxando uma cadeirinha, sentando-se
+junto d'ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia p&ocirc;z-se de p&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o quer que eu me sente ao p&eacute; de si? perguntou
+elle offendido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu &eacute; que estava cansada de estar sentada.
+<br />
+
+<br />
+
+Calaram-se um momento.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; tomou banho? disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute;.
+<span class="pagenum">[98]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estava frio hoje?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estava.
+<br />
+
+<br />
+
+As palavras de Agostinho eram agora muito s&ecirc;ccas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Zangou-se? disse ella d&ocirc;cemente, pondo-lhe
+de leve a m&atilde;o no hombro.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto
+trigueiro, todo risonho, exclamou com vehemencia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou mesmo doido por si!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Chut!... disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+A m&atilde;i de Amelia, levantando o pano da barraca,
+sahia, muito abafada, de len&ccedil;o amarrado na
+cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais fresquinha, hein? perguntou logo Agostinho,
+tirando o chap&eacute;o de palha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estava por aqui?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vim dar uma vista d'olhos. E agora toca ao
+almocinho, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se &eacute; servido... disse a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho, muito galante, offereceu o bra&ccedil;o &aacute;
+mam&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+E desde ent&atilde;o seguia sempre Amelia, de manh&atilde;
+no banho, de tarde &aacute; beira-mar; apanhava-lhe conchas;
+e tinha-lhe feito outros versos&mdash;o
+<em>Sonho</em>. Uma
+estrophe era violenta:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Senti-te contra o meu peito<br />
+
+Tremer, palpitar, ceder...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ella murmurava-os com grande commo&ccedil;&atilde;o, de
+noite, suspirando, abra&ccedil;ando o travesseiro.
+<span class="pagenum">[99]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Outubro findava, as f&eacute;rias tinham acabado. Uma
+noite o alegre rancho da snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+e das amigas f&ocirc;ra dar um passeio ao luar. &Aacute;
+volta, por&eacute;m, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram
+o c&eacute;o, cah&iacute;ram gotas d'agua. Estavam
+ent&atilde;o
+junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos
+gritinhos, quizeram abrigar-se. Agostinho, com Amelia
+pelo bra&ccedil;o, rindo alto, foi penetrando longe dos outros
+na espessura; e ent&atilde;o, sob o monotono e gemente rumor
+das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou doido por ti, filha!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Creio l&aacute; n'isso! murmurou ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Agostinho, tomando subitamente um tom
+grave:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabes? talvez eu tenha de me ir &aacute;manh&atilde; embora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai-se?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Talvez; n&atilde;o sei ainda. Al&eacute;m
+d'&aacute;manh&atilde; &eacute; a
+matricula.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai-se... suspirou Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ent&atilde;o tomou-lhe a m&atilde;o, apertou-lh'a com
+furor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escreve-me! disse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a mim escreve-me? disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho agarrou-a pelos hombros e machucou-lhe
+a boca de beijos vorazes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe-me! deixe-me! dizia ella suffocada.
+<br />
+
+<br />
+
+De repente teve um gemido d&ocirc;ce como um arrulho
+de ave, e abandonava-se&mdash;quando a voz aguda
+de D. Joaquina Gansoso gritou:
+<span class="pagenum">[100]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha uma aberta. &Eacute; andar! &eacute; andar!
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, desprendendo-se, atarantada, correu
+a agachar-se sob o guardachuva da mam&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu.
+Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco
+tambem Amelia, a m&atilde;i, a snr.<sup>a</sup> D.
+Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+voltaram para Leiria.
+<br />
+
+<br />
+
+Passou o inverno.
+<br />
+
+<br />
+
+E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o deu parte que o Agostinho Brito,
+segundo
+lhe escreviam de Alcoba&ccedil;a, tinha o casamento
+justo com a menina do Vimeiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Caspit&egrave;! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha
+nada menos que os seus trinta contos! Olha o
+m&eacute;co!
+<br />
+
+<br />
+
+E diante de todos Amelia rompeu a chorar.
+<br />
+
+<br />
+
+Amava Agostinho; e n&atilde;o podia esquecer aquelles
+beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceu-lhe ent&atilde;o
+que n&atilde;o tornaria a ter alegria! Ainda lembrada
+d'aquelle mo&ccedil;o da historia do <em>Tio
+Cegonha</em>, que
+por amor se escondera na solid&atilde;o de um convento,
+come&ccedil;ou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte
+devo&ccedil;&atilde;o, manifesta&ccedil;&atilde;o
+exagerada das tendencias
+que desde pequenina as convivencias de padres tinham
+lentamente creado na sua natureza sensivel;
+lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do
+quarto de lithographias coloridas de santos; passava
+longas horas na igreja, accumulando Salve-Rainhas
+&aacute; Senhora da Encarna&ccedil;&atilde;o. Ouvia todos
+os dias missa,
+quiz commungar todas as semanas&mdash;e as amigas
+<span class="pagenum">[101]</span>
+da m&atilde;i achavam-na &laquo;um mod&ecirc;lo, de dar
+virtude
+a incredulos&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Foi por esse tempo que o conego Dias e sua
+irm&atilde;, a snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias,
+come&ccedil;aram a
+frequentar
+a casa da S. Joanneira. Dentro em pouco o conego
+tornou-se o &laquo;amigo da familia&raquo;. Depois do
+almo&ccedil;o
+era certo com a sua cadellinha, como outr'ora
+o chantre com o seu guardachuva.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem,
+dizia a S. Joanneira. Mas o senhor chantre n&atilde;o ha
+dia nenhum que me n&atilde;o lembre d'elle!
+<br />
+
+<br />
+
+A irm&atilde; do conego tinha ent&atilde;o organisado com a
+S. Joanneira a <em>Associa&ccedil;&atilde;o das
+Servas da Senhora da
+Piedade</em>. A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, as Gansosos
+&laquo;filiaram-se&raquo;; e a casa da S. Joanneira tornou-se
+um centro ecclesiastico. Foi esse o momento melhor
+da vida da S. Joanneira; &laquo;a S&eacute;, como dizia com
+tedio o Carlos da botica, era agora na rua da Misericordia&raquo;.
+Parte dos conegos, o novo chantre vinham
+todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na
+sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrupulo,
+eram examinadas em doutrina antes de serem
+aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as
+reputa&ccedil;&otilde;es:
+se se dizia de um homem&mdash;<em>n&atilde;o &eacute;
+temente a Deus</em>,
+havia o dever de o desacreditar santamente. As
+nomea&ccedil;&otilde;es
+de sineiros, coveiros, serventes de sacristia
+arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras
+piedosas. Tinham tomado um certo vestuario entre o
+preto e o r&ocirc;xo: toda a casa cheirava a cera e a incenso;
+<span class="pagenum">[102]</span>
+e a S. Joanneira, mesmo, monopolis&aacute;ra o
+commercio das hostias.
+<br />
+
+<br />
+
+Assim passaram annos. Pouco a pouco, por&eacute;m, o
+grupo devoto dispersou-se: a liga&ccedil;&atilde;o do conego
+Dias
+e da S. Joanneira, muito commentada, afastou os
+padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia
+tambem&mdash;como era de tradi&ccedil;&atilde;o n'aquella
+diocese, fatal aos chantres; e j&aacute; n&atilde;o eram
+divertidos
+os quinos das sextas-feiras. Amelia mud&aacute;ra muito;
+crescera: fizera-se uma bella mo&ccedil;a de vinte e dois
+annos, d'olhar avelludado, bei&ccedil;os muito frescos&mdash;e
+achava a sua paix&atilde;o pelo Agostinho uma &laquo;tontice
+de crian&ccedil;a&raquo;. A sua devo&ccedil;&atilde;o
+subsistia, mas alterada:
+o que amava agora na religi&atilde;o e na igreja era
+o apparato, a festa&mdash;as bellas missas cantadas ao
+org&atilde;o, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre
+os tocheiros, o altar-m&oacute;r na gloria das fl&ocirc;res
+cheirosas,
+o ro&ccedil;ar das correntes dos incensadores de prata,
+os unisonos que rompem briosamente no c&ocirc;ro das
+alleluias. Tomava a S&eacute; como a sua Opera: Deus era
+o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se vestir,
+de se perfumar com agua de colonia, de se ir aninhar
+sobre o tapete do altar-m&oacute;r, sorrindo ao padre
+Brito ou ao conego Saldanha.&mdash;Mas em certos dias,
+como dizia a m&atilde;i, &laquo;murchava&raquo;: voltavam
+ent&atilde;o os
+abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam, lhe punham
+duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha
+n'essas occasi&otilde;es horas d'uma vaga saudade parva e
+morbida, em que s&oacute; a consolava cantar pela casa o
+<span class="pagenum">[103]</span>
+Santissimo ou as notas lugubres do toque da Agonia.
+Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre&mdash;e
+lamentava ent&atilde;o que a S&eacute; fosse uma ampla
+estructura
+de pedra d'um estylo frio e jesuitico: quereria
+uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada,
+forrada de papel, illuminada a gaz; e padres
+bonitos officiando a um altar ornado como uma
+<em>&eacute;tag&egrave;re</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Fizera vinte e tres annos quando conheceu Jo&atilde;o
+Eduardo, no dia da prociss&atilde;o de
+<em>Corpus-Christi</em>, em
+casa do tabelli&atilde;o Nunes Ferral, onde elle era escrevente.
+Amelia, a m&atilde;i, a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+Dias tinham
+ido v&ecirc;r a prociss&atilde;o da bella varanda do
+tabelli&atilde;o,
+guarnecida de colchas de damasco amarello.
+Jo&atilde;o Eduardo estava l&aacute;, modesto,
+s&eacute;rio, todo vestido
+de preto. Havia muito que Amelia o conhecia;
+mas n'aquella tarde, reparando na brancura da sua
+pelle e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe
+&laquo;muito bom rapaz&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; noite, depois do ch&aacute;, o gordalhufo Nunes, de
+collete branco, foi pela sala exclamando, enthusiasmado,
+com a sua voz de grillo:&mdash;&Eacute; tirar pares, &eacute;
+tirar pares!&mdash;emquanto a filha mais velha ao piano
+tocava com brio estridente uma mazurka franceza.
+Jo&atilde;o Eduardo aproximou-se de Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, eu n&atilde;o danso!... disse ella logo com ar
+s&ecirc;cco.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo n&atilde;o dansou tambem, foi encostar-se
+a uma hombreira com a m&atilde;o na abertura do collete,
+os olhos fitos em Amelia. Ella percebia, desviava
+<span class="pagenum">[104]</span>
+o rosto, mas estava contente; e quando Jo&atilde;o
+Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se
+ao p&eacute; d'ella, Amelia fez-lhe logo logar accommodando
+os folhos de s&ecirc;da, agradada. O escrevente,
+embara&ccedil;ado,
+torcia o bigode com a m&atilde;o tremula. Por
+fim Amelia voltando-se para elle:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o o senhor n&atilde;o dansa tambem?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a snr.<sup>a</sup> D. Amelia? disse elle baixo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella inclinou-se para traz, e batendo nas pregas
+do vestido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! eu estou velha para estes divertimentos,
+sou uma pessoa s&eacute;ria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca se ri? perguntou elle, pondo na voz
+uma inten&ccedil;&atilde;o fina.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute;s vezes rio quando ha de qu&ecirc;, disse ella
+olhando-o de lado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De mim, por exemplo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De si!? ora essa! Est&aacute; a ca&ccedil;oar commigo? Porque
+me hei de eu rir do senhor? Boa!... Ent&atilde;o o
+senhor que tem que fa&ccedil;a rir?&mdash;E agitava o seu leque
+de s&ecirc;da preta.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle calou-se, procurando as id&eacute;as, as delicadezas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o s&eacute;rio, s&eacute;rio, n&atilde;o
+dansa?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; lhe disse que n&atilde;o. Ai, que &eacute;
+t&atilde;o perguntador!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; porque me interesso por si.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, deixe l&aacute;! disse ella fazendo um indolente
+gesto de negativa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Palavra!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias, que os vigiava,
+<span class="pagenum">[105]</span>
+aproximou-se, de testa muito franzida&mdash;e Jo&atilde;o
+Eduardo levantou-se, intimidado.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; sahida, quando Amelia no corredor punha os
+seus agasalhos, Jo&atilde;o Eduardo veio dizer-lhe, de
+chap&eacute;o
+na m&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cubra-se bem, n&atilde;o apanhe frio!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o contin&uacute;a a interessar-se por mim? disse
+ella apertando em redor do pesco&ccedil;o as pontas
+da sua manta de l&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O mais possivel, creia.
+<br />
+
+<br />
+
+Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia
+ambulante de <em>zarzuela</em>. Fallava-se
+muito da
+contralto, a <em>Gamacho</em>. A snr.<sup>a</sup>
+D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o
+tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia&mdash;que
+duas noites antes estivera costurando, com
+uma pressa commovida, um vestido de cassa todo
+florido de la&ccedil;os de s&ecirc;da azul. Jo&atilde;o
+Eduardo na plat&eacute;a&mdash;emquanto
+a Gamacho, empastada de p&oacute; de
+arroz sob a sua mantilha valenciana, vibrando com
+uma gra&ccedil;a decrepita o leque de lentejoulas, garganteava
+malaguenhas agudas&mdash;n&atilde;o se fartou de contemplar,
+de desejar Amelia. &Aacute; sahida veio comprimental-a,
+offerecer-lhe o bra&ccedil;o at&eacute; &aacute; rua da
+Misericordia:
+a S. Joanneira, a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+seguiam atraz com o tabelli&atilde;o Nunes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o gostou da Gamacho, snr. Jo&atilde;o Eduardo?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A fallar-lhe a verdade nem sequer reparei
+n'ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que fez?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhei para si, respondeu elle resolutamente.
+<span class="pagenum">[106]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ella parou immediatamente, disse com a voz
+um pouco alterada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Onde vem a mam&atilde;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe l&aacute; a mam&atilde;!
+<br />
+
+<br />
+
+E Jo&atilde;o Eduardo, ent&atilde;o, fallando-lhe junto do
+rosto,
+disse-lhe &laquo;a sua grande paix&atilde;o&raquo;.
+Tomou-lhe a
+m&atilde;o, repetia todo perturbado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;G&oacute;sto tanto de si! G&oacute;sto tanto de si!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia estava nervosa da musica do theatro;
+a noite quente de ver&atilde;o, com a sua vasta
+scintilla&ccedil;&atilde;o
+de estrellas, tornava-a toda languida. Abandonou
+a m&atilde;o, suspirou baixinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gosta de mim, n&atilde;o &eacute; verdade? perguntou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, respondeu ella&mdash;e apertou os dedos de
+Jo&atilde;o Eduardo, com paix&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, como ella pensou, &laquo;f&ocirc;ra decerto um
+fogacho&raquo;&mdash;porque,
+dias depois, quando conheceu mais
+Jo&atilde;o Eduardo, quando p&ocirc;de fallar livremente com
+elle, reconheceu que &laquo;n&atilde;o tinha nenhuma
+inclina&ccedil;&atilde;o
+pelo rapaz&raquo;. Estimava-o, achava-o sympathico, bom
+mo&ccedil;o; poderia ser um bom marido; mas sentia
+dentro em si o cora&ccedil;&atilde;o adormecido.
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente por&eacute;m come&ccedil;ou a ir &aacute; rua
+da Misericordia
+quasi todas as noites. A S. Joanneira estimava-o
+pelo seu &laquo;proposito&raquo; e pela sua honradez.
+Mas Amelia ia-se mostrando &laquo;fria&raquo;: esperava-o
+&aacute; janella
+pela manh&atilde; quando elle passava para o cartorio,
+fazia-lhe olhos d&ocirc;ces &aacute; noite,&mdash;mas s&oacute;
+para
+o n&atilde;o descontentar, para ter na sua existencia desoccupada
+um interessesinho amoroso.
+<span class="pagenum">[107]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo um dia fallou &agrave; m&atilde;i em
+casamento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como a Amelia quizer, eu por mim... disse
+a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, consultada, respondeu ambiguamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais tarde, por ora n&atilde;o me parece, veremos.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim accordou-se tacitamente em esperar, at&eacute;
+que elle obtivesse o lugar de amanuense do governo
+civil, rasgadamente promettido pelo doutor Godinho&mdash;o
+temido doutor Godinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Assim vivera Amelia at&eacute; &agrave; chegada d'Amaro: e,
+durante a noite, estas recorda&ccedil;&otilde;es vinham-lhe por
+fragmentos, como peda&ccedil;os de nuvens que o vento
+vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde,
+acordou j&aacute; o sol ia alto: e espregui&ccedil;ava-se,
+quando
+ouviu dizer a <em>Ru&ccedil;a</em> na
+sala de jantar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o senhor parocho que vai sahir com o senhor
+conego; v&atilde;o &aacute; S&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia saltou da cama, correu &aacute; janella em camisa,
+ergueu uma pontinha da cortina de cassa,
+olhou. A manh&atilde; resplandecia: e o padre Amaro pelo
+meio da rua conversando com o conego, assoava-se
+ao seu len&ccedil;o branco, muito airoso na sua batina
+de pano fino.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+VI
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente
+em commodidades, Amaro sentiu-se feliz. A
+S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande cuidado
+na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos,
+e o &laquo;quarto do senhor parocho andava que nem um
+brinco&raquo;! Amelia tinha com elle uma familiaridade picante
+de parenta bonita: &laquo;tinham calhado um com
+outro&raquo;, como dissera, encantada, D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+Os dias iam assim passando para Amaro,
+faceis, com boa mesa, colch&otilde;es macios e a convivencia
+meiga de mulheres. A esta&ccedil;&atilde;o ia t&atilde;o
+linda que
+at&eacute; as tilias floresceram no jardim do Pa&ccedil;o:
+&laquo;quasi
+milagre&raquo;! disse-se: o senhor chantre, contemplando-as
+todas as manh&atilde;s da janella do seu quarto,
+em robe-de-chambre, citava versos das
+<em>Eclogas</em>. E
+depois das longas tristezas da casa do tio da Estrella,
+<span class="pagenum">[110]</span>
+dos desconsolos do seminario e do aspero inverno
+na Gralheira&mdash;aquella vida em Leiria era para
+Amaro como uma casa s&ecirc;cca e abrigada onde o alegre
+lume estala e a s&ocirc;pa cheirosa fumega, depois
+d'uma noite de jornada na serra, sob trov&otilde;es e chuveiros.
+<br />
+
+<br />
+
+Ia cedo dizer missa &agrave; S&eacute;, bem embrulhado no
+seu grande capote, com luvas de casimira, meias de
+l&atilde; por baixo das botas de alto cano vermelho. As
+manh&atilde;s
+estavam frias: e &agrave;quella hora s&oacute; algumas devotas,
+com o mant&eacute;o escuro pela cabe&ccedil;a, rezavam
+aqui e al&eacute;m, ao p&eacute; d'um altar envernizado de
+branco.
+<br />
+
+<br />
+
+Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa
+batendo os p&eacute;s no lagedo, emquanto o sacrist&atilde;o,
+pachorrento, contava &laquo;as novidades do dia&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, com o calice na m&atilde;o, d'olhos baixos, passava
+&aacute; igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente
+diante do Santissimo Sacramento, subia devagar
+ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam
+com uma claridade pallida na larga luz da manh&atilde;,
+juntava as m&atilde;os, murmurava, curvado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Introibo ad altare Dei.</em>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Ad Deum qui l&aelig;tificat juventutem
+meam</em>, resmungava,
+n'um latim syllabado, o sacrist&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro j&aacute; n&atilde;o celebrava a missa como nos primeiros
+tempos, com uma devo&ccedil;&atilde;o enternecida.
+&laquo;Estava
+agora habituado&raquo;, dizia. E como n&atilde;o ceava, e
+&aacute;quella
+hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, j&aacute;
+sentia appetite, engorolava depressa, monotonamente,
+as santas leituras da Ep&iacute;stola e dos Evangelhos.
+<span class="pagenum">[111]</span>
+Por traz o sacrist&atilde;o, com os bra&ccedil;os cruzados,
+passava
+vagarosamente a m&atilde;o pela sua espessa barba
+bem rapada, olhando de revez para a Casimira Fran&ccedil;a,
+mulher do carpinteiro da S&eacute;, muito devota, que
+elle &laquo;traz&iacute;a d'olho&raquo; desde a Paschoa.
+Largas resteas
+de sol cahiam das janellas lateraes. Um vago
+aroma de junquilhos s&ecirc;ccos adocicava o ar.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio,
+limpava o calice com o purificador; o sacrist&atilde;o,
+um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas,
+apresentava-as, curvado&mdash;e Amaro sentia o cheiro
+do oleo ran&ccedil;oso que lhe reluzia no cabello. N'aquella
+parte da missa, por um antigo habito de emo&ccedil;&atilde;o
+mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido: com
+os bra&ccedil;os abertos, voltava-se para a igreja, clamava,
+com largueza, a exhorta&ccedil;&atilde;o universal &aacute;
+ora&ccedil;&atilde;o&mdash;<em>Orate,
+fratres!</em> E as velhas encostadas aos pilares
+de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa,
+apertavam mais as m&atilde;os contra o peito, d'onde
+pendiam grandes rosarios negros. Ent&atilde;o o
+sacrist&atilde;o
+ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando ligeiramente
+com uma das m&atilde;os a capa, erguendo na outra
+a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a
+hostia&mdash;<em>Hoc est enim corpus
+meum!</em>&mdash;elevando
+alto os bra&ccedil;os para o Christo cheio de chagas
+r&ocirc;xas
+sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava
+devagar; as m&atilde;os batiam concavamente nos peitos;
+e no silencio sentiam-se os carros de bois rolando,
+com solavancos, sobre o largo lageado da S&eacute;, &agrave;
+volta
+do mercado.
+<span class="pagenum">[112]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Ite, missa est!</em> dizia Amaro emfim.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Deo gratias!</em> respondia o
+sacrist&atilde;o respirando
+alto, com o allivio da obriga&ccedil;&atilde;o finda.
+<br />
+
+<br />
+
+E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro
+vinha do alto dos degraus dar a ben&ccedil;&atilde;o, era
+j&aacute; pensando
+na alegria do almo&ccedil;o, na clara sala de jantar
+da S. Joanneira e nas boas torradas. &Aacute;quella hora
+j&aacute; Amelia o esperava com o cabello cahido sobre o
+penteador, tendo na pelle fresca um bom cheiro de
+sab&atilde;o d'amendoas.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia &agrave;
+sala de jantar onde a S. Joanneira e Amelia costuravam.
+&laquo;Estava aborrecido em baixo, vinha um bocado
+para o cavaco&raquo;, dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira
+pequena, ao p&eacute; da janella, com o gato aninhado
+na roda do vestido de merino, cosia de luneta na
+ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava
+com o cesto da costura ao lado: a cabe&ccedil;a inclinada
+sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nitida,
+um pouco afogada na abundancia do cabello; os
+seus grandes brincos de ouro, em f&oacute;rma de pingos
+de cera, oscillavam, faziam tremer e crescer sobre a
+finura do pesco&ccedil;o uma pequenina sombra; as olheiras
+leves c&ocirc;r de <em>bistre</em>
+esbatiam-se delicadamente sobre
+a pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue
+forte aviventava; e o seu peito cheio respirava
+devagar. &Aacute;s vezes, cravando a agulha na fazenda,
+<span class="pagenum">[113]</span>
+espregui&ccedil;ava-se devagarinho, sorria, cansada.
+Ent&atilde;o
+Amaro gracejava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah pregui&ccedil;osa, pregui&ccedil;osa! Olha que mulher
+de casa!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as
+coisas interessantes do dia: o major despedira a
+criada; ou havia quem offerecesse dez moedas pelo
+porco do Carlos do correio. De vez em quando a
+<em>Ru&ccedil;a</em> vinha ao armario
+buscar um prato ou uma
+colh&eacute;r: ent&atilde;o fallava-se do pre&ccedil;o dos
+generos, do
+que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as
+lunetas, tra&ccedil;ava a perna e, balou&ccedil;ando o
+p&eacute; cal&ccedil;ado
+n'uma chinela d'ourelo, punha-se a dizer os pratos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hoje temos gr&atilde;o de bico. N&atilde;o sei se o senhor
+parocho gostar&aacute;, foi para variar...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas
+comidas descobria affinidade de gostos com Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura.
+Um dia encontr&aacute;ra uma carta; perguntou-lhe
+pelo <em>derri&ccedil;o</em>; ella
+respondeu, picando vivamente o
+posponto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o &eacute; tanto assim, acudiu elle.&mdash;Mas
+suspendeu-se,
+muito vermelho, affectando tossir.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia &aacute;s vezes fazia-se muito familiar; um dia
+mesmo pediu-lhe para sustentar nas m&atilde;os uma meadinha
+de retroz que ella ia dobar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S.
+<span class="pagenum">[114]</span>
+Joanneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confian&ccedil;a!...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:&mdash;elle
+estava alli para o que quizessem, at&eacute; para dobadoura!
+Era mandarem, era mandarem! E as duas
+mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas
+maneiras do senhor parocho, &laquo;que at&eacute; tocavam
+o cora&ccedil;&atilde;o&raquo;! &Aacute;s vezes Amelia
+pousava a costura
+e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se,
+corria a m&atilde;o pela espinha do
+<em>Maltez</em> que se arredondava,
+fazendo um <em>ron-ron</em> de gozo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gostas? dizia ella ao gato, um pouco c&oacute;rada,
+com os olhos muito ternos.
+<br />
+
+<br />
+
+E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bichaninho gato! bichaninho gato!
+<br />
+
+<br />
+
+Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio
+&aacute; idiota ou ir palrar &aacute; cozinha. Elles ficavam
+s&oacute;s; n&atilde;o fallavam, mas os seus olhos tinham um
+longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma
+languidez dormente. Ent&atilde;o Amelia cantarolava
+baixo o <em>Adeus</em> ou o
+<em>Descrente</em>: Amaro accendia o
+seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; t&atilde;o bonito isso! dizia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo
+depressa; e a espa&ccedil;os, erguendo o busto, mirava o
+alinhavado ou o posponto, passando-lhe por cima,
+para o assentar, a sua unha polida e larga.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque
+tudo que era <em>ella</em> ou vinha
+d'<em>ella</em> lhe parecia perfeito:
+gostava da c&ocirc;r dos seus vestidos, do seu andar,
+<span class="pagenum">[115]</span>
+do modo de passar os dedos pelos cabellos, e
+olhava at&eacute; com ternura para as saias brancas que
+ella punha a seccar &aacute; janella do seu quarto, enfiadas
+n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade
+d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto
+d'ella entreaberta, ia resvalar para dentro olhares
+gulosos, como para perspectivas d'um paraiso:
+um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga
+que fic&aacute;ra sobre o bah&uacute;, eram como
+revela&ccedil;&otilde;es da
+sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo
+pallido. E n&atilde;o se saciava de a v&ecirc;r fallar, rir,
+andar
+com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras
+das portas estreitas. Ao p&eacute; d'ella, muito fraco,
+muito langoroso, n&atilde;o lhe lembrava que era padre:
+o Sacerdocio, Deus, a S&eacute;, o Peccado ficavam em
+baixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do seu
+enlevo, como d'um monte se v&ecirc;em as casas desapparecer
+no nevoeiro dos valles; e s&oacute; pensava ent&atilde;o
+na do&ccedil;ura infinita de lhe dar um beijo na brancura
+do pesco&ccedil;o, ou mordicar-lhe a orelhinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos,
+batia o p&eacute;:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que diabo, &eacute; necessario ter juizo! &eacute; necessario
+ser homem!
+<br />
+
+<br />
+
+Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de
+Amelia fallava em cima, o <em>tic-tic</em>
+das suas botinas batia
+o soalho... Adeus! a devo&ccedil;&atilde;o cahia como uma
+vela a que falta o vento; as boas resolu&ccedil;&otilde;es
+fugiam,
+e l&aacute; voltavam as tenta&ccedil;&otilde;es em bando a
+apoderar-se do
+seu cerebro, frementes, arrulhando, ro&ccedil;ando-se umas
+<span class="pagenum">[116]</span>
+pelas outras como um bando de pombas que recolhem
+ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava
+ent&atilde;o a sua liberdade perdida: como desejaria
+n&atilde;o a v&ecirc;r, estar longe de Leiria, n'uma aldeia
+solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha
+cheia de proverbios e de economia, e passear pela
+sua horta quando as alfaces verdejam e os gallos cacarejam
+ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o&mdash;e
+o encanto recome&ccedil;ava, mais penetrante.
+<br />
+
+<br />
+
+A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa
+e feliz, a melhor do dia. A S. Joanneira trinchava,
+emquanto Amaro conversava cuspindo os caro&ccedil;os
+das azeitonas na palma da m&atilde;o e enfileirando-os
+sobre a toalha. A <em>Ru&ccedil;a</em>,
+cada dia mais etica,
+servia mal, sempre a tossir: Amelia &aacute;s vezes erguia-se
+para ir buscar uma faca, um prato ao aparador.
+Amaro queria levantar-se logo, attencioso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho!
+dizia ella. E punha-lhe a m&atilde;o no hombro, e os
+seus olhos encontravam-se.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo
+sobre o estomago, sentia-se regalado, gozava muito
+no bom calor da sala; depois do segundo copo
+da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas;
+&aacute;s vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava
+fugitivamente o p&eacute; de Amelia debaixo da mesa;
+ou, fazendo um ar sentido, dizia &laquo;que muito lhe pezava
+n&atilde;o ter uma irm&atilde;zinha assim&raquo;!
+<span class="pagenum">[117]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia gostava de ensopar o miolo de p&atilde;o no
+m&ocirc;lho do guisado; a m&atilde;i dizia-lhe sempre:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Embirro que fa&ccedil;as isso diante do senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+E elle ent&atilde;o rindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois olhe, tamb&eacute;m eu g&oacute;sto. Sympathia!
+magnetismo!
+<br />
+
+<br />
+
+E molhavam ambos o p&atilde;o, e sem raz&atilde;o davam
+grandes risadas. Mas o crepusculo crescia, a
+<em>Ru&ccedil;a</em>
+trazia o candieiro. O brilho dos copos e das lou&ccedil;as
+alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava &aacute; S.
+Joanneira <em>mam&atilde;</em>; Amelia
+sorria, d'olhos baixos, trincando
+com a ponta dos dentes cascas de tangerina.
+D'ahi a pouco vinha o caf&eacute;; o o padre Amaro ficava
+muito tempo partindo nozes com as costas da faca
+e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;quella hora apparecia sempre o conego Dias;
+sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Licen&ccedil;a para dois!
+<br />
+
+<br />
+
+Era elle e a cadella, a <em>Trigueira</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora Nosso Senhor nos d&ecirc; muito boas noites!
+dizia assomando &aacute; porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai a gotinha de caf&eacute;, senhor conego? perguntava
+logo a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle sentava-se, exhalando um profundo
+<em>uff!</em>&mdash;V&aacute;
+l&aacute; a gotinha do caf&eacute;! E batendo no hombro do
+parocho, olhando para a S. Joanneira:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o como vai c&aacute; o seu menino?
+<br />
+
+<br />
+
+Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava
+trazer no bolso o <em>Diario Popular</em>;
+Amelia
+<span class="pagenum">[118]</span>
+interessava-se pelo romance, a S. Joanneira pelas
+correspondencias amorosas nos annuncios.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella,
+deliciando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o fallava de Lisboa, de escandalos
+que lhe cont&aacute;ra a tia, dos fidalgos que conhecera
+&laquo;em casa do senhor conde de Ribamar&raquo;. Amelia,
+enlevada, escutava-o com os cotov&ecirc;los sobre a mesa,
+roendo vagarosamente a ponta do palito.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina
+esmorecia &agrave; cabeceira da cama: e a pobre velha,
+com uma medonha touca de rendas negras que
+tornava mais l&iacute;vida a sua carinha engelhada como
+uma ma&ccedil;&atilde; raineta, fazendo debaixo da roupa uma
+saliencia quas&iacute; imperceptivel, fixava em todos, com
+custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe
+Amelia ao ouvido. Vem v&ecirc;r como est&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+A velha fazia um esfor&ccedil;o, e com uma voz gemida:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! &eacute; o menino!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o menino, &eacute;, diziam rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+E a velha ficava a murmurar, espantada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o menino, &eacute; o menino!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo!
+Deus lhe d&ecirc; uma boa morte!
+<br />
+
+<br />
+
+E voltavam para a sala de jantar onde o conego
+Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde,
+com as m&atilde;os cruzadas sobre o ventre, dizia logo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora v&aacute; um bocadinho de musica, pequena!
+<span class="pagenum">[119]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ia sentar-se ao piano.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; filha, toca o <em>Adeus</em>!
+recommendava a S.
+Joanneira come&ccedil;ando a sua meia.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, ferindo o teclado:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ai! adeus! acabaram-se os dias<br />
+
+Que ditoso vivi a teu lado...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro,
+soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado
+n'um sentimentalismo agradavel.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Quando descia para o seu quarto, &agrave; noite, ia
+sempre exaltado. Punha-se ent&atilde;o a l&ecirc;r os
+<em>Canticos a
+Jesus</em>, traduc&ccedil;&atilde;o do francez
+publicada pela sociedade
+das <em>Escravas de Jesus</em>. &Eacute;
+uma obrasinha beata, escripta
+com um lyrismo equivoco, quasi torpe&mdash;que
+d&aacute; &aacute; ora&ccedil;&atilde;o a linguagem da
+luxuria: Jesus &eacute; invocado,
+reclamado com as sofreguid&otilde;es balbuciantes
+d'uma concupiscencia allucinada: &laquo;Oh! vem, amado
+do meu cora&ccedil;&atilde;o, corpo adoravel, minha alma
+impaciente
+quer-te! Amo-te com paix&atilde;o e desespero!
+Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!&raquo;
+E um amor divino, ora grotesco pela inten&ccedil;&atilde;o,
+ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama
+assim em cem paginas inflammadas onde as
+palavras <em>gozo</em>,
+<em>delicia</em>,
+<em>del&iacute;rio</em>,
+<em>extase</em>, voltam a cada
+momento, com uma persistencia hysterica. E depois
+de monologos phreneticos d'onde se exhala um bafo
+de cio mystico, v&ecirc;m ent&atilde;o imbecilidades de
+sacristia,
+<span class="pagenum">[120]</span>
+notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de
+jejuns, e ora&ccedil;&otilde;es para as d&ocirc;res de
+parto! Um bispo
+approvou aquelle livrinho bem impresso; as educandas
+l&ecirc;em-n'o no convento. &Eacute; beato e excitante; tem
+as eloquencias do erotismo, todas as pieguices da
+devo&ccedil;&atilde;o; encaderna-se em marroquim e
+d&aacute;-se &aacute;s confessadas:
+&eacute; a cantharida canonica!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro lia at&eacute; tarde, um pouco perturbado por
+aquelles periodos sonoros, tumidos de desejo; e no
+silencio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de
+Amelia: o livro escorregava-lhe das m&atilde;os, encostava
+a cabe&ccedil;a &aacute;s costas da poltrona, cerrava os olhos,
+e
+parecia-lhe v&ecirc;l-a em collete diante do toucador desfazendo
+as trancas; ou, curvada, desapertando as ligas,
+e o decote da sua camisa entreaberta descobria
+os dois seios muito brancos. Erguia-se, cerrando os
+dentes, com uma decis&atilde;o brutal de a possuir.
+<br />
+
+<br />
+
+Come&ccedil;&aacute;ra ent&atilde;o a recommendar-lhe a
+leitura dos
+<em>Canticos a Jesus</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ver&aacute;, &eacute; muito bonito, de muita
+devo&ccedil;&atilde;o! disse
+elle, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto
+da costura.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, ao almo&ccedil;o, Amelia estava pallida,
+com as olheiras at&eacute; ao meio da face. Queixou-se de
+insomnia, de palpita&ccedil;&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o, gostou dos
+<em>Canticos</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito. Ora&ccedil;&otilde;es lindas! respondeu.
+<br />
+
+<br />
+
+Durante lodo esse dia n&atilde;o ergueu os olhos para
+Amaro. Parecia triste&mdash;e sem raz&atilde;o, &aacute;s vezes, o
+rosto abrazava-se-lhe de sangue.
+<span class="pagenum">[121]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Os peores momentos para Amaro eram as segundas
+e quartas-feiras, quando Jo&atilde;o Eduardo vinha
+passar as noites &laquo;em familia&raquo;. At&eacute;
+&aacute;s nove horas o
+parocho n&atilde;o sahia do quarto; e quando subia para
+o ch&aacute; desesperava-se de v&ecirc;r o escrevente
+embrulhado
+no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai o que estes dois t&ecirc;m para ahi palrado, senhor
+parocho! dizia a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar
+a sua torrada, com os olhos fitos na chavena.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, na presen&ccedil;a de Jo&atilde;o Eduardo, agora,
+n&atilde;o
+tinha com o parocho a mesma familiaridade alegre,
+mal levantava os olhos da costura; o escrevente calado
+chupava o cigarro; e havia grandes silencios
+em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha quem andar agora nas aguas do mar!
+dizia a S. Joanneira fazendo devagar a sua meia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Safa!... acrescentava Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+As suas palavras, os seus modos irritavam o padre
+Amaro: detestava-o pela sua pouca devo&ccedil;&atilde;o,
+pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle sentia-se
+mais enleado no seu acanhamento de padre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou t&atilde;o cansada! respondia Amelia apoiando-se
+nas costas da cadeira, com um suspirosinho
+de fadiga.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira, ent&atilde;o, que n&atilde;o gostava de
+&laquo;v&ecirc;r
+<span class="pagenum">[122]</span>
+gente mona&raquo;, propunha uma <em>bisca de
+tres</em>; e o padre
+Amaro, tomando o seu candieiro de lat&atilde;o, descia
+para o quarto, muito infeliz.
+<br />
+
+<br />
+
+N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a
+<em>casmurra</em>. A intimidade do escrevente
+na casa parecia-lhe
+escandalosa: decidia mesmo fallar &aacute; S. Joanneira,
+dizer-lhe &laquo;que aquelle namoro de portas a
+dentro n&atilde;o podia ser agradavel a Deus&raquo;. Depois,
+mais razoavel, resolvia esquecel-a, pensava em sahir
+da casa, da parochia. Representava-se ent&atilde;o
+Amelia com a sua cor&ocirc;a de fl&ocirc;res de laranjeira, e
+Jo&atilde;o Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando
+da S&eacute;, casados... Via a cama de noivado com
+os seus len&ccedil;oes de renda... e todas as provas, as
+certezas do amor d'ella pelo &laquo;idiota do escrevente&raquo;
+cravavam-se-lhe no peito como punhaes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois que casem, e que os leve o diabo!...
+<br />
+
+<br />
+
+Odiava-a ent&atilde;o. Fechava violentamente a porta
+&agrave; chave como para impedir que lhe penetrasse no
+quarto o rumor da sua voz ou o
+<em>frou-frou</em> das suas
+saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava
+com o cora&ccedil;&atilde;o aos saltos, immovel e ancioso,
+os ruidos que ella fazia em cima ao despir-se,
+palrando ainda com a m&atilde;i.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Um dia Amaro jant&aacute;ra em casa da snr.<sup>a</sup>
+D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o; f&ocirc;ra depois passear pela
+estrada de
+Marrases, e &aacute; volta, ao fim da tarde, encontrou, ao
+<span class="pagenum">[123]</span>
+entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho,
+no patamar, estavam os chinelos de ourelo
+da <em>Ru&ccedil;a</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi &aacute; fonte
+e esqueceu-se de fechar a porta.
+<br />
+
+<br />
+
+Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde
+com a snr.<sup>a</sup> D. Joaquina Gansoso, n'uma fazenda
+ao
+p&eacute; da Piedade, e que a S. Joanneira fall&aacute;ra em ir
+&aacute;
+irm&atilde; do conego. Fechou devagar a cancella, subiu
+&aacute; cozinha a accender o seu candieiro; como as ruas
+estavam molhadas da chuva da manh&atilde;, trazia ainda
+galochas de borracha; os seus passos n&atilde;o faziam
+rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar
+sentiu no quarto da S. Joanneira, atrav&eacute;s do reposteiro
+de chita, uma tosse grossa; surprehendido,
+afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela
+porta entreaberta espreitou.&mdash;Oh Deus de Misericordia!
+a S. Joanneira, em saia branca, atacava o collete;
+e, sentado &aacute; beira da cama, em mangas de camisa,
+o conego Dias resfolegava grosso!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro desceu, collado ao corrim&atilde;o, fechou muito
+devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados
+da S&eacute;. O c&eacute;o ennevo&aacute;ra-se, leves gotas
+de chuva
+cahiam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E esta! E esta! dizia elle assombrado.
+<br />
+
+<br />
+
+Nunca suspeit&aacute;ra um tal escandalo! A S. Joanneira,
+a pachorrenta S. Joanneira! O conego, seu
+mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos
+do sangue novo, j&aacute; na paz que lhe deveriam ter dado
+a idade, a nutri&ccedil;&atilde;o, as dignidades
+ecclesiasticas!
+<span class="pagenum">[124]</span>
+Que faria ent&atilde;o um homem novo e forte, que sente
+uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar
+e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava
+no seminario, o que lhe dizia o velho padre
+Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:&mdash;&laquo;Todos
+s&atilde;o do mesmo barro!&raquo; Todos s&atilde;o do mesmo
+barro,&mdash;sobem em dignidades, entram nos cabidos,
+regem os seminarios, dirigem as consciencias
+envoltos em Deus como n'uma absolvi&ccedil;&atilde;o
+permanente,
+e t&ecirc;m no emtanto, n'uma viella, uma mulher
+pacata e gorda, em casa de quem v&atilde;o repousar
+das attitudes devotas e da austeridade do officio,
+fumando cigarros de estanco e palpando uns bra&ccedil;os
+rechonchudos!
+<br />
+
+<br />
+
+Vinham-lhe ent&atilde;o outras reflex&otilde;es: que gente
+era aquella, a S. Joanneira e a filha, que viviam assim
+sustentadas pela lubricidade tardia de um velho
+conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem
+feita, desejavel&mdash;outr'ora! Por quantos bra&ccedil;os teria
+passado at&eacute; chegar, pelos declives da idade,
+&aacute;quelles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas,
+que diabo, n&atilde;o eram honestas! Recebiam
+hospedes, viviam da concubinagem. Amelia ia s&oacute;sinha
+&aacute; igreja, &aacute;s compras, &aacute; fazenda; e com
+aquelles
+olhos t&atilde;o negros, talvez j&aacute; tivesse tido um
+amante!&mdash;Resumia,
+filiava certas recorda&ccedil;&otilde;es: um dia
+que ella lhe estivera mostrando na janella da cozinha
+um vaso de rainunculos, tinham ficado s&oacute;s, e
+ella, muito c&oacute;rada, puzera-lhe a m&atilde;o sobre o
+hombro
+e os seus olhos reluziam e pediam; outra occasi&atilde;o
+<span class="pagenum">[125]</span>
+ella ro&ccedil;&aacute;ra-lhe o peito pelo bra&ccedil;o! A
+noite cahira,
+com uma chuva fina. Amaro n&atilde;o a sentia, caminhando
+depressa, cheio de uma s&oacute; id&eacute;a deliciosa que
+o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o
+conego era o amante da m&atilde;i! Imaginava j&aacute; a boa
+vida escandalosa e regalada; emquanto em cima a
+grossa S. Joanneira beijocasse o seu conego cheio
+de difficuldades asthmaticas,&mdash;Amelia desceria ao
+seu quarto, p&eacute; ante p&eacute;, apanhando as saias
+brancas,
+com um chale sobre os hombros n&uacute;s... Com
+que phrenesi a esperaria! E j&aacute; n&atilde;o sentia por
+ella o
+mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a
+id&eacute;a muito magana dos dois padres e as duas concubinas,
+de panellinha, dava &aacute;quelle homem amarrado
+pelos votos uma satisfa&ccedil;&atilde;o depravada! Ia aos
+pulinhos pela rua.&mdash;Que pechincha de casa!
+<br />
+
+<br />
+
+A chuva cah&iacute;a, grossa. Quando entrou havia j&aacute;
+luz na sala de jantar. Subiu.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo,
+ao apertar-lhe a m&atilde;o, a humidade da nevoa.
+<br />
+
+<br />
+
+Sentada &aacute; mesa, costurava com um chale-manta
+pelos hombros: Jo&atilde;o Eduardo, ao p&eacute;, jogava a
+bisca
+com a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sentou-se um pouco embara&ccedil;ado; a presen&ccedil;a
+do escrevente dera-lhe de repente, sem saber
+porque, o duro choque d'uma realidade antipathica:
+e todas as esperan&ccedil;as, que lhe tinham vindo a
+dansar uma sarabanda na imagina&ccedil;&atilde;o, encolhiam-se
+uma a uma, murchavam&mdash;vendo alli Amelia ao p&eacute;
+<span class="pagenum">[126]</span>
+do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com
+o seu escuro vestido afogado, junto do candieiro de
+familia!
+<br />
+
+<br />
+
+E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado,
+as paredes com o seu papel de ramagens verdes,
+o armario cheio de lou&ccedil;a luzidia da Vista-Alegre,
+o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho
+piano mal firme nos seus tres p&eacute;s torneados; o paliteiro
+t&atilde;o querido de todos&mdash;um Cupido rechonchudo
+com um guardachuva aberto erri&ccedil;ado de palitos,
+e aquella tranquilla bisca jogada com os dichotes
+classicos. Tudo t&atilde;o decente!
+<br />
+
+<br />
+
+Affirmava-se ent&atilde;o nas grossas roscas do pesco&ccedil;o
+da S. Joanneira, como para descobrir n'ellas as
+marcas das beijocas do conego: ah! tu, n&atilde;o ha duvida,
+&eacute;s &laquo;uma barreg&atilde; de clerigo &raquo;.
+Mas Amelia!
+com aquellas longas pestanas descidas, o bei&ccedil;o
+t&atilde;o
+fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da m&atilde;i;
+ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se
+solidamente na seguran&ccedil;a d'um amor legal!&mdash;E
+Amaro, da sombra, examinava-a longamente como
+para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade
+do seu passado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S.
+Joanneira. E para Jo&atilde;o Eduardo:&mdash;Trunfo, faz favor,
+seu cabe&ccedil;a no ar?
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente, namorado, distrahia-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a
+cada momento.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois elle esquecia-se de <em>comprar
+cartas</em>.
+<span class="pagenum">[127]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah menino, menino! dizia ella com a sua
+voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ia cosendo com a cabe&ccedil;a baixa: tinha
+um pequeno casabeque preto com bot&otilde;es de vidro,
+que lhe disfar&ccedil;ava a f&oacute;rma do seio.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura,
+d'aquelle casaco amplo escondendo a belleza
+que mais appetecia n'ella! E nada a esperar! Nada
+d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas,
+nem a brancura d'aquelles peitos! Queria casar&mdash;e
+guardava <em>tudo</em> para o outro, o
+idiota, que sorria
+baboso, jogando paus! Odiou-o ent&atilde;o, d'um odio
+complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu
+direito d'amar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; incommodado, senhor parocho? perguntou
+Amelia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, disse elle s&ecirc;ccamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! fez ella com um leve suspiro, picando
+rapidamente o posponto.
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente, baralhando as cartas, come&ccedil;&aacute;ra a
+fallar de uma casa que queria alugar; a conversa
+cahiu sobre arranjos domesticos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Traze-me luz! gritou Amaro &agrave;
+<em>Ru&ccedil;a</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Desceu para o seu quarto, desesperado. P&ocirc;z a
+vela sobre a commoda; o espelho estava defronte,
+e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio, ridiculo
+com a sua cara rapada, a volta hirta como uma
+colleira, e por traz a cor&ocirc;a hedionda. Comparou-se
+instinctivamente com o outro que tinha um bigode,
+<span class="pagenum">[128]</span>
+o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de
+eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido;
+podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade;
+elle s&oacute; poderia dar-lhe sensa&ccedil;&otilde;es
+criminosas,
+depois os terrores do peccado! Ella sympathisava
+talvez com elle, apesar de padre; mas antes de tudo,
+acima de tudo, queria casar; nada mais natural!
+Via-se pobre, bonita, s&oacute;: cubi&ccedil;ava uma
+situa&ccedil;&atilde;o legitima
+e duradoura, o respeito das visinhas, a
+considera&ccedil;&atilde;o
+dos lojistas, todos os proveitos da honra!
+<br />
+
+<br />
+
+Odiou-a ent&atilde;o, e o seu vestido afogado, e a sua
+honestidade! A estupida, que n&atilde;o percebia que ao
+p&eacute; d'ella, sob uma negra batina, uma paix&atilde;o
+devota
+a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia!
+Desejou que ella fosse como a m&atilde;i,&mdash;ou
+peor, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia
+impudente, tra&ccedil;ando a perna e fitando os homens,
+uma femea facil como uma porta aberta ...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse
+uma desavergonhada!&mdash;pensou, recah&iacute;ndo em si
+um pouco envergonhado. Est&aacute; claro: n&atilde;o podemos
+pensar em mulheres decentes, temos que reclamar
+prostitutas! Bonito dogma!
+<br />
+
+<br />
+
+Abafava. Abriu a janella. O c&eacute;o estava tenebroso;
+a chuva cess&aacute;ra; o piar das corujas na Misericordia
+cortava s&oacute; o silencio.
+<br />
+
+<br />
+
+Enterneceu-se, ent&atilde;o, com aquella escurid&atilde;o,
+aquella mudez de villa adormecida. E sentiu subir
+outra vez, das profundidades do seu s&ecirc;r, o amor que
+sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo
+<span class="pagenum">[129]</span>
+devoto: via a sua linda cabe&ccedil;a, d'uma
+belleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura
+espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella
+n'um desfallecimento d'adora&ccedil;&atilde;o, como no culto a
+Maria
+e na Sauda&ccedil;&atilde;o Angelica; pediu-lhe
+perd&atilde;o anciosamente
+de a ter offendido; disse-lhe alto: &Eacute;s uma
+santa! perd&ocirc;a!&mdash;Foi um momento muito d&ocirc;ce, de
+renunciamento carnal...
+<br />
+
+<br />
+
+E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade
+que descobria subitamente em si, p&ocirc;z-se
+a pensar com saudade&mdash;que se fosse um homem livre
+seria um marido t&atilde;o bom! Amoravel, dedicado,
+dengueiro, sempre de joelhos, todo d'adora&ccedil;&otilde;es!
+Como amaria o <em>seu</em> filho, muito
+pequerruchinho, a
+puxar-lhe as barbas! &Aacute; id&eacute;a d'aquellas
+felicidades
+inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas.
+Amaldi&ccedil;oou, n'um desespero, &laquo;a p&ecirc;ga da
+marqueza
+que o fizera padre&raquo;, e o bispo que o confirm&aacute;ra!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco
+desvairado.
+<br />
+
+<br />
+
+Sentiu ent&atilde;o os passos de Jo&atilde;o Eduardo que
+descia,
+e o rumor das saias de Amelia. Correu a espreitar
+pela fechadura, cravando os dentes no bei&ccedil;o, de ciume.
+A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.&mdash;Mas
+a sensa&ccedil;&atilde;o d'amor mystico que o
+penetr&aacute;ra
+um momento, olhando a noite, pass&aacute;ra; e deitou-se,
+com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+VII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham
+ido jantar com o abbade da Cortegassa.&mdash;Era
+um velho jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta
+annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor
+cozinheiro da diocese. Todo o clero das visinhan&ccedil;as
+conhecia a sua famosa <em>cabedella de
+ca&ccedil;a</em>.
+O abbade fazia annos, havia outros convidados&mdash;o
+padre Natario e o padre Brito: o padre Natario era
+uma creaturinha biliosa, s&ecirc;cca, com dois olhos encovados,
+muito malignos, a pelle picada das bexigas
+e extremamente irritavel. Chamavam-lhe o
+<em>Fur&atilde;o</em>.
+Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande
+latinista, e ter uma logica de ferro; e dizia-se d'elle:
+<em>&eacute; uma lingua de vibora</em>!
+Vivia com duas sobrinhas
+orph&atilde;s, declarava-se extremoso por ellas, gabava-lhes
+<span class="pagenum">[132]</span>
+sempre a virtude, e costumava chamar-lhes
+as <em>duas rosas do seu canteiro</em>. O
+padre Brito era o
+padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha
+o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto
+beir&atilde;o que maneja bem o cajado, emborca um almude
+de vinho, p&eacute;ga alegremente &aacute; rabi&ccedil;a do
+arado,
+serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e
+nas s&eacute;stas quentes de junho atira brutalmente as
+raparigas para cima das medas de milho. O senhor
+chantre, sempre correcto nas suas compara&ccedil;&otilde;es
+mythologicas,
+chamava-lhe&mdash;o <em>le&atilde;o de
+Nemeia</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+A sua cabe&ccedil;a era enorme, de cabello lanigero
+que lhe descia at&eacute; &aacute;s sobrancelhas: a pelle
+cortida
+tinha um tom azulado, do esfor&ccedil;o da navalha de barba;
+e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos
+muito miudos e muito brancos do uso da br&ocirc;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando iam sentar-se &aacute; mesa chegou o Libaninho
+todo azafamado, gingando muito, com a calva suada,
+exclamando logo em tons agudos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais
+um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa Senhora
+da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa
+de inten&ccedil;&atilde;o. Ai, filhos! papei-a logo, venho
+mesmo
+consoladinho!
+<br />
+
+<br />
+
+A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade,
+entrou ent&atilde;o com a vasta terrina do caldo de gallinha;
+e o Libaninho, saltitando em roda d'ella, come&ccedil;ou
+os seus gracejos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, Gertrudinhas! quem tu fazias feliz bem
+eu sei!
+<span class="pagenum">[133]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A velha alde&atilde; ria com o seu espesso riso bondoso,
+que lhe sacudia a massa do seio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe que arranjo me apparece agora pela tarde!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filha! as mulheres querem-se como as
+peras, maduras e de sete cotov&ecirc;los. Ent&atilde;o
+&eacute; que &eacute;
+chupal-as!
+<br />
+
+<br />
+
+Os padres gargalharam; e, alegremente, accommodaram-se
+&aacute; mesa.
+<br />
+
+<br />
+
+O jantar f&ocirc;ra todo cozinhado pelo abbade: logo &aacute;
+sopa as exclama&ccedil;&otilde;es come&ccedil;aram:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, senhor, famoso! D'isto nem no c&eacute;o! Bella
+coisa!
+<br />
+
+<br />
+
+O excellente abbade estava escarlate de
+satisfa&ccedil;&atilde;o.
+Era, como dizia o senhor chantre, &laquo;um divino
+artista&raquo;! Lera todos os <em>Cozinheiros
+completos</em>, sabia
+innumeras receitas: era inventivo&mdash;e, como elle
+affirmava dando martelladinhas no craneo, &laquo;tinha-lhe
+sahido muito petisco d'aquella cachimonia&raquo;! Vivia
+t&atilde;o absorvido pela sua &laquo;arte&raquo; que lhe
+acontecia,
+nos serm&otilde;es de domingo, dar aos fieis ajoelhados
+para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre
+o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do
+sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua velha Gertrudes,
+de muito bom paladar tambem, com o seu
+quintal de ricos legumes, sentindo uma s&oacute;
+ambi&ccedil;&atilde;o
+na vida&mdash;ter um dia a jantar o bispo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por
+quem &eacute;! mais um bocadinho de cabedella, fa&ccedil;a
+favor!
+Essas c&ocirc;deasinhas de p&atilde;o ensopadas no
+m&ocirc;lho!
+<span class="pagenum">[134]</span>
+Isso! isso! Que tal, hein?&mdash;E com um aspecto modesto:&mdash;N&atilde;o
+&eacute; l&aacute; por dizer, mas a cabedella hoje
+sahiu-me boa!
+<br />
+
+<br />
+
+Estava com effeito, como disse o conego Dias,
+de tentar Santo Antonio no deserto! Todos tinham
+tirado as capas, e, s&oacute; com as batinas, as voltas alargadas,
+comiam devagar, fallando pouco. Como no dia
+seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos
+na capella, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia
+dava tons muito alegres &aacute; lou&ccedil;a, &aacute;s
+bojudas canecas
+azues com vinho da Bairrada, aos pires de piment&otilde;es
+escarlates, &aacute;s frescas malgas de azeitonas
+pretas&mdash;emquanto o bom abbade, d'olho arregalado,
+mordendo o bei&ccedil;o, ia cortando com cuidado nacos
+brancos do peito do cap&atilde;o recheado.
+<br />
+
+<br />
+
+As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois
+largos p&eacute;s de camelias vermelhas crescendo junto
+ao peitoril, e para al&eacute;m das copas das macieiras um
+peda&ccedil;o muito vivo de c&eacute;o azul-ferrete. Uma nora
+chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.
+<br />
+
+<br />
+
+Sobre a commoda, entre <em>in-folios</em>, na
+sua peanha
+um Christo perfilava tristemente contra a parede o
+seu corpo amarello, coberto de chagas escarlates:
+e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de
+vidro, lembravam legendas mais d&ocirc;ces de religi&atilde;o
+amavel: o bom gigante S. Christov&atilde;o atravessando
+o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz
+saltar o mundo sobre a sua m&atilde;osinha como uma
+pella; o d&ocirc;ce pastor S. Jo&atilde;osinho coberto com uma
+pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos, n&atilde;o
+<span class="pagenum">[135]</span>
+com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro
+S. Pedro, tendo na sua m&atilde;o de barro as duas
+santas chaves que servem nas fechaduras do c&eacute;o!
+Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o
+patriarcha S. Jos&eacute; apoiava-se ao seu cajado onde
+florescem lirios brancos; o cavallo empinado do bravo
+S. Jorge pisava o ventre d'um drag&atilde;o surprehendido;
+e o bom Santo Antonio, &aacute; beira d'um regato,
+sorria, fallando a um tubar&atilde;o. O
+<em>tlim-tlim</em> dos copos,
+o ruido das facas animavam a velha sala de tecto
+de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E
+Libaninho devorava, dizendo pilherias:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gertrudinhas, fl&ocirc;r do cani&ccedil;o, passa-me as
+vagens.
+N&atilde;o me olhes assim, magana, que me fazes
+revolver os intestinos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O diabo &eacute; o homem! dizia a velha. Olha p'r'&oacute;
+que lhe deu! Fallasse-me aqui ha trinta annos,
+seu perdido!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem
+me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!
+<br />
+
+<br />
+
+Os padres engasgavam-se de riso. J&aacute; duas canecas
+de vinho estavam vazias: e o padre Brito desaboto&aacute;ra
+a batina, deixando v&ecirc;r a sua grossa camisola
+de l&atilde; da Covilh&atilde;, onde a marca da fabrica, feita
+de linha azul, era uma cruz sobre um cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Um pobre ent&atilde;o viera &aacute; porta rosnar
+lamentosamente
+Padre-Nossos; e emquanto Gertrudes lhe mettia
+no alforge metade d'uma br&ocirc;a, os padres fallaram
+dos bandos de mendigos que agora percorriam
+as freguezias.
+<span class="pagenum">[136]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia
+o bom abbade. &Oacute; Dias, mais este bocadinho da aza?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muita pobreza, mas muita pregui&ccedil;a, considerou
+duramente o padre Natario.&mdash;Em muitas fazendas
+sabia elle que havia falta de jornaleiros, e viam-se
+marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar
+Padre-Nossos pelas portas.&mdash;Sucia de mariolas! resumiu.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe l&aacute;, padre Natario, deixe l&aacute;! disse o
+abbade.
+Olhe que ha pobreza dev&eacute;ras. Por aqui ha familias,
+homem, mulher e cinco filhos, que dormem
+no ch&atilde;o como porcos e n&atilde;o comem sen&atilde;o
+hervas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que diabo querias tu que elles comessem?
+exclamou o conego Dias lambendo os dedos
+depois de ter esburgado a aza do cap&atilde;o. Querias
+que comessem per&uacute;? Cada um como quem &eacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo
+para o estomago, e disse com affecto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso,
+se houvesse s&oacute; pobresinhos isto era o reininho
+dos c&eacute;os!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro considerou com gravidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; bom que haja quem tenha cabedaes para
+legados pios, edifica&ccedil;&otilde;es de capellas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A propriedade devia estar na m&atilde;o da Igreja,
+interrompeu Natario com auctoridade.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para o esplendor do culto e propaga&ccedil;&atilde;o da
+f&eacute;.
+<span class="pagenum">[137]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a grande causa da miseria, dizia Natario
+com uma voz pedante, era a grande immoralidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! l&aacute; isso n&atilde;o fallemos! exclamou o abbade
+com desgosto. N'este momento ha s&oacute; aqui na freguezia
+mais de doze raparigas solteiras gravidas!
+Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, p&otilde;em-se-me
+a fungar de riso!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; nos meus sitios, disse o padre Brito, quando
+foi pela apanha da azeitona, como ha falta de
+bra&ccedil;os, vieram as <em>maltas</em>
+trabalhar. Pois agora o ver&aacute;s!
+Que desaf&ocirc;ro!&mdash;Contou a historia das
+<em>maltas</em>,
+trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam
+offerecendo os bra&ccedil;os pelas fazendas, vivem
+na promiscuidade e morrem na miseria.&mdash;Era necessario
+andar sempre de cajado em cima d'elles!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! disse o Libaninho para os lados apertando
+as m&atilde;os na cabe&ccedil;a. Ai, o peccado que vai pelo
+mundo! At&eacute; se me est&atilde;o a erri&ccedil;ar os
+cabellos!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor!
+As mulheres casadas tinham perdido todo o escrupulo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Peores que cabras, dizia o padre Natario alargando
+a fivela do collete.
+<br />
+
+<br />
+
+E o padre Brito fallou de um caso na freguezia
+de Amor: raparigas de dezeseis e dezoito annos que
+costumavam reunir-se n'um palheiro&mdash;o palheiro
+do Silverio&mdash;e passavam l&aacute; a noite com um bando
+de marmanjos!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o o padre Natario, que j&aacute; tinha os olhos
+luzidios,
+a l&iacute;ngua solta, disse, repoltreando-se na cadeira
+e espa&ccedil;ando as palavras:
+<span class="pagenum">[138]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o sei o que se passa l&aacute; na tua freguezia,
+Brito; mas se ha alguma coisa o exemplo vem
+de alto... A mim t&ecirc;m-me dito que tu e a mulher
+do regedor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; mentira! exclamou o Brito fazendo-se todo
+escarlate.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, reprehendendo-o
+com bondade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; mentira! berrou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E aqui para n&oacute;s, meus ricos, disse o conego
+Dias baixando a voz, com o olhinho acceso n'uma
+malicia confidencial, sempre lhes digo que &eacute; uma
+mulher de m&atilde;o cheia!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; mentira! clamou o Brito. E fallando de um
+jacto:&mdash;Quem anda a espalhar isso &eacute; o morgado da
+Cumiada, porque o regedor n&atilde;o votou com elle na
+elei&ccedil;&atilde;o... Mas t&atilde;o certo como eu estar
+aqui, quebro-lhe
+os ossos!&mdash;Tinha os olhos injectados, brandia
+o punho:&mdash;Quebro-lhe os ossos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O caso n&atilde;o &eacute; para tanto, homem, considerou
+Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quebro-lhe os ossos! N&atilde;o lhe deixo um inteiro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, socega, le&atilde;osinho! disse o Libaninho com
+ternura. N&atilde;o te percas, filhinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada,
+que era ent&atilde;o opposi&ccedil;&atilde;o e que levava
+duzentos
+votos &aacute; urna, os padres fallaram de
+elei&ccedil;&otilde;es e
+dos seus episodios. Todos alli, a n&atilde;o ser o padre
+Amaro, sabiam, como disse Natario, &laquo;cozinhar um
+deputadosinho&raquo;.
+<span class="pagenum">[139]</span>
+Vieram anecdotas; cada um celebrou
+as suas fa&ccedil;anhas.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Natario na ultima elei&ccedil;&atilde;o tinha arranjado
+oitenta votos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Caspit&egrave;! disseram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Imaginam voss&ecirc;s como? Com um milagre!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Com um milagre!? repetiram espantados.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, senhores.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera
+da elei&ccedil;&atilde;o receberam-se na freguezia cartas
+vindas
+do c&eacute;o e assignadas pela Virgem Maria, pedindo,
+com promessas de salva&ccedil;&atilde;o e amea&ccedil;as do
+inferno,
+voto para o candidato do governo. De chupeta, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De m&atilde;o cheia! disseram todos.
+<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; Amaro parecia surprehendido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem! disse o abbade com ingenuidade,
+d'isso &eacute; que eu c&aacute; precisava. Eu ent&atilde;o
+tenho de andar
+ahi a estafar-me de porta em porta.&mdash;E sorrindo
+bondosamente:&mdash;Com o que se faz ainda alguma
+coisita &eacute; com o relaxe da congrua!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E com a confiss&atilde;o, disse o padre Natario. A
+coisa ent&atilde;o vai pelas mulheres, mas vai segura! Da
+confiss&atilde;o tira-se grande partido.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas emfim a confiss&atilde;o &eacute; um acto muito
+s&eacute;rio,
+e servir assim para elei&ccedil;&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates
+na face e gestos excitados, soltou uma palavra
+imprudente:
+<span class="pagenum">[140]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois o senhor toma a confiss&atilde;o a s&eacute;rio?
+<br />
+
+<br />
+
+Houve uma grande surpreza.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se tomo a confiss&atilde;o a serio!? gritou o padre
+Amaro recuando a cadeira, com os olhos arregalados.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! exclamaram. Oh, Natario! Oh, menino!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Natario exaltado queria explicar, attenuar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escutem, creaturas de Deus! Eu n&atilde;o quero
+dizer que a confiss&atilde;o seja uma brincadeira! Irra!
+Eu n&atilde;o sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer &eacute;
+que &eacute; um meio de persuas&atilde;o, de saber o que se
+passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para alli...
+E quando &eacute; para o servi&ccedil;o de Deus, &eacute;
+uma arma.
+Ahi est&aacute; o que &eacute;&mdash;a
+absolvi&ccedil;&atilde;o &eacute; uma arma!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma arma! exclamaram.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade protestava, dizendo:
+<br />
+
+<br />
+
+-Oh, Natario! oh, filho! isso n&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, &laquo;tinha
+j&aacute; um tal terror que at&eacute; lhe tremiam as
+pernas&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Natario irritou-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o talvez me queiram dizer, gritou, que
+qualquer de n&oacute;s, pelo facto de ser padre, porque o
+bispo lhe impoz tres vezes as m&atilde;os e porque lhe
+disse o <em>accipe</em>, tem
+miss&atilde;o directa de Deus,&mdash;&eacute;
+Deus mesmo para absolver?!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Decerto! exclamaram, decerto!
+<br />
+
+<br />
+
+E o conego Dias disse, meneando uma garfada
+de vagens:
+<span class="pagenum">[141]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Quorum remiseris peccata, remittuntur
+eis.</em>
+&Eacute; a f&oacute;rmula. A f&oacute;rmula &eacute;
+tudo, menino...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A confiss&atilde;o &eacute; a essencia mesma do sacerdocio,
+soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando
+Natario. Leia Santo Ignacio! leia S. Thomaz!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando
+na cadeira, apoiando Amaro.&mdash;Anda-me com
+elle, amigo parocho! Salta-me no cacha&ccedil;o do impio!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhores! berrou Natario furioso com a
+contradic&ccedil;&atilde;o, o que eu quero &eacute; que me
+respondam
+a isto. E voltando-se para Amaro:&mdash;O senhor, por
+exemplo, que acaba de almo&ccedil;ar, que comeu o seu
+p&atilde;o torrado, tomou o seu caf&eacute;, fumou o seu
+cigarro,
+e que depois se vai sentar no confessionario, &aacute;s vezes
+preoccupado com negocios de familia ou com
+faltas de dinheiro, ou com d&ocirc;res de cabe&ccedil;a ou com
+d&ocirc;res de barriga, imagina o senhor que est&aacute; alli
+como
+um Deus para absolver?
+<br />
+
+<br />
+
+O argumento surprehendeu.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias, pousando o talher, ergueu os
+bra&ccedil;os, e com uma solemnidade comica exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Hereticus est!</em> &Eacute;
+hereje!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Hereticus est!</em> tambem eu digo,
+rosnou o padre
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do
+arroz d&ocirc;ce.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o fallemos n'essas coisas, n&atilde;o fallemos
+n'essas coisas, disse logo prudentemente o abbade.
+Vamos ao arrozinho. Gertrudes, d&aacute; c&aacute; a garrafinha
+do Porto!
+<span class="pagenum">[142]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Natario, debru&ccedil;ado sobre a mesa, ainda arremessava
+argumentos a Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Absolver &eacute; exercer a gra&ccedil;a. A gra&ccedil;a
+s&oacute; &eacute; attributo
+de Deus: em nenhum auctor encontra que
+a gra&ccedil;a seja transmissivel. Logo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ponho duas objec&ccedil;&otilde;es... gritou Amaro com
+o dedo em riste, em attitude de polemica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade
+afflicto. Deixem a sabbatina, que at&eacute; nem lhes sabe
+o arrozinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo
+os copos devagar, com as precau&ccedil;&otilde;es classicas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mil oitocentos e quinze! dizia. D'isto n&atilde;o se
+bebe todos os dias.
+<br />
+
+<br />
+
+Para o saborear, depois de o fazer reluzir &aacute; luz
+na transparencia dos copos, repoltreavam-se nas velhas
+cadeiras de couro; come&ccedil;aram as
+<em>saudes!</em> A
+primeira foi ao abbade, que murmurava:&mdash;Muita
+honra... muita honra... Tinha os olhos chorosos de
+satisfa&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A sua santidade Pio IX! gritou ent&atilde;o o Libaninho
+brandindo o calix. Ao martyr!
+<br />
+
+<br />
+
+Todos beberam commovidos. Libaninho entoou
+em voz de falsete o hymno de Pio IX: o abbade,
+prudente, f&ecirc;l-o calar por causa do hortel&atilde;o que no
+quintal aparava o buxo.
+<br />
+
+<br />
+
+A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario
+torn&aacute;ra-se terno, fallava das suas sobrinhas, &laquo;as
+suas
+duas rosas&raquo;, e citava Virgilio, molhando as castanhas
+em vinho. Amaro, todo deitado para traz na cadeira,
+<span class="pagenum">[143]</span>
+as m&atilde;os nos bolsos, olhava machinalmente as
+arvores do jardim, pensando vagamente em Amelia,
+nas suas f&oacute;rmas: suspirou mesmo com um desejo
+d'ella&mdash;emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer
+os republicanos a <em>marmeleiro</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou enthusiasmado
+o Libaninho.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Natario come&ccedil;&aacute;ra a discutir com o conego
+historia ecclesiastica: e, muito questionador, voltou
+aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Gra&ccedil;a:
+affirmava que um assassino, um parricida poderia
+ser canonisado&mdash;se se tivesse revelado o
+estado de Gra&ccedil;a! Divagava, com phrases d'esc&oacute;la
+em que se lhe pegava a lingua. Citou santos que
+tinham sido escandalosos; outros que pela sua profiss&atilde;o
+deviam ter conhecido, praticado, amado o vicio.
+Exclamou com as m&atilde;os na cinta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Santo Ignacio foi militar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Militar!? gritou o Libaninho.&mdash;E erguendo-se
+correndo a Natario, lan&ccedil;ando-lhe um bra&ccedil;o ao
+pesco&ccedil;o
+com uma ternura pueril e avinhada:&mdash;Militar!?
+E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo
+Ignacio?
+<br />
+
+<br />
+
+Natario repelliu-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixa-me, homem! Era sargento de ca&ccedil;adores.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve uma enorme risada.
+<br />
+
+<br />
+
+O Libaninho fic&aacute;ra extatico.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sargento de ca&ccedil;adores! dizia erguendo as
+m&atilde;os n'um impeto beato. Meu rico Santo Ignacio!
+Bemdito e louvado seja elle por toda a eternidade!
+<span class="pagenum">[144]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E ent&atilde;o o abbade prop&ocirc;z que fossem tomar
+caf&eacute;
+para debaixo da parreira.
+<br />
+
+<br />
+
+Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam
+um pouco, arrotando formidavelmente, com risadas
+espessas; s&oacute; Amaro tinha a cabe&ccedil;a lucida, as
+pernas firmes&mdash;e sentia-se muito terno.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo
+o ultimo gole de caf&eacute;, o que est&aacute; a calhar
+&eacute; um
+passeio &agrave; fazenda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se
+com difficuldade. Vamos l&aacute; &aacute; fazenda do abbade!
+<br />
+
+<br />
+
+Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito
+de carros. O dia estava muito azul, d'um sol
+tepido. A vereda seguia entre vallados erri&ccedil;ados de
+silvas; para al&eacute;m as terras lisas estendiam-se cobertas
+de rastolho; a espa&ccedil;os as oliveiras destacavam,
+com grande nitidez, na sua folhagem fina; para o
+horisonte arredondavam-se collinas cobertas da rama
+verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio;
+s&oacute; &aacute;s vezes, ao longe, n'um caminho, um carro
+chiava. E n'aquella serenidade da paizagem e da
+luz, os padres iam caminhando devagar, trope&ccedil;ando
+um pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando
+e achando a vida boa.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias e o abbade, de bra&ccedil;o dado, caturravam.
+O Brito, ao lado de Amaro, jurava que
+havia de beber o sangue ao morgado da Cumiada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Prudencia, collega Brito, prudencia, dizia Amaro
+chupando o cigarro.
+<br />
+
+<br />
+
+E o Brito, com passadas de carret&atilde;o, rosnava:
+<span class="pagenum">[145]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hei de comer-lhe os figados!
+<br />
+
+<br />
+
+O Libaninho atraz, s&oacute;, cantarolava em falsete:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&mdash;Passarinho trigueiro,<br />
+
+Salta c&aacute; f&oacute;ra...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Adiante de todos ia o padre Natario: levava a
+capa no bra&ccedil;o, arrastando pelo ch&atilde;o; a batina
+desabotoada
+por traz deixava v&ecirc;r o forro immundo do
+collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias
+pretas de l&atilde; cheias de passagens, faziam bordos que
+o atiravam contra o silvado.
+<br />
+
+<br />
+
+E no emtanto Brito, com grandes bafos de vinho,
+roncava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu s&oacute; me contentava em agarrar n'um cajado
+e correr tudo! tudo!&mdash;E gesticulava com um
+gesto immenso que abrangia o mundo.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+&mdash;Tem as azas quebradas,<br />
+
+N&atilde;o p&oacute;de agora...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+gania atraz o Libaninho.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas pararam de repente: Natario adiante gritava
+com uma voz furiosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seu burro, voss&ecirc; n&atilde;o v&ecirc;? Sua
+b&ecirc;sta!
+<br />
+
+<br />
+
+Era &aacute; volta do atalho. Trope&ccedil;&aacute;ra com
+um velho
+que conduzia uma ovelha; ia cahindo; e amea&ccedil;ava-o
+com o punho fechado n'uma raiva avinhada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente
+o homem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sua b&ecirc;sta! berrava Natario com os olhos
+chammejantes. Que o racho!
+<br />
+
+<br />
+
+O homem balbuciava, tinha tirado o chap&eacute;o;
+<span class="pagenum">[146]</span>
+viam-se os seus cabellos brancos; parecia ser um
+antigo criado de lavoura envelhecido no trabalho;
+era talvez av&ocirc;&mdash;e curvado, vermelho de vergonha,
+encolhia-se com as sebes para deixar passar
+no estreito caminho de carros os senhores padres
+joviaes e excitados da vinha&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o os quiz acompanhar at&eacute; &aacute;
+fazenda.
+Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho
+de Sobros, voltou para Leiria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe que &eacute; uma legoa &aacute; cidade, dizia o abbade.
+Eu mando-lhe apparelhar a egoa, collega.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual historia, abbade, a perninha &eacute; rija!&mdash;E,
+tra&ccedil;ando alegremente a capa, partiu cantarolando o
+<em>Adeus</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao p&eacute; da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se,
+ao comprido d'um muro de quinta coberto de
+musgos e erri&ccedil;ado no alto de luzidios fundos de garrafas.
+Quando Amaro chegou proximo ao port&atilde;o de
+carros, baixo e pintado de vermelho, encontrou no
+meio do caminho, parada, uma grande vacca malhada;
+Amaro divertido espica&ccedil;ou-a com o guarda-chuva;
+a vacca trotou balou&ccedil;ando a papeira&mdash;e
+Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao port&atilde;o, que saudava,
+dizendo toda risonha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o est&aacute;-me a espantar o gado, senhor
+parocho?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a menina! Que milagre &eacute; este?
+<span class="pagenum">[147]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ella fez-se um pouco vermelha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vim &aacute; quinta com a D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+Vim dar uma vista d'olhos &aacute; fazenda.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao p&eacute; de Amelia uma rapariga acamava couves
+n'uma canastra.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o esta &eacute; que &eacute; a quinta da D.
+Maria?
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro deu um passo para dentro do port&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma
+sombra d&ocirc;ce, estendia-se at&eacute; &aacute; casa que
+se entrevia
+no fundo, branquejando ao sol.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute;. A nossa fazenda fica do outro lado, mas
+entra-se tambem por aqui. V&aacute;, Joanna, avia-te!
+<br />
+
+<br />
+
+A rapariga p&ocirc;z a canastra &aacute; cabe&ccedil;a, deu
+as boas
+tardes, metteu pelo caminho de Sobros, batendo
+muito os quadris.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa
+propriedade... considerava o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Venha v&ecirc;r a nossa fazenda! disse Amelia. &Eacute;
+uma migalhinha de terra, mas para fazer uma id&eacute;a.
+Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter l&aacute; baixo
+com a D. Maria, quer?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Valeu. Vamos l&aacute; &aacute; D. Maria, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O
+ch&atilde;o estava cheio de folhas s&ecirc;ccas, e, entre os
+troncos
+espa&ccedil;ados, moitas de hortensias pendiam abatidas,
+amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa
+baixa, velha, de um andar s&oacute;, assentava pesadamente.
+Ao longo da parede grandes aboboras amadureciam
+ao sol, e no telhado, todo negro do inverno,
+esvoa&ccedil;avam pombos. Por traz o laranjal formava
+<span class="pagenum">[148]</span>
+uma massa de folhagens verde-escuras; uma
+nora chiava monotonamente.
+<br />
+
+<br />
+
+Um rapazito passou com um balde de lavagem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para onde foi a senhora, Jo&atilde;o? perguntou
+Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi p'r'&oacute; olival, disse o rapaz com a sua vozinha
+arrastada.
+<br />
+
+<br />
+
+O olival era longe, no fundo da quinta: havia
+ainda grandes lamas, n&atilde;o se podia ir l&aacute; sem
+tamancos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar
+l&aacute; a D. Maria, hein? Vamos n&oacute;s v&ecirc;r a
+quinta...
+Por aqui, senhor parocho...
+<br />
+
+<br />
+
+Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam
+clematites. Amelia abriu uma porta verde; e
+por tres degraus de pedra desconjuntados desceram
+a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do
+muro cresciam rosas de todo o anno; do outro lado,
+por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada
+e os p&eacute;s torcidos das cepas, via-se, batido de
+luz, com tons amarellados, um grande campo de herva;
+os tectos baixos do curral coberto de colmo destacavam
+ao longe em escuro, e d'esse lado um fumosinho
+leve e branco perdia-se no ar muito azul.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia a cada momento parava, explicava a
+quinta:&mdash;Alli ia semear-se cevada; al&eacute;m havia de
+v&ecirc;r o cebolinho, estava muito bonito...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! a D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o traz isto muito
+bem tratado!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ouvia-a fallar, com a cabe&ccedil;a baixa, olhando-a
+<span class="pagenum">[149]</span>
+de lado; a sua voz n'aquelle silencio dos campos
+parecia-lhe mais rica, mais d&ocirc;ce; o grande ar
+dava-lhe uma c&ocirc;r mais picante &aacute;s faces; o seu
+olhar
+rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado
+o vestido; e a brancura da meia, que elle entreviu,
+perturbou-o como um come&ccedil;o da sua nudez.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao
+comprido d'um regueiro. Amelia riu muito do parocho,
+que tinha medo de sapos. Elle ent&atilde;o exagerou
+os seus sustos. &Oacute; menina Amelia, haveria viboras?
+E ro&ccedil;ava-se por ella, afastando-se das hervas altas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&ecirc; aquelle vallado? Pois para o lado de l&aacute;
+&eacute;
+a nossa fazenda. Entra-se pela cancella, v&ecirc;? Mas veja
+l&aacute; se est&aacute; cansado! Que o senhor parece-me que
+n&atilde;o &eacute; grande caminhador... Ai, um sapo!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro.
+Ella empurrou-o d&ocirc;cemente, e com um riso calido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seu medroso! seu medroso!
+<br />
+
+<br />
+
+Estava toda contente, toda viva. Fallava na <em>sua
+fazenda</em> com uma vaidadesinha satisfeita de entender
+da lavoura, de ser proprietaria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A cancella est&aacute; fechada, parece, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute;? fez ella.&mdash;Apanhou as saias, deu uma
+carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava,
+impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes
+hombreiras de madeira encravadas na espessura do
+silvado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi o caseiro que levou a chave!
+<br />
+
+<br />
+
+Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando
+muito tempo a voz:&mdash;Antonio! Antonio!
+<span class="pagenum">[150]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ninguem respondeu.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Anda l&aacute; para o fundo da quinta! disse ella.
+Que s&eacute;cca! Se o senhor parocho quizesse, aqui adiante
+p&oacute;de-se passar. Ha uma abertura no vallado, chamam-lhe
+o <em>salto da cabra</em>. P&oacute;de a
+gente saltar para
+o outro lado.
+<br />
+
+<br />
+
+E caminhando rente ao silvado, chapinhando a
+lama, toda alegre:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando eu era pequena nunca passava pela
+cancella, saltava sempre por alli. E cada trambolh&atilde;o
+quando o ch&atilde;o estava resvaladi&ccedil;o com a chuva!
+Era um vivo demonio, aqui onde me v&ecirc;! Ningu&eacute;m
+ha de dizer, senhor parocho, hein? Ai! vou-me
+a fazer velha!&mdash;E voltando-se para elle, com
+um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:&mdash;N&atilde;o
+&eacute; verdade? Estou-me a fazer velha, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe
+nas costas, depois do vinho do abbade, amollecia-o:
+e a figura d'ella, os seus hombros, os seus encontros
+davam-lhe um desejo continuo e intenso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui est&aacute; o <em>salto da
+cabra</em>, disse Amelia parando.
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma abertura estreita no vallado: a terra do
+outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se
+d'alli a fazenda da S. Joanneira: o campo plano
+estendia-se at&eacute; um olival, com a herva fina muito
+estrellada de pequenos malmequeres brancos; uma
+vacca preta, de grandes malhas, pastava; e para
+al&eacute;m viam-se tectos agu&ccedil;ados de casaes onde
+voavam
+revoadas de pardaes.
+<span class="pagenum">[151]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora? perguntou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Agora saltar, disse ella rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C&aacute; vai! exclamou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+Tra&ccedil;ou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas
+humidas&mdash;e immediatamente Amelia, debru&ccedil;ando-se,
+rindo muito, com grandes acenos de m&atilde;os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora adeus, senhor parocho, que eu vou
+ter com a D. Maria. Ahi fica preso na fazenda. Para
+cima n&atilde;o p&oacute;de o senhor pular, pela cancella
+n&atilde;o p&oacute;de
+o senhor passar! &Eacute; o senhor parocho que est&aacute;
+preso...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; menina Amelia! &oacute; menina Amelia!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella cantarolava-lhe, escarnecendo:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Fico s&oacute;sinha &aacute; varanda<br />
+
+Que o meu bem est&aacute; na pris&atilde;o!</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Aquellas maneirinhas excitavam o padre&mdash;e com
+os bra&ccedil;os erguidos, a voz calida:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Salte, salte!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ent&atilde;o fez voz de mimo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, tenho medinho! tenho medinho...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Salte, menina!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; vai! gritou ella bruscamente.
+<br />
+
+<br />
+
+Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho.
+Amaro resvalou, firmou-se&mdash;e, sentindo entre
+os bra&ccedil;os o corpo d'ella, apertou-a brutalmente
+e beijou-a com furor no pesco&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada,
+com a face em braza, compondo na cabe&ccedil;a e
+em roda do pesco&ccedil;o, com as m&atilde;os tremulas, as
+pregas
+da manta de l&atilde;. Amaro disse-lhe:
+<span class="pagenum"><a name="p152" id="p152">[152]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ameliasinha!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu
+ao comprido do vallado. Amaro, com grandes passadas,
+seguiu-a atarantado. Quando chegou &aacute; cancella,
+Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com
+a chave.
+<br />
+
+<br />
+
+Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois
+a rua coberta com a parreira. Amelia adiante palrava
+com o caseiro; e atraz Amaro, de cabe&ccedil;a baixa,
+seguia muito murcho. Ao p&eacute; da casa Amelia parou,
+fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em
+redor do pesco&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Antonio, disse, ensine o port&atilde;o ao senhor
+parocho. Muito boas tardes, senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+E atrav&eacute;s das terras humidas correu para o fundo
+da quinta, para os lados do olival.
+<br />
+
+<br />
+
+A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o ainda
+l&aacute; estava,
+sentada n'uma pedra, tagarellando com o tio Patricio;
+um bando de mulheres, com grandes varas, batiam
+em redor a ramagem das oliveiras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; isso, tonta? D'onde vens tu a correr,
+rapariga? Credo, que doida!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vim a correr, disse <a href="#e4">ella</a> toda
+vermelha, suffocada.
+<br />
+
+<br />
+
+Sentou-se ao p&eacute; da velha; e ficou immovel, com
+as m&atilde;os cah&iacute;das no rega&ccedil;o, respirando
+fortemente, os
+bei&ccedil;os entreabertos, os olhos fixos n'uma
+abstrac&ccedil;&atilde;o.
+Todo o seu s&ecirc;r se abysmava n'uma s&oacute;
+sensa&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gosta de mim! Gosta de mim!
+<span class="pagenum">[153]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Estava ha muito namorada do padre Amaro&mdash;e
+&aacute;s vezes, s&oacute;, no seu quarto, desesperava-se por
+imaginar
+que elle n&atilde;o percebia nos seus olhos a confiss&atilde;o
+do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas
+o ouvia pela manh&atilde; pedir de baixo o almo&ccedil;o,
+sentia uma alegria penetrar todo o seu s&ecirc;r sem
+raz&atilde;o,
+punha-se a cantarolar com uma volubilidade de
+passaro. Depois via-o um pouco triste. Porqu&ecirc;? N&atilde;o
+conhecia o seu passado; e, lembrada do frade d'Evora,
+pensou que elle se fizera padre por um desgosto
+d'amor. Idealisou-o ent&atilde;o: suppunha-lhe uma natureza
+muito terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa
+e pallida se desprendia uma fascina&ccedil;&atilde;o. Desejou
+tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada
+aos p&eacute;s d'elle, no confessionario, vendo de perto os
+seus olhos negros, sentindo a sua voz suave fallar
+do paraiso! Gostava muito da frescura da sua boca;
+fazia-se pallida &agrave; id&eacute;a de o poder
+abra&ccedil;ar na sua
+longa batina preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto
+d'elle, beijava a travesseirinha, guardava os cabellos
+curtos que tinham ficado nos dentes do pente.
+As faces abrazavam-se-lhe quando o ouvia tocar a
+campainha.
+<br />
+
+<br />
+
+Se Amaro jantava f&oacute;ra com o conego Dias estava
+todo o dia impertinente, ralhava com a
+<em>Ru&ccedil;a</em>,
+&aacute;s vezes mesmo dizia mal d'elle, &laquo;que era
+casmurro,
+que era t&atilde;o novo que nem inspirava respeito&raquo;.
+<span class="pagenum">[154]</span>
+Quando elle fallava d'alguma nova confessada, amuava,
+com um ciume pueril. A sua antiga devo&ccedil;&atilde;o
+renascia,
+cheia de um fervor sentimental: sentia um
+vago amor physico pela Igreja; desejaria abra&ccedil;ar,
+com pequeninos beijos demorados, o altar, o org&atilde;o,
+o missal, os santos, o c&eacute;o, porque n&atilde;o os
+distinguia
+bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias da sua
+pessoa. Lia o seu livro de missa pensando n'elle como
+no seu Deus particular. E Amaro n&atilde;o sabia, quando
+passeava agitado pelo quarto, que ella em cima
+o escutava, regulando as palpita&ccedil;&otilde;es do seu
+cora&ccedil;&atilde;o
+pelas passadas d'elle, abra&ccedil;ando o travesseiro, toda
+desfallecida de desejos, dando beijos no ar, onde se
+lhe representavam os labios do parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram
+para a cidade. Amelia adiante, calada, chibatava
+a sua burrinha, emquanto D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o
+vinha palrando com o mo&ccedil;o da quinta, que segurava
+a arreata. Ao passar junto &aacute; S&eacute; tocou a
+Ave-Marias. E Amelia, rezando, n&atilde;o podia destacar
+os olhos das cantarias da igreja t&atilde;o grandiosamente
+erguidas, decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe
+ent&atilde;o domingos em que o vira, ao repicar
+dos sinos, dar a ben&ccedil;&atilde;o dos degraus do
+altar-m&oacute;r;
+e todos se curvavam, mesmo as senhoras do
+morgado Carreiro, mesmo a senhora baroneza de
+Via-Clara e a mulher do governador civil, t&atilde;o orgulhosa,
+<span class="pagenum">[155]</span>
+com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob
+os seus dedos erguidos, e achavam decerto tambem
+bonitos os seus olhos negros! E era elle que a
+tinha apertado nos bra&ccedil;os, ao p&eacute; do vallado!
+Sentia
+ainda no pesco&ccedil;o a press&atilde;o calida dos seus
+bei&ccedil;os:
+uma paix&atilde;o flammejou como uma chamma por todo
+o seu s&ecirc;r: largou a arreata do burrinho, apertou as
+m&atilde;os contra o peito, e cerrando os olhos,
+lan&ccedil;ando
+toda a sua alma n'uma devo&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Nossa Senhora das D&ocirc;res, minha madrinha,
+faze que elle goste de mim!
+<br />
+
+<br />
+
+No adro lageado conegos passeavam, conversando.
+A botica defronte j&aacute; tinha luz, os bocaes reluziam;
+e por detraz da balan&ccedil;a a figura do pharmaceutico
+Carlos, com o seu bon&eacute; bordado a missanga,
+movia-se magestosamente.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+VIII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro volt&aacute;ra para casa aterrado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora? E agora? dizia elle encostado ao
+canto da janella, sentindo o cora&ccedil;&atilde;o encolhido.
+<br />
+
+<br />
+
+Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira!
+N&atilde;o podia continuar alli, na mesma familiaridade,
+depois de ter tido &laquo;aquelle atrevimento com
+a pequena&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Que ella n&atilde;o fic&aacute;ra muito indignada&mdash;apenas
+atordoada; contivera-a talvez o respeito ecclesiastico,
+a delicadeza para com o hospede, a atten&ccedil;&atilde;o
+para com o amigo do conego. Mas podia contar &aacute;
+m&atilde;i, ao escrevente... Que escandalo! E via j&aacute; o
+senhor
+chantre, tra&ccedil;ando a perna e fitando-o,&mdash;que
+era a sua attitude de reprehens&atilde;o&mdash;dizer-lhe com
+pompa:&mdash;&laquo;S&atilde;o esses desregramentos que deshonram
+o sacerdocio. N&atilde;o se comportaria d'outro modo
+<span class="pagenum">[158]</span>
+um Satyro no monte Olympo!&raquo;&mdash;Poderiam desterral-o
+outra vez para alguma freguezia da serra!...
+Que diria a senhora condessa de Ribamar?
+<br />
+
+<br />
+
+E depois, se persistisse em v&ecirc;l-a na intimidade,
+ter constantemente presentes aquelles olhos negros,
+o sorriso calido que lhe fazia uma covinha no queixo,
+a curva d'aquelle peito&mdash;a sua paix&atilde;o, crescendo
+surdamente, irritada a toda a hora, recalcada
+para dentro, tornal-o-hia doido, &laquo;podia fazer alguma
+asneira&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Decidiu-se ent&atilde;o a ir fallar ao conego Dias: a
+sua natureza fraca necessitava sempre receber for&ccedil;as
+d'uma raz&atilde;o, d'uma experiencia alheia: costumava
+consultar ordinariamente o conego que, pelo
+habito da disciplina ecclesiastica, elle julgava mais
+intelligente por ser seu superior na hierarchia; e
+n&atilde;o perdera, desde o seminario, a sua dependencia
+de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa
+e uma criada para ir viver s&oacute;, necessitava o auxilio
+do conego, que conhecia Leiria como se a tivesse
+edificado.
+<br />
+
+<br />
+
+Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de
+azeite esmorecia com um murr&atilde;o avermelhado. Os
+ti&ccedil;&otilde;es da brazeira, cobertos d'uma
+pulverisa&ccedil;&atilde;o de
+cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado
+n'uma cadeira de bra&ccedil;os, com o capote pelos
+hombros, os p&eacute;s embrulhados n'um cobertor, amodorrado
+no calor do lume, com o Breviario sobre os
+joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a
+<em>Trigueira</em>
+estirada dormitava como elle.
+<span class="pagenum">[159]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Aos passos de Amaro o conego abriu muito devagar
+os olhos, rosnou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ia adormecendo, hein!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; cedo, disse o padre Amaro. Ainda n&atilde;o tocou
+a recolher. Ent&atilde;o que pregui&ccedil;a &eacute; essa?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! &eacute; voss&ecirc;? disse o conego com um enorme
+bocejo. Cheguei tarde de casa do abbade, tomei uma
+gota de ch&aacute;, veio o quebranto... Ent&atilde;o que
+&eacute; feito?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vim por aqui.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella
+estava de m&atilde;o cheia! Eu carreguei-me um
+bocado, disse o conego rufando com os dedos na
+capa do Breviario.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, sentado ao p&eacute; d'elle, remexia devagar o
+brazido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabe voss&ecirc;, padre-mestre? disse elle de repente.
+Ia acrescentar:&mdash;Aconteceu-me um caso!&mdash;Mas
+reteve-se, murmurou:&mdash;Estou hoje exquisito;
+tenho andado ultimamente f&oacute;ra dos eixos...
+<br />
+
+<br />
+
+-Voss&ecirc; com effeito anda amarello, disse o conego,
+considerando-o. Purgue-se, homem!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro esteve um momento calado, a olhar o
+lume.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabe? estou com id&eacute;a de mudar de casa.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ergueu a cabe&ccedil;a, arregalou os olhinhos
+somnolentos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mudar de casa! Ora essa! Porqu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro chegou a cadeira para elle, e fallando
+baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; percebe... Tenho estado a pensar, &eacute;
+<span class="pagenum">[160]</span>
+assim exquisito estar em casa de duas mulheres,
+com uma rapariga...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, historias! Que me vem voss&ecirc; contar?
+Voss&ecirc; &eacute; hospede... Deixe-se d'isso, homem!
+&Eacute; como
+quem est&aacute; na hospedaria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, padre-mestre, eu c&aacute; me
+entendo...
+<br />
+
+<br />
+
+E suspirou; desejava que o conego o interrogasse,
+facilitasse as confidencias.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o s&oacute; hoje &eacute; que pensa n'isso,
+Amaro?!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto.
+Tenho minhas raz&otilde;es.&mdash;Ia a dizer:&mdash;Fiz uma tolice,&mdash;mas
+acanhou-se.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego olhou para elle um momento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, seja franco!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; acha aquillo caro?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o! disse o outro com uma nega&ccedil;&atilde;o
+impaciente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, ent&atilde;o &eacute; outra coisa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute;. Voss&ecirc; que quer?&mdash;E n'um tom magano,
+com que julgou agradar ao conego:&mdash;A gente tambem
+gosta do que &eacute; bom...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, disse o conego rindo, percebo.
+Voss&ecirc;, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer
+por bons modos que tem nojo de tudo aquillo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolice! disse Amaro erguendo-se, irritado de
+tanta obtusidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, homem! exclamou o conego abrindo os
+bra&ccedil;os. Voss&ecirc; quer sahir da casa? Por alguma
+&eacute;!
+Ora a mim parece-me que melhor...
+<span class="pagenum">[161]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, &eacute; verdade, dizia Amaro que dava
+agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta
+ferrada! Veja voss&ecirc; se me arranja uma casita barata
+com alguma mobilia... Voss&ecirc; entende melhor
+d'essas coisas...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ficou calado, muito enterrado na poltrona,
+co&ccedil;ando devagar o queixo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma casita barata... rosnou por fim. Eu verei,
+eu verei... Talvez.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; comprehende, acudiu vivamente Amaro,
+chegando-se ao conego. A casa da S. Joanneira...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e
+depois de conversarem sobre o jantar do abbade, o
+catarrho da pobre D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, a
+doen&ccedil;a
+de figado que ia minando o engra&ccedil;ado conego Sanches&mdash;Amaro
+sahiu, quasi contente agora de se n&atilde;o
+&laquo;ter desabotoado com o padre-mestre&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ficou ainda ao p&eacute; do lume, ruminando.
+Aquella resolu&ccedil;&atilde;o d'Amaro de deixar a casa da S.
+Joanneira era bem vinda; quando elle o trouxera
+d'hospede para a rua da Misericordia, combin&aacute;ra com
+a S. Joanneira diminuir-lhe a mezada que havia annos
+lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se
+logo; a S. Joanneira, se n&atilde;o tinha hospede,
+dormia s&oacute; no primeiro andar: o conego podia ent&atilde;o
+saborear livremente os carinhos da sua velhota,&mdash;e
+Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este
+&laquo;conch&ecirc;gosinho&raquo;. Quando veio o padre
+Amaro, a
+S. Joanneira cedeu-lhe o quarto e dormia n'uma cama
+de ferro ao p&eacute; da filha: e o conego ent&atilde;o
+reconheceu,
+<span class="pagenum">[162]</span>
+como elle disse, desconsolado&mdash;&laquo;que aquelle
+arranjo tinha estragado tudo&raquo;. Para gozar as
+do&ccedil;uras
+da s&eacute;sta com a sua S. Joanneira era necessario
+que Amelia jantasse f&oacute;ra, que a
+<em>Ru&ccedil;a</em> estivesse
+na fonte, outras combina&ccedil;&otilde;es importunas; e elle,
+conego
+do cabido, na egoista velhice, quando precisava
+ter recato com a sua saude, via-se obrigado a esperar,
+a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares
+e hygienicos as difficuldades d'um collegial que ama
+a senhora professora. Ora se Amaro sahisse, a S.
+Joanneira descia ao seu quarto, no primeiro andar;
+vinham as antigas commodidades, as tranquillas s&eacute;stas.
+&Eacute; verdade que tinha de dar a antiga mezada...
+Daria a mezada!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que diabo! ao menos est&aacute; um homem &aacute; sua
+vontade, resumiu elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que est&aacute; para ahi o mano a fallar s&oacute;? perguntou
+a snr.<sup>a</sup> D. Josepha despertando do quebranto
+em que ia cahindo, ao p&eacute; do lume.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estava c&aacute; a malucar como hei de castigar a
+carne na quaresma...&mdash;disse o conego com um
+riso grosso.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+A essa hora a <em>Ru&ccedil;a</em>
+chamava o padre Amaro para
+o ch&aacute;: e elle subia devagar, com o
+cora&ccedil;&atilde;o pequenino,
+receando encontrar a S. Joanneira muito
+carrancuda, j&aacute; informada do insulto. Achou s&oacute;
+Amelia&mdash;que
+<span class="pagenum">[163]</span>
+tendo-lhe sentido os passos na escada tom&aacute;ra
+rapidamente a costura e, com a cabe&ccedil;a muito
+baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o len&ccedil;o
+que abainhava para o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito boa noite, menina Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito boa noite, senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia costumava sempre ter um
+<em>ol&aacute;!</em> ou um
+<em>ora viva!</em> muito amavel; aquella
+seccura aterrou-o;
+disse-lhe logo muito perturbado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menina Amelia, eu pe&ccedil;o-lhe que me perd&ocirc;e...
+Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz...
+Mas acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui. At&eacute;
+j&aacute; pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...
+<br />
+
+<br />
+
+Fallava com o rosto baixo&mdash;e n&atilde;o via Amelia
+erguer os olhos para elle, surprehendida e toda desconsolada.
+<br />
+
+<br />
+
+N'este momento a S. Joanneira entrou, e logo da
+porta, abrindo os bra&ccedil;os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva! Ent&atilde;o j&aacute; sei, j&aacute; sei! Disse-me
+o senhor
+padre Natario: grande jantar! Conte l&aacute;, conte l&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do
+Libaninho, a discuss&atilde;o theologica; depois fallaram
+da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a
+dizer &aacute; S. Joanneira que ia deixar a casa,&mdash;o que
+era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis
+tost&otilde;es por dia!
+<br />
+
+<br />
+
+Na manh&atilde; seguinte o conego foi a casa d'Amaro,
+pela manh&atilde;, antes d'ir ao c&ocirc;ro. O parocho fazia
+a barba &aacute; janella:
+<span class="pagenum">[164]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&aacute;, padre-mestre! Que ha de novo?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece-me que se arranja a coisa! E foi por
+acaso, esta manh&atilde;... Ha uma casita l&aacute; para os
+meus
+lados, que &eacute; um achado. Era do major Nunes, que
+vai mudado para o 5.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella precipita&ccedil;&atilde;o desagradou a Amaro:
+perguntou,
+dando desconsoladamente o fio &aacute; navalha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem mobilia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem mobilia, tem lou&ccedil;as, tem roupas, tem
+tudo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o &eacute; entrar e come&ccedil;ar a gozar. E
+aqui para
+n&oacute;s, Amaro, voss&ecirc; tem raz&atilde;o. Estive a
+pensar no
+caso... &Eacute; melhor para voss&ecirc; viver s&oacute;.
+De modo
+que vista-se, e vamos v&ecirc;r a casita.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
+<br />
+
+<br />
+
+A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito
+velha, com a madeira carunchosa: a mobilia, como
+disse o conego, &laquo;podia passar a veteranos&raquo;; algumas
+lithographias desbotadas pendiam lugubremente
+de grandes pr&eacute;gos negros; e o immundo major
+Nunes deix&aacute;ra os vidros quebrados, os soalhos todos
+escarrados, as paredes riscadas de phosphoros, e at&eacute;
+sobre um poial da janella duas piugas quasi negras.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manh&atilde; o
+conego ajustou-lhe uma criada, a snr.<sup>a</sup> Maria
+Vicencia,
+pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro,
+antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como
+considerou o conego Dias) era a propria irm&atilde; da
+famosa Dionysia!
+<span class="pagenum">[165]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia f&ocirc;ra outr'ora a <em>Dama das
+Camelias</em>,
+a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: goz&aacute;ra a honra
+de ser concubina de dois governadores civis e do
+terrivel morgado da Sertejeira; e as paix&otilde;es phreneticas
+que inspir&aacute;ra tinham sido para quasi todas as
+m&atilde;es de familia de Leiria causa de lagrimas e de fanicos.
+Agora engommava para f&oacute;ra, encarregava-se
+de empenhar objectos, entendia muito de partos,
+protegia &laquo;o rico adulteriosinho&raquo; segundo a singular
+express&atilde;o do velho D. Luiz da Barrosa cognominado
+o <em>infame</em>, fornecia lavradeirinhas
+aos senhores empregados
+publicos, sabia toda a historia amorosa do
+districto. E via-se sempre na rua a Dionysia com o
+seu chale de xadrez tra&ccedil;ado, o pesado seio tremendo
+dentro d'um chambre sujo, o passinho discreto e
+os antigos sorrisos&mdash;mas a que faltavam j&aacute; os dois
+dentes de diante.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego logo n'essa tarde deu parte &aacute; S. Joanneira
+da resolu&ccedil;&atilde;o d'Amaro. Foi um grande espanto
+para a excellente senhora! Queixou-se, com amargura,
+da ingratid&atilde;o do senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego tossiu grosso e disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa.
+E eu lhe digo porqu&ecirc;: &eacute; que este arranjo de quarto
+em cima, etc., est&aacute;-me a arrazar a saude.
+<br />
+
+<br />
+
+Deu outras raz&otilde;es de prudencia hygienica e
+acrescentou, passando-lhe com bondade os dedos
+pelo pesco&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o que &eacute; perder a conveniencia, n&atilde;o se afflija
+a senhora! Eu darei p'r'&aacute; panella como d'antes;
+<span class="pagenum">[166]</span>
+e como a colheita foi boa porei mais meia moeda
+para os arrebiques da pequena. Ora venha de l&aacute;
+uma beijoca, Augustinha, sua br&eacute;jeira! E ou&ccedil;a,
+hoje
+como-lhe c&aacute; as sopas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua
+roupa. Mas a cada momento parava, dava um
+<em>ai</em>
+triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama
+f&ocirc;fa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira
+forrada de chita onde elle lia o Breviario, ouvindo,
+por cima, cantarolar Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca mais! pensava. Nunca mais!
+<br />
+
+<br />
+
+Adeus as boas manh&atilde;s passadas ao p&eacute; d'ella,
+vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que
+se prolongavam &aacute; luz do candieiro! Adeus os ch&aacute;s,
+ao p&eacute; da brazeira, quando o vento uivava f&oacute;ra e
+cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira e o conego appareceram ent&atilde;o &aacute;
+porta do quarto. O conego resplandecia; e a S. Joanneira
+disse, muito magoada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; sei, j&aacute; sei, seu ingrato!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo
+os hombros tristemente. Mas ha raz&otilde;es... Eu
+sinto...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira,
+n&atilde;o se offenda com o que lhe vou dizer, mas eu j&aacute;
+lhe queria como filho...&mdash;E levou o len&ccedil;o aos olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolices! exclamou o conego. Pois ent&atilde;o elle
+n&atilde;o p&oacute;de vir aqui em amizade, passar as noites
+para o cavaco, tomar o seu caf&eacute;?... O homem n&atilde;o
+vai para o Brazil, senhora!
+<span class="pagenum">[167]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada,
+mas sempre era tel-o de portas a dentro!
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa
+est&aacute; muito melhor... Fez-lhe ent&atilde;o grandes
+recommenda&ccedil;&otilde;es
+sobre a lavadeira, que mandasse buscar
+o que quizesse, lou&ccedil;as, len&ccedil;oes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E veja l&aacute; n&atilde;o lhe esque&ccedil;a alguma
+coisa, senhor
+parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado...
+<br />
+
+<br />
+
+E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho
+desesperava-se agora contra a resolu&ccedil;&atilde;o que
+tom&aacute;ra.
+A pequena evidentemente n&atilde;o tinha aberto bico!
+Para que sahiria ent&atilde;o d'aquella casa t&atilde;o barata,
+t&atilde;o
+confortavel, t&atilde;o amiga? E odiava o conego pelo seu
+zelo t&atilde;o precipitado.
+<br />
+
+<br />
+
+O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar
+a sua pallidez, queixava-se de d&ocirc;res na cabe&ccedil;a. Ao
+caf&eacute; o conego quiz a sua &laquo;d&oacute;se de
+musica&raquo;; e
+Amelia, ou machinalmente ou com inten&ccedil;&atilde;o, disse a
+can&ccedil;&atilde;o querida:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ai! adeos! acabaram-se os dias<br />
+
+Que ditoso vivi a teu lado!<br />
+
+S&ocirc;a a hora, o momento fadado,<br />
+
+&Eacute; for&ccedil;oso deixar-te e partir!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, &aacute;quella chorosa melodia repassada das
+tristezas da separa&ccedil;&atilde;o, Amaro sentiu-se
+t&atilde;o perturbado
+que teve de se erguer bruscamente, ir encostar
+o rosto &aacute; vidra&ccedil;a, esconder as duas lagrimas que
+<span class="pagenum">[168]</span>
+irreprimivelmente lhe saltavam das palpebras. Os
+dedos d'Amelia embrulhavam-se tambem no teclado;
+at&eacute; a mesma S. Joanneira disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh filha, toca outra coisa, credo!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego erguendo-se pesadamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois senhores, v&atilde;o sendo horas. Vamos l&aacute;,
+Amaro. Eu vou comsigo at&eacute; a rua das Sousas...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o quiz dizer adeus &aacute; idiota; mas,
+depois
+d'um forte accesso de tosse, a velha dormia,
+muito fraca.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando
+a m&atilde;o &aacute; S. Joanneira:&mdash;Muito obrigado por tudo,
+minha senhora, acredite...
+<br />
+
+<br />
+
+Calou-se, com um solu&ccedil;o na garganta.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira tinha levado aos olhos a ponta do
+seu avental branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhora! disse o conego rindo-se, j&aacute; ha
+bocado lhe disse, o homem n&atilde;o vai p'r'&aacute;s Indias!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A gente &eacute; pela amizade que lhes ganha...
+choramingou a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro tentou gracejar. Amelia, muito branca,
+mordia o beicinho.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim Amaro desceu: e o Jo&atilde;o Ru&ccedil;o que na sua
+chegada a Leiria lhe trouxera o bah&uacute; para a rua da
+Misericordia, muito bebedo, cantarolando o
+<em>Bemdito</em>,&mdash;levava-lh'o
+agora para a rua das Sousas, bebedo
+tambem, mas trauteando o <em>Rei-chegou</em>.
+<span class="pagenum">[169]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Amaro, n'essa noite, se viu s&oacute; n'aquella
+casa tristonha, sentiu uma melancolia t&atilde;o pungente
+e um tedio t&atilde;o negro da vida, que, com a sua natureza
+lassa, teve vontade de se encolher a um canto
+e ficar alli a morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em
+redor: a cama era de ferro, pequena, com um colch&atilde;o
+duro e uma coberta vermelha; o espelho com
+o a&ccedil;o gasto luzia sobre a mesa; como n&atilde;o havia
+lavatorio,
+a bacia e o jarro, com um bocadinho de
+sabonete, estavam sobre o poial da janella; tudo
+alli cheirava a m&ocirc;fo; e f&oacute;ra, na rua negra, cahia
+sem cessar a chuva triste. Que existencia! E seria
+sempre assim!...
+<br />
+
+<br />
+
+Desesperou-se ent&atilde;o contra Amelia: accusou-a,
+com o punho fechado, das commodidades que perdera,
+da falta de mobilia, da despeza que ia ter, da
+solid&atilde;o que o regelava! Se fosse mulher de
+cora&ccedil;&atilde;o
+devia ter vindo ao seu quarto e dizer-lhe: &laquo;Senhor
+padre Amaro, para que sae de casa? Eu n&atilde;o estou
+zangada!&raquo; Porque emfim quem irrit&aacute;ra o seu desejo?
+Ella, com as suas maneirinhas ternas, os seus
+olhinhos adocicados! Mas n&atilde;o, deix&aacute;ra-o emmalar a
+roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga,
+indo tocar com estrondo a valsa do
+<em>Beijo</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+Jurou ent&atilde;o n&atilde;o voltar a casa da S. Joanneira. E,
+a grandes passadas pelo quarto, pensara no que
+havia de fazer para humilhar Amelia. O qu&ecirc;? Desprezal-a
+<span class="pagenum">[170]</span>
+como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade
+devota de Leiria, ser muito do senhor chantre;
+afastar da rua da Misericordia o conego e as Gansosos;
+intrigar com as senhoras da boa roda para
+que se afastassem d'ella, com seccura, no altar-m&oacute;r,
+&aacute; missa do domingo; dar a entender que a m&atilde;i era
+uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E na
+S&eacute;, ao sahir da missa, regalar-se de a v&ecirc;r passar
+encolhida
+no seu mantelete preto, escorra&ccedil;ada de todos,
+emquanto elle, &aacute; porta, de proposito, conversaria
+com a mulher do senhor governador civil e seria
+galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois
+pr&eacute;garia um grande serm&atilde;o, na quaresma, e ella
+ouviria
+dizer, na arcada, nas lojas: &laquo;Grande homem,
+o padre Amaro!&raquo; Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria
+e, protegido pela senhora condessa de Ribamar,
+subiria nas dignidades ecclesiasticas: e o que pensaria
+ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido
+e interessante na sua mitra toda dourada, passando,
+seguido dos incensadores, ao longo da nave
+da S&eacute;, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os
+roucos cantos do org&atilde;o? E ella o que seria ent&atilde;o?
+Uma magra creatura murcha, embrulhada n'um chale
+barato! E o snr. Jo&atilde;o Eduardo, o escolhido d'agora,
+o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago,
+com uma quinzena ro&ccedil;ada, os dedos queimados do
+cigarro, curvado sobre o seu papel almasso, imperceptivel
+na terra, adulando alto e invejando baixo!
+E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que
+sobe at&eacute; ao c&eacute;o, estaria j&aacute; muito para
+cima dos homens,
+<span class="pagenum">[171]</span>
+na zona de luz que faz a face de Deus-Padre!&mdash;E
+seria par do reino, e os padres da sua
+diocese tremeriam de o v&ecirc;r franzir a testa!
+<br />
+
+<br />
+
+Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
+<br />
+
+<br />
+
+Que faria ella &aacute;quella hora? pensava. Costurava
+decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam
+a bisca, riam&mdash;ella ro&ccedil;ava-lhe talvez com o
+p&eacute;, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu
+p&eacute;,
+o bocadinho da meia que vira quando ella saltava
+as lamas na quinta; e essa curiosidade inflammada
+subia pela curva da perna at&eacute; ao seio, percorrendo
+bellezas que suspeitava... O que elle gostava
+d'aquella maldita! E era impossivel obtel-a! E todo
+o homem feio e estupido podia ir &aacute; rua da Misericordia
+pedil-a &aacute; m&atilde;i, vir &aacute; S&eacute;
+dizer-lhe: &laquo;Senhor
+parocho, case-me com esta mulher&raquo;, e beijar, sob
+a protec&ccedil;&atilde;o da Igreja e do Estado, aquelles
+bra&ccedil;os
+e aquelle peito! Elle n&atilde;o. Era padre! F&ocirc;ra aquella
+infernal p&ecirc;ga da marqueza d'Alegros!...
+<br />
+
+<br />
+
+Abominava ent&atilde;o todo o mundo secular&mdash;por
+lhe ter perdido para sempre os privilegios: e, como
+o sacerdocio o excluia da participa&ccedil;&atilde;o nos
+prazeres
+humanos e sociaes, refugiava-se, em compensa&ccedil;&atilde;o,
+na id&eacute;a da superioridade espiritual que elle lhe dava
+sobre os homens. Aquelle miseravel escrevente podia
+casar e possuir a rapariga&mdash;mas que era elle
+em compara&ccedil;&atilde;o d'um parocho a quem Deus conferira
+o poder supremo de distribuir o c&eacute;o e o inferno?...&mdash;E
+repastava-se d'este sentimento, enchendo
+o espirito d'orgulhos sacerdotaes. Mas vinha-lhe
+<span class="pagenum">[172]</span>
+bem depressa a desconsoladora id&eacute;a que esse dominio
+s&oacute; era valido na regi&atilde;o abstracta das almas;
+nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes,
+em plena sociedade. Era um Deus dentro da S&eacute;&mdash;mas,
+apenas sahia para o largo, era apenas um plebeu
+obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a
+ac&ccedil;&atilde;o sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre
+almas de beatas... E era isto que lamentava, esta
+diminui&ccedil;&atilde;o
+social da Igreja, esta mutila&ccedil;&atilde;o do poder
+ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre
+o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que
+lhe faltava era a auctoridade dos tempos em que a
+Igreja era a na&ccedil;&atilde;o e o parocho dono temporal do
+rebanho.
+Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico
+d'abrir ou fechar as portas do c&eacute;o? O que elle
+queria era o velho direito d'abrir ou fechar a porta
+das masmorras! Necessitava que os escreventes e as
+Amelias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria
+ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das
+vantagens que d&aacute; a denuncia e dos terrores que inspira
+o carrasco, e alli n'aquella villa, sob a
+jurisdic&ccedil;&atilde;o
+da sua S&eacute;, fazer estremecer, &aacute; id&eacute;a de
+castigos torturantes,
+aquelles que aspirassem a realisar felicidades&mdash;que
+lhe eram a elle interdictas: e pensando em
+Jo&atilde;o Eduardo e em Amelia, lamentava n&atilde;o poder
+accender
+as fogueiras da Inquisi&ccedil;&atilde;o!&mdash;Assim aquelle
+inoffensivo mo&ccedil;o tinha durante horas, sob a
+excita&ccedil;&atilde;o
+colerica d'uma paix&atilde;o contrariada,
+ambi&ccedil;&otilde;es
+grandiosas de tyrannia catholica:&mdash;porque todo o
+padre, o mais bo&ccedil;al, tem um momento em que &eacute;
+penetrado
+<span class="pagenum">[173]</span>
+pelo espirito da Igreja ou nos seus lances
+de renunciamento mystico ou nas suas ambi&ccedil;&otilde;es de
+domina&ccedil;&atilde;o universal: todo o sub-diacono se julga
+uma hora capaz de ser santo ou de ser Papa: n&atilde;o
+ha seminarista que n&atilde;o tenha, durante um instante,
+aspirado com ternura &aacute; caverna no deserto em que
+S. Jeronymo, olhando o c&eacute;o estrellado, sentia descer-lhe
+sobre o peito a Gra&ccedil;a como um abundante
+rio de leite: e o abbade pansudo que &aacute; tardinha,
+&aacute;
+varanda, palita o dente furado saboreando o seu
+caf&eacute; com um ar paterno, traz dentro em si os indistinctos
+restos d'um Torquemada.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+A vida d'Amaro tornou-se monotona. Mar&ccedil;o ia
+muito molhado, muito frio; e, depois do servi&ccedil;o na
+S&eacute;, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas,
+ficava em chinelas a aborrecer-se. &Aacute;s tres
+horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada
+da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente,
+do jantarinho na rua da Misericordia, quando
+Amelia, com o seu collar muito branco, lhe passava
+a sopa de gr&atilde;os de bico, sorrindo, toda carinhosa.
+Ao lado a Vicencia servia, t&ecirc;sa e enorme,
+com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre
+constipada; e de vez em quando, desviando a
+cabe&ccedil;a, assoava-se ao avental com ruido. Era muito
+suja: as facas tinham o cabo humido da agua gordurosa
+das lavagens. Amaro, desgostoso e indifferente,
+<span class="pagenum">[174]</span>
+n&atilde;o se queixava; comia mal, &aacute; pressa; mandava
+vir o caf&eacute;, e ficava horas esquecidas sentado
+&aacute; mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do
+prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo os p&eacute;s e
+os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas
+da sala desabrigada.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes o coadjutor, que nunca o visit&aacute;ra na
+rua da Misericordia, apparecia ao fim do jantar: sentava-se
+arredado da mesa, e ficava calado, com o
+seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando
+agradar ao parocho, repetia, invariavelmente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa senhoria aqui est&aacute; melhor, sempre &eacute;
+estar em sua casa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro... rosnava Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia
+ligeiramente mal da S. Joanneira, provocando, animando
+o coadjutor (que era de Leiria) a contar os
+escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por
+servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfidia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alli ha p&ocirc;dres, hein? dizia o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+O outro encolhia os hombros, com as m&atilde;os muito
+espalmadas ao p&eacute; das orelhas, n'uma express&atilde;o
+de malicia; mas n&atilde;o pronunciava um som, receando
+que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o
+senhor conego. Ficavam ent&atilde;o soturnos, trocando, a
+espa&ccedil;os, phrases molles: um baptisado que havia; o
+que dissera o conego Campos; um frontal do altar
+que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava
+Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito
+<span class="pagenum">[175]</span>
+distante da panellinha ecclesiastica: n&atilde;o o interessavam
+as intriguinhas do cabido, as parcialidades
+t&atilde;o commentadas do senhor chantre, os roubos da
+Misericordia, as turras da camara ecclesiastica com
+o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado,
+nas palestras ecclesiasticas em que t&atilde;o femininamente
+se deleitam os padres, e que t&ecirc;m a
+puerilidade d'uma caturrice e a tortuosidade d'uma
+conspira&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O vento est&aacute; sul? perguntava elle emfim, bocejando.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre! respondia o coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia
+o guardachuva, e sahia com um olhar de revez
+&aacute; Vicencia.
+<br />
+
+<br />
+
+Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava
+s&oacute;. Procurava l&ecirc;r, mas os livros enfastiavam-n'o:
+deshabituado da leitura n&atilde;o comprehendia &laquo;o
+sentido&raquo;. Ia olhar &aacute; vidra&ccedil;a: a noite
+estava tenebrosa,
+o lagedo reluzia vagamente. Quando acabaria
+aquella vida? Accendia o cigarro, e do lavatorio para
+a janella recome&ccedil;ava os seus passeios, com as
+m&atilde;os atraz das costas. Deitava-se sem rezar &aacute;s
+vezes:
+e n&atilde;o tinha escrupulos: julgava que ter renunciado
+a Amelia era j&aacute; uma penitencia, n&atilde;o necessitava
+cansar-se a l&ecirc;r ora&ccedil;&otilde;es no livro;
+celebr&aacute;ra o &laquo;seu
+sacrificio&raquo;&mdash;sentia-se vagamente quite com o c&eacute;o!
+<br />
+
+<br />
+
+E continuava a viver s&oacute;: o conego nunca vinha
+&aacute; rua das Sousas, &laquo;porque, dizia, era casa que
+s&oacute; o
+entrar n'ella at&eacute; se lhe agoniava o estomago&raquo;. E
+<span class="pagenum">[176]</span>
+Amaro, cada dia mais amuado, n&atilde;o volt&aacute;ra a casa
+da
+S. Joanneira. Escandalis&aacute;ra-se muito que ella n&atilde;o
+lhe
+tivesse mandado pedir para ir &aacute;s partidas da sexta-feira;
+attribuira &laquo;a desfeita&raquo; &aacute; hostilidade
+d'Amelia;
+e, mesmo para a n&atilde;o v&ecirc;r, troc&aacute;ra com o
+padre Silveira
+a missa do meio-dia onde ella costumava ir,
+e dizia a das nove horas, furioso com aquelle novo
+sacrificio!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha,
+tinha uma palpita&ccedil;&atilde;o t&atilde;o forte no
+cora&ccedil;&atilde;o que
+ficava como suffocada um momento. Depois os botins
+de Jo&atilde;o Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia
+os passos f&ocirc;fos das galochas das Gansosos: apoiava-se
+ent&atilde;o &agrave;s costas da cadeira, cerrando os olhos,
+como na fadiga d'uma desesperan&ccedil;a repetida. Esperava
+o padre Amaro; e &aacute;s vezes, pelas dez horas,
+quando j&aacute; n&atilde;o era poss&iacute;vel que elle
+viesse, a sua
+melancolia era t&atilde;o pungente que se lhe entumecia a
+garganta de solu&ccedil;os, tinha de pousar a costura, dizer:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vou-me deitar, estou com umas d&ocirc;res de cabe&ccedil;a
+que n&atilde;o paro!
+<br />
+
+<br />
+
+Atirava-se para a cama de bru&ccedil;os, murmurava
+n'uma agonia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh Senhora das D&ocirc;res, minha madrinha! porque
+n&atilde;o vem elle, porque n&atilde;o vem elle?
+<br />
+
+<br />
+
+Nos primeiros dias, apenas elle se f&ocirc;ra embora,
+<span class="pagenum">[177]</span>
+toda a casa lhe pareceu deshabitada e lugubre! Quando
+vira no quarto d'elle os cabides sem a sua roupa,
+a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar.
+Foi beijar a travesseirinha onde elle dormia,
+apertou ao peito com delirio a ultima toalha a que
+elle limp&aacute;ra as m&atilde;os! Tinha constantemente o seu
+rosto presente, elle entrava sempre nos seus sonhos.
+E com a separa&ccedil;&atilde;o o seu amor ardia mais forte e
+mais alto, como uma fogueira que se isola.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma tarde, que f&ocirc;ra visitar uma prima enfermeira
+no hospital, viu ao chegar &aacute; ponte gente parada,
+embasbacada com gozo para uma rapariga de
+cuia &aacute; banda e <em>garibaldi</em>
+escarlate, que, de punho
+no ar, j&aacute; rouca, praguejava contra um soldado: o
+rapazola, um beir&atilde;o de cara redonda e lorpa coberta
+de pennugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo
+os hombros, as m&atilde;os muito enterradas nos
+bolsos, rosnando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o lhe fez mal, n&atilde;o lhe fez mal...
+<br />
+
+<br />
+
+O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada,
+par&aacute;ra a olhar, descontente d'aquella &laquo;falta
+d'ordem
+publica&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Algum barulho? perguntou-lhe Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ol&aacute;, menina Amelia! N&atilde;o, uma brincadeira do
+soldado. Atirou-lhe um rato morto &aacute; cara, e a mulher
+est&aacute; a fazer aquelle espalhafato. Bebedas!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a rapariga de <em>garibaldi</em> vermelha
+volt&aacute;ra-se&mdash;e
+Amelia aterrada reconheceu a Joanninha Gomes,
+sua amiga da mestra, que f&ocirc;ra amante do padre Abilio!
+O padre f&ocirc;ra suspenso, deix&aacute;ra-a; ella partira
+<span class="pagenum">[178]</span>
+para Pombal, depois para o Porto; de miseria em
+miseria volt&aacute;ra a Leiria, e ahi vivia n'alguma viella
+ao p&eacute; do quartel, entisicando, gasta por todo um
+regimento!&mdash;Que
+exemplo, santo Deus, que exemplo!
+<br />
+
+<br />
+
+E tambem ella gostava d'um padre! Tambem
+ella, como outr'ora a Joanninha, chorava sobre a
+sua costura quando o senhor padre Amaro n&atilde;o vinha!
+Onde a levava aquella paix&atilde;o? &Aacute; sorte da
+Joanninha!
+A ser a <em>amiga do parocho</em>! E via-se
+j&aacute; apontada
+a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada
+por elle, com um filho nas entranhas, sem
+um peda&ccedil;o de p&atilde;o!... E, como uma rajada de vento
+que limpa n'um momento um c&eacute;o ennevoado, o
+terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha
+varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e morbidas
+em que ella se ia perdendo. Decidiu aproveitar
+a separa&ccedil;&atilde;o, esquecer Amaro: lembrou-se mesmo
+de apressar o seu casamento com Jo&atilde;o Eduardo para
+se refugiar n'um dever dominante; durante alguns
+dias for&ccedil;ou-se a interessar-se por elle; come&ccedil;ou
+mesmo
+a bordar-lhe umas chinelas...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas pouco a pouco a <em>id&eacute;a
+m&aacute;</em> que, atacada, se
+encolhera e se fingira morta,&mdash;principiou lentamente
+a desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De dia, de
+noite, costurando e rezando, a id&eacute;a do padre Amaro,
+os seus olhos, a sua voz appareciam-lhe,
+tenta&ccedil;&otilde;es
+teimosas! com um encanto crescente. Que faria
+elle? porque n&atilde;o vinha? gostava d'outra? Tinha ciumes
+indefinidos, mas mordentes, que a queimavam.
+E aquella paix&atilde;o ia-a envolvendo como uma atmosphera
+<span class="pagenum">[179]</span>
+d'onde n&atilde;o podia sahir, que a seguia se ella
+fugia, e que a fazia viver! As suas resolu&ccedil;&otilde;es
+honestas
+resequiam-se, morriam como debeis florinhas
+n'aquelle fogo que a percorria. Se &aacute;s vezes a
+lembran&ccedil;a
+de Joanninha ainda voltava, repellia-a com
+irrita&ccedil;&atilde;o; e acolhia alvoro&ccedil;adamente
+todas as raz&otilde;es
+insensatas que lhe vinham de amar o padre
+Amaro! Tinha agora s&oacute; uma id&eacute;a:&mdash;atirar-lhe os
+bra&ccedil;os ao pesco&ccedil;o e beijal-o... oh! beijal-o!
+Depois,
+se fosse necessario, morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+Come&ccedil;ou ent&atilde;o a impacientar-se com o amor de
+Jo&atilde;o Eduardo. Achava-o &laquo;palerma&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que massada! pensava quando lhe sentia os
+passos na escada, &aacute; noite.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o o supportava com os seus olhos voltados
+sempre para ella, a sua quinzena preta, as suas monotonas
+conversas sobre o governo civil.
+<br />
+
+<br />
+
+E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas
+de sonhos lubricos; de dia vivia n'uma
+inquieta&ccedil;&atilde;o
+de ciumes, com melancolias lugubres, que
+a tornavam, como dizia a m&atilde;i, &laquo;uma m&ocirc;na,
+que
+at&eacute; enraivece&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+O genio azedava-se-lhe.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a m&atilde;i.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me sinto boa. Estou para ter alguma!
+<br />
+
+<br />
+
+Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite.
+E emfim uma manh&atilde; ficou de cama com febre.
+A m&atilde;i, assustada, chamou o doutor Gouv&ecirc;a. O velho
+pratico, depois de v&ecirc;r Amelia, veio &agrave; sala de
+jantar sorvendo com satisfa&ccedil;&atilde;o a sua pitada.
+<span class="pagenum">[180]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, senhor doutor? disse a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me
+esta rapariga. Tenho-lh'o dito tantas vezes, creatura!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas, senhor doutor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a
+por uma vez! repetia elle pelas escadas, arrastando
+um pouco a perna direita que um rheumatismo teimoso
+encolhia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia emfim melhorou&mdash;com grande alegria
+de Jo&atilde;o Eduardo, que emquanto ella estivera doente
+vivera n'uma afflic&ccedil;&atilde;o, lamentando n&atilde;o
+poder ser
+seu enfermeiro, e derramando &aacute;s vezes no cartorio
+uma lagrima triste sobre os papeis sellados do severo
+Nunes Ferral.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+No domingo seguinte, &aacute; missa das nove horas
+na S&eacute;, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas
+que se arredavam viu de relance Amelia ao p&eacute;
+da m&atilde;i, com o seu vestido de s&ecirc;da preta de largos
+folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia
+sustentar o calix com as m&atilde;os tremulas.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro
+fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se
+voltou para a igreja dizendo <em>Dominus
+vobiscum</em>&mdash;a
+mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia
+&laquo;que o senhor parocho estava t&atilde;o amarello, que
+devia
+ter alguma d&ocirc;r&raquo;. Amelia n&atilde;o respondeu,
+curvada
+sobre o livro, com todo o sangue nas faces. E
+<span class="pagenum">[181]</span>
+durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta,
+a face banhada n'um extase baboso, gozou a sua
+presen&ccedil;a, as suas m&atilde;os magras erguendo a hostia,
+a sua cabe&ccedil;a bem feita curvando-se na
+adora&ccedil;&atilde;o ritual;
+uma do&ccedil;ura corria-lhe na pelle quando a voz
+d'elle, apressada, dizia mais alto algum latim: e
+quando Amaro, tendo a m&atilde;o esquerda no peito e
+a direita estendida, disse para a igreja o <em>Benedicat
+vos</em>, ella, com os olhos muito abertos, arremessou
+toda a sua alma para o altar, como se elle fosse o
+proprio Deus a cuja ben&ccedil;&atilde;o as cabe&ccedil;as
+se curvavam
+ao comprido da S&eacute;, at&eacute; ao fundo, onde os homens
+do campo com os seus varapaus pasmavam para os
+dourados do sacrario.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; sahida da missa come&ccedil;&aacute;ra a chover; e
+Amelia
+e a m&atilde;i, &aacute; porta com outras senhoras, esperavam
+uma &laquo;aberta&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&aacute;! por aqui!? disse de repente Amaro,
+chegando-se,
+muito branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estamos &aacute; espera que passe a chuva, senhor
+parocho, disse a S. Joanneira voltando-se. E immediatamente,
+muito reprehensiva:&mdash;E porque n&atilde;o tem
+apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos
+n&oacute;s? Credo, at&eacute; d&aacute; que fallar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito occupado, muito occupado... balbuciou
+o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas um bocadinho &aacute; noite. Olhe, p&oacute;de
+cr&ecirc;r,
+tem-me causado desgosto... E todos t&ecirc;m reparado.
+N&atilde;o, l&aacute; isso, senhor parocho, tem sido
+ingratid&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro disse, c&oacute;rando:
+<span class="pagenum">[182]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois acabou-se. Hoje &aacute; noite l&aacute;
+appare&ccedil;o, e
+est&atilde;o as pazes feitas ...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua
+perturba&ccedil;&atilde;o
+olhava para todos os pontos o c&eacute;o carregado,
+como assustada do temporal.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o offereceu-lhe o seu guardachuva.
+E emquanto a S. Joanneira o abria, apanhando com
+cuidado o vestido de s&ecirc;da, Amelia disse ao parocho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; &aacute; noite, sim?&mdash;E mais baixo, olhando
+em redor, com medo:&mdash;Oh, v&aacute;! Tenho estado t&atilde;o
+triste! tenho estado como doida! V&aacute;, pe&ccedil;o-lh'o
+eu!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, voltando para casa, continha-se para n&atilde;o
+correr de batina pelas ruas. Entrou no quarto, sentou-se
+aos p&eacute;s da cama, e alli ficou saturado de felicidade,
+como um pardal muito farto n'um raio de
+sol muito quente: recordava o rosto d'Amelia, a redondeza
+dos seus hombros, a belleza dos encontros,
+as palavras que lhe dissera:&mdash;<em>Tenho estado como
+doida!</em> A certeza de que &laquo;a rapariga gostava
+d'elle&raquo;
+entrou-lhe ent&atilde;o na alma com a violencia de
+uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos
+do seu s&ecirc;r com um murmurio melodioso de felicidades
+agitadas. E passeava pelo quarto com passadas
+de covado, estendendo os bra&ccedil;os, desejando a
+posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho
+prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca
+do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso
+que s&oacute; o sustentasse a elle! Mal p&ocirc;de jantar.
+Com que impaciencia desejava a noite! A tarde clare&aacute;ra;
+<span class="pagenum">[183]</span>
+a cada momento tirava o seu &laquo;cebol&atilde;o&raquo; de
+prata, indo olhar &aacute; janella, com
+irrita&ccedil;&atilde;o, a claridade
+do dia que se arrastava devagar no horisonte.
+Engraxou elle mesmo os seus sapatos, lustrou o
+cabello de banha. E antes de sahir rezou cuidadosamente
+o seu Breviario&mdash;porque, em presen&ccedil;a
+d'aquelle amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso
+que Deus ou os santos escandalisados o
+viessem perturbar: e n&atilde;o queria, com desleixos de
+devo&ccedil;&atilde;o, <em>dar-lhes
+raz&atilde;o de queixa</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao entrar na rua d'Amelia o cora&ccedil;&atilde;o bateu-lhe
+t&atilde;o forte que teve de parar, suffocado; e pareceu-lhe
+melodioso o piar das corujas na velha Misericordia,
+que ha tantas semanas n&atilde;o ouvia.
+<br />
+
+<br />
+
+Que admira&ccedil;&atilde;o quando elle appareceu na sala de
+jantar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ditosos olhos que o v&ecirc;em! Pensavamos que
+tinha morrido! Grande milagre!...
+<br />
+
+<br />
+
+Estava a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, as
+Gansosos.
+Arredaram as cadeiras com enthusiasmo para
+lhe dar logar, admiral-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que tem feito, que tem feito? E olhe
+que est&aacute; mais magro!
+<br />
+
+<br />
+
+O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes
+subindo ao ar. O snr. Arthur Couceiro improvisou-lhe
+um <em>fadinho</em> &aacute; viola:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ora j&aacute; c&aacute; temos o senhor parocho<br />
+
+Nos ch&aacute;s da S. Joanneira.<br />
+
+Isto j&aacute; parece outra coisa,<br />
+
+Volta a bella cavaqueira!
+</div>
+
+<span class="pagenum">[184]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Houve palmas. E a S. Joanneira, toda banhada de
+riso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, tem sido uma ingratid&atilde;o d'elle!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma ingratid&atilde;o, diz a senhora? rosnou o conego.
+Uma casmurrice, digo eu!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n&atilde;o fallava, com as faces abrazadas, os
+olhos humidos pasmados para o padre Amaro&mdash;a
+quem tinham dado a poltrona do conego, e que se
+repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras
+pelas pilherias com que contava os desleixos
+da Vicencia.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, isolado a um canto, ia folheando
+o velho album.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+IX
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Assim recome&ccedil;ou a intimidade de Amaro na rua
+da Misericordia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviario;
+e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se
+no seu capote e dava volta pela Pra&ccedil;a
+passando rente da botica, onde os frequentadores
+caturravam, com as m&atilde;os molles apoiadas ao cabo
+dos guardachuvas. Mal avistava a janella da sala de
+jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam;
+mas ao toque agudo da campainha sentia &aacute;s vezes
+um susto indefinido d'achar a m&atilde;i j&aacute; desconfiada
+ou
+Amelia mais fria!... Mesmo por supersti&ccedil;&atilde;o
+entrava
+sempre com o p&eacute; direito.
+<br />
+
+<br />
+
+Encontrava j&aacute; as Gansosos, a D. Josepha Dias; e
+o conego, que jantava agora muito com a S. Joanneira,
+e que &aacute;quella hora, estirado na poltrona, findava
+a sua somneca, dizia-lhe bocejando:
+<span class="pagenum">[186]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora viva o menino bonito!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ia sentar-se ao p&eacute; d'Amelia que costurava
+&aacute; mesa; o olhar penetrante que se trocavam era
+todos os dias como o mutuo juramento mudo que o
+seu amor crescera desde a vespera; e &aacute;s vezes mesmo,
+debaixo da mesa, ro&ccedil;avam os joelhos com furor.
+Come&ccedil;ava ent&atilde;o a
+&laquo;cavaqueira&raquo;. Eram sempre
+os mesmos interessesinhos, as quest&otilde;es que iam na
+Misericordia, o que dissera o senhor chantre, o conego
+Campos que despedira a criada, o que se rosnava
+da mulher do Novaes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais amor do proximo! resmungava o conego
+mexendo-se na poltrona. E com um arr&ocirc;to curto
+tornava a cerrar as palpebras.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o as botas de Jo&atilde;o Eduardo rangiam na escada,
+e Amelia immediatamente abria a mesinha para
+a partida de <em>manilha</em>: os parceiros
+eram a Gansoso,
+D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava
+mal, Amelia, que era <em>mestra</em>,
+sentava-se por detraz
+d'elle para o &laquo;guiar&raquo;. Logo &aacute;s primeiras
+vasas havia
+alterca&ccedil;&otilde;es. Ent&atilde;o Amaro voltava o
+rosto para
+Amelia, t&atilde;o perto que confundiam os seus halitos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esta? perguntava, indicando a carta com o
+olho languido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o! n&atilde;o! espere, deixe v&ecirc;r, dizia
+ella, vermelha.
+<br />
+
+<br />
+
+O seu bra&ccedil;o ro&ccedil;ava o hombro do parocho: Amaro
+sentia o cheiro da agua de colonia que ella usava
+com exagero.
+<br />
+
+<br />
+
+Defronte, ao p&eacute; de Joaquina Gansoso, Jo&atilde;o
+Eduardo,
+<span class="pagenum">[187]</span>
+mordicando o bigode, contemplava-a com paix&atilde;o;
+Amelia, para se desembara&ccedil;ar d'aquelles dois
+olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim
+&laquo;que at&eacute; era indecente, diante do parocho que era
+de ceremonia, estar assim a cocal-a toda a noite&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; snr. Jo&atilde;o Eduardo, v&aacute; conversar
+com a
+mam&atilde;, sen&atilde;o t&ecirc;mol-a aqui
+t&ecirc;mol-a a dormir.
+<br />
+
+<br />
+
+E Jo&atilde;o Eduardo ia sentar-se ao p&eacute; da S.
+Joanneira,
+que, de lunetas na ponta do nariz, fazia somnolentamente
+a sua meia.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois do ch&aacute; Amelia sentava-se ao piano. Causava
+ent&atilde;o enthusiasmo em Leiria uma velha
+can&ccedil;&atilde;o
+mexicana, a <em>Chiquita</em>. Amaro achava-a
+<em>de appetite</em>;
+e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos,
+apenas Amelia come&ccedil;ava com muita languidez tropical:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Quando sali de la Habana<br />
+
+Valga-me Dios!...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe,
+quando Amelia, com os dedos frouxos no teclado, o
+busto deitado para traz, rolando os olhos ternos,
+em movimentos d&ocirc;ces de cabe&ccedil;a, dizia toda
+voluptuosa,
+syllabando o hespanhol:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Si &aacute; tua ventana llega<br />
+
+Una paloma,<br />
+
+Trata-la com cari&ntilde;o,<br />
+
+Que es mi persona.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E como a achava graciosa, creoula, quando ella
+gorgeava:
+<span class="pagenum">[188]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ay chiquita que si,<br />
+
+Ay chiquita que no-o-o-o!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mas as velhas reclamavam-o para continuar a
+<em>manilha</em>, e elle ia sentar-se,
+cantarolando as ultimas
+notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos
+humidos de felicidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s sextas-feiras era a grande partida. A snr.<sup>a</sup>
+D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o apparecia sempre com o seu
+bello vestido de s&ecirc;da preta: e como era rica e tinha
+parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor
+logar ao p&eacute; da mesa&mdash;que ella ia occupar, meneando
+pretenciosamente os quadris, com
+<em>ruge-ruges</em>
+de s&ecirc;da. Antes do ch&aacute; a S. Joanneira levava-a
+sempre ao seu quarto, onde guardava para ella uma
+garrafa de geropiga velha: e alli as duas amigas tagarellavam
+muito tempo, sentadas em cadeirinhas
+baixas. Depois Arthur Couceiro, cada dia mais chupado
+e mais tisico, cantava o <em>fado</em> novo
+que compuzera,
+chamado o <em>Fado da
+Confiss&atilde;o</em>; eram quadras
+feitas para regalar aquella piedosa reuni&atilde;o de saias
+e de batinas:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Na capellinha do amor,<br />
+
+No fundo da sacristia,<br />
+
+Ao senhor padre Cupido<br />
+
+Confessei-me n'outro dia...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Vinha depois a confiss&atilde;o de peccadinhos d&ocirc;ces,
+um acto de contri&ccedil;&atilde;o de amor, uma penitencia
+terna:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Seis beijinhos de manh&atilde;,<br />
+
+De tarde um abra&ccedil;o s&oacute;...<br />
+
+E p'ra acalmar d&ocirc;ces chammas<br />
+
+Jejuar a p&atilde;o de l&oacute;.
+</div>
+
+<span class="pagenum">[189]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella composi&ccedil;&atilde;o galante e devota
+f&ocirc;ra muito
+apreciada na sociedade ecclesiastica de Leiria. O senhor
+chantre pedira uma c&oacute;pia, e pergunt&aacute;ra,
+referindo-se
+ao poeta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem &eacute; o habil Anacreonte?
+<br />
+
+<br />
+
+E informado que era o escrevente da
+administra&ccedil;&atilde;o,
+fallou d'elle com tanto apre&ccedil;o &aacute; esposa do senhor
+governador civil, que Arthur obteve a
+gratifica&ccedil;&atilde;o
+de oito mil reis, que havia annos implorava.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;quellas reuni&otilde;es nunca faltava o Libaninho. A
+sua ultima pilheria era furtar beijos &aacute; snr.<sup>a</sup>
+D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o; a velha escandalisava-se muito
+alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez
+um olhar guloso. Depois o Libaninho desapparecia
+um momento, e entrava com uma saia d'Amelia vestida,
+uma touca da S. Joanneira, fingindo uma chamma
+lubrica por Jo&atilde;o Eduardo&mdash;que, entre as risadas
+agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e
+Natario vinham &aacute;s vezes: formava-se ent&atilde;o um
+grande
+<em>quino</em>. Amaro e Amelia ficavam sempre
+juntos;
+e toda a noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos,
+permaneciam vagamente entorpecidos no
+mesmo desejo intenso.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira
+mais apaixonado por Amelia. Ia pela rua devagar,
+ruminando com gozo a sensa&ccedil;&atilde;o deliciosa que lhe
+dava aquelle amor&mdash;uns certos olhares d'ella, o arfar
+desejoso do seu peito, os contactos lascivos dos
+joelhos e das m&atilde;os. Em casa despia-se depressa, porque
+gostava de pensar n'ella, &aacute;s escuras, atabafado
+<span class="pagenum">[190]</span>
+nos cobertores; e ia percorrendo em imagina&ccedil;&atilde;o,
+uma a uma, as provas successivas que ella lhe dera
+do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra
+fl&ocirc;r, at&eacute; que ficava como embriagado d'orgulho:
+era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o
+a elle, a elle padre, o eterno excluido dos sonhos
+femininos, o s&ecirc;r melancollico e neutro que ronda
+como um s&ecirc;r suspeito &aacute; beira do sentimento!
+&Aacute; sua
+paix&atilde;o misturava-se ent&atilde;o um reconhecimento por
+ella; e com as palpebras cerradas murmurava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;T&atilde;o boa, coitadinha, t&atilde;o boa!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mas na sua paix&atilde;o havia &aacute;s vezes grandes
+impaciencias,
+Quanto tinha estado, durante tres horas da
+noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade
+que se exhalava de todos os seus movimentos,&mdash;ficava
+t&atilde;o carregado de desejos que necessitava
+conter-se &laquo;para n&atilde;o fazer um disparate alli
+mesmo na sala, ao p&eacute; da m&atilde;i&raquo;. Mas
+depois, em casa,
+s&oacute;, torcia os bra&ccedil;os de desespero: queria-a alli
+de repente, offerecendo-se ao seu desejo: fazia ent&atilde;o
+combina&ccedil;&otilde;es&mdash;escrever-lhe-hia, arranjariam uma
+casita
+discreta para se amarem, planeariam um passeio
+a alguma quinta! Mas todos aquelles meios lhe
+pareciam incompletos e perigosos, ao recordar o olho
+finorio da irm&atilde; do conego, as Gansosos t&atilde;o
+mexeriqueiras!
+E diante d'aquellas difficuldades que se erguiam
+como as muralhas successivas d'uma cidadella,
+<span class="pagenum">[191]</span>
+voltavam as antigas lamenta&ccedil;&otilde;es: n&atilde;o
+ser livre!
+n&atilde;o poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a
+&aacute; m&atilde;i, possuil-a sem peccado, commodamente!
+Porque
+o tinham feito padre? F&ocirc;ra &laquo;a velha
+p&ecirc;ga&raquo; da
+marqueza de Alegros! Elle n&atilde;o abdic&aacute;ra
+voluntariamente
+a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido
+para o sacerdocio como um boi para o curral!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, passeando excitado pelo quarto, levava as
+suas accusa&ccedil;&otilde;es mais longe, contra o Celibato e a
+Igreja: porque prohibia ella aos seus sacerdotes, homens
+vivendo entre homens, a satisfa&ccedil;&atilde;o mais natural,
+que at&eacute; t&ecirc;m os animaes? Quem imagina que
+desde que um velho bispo diz&mdash;<em>ser&aacute;s
+casto</em>&mdash;a
+um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente
+esfriar-se? e que uma palavra
+latina&mdash;<em>accedo</em>&mdash;dita
+a tremer pelo seminarista assustado, ser&aacute;
+o bastante para conter para sempre a rebelli&atilde;o formidavel
+do corpo? E quem inventou isso? Um concilio
+de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus
+claustros, da paz das suas esc&oacute;las, mirrados como
+pergaminhos, inuteis como eunucos! Que sabiam elles
+da Natureza e das suas tenta&ccedil;&otilde;es? Que viessem
+alli duas, tres horas para o p&eacute; da Ameliasinha, e veriam,
+sob a sua capa de santidade, come&ccedil;ar a revoltar-se-lhe
+o desejo! Tudo se illude e se evita, menos
+o amor! E se elle &eacute; fatal, porque impediram
+ent&atilde;o que o padre o sinta, o realise com pureza e
+com dignidade? &Eacute; melhor talvez que o v&aacute; procurar
+pelas viellas obscenas!&mdash;Porque a carne &eacute; fraca!
+<br />
+
+<br />
+
+A carne! Punha-se ent&atilde;o a pensar nos tres inimigos
+<span class="pagenum">[192]</span>
+da alma&mdash;<span class="smallcaps">Mundo</span>,
+<span class="smallcaps">Diabo</span> e
+<span class="smallcaps">Carne</span>. E appareciam
+&aacute; sua imagina&ccedil;&atilde;o em tres figuras
+vivas: uma
+mulher muito formosa; uma figura negra d'olho de
+braza e p&eacute; de cabra; e o
+<em>mundo</em>, coisa vaga e maravilhosa
+(riquezas, cavallos, palacetes)&mdash;de que lhe
+parecia uma personifica&ccedil;&atilde;o sufficiente o senhor
+conde
+de Ribamar! Mas que mal tinham elles feito &aacute;
+sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa
+amava-o e era a unica consola&ccedil;&atilde;o da sua
+existencia;
+e do mundo, do senhor conde, s&oacute; recebera
+protec&ccedil;&atilde;o,
+benevolencia, tocantes apertos de m&atilde;o... E como
+poderia elle evitar as influencias da Carne e do
+Mundo? A n&atilde;o ser que fugisse, como os santos d'outr'ora,
+para os areaes do deserto e para a companhia
+das feras! Mas n&atilde;o lhe diziam os seus mestres no seminario
+que elle pertencia a uma Igreja militante?
+O ascetismo era culpado, sendo a deser&ccedil;&atilde;o d'um
+servi&ccedil;o
+santo.&mdash;N&atilde;o comprehendia, n&atilde;o comprehendia!
+<br />
+
+<br />
+
+Procurava ent&atilde;o justificar o seu amor com exemplos
+dos livros divinos. A Biblia est&aacute; cheia de nupcias!
+Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados
+de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro,
+com a cabe&ccedil;a coberta de faxas de linho puro, arrastando
+pelas pontas um cordeiro branco; os levitas
+batem em discos de prata, gritam o nome de Deus;
+abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar
+passar a caravana que leva os bem esposados; e as
+arcas de sandalo onde v&atilde;o os thesouros do dote rangem,
+amarradas com cordas de purpura, sobre o dorso
+dos cam&ecirc;los! Os martyres no circo casam-se n'um
+<span class="pagenum">[193]</span>
+beijo, sob o bafo dos le&otilde;es, &aacute;s
+acclama&ccedil;&otilde;es da plebe!
+Jesus mesmo n&atilde;o viv&ecirc;ra sempre na sua santidade
+inhumana; era frio e abstracto nas ruas de Jerusalem,
+nos mercados do Bairro de David; mas l&aacute;
+tinha o seu logar de ternura e de abandono em Bethania,
+sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli,
+emquanto os magros nazarenos seus amigos bebem
+o leite e conspiram &aacute; parte, elle olha defronte os
+tectos dourados do templo, os soldados romanos que
+jogam o disco ao p&eacute; da Porta de Ouro, os pares
+amorosos que passam sob os arvoredos de Gethesemani&mdash;e
+pousa a m&atilde;o sobre os cabellos louros de
+Martha, que ama e fia a seus p&eacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+O seu amor era pois uma infrac&ccedil;&atilde;o canonica,
+n&atilde;o um peccado da alma: podia desagradar ao senhor
+chantre, n&atilde;o a Deus: seria legitimo n'um sacerdocio
+de regra mais humana. Lembrava-se de se
+fazer protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais
+extraordinariamente impossivel que transportar a velha
+S&eacute; para cima do monte do Castello.
+<br />
+
+<br />
+
+Encolhia ent&atilde;o os hombros, escarnecendo toda
+aquella vaga argumenta&ccedil;&atilde;o interior.
+&laquo;Philosophia e
+palhada&raquo;! Estava doido pela rapariga,&mdash;era o positivo.
+Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe
+a alma... E o senhor bispo se n&atilde;o fosse velho
+faria o mesmo, e o Papa faria o mesmo!
+<br />
+
+<br />
+
+Eram &aacute;s vezes tres horas da manh&atilde;, e ainda
+passeava no quarto, fallando s&oacute;.
+<span class="pagenum">[194]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Quantas vezes Jo&atilde;o Eduardo, passando alta noite
+pela rua das Sousas, tinha visto na janella do parocho
+uma luz amortecida! Porque ultimamente Jo&atilde;o
+Eduardo, como todos que t&ecirc;m um desgosto amoroso,
+tom&aacute;ra o habito triste de andar at&eacute; tarde pelas
+ruas.
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente, logo desde os primeiros tempos,
+perceb&ecirc;ra a sympathia de Amelia pelo parocho. Mas
+conhecendo a sua educa&ccedil;&atilde;o e os habitos devotos da
+casa, attribuia aquellas atten&ccedil;&otilde;es quasi humildes
+com Amaro ao respeito beato pela sua batina de
+padre, pelos seus privilegios de confessor.
+<br />
+
+<br />
+
+Instinctivamente por&eacute;m come&ccedil;ou a detestar Amaro.
+Sempre f&ocirc;ra inimigo de padres! achava-os um
+&laquo;perigo para a civilisa&ccedil;&atilde;o e para a
+liberdade&raquo;; suppunha-os
+intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando
+sempre para restabelecer &laquo;as trevas da
+meia idade&raquo;; odiava a confiss&atilde;o que julgava uma
+arma terrivel contra a paz do lar; e tinha uma religi&atilde;o
+vaga&mdash;hostil ao culto, &aacute;s rezas, aos jejuns,
+cheia de admira&ccedil;&atilde;o pelo Jesus poetico,
+revolucionario,
+amigo dos pobres, e &laquo;pelo sublime espirito de
+Deus que enche todo o Universo&raquo;! S&oacute; desde que
+amava Amelia &eacute; que ouvia missa, para agradar &aacute;
+S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+E desejaria sobretudo apressar o casamento para
+tirar Amelia d'aquella sociedade de beatas e padres,
+<span class="pagenum">[195]</span>
+receando ter mais tarde uma mulher que tremesse
+do inferno, passasse horas a rezar esta&ccedil;&otilde;es na
+S&eacute;, e
+se confessasse aos padres &laquo;que arrancam &aacute;s
+confessadas
+os segredos d'alcova&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Amaro volt&aacute;ra a frequentar a rua da Misericordia,
+ficou contrariado. &laquo;C&aacute; temos outra vez o
+marmanjo&raquo;! pensou. Mas que desgosto, quando reparou
+que Amelia tratava agora o parocho com uma
+familiaridade mais terna, que a presen&ccedil;a d'elle lhe
+dava visivelmente uma anima&ccedil;&atilde;o singular,
+&laquo;e que
+havia uma especie de namoro&raquo;! Como ella se fazia
+vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com
+uma admira&ccedil;&atilde;o babosa! Como arranjava sempre a
+ficar ao p&eacute; d'elle nas partidas de
+<em>quino</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde;, mais inquieto, veio &aacute; rua da
+Misericordia,&mdash;e
+emquanto a S. Joanneira tagarellava
+na cozinha, disse bruscamente a Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menina Amelia, sabe? Est&aacute;-me a dar um grande
+desgosto com essas maneiras com que trata o senhor
+padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu os olhos muito espantados:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que maneiras?! Ora essa! ent&atilde;o como quer
+que o trate? &Eacute; um amigo da casa, esteve aqui
+d'hospede...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim, pois sim...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! mas socegue. Se isso o quezila, ver&aacute;. N&atilde;o
+me torno a chegar ao p&eacute; do homem.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, tranquillisado, raciocinou&mdash;que
+&laquo;n&atilde;o havia nada&raquo;. Aquelles modos eram
+excessos
+de beaterio. Enthusiasmo pela padraria!
+<span class="pagenum">[196]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia decidiu ent&atilde;o disfar&ccedil;ar o que lhe ia no
+cora&ccedil;&atilde;o: sempre consider&aacute;ra o
+escrevente um pouco
+tapado&mdash;e se elle perceb&ecirc;ra, que fariam as Gansosos
+t&atilde;o finas, e a irm&atilde; do conego que era cortida
+em malicia! Por isso mal sentia Amaro na escada,
+d'ahi por diante, tomava uma attitude distrahida,
+muito artificial: mas, ai! apenas elle lhe fallava com
+a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos
+negros que lhe faziam correr estreme&ccedil;&otilde;es nos
+nervos,&mdash;como
+uma ligeira camada de neve que se
+derrete a um sol muito forte a sua attitude fria desapparecia,
+e toda a sua pessoa era uma express&atilde;o
+continua de paix&atilde;o. &Aacute;s vezes, absorvida no seu
+enlevo,
+esquecia que Jo&atilde;o Eduardo estava alli; e ficava
+toda surprehendida quando ouvia a um canto da
+sala a sua voz melancolica.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella sentia de resto que as amigas da m&atilde;i envolviam
+a sua &laquo;inclina&ccedil;&atilde;o&raquo; pelo
+parocho n'uma
+approva&ccedil;&atilde;o muda e affavel. Elle era, como dizia o
+conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos
+olhares das velhas exhalava-se uma admira&ccedil;&atilde;o por
+elle que fazia ao desenvolvimento da paix&atilde;o d'Amelia
+uma atmosphera favoravel. D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o
+dizia-lhe &aacute;s vezes ao ouvido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha para elle! &Eacute; d'inspirar fervor. &Eacute; a honra
+do clero. N&atilde;o ha outro!...
+<br />
+
+<br />
+
+E todas ellas achavam Jo&atilde;o Eduardo &laquo;um
+presta-p'ra-nada&raquo;!
+Amelia ent&atilde;o j&aacute; n&atilde;o
+disfar&ccedil;ava a
+sua indifferen&ccedil;a por elle: as chinelas que lhe andava
+a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto
+<span class="pagenum">[197]</span>
+do trabalho, e j&aacute; n&atilde;o vinha &aacute; janella
+vel-o passar
+para o cartorio.
+<br />
+
+<br />
+
+A certeza agora tinha-se estabelecido na alma
+de Jo&atilde;o Eduardo&mdash;na alma, que, como elle dizia,
+lhe andava mais negra que a noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido.
+E &aacute; d&ocirc;r da sua felicidade destruida juntava-se
+a afflic&ccedil;&atilde;o pela honra d'ella
+amea&ccedil;ada.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma tarde, tendo-a visto sahir da S&eacute;, esperou-a
+adiante da botica, e muito decidido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto
+n&atilde;o p&oacute;de continuar assim... Eu n&atilde;o
+posso... A menina
+traz namoro com o parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella mordeu o bei&ccedil;o, toda branca:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor est&aacute; a insultar-me!&mdash;E queria seguir,
+indignada.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle reteve-a pela manga do casabeque:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ou&ccedil;a, menina Amelia. Eu n&atilde;o a quero insultar,
+mas &eacute; que n&atilde;o sabe... Tenho andado, que
+at&eacute;
+se me parte o cora&ccedil;&atilde;o!&mdash;E perdeu a voz, de
+commovido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tem raz&atilde;o... N&atilde;o tem
+raz&atilde;o... balbuciava
+ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jure-me ent&atilde;o que n&atilde;o ha nada com o padre!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pela minha salva&ccedil;&atilde;o!...
+<em>N&atilde;o ha nada!</em>...
+Mas tambem lhe digo, se torna a fallar em tal, ou
+a insultar-me, conto tudo &aacute; mam&atilde;, e o senhor
+escusa
+de nos voltar a casa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, menina Amelia...
+<span class="pagenum">[198]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o podemos continuar aqui a fallar... Est&aacute;
+alli j&aacute; a D. Michaela a cocar...
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma velha, que levant&aacute;ra a cortina de cassa
+n'uma janella baixa, e espreitava com olhinhos
+reluzentes e gulosos, a face toda resequida encostada
+s&ocirc;fregamente &aacute; vidra&ccedil;a. Separaram-se
+ent&atilde;o&mdash;e
+a velha desconsolada deixou cahir a cortina.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n'essa noite&mdash;emquanto as senhoras discutiam
+com algazarra os missionarios que ent&atilde;o pr&eacute;gavam
+na Barrosa&mdash;disse baixo a Amaro, picando
+vivamente a costura:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Precisamos ter cautela... N&atilde;o olhe tanto para
+mim nem esteja t&atilde;o chegado... J&aacute; houve quem
+reparasse.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro recuou logo a cadeira para junto de D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o; e, apesar da
+recommenda&ccedil;&atilde;o
+d'Amelia, os seus olhos n&atilde;o se despregavam d'ella,
+n'uma interroga&ccedil;&atilde;o muda e anciosa, j&aacute;
+assustado
+que as desconfian&ccedil;as da m&atilde;i ou a malicia das
+velhas
+&laquo;andassem armando escandalo&raquo;. Depois do
+ch&aacute;, no rumor das cadeiras que se accommodavam
+ao <em>quino</em>, perguntou-lhe rapidamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem reparou?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ninguem. Eu &eacute; que tenho medo. &Eacute; preciso
+disfar&ccedil;ar.
+<br />
+
+<br />
+
+Desde ent&atilde;o cessaram as olhadellas d&ocirc;ces, os
+logares
+chegadinhos &aacute; mesa, os segredos; e sentiam
+um gozo picante em affectar maneiras frias, tendo a
+certeza vaidosa da paix&atilde;o que os inflammava. Era
+para Amelia delicioso&mdash;emquanto o padre Amaro
+<span class="pagenum">[199]</span>
+afastado tagarellava com as senhoras&mdash;adorar a sua
+presen&ccedil;a, a sua voz, as suas gra&ccedil;as, com os olhos
+castamente applicados &aacute;s chinelas do Jo&atilde;o Eduardo
+que muito astutamente recome&ccedil;&aacute;ra a bordar.
+<br />
+
+<br />
+
+Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o
+encontrar o parocho installado alli todas as
+noites, com a face pr&oacute;spera, a perna tra&ccedil;ada,
+gozando
+a venera&ccedil;&atilde;o das velhas. &laquo;A Ameliasinha,
+sim,
+agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...&raquo;:
+mas elle sabia que o parocho a desejava, a
+&laquo;cocava&raquo;;
+e apesar do juramento d'ella <em>pela sua
+salva&ccedil;&atilde;o,</em>
+da certeza <em>que n&atilde;o havia
+nada</em>&mdash;temia que
+ella fosse lentamente penetrada por aquella
+admira&ccedil;&atilde;o
+caturra das velhas, para quem o senhor parocho
+<em>era um anjo</em>: s&oacute; se
+contentaria em arrancar
+Amelia (j&aacute; empregado no governo civil) &aacute;quella
+casa
+beata: mas essa felicidade tardava a chegar&mdash;e sahia
+todas as noites da rua da Misericordia mais apaixonado,
+com a vida estragada de ciumes, odiando
+os padres, sem coragem para desistir. Era ent&atilde;o que
+se punha a andar pelas ruas at&eacute; tarde; &aacute;s vezes
+voltava
+ainda v&ecirc;r as janellas fechadas da casa d'ella;
+ia depois &aacute; alameda ao p&eacute; do rio, mas o frio
+ramalhar
+das arvores sobre a agua negra entristecia-o
+mais; vinha ent&atilde;o ao bilhar, olhava um momento os
+parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado,
+que bocejava encostado ao <em>reste</em>. Um
+cheiro
+de mau petroleo suffocava. Sahia; e dirigia-se,
+devagar, &aacute; redac&ccedil;&atilde;o da
+<em>Voz do Districto</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+X
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O redactor da <em>Voz do Districto</em>, o
+Agostinho Pinheiro,
+era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente
+o <em>Rachitico</em>, por ter uma forte
+corcunda no
+hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente
+sujo; e a sua carita de femea, amarellada,
+d'olhos depravados, revelava v&iacute;cios antigos,
+muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a
+sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar:
+&laquo;Se voss&ecirc; n&atilde;o fosse um rachitico,
+quebrava-lhe os
+ossos&raquo;&mdash;que, vendo na sua corcunda uma
+protec&ccedil;&atilde;o
+sufficiente, ganh&aacute;ra um descaro sereno. Era de
+Lisboa, o que o tornava mais suspeito aos burguezes
+s&eacute;rios: attribuia-se a sua voz rouca e acre &laquo;a
+fartar-lhe as campainhas&raquo;: e os seus dedos queimados
+<span class="pagenum">[202]</span>
+terminavam em unhas muito compridas&mdash;porque
+tocava guitarra.
+<br />
+
+<br />
+
+A <em>Voz do Districto</em> f&ocirc;ra
+creada por alguns homens,
+a quem chamavam em Leiria o <em>grupo da
+Maia</em>, particularmente hostis ao senhor governador
+civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato
+do <em>grupo</em>, tinha encontrado em
+Agostinho, como
+elle dizia, o <em>homem que se precisa</em>:
+o que o <em>grupo</em>
+precisava era um patife com orthographia, sem escrupulos,
+que redigisse em linguagem sonora os insultos,
+as calumnias, as allus&otilde;es que elles traziam
+informemente &aacute; redac&ccedil;&atilde;o, em
+apontamentos. Agostinho
+era um estylista de vilezas. Davam-lhe quinze
+mil reis por mez e casa de habita&ccedil;&atilde;o na
+redac&ccedil;&atilde;o&mdash;um
+terceiro andar desmantelado n'uma viella ao
+p&eacute; da Pra&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a
+<em>Correspondencia</em> de Lisboa; e o
+bacharel Prudencio
+escrevia o folhetim litterario sob o titulo de
+<em>Palestras
+Leirienses</em>: era um mo&ccedil;o muito honrado, a
+quem o snr. Agostinho era repulsivo; mas tinha
+uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se
+todos os sabbados fraternalmente &aacute; mesma
+banca, a rev&ecirc;r as provas da sua prosa&mdash;prosa t&atilde;o
+florida de imagens, que se murmurava na cidade,
+ao l&ecirc;l-a: &laquo;<em>Que opulencia! Que
+opulencia, Jesus!</em>&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho
+era &laquo;um trastesito&raquo;; n&atilde;o se atreveria a
+passear
+com elle de dia nas ruas; mas gostava de ir para
+a redac&ccedil;&atilde;o, alta noite, fumar cigarros, ouvir o
+Agostinho
+<span class="pagenum">[203]</span>
+fallar de Lisboa, do tempo que l&aacute; viv&ecirc;ra empregado
+na redac&ccedil;&atilde;o de dois jornaes, no theatro da
+rua dos Condes, n'uma casa de penhores, e em outras
+institui&ccedil;&otilde;es. Estas visitas eram
+<em>segredos</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;quella hora da noite a sala da typographia no
+primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se
+aos sabbados); e Jo&atilde;o Eduardo encontrava em cima
+Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de
+pelles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados&mdash;ruminando,
+curvado, &aacute; luz d'um medonho
+candieiro de petroleo, sobre longas tiras de papel:
+estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor
+tinha o aspecto d'uma caverna. Jo&atilde;o Eduardo
+estirava-se no canap&eacute; de palhinha, ou indo buscar
+a um canto a velha guitarra de Agostinho repenicava
+o <em>fado corrido</em>. O jornalista no
+emtanto, com a
+testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente:
+&laquo;a coisa n&atilde;o lhe sahia catita&raquo;: e como
+nem o
+<em>fadinho</em> o inspirava, erguia-se, ia a
+um armario engulir
+um copinho de genebra que gargarejava nas
+fauces estanhadas, espregui&ccedil;ava-se escancaradamente,
+accendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento
+cantarolava roucamente:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Ora foi o fado tyranno<br />
+
+Que me levou &aacute; m&aacute; vida,
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+E a guitarra: dir-lin, din, din, dir-lin, din, don.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">
+Na vida do negro fado
+Ai!<br />
+
+Que me traz assim perdida...
+</div>
+
+<span class="pagenum">[204]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Isto trazia-lhe sempre as recorda&ccedil;&otilde;es de Lisboa,
+porque terminava por dizer, com odio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que possilga de terra esta!
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o se podia consolar de viver em Leiria, de
+n&atilde;o poder beber o seu quartilho na taberna do tio
+Jo&atilde;o, &aacute; Mouraria, com a Anna alfaiata ou com o
+Bigodinho&mdash;ouvindo
+o Jo&atilde;o das Biscas de cigarro ao
+canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo
+fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a
+morte da Sophia!
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, para se reconfortar com a certeza do seu
+talento, lia a Jo&atilde;o Eduardo os seus artigos, muito
+alto. E Jo&atilde;o interessava-se&mdash;porque essas
+&laquo;produc&ccedil;&otilde;es&raquo;,
+sendo ultimamente sempre &laquo;desandas ao
+clero&raquo;, correspondiam &aacute;s suas
+preoccupa&ccedil;&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+Era por esse tempo que, em virtude da famosa
+quest&atilde;o da Misericordia, o doutor Godinho se
+torn&aacute;ra
+muito hostil ao cabido e &laquo;&aacute; padraria&raquo;.
+Sempre detest&aacute;ra
+padres; tinha uma m&aacute; doen&ccedil;a de figado, e
+como a Igreja o fazia pensar no cemiterio, odiava a
+sotaina, porque lhe parecia uma amea&ccedil;a da mortalha.
+E Agostinho, que tinha um profundo deposito
+de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho,
+exagerava as suas verr&iacute;nas: mas, com o seu fraco
+litterario, cobria o vituperio de t&atilde;o espessas camadas
+de rhetorica que, como dizia o conego Dias,
+&laquo;aquillo era ladrar, n&atilde;o era morder&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma d'essas noites Jo&atilde;o Eduardo encontrou Agostinho
+todo enthusiasmado com um artigo que compuzera
+<span class="pagenum">[205]</span>
+de tarde, e que lhe &laquo;sahira cheio de piadas
+&aacute; Victor Hugo&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu ver&aacute;s! Coisa de sensa&ccedil;&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Como sempre, era uma declama&ccedil;&atilde;o contra o clero
+e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar
+as virtudes do doutor, &laquo;<em>esse t&atilde;o
+respeitavel chefe de
+familia</em>&raquo; e a sua eloquencia no tribunal que
+&laquo;<em>arranc&aacute;ra
+tantos desventurados ao cutelo da lei</em>&raquo;, o
+artigo, tomando um tom roncante, apostrophava
+Christo:&mdash;&laquo;Quem te diria a ti (bradava Agostinho),
+&oacute; immortal Crucificado! quem te diria, quando
+no alto do Golgotha expiravas exangue, quem te diria
+que um dia, em teu nome, &aacute; tua sombra, seria
+expulso d'um estabelecimento de caridade o doutor
+Godinho,&mdash;a alma mais pura, o talento mais robusto...&raquo;&mdash;E
+as virtudes do doutor Godinho voltavam,
+em passo de prociss&atilde;o, solemnes e sublimadas,
+arrastando caudas de adjectivos nobres.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, deixando por um momento de contemplar
+o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se directamente
+a Roma:&mdash;&laquo;&Eacute; no seculo XIX que vindes atirar
+&aacute; face de Leiria liberal os dictames do
+<em>Syllabus</em>!
+Pois bem. Quereis a guerra? Tel-a-heis!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hein, Jo&atilde;o?! dizia. Est&aacute; forte! Est&aacute;
+philosophico!
+<br />
+
+<br />
+
+E retomando a leitura:&mdash;&laquo;Quereis a guerra?
+Tel-a-heis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte,
+que n&atilde;o &eacute; o da demagogia, comprehendei-o
+bem! e arvorando-o, com bra&ccedil;o firme, no mais alto
+baluarte das liberdades publicas, gritaremos &aacute; face
+<span class="pagenum">[206]</span>
+de Leiria, &aacute; face da Europa: Filhos do seculo XIX!
+&aacute;s armas! &Aacute;s armas pelo progresso!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hein? Est&aacute; de os enterrar!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, que fic&aacute;ra um momento calado,
+disse ent&atilde;o, levantando as suas express&otilde;es em
+harmonia
+com a prosa sonora de Agostinho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos
+do obscurantismo!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma phrase t&atilde;o litteraria surprehendeu o jornalista:
+fitou Jo&atilde;o Eduardo, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porque n&atilde;o escreves tu alguma coisa, tambem?
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente respondeu, sorrindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E eu, Agostinho, eu &eacute; que te escrevia uma
+desanda aos padres... E eu tocava-lhes os p&ocirc;dres.
+Eu &eacute; que os conhe&ccedil;o!...
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho instou logo com elle para que escrevesse
+a <em>desanda</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vem a calhar, menino!
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho ainda na vespera lhe
+recommend&aacute;ra:&mdash;&laquo;Em
+tudo que cheirar a padre, para
+baixo! Havendo escandalo, conta-se! n&atilde;o havendo,
+inventa-se!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+E Agostinho acrescentou, com benevolencia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E n&atilde;o te d&ecirc; cuidado o estylo, que eu
+c&aacute; o
+florearei!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Veremos, veremos, murmurou Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas d'ahi por diante Agostinho perguntava-lhe
+sempre:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o artigo, homem? Traze-me o artigo.
+<span class="pagenum">[207]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha avidez d'elle, porque sabendo como Jo&atilde;o
+Eduardo vivia na intimidade da &laquo;panellinha canonica
+da S. Joanneira&raquo; suppunha-o no segredo de infamias
+especiaes.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, por&eacute;m, hesitava. Se se viesse a
+saber...?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se
+como minha. &Eacute; artigo da redac&ccedil;&atilde;o. Quem
+diabo
+vai saber?
+<br />
+
+<br />
+
+Succedeu na noite seguinte que Jo&atilde;o Eduardo
+surprehendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente
+um segredinho a Amelia&mdash;e ao outro dia appareceu
+de tarde na redac&ccedil;&atilde;o com a pallidez d'uma
+noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel,
+miudamente escriptas n'uma letra de cartorio. Era
+o artigo, e intitulava-se: <em>Os modernos
+phariseus!</em>&mdash;Depois
+de algumas considera&ccedil;&otilde;es, cheias de
+fl&ocirc;res,
+sobre Jesus e o Golgotha, o artigo de Jo&atilde;o
+Eduardo era, sob allus&otilde;es t&atilde;o diaphanas como
+teias
+d'aranha, um vingativo ataque ao conego Dias, ao
+padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!...
+Todos tinham a sua <em>d&oacute;se</em>,
+como exclamou cheio de
+jubilo o Agostinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E quando sae? perguntou Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+O Agostinho esfregou as m&atilde;os, reflectiu, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que est&aacute; forte, diabo! &Eacute; como se
+tivesse
+os nomes proprios! Mas descansa, eu arranjarei.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor
+Godinho&mdash;que o achou &laquo;uma catilinaria atroz&raquo;. Entre
+o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo:
+<span class="pagenum">[208]</span>
+elle reconhecia em geral a necessidade da religi&atilde;o
+entre as massas; sua esposa, a bella D. Candida,
+era al&eacute;m d'isso d'inclina&ccedil;&otilde;es devotas,
+e come&ccedil;ava
+a dizer que aquella guerra do jornal ao clero
+lhe causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho
+n&atilde;o queria provocar odios desnecessarios entre os
+padres, prevendo que o seu amor da paz domestica,
+os interesses da ordem e o seu dever de christ&atilde;o
+o for&ccedil;ariam bem cedo a uma
+reconcilia&ccedil;&atilde;o,&mdash;&laquo;muito
+contra as suas opini&otilde;es, mas...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Disse por isso a Agostinho s&ecirc;ccamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto n&atilde;o p&oacute;de ir como artigo da
+redac&ccedil;&atilde;o,
+deve apparecer como communicado. Cumpra estas
+ordens.
+<br />
+
+<br />
+
+E Agostinho declarou ao escrevente&mdash;que a coisa
+publicava-se como um <em>Communicado</em>,
+assignado:
+<em>Um liberal</em>. S&oacute;mente
+Jo&atilde;o Eduardo terminava o artigo
+exclamando:&mdash;<em>&Aacute;lerta, m&atilde;es de
+familia!</em> O
+Agostinho suggeriu que este final
+<em>&aacute;lerta</em> podia dar
+logar &aacute; r&eacute;plica
+jocosa&mdash;<em>&Aacute;lerta
+est&aacute;!</em> E depois de
+largas combina&ccedil;&otilde;es decidiram-se por este
+fecho:&mdash;<em>Cuidado,
+sotainas negras!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+No domingo seguinte appareceu o communicado
+assignado: <em>Um liberal</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Durante toda essa manh&atilde; de domingo, o padre
+Amaro, &aacute; volta da S&eacute;, estivera occupado em
+comp&ocirc;r
+laboriosamente uma carta a Amelia. Impaciente,
+como elle dizia, &laquo;com aquellas rela&ccedil;&otilde;es
+que n&atilde;o andavam
+<span class="pagenum">[209]</span>
+nem desandavam, que era olhar e apertos de
+m&atilde;o e d'alli n&atilde;o passava&raquo;&mdash;tinha-lhe
+dado uma
+noite, &aacute; mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera
+com boa letra, a tinta azul:&mdash;<em>Desejo encontral-a
+s&oacute;, porque tenho muito que lhe fallar. Onde
+p&oacute;de ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso
+affecto.</em> Ella n&atilde;o respondera:&mdash;E Amaro
+despeitado,
+descontente tambem por n&atilde;o a ter visto n'essa
+manh&atilde;
+&aacute; missa das nove, resolveu &laquo;p&ocirc;r tudo a
+claro
+n'uma carta de sentimento&raquo;: e preparava os periodos
+sentidos que lhe deviam ir revolver o cora&ccedil;&atilde;o,
+passeando pela casa, juncando o ch&atilde;o de pontas de
+cigarro, a cada momento curvado sobre o <em>Diccionario
+de synonymos</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Ameliasinha do meu cora&ccedil;&atilde;o: (escrevia
+elle)
+N&atilde;o posso atinar com as raz&otilde;es maiores que a
+n&atilde;o
+deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa
+da senhora sua mam&atilde;; pois que era pela muita
+necessidade que tinha de lhe fallar a s&oacute;s, e as minhas
+inten&ccedil;&otilde;es eram puras, e na innocencia d'esta alma
+que tanto lhe quer e que n&atilde;o medita o peccado.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente
+affecto, e pela sua parte me parece, (se n&atilde;o
+me enganam esses olhos que s&atilde;o os pharoes da
+minha vida, e como a estrella do navegante) que
+tambem tu, minha Ameliasinha, tens inclina&ccedil;&atilde;o por
+quem tanto te adora; pois que at&eacute; outro dia, quando
+o Libano quinou com os seis primeiros numeros,
+e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me
+<span class="pagenum">[210]</span>
+a m&atilde;o por baixo da mesa com tanta ternura,
+que at&eacute; me pareceu que o c&eacute;o se abria e
+que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Porque
+n&atilde;o respondeste pois? Se pensas que o nosso
+affecto p&oacute;de ser desagradavel aos nossos anjos da
+guarda, ent&atilde;o te direi que maior peccado commettes
+trazendo-me n'esta incerteza e tortura, que at&eacute;
+na celebra&ccedil;&atilde;o da missa estou sempre com o pensar
+em ti, e nem me deixa elevar a minha alma
+no divino sacrificio. Se eu visse que este mutuo
+affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria:
+oh minha bem amada filha, fa&ccedil;amos o sacrificio a
+Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou
+por n&oacute;s! Mas eu tenho interrogado a minha
+alma e vejo n'ella a brancura dos lirios. E o teu
+amor tambem &eacute; puro como a tua alma, que um
+dia se unir&aacute; &aacute; minha, entre os c&oacute;ros
+celestes, na
+bemaventuran&ccedil;a. Se tu soubesses como eu te quero,
+querida Ameliasinha, que at&eacute; &agrave;s vezes me parece
+que te podia comer aos bocadinhos! Responde
+pois, e dize se n&atilde;o te parece que poderia arranjar-se
+a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois
+eu anceio por te exprimir todo o fogo que me
+abraza, bem como fallar-te de coisas importantes,
+e sentir na minha m&atilde;o a tua que eu desejo que
+me guie pelo caminho do amor, at&eacute; aos extases
+d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro,
+recebe a offerta do cora&ccedil;&atilde;o do teu amante e pai
+espiritual
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">
+&laquo;<em>Amaro</em>&raquo;.
+</div>
+
+<span class="pagenum">[211]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul,
+e com ella bem dobrada no bolso da batina foi &aacute;
+rua da Misericordia. Logo da escada sentiu em cima
+a voz aguda de Natario, discutindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem est&aacute; por c&aacute;?&mdash;perguntou &aacute;
+<em>Ru&ccedil;a</em>, que
+alumiava, encolhida no seu chale.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As senhoras todas. Est&aacute; o senhor padre Brito.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&aacute;! Bella sociedade!
+<br />
+
+<br />
+
+Galgou os degraus, e &aacute; porta da sala, com o seu
+capote ainda pelos hombros, tirando alto o chap&eacute;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito boas noites a todos, come&ccedil;ando pelas
+senhoras.
+<br />
+
+<br />
+
+Natario, immediatamente, plantou-se diante d'elle
+e exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que lhe parece?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O qu&ecirc;? perguntou Amaro. E reparando no silencio,
+nos olhos cravados n'elle:&mdash;O que &eacute;? Alguma
+coisa de novo?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois n&atilde;o leu, senhor parocho!? exclamaram.
+N&atilde;o leu o <em>Districto</em>!?
+<br />
+
+<br />
+
+Era papel em que elle n&atilde;o puzera os olhos, disse.
+Ent&atilde;o as senhoras indignadas romperam:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! &eacute; um desaf&ocirc;ro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! &eacute; um escandalo, senhor parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+Natario, com as m&atilde;os enterradas nas algibeiras,
+contemplava o parocho com um sorrisinho sarcastico,
+soltando d'entre os dentes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o leu! N&atilde;o leu! Ent&atilde;o que fez?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro reparava, j&aacute; aterrado, na pallidez d'Amelia,
+<span class="pagenum">[212]</span>
+nos seus olhos muito vermelhos. E emfim o conego
+erguendo-se pesadamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Amigo parocho, d&atilde;o-nos uma desanda!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! exclamou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;T&ecirc;sa!
+<br />
+
+<br />
+
+O senhor conego, que trouxera o jornal, devia
+ler alto&mdash;lembraram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leia, Dias, leia, acudiu Natario. Leia, para saborearmos!
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego
+Dias accommodou-se &aacute; mesa, desdobrou o jornal,
+p&ocirc;z os oculos cuidadosamente, e, com o len&ccedil;o
+do rap&eacute; nos joelhos, come&ccedil;ou a leitura do
+<em>Communicado</em>
+na sua voz pachorrenta.
+<br />
+
+<br />
+
+O principio n&atilde;o interessava: eram periodos enternecidos
+em que o <em>liberal</em> exprobrava aos
+phariseus
+a crucifix&atilde;o de Jesus:&mdash;&laquo;Por que o matasteis?
+(exclamava elle). Respondei!&raquo; E os phariseus
+respondiam:&mdash;&laquo;Matamol-o porque elle era a liberdade,
+a emancipa&ccedil;&atilde;o, a aurora de uma nova
+era&raquo;,
+etc. O <em>liberal</em> ent&atilde;o
+esbo&ccedil;ava, a largos tra&ccedil;os, a
+noite do Calvario:&mdash;&laquo;Eil-o pendente da cruz, traspassado
+de lan&ccedil;as, a sua tunica jogada aos dados, a
+plebe infrene&raquo;, etc. E, voltando a dirigir-se aos
+phariseus infelizes, o <em>liberal</em>
+gritava-lhes com ironia:&mdash;&laquo;Contemplai
+a vossa bella obra!&raquo; Depois, por
+uma grada&ccedil;&atilde;o habil, o
+<em>liberal</em> descia de Jerusalem a
+Leiria:&mdash;&laquo;Mas pensam os leitores que os phariseus
+morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemol-os
+<span class="pagenum">[213]</span>
+n&oacute;s; Leiria est&aacute; cheia d'elles, e vamos
+apresental-os
+aos leitores...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Agora &eacute; que ellas come&ccedil;am, disse o conego
+olhando para todos em redor, por cima dos oculos.
+<br />
+
+<br />
+
+Com effeito &laquo;ellas come&ccedil;avam&raquo;; era,
+n'uma f&oacute;rma
+brutal, uma galeria de photographias ecclesiasticas:
+a primeira era a do padre Brito:&mdash;&laquo;V&ecirc;de-o,
+(exclamava o <em>liberal</em>) grosso como um
+touro, montado
+na sua egua castanha...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; a c&ocirc;r da egua! murmurou com uma
+indigna&ccedil;&atilde;o
+piedosa a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Estupido como um mel&atilde;o, sem sequer saber
+latim...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o
+padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando
+devagar os joelhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Especie de caceteiro&raquo;, continuava o conego
+que lia aquellas phrases crueis com uma tranquillidade
+d&ocirc;ce, &laquo;desabrido de maneiras, mas que
+n&atilde;o desgosta de se dar &aacute; ternura, e, segundo
+dizem
+os bem informados, escolheu para Dulcin&ecirc;a a propria
+e legitima esposa do seu regedor...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Brito n&atilde;o se dominou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se
+e recahindo pesadamente na cadeira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escute, homem! disse Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual escute! O que &eacute;, &eacute; que o racho!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas se elle n&atilde;o sabia quem era o
+<em>liberal</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual <em>liberal</em>! Quem eu racho
+&eacute; o doutor Godinho.
+<span class="pagenum">[214]</span>
+O doutor Godinho &eacute; que &eacute; o dono do jornal.
+O doutor Godinho &eacute; que eu racho!
+<br />
+
+<br />
+
+A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso
+grandes palmadas &aacute; c&ocirc;xa.
+<br />
+
+<br />
+
+Lembraram-lhe o dever christ&atilde;o de perdoar as
+injurias. A S. Joanneira com un&ccedil;&atilde;o citou a
+bofetada
+que Jesus Christo supportou. Devia imitar Christo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual Christo, qual caba&ccedil;a! gritou Brito apopletico.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella impiedade creou um terror.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou
+a irm&atilde; do conego recuando a cadeira.
+<br />
+
+<br />
+
+O Libaninho, com as m&atilde;os na cabe&ccedil;a, vergado
+sob o desastre, murmurava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nossa Senhora das D&ocirc;res, que at&eacute; p&oacute;de
+cahir
+um raio!
+<br />
+
+<br />
+
+E, vendo mesmo Amelia indignada, o padre Amaro
+disse gravemente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Brito, realmente voss&ecirc; excedeu-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois se est&atilde;o a puxar por mim!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, ninguem puxou por voss&ecirc;, disse severamente
+Amaro. E com um tom pedagogo:&mdash;Apenas
+lhe lembrarei, como devo, que em taes casos,
+quando se diz a <em>blasphemia
+m&aacute;</em>, o reverendo padre
+Scomelli recommenda confiss&atilde;o geral e dois dias de
+recolhimento a p&atilde;o e agua.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Brito resmungava.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu
+uma grande falta, mas saber&aacute; pedir perd&atilde;o a
+Deus, e a misericordia de Deus &eacute; infinita!
+<span class="pagenum">[215]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Houve uma pausa commovida em que se ouviu
+a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o murmurar
+&laquo;que fic&aacute;ra
+sem pinga de sangue&raquo;; e o conego, que durante
+a catastrophe pous&aacute;ra os oculos sobre a mesa,
+retomou-os, e continuou serenamente a leitura:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Conheceis um outro com cara de
+fur&atilde;o?...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Olhares de lado fixaram o padre Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, n&atilde;o
+hesita; se puder prejudicar-vos, folga: as suas intrigas
+trazem o cabido n'uma confus&atilde;o porque &eacute; a vibora
+mais damninha da diocese, mas com tudo isso
+muito dado &aacute; jardinagem, porque cultiva com cuidado
+<em>duas rosas do seu
+canteiro</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, essa! exclamou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; para que voss&ecirc; veja, disse Natario erguendo-se
+l&iacute;vido. Que lhe parece? Voss&ecirc; sabe que eu,
+quando fallo das minhas sobrinhas, costumo dizer
+<em>as duas rosas do meu canteiro</em>.
+&Eacute; um gracejo. Pois
+senhores, at&eacute; vem com isto!&mdash;E com um sorriso
+macilento, de fel:&mdash;mas &aacute;manh&atilde; hei de saber quem
+&eacute;! &Oacute;lar&eacute;! Eu hei de saber quem
+&eacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite
+ao desprezo, disse a S. Joanneira pacificadora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se
+com uma ironia rancorosa&mdash;obrigado! C&aacute;
+recebi!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a voz imperturbavel do conego retom&aacute;ra a
+leitura. Agora era o retrato d'elle, tra&ccedil;ado com odio:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Conego bojudo e glut&atilde;o, antigo caceteiro
+do senhor D. Miguel, que foi expulso da freguezia
+<span class="pagenum">[216]</span>
+de Ourem, outr'ora mestre de Moral n'um seminario
+e hoje mestre de immoralidade em Leiria...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; infame! exclamou Amaro exaltado.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; pensa que me d&aacute; isto cuidado? disse
+elle. Boa! Tenho que comer e que beber, gra&ccedil;as a
+Deus! Deixar rosnar quem rosna!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, mano, interrompeu a irm&atilde;, mas a gente
+sempre tem o seu bocadinho de brio!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, mana! replicou o conego Dias com um
+azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguem
+lhe pede a sua opini&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nem preciso que m'a pe&ccedil;am! gritou ella impertigando-se.
+Sei-a dar muito bem quando quero e
+como quero. Se n&atilde;o tem vergonha, tenho-a eu!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o! ent&atilde;o!... disseram em roda, acalmando-a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menos lingua, mana, menos lingua! disse o
+conego fechando os seus oculos. Olhe n&atilde;o lhe
+c&aacute;iam
+os dentes posti&ccedil;os!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seu malcriado!
+<br />
+
+<br />
+
+Ia fallar, mas suffocou-se; e come&ccedil;ou subitamente
+a soltar <em>ais</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Recearam logo que lhe d&eacute;sse o
+<em>flato</em>: a S. Joanneira
+e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o
+quarto, em baixo, amparando-a, com palavras brandas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute;s doida! Por quem &eacute;s, filha! Olha que
+escandalo!
+Nossa Senhora te valha!
+<span class="pagenum">[217]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia mandava buscar agua de fl&ocirc;r de laranja.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe-a l&aacute;, rosnou o conego, deixe-a l&aacute;!
+Aquillo
+passa-lhe. S&atilde;o calores!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e
+desceu ao quarto com a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+e a Gansoso surda, que iam tambem &laquo;socegar
+a D. Josepha, coitadita&raquo;! Os padres agora estavam
+s&oacute;s; e o conego voltando-se para Amaro:&mdash;Ou&ccedil;a
+voss&ecirc;, que &eacute; a sua vez&mdash;disse retomando o jornal.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ver&aacute; que d&oacute;se! disse Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego escarrou, aproximou mais o candieiro,
+e declamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Mas o perigo s&atilde;o certos padres novos e
+ajanotados, parochos por influencias de condes da
+capital, vivendo na intimidade das familias de bem
+onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se
+da influencia do seu sagrado ministerio para lan&ccedil;ar
+na alma da innocente a semente de chammas criminosas!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pouca vergonha! murmurou Amaro livido.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar
+a impolluta virgem? Queres arrastal-a aos loda&ccedil;aes
+do vicio? Que vens fazer aqui ao seio d'esta
+respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua
+pr&ecirc;sa como o milhafre em torno da innocente pomba?
+Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe seductoras
+phrases, para a desviares do caminho da honra;
+condemnas &aacute; desgra&ccedil;a e &aacute; viuvez algum
+honrado
+mo&ccedil;o que lhe queira offerecer sua m&atilde;o
+trabalhadora;
+<span class="pagenum">[218]</span>
+e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de
+lagrimas. E tudo para qu&ecirc;? Para saciares os torpes
+impulsos de tua criminosa lascivia!...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que infame! rosnou com os dentes cerrados
+o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;...Mas acautela-te, presbytero perverso!&raquo; E
+a voz do conego tinha tons cavos ao soltar aquellas
+apostrophes. &laquo;J&aacute; o archanjo levanta a espada da
+justi&ccedil;a. E sobre ti, e teus cumplices, j&aacute; a
+opini&atilde;o
+da illustrada Leiria fita seu olho imparcial. E n&oacute;s
+c&aacute; estamos, n&oacute;s, filhos do trabalho, para vos
+marcar
+na fronte o estigma da infamia. Tremei, sectarios
+do <em>Syllabus</em>! Cuidado, sotainas
+negras!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;D'escacha! fez o conego suado, dobrando a
+<em>Voz do Districto</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de
+duas lagrimas de raiva: passou devagar o len&ccedil;o
+pela testa, soprou, disse com os bei&ccedil;os a tremer:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo
+Deus que me ouve, isto &eacute; a calumnia das calumnias.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma calumnia infame... rosnaram.
+<br />
+
+<br />
+
+-E a mim o que me parece, continuou Amaro,
+&eacute; que nos dirijamos &aacute; auctoridade!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o que eu tinha dito, acudiu Natario, &eacute;
+necessario
+fallar ao secretario geral...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um cacete &eacute; que &eacute;! rugiu o padre Brito.
+Auctoridade!
+O que &eacute;, &eacute; rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, que meditava co&ccedil;ando o queixo, disse
+ent&atilde;o:
+<span class="pagenum">[219]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E voss&ecirc;, Natario, &eacute; que deve ir ao secretario
+geral. Voss&ecirc; tem lingua, tem logica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se,
+vou. E hei de lh'as cantar, &aacute; auctoridade!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fic&aacute;ra junto da mesa com a cabe&ccedil;a entre
+as m&atilde;os, aniquilado. E o Libaninho murmurava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filhos, eu n&atilde;o &eacute; nada commigo, mas
+s&oacute;
+de ouvir todo esse aranzel, at&eacute; se me est&atilde;o a
+vergar
+as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas sentiram a voz da snr.<sup>a</sup> Joaquina Gansoso
+subindo a escada; e o conego immediatamente com
+uma voz prudente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Collegas, o melhor, diante das senhoras, &eacute;
+n&atilde;o se fallar mais n'isto. Bem basta o que basta.
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro
+ergueu-se, declarou que estava com uma forte d&ocirc;r
+de cabe&ccedil;a, e despediu-se das senhoras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E sem tomar ch&aacute;? acudiu a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se
+no seu capote, n&atilde;o me estou a sentir bem. Boas
+noites... E voss&ecirc;, Natario, appare&ccedil;a
+&aacute;manh&atilde; pela S&eacute;
+&aacute; uma hora.
+<br />
+
+<br />
+
+Apertou a m&atilde;o de Amelia, que se lhe abandonou
+entre os dedos passiva e molle,&mdash;e sahiu com
+os hombros vergados.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira notou, desconsolada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho ia muito pallido...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego levantou-se, e com um tom impaciente
+e quezilado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se ia pallido, &aacute;manh&atilde; estar&aacute;
+c&oacute;rado. E agora
+<span class="pagenum">[220]</span>
+quero dizer uma coisa: esse aranzel do jornal &eacute; a
+calumnia das calumnias! Eu n&atilde;o sei quem o escreveu,
+nem para que o escreveu. Mas s&atilde;o tolices e
+s&atilde;o infamias. &Eacute; pateta e maroto, quem quer que
+seja. O que devemos fazer j&aacute; o sabemos, e como j&aacute;
+se tagarellou bastante sobre o caso, a senhora mande
+vir o ch&aacute;. E o que l&aacute; vai, l&aacute; vai,
+n&atilde;o se falla
+mais na quest&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+As faces em roda continuavam contristadas.&mdash;E
+ent&atilde;o o conego acrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! e quero dizer outra coisa: como n&atilde;o
+morreu ninguem, n&atilde;o ha necessidade de estar aqui
+com cara de pezames. E tu, pequena, senta-te ao
+instrumento e repenica-me essa
+<em>Chiquita</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+O secretario geral, o snr. Gouv&ecirc;a Ledesma, antigo
+jornalista, e, em annos mais expansivos, auctor
+do livro sentimental <em>Devaneios de um
+sonhador</em>, estava
+ent&atilde;o dirigindo o districto na ausencia do governador
+civil.
+<br />
+
+<br />
+
+Era um mo&ccedil;o bacharel que passava por ter talento.
+Represent&aacute;ra de galan no theatro academico,
+em Coimbra, com muito applauso; e tom&aacute;ra a esse
+tempo o habito de passear &aacute; tarde na Sophia, com o
+ar fatal com que no palco arrepellava os cabellos, ou
+levava, nos transes d'amor, o len&ccedil;o aos olhos. Depois
+em Lisboa arruin&aacute;ra um pequeno patrimonio
+com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Matta,
+<span class="pagenum">[221]</span>
+muita cal&ccedil;a no Xafredo e perniciosas convivencias
+litterarias: aos trinta annos estava pobre, saturado
+de mercurio e auctor de vinte folhetins romanticos
+na
+<em>Civilisa&ccedil;&atilde;o</em>:
+mas torn&aacute;ra-se t&atilde;o popular, que era
+conhecido nos lupanares e nos caf&eacute;s por um cognome
+carinhoso&mdash;era o <em>Bibi</em>. Julgando
+ent&atilde;o que conhecia
+a fundo a existencia, deixou crescer as sui&ccedil;as,
+come&ccedil;ou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou
+na carreira administrativa; chamava agora &aacute;
+republica que tanto exalt&aacute;ra em Coimbra <em>uma
+absurda
+chimera</em>; e Bibi era um pilar das
+institui&ccedil;&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+Detestava Leiria, onde passava por espirituoso;
+e dizia &aacute;s senhoras, nas
+<em>soir&eacute;es</em> do deputado
+Novaes,&mdash;&laquo;que
+estava cansado da vida&raquo;. Rosnava-se
+que a esposa do bom Novaes andava doida por elle:
+e em verdade Bibi escrev&ecirc;ra a um amigo da
+capital:&mdash;&laquo;emquanto
+a conquistas, pouco por ora; tenho
+apenas no papo a Novaesitos&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Levantava-se tarde; e n'essa manh&atilde;, de robe-de-chambre
+&aacute; mesa do almo&ccedil;o, partia os seus ovos
+quentes, lendo com saudade no jornal a narra&ccedil;&atilde;o
+apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o
+criado,&mdash;um gallego que trouxera de Lisboa&mdash;veio
+dizer que &laquo;estava alli um cura&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um cura? Que entre para aqui!&mdash;E murmurou
+para sua satisfa&ccedil;&atilde;o pessoal:&mdash;O Estado
+n&atilde;o
+deve fazer esperar a Igreja.
+<br />
+
+<br />
+
+Ergueu-se, e estendeu as duas m&atilde;os ao padre
+Natario que entrava, muito composto, na sua longa
+batina de lustrina.
+<span class="pagenum">[222]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena
+de ch&aacute;, senhor cura? Soberba manh&atilde;, hein? Estava
+justamente pensando em v. s.<sup>a</sup>&mdash;isto
+&eacute;, estava pensando
+no clero em geral... Acabava de l&ecirc;r as
+peregrina&ccedil;&otilde;es
+que se est&atilde;o fazendo a Nossa Senhora do
+Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da
+melhor roda... &Eacute; realmente consolador v&ecirc;r renascer
+a f&eacute;... Ainda hontem eu disse em casa do Novaes:
+&laquo;no fim de tudo a f&eacute; &eacute; a mola real da
+sociedade&raquo;.
+Tome uma chavena de ch&aacute;... Ah! &eacute; um grande
+balsamo!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, obrigado, almocei j&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&atilde;o! Quando digo um grande balsamo
+refiro-me &aacute; f&eacute;, n&atilde;o ao ch&aacute;!
+Ah! ah! &Eacute; boa, n&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+E prolongou a sua risadinha com complacencia.
+Queria agradar a Natario, pelo principio que repetia
+muito, com um sorriso astuto&mdash;&laquo;que quem est&aacute;
+mettido na politica deve ter por si a padraria&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E depois, acrescentou, como eu dizia hontem
+em casa do Novaes, que vantagem para as localidades!
+Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois
+com a affluencia dos devotos est&aacute; uma cidade...
+Grandes hoteis, <em>boulevards</em>, bellas
+lojas... &Eacute; por
+assim dizer o desenvolvimento economico, correndo
+parelhas com o renascimento religioso.
+<br />
+
+<br />
+
+E deu com satisfa&ccedil;&atilde;o um pux&atilde;osinho
+grave ao
+collarinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.<sup>a</sup> a
+respeito
+d'um communicado na <em>Voz do
+Districto</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente,
+<span class="pagenum">[223]</span>
+li! Uma famosa verrina... Mas litterariamente,
+como estylo e como imagens, que miseria!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E que tenciona v. exc.<sup>a</sup> fazer, senhor
+secretario
+geral?
+<br />
+
+<br />
+
+O snr. Gouv&eacute;a Ledesma apoiou-se nas costas da
+cadeira, perguntou pasmado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu!?
+<br />
+
+<br />
+
+Natario disse, distillando as palavras:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A auctoridade tem o dever de proteger a religi&atilde;o
+do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes...
+Que tenha v. exc.<sup>a</sup> em vista, eu n&atilde;o
+venho
+aqui em nome do clero...
+<br />
+
+<br />
+
+E acrescentou com a m&atilde;o sobre o peito:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sou apenas um pobre padre sem influencia...
+Venho, como particular, perguntar ao senhor secretario
+geral se se p&oacute;de permittir que caracteres respeitaveis
+da Igreja diocesana sejam assim diffamados...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; certamente lamentavel que um jornal...
+<br />
+
+<br />
+
+Natario interrompeu, impertigando o busto com
+indigna&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jornal que j&aacute; devia estar suspenso, senhor secretario
+geral!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Suspenso!? Por quem &eacute;, senhor cura! Mas
+v. s.<sup>a</sup> decerto n&atilde;o quer que eu volte
+aos tempos
+dos corregedores-m&oacute;res! Suspender o jornal! Mas
+a liberdade de imprensa &eacute; um principio sagrado!
+Nem as leis de imprensa o permittem... Mesmo querelar
+pelo ministerio publico porque um periodico
+diz duas ou tres pilherias sobre o cabido, impossivel!
+<span class="pagenum">[224]</span>
+T&iacute;nhamos de querelar de toda imprensa de Portugal,
+com excep&ccedil;&atilde;o da
+<em>Na&ccedil;&atilde;o</em> e do
+<em>Bem Publico!</em>
+Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta
+annos de progresso, a propria id&eacute;a governamental?
+Mas n&oacute;s n&atilde;o somos os Cabraes, meu caro senhor!
+N&oacute;s queremos luz, muitissima luz! Justamente o que
+n&oacute;s queremos &eacute; luz!
+<br />
+
+<br />
+
+Natario tossiu devagarinho, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perfeitamente. Mas ent&atilde;o quando, pelas
+elei&ccedil;&otilde;es,
+a auctoridade nos vier pedir o nosso auxilio,
+n&oacute;s, vendo que n&atilde;o encontramos n'ella
+protec&ccedil;&atilde;o,
+diremos simplesmente: <em>Non possumus</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E pensa o senhor cura, que por amor de alguns
+votos que d&atilde;o os senhores abbades, n&oacute;s vamos
+trahir a civilisa&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+E o antigo <em>Bibi</em>, tomando uma grande
+attitude,
+soltou esta phrase:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Somos filhos da liberdade, n&atilde;o renegaremos
+nossa m&atilde;i!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas o doutor Godinho, que &eacute; a alma do jornal,
+&eacute; opposi&ccedil;&atilde;o, observou ent&atilde;o
+Natario; proteger-lhe o
+jornal &eacute; implicitamente proteger-lhe as manobras...
+<br />
+
+<br />
+
+O secretario geral teve um sorriso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Meu caro senhor cura, v. s.<sup>a</sup> n&atilde;o
+est&aacute; no
+segredo
+da politica. Entre o doutor Godinho e o governo
+civil n&atilde;o ha inimizade, ha apenas um arrufo...
+O doutor Godinho &eacute; uma intelligencia... Vai
+reconhecendo que o <em>grupo da Maia</em>
+n&atilde;o produz
+nada... O doutor Godinho aprecia a politica do governo,
+e o governo aprecia o doutor Godinho.
+<span class="pagenum">[225]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E, rebu&ccedil;ando-se todo n'um mysterio d'Estado,
+acrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coisas d'alta pol&iacute;tica, meu caro senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+Natario ergueu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De modo que...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Impossibilis est</em>, disse o
+secretario. De resto
+acredite, senhor cura, que como particular revolto-me
+contra o <em>Communicado</em>; mas como
+auctoridade
+devo respeitar a express&atilde;o do pensamento...
+Mas creia, e p&oacute;de dizel-o a todo o clero diocesano,
+a Igreja catholica n&atilde;o tem um filho mais fervente que
+eu, Gouv&ecirc;a Ledesma... Quero por&eacute;m uma
+religi&atilde;o
+liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia...
+Foram sempre as minhas id&eacute;as; pr&eacute;guei-as
+bem alto, na imprensa, na universidade e no gremio...
+Assim, por exemplo, n&atilde;o acho que haja poesia
+maior que a poesia do christianismo! E admiro
+Pio IX, uma grande figura! S&oacute;mente lamento que
+elle n&atilde;o arvore a bandeira da
+civilisa&ccedil;&atilde;o!&mdash;E o antigo
+Bibi, contente da sua phrase, repetia:&mdash;Sim, lamento
+que elle n&atilde;o arvore a bandeira da
+civilisa&ccedil;&atilde;o...
+O <em>Syllabus</em> &eacute; impossivel
+n'este seculo de electricidade,
+senhor cura! E a verdade &eacute; que n&oacute;s n&atilde;o
+podemos querelar d'um jornal porque elle diz duas
+ou tres pilherias sobre o sacerdocio, nem nos conv&eacute;m,
+por altas raz&otilde;es de pol&iacute;tica, escandalisar o
+doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor secretario geral... disse Natario curvando-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um criado de v. s.<sup>a</sup> Sinto que n&atilde;o
+tome uma
+<span class="pagenum">[226]</span>
+chavena de ch&aacute;... E como vai o nosso chantre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S. exc.<sup>a</sup> n'estes ultimos dias, segundo creio,
+tem tornado a soffrer de tonturas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista...
+Tenha cuidado com o degrau!...
+<br />
+
+<br />
+
+Natario correu &aacute; S&eacute;, com um passo nervoso,
+resmungando
+alto de c&oacute;lera. Amaro passeava devagar
+no terra&ccedil;o, com as m&atilde;os atraz das costas: tinha
+as
+olheiras batidas e a face envelhecida.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o? disse elle, indo rapidamente ao encontro
+de Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro mordeu o bei&ccedil;o: e emquanto Natario lhe
+contava, excitado, a conversa&ccedil;&atilde;o com o secretario
+geral, &laquo;e como argument&aacute;ra com elle, e como o
+homem tagarell&aacute;ra, tagarell&aacute;ra&raquo;,&mdash;a
+face do parocho
+cobria-se d'uma sombra desconsolada, e ia arrancando
+raivosamente, com a ponta do guardasol,
+a herva que crescia nas fendas do terra&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um patarata! resumiu o padre Natario com
+um grande gesto. Pela auctoridade n&atilde;o se faz nada.
+&Eacute; escusado... Mas a quest&atilde;o agora &eacute;
+entre mim e
+o <em>liberal</em>, padre Amaro! Eu hei de
+saber quem &eacute;,
+padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro,
+sou eu!...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto Jo&atilde;o Eduardo desde o domingo triumphava:
+o artigo fizera escandalo: tinham-se vendido
+<span class="pagenum">[227]</span>oitenta numeros
+avulsos do jornal, e o Agostinho
+affirm&aacute;ra-lhe que na botica da Pra&ccedil;a a
+opini&atilde;o era
+&laquo;que o <em>liberal</em> conhecia a
+padraria a fundo e tinha
+cabe&ccedil;a&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute;s um genio, rapaz! disse o Agostinho. &Eacute;
+trazer-me
+outro, &eacute; trazer-me outro!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo gozava prodigiosamente &laquo;d'aquelle
+fallatorio que ia pela cidade&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Relia ent&atilde;o o artigo com uma
+deleita&ccedil;&atilde;o paternal;
+se n&atilde;o receasse escandalisar a S. Joanneira,
+desejaria ir pelas lojas dizer bem alto&mdash;<em>fui eu,
+eu &eacute; que o escrevi!</em>&mdash;E j&aacute;
+ruminava outro, mais
+terrivel, que se deveria intitular: <em>O diabo feito
+ermita</em>, ou <em>O sacerdocio de Leiria
+perante o seculo
+XIX</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho encontr&aacute;ra-o na Pra&ccedil;a, e
+par&aacute;ra
+com condescendencia, para lhe dizer:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A coisa tem feito barulho. Voss&ecirc; &eacute; o diabo!
+E a piada ao padre Brito &eacute; bem jogada. Que eu n&atilde;o
+sabia... E diz que &eacute; bonita, a mulher do regedor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V. exc.<sup>a</sup> n&atilde;o sabia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o sabia, e saboreei. Voss&ecirc; &eacute; o
+diabo! Eu
+fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa
+como um communicado. Voss&ecirc; comprehende... Eu
+n&atilde;o me conv&eacute;m ter turras de mais com o clero...
+E depois l&aacute; minha esposa tem seus escrupulos...
+Emfim &eacute; mulher, e &eacute; conveniente que as mulheres
+tenham religi&atilde;o... Mas no meu f&ocirc;ro interior
+saboreei...
+Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me
+<span class="pagenum">[228]</span>
+uma guerra dos diabos na elei&ccedil;&atilde;o passada... Ah!
+e outra coisa, o seu negocio arranja-se. L&aacute; para o
+mez que vem tem voss&ecirc; o seu emprego no governo
+civil.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, snr. doutor... v. exc.<sup>a</sup>...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual historia! voss&ecirc; &eacute; um benemerito!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria.
+O snr. Nunes Ferral sahira: o escrevente aparou
+devagar uma penna, come&ccedil;ou a c&oacute;pia d'uma
+procura&ccedil;&atilde;o&mdash;e de repente, agarrando o
+chap&eacute;o,
+correu &aacute; rua da Misericordia.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira costurava s&oacute; &aacute; janella; Amelia
+f&ocirc;ra ao Morenal; e Jo&atilde;o Eduardo, logo da porta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor
+Godinho. Diz que l&aacute; para o mez que vem tenho o
+meu emprego...
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira tirou a luneta, deixou cahir as
+m&atilde;os no rega&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, &eacute; verdade...
+<br />
+
+<br />
+
+E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos
+nervosos de jubilo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que pechincha! exclamou. De modo que agora,
+se a Ameliasinha estiver d'accordo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, Jo&atilde;o Eduardo! fez a S. Joanneira com
+um grande suspiro, que me tira um peso do
+cora&ccedil;&atilde;o...
+Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo presentiu que ella ia fallar do
+<em>Communicado</em>.
+Foi p&ocirc;r o chap&eacute;o n'uma cadeira ao canto;
+<span class="pagenum">[229]</span>
+e voltando &aacute; janella, com as m&atilde;os nos bolsos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o porqu&ecirc;, porqu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aquella pouca vergonha no
+<em>Districto!</em> Que
+diz voss&ecirc;? Aquella calumnia! Ai! tenho-me feito
+velha!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo escrevera o artigo sob as
+solicita&ccedil;&otilde;es
+do ciume, s&oacute; para &laquo;enterrar&raquo; o padre
+Amaro;
+n&atilde;o previra o desgosto das duas senhoras; e
+vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no
+branco dos olhos, sentia-se <em>quasi
+arrependido</em>. Disse
+amb&iacute;guamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu li, &eacute; o diabo...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira
+para servir a sua paix&atilde;o, acrescentou sentando-se,
+chegando a cadeira para ao p&eacute; d'ella:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta,
+mas... olhe que a Ameliasinha tratava o parocho
+com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo
+Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo,
+ia-se rosnando... Eu bem sei que ella, coitada,
+n&atilde;o via o mal, mas... a D. Augusta sabe o
+que &eacute; Leiria. Que linguas, hein!
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira ent&atilde;o declarou que lhe ia fallar
+como a um filho: o artigo affligira-a, sobretudo por
+causa d'elle, Jo&atilde;o Eduardo. Porque emfim elle podia
+acreditar tambem, desfazer o casamento, e que
+desgosto! E ella podia dizer-lhe, como mulher de
+bem, como m&atilde;i, que n&atilde;o havia entre a pequena e o
+senhor parocho nada, nada, nada! Era a rapariga
+que tinha aquelle genio communicativo! E o parocho
+<span class="pagenum">[230]</span>
+tinha boas palavras, sempre muito delicado...
+Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro
+tinha maneiras que tocavam o cora&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Decerto, disse Jo&atilde;o Eduardo mordendo o bigode,
+com a cabe&ccedil;a baixa.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira ent&atilde;o poz a m&atilde;o de leve sobre o
+joelho do escrevente, e fitando-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E olhe, n&atilde;o sei se me fica mal dizer-lh'o, mas
+a rapariga quer-lhe dev&eacute;ras, Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+O cora&ccedil;&atilde;o do escrevente teve uma
+palpita&ccedil;&atilde;o
+commovida.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E eu! disse. A D. Augusta sabe a paix&atilde;o que
+eu tenho por ella... E l&aacute; do artigo que me importa
+a mim!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a S. Joanneira limpou os olhos ao avental
+branco. Ai! era uma alegria para ella! Ella sempre
+o dissera, como rapaz de bem, n&atilde;o havia outro na
+cidade de Leiria!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; sabe, quero-lhe como filho!
+<br />
+
+<br />
+
+O escrevente enterneceu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do
+mundo...
+<br />
+
+<br />
+
+E erguendo-se, com uma solemnidade engra&ccedil;ada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;snr.<sup>a</sup> D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir
+a m&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella riu-se&mdash;e na sua alegria Jo&atilde;o Eduardo
+beijou-a na testa, filialmente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E falle &aacute; noite &aacute; Ameliasinha, disse ao sahir.
+Eu venho &aacute;manh&atilde;, e felicidade n&atilde;o ha
+de faltar...
+<span class="pagenum">[231]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a
+S. Joanneira retomando a sua costura, com um suspiro
+de muito allivio.
+<br />
+
+<br />
+
+Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal,
+a S. Joanneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esteve ahi o Jo&atilde;o Eduardo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi esteve a fallar, coitado...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, calada, dobrava a sua manta de l&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi esteve a queixar-se... continuou a m&atilde;i.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas de qu&ecirc;? perguntou ella muito vermelha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora de qu&ecirc;! Que se fallava muito na cidade
+do artigo do <em>Districto</em>; que se
+perguntava a quem
+alludia o periodico com as <em>donzellas
+inexperientes</em>,
+e que a resposta era: &laquo;Quem ha de ser? a Amelia
+da S. Joanneira, da rua da Misericordia!&raquo; O pobre
+Jo&atilde;o diz que tem andado t&atilde;o desgostoso!...
+N&atilde;o se
+atrevia, por delicadeza, a fallar-te... Emfim...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que hei de eu fazer, minha m&atilde;i? exclamou
+Amelia com os olhos subitamente cheios de lagrimas
+&aacute;quellas palavras que cahiam sobre os seus
+tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que
+quizeres, filha. Eu bem sei que s&atilde;o calumnias! Mas
+tu sabes o que s&atilde;o linguas do mundo... O que te
+posso dizer &eacute; que o rapaz n&atilde;o acreditou no
+periodico.
+Que era isso que me dava cuidado!... Credo!
+tirou-me o somno... Mas n&atilde;o, diz que n&atilde;o lhe
+importa
+o artigo, que te quer da mesma maneira, e est&aacute;
+a arder por que se fa&ccedil;a o casamento... E eu por
+<span class="pagenum">[232]</span>
+mim o que fazia, para calar toda essa gente, era
+casar-me j&aacute;. Eu bem sei que tu n&atilde;o morres por
+elle,
+bem sei. Deixa l&aacute;! Isso vem depois. O Jo&atilde;o
+&eacute; bom
+rapaz, vai ter o emprego...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai ter o emprego!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois foi o que elle me veio dizer tambem...
+Esteve com o doutor Godinho, diz que l&aacute; para o fim
+do mez est&aacute; empregado... Emfim tu fazes o que
+entenderes... Que olha que eu estou velha, filha,
+posso faltar-te d'um momento para o outro...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n&atilde;o respondeu, olhando de frente no telhado
+voarem os pardaes&mdash;menos desassocegados,
+n'aquelle instante, que os seus pensamentos.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a
+<em>donzella inexperiente</em> a que alludia
+o <em>Communicado</em>
+era ella, Amelia, e torturava-a o vexame de v&ecirc;r assim
+o seu amor publicado no jornal. Depois (como
+ella pensava, mordendo o bei&ccedil;o n'uma raiva muda,
+com os olhos afogados de lagrimas), aquillo vinha
+estragar tudo! Na Pra&ccedil;a, na Arcada j&aacute; se diria
+com
+risinhos perversos:&mdash;&laquo;Ent&atilde;o a Ameliasita da S.
+Joanneira mettida com o parocho, hein?&raquo; Decerto o
+senhor chantre, t&atilde;o severo em &laquo;coisas de
+mulheres,&raquo;
+reprehenderia o padre Amaro... E por alguns
+olhares, alguns apertos de m&atilde;o, ahi estava a sua
+reputa&ccedil;&atilde;o estragada, estragado o seu amor!
+<span class="pagenum">[233]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe
+sentir pelas costas risinhos a escarnecel-a; no aceno
+que lhe fez da porta da botica o respeitavel Carlos
+julgou v&ecirc;r uma seccura reprehens&iacute;vel; &aacute;
+volta
+encontr&aacute;ra o Marques da loja de ferragens, que
+n&atilde;o
+lhe tirou o chap&eacute;o, e ao entrar em casa julgava-se
+desacreditada&mdash;esquecendo que o bom Marques era
+t&atilde;o curto da vista que usava na loja duas lunetas
+sobrepostas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer?
+murmurava, &agrave;s vezes, com as m&atilde;os apertadas na
+cabe&ccedil;a. O seu cerebro de devota apenas lhe fornecia
+solu&ccedil;&otilde;es devotas&mdash;entrar n'um recolhimento, fazer
+uma promessa a Nossa Senhora das D&ocirc;res &laquo;para
+que a livrasse d'aquelle apuro&raquo;, ir confessar-se ao
+padre Silverio... E terminava por se vir sentar resignadamente
+ao p&eacute; da m&atilde;i com a sua costura, considerando,
+muito enternecida, que desde pequena
+f&ocirc;ra sempre bem infeliz!
+<br />
+
+<br />
+
+A m&atilde;i n&atilde;o lhe fall&aacute;ra claramente sobre
+o <em>Communicado</em>;
+tivera apenas palavras amb&iacute;guas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; uma pouca vergonha... &Eacute; deitar ao desprezo...
+Quando a gente tem a sua consciencia socegada,
+o mais historias...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia via-lhe bem o desgosto&mdash;na face
+envelhecida, nos tristes silencios, nos suspiros repentinos
+quando fazia meia &aacute; janella com a luneta
+na ponta do nariz: e ent&atilde;o mais se convencia que
+havia &laquo;grande fallatorio na cidade&raquo;, de que a
+m&atilde;i,
+coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D.
+<span class="pagenum">[234]</span>
+Josepha Dias&mdash;cuja boca produzia o mexerico mais
+naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
+<br />
+
+<br />
+
+E ent&atilde;o o seu amor pelo parocho, que at&eacute; ahi,
+n'aquella reuni&atilde;o de saias e batinas da rua da Misericordia
+se lhe afigur&aacute;ra natural, agora, julgando-o
+reprovado pelas pessoas que desde pequena
+fora acostumada a respeitar&mdash;os Guedes, os Marques,
+os Vazes,&mdash;apparecia-lhe j&aacute; monstruoso: assim
+as c&ocirc;res d'um retrato pintado &aacute; luz d'azeite, e
+que &aacute; luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos
+e disformes quando lhes cae em cima a luz do
+sol. E quasi estimava que o padre Amaro n&atilde;o tivesse
+voltado &aacute; rua da Misericordia.
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto, com que anciedade esperava todas
+as noites o seu toque de campainha! Mas elle n&atilde;o
+vinha; e aquella ausencia, que a sua raz&atilde;o julgava
+prudente, dava ao seu cora&ccedil;&atilde;o o desespero d'uma
+trai&ccedil;&atilde;o. Na quarta-feira &aacute; noite
+n&atilde;o se conteve, disse,
+c&oacute;rando sobre a sua costura:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que ser&aacute; feito do senhor parocho?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, que na sua poltrona parecia dormitar,
+tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais que fazer... E escusam de esperar por
+elle t&atilde;o cedo!...
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, que fic&aacute;ra branca como a cal, teve
+immediatamente a certeza que o parocho, aterrado
+com o escandalo do jornal, aconselhado pelos padres
+timoratos zelosos &laquo;do bom nome do clero&raquo;&mdash;tratava
+de se descartar d'ella! Mas, cautelosa, diante
+das amigas da m&atilde;i, escondeu o seu desespero: foi
+<span class="pagenum">[235]</span>
+mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurkas t&atilde;o
+estrondosas&mdash;que
+o conego, tornando a mexer-se na
+poltrona, grunhiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
+<br />
+
+<br />
+
+Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A
+sua paix&atilde;o pelo parocho flammejava mais irritada; e
+todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma allus&atilde;o
+n'um jornal o pic&aacute;ra, fic&aacute;ra a tremer na sua
+batina, apavorado, n&atilde;o se atrevendo sequer a visital-a&mdash;sem
+se lembrar que tambem ella se via diminuida
+na sua reputa&ccedil;&atilde;o, sem ser satisfeita no seu
+amor! E f&ocirc;ra elle que a tent&aacute;ra com as suas
+palavrinhas
+d&ocirc;ces, as suas denguices! Infame!... Desejava
+violentamente apertal-o ao cora&ccedil;&atilde;o&mdash;e
+esbofeteal-o.
+Teve a id&eacute;a insensata de ir ao outro dia
+&agrave; rua das Sousas atirar-se-lhe aos bra&ccedil;os,
+installar-se-lhe
+no quarto, fazer um escandalo que o obrigasse
+a fugir da diocese... Porque n&atilde;o? Eram novos,
+eram robustos, poderiam viver longe, n'outra
+cidade&mdash;e a sua imagina&ccedil;&atilde;o come&ccedil;ou a
+repastar-se
+logo hystericamente nas perspectivas deliciosas d'essa
+existencia, em que se figurava constantemente
+a dar-lhe beijos! Atrav&eacute;s da sua intensa
+excita&ccedil;&atilde;o,
+aquelle plano parecia-lhe muito pratico, muito facil:
+fugiriam para o Algarve; l&aacute;, elle deixaria crescer o
+cabello (que mais bonito seria ent&atilde;o!) e ninguem saberia
+que era um padre; poderia ensinar latim, ella
+coseria para f&oacute;ra; e viveriam n'uma casinha&mdash;onde
+o que mais a attrahia era o leito com as duas travesseirinhas
+<span class="pagenum">[236]</span>
+chegadas... E a unica difficuldade que
+via em todo este plano radiante era fazer sahir de
+casa, &agrave;s escondidas da m&atilde;i, o bah&uacute; com
+a sua roupa!&mdash;Mas
+quando acordou, essas resolu&ccedil;&otilde;es morbidas,
+&aacute; luz clara do dia, desfizeram-se como sombras:
+tudo aquillo lhe parecia agora t&atilde;o impraticavel,
+e elle t&atilde;o separado d'ella, como se entre
+a rua da Misericordia e a rua das Sousas se erguessem
+inaccessivelmente todas as montanhas da terra.
+Ai, o senhor parocho abandon&aacute;ra-a, era certo! N&atilde;o
+queria perder os lucros da sua parochia nem a estima
+dos seus superiores!... Pobre d'ella! Considerou-se
+ent&atilde;o para sempre infeliz e desinteressada
+da vida. Guardou, todavia, muito intenso o desejo
+de se vingar do padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que reflectiu, pela primeira vez, que
+Jo&atilde;o Eduardo desde a publica&ccedil;&atilde;o do
+<em>Communicado</em>
+n&atilde;o apparecera na rua da Misericordia. Tambem
+me volta as costas&mdash;pensou com amargura. Mas
+que lhe importava! No meio da afflic&ccedil;&atilde;o que lhe
+dava
+o abandono do padre Amaro, a perda do amor do
+escrevente, piegas e pesado, que lhe n&atilde;o trazia utilidade
+nem prazer, era uma contrariedade imperceptivel:
+uma infelicidade viera que lhe arrebatava
+bruscamente todas as affei&ccedil;&otilde;es&mdash;a que lhe enchia
+a alma e a que apenas lhe acariciava a vaidadesinha:
+e irritava-a, sim, n&atilde;o sentir j&aacute; o amor do
+escrevente collado a suas saias, com a docilidade
+d'um c&atilde;o&mdash;mas todas as suas lagrimas eram para o
+senhor parocho, &laquo;que j&aacute; n&atilde;o queria
+saber d'ella&raquo;!
+<span class="pagenum">[237]</span>
+S&oacute; lamentava a deser&ccedil;&atilde;o de
+Jo&atilde;o Eduardo, porque
+perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer
+o padre Amaro...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Por isso n'essa tarde &aacute; janella, calada, olhando
+no telhado defronte voarem os pardaes&mdash;depois de
+saber que Jo&atilde;o Eduardo, certo do emprego, viera
+fallar emfim &aacute; m&atilde;i,&mdash;pensava com
+satisfa&ccedil;&atilde;o no desespero
+do parocho ao v&ecirc;r publicados na S&eacute; os banhos
+do seu casamento. Depois as palavras muito
+praticas da S. Joanneira trabalhavam-lhe silenciosamente
+n'alma: o emprego do governo civil rendia
+25$000 reis mensaes; casando, reentrava logo na
+sua respeitabilidade de senhora; e se a m&atilde;i morresse,
+com o ordenado do homem e com o rendimento
+do Morenal, podia viver com decencia, ir mesmo no
+ver&atilde;o aos banhos... E via-se j&aacute; na Vieira, muito
+comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez
+a do governador civil.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhe parece, minha m&atilde;i?&mdash;perguntou
+bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que
+entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava
+ser persuadida e for&ccedil;ada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu ia pelo seguro, filha&mdash;foi a resposta da
+S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; sempre o melhor&mdash;murmurou Amelia entrando
+no quarto. E sentou-se muito triste aos p&eacute;s
+da cama, porque a melancolia que lhe dava o crepusculo
+<span class="pagenum">[238]</span>
+tornava-lhe agora mais pungente a saudade
+&laquo;dos seus bons tempos com o senhor parocho&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+N'essa noite choveu muito, as duas senhoras
+passaram s&oacute;s. A S. Joanneira, repousada agora das
+suas inquieta&ccedil;&otilde;es, estava muito somnolenta, a
+cada
+momento cabeceava com a meia cahida no rega&ccedil;o.
+Amelia ent&atilde;o pousava a costura, e com o cotov&ecirc;lo
+sobre a mesa, fazendo girar o
+<em>abat-jour</em> verde do
+candieiro, pensava no seu casamento: o Jo&atilde;o Eduardo
+era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido
+t&atilde;o estimado na pequena burguezia&mdash;n&atilde;o era
+feio e tinha um emprego; decerto o offerecimento
+da sua m&atilde;o, apesar das infamias do jornal, n&atilde;o
+lhe
+parecia, como a m&atilde;i dissera, &laquo;um rasgo de
+m&atilde;o
+cheia&raquo;; mas a sua dedica&ccedil;&atilde;o
+lisonjeava-a, depois
+do abandono t&atilde;o cobarde de Amaro: e havia dois
+annos que o pobre Jo&atilde;o gostava d'ella... Come&ccedil;ou
+ent&atilde;o laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle
+lhe agradava&mdash;o seu ar s&eacute;rio, os seus dentes muito
+brancos, a sua roupa aceada.
+<br />
+
+<br />
+
+F&oacute;ra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente
+as vidra&ccedil;as, dava-lhe appetites de confortos,
+um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a
+dormir no ber&ccedil;o&mdash;porque seria um rapaz, chamar-se-hia
+Carlos e teria os olhos negros do padre
+Amaro. O padre Amaro!... Depois de casada, decerto,
+tornaria a encontrar o senhor padre Amaro...
+E ent&atilde;o uma id&eacute;a atravessou todo o seu
+s&ecirc;r, f&ecirc;l-a
+erguer bruscamente, ir por instincto procurar a escurid&atilde;o
+da janella para occultar a vermelhid&atilde;o do
+<span class="pagenum">[239]</span>
+rosto. Oh! isso n&atilde;o, isso n&atilde;o! Era
+horr&iacute;vel!... Mas
+a id&eacute;a implacavelmente apoder&aacute;ra-se d'ella como
+um bra&ccedil;o muito forte que a suffocava e lhe dava
+uma agonia deliciosa. E ent&atilde;o o antigo amor, que o
+despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo
+da_sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente,
+com paix&atilde;o, torcendo as m&atilde;os, o nome
+d'Amaro: desejou avidamente os seus beijos&mdash;oh!
+adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado!
+E devia casar, pobre d'ella!... Ent&atilde;o &aacute; janella,
+com a face contra a escurid&atilde;o da noite, choramingou
+baixinho.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao ch&aacute; a S. Joanneira disse-lhe, de repente:
+<br />
+
+<br />
+
+-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser j&aacute;...
+Era come&ccedil;ar o enxoval, e se fosse possivel casar-te
+para o fim do mez.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondeu&mdash;mas a sua
+imagina&ccedil;&atilde;o alvoro&ccedil;ou-se
+&aacute;quellas palavras. Casada d'ahi a um
+mez, ella! Apesar de Jo&atilde;o Eduardo lhe ser indifferente,
+a id&eacute;a d'aquelle rapaz, novo e apaixonado,
+que ia viver com ella, dormir com ella, deu uma
+perturba&ccedil;&atilde;o a todo o seu s&ecirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+E quando a m&atilde;i ia descer ao quarto disse-lhe:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhe parece, minha m&atilde;i? Eu est&aacute;-me a
+custar entrar em explica&ccedil;&otilde;es com o
+Jo&atilde;o Eduardo,
+dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tambem acho, filha, escreve-lhe... A
+<em>Ru&ccedil;a</em>
+leva a carta pela manh&atilde;... Uma carta bonita, e que
+agrade ao rapaz.
+<span class="pagenum">[240]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ficou na sala de jantar at&eacute; tarde fazendo
+o rascunho da carta. Dizia:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">
+&laquo;Snr. Jo&atilde;o Eduardo,
+</div>
+
+<br />
+
+&laquo;A mam&atilde; c&aacute; me p&ocirc;z ao facto da
+conversa&ccedil;&atilde;o
+que teve comsigo. E se a sua affei&ccedil;&atilde;o
+&eacute; verdadeira,
+como creio e me tem dado muitas provas, eu
+estou pelo que se decidiu com muito boa vontade,
+pois conhece os meus sentimentos. E a respeito
+d'enxoval e papeis, &aacute;manh&atilde; se fallar&aacute;,
+pois que o
+esperamos para o ch&aacute;. A mam&atilde; est&aacute;
+muito contente
+e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade,
+como espero ha de ser, com a ajuda de
+Deus. A mam&atilde; recommenda-se e eu sou
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">
+a que muito lhe quer,</div>
+
+<br />
+
+<div class="signature">
+<em>&laquo;Amelia
+Caminha&raquo;</em>.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco
+espalhadas diante d'ella deram-lhe o desejo d'escrever
+ao padre Amaro. Mas o qu&ecirc;? Confessar-lhe o
+seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma
+tinta, com que aceitava por marido o
+<em>outro</em>?...
+Accusal-o da sua cobardia, mostrar o seu desgosto&mdash;era
+humilhar-se! E, apesar de n&atilde;o ter motivo
+para lhe escrever, a sua m&atilde;o ia tra&ccedil;ando com gozo
+as primeiras palavras <em>&laquo;Meu adorado
+Amaro...&raquo;</em>
+Deteve-se, considerando que n&atilde;o tinha por quem
+<span class="pagenum">[241]</span>
+mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em
+silencio, para sempre!... Separarem-se porqu&ecirc;?&mdash;pensou.
+Depois de casada podia bem v&ecirc;r o senhor
+padre Amaro. E a mesma id&eacute;a voltava, subtilmente,
+mas n'uma f&oacute;rma t&atilde;o honesta agora, que a
+n&atilde;o repellia:
+decerto, o senhor padre Amaro podia ser o
+seu confessor; era em toda a christandade a pessoa
+que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a
+sua consciencia; haveria ent&atilde;o entre elles uma troca
+deliciosa e constante de confidencias, de d&ocirc;ces
+admoesta&ccedil;&otilde;es; todos os sabbados iria receber ao
+confessionario, na luz dos seus olhos e no som das
+suas palavras, uma provis&atilde;o de felicidade; e aquillo
+seria casto, muito picante, e para gloria de Deus.
+<br />
+
+<br />
+
+Sentiu-se quasi satisfeita com a impress&atilde;o, que
+n&atilde;o definia bem, d'uma existencia em que a carne
+estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria
+os encantos d'uma devo&ccedil;&atilde;o amorosa. Tudo vinha
+a calhar bem, por fim... E d'ahi a pouco dormia
+serenamente, sonhando que estava na
+<em>sua</em> casa, com
+o <em>seu</em> marido, e que jogava a manilha
+com as velhas
+amigas, no meio do contentamento de toda a
+S&eacute;, sentada nos joelhos do senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia a <em>Ru&ccedil;a</em> levou
+a carta a Jo&atilde;o Eduardo,
+e toda a manh&atilde; as duas senhoras, costurando &aacute;
+janella, fallaram do casamento. Amelia n&atilde;o se queria
+separar da m&atilde;i, e, como a casa tinha
+accommoda&ccedil;&otilde;es,
+os noivos viveriam no primeiro andar, e a
+S. Joanneira dormiria no quarto em cima; decerto
+o senhor conego ajudaria para o enxoval; podiam
+<span class="pagenum">[242]</span>
+ir passar a lua de mel para a fazenda da D. Maria.
+E Amelia &aacute;quellas perspectivas felizes fazia-se toda
+escarlate, sob o olhar da m&atilde;i que, de luneta na
+ponta do nariz, a admirava babosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo
+no seu quarto a rezar a sua cor&ocirc;a, e deixou Amelia
+s&oacute; &laquo;para se entender com o
+rapaz&raquo;.&mdash;D'ahi
+a pouco, com effeito, Jo&atilde;o Eduardo bateu &aacute;
+campainha.
+Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado
+em agua de colonia. Quando chegou &aacute; porta
+da sala de jantar n&atilde;o havia luz, e a bonita f&oacute;rma
+d'Amelia destacava de p&eacute;, junto &aacute; claridade da
+vidra&ccedil;a.
+Elle p&ocirc;z o chale-manta a um canto como costumava,
+e vindo para ella que fic&aacute;ra immovel, disse-lhe,
+esfregando muito as m&atilde;os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; recebi a cartinha, menina Amelia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu mandei-a pela <em>Ru&ccedil;a</em>
+logo pela manh&atilde; para
+o pilhar em casa, disse ella immediatamente com
+as faces a arder.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu ia para o cartorio, at&eacute; j&aacute; ia na escada...
+Haviam de ser nove horas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Haviam de ser... disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Calaram-se, muito perturbados. Elle ent&atilde;o tomou-lhe
+delicadamente os pulsos, e baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o sempre quer?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quero, murmurou Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o mais depressa possivel, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim...
+<br />
+
+<br />
+
+Elle suspirou, muito feliz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Havemos de nos dar muito bem, havemos de
+<span class="pagenum">[243]</span>
+nos dar muito bem! dizia. E as suas m&atilde;os, com
+press&otilde;es
+ternas, iam-se apoderando dos bra&ccedil;os d'ella,
+dos pulsos aos cotov&ecirc;los.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A mam&atilde; diz que podemos viver juntos, disse
+ella, esfor&ccedil;ando-se por fallar tranquillamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, e eu vou mandar fazer len&ccedil;oes,
+acudiu elle, todo alterado.
+<br />
+
+<br />
+
+Attrahiu-a ent&atilde;o a si, subitamente, beijou-lhe os
+labios; ella teve um solu&ccedil;osinho, abandonou-se-lhe
+entre os bra&ccedil;os, toda fraca, toda languida.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, filha! murmurava o escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas os sapatos da m&atilde;i rangeram na escada, e
+Amelia foi vivamente para o aparador accender o
+candieiro.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira parou &aacute; porta; e para dar a sua
+primeira approva&ccedil;&atilde;o maternal, disse, com
+bonhomia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o voss&ecirc;s est&atilde;o aqui &aacute;s
+escuras, filhos?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro
+o casamento d'Amelia, uma manh&atilde;, na S&eacute;. Fallou
+no &laquo;a proposito do enlace&raquo;, e acrescentou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu estimo, porque &eacute; a contento da rapariga,
+e &eacute; um descanso para a pobre velha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, est&aacute; claro...&mdash;murmurou Amaro
+que se fizera muito branco.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego pigarreou grosso, e ajuntou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E voss&ecirc; agora appare&ccedil;a por l&aacute;, agora
+est&aacute;
+<span class="pagenum">[244]</span>
+tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence
+&aacute; historia... O que l&aacute; vai, l&aacute; vai!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, est&aacute; claro...&mdash;rosnou Amaro.
+Tra&ccedil;ou bruscamente a capa, sahiu da igreja.
+<br />
+
+<br />
+
+Ia indignado; e continha-se, para n&atilde;o praguejar
+alto, pelas ruas. &Aacute; esquina da viella das Sousas quasi
+esbarrou com Natario, que o agarrou logo pela
+manga, para lhe soprar ao ouvido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ainda n&atilde;o sei nada!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Do <em>liberal</em>, do
+<em>Communicado</em>. Mas trabalho,
+trabalho!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, que anciava por desabafar, disse logo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o ouviu a novidade? O casamento d'Amelia...
+Que lhe parece?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz
+apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho...
+&Eacute; outro que tal!... Veja voss&ecirc; esta corja: o
+doutor
+Godinho no jornal &aacute;s bulhas com o governo civil, e
+o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor
+Godinho... V&aacute; l&aacute; entendel-os! Isto &eacute;
+um paiz de
+biltres!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diz que grande alegr&atilde;o na casa da S. Joanneira!&mdash;disse
+o parocho, com um azedume negro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que se divirtam! Eu n&atilde;o tenho tempo de l&aacute;
+ir... Eu n&atilde;o tenho tempo para nada!... Eu c&aacute; ando
+no meu fito, saber quem &eacute; o
+<em>liberal</em> e escachal-o!
+N&atilde;o posso v&ecirc;r esta gente que leva a chicotada,
+co&ccedil;a-se,
+e curva a orelha. Eu c&aacute; n&atilde;o! eu guardo-as!&mdash;E,
+<span class="pagenum">[245]</span>
+com uma contrac&ccedil;&atilde;o de rancor que lhe curvou
+os dedos em garra e lhe encolheu o peito magro.
+disse por entre os dentes cerrados:&mdash;Eu, quando
+odeio, odeio bem!
+<br />
+
+<br />
+
+Esteve um momento calado, gozando o sab&ocirc;r do
+seu fel.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; se f&ocirc;r &aacute; rua da Misericordia
+d&ecirc; l&aacute; os
+parabens a essa gente...&mdash;E acrescentou com os
+olhinhos em Amaro:&mdash;O palerma do escrevente
+leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher
+o papo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; &aacute; vista! exclamou bruscamente Amaro,
+abalando pela rua furioso.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera
+o <em>Communicado</em>, o padre Amaro, ao
+principio,
+muito egoistamente, apenas se preoccup&aacute;ra
+com as consequ&ecirc;ncias&mdash;&laquo;consequencias fataes, santo
+Deus!&raquo;&mdash;que lhe podia trazer o escandalo. Hein!
+se pela cidade se espalhasse que era elle o <em>padre
+ajanotado</em>
+que o <em>liberal</em> apostrophava! Viveu
+dois dias
+aterrado, tremendo de v&ecirc;r apparecer o padre Saldanha,
+com a sua cara ameninada e voz melliflua,
+a dizer-lhe &laquo;que sua excellencia o senhor chantre
+reclamava a sua presen&ccedil;a&raquo;! Passava j&aacute; o
+tempo preparando
+explica&ccedil;&otilde;es, respostas habeis, lisonjas a sua
+excellencia.&mdash;Mas quando viu que, apesar da violencia
+do artigo, sua excellencia parecia disposto &laquo;a
+fazer a vista grossa&raquo;, occupou-se ent&atilde;o, mais
+tranquillo,
+dos interesses do seu amor t&atilde;o violentamente
+perturbados. O medo tornava-o astucioso; e
+<span class="pagenum">[246]</span>
+decidiu n&atilde;o voltar algum tempo &aacute; rua da
+Misericordia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixar passar o aguaceiro, pensou.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o
+artigo estivesse esquecido, appareceria de novo em
+casa da S. Joanneira: deixaria v&ecirc;r bem &aacute; rapariga
+que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade,
+as conversasinhas baixas, os logarzinhos
+chegados ao quino; depois, pela D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o,
+pela D. Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse
+o padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam
+ent&atilde;o entender-se, no segredo do confessionario:
+combinariam uma conducta discreta, encontros cautelosos
+aqui e al&eacute;m, cartinhas pela criada: e aquelle
+amor assim conduzido, com prudenciasinha, n&atilde;o
+teria o perigo de apparecer uma manh&atilde; annunciado
+no periodico! E regosijava-se j&aacute; da habilidade d'esta
+combina&ccedil;&atilde;o, quando lhe vinha o grande
+choque&mdash;casava-se
+a rapariga!
+<br />
+
+<br />
+
+Depois dos primeiros desesperos, desabafados em
+patadas no soalho e blasphemias de que pedia logo
+perd&atilde;o a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz serenar,
+estabelecer a raz&atilde;o das coisas. Aonde o levava aquella
+paix&atilde;o? Ao escandalo. E assim, casada ella, cada
+um entrava no seu destino legitimo e sensato&mdash;ella
+na sua familia, elle na sua parochia. Depois, quando
+se encontrassem, um comprimento amavel; e elle
+poderia passear a cidade com a sua cabe&ccedil;a bem direita,
+sem medo dos &aacute;partes da Arcada, das
+insinua&ccedil;&otilde;es
+da gazeta, das severidades de sua excellencia
+<span class="pagenum">[247]</span>
+e das picadinhas da consciencia! E a sua vida seria
+feliz.&mdash;N&atilde;o, por Deus! a sua vida n&atilde;o poderia ser
+feliz sem ella! Tirado &aacute; sua existencia aquelle interesse
+das visitas &agrave; rua da Misericordia, os apertosinhos
+de m&atilde;o, a esperan&ccedil;a de delicias melhores&mdash;que
+lhe restava a elle? Vegetar, como um dos tortolhos
+nos cantos humidos do adro da S&eacute;! E ella,
+ella que o entontecera com os seus olhinhos e as suas
+maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe apparecia
+outro, bom para marido, com 25$000 reis por mez!
+Todos aquelles suspiros, aquellas mudan&ccedil;as de
+c&ocirc;r&mdash;chala&ccedil;a!
+Mang&aacute;ra com o senhor parocho!...
+<br />
+
+<br />
+
+O que a odiava!&mdash;menos que o outro por&eacute;m,
+o outro que triumphava porque era um homem, tinha
+a sua liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode,
+um bra&ccedil;o livre para lhe dar na rua! Repastava
+ent&atilde;o a imagina&ccedil;&atilde;o rancorosamente nas
+vis&otilde;es
+de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da
+igreja triumphantemente; via-o beijando-lhe o pesco&ccedil;o
+e o peito... E a estas id&eacute;as dava patadas furiosas
+no soalho&mdash;que assustavam a Vicencia na cozinha.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois procurava socegar, retomar a direc&ccedil;&atilde;o das
+suas faculdades, applical-as todas a achar uma vingan&ccedil;a,
+uma boa vingan&ccedil;a! E voltava ent&atilde;o o antigo
+desespero de n&atilde;o viver no tempo da
+inquisi&ccedil;&atilde;o, e
+com uma denuncia de irreligi&atilde;o ou de feiticeria,
+mandal-os ambos para um carcere. Ah! n'esse tempo
+um padre gozava! Mas agora, com os senhores
+liberaes, tinha de v&ecirc;r aquelle miseravel escrevente a
+<span class="pagenum">[248]</span>
+seis vintens por dia apoderar-se-lhe da rapariga&mdash;e
+elle, sacerdote instruido, que podia ser bispo, que
+podia ser Papa, tinha de vergar os hombros e ruminar
+solitariamente o seu despeito! Ah! se as
+maldi&ccedil;&otilde;es
+de Deus tinham algum valor&mdash;malditos fossem
+elles! Quereria v&ecirc;l-os cheios de filhos, sem p&atilde;o
+na
+prateleira, com o ultimo cobertor empenhado, resequidos
+de fome, injuriando-se,&mdash;e elle a rir-se, elle
+a regalar-se!...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Na segunda-feira n&atilde;o se conteve, foi &aacute; rua da
+Misericordia. A S. Joanneira estava em baixo na saleta
+com o conego Dias. E apenas viu Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava
+a fallar em v. s.<sup>a</sup>! J&aacute; estranhava
+n&atilde;o o vermos,
+agora que ha alegria em casa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; sei, j&aacute; sei, murmurou Amaro pallido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente.
+Deus os fa&ccedil;a felizes e lhes d&ecirc; poucos filhos,
+que a carne est&aacute; cara.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sorriu&mdash;escutando em cima o piano.
+<br />
+
+<br />
+
+Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa
+dos <em>Dois Mundos</em>; e Jo&atilde;o
+Eduardo, muito chegado
+a ella, voltava as folhas da musica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem entrou, <em>Ru&ccedil;a</em>?
+gritou ella sentindo os
+passos da rapariga nas escadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto&mdash;e o
+<span class="pagenum">[249]</span>
+cora&ccedil;&atilde;o batia-lhe t&atilde;o forte, que ficou
+um momento
+com os dedos immoveis sobre o teclado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se precisava c&aacute; do senhor padre Amaro,
+rosnou Jo&atilde;o Eduardo por entre dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia mordeu o bei&ccedil;o. Teve odio ao escrevente:
+n'um instante repugnou-lhe a sua voz, os seus
+modos, a sua figura de p&eacute; junto d'ella: pensou com
+deleite como depois de casada (j&aacute; que tinha de casar)
+se confessaria toda ao padre Amaro, e n&atilde;o deixaria
+de o amar! N&atilde;o sentia n'aquelle momento escrupulos;
+e quasi desejava que o escrevente lhe
+visse no rosto a paix&atilde;o que a revolvia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco
+mais para l&aacute;, que nem me deixa os bra&ccedil;os livres
+para tocar!
+<br />
+
+<br />
+
+Terminou bruscamente a valsa dos <em>Dois
+Mundos</em>,
+come&ccedil;ou a cantar o <em>Adeus</em>:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry1">Ai! adeus! acabaram-se os dias<br />
+
+Que ditosa vivi a teu lado!
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+A sua voz elevava-se, com uma modula&ccedil;&atilde;o
+ardente,&mdash;dirigindo
+o canto, atrav&eacute;s do soalho, ao
+cora&ccedil;&atilde;o do parocho, em baixo.
+<br />
+
+<br />
+
+E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos,
+sentado no canap&eacute;, devorava todos os tons da
+voz d'ella&mdash;emquanto a S. Joanneira tagarellava,
+contando as pe&ccedil;as de algod&atilde;o que
+compr&aacute;ra para
+len&ccedil;oes, os arranjos que ia fazer no quarto dos noivos,
+e as vantagens de viverem juntos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma felicidade por ahi al&eacute;m, interrompeu o
+<span class="pagenum">[250]</span>
+conego erguendo-se pesadamente. E vamos l&aacute; para
+cima, que isto de noivos n&atilde;o se querem s&oacute;s...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, l&aacute; n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me
+n'elle, que &eacute; homem de bem &aacute;s direitas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, ao subir a escada, tremia&mdash;e, mal entrou
+na sala, o rosto d'Amelia, alumiado pelas luzes
+do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as
+vesperas do noivado a tivessem embellezado e a
+separa&ccedil;&atilde;o lh'a tornasse mais appetitosa. Foi
+dar-lhe
+gravemente um aperto de m&atilde;o, outro ao escrevente,
+disse baixo, sem os olhar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Os meus parabens... Os meus parabens...
+<br />
+
+<br />
+
+Voltou as costas, e foi conversar com o conego
+que se enterr&aacute;ra na sua poltrona queixando-se
+d'enfastiamento
+e reclamando o ch&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia fic&aacute;ra como abstracta, correndo inconscientemente
+os dedos pelo teclado. Aquelle modo
+do padre Amaro confirmava a sua id&eacute;a: queria a todo
+o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia &laquo;como
+se nada tivesse havido&raquo;, o vill&atilde;o! Na sua cobardia
+de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal,
+da Arcada, de tudo,&mdash;sacudia-a da sua imagina&ccedil;&atilde;o,
+do seu cora&ccedil;&atilde;o, da sua vida, como se sacode
+um insecto que tem pe&ccedil;onha!... Ent&atilde;o, para o
+enraivecer,
+come&ccedil;ou a cochichar ternamente com o escrevente;
+ro&ccedil;ava-se-lhe pelo hombro, rendida, com
+risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial,
+tocar uma pe&ccedil;a a quatro m&atilde;os; depois ella
+beliscou-o,
+elle deu um gritinho exagerado.&mdash;E a S. Joanneira
+contemplava-os babosa, emquanto o conego dormitava
+<span class="pagenum">[251]</span>
+j&aacute;, e o padre Amaro, abandonado a um canto
+como outr'ora o escrevente, ia folheando o velho album.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os
+todos: passos rapidos galgaram a escada,
+pararam em baixo na saleta: e a
+<em>Ru&ccedil;a</em> appareceu
+dizendo &laquo;que era o senhor padre Natario, que
+n&atilde;o desejava subir, e queria dar uma palavra ao
+senhor conego&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego,
+arrancando-se com custo ao fundo confortavel
+da poltrona.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia fechou logo o piano&mdash;e a S. Joanneira
+pousando a meia foi em bicos de p&eacute;s escutar ao alto
+da escada: f&oacute;ra ventava forte, e para os lados da
+Pra&ccedil;a afastava-se o toque de retreta.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim a voz do conego chamou, de baixo, da
+porta da saleta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Amaro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Padre-Mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Venha c&aacute;, homem. E diga &aacute; senhora que
+p&oacute;de
+vir tambem.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira desceu logo, muito assustada:
+Amaro imaginava que o padre Natario emfim descobrira
+o <em>liberal</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+A saleta parecia muito fria com a luz pequenina
+da vela sobre a mesa: e na parede, n'um velho
+painel muito escuro&mdash;que ultimamente o conego
+dera &aacute; S. Joanneira&mdash;destacava uma face livida de
+monge e um osso frontal de caveira.
+<span class="pagenum">[252]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias accommod&aacute;ra-se ao canto do canap&eacute;,
+sorvendo reflectidamente a pitada; e Natario,
+que se agitava pela sala, exclamou logo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boas noites, senhora! Ol&aacute;, Amaro! Trago novidades!...
+N&atilde;o quiz subir porque imaginei que estaria
+o escrevente, e estas coisas s&atilde;o c&aacute; para
+n&oacute;s.
+Estava a come&ccedil;ar a dizer ao collega Dias... Tive
+l&aacute;
+em casa o padre Saldanha. Temol-as boas!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Saldanha era o confidente do senhor
+chantre. E o padre Amaro, j&aacute; inquieto, perguntou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coisa que nos toca?
+<br />
+
+<br />
+
+Natario come&ccedil;ou com solemnidade erguendo alto
+o bra&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Primo</em>: o collega Brito mudado da
+freguezia
+d'Amor para ao p&eacute; d'Alcoba&ccedil;a, para a serra, para
+o
+inferno...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz!? exclamou a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obras do <em>liberal</em>, minha senhora! O
+nosso digno
+chantre levou-lhe tempo a meditar o
+<em>Communicado</em>
+do <em>Districto</em>, mas por fim sahiu-se!
+O pobre
+Brito l&aacute; vai esfogueteado!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre &eacute; o que se dizia da mulher do regedor...
+murmurou a boa senhora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&aacute;! interrompeu severamente o conego.
+Ent&atilde;o,
+senhora, ent&atilde;o! Isto aqui n&atilde;o &eacute; casa
+de murmura&ccedil;&atilde;o!...
+Siga com o seu recado, collega Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Secundo</em>, continuou Natario:
+&eacute; o que eu ia
+dizer ao collega Dias... O senhor chantre, em vista
+do <em>Communicado</em> e d'outros ataques da
+imprensa,
+est&aacute; decidido a &laquo;reformar os costumes do clero
+diocesano&raquo;,
+<span class="pagenum">[253]</span>
+palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam
+summamente os conciliabulos de ecclesiasticos
+e de senhoras... Que quer saber o que &eacute; isso
+de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas...
+Emfim, palavras textuaes de sua
+excellencia&mdash;<em>est&aacute;
+decidido a limpar as cavalhari&ccedil;as
+d'Augias</em>!...&mdash;o
+que quer dizer em bom portuguez, minha senhora,
+que vai andar tudo n'uma roda-viva.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado
+no meio da saleta com as m&atilde;os enterradas nas
+algibeiras, exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhes parece esta &aacute; ultima hora, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ergueu-se pachorrentamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha
+de escapar alguem... E a senhora n&atilde;o se fique ahi
+com essa cara de <em>Mater-dolorosa</em>, e
+mande servir o
+ch&aacute;, que &eacute; o importante.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu l&aacute; disse ao padre Saldanha...&mdash;come&ccedil;ou
+Natario perorando.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego interrompeu-o com for&ccedil;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O padre Saldanha &eacute; um patarata!... Vamos
+n&oacute;s &aacute;s torradinhas, e l&aacute; em cima,
+diante dos rapazes,
+caluda.
+<br />
+
+<br />
+
+O ch&aacute; foi silencioso. O conego, a cada bocado
+de torrada, respirava affrontado, franzia muito o sobr'olho;
+a S. Joanneira, depois de fallar da D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o que estava mal do catarrho, ficou
+toda murcha, com a testa sobre o punho; Natario,
+a grandes passadas, fazia uma ventania na sala
+com as abas do casac&atilde;o.
+<span class="pagenum">[254]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando
+subitamente diante d'Amelia e do escrevente;
+que tomavam o ch&aacute; sobre o piano.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um dia cedo, respondeu ella sorrindo.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o ergueu-se devagar, e tirando o seu
+<em>cebol&atilde;o</em>:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o horas de me ir chegando &aacute; rua das Sousas,
+minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a S. Joanneira n&atilde;o consentiu. Credo, estavam
+todos m&ocirc;nos como se estivessem de p&ecirc;zames!...
+Que fizessem um quino para espairecer...&mdash;O
+conego por&eacute;m, sahindo do seu torpor, disse
+com severidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; a senhora muito enganada, ninguem est&aacute;
+m&ocirc;no. N&atilde;o ha raz&otilde;es sen&atilde;o
+para estar alegre. Pois
+n&atilde;o &eacute; verdade, senhor noivo?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo mexeu-se, sorriu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu c&aacute; por mim, senhor conego, n&atilde;o tenho
+raz&atilde;o
+sen&atilde;o para estar feliz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois est&aacute; claro, disse o conego. E agora Deus
+lhes d&ecirc; boas noites a todos, que eu vou
+<em>quinar</em> para
+valle de len&ccedil;oes. E o Amaro tambem.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro foi apertar silenciosamente a m&atilde;o d'Amelia,&mdash;e
+os tres padres desceram calados.
+<br />
+
+<br />
+
+Na saleta a vela ainda ardia com um murr&atilde;o. O
+conego entrou a buscar o seu guardachuva; e ent&atilde;o,
+chamando os outros, cerrando devagarinho a
+porta, disse-lhes baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu, collegas, n&atilde;o quiz assustar ha pouco a
+<span class="pagenum">[255]</span>
+pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses
+fallatorios... &Eacute; o diabo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; ter cautelinha, meninos! aconselhou Natario,
+abafando a voz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; s&eacute;rio, &eacute; s&eacute;rio,
+murmurou lugubremente o
+padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Estavam de p&eacute; no meio da saleta. F&oacute;ra o vento
+uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente
+destacar e reentrar na sombra do quadro o osso
+frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a
+<em>Chiquita</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro recordava outras noites felizes em que
+elle, triumphante e sem cuidados, fazia rir as senhoras,&mdash;e
+Amelia, gorgeando <em>Ai chiquita que
+si</em>,
+revirava-lhe olhares rendidos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho
+que comer e beber, n&atilde;o me importa... Mas &eacute;
+necessario
+manter a honra da classe!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E n&atilde;o carece duvida, acrescentou Natario, que
+se ha outro artigo e mais fallatorios, estala com certeza
+o raio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha o pobre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado
+para a serra!...
+<br />
+
+<br />
+
+Em cima decerto houve alguma gra&ccedil;a, porque
+sentiram as risadas do escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro rosnou com rancor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Grande galhofa, l&aacute; em cima!...
+<br />
+
+<br />
+
+Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento
+bateu a face de Natario d'uma chuva miudinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha que noite! exclamou furioso.
+<span class="pagenum">[256]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; o conego tinha guardachuva; e abrindo-o devagar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois meninos, n&atilde;o ha que v&ecirc;r, estamos em
+cal&ccedil;as pardas...
+<br />
+
+<br />
+
+Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do
+piano, nos acompanhamentos da
+<em>Chiquita</em>. O conego
+soprava, agarrando fortemente o guardachuva contra
+o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava
+os dentes, encolhido no seu casac&atilde;o; Amaro caminhava
+de cabe&ccedil;a cahida, n'um abatimento de derrota;
+e emquanto os tres padres, assim agachados
+sob o guardachuva do conego, iam chapinhando as
+po&ccedil;as pela rua tenebrosa, por traz a chuva penetrante
+e sonora ia-os ironicamente fustigando!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+XII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na
+Pra&ccedil;a, viram com espanto o padre Natario e o doutor
+Godinho conversando em harmonia, &aacute; porta da
+loja de ferragens do Guedes. O recebedor,&mdash;que
+era escutado com deferencia em quest&otilde;es de politica
+estrangeira&mdash;observou-os com atten&ccedil;&atilde;o
+atrav&eacute;s
+da porta vidrada da pharmacia, e declarou com um
+tom profundo &laquo;que n&atilde;o se admiraria mais se visse
+Victor Manoel e Pio IX passearem de bra&ccedil;o dado&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+O cirurgi&atilde;o da camara por&eacute;m n&atilde;o
+estranhava
+aquelle &laquo;commercio d'amizade&raquo;.&mdash;Segundo elle o
+ultimo artigo da <em>Voz do Districto</em>,
+evidentemente escripto
+pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo,
+<span class="pagenum">[258]</span>
+cheio de logica, atulhado d'erudi&ccedil;&atilde;o!) mostrava
+que a gente da Maia se queria ir aproximando da
+gente da Misericordia. O doutor Godinho (na express&atilde;o
+do cirurgi&atilde;o da camara) fazia tagat&eacute;s ao governo
+civil e ao clero diocesano: a ultima phrase do
+artigo era significativa&mdash;&laquo;n&atilde;o seremos
+n&oacute;s que regatearemos
+ao clero os meios de exercer proficuamente
+a sua divina miss&atilde;o!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+A verdade era (como observou um individuo
+obeso, o amigo Pimenta) que, se n&atilde;o havia ainda
+paz, j&aacute; havia negocia&ccedil;&otilde;es&mdash;porque na
+vespera elle
+vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de
+comer, o padre Natario sahindo de manh&atilde; muito cedo
+da redac&ccedil;&atilde;o da <em>Voz do
+Districto</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, amigo Pimenta, essa &eacute; fabricada!
+<br />
+
+<br />
+
+O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu
+um pux&atilde;o grave ao c&oacute;s das cal&ccedil;as, e ia
+indignar-se&mdash;quando
+o recebedor acudiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, o amigo Pimenta tem raz&atilde;o.
+A verdade
+&eacute; que eu n'outro dia vi o patife do Agostinho
+fazer grande barretada ao padre Natario. E que o
+Natario traz intriga na m&atilde;o, isso &eacute; seguro! Eu
+g&oacute;sto
+d'observar as pessoas... Pois senhores, o Natario, que
+nunca apparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre
+ahi com o nariz pelas lojas... Depois a grande
+amizade com o padre Silverio... H&atilde;o de reparar que
+s&atilde;o ambos certos ahi na Pra&ccedil;a &aacute;s
+Ave-Marias... E &eacute;
+negocio com a gente do doutor Godinho... O padre
+Silverio &eacute; o confessor da mulher do Godinho... Umas
+coisas pegam com as outras!
+<span class="pagenum">[259]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Era muito commentada, com effeito, a nova amizade
+do padre Natario com o padre Silverio. Havia
+cinco annos tinha occorrido na sacristia da S&eacute;, entre
+os dois ecclesiasticos, uma quest&atilde;o escandalosa:
+Natario correra at&eacute; de guardachuva erguido para o
+padre Silverio, quando o bom conego Sarmento, banhado
+em lagrimas, o reteve pela batina, gritando:&mdash;&laquo;Oh,
+collega, que &eacute; a perdi&ccedil;&atilde;o da
+religi&atilde;o&raquo;! Desde
+ent&atilde;o Natario e Silverio n&atilde;o fallavam&mdash;com
+desgosto de Silverio, um bonacheir&atilde;o, d'uma obesidade
+hydropica, que, segundo diziam as suas confessadas,
+&laquo;era todo affei&ccedil;&atilde;o e
+perd&atilde;o&raquo;. Mas Natario,
+s&ecirc;cco e pequeno, tinha tenacidade no rancor. Quando
+o snr. chantre Valladares come&ccedil;ou a governar o
+bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com
+eloquencia a necessidade &laquo;de manter a paz na
+Igreja&raquo;,
+de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e
+Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave
+para os bra&ccedil;os do padre Silverio&mdash;que o teve um
+momento sepultado na vastid&atilde;o do peito e do estomago,
+murmurando todo commovido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Todos somos irm&atilde;os, todos somos irm&atilde;os!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca
+perdia, como o papel&atilde;o, as dobras que tomava,
+conservou com o padre Silverio um tom amuado:
+na S&eacute; ou na rua, resvalando junto d'elle com um
+geito brusco do pesco&ccedil;o, rosnava apenas:
+<em>Senhor
+padre Silverio, &aacute;s ordens!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+Havia por&eacute;m duas semanas, uma tarde de chuva
+Natario fizera repentinamente uma visita ao padre
+<span class="pagenum">[260]</span>
+Silverio&mdash;sob pretexto que &laquo;o pilh&agrave;ra alli uma
+pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua
+receita para a d&ocirc;r d'ouvidos, que uma das minhas
+sobrinhas, coitada, est&aacute; como doida, collega!
+<br />
+
+<br />
+
+O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda
+n'essa manh&atilde; vira as duas sobrinhas de Natario
+s&atilde;s
+e satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a escrever
+a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos
+estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado
+de riso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora que alegria, collega, v&ecirc;l-o aqui de novo
+n'esta sua casa!
+<br />
+
+<br />
+
+A reconcilia&ccedil;&atilde;o foi t&atilde;o publica&mdash;que o
+cunhado
+do senhor bar&atilde;o de Via-Clara, bacharel de grandes
+dotes poeticos, lhe dedicou uma d'aquellas satyras
+que elle intitulava
+<em>Ferr&otilde;es</em>, que iam
+manuscriptas de
+casa em casa, muito saboreadas e muito temidas;
+e cham&aacute;ra a composi&ccedil;&atilde;o, tendo presente
+decerto a
+figura dos dois sacerdotes: <em>Famosa
+reconcilia&ccedil;&atilde;o
+do Macaco e da Baleia!</em> Era com effeito frequente,
+agora, v&ecirc;r a pequena figura de Natario gesticulando
+e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento
+do padre Silverio.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma manh&atilde; mesmo os empregados da
+administra&ccedil;&atilde;o
+(que era ent&atilde;o no largo da S&eacute;) gozaram muito,
+observando da sacada os dois padres que passeavam
+no terra&ccedil;o, ao tepido sol de maio. O senhor
+administrador,&mdash;que pass&aacute;va as horas da
+reparti&ccedil;&atilde;o
+<span class="pagenum">[261]</span>
+namorando com um binoculo, por traz da vidra&ccedil;a
+do seu gabinete, a esposa do Telles
+alfaiate&mdash;come&ccedil;&aacute;ra
+subitamente a dar gargalhadas &aacute; janella:
+o escriv&atilde;o Borges correu logo, de penna na m&atilde;o,
+&aacute; varanda, a v&ecirc;r de que ria sua senhoria, e, muito
+divertido, a fungar, chamou &aacute; pressa o Arthur Couceiro
+que estava copiando, para estudar &aacute; guitarra,
+uma can&ccedil;&atilde;o da
+<em>Grinalda</em>: o amanuense Pires, severo
+e digno, aproximou-se, carregando para a orelha
+o seu barretinho de s&ecirc;da, com horror &aacute;s correntes
+d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam
+os dois padres, que tinham parado &aacute; esquina da
+igreja. Natario parecia excitado: procurava decerto
+persuadir, abalar o padre Silverio; e em bicos de
+p&eacute;s, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente
+as m&atilde;os muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe
+do bra&ccedil;o, arrastou-o ao comprido do terra&ccedil;o
+lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto
+largo e desolado, como attestando a perdi&ccedil;&atilde;o
+possivel
+d'elle, da S&eacute; ao lado, da cidade, do universo
+em redor; o bom Silverio, com os olhos muito abertos,
+parecia apavorado. E recome&ccedil;aram a passear.
+Mas Natario exaltava-se: dava recu&otilde;es bruscos, atirava
+estocadas com um longo dedo ao vasto estomago
+de Silverio, batia patadas furiosas nas lages
+polidas; e de repente, de bra&ccedil;os pendentes, mostrava-se
+acabrunhado. Ent&atilde;o o bom Silverio fallou um
+momento com a m&atilde;o espalmada sobre o peito; immediatamente,
+a face biliosa de Natario illuminou-se;
+pulou, bateu no hombro do collega palmadinhas
+<span class="pagenum">[262]</span>
+de muito jubilo,&mdash;e os dois sacerdotes entraram na
+S&eacute;, chegados e rindo baixinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que patuscos! disse o escriv&atilde;o Borges, que
+detestava sotainas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aquillo tudo &eacute; a respeito do jornal, disse Arthur
+Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lyrico.
+O Natario n&atilde;o socega emquanto n&atilde;o souber quem
+escreveu o <em>Communicado</em>; disse-o elle
+em casa da
+S. Joanneira... E a coisa pelo Silverio vai bem, que
+&eacute; o confessor da mulher do Godinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou
+pachorrentamente o officio que compunha, remettendo
+para Alcoba&ccedil;a um preso&mdash;que ao fundo da saleta,
+entre dois soldados, esperava sobre um banco,
+prostrado e embrutecido, com uma face de fome e
+as m&atilde;os em ferros.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a dias tinha havido na S&eacute; o Officio de corpo
+presente pelo rico proprietario Moraes, que morrera
+d'um aneurisma, e a quem sua esposa (em penitencia
+decerto dos desgostos que lhe dera com a
+sua affei&ccedil;&atilde;o desordenada por tenentes
+d'infanteria)
+estava fazendo, como se disse, &laquo;exequias de pessoa
+real&raquo;.&mdash;Amaro desvestira-se, e na sacristia, &aacute; luz
+d'um velho candieiro de lat&atilde;o, escrevia assentos
+atrazados, quando a porta de carvalho rangeu, e a
+voz agitada de Natario disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Amaro, voss&ecirc; est&aacute; ahi?
+<span class="pagenum">[263]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que temos?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Natario fechou a porta, e atirando os
+bra&ccedil;os para o ar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Grande novidade, &eacute; o escrevente!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que escrevente?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Jo&atilde;o Eduardo! &Eacute; elle! &Eacute; o
+<em>liberal</em>! Foi elle
+que escreveu o <em>Communicado</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz voss&ecirc;!?&mdash;fez Amaro attonito.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto
+pela letra d'elle. O que se chama
+<em>v&ecirc;r</em>! Cinco
+tiras de papel!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se
+tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever
+outro! O senhor Jo&atilde;o Eduardo! O nosso rico amigo
+senhor Jo&atilde;o Eduardo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; est&aacute; certo d'isso?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se estou certo!... Estou a dizer-lhe que vi,
+homem!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E como soube voss&ecirc;, Natario?
+<br />
+
+<br />
+
+Natario dobrou-se; e com a cabe&ccedil;a enterrada
+nos hombros, arrastando as palavras:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, collega, l&aacute; isso... Os
+<em>comos</em> e os
+<em>porqu&ecirc;s</em>...
+Voss&ecirc; comprehende... <em>Sigillus
+magnus</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+E com uma voz aguda de triumpho, a largos
+passos pela sacristia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas ainda isto n&atilde;o &eacute; nada! O senhor Eduardo
+que n&oacute;s viamos alli na casa da S. Joanneira, t&atilde;o
+bom
+mocinho, &eacute; um patife antigo! &Eacute; o intimo do
+Agostinho,
+o bandido da <em>Voz do Districto</em>!
+Est&aacute; mettido na
+<span class="pagenum">[264]</span>
+redac&ccedil;&atilde;o at&eacute; altas horas da noite...
+Uma orgia, vinha&ccedil;a,
+mulheres... E gaba-se de ser atheu... Ha
+seis annos que se n&atilde;o confessa... Chama-nos a
+<em>canalha
+canonica</em>... &Eacute; republicano... Uma fera, meu
+caro senhor, uma fera!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente,
+com as m&atilde;os tremulas, papeis no gavet&atilde;o da
+escrivaninha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora?... perguntou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Agora? exclamou Natario. Agora &eacute; esmagal-o!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fechou o gavet&atilde;o, e muito nervoso, passando
+o len&ccedil;o pelos labios seccos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga,
+coitada... Casar agora com um homem d'esses... Um
+perdido!
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois padres, ent&atilde;o, olharam-se fixamente. No
+silencio, o velho relogio da sacristia punha o seu
+<em>tic-tac</em> plangente. Natario tirou da
+algibeira dos cal&ccedil;&otilde;es
+a caixa do rap&eacute;, e com os olhos ainda fixos em
+Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desmanchar-lhe o casamentosinho, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; acha? perguntou s&ocirc;ffregamente Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Caro collega, &eacute; uma quest&atilde;o de consciencia...
+Para mim era uma quest&atilde;o de dever! N&atilde;o se
+p&oacute;de
+deixar casar a pobre pequena com um br&eacute;jeiro, um
+pedreiro-livre, um atheu...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Com effeito! com effeito! murmurava Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vem a calhar, hein? fez Natario; e sorveu
+com gozo a pitada.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o sacrist&atilde;o entrou; eram as horas de fechar
+<span class="pagenum">[265]</span>
+a igreja; vinha perguntar se suas senhorias se demoravam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um instante, snr. Domingos.
+<br />
+
+<br />
+
+E, emquanto o sacrist&atilde;o corria os pesados ferrolhos
+da porta interior do pateo, os dois padres muito
+chegados fallavam baixo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario.
+N&atilde;o, escute, &eacute; melhor que lhe falle o Dias; o
+Dias
+&eacute; que deve fallar &aacute; S. Joanneira. Vamos pelo
+seguro.
+Voss&ecirc; falle &aacute; pequena e diga-lhe simplesmente
+que o ponha f&oacute;ra de casa!&mdash;E ao ouvido de Amaro:&mdash;Diga
+&aacute; rapariga que elle vive ahi de casa e
+pucarinho com uma desavergonhada!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem! disse Amaro recuando, n&atilde;o sei se
+isso &eacute; verdade!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de ser. Elle &eacute; capaz de tudo. E depois &eacute;
+um meio de levar a pequena...
+<br />
+
+<br />
+
+E foram descendo a igreja atraz do sacrist&atilde;o,
+que fazia tilintar o seu m&oacute;lho de chaves, pigarreando
+grosso.
+<br />
+
+<br />
+
+Nas capellas pendiam as arma&ccedil;&otilde;es de paninho negro
+agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes
+tocheiras de grosso murr&atilde;o, estava a e&ccedil;a, com o
+largo pano de velludilho cobrindo o caix&atilde;o do Moraes,
+recahindo em pregas franjadas; &aacute; cabeceira tinha
+uma larga cor&ocirc;a de perpetuas; e aos p&eacute;s pendia,
+d'um grande la&ccedil;o de fita escarlate, o seu habito
+de cavalleiro de Christo.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Natario ent&atilde;o parou; e tomando o bra&ccedil;o
+d'Amaro com satisfa&ccedil;&atilde;o:
+<span class="pagenum">[266]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada
+ao cavalheiro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cortar-lhe os v&iacute;veres!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cortar-lhe os v&iacute;veres!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O pateta estava para ser empregado no governo
+civil, primeiro amanuense, hein? Pois vou-lhe
+desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que &eacute;
+dos meus, homem de boas id&eacute;as, vai p&ocirc;l-o
+f&oacute;ra do
+cartorio... E que escreva ent&atilde;o
+<em>Communicados</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro teve horror &aacute;quella intriga rancorosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deus me perd&ocirc;e, Natario, mas isso &eacute; perder
+o rapaz...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emquanto o n&atilde;o vir por essas ruas a pedir
+um bocado de p&atilde;o, n&atilde;o o largo, padre Amaro,
+n&atilde;o
+o largo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Natario! oh, collega! Isso &eacute; de pouca caridade...
+Isso n&atilde;o &eacute; de christ&atilde;o... E
+ent&atilde;o aqui que
+Deus est&aacute; a ouvil-o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o lhe d&ecirc; isso cuidado, meu caro amigo...
+Deus serve-se assim, n&atilde;o &eacute; a resmungar
+Padre-nossos.
+Para imp&iacute;os n&atilde;o ha caridade! A
+inquisi&ccedil;&atilde;o
+atacava-os pelo fogo, n&atilde;o me parece mau atacal-os
+pela fome. Tudo &eacute; permittido a quem serve uma
+causa santa... Que se n&atilde;o mettesse commigo!
+<br />
+
+<br />
+
+Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o
+caix&atilde;o do morto, e apontando com o guarda-chuva:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem est&aacute; alli?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Moraes, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O gordo, picado das bexigas?
+<span class="pagenum">[267]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boa b&ecirc;sta!
+<br />
+
+<br />
+
+E depois d'um silencio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei
+por isso, occupado c&aacute; na minha campanha... E a
+viuva fica rica. &Eacute; generosa, &eacute; presenteadora...
+Quem
+a confessa &eacute; o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas
+de Leiria, aquelle elephante!
+<br />
+
+<br />
+
+Sah&iacute;ram. A botica do Carlos estava fechada, o
+c&eacute;o muito escuro.
+<br />
+
+<br />
+
+No largo, Natario parou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Resumindo: o Dias falla &aacute; S. Joanneira, e
+voss&ecirc; falla &aacute; pequena. Eu por mim me entenderei
+com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral.
+Encarreguem-se voss&ecirc;s do casamento, que eu
+me encarrego do emprego!&mdash;E batendo no hombro
+do parocho jovialmente:&mdash;&Eacute; o que se p&oacute;de dizer
+atacal-o pelo cora&ccedil;&atilde;o e pelo estomago! E
+adeusinho,
+que as pequenas est&atilde;o &aacute; espera para a ceia!
+Coitadita, a Rosa tem estado com um defluxo!... &Eacute;
+fraquita, aquella rapariga, d&aacute;-me muito cuidado...
+Que eu em a vendo murcha at&eacute; perco logo o somno.
+Que quer voss&ecirc;? Quando se tem bom
+cora&ccedil;&atilde;o...&mdash;At&eacute;
+&aacute;manh&atilde;, Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; &aacute;manh&atilde;, Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+E os dois padres separaram-se, quando davam
+nove horas na S&eacute;.
+<span class="pagenum">[268]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo,
+mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever
+delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves
+pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade
+estimada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; do meu dever! &Eacute; do meu dever!
+<br />
+
+<br />
+
+Como christ&atilde;o, como parocho, como amigo da
+S. Joanneira o <em>seu dever</em> era
+procurar Amelia, e,
+com simplicidade, sem paix&atilde;o interessada, contar-lhe
+que f&ocirc;ra Jo&atilde;o Eduardo, o seu noivo, que escrevera
+o <em>Communicado</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi elle! Diffamou os &iacute;ntimos da casa, sacerdotes
+de sciencia e de posi&ccedil;&atilde;o; desacreditou-a a ella;
+passa as noites em deboche na possilga do Agostinho;
+insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligi&atilde;o;
+ha seis annos que se n&atilde;o confessa! Como
+diz o collega Natario, &eacute; uma fera! Pobre menina!
+N&atilde;o, n&atilde;o podia casar com um homem que lhe
+impediria
+a <em>vida perfeita</em>, lhe achincalharia
+as boas
+cren&ccedil;as! N&atilde;o a deixaria rezar, nem jejuar, nem
+procurar
+no confessor a direc&ccedil;&atilde;o salutar, e, como diz o
+santo padre Chrysostomo, &laquo;amadureceria a sua alma
+para o inferno&raquo;! Elle n&atilde;o era seu pai, nem seu
+tutor;
+mas era parocho, era pastor:&mdash;e se a n&atilde;o
+subtrahisse &aacute;quelle destino heretico pelos seus conselhos
+graves, pela influencia da m&atilde;i e das amigas,&mdash;seria
+<span class="pagenum">[269]</span>
+como aquelle que tem a guarda d'um rebanho
+n'uma herdade, e abre indignamente a cancella
+ao lobo! N&atilde;o, a Ameliasinha n&atilde;o havia de casar
+com o <em>atheu</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+E o seu cora&ccedil;&atilde;o ent&atilde;o batia forte sob
+a effus&atilde;o
+d'aquella esperan&ccedil;a. N&atilde;o, o outro n&atilde;o
+a possuiria!
+Quando viesse a apoderar-se legalmente d'aquella
+cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella
+Ameliasinha,&mdash;elle, parocho, l&aacute; estava para lhe dizer
+alto: <em>Para traz, seu canalha! isto aqui &eacute;
+de Deus!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+E tomaria ent&atilde;o bem cuidado em guiar a pequena
+&aacute; salva&ccedil;&atilde;o! Agora o
+<em>Communicado</em> estava esquecido,
+o senhor chantre tranquillisado: d'ahi a dias
+poderia voltar sem susto &aacute; rua da Misericordia,
+recome&ccedil;ar
+os deliciosos ser&otilde;es&mdash;apoderar-se de novo
+d'aquella alma, formal-a para o paraiso...
+<br />
+
+<br />
+
+E aquillo, Jesus! n&atilde;o era uma intriga para a arrancar
+ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto,
+para se convencer melhor) eram muito rectos, muito
+puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar
+ao inferno: elle n&atilde;o a queria para si, queria-a
+para Deus!... <em>Casualmente</em>, sim, os
+seus interesses
+de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote.
+Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria
+igualmente &agrave; rua da Misericordia, em servi&ccedil;o do
+c&eacute;o,
+desmascarar o snr. Jo&atilde;o Eduardo, diffamador e atheu!
+<br />
+
+<br />
+
+E, socegado por esta argumenta&ccedil;&atilde;o, deitou-se
+tranquillamente.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido
+com ella: e ia-a levando por uma estrada que
+<span class="pagenum">[270]</span>
+conduzia ao c&eacute;o! O diabo perseguia-o; elle via-o,
+com as fei&ccedil;&otilde;es de Jo&atilde;o Eduardo,
+soprando e rasgando
+com os cornos os delicados seios das nuvens. E
+elle escondia Amelia no seu capote de padre, devorando-a
+por baixo de beijos! Mas a estrada do c&eacute;o n&atilde;o
+findava.&mdash;&laquo;Onde &eacute; a porta do paraiso?&raquo;
+perguntava
+elle a anjos de cabelleiras d'ouro que passavam,
+n'um d&ocirc;ce rumor de azas, levando almas nos bra&ccedil;os.
+E todos lhe respondiam:&mdash;&laquo;Na rua da Misericordia,
+na rua da Misericordia numero nove!&raquo; Amaro sentia-se
+perdido: um vasto ether c&ocirc;r de leite, penetravel
+e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o,
+e elle procurava debalde uma taboleta de hospedaria!
+Por vezes resvalava junto d'elle um globo reluzente
+d'onde sahia o rumor d'uma crea&ccedil;&atilde;o; ou um
+esquadr&atilde;o d'archanjos, com coura&ccedil;as de diamantes,
+erguendo alto espadas de fogo, galopavam n'um
+rhythmo nobre...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia tinha fome, tinha frio. &laquo;Paciencia, paciencia,
+meu amor!&raquo; dizia-lhe elle. Caminhando, vieram
+a encontrar uma figura branca, que tinha na
+m&atilde;o uma palma verde. &laquo;Onde est&aacute; Deus,
+nosso pai?&raquo;
+perguntou-lhe Amaro, com Amelia conchegada ao
+peito. A figura disse:&mdash;&laquo;Eu fui um confessor, e sou
+um santo: os seculos passam, e immutavelmente,
+sempiternamente sustento na m&atilde;o esta palma e banha-me
+um extase igual! Nenhuma tinta modifica
+esta luz para sempre branca; nenhuma sensa&ccedil;&atilde;o
+sacode
+o meu s&ecirc;r para sempre immaculado; e immobilisado
+na bemaventuran&ccedil;a, sinto a monotonia do
+<span class="pagenum">[271]</span>
+c&eacute;o pesar-me como uma capa de bronze. Oh! pudesse
+eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes
+da terra&mdash;ou bracejar, sob as variedades da d&ocirc;r,
+nas chammas do purgatorio!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro murmurou: &laquo;Bem fazemos n&oacute;s em
+peccar!&raquo;&mdash;Mas
+Amelia desfallecia fatigada. &laquo;Durmamos,
+meu amor!&raquo; E, deitados, viam estrellas fluctuando
+n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do
+crivo. Ent&atilde;o nuvens come&ccedil;aram a
+disp&ocirc;r-se em torno
+d'elles, em pregas de cortinados, dando um perfume
+de <em>sachets</em>; Amaro pousou a sua
+m&atilde;o sobre o
+peito d'Amelia: um enleio muito d&ocirc;ce enervava-os:
+enla&ccedil;aram-se, os seus labios pegavam-se humidos e
+quentes:&mdash;&laquo;Oh, Ameliasinha!&raquo; murmurava
+elle.&mdash;&laquo;Amo-te,
+Amaro, amo-te!&raquo; suspirava ella.&mdash;Mas de
+repente as nuvens afastaram-se como os cortinados
+d'um leito; e Amaro viu diante o diabo que os alcan&ccedil;ara,
+e que, com as garras na cinta, esga&ccedil;ava a
+boca n'uma risada muda. Com elle estava outro
+personagem: era velho como a substancia; nos anneis
+dos seus cabellos vegetavam florestas; a sua
+pupilla tinha a vastid&atilde;o azul d'um oceano; e nos dedos
+abertos, com que cofiava a barba infindavel, caminhavam,
+como em estradas, filas de ra&ccedil;as humanas.&mdash;&laquo;Aqui
+est&atilde;o os dois sujeitos&raquo;, dizia-lhe o diabo
+retorcendo a cauda.&mdash;E por traz Amaro via agglomerarem-se
+legi&otilde;es de santos e de santas. Reconheceu
+S. Sebasti&atilde;o com as suas settas cravadas; Santa
+Cecilia trazendo na m&atilde;o o seu org&atilde;o; por entre
+elles
+sentia balarem os rebanhos de S. Jo&atilde;o; e no meio
+<span class="pagenum">[272]</span>
+erguia-se o bom gigante S. Christov&atilde;o apoiado ao
+seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro n&atilde;o
+se podia desenla&ccedil;ar de Amelia, que chorava muito
+baixo; os seus corpos estavam sobrenaturalmente
+collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella
+levantadas descobriam os seus joelhos brancos.&mdash;&laquo;Aqui
+est&atilde;o os dois sujeitos&raquo;, dizia o diabo ao
+velho personagem, &laquo;e repare o meu prezado amigo,
+porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena
+tem bonitas pernas!&raquo; Santos vetustos al&ccedil;aram-se
+s&ocirc;fregamente em bicos de p&eacute;s, estendendo
+pesco&ccedil;os
+onde se viam cicatrizes de martyrios: e as onze
+mil virgens bateram o v&ocirc;o como pombas espavoridas!
+Ent&atilde;o o personagem, esfregando as m&atilde;os d'onde
+se esfarelavam universos, disse grave: &laquo;Fico inteirado,
+meu caro amigo, fico inteirado! Com que,
+senhor parocho, vai-se &aacute; rua da Misericordia, arruina-se
+a felicidade do snr. Jo&atilde;o Eduardo (um cavalheiro),
+arranca-se a Ameliasinha &aacute; mam&atilde;, e vem-se saciar
+concupiscencias reprimidas a um cantinho da
+Eternidade? Eu estou velho&mdash;est&aacute; rouca esta voz
+que outr'ora t&atilde;o sabiamente discursava pelos valles.
+Mas pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar,
+seu protector, apesar de ser um pilar da Igreja
+e uma columna da Ordem? Phara&oacute; era um grande rei&mdash;e
+eu afoguei-o, e os seus principes captivos, os
+seus thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas
+dos seus escravos! Eu c&aacute; sou assim! E se os
+senhores ecclesiasticos continuarem a escandalisar
+Leiria&mdash;eu ainda sei queimar uma cidade como um
+<span class="pagenum">[273]</span>
+papel inutil, e ainda me resta agua para diluvios!&raquo;
+E voltando-se para dois anjos armados de espadas e
+lan&ccedil;as, o personagem bradou: &laquo;Chumbem uma grilheta
+aos p&eacute;s do padre, e levem-no ao abysmo numero
+sete!&raquo; E o diabo gania: &laquo;Ahi est&atilde;o as
+consequencias,
+senhor padre Amaro!&raquo; Elle sentiu-se arrebatado
+de sobre o seio d'Amelia por m&atilde;os de braza;
+e ia luctar, bradar contra o juiz que o julgava&mdash;quando
+um sol prodigioso que vinha nascendo do
+Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro,
+com um grito, reconheceu o Padre Eterno!
+<br />
+
+<br />
+
+Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava
+pela janella.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+N'essa noite Jo&atilde;o Eduardo, indo da Pra&ccedil;a para
+casa da S. Joanneira, ficou assombrado, ao v&ecirc;r apparecer
+&aacute; outra boca da rua, do lado da S&eacute;, o Santissimo
+em prociss&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas
+de mant&eacute;o pela cabe&ccedil;a, as tochas faziam destacar
+opas de paninho escarlate; sob o pallio os dourados
+da estola do parocho reluziam; uma campainha
+tocava adiante, &aacute;s vidra&ccedil;as appareciam luzes;&mdash;e
+na noite escura o sino da S&eacute; repicava, sem
+descontinuar.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo correu aterrado&mdash;e soube logo
+que era a extrema-un&ccedil;&atilde;o &aacute; entrevada.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham posto na escada um candieiro de petroleo
+<span class="pagenum">[274]</span>
+sobre uma cadeira. Os serventes encostaram &aacute;
+parede da rua os varaes do pallio, e o parocho entrou.
+Jo&atilde;o Eduardo, muito nervoso, subiu tambem:
+ia pensando que a morte da entrevada, o luto retardariam
+o seu casamento; contrariava-o a presen&ccedil;a
+do parocho e a influencia que elle adquiria n'aquelle
+momento; e foi quasi quezilado que perguntou &aacute;
+<em>Ru&ccedil;a</em> na saleta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o como foi isto?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi a pobre de Christo que esta tarde come&ccedil;ou
+a esmorecer, o senhor doutor veio, diz que estava
+a acabar, e a senhora mandou pelos sacramentos.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, ent&atilde;o, julgou delicado ir assistir
+&laquo;&aacute; ceremonia&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+O quarto da velha era junto &aacute; cozinha, e tinha
+n'aquelle momento uma solemnidade lugubre.
+<br />
+
+<br />
+
+Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava
+um prato com cinco bolinhas de algod&atilde;o entre
+duas velas de cera. A cabe&ccedil;a da entrevada, toda
+branca, a sua face c&ocirc;r de cera mal se distinguiam
+do linho do travesseiro; tinha os olhos estupidamente
+dilatados; e ia apanhando incessantemente com
+um gesto lento a dobra do len&ccedil;ol bordado.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas &aacute;
+beira da cama: a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+(que
+casualmente entr&aacute;ra, ao voltar da fazenda) fic&aacute;ra
+&aacute;
+porta do quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares,
+murmurando Salve-Rainhas. Jo&atilde;o Eduardo,
+sem ruido, dobrou o joelho junto d'ella.
+<span class="pagenum">[275]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada,
+exhortava-a a que se abandonasse &aacute; Misericordia
+divina; mas, vendo que ella n&atilde;o comprehendia,
+ajoelhou, recitou rapidamente o
+<em>Misereatur</em>; e
+no silencio, a sua voz erguendo-se nas syllabas latinas
+mais agudas, dava uma sensa&ccedil;&atilde;o de enterro que
+enternecia, fazia solu&ccedil;ar as duas senhoras. Depois
+ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando
+as express&otilde;es penitentes do ritual ungiu os
+olhos, o peito, a boca, as m&atilde;os&mdash;que ha dez annos
+s&oacute; se moviam para chegar a escarradeira, e as plantas
+dos p&eacute;s que ha dez annos s&oacute; se applicavam a
+buscar o calor da botija. E depois de queimar as bolinhas
+de algod&atilde;o humidas de oleo, ajoelhou-se, ficou
+immovel, com os olhos postos no Breviario.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo voltou em pontas de p&eacute;s &aacute;
+sala,
+sentou-se no mocho do piano: agora decerto, durante
+quatro ou cinco semanas. Amelia n&atilde;o tornaria
+a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no
+d&ocirc;ce progresso do seu amor aquella brusca
+interrup&ccedil;&atilde;o
+da morte e dos seus ceremoniaes.
+<br />
+
+<br />
+
+A snr.<sup>a</sup> D. Maria entrou ent&atilde;o, toda
+transtornada
+d'aquella scena&mdash;e seguida d'Amelia que trazia os
+olhos muito vermelhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! ainda bem que aqui est&aacute;, Jo&atilde;o Eduardo!
+disse logo a velha. Que quero que me fa&ccedil;a um favor,
+que &eacute; acompanhar-me a casa... Estou toda a
+tremer... Estava desprevenida, e com perd&atilde;o de
+Deus seja dito, n&atilde;o posso ver gente na agonia... Que
+ella, coitadinha, vai-se como um passarinho... E peccados
+<span class="pagenum">[276]</span>
+n&atilde;o os tem... Olhe, vamos pela Pra&ccedil;a que
+&eacute;
+mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas
+n&atilde;o posso ficar... &Eacute; que me dava a
+d&ocirc;r... Ai, que
+desgosto!... Que para ella at&eacute; &eacute; melhor... Pois
+olhem, sinto-me a desfallecer...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a
+baixo, ao quarto da S. Joanneira, a reconfortal-a caridosamente
+com um calix de geropiga.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ameliasinha, disse ent&atilde;o Jo&atilde;o Eduardo, se eu
+sou c&aacute; necessario para alguma coisa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, obrigada. Ella est&aacute; por instantes,
+coitadinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o te esque&ccedil;as, filha, recommendou descendo
+a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o,
+p&otilde;e-lhe as duas velas
+bentas &aacute; cabeceira... Allivia muito na agonia...
+E se tiver muitos arrancos, p&otilde;e outras duas apagadas,
+em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas,
+apoderou-se do bra&ccedil;o de Jo&atilde;o Eduardo, collou-se
+toda a elle com terror&mdash;um pouco tambem,
+com o accesso de ternura que lhe dava sempre a
+geropiga.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro promettera voltar mais tarde, para &laquo;as
+acompanhar, como amigo, n'aquelle transe&raquo;. E o conego
+(que cheg&aacute;ra, quando a prociss&atilde;o com o pallio
+dobrava a esquina para o lado da S&eacute;), informado
+d'esta delicadeza do senhor parocho, declarou logo
+<span class="pagenum">[277]</span>
+que visto que o collega Amaro vinha fazer a noitada,
+elle ia descansar o corpo porque, Deus bem o
+sabia, aquellas commo&ccedil;&otilde;es arrazavam-lhe a saude.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a senhora n&atilde;o havia de querer que eu apanhasse
+alguma e me visse nos mesmos assados...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira,
+nem diga isso!...&mdash;E come&ccedil;ou a choramingar,
+muito abalada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois ent&atilde;o boas noites, disse o conego, e nada
+de affligir. Olhe, a pobre creatura, alegria n&atilde;o a
+tinha: e como n&atilde;o tem peccados n&atilde;o lhe importa
+achar-se na presen&ccedil;a de Deus. Tudo bem considerado,
+senhora, &eacute; uma pechincha! E adeusinho, que
+me n&atilde;o estou a sentir bem...
+<br />
+
+<br />
+
+Tambem a S. Joanneira n&atilde;o se sentia bem. O
+choque, logo depois de jantar, dera-lhe amea&ccedil;as de
+enxaqueca:&mdash;e quando Amaro voltou, &aacute;s onze,
+Amelia que f&ocirc;ra abrir a porta, disse-lhe, ao subir
+&aacute;
+sala de jantar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho desculpe... A mam&atilde; veio-lhe
+a enxaqueca, coitada... Estava que nem via...
+Deitou-se, p&ocirc;z agua sedativa e adormeceu...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! Deixal-a dormir!
+<br />
+
+<br />
+
+Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabe&ccedil;a
+virada para a parede; dos seus bei&ccedil;os abertos
+sahia um gemido muito debil e continuo. Sobre a
+mesa agora, uma grossa vela benta, de murr&atilde;o negro,
+erguia uma luz triste; e ao canto, transida de
+medo, a <em>Ru&ccedil;a</em>, segundo as
+recommenda&ccedil;&otilde;es da S.
+Joanneira, ia rezando a cor&ocirc;a.
+<span class="pagenum">[278]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que
+morre sem o sentir... Diz que ha de gemer, gemer,
+e de repente acabar como um passarinho...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente
+o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Voltaram &aacute; sala de jantar. Toda a casa estava
+silenciosa: f&oacute;ra ventava forte. Havia muitas semanas
+que n&atilde;o se encontravam assim s&oacute;s. Muito
+embara&ccedil;ado,
+Amaro aproximou-se da janella: Amelia
+encostou-se ao aparador.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamos ter uma noite d'agua, disse o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E est&aacute; frio, disse ella, encolhendo-se no chale.
+Eu tenho estado passada de medo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca viu morrer ninguem?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca.
+<br />
+
+<br />
+
+Calaram-se&mdash;elle immovel ao p&eacute; da janella, ella
+encostada ao aparador, de olhos baixos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois est&aacute; frio, disse Amaro, com a voz alterada
+da perturba&ccedil;&atilde;o que lhe ia dando a
+presen&ccedil;a d'ella
+&aacute;quella hora da noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na cozinha est&aacute; a brazeira acc&ecirc;sa, disse Amelia.
+&Eacute; melhor irmos para l&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; melhor.
+<br />
+
+<br />
+
+Foram. Amelia levou o candieiro de lat&atilde;o: e
+Amaro, indo remexer com as tenazes o brazido vermelho,
+disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha que tempo que eu n&atilde;o entro aqui na cozinha!...
+Ainda tem os vasos com os raminhos f&oacute;ra
+da janella?
+<span class="pagenum">[279]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ainda, e um craveiro...
+<br />
+
+<br />
+
+Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da
+brazeira.&mdash;Amelia, inclinada para o lume, sentia os
+olhos do padre Amaro devora-la silenciosamente.
+Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as m&atilde;os a tremer;
+n&atilde;o ousava mover-se, erguer as palpebras, com
+medo que lhe rompessem as lagrimas; mas anciava
+pelas suas palavras, ou amargas ou d&ocirc;ces...
+<br />
+
+<br />
+
+Ellas vieram emfim, muito graves.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menina Amelia, disse, eu n&atilde;o esperava poder
+assim fallar-lhe a s&oacute;s. Mas as coisas arranjaram-se...
+&Eacute; decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois,
+como as suas maneiras mudaram tanto...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho
+tremulo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas bem sabe porqu&ecirc;! exclamou quasi chorando.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sei. Se n&atilde;o fosse aquelle infame
+<em>Communicado</em>,
+e as calumnias... nada se tinha passado, e a
+nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... &Eacute;
+justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.
+<br />
+
+<br />
+
+Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito
+suave, muito tranquillo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos
+da casa eram insultados? em que eu era arrastado
+pela rua da amargura? em que a menina mesma,
+a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein?
+Sabe quem o escreveu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem? perguntou Amelia toda surprehendida.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O snr. Jo&atilde;o Eduardo! disse o parocho muito
+<span class="pagenum">[280]</span>
+tranquillamente, cruzando os bra&ccedil;os diante d'ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o p&oacute;de ser!
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho
+pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz continuou
+paciente e suave:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ou&ccedil;a. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube
+hontem tudo. O Natario viu o original escripto
+pela letra d'elle. Foi elle que descobriu. Por meios
+dignos decerto... e porque era a vontade de Deus
+que a verdade apparecesse. Agora escute. A menina
+n&atilde;o conhece esse homem.&mdash;Ent&atilde;o, baixo, contou-lhe
+o que sabia de Jo&atilde;o Eduardo, por Natario; as suas
+noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os
+padres, a sua irreligi&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pergunte-lhe se elle se confessa ha seis annos,
+e pe&ccedil;a-lhe os bilhetes da confiss&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella murmurava, com as m&atilde;os cahidas no rega&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jesus... Jesus!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu ent&atilde;o entendi que como intimo da casa,
+como parocho, como christ&atilde;o, como seu amigo, menina
+Amelia... porque acredite que lhe quero...
+emfim, entendi que era o meu dever avisal-a! Se
+eu fosse seu irm&atilde;o, dizia-lhe simplesmente:
+&laquo;Amelia,
+esse homem f&oacute;ra de casa!&raquo; N&atilde;o o sou,
+infelizmente.
+Mas venho, com dedica&ccedil;&atilde;o d'alma, dizer-lhe:
+&laquo;O homem com quem quer casar surprehendeu a
+sua boa f&eacute; e de sua mam&atilde;; vem aqui, sim senhor,
+com apparencias de bom mo&ccedil;o, e no fundo
+&eacute;...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Ergueu-se, como ferido d'uma indigna&ccedil;&atilde;o
+irreprimivel:
+<span class="pagenum">[281]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Menina Amelia, &eacute; o homem que escreveu esse
+<em>Communicado!</em> que fez ir o pobre
+Brito para a
+serra de Alcoba&ccedil;a! que me chamou a mim
+<em>seductor!</em>
+que chamou devasso ao senhor conego Dias!
+<em>Devasso!</em>
+Que lan&ccedil;ou veneno nas rela&ccedil;&otilde;es de sua
+mam&atilde;
+com o conego! e que a accusou &aacute; menina, em bom
+portuguez, de se deixar seduzir! Diga, quer casar
+com esse homem?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondeu, com os olhos cravados no
+lume, duas lagrimas mudas sobre as faces.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando
+ao p&eacute; d'ella, com a voz abrandada, gestos
+muito amigos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas supponhamos que n&atilde;o era elle o auctor
+do <em>Communicado</em>, que n&atilde;o
+tinha insultado em letra
+redonda a sua mam&atilde;, o senhor conego, os seus
+amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino
+o seu se casasse com elle! Ou teria de condescender
+com as opini&otilde;es do homem, abandonar as
+suas devo&ccedil;&otilde;es, romper com os amigos de sua
+m&atilde;i,
+n&atilde;o p&ocirc;r os p&eacute;s na igreja, dar escandalo
+a toda a
+gente honesta, ou teria de se p&ocirc;r em
+opposi&ccedil;&atilde;o com
+elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma
+quest&atilde;o! Por jejuar &aacute; sexta-feira, por ir
+&aacute; exposi&ccedil;&atilde;o
+do Sant&iacute;ssimo, por cumprir o domingo... Se se quizesse
+confessar, que desaven&ccedil;as! Um horror! E sujeitar-se
+a ouvil-o escarnecer os mysterios da f&eacute;! Ainda
+me lembro, na primeira noite que aqui passei,
+com que desacato elle fallou da santa da Arregassa!...
+E ainda me lembro uma noite que o padre Natario
+<span class="pagenum">[282]</span>
+aqui fallava dos soffrimentos do nosso santo padre
+Pio IX, que seria preso, se os liberaes entrassem
+em Roma... Como elle tinha risinhos de escarneo,
+como disse que eram exagera&ccedil;&otilde;es!... Como se
+n&atilde;o
+fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberaes
+veriamos o chefe da Igreja, o vigario de Christo,
+dormir n'um calabou&ccedil;o em cima d'umas poucas
+de palhas! S&atilde;o as opini&otilde;es d'elle, que elle
+apreg&ocirc;a
+por toda a parte! O padre Natario diz que elle e o
+Agostinho estavam no caf&eacute; ao p&eacute; do Terreiro a
+dizer
+que o baptismo era um abuso, porque cada um devia
+escolher a religi&atilde;o que quizesse, e n&atilde;o ser
+for&ccedil;ado,
+de pequeno, a ser christ&atilde;o! Hein, que lhe parece?
+Como seu amigo lh'o digo... Para bem de sua alma
+antes a queria v&ecirc;r morta do que ligada a esse
+homem! Case com elle, e perde para sempre a gra&ccedil;a
+de Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia levou as m&atilde;os &aacute;s fontes, e deixando-se
+cahir para as costas da cadeira, murmurou, muito
+desgra&ccedil;ada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, meu Deus, meu Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o sentou-se ao p&eacute; d'ella, tocando-lhe
+quasi o vestido com o joelho, pondo na voz uma
+bondade paternal:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E depois, minha filha, pensa que um homem
+assim p&oacute;de ter bom cora&ccedil;&atilde;o, apreciar a
+sua virtude,
+querer-lhe como um marido christ&atilde;o? Quem n&atilde;o tem
+religi&atilde;o n&atilde;o tem moral. Quem n&atilde;o
+cr&ecirc; n&atilde;o ama, diz
+um dos nossos santos padres. Depois de lhe passar
+o fogacho da paix&atilde;o, come&ccedil;aria a ser duro
+comsigo,
+<span class="pagenum">[283]</span>
+mal humorado, voltaria a frequentar o Agostinho e
+as mulheres da vida, e maltrata-la-hia talvez... E
+que susto constante para si! Quem n&atilde;o respeita a
+religi&atilde;o
+n&atilde;o tem escrupulos: mente, rouba, calumnia...
+Veja o <em>Communicado</em>. Vir aqui apertar
+a m&atilde;o
+ao senhor conego, e ir para o jornal chamar-lhe devasso!
+Que remorsos n&atilde;o sentiria a menina, mais
+tarde, &aacute; hora da morte! &Eacute; muito bom emquanto se
+tem saude e se &eacute; nova; mas quando chegasse a sua
+ultima hora, quando se achasse, como aquella pobre
+creatura que est&aacute; alli, nos ultimos arrancos, que terror
+n&atilde;o sentiria de ter de apparecer diante de Jesus
+Christo, depois de ter vivido em peccado ao lado
+d'esse homem! Quem sabe se elle n&atilde;o recusaria que
+lhe dessem a extrema-un&ccedil;&atilde;o! Morrer sem
+sacramentos,
+morrer como um animal!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor
+parocho! exclamou Amelia rompendo n'um ch&ocirc;ro
+nervoso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o chore, disse elle tomando-lhe suavemente
+a m&atilde;o entre as suas, muito tremulas. Escute,
+abra-se commigo... V&aacute;, esteja socegada, tudo se remedeia.
+N&atilde;o ha banhos publicados... Diga-lhe que
+n&atilde;o quer casar, que sabe tudo, que o odeia...
+<br />
+
+<br />
+
+Esfregava, apertava devagarinho a m&atilde;o d'Amelia.
+E subitamente, com voz d'um ardor brusco:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se importa com elle, n&atilde;o &eacute;
+verdade?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella respondeu muito baixo, com a cabe&ccedil;a cahida
+sobre o peito:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o.
+<span class="pagenum">[284]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, ahi tem! fez excitado. E diga-me, gosta
+d'outro?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondeu, com o peito a arfar fortemente,
+os olhos dilatados para o lume.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gosta? diga, diga!
+<br />
+
+<br />
+
+Passou-lhe o bra&ccedil;o sobre o hombro, attrahindo-a
+d&ocirc;cemente. Ella tinha as m&atilde;os abandonadas no
+rega&ccedil;o;
+sem se mover voltou devagar para elle os
+olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas,
+e entreabriu devagar os labios, pallida, toda desfallecida.
+Elle estendeu os bei&ccedil;os a tremer&mdash;e ficaram
+immoveis, collados n'um s&oacute; beijo, muito longo, profundo,
+os dentes contra os dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora! minha senhora! gritou de repente,
+n'um terror, a voz da
+<em>Ru&ccedil;a</em>, dentro.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto
+da entrevada. Amelia estava t&atilde;o tremula, que precisou
+encostar-se &aacute; porta da cozinha um momento,
+com as pernas vergadas, a m&atilde;o sobre o
+cora&ccedil;&atilde;o. Recuperou-se,
+desceu a acordar a m&atilde;e.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando entraram no quarto da idiota, Amaro
+ajoelhado, com a face quasi sobre o leito, rezava:
+as duas senhoras rojaram-se no ch&atilde;o; uma
+respira&ccedil;&atilde;o
+accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha;
+e &aacute; medida que o arquejo se tornava mais rouco, o
+parocho precipitava as suas ora&ccedil;&otilde;es. Subitamente
+o
+som agonisante cessou: ergueram-se: a velha estava
+immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e
+ba&ccedil;os. Expir&aacute;ra.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a
+<span class="pagenum">[285]</span>
+sala;&mdash;e ahi a S. Joanneira, curada, pelo choque,
+da sua enxaqueca, desabafou, em accessos de ch&ocirc;ro,
+recordando o tempo em que a pobre mana era
+nova, e que bonita era! e que bom casamento estivera
+para fazer com o morgado da Vigareira!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o genio mais dado, senhor parocho! Uma
+santa! E quando a Amelia nasceu, e que eu estive
+t&atilde;o mal, que n&atilde;o se tirou de ao p&eacute; de
+mim, noite e
+dia!... E alegre, n&atilde;o havia outra... Ai, Deus da minha
+alma, Deus da minha alma!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, encostada &aacute; vidra&ccedil;a na sombra da janella,
+olhava entorpecida a noite negra.
+<br />
+
+<br />
+
+Bateram ent&atilde;o &aacute; campainha. Amaro desceu, com
+uma vela. Era Jo&atilde;o Eduardo, que ao v&ecirc;r o parocho
+&aacute;quella hora na casa,&mdash;ficou petrificado, junto da
+porta aberta; emfim balbuciou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu vinha saber se havia novidade...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A pobre senhora expirou agora mesmo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah!
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se eu sou preciso para alguma coisa... disse
+Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, obrigado. As senhoras v&atilde;o-se deitar.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo fez-se pallido da col&eacute;ra que lhe
+davam aquelles modos de dono da casa. Esteve ainda
+um momento, hesitando&mdash;mas vendo o parocho
+abrigar a luz, com a m&atilde;o, contra o vento da rua:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, boa noite, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boa noite.
+<span class="pagenum">[286]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro subiu:&mdash;e depois de deixar as
+duas senhoras no quarto da S. Joanneira (porque,
+cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao
+quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa,
+accommodou-se n'uma cadeira, e come&ccedil;ou a l&ecirc;r o
+Breviario.
+<br />
+
+<br />
+
+Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa,
+o parocho, sentindo o somno entorpecel-o, veio
+&aacute; sala de jantar; reconfortou-se com um calix de vinho
+do Porto que ach&aacute;ra no aparador; e saboreava
+regaladamente o cigarro, quando ouviu na rua passos
+de botas fortes que iam, vinham, por baixo das
+janellas. Como a noite estava escura n&atilde;o p&ocirc;de
+distinguir
+&laquo;o passeante&raquo;.&mdash;Era Jo&atilde;o Eduardo que
+rondava
+a casa, furioso.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>
+XIII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia cedo, a snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias que
+entr&aacute;ra, havia pouco, da missa, ficou muito surprehendida,
+ouvindo a criada que lavava as escadas dizer
+de baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; aqui o senhor padre Amaro, snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha!
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa
+do conego; e D. Josepha gritou logo lisonjeada e j&aacute;
+curiosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que suba para aqui, n&atilde;o &eacute; de ceremonia!
+&Eacute;
+como de familia. Que suba!
+<br />
+
+<br />
+
+Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa
+ladrilhos de marmelada, com um vestido de
+hareje preto esga&ccedil;ado na ilharga e arqueado em redor
+dos tornozelos por uma <em>crinoline</em>
+d'um s&oacute; arco;
+<span class="pagenum">[288]</span>
+trazia n'essa manh&atilde; oculos azues; e foi logo ao patamar,
+arrastando os seus medonhos chinelos d'our&ecirc;lo,
+e preparando, por debaixo do len&ccedil;o preto repuxado
+sobre a testa, um ar agradavel para o senhor
+parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho,
+e j&aacute; c&aacute; tenho a primeira missinha. Fui hoje
+&aacute; capella de Nossa Senhora do Rosario... Disse-a
+o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje,
+senhor parocho! Sente-se. Ahi n&atilde;o, que lhe vem
+ar da porta... E ent&atilde;o a pobre entrevada l&aacute; se
+foi...
+Conte l&aacute;, senhor parocho...
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho teve de descrever a agonia da entrevada,
+a d&ocirc;r da S. Joanneira; como depois de morta
+a face da velha parecera remo&ccedil;ar; o que as senhoras
+tinham decidido a respeito da mortalha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui para n&oacute;s, D. Josepha, &eacute; um grande allivio
+para a S. Joanneira...&mdash;E de repente, puxando-se
+para a beira da cadeira, assentando as m&atilde;os nos
+joelhos:&mdash;E que me diz &aacute; do senhor Jo&atilde;o Eduardo?
+J&aacute; sabe? Foi elle que escreveu o artigo!
+<br />
+
+<br />
+
+A velha exclamou, levando as m&atilde;os &aacute;
+cabe&ccedil;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho!
+Nem me falle n'isso, que at&eacute; tenho estado doente!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, j&aacute; sabe?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E mais que sei, senhor parocho! O senhor
+padre Natario, devo-lhe esse favor, esteve aqui hontem
+e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma
+perdida!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E sabe que &eacute; o intimo do Agostinho, que s&atilde;o
+<span class="pagenum">[289]</span>
+bebedeiras na redac&ccedil;&atilde;o at&eacute; de
+madrugada, que vai
+para o bilhar do Terreiro achincalhar a religi&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, por quem &eacute;, senhor parocho, nem me
+diga, nem me diga! Que hontem, quando o senhor
+padre Natario esteve ahi, at&eacute; tive escrupulos d'ouvir
+tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor
+padre Natario, logo que soube veio-me contar...
+&Eacute; de muito delicado... E olhe, senhor parocho, a
+mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem.
+Eu nunca o disse, nunca o disse! Que l&aacute; isso, esta
+boquinha nunca se p&ocirc;z em vidas alheias... Mas tinha
+c&aacute; dentro um palpite. Elle ia &aacute; missa, cumpria
+o jejum; mas eu c&aacute; tinha a desconfian&ccedil;a que
+aquillo
+era para enganar a S. Joanneira e a pequena.
+Agora se v&ecirc;! Eu foi creatura que nunca me cahiu
+em gra&ccedil;a! Nunca, senhor parocho!&mdash;E de repente,
+com os olhinhos luzidios d'uma alegria perversa:&mdash;E
+agora, j&aacute; se sabe, o casamento desmancha-se?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito
+pausadamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Elle, minha senhora, seria notorio que uma
+rapariga de bons principios fosse casar com um pedreiro-livre,
+que n&atilde;o se confessa ha seis annos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, senhor parocho! antes v&ecirc;l-a morta! &Eacute;
+necessario dizer tudo &aacute; rapariga...
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente
+a cadeira para ao p&eacute; d'ella:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois foi justamente para isso que eu a vim
+procurar, minha senhora. Eu hontem j&aacute; fallei com
+a pequena... Mas comprehende, no meio d'aquelle
+<span class="pagenum">[290]</span>
+desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado,
+n&atilde;o pude insistir muito. Emfim disse-lhe o que havia,
+aconselhei-a por bons modos, expuz-lhe que ia
+perder a sua alma, ter uma vida desgra&ccedil;ada, etc.
+Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como
+parocho. E como era o meu dever (ainda que
+me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que,
+como christ&atilde; e como senhora, tinha
+obriga&ccedil;&atilde;o de
+romper com o escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ella?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro fez uma visagem descontente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o disse que <em>sim</em> nem
+que <em>n&atilde;o</em>. P&ocirc;z-se
+a
+fazer biquinho, a choramingar. &Eacute; verdade que estava
+muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga
+n&atilde;o morre por elle, isso &eacute; claro; mas quer
+casar, tem medo que a m&atilde;i morra, que se veja
+s&oacute;...
+Emfim sabe o que s&atilde;o raparigas! Que as minhas palavras
+fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada,
+etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora
+fallar-lhe. A senhora &eacute; a amiga da casa, &eacute;
+madrinha,
+conheceu-a de pequena... Estou certo que
+no seu testamento havia de lhe deixar uma boa
+lembran&ccedil;a... Tudo isto s&atilde;o
+considera&ccedil;&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou
+a velha; hei de lh'as cantar!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A rapariga o que precisa &eacute; quem a dirija.
+Aqui para n&oacute;s, precisa quem a confesse! Ella confessa-se
+ao padre Silverio; mas, sem querer dizer
+mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso,
+muita virtude; mas o que se chama
+<em>geito</em>
+<span class="pagenum">[291]</span>
+n&atilde;o tem. Para elle a confiss&atilde;o &eacute; a
+<em>desobriga</em>. Pergunta
+doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos
+da lei de Deus... Veja a senhora!... Est&aacute;
+claro que a rapariga n&atilde;o furta, nem mata, nem deseja
+a mulher do seu proximo! A confiss&atilde;o assim
+n&atilde;o lhe aproveita: o que ella precisa &eacute; um
+confessor
+<em>t&ecirc;so</em>, que lhe
+diga&mdash;<em>para alli!</em> e sem
+r&eacute;plica. A rapariga
+&eacute; um espirito fraco; como a maior parte das
+mulheres n&atilde;o se sabe dirigir por si; necessita por
+isso um confessor que a governe com uma vara de
+ferro, a quem ella obede&ccedil;a, a quem conte tudo, de
+quem tenha medo... &Eacute; como deve ser um confessor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho &eacute; que lhe servia...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sorriu modestamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o digo que n&atilde;o. Havia de aconselhal-a bem;
+sou amigo da m&atilde;i, acho que ella &eacute; boa rapariga e
+digna da gra&ccedil;a de Deus. Que eu, sempre que converso
+com ella, todos os conselhos que posso, em
+tudo, dou-lh'os... Mas a senhora comprehende, ha
+coisas em que se n&atilde;o p&oacute;de estar a fallar na sala,
+com gente &aacute; volta... S&oacute; se est&aacute;
+&aacute; vontade no confessionario.
+E &eacute; o que me falta, s&atilde;o as occasi&otilde;es
+de
+lhe fallar s&oacute;. Mas emfim eu n&atilde;o posso ir
+dizer-lhe:
+&laquo;a menina agora ha de se confessar commigo&raquo;! Eu
+n'isso sou muito escrupuloso...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas digo-lh'o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh'o eu!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora isso &eacute; que era um grande favor! Era um
+bem que fazia &aacute;quella alma! Porque se a rapariga
+me entrega a direc&ccedil;&atilde;o da sua alma,
+ent&atilde;o podemos
+<span class="pagenum">[292]</span>
+dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a
+no caminho da gra&ccedil;a... E quando lhe vai fallar, D.
+Josepha?
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha, &laquo;como julgava peccado adiar&raquo;, estava
+decidida a fallar-lhe essa mesma noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me parece, D. Josepha. Hoje &eacute; noite de
+pezames... O escrevente naturalmente est&aacute; l&aacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras
+pequenas havemos de passar a noite debaixo das
+mesmas telhas com o hereje?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem de ser. Emfim o rapaz por ora &eacute; considerado
+da familia... Al&eacute;m d'isso, D. Josepha, a senhora,
+a D. Maria e as Gansosinhos s&atilde;o pessoas da
+maior virtude... Mas n&oacute;s n&atilde;o devemos ter orgulho
+da nossa virtude. Arriscamo-nos a perder-lhe todos
+os fructos. E &eacute; um acto de humildade, que agrada
+muito a Deus, o misturar-nos &aacute;s vezes com os maus;
+&eacute; como quando um grande fidalgo tem de estar lado
+a lado com um trabalhador d'enxada... &Eacute; como
+se dissessemos: &laquo;eu sou-te superior em virtude,
+mas comparado com o que devia ser para entrar
+na gloria, quem sabe se n&atilde;o sou t&atilde;o peccador como
+tu!...&raquo; E esta humilha&ccedil;&atilde;o da alma
+&eacute; a melhor
+offerta que podemos fazer a Jesus.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha escutava-o, babosa; e n'uma admira&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor parocho, que at&eacute; d&aacute; virtude ouvil-o!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro curvou-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deus &aacute;s vezes, na sua bondade, inspira-me
+<span class="pagenum">[293]</span>
+justas palavras... Pois minha senhora, eu n&atilde;o quero
+massar mais. Ficamos entendidos. A senhora falla
+&aacute; pequena &aacute;manh&atilde;; e se, como
+&eacute; de cr&ecirc;r, ella
+consentir em escutar os meus conselhos, traz-m'a &aacute;
+S&eacute; no sabbado, &aacute;s oito horas. E falle-lhe
+t&ecirc;so, D. Josepha!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe-a commigo, senhor parocho!... Ent&atilde;o
+n&atilde;o quer provar da minha marmelada?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho
+em que cravou os dentes com dignidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor
+que a das Gangosinhos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois adeus, D. Josepha... Ah, &eacute; verdade, que
+diz o nosso conego d'este caso do escrevente?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O mano?...
+<br />
+
+<br />
+
+N'este momento a campainha em baixo repicou
+com furor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem
+zangado!
+<br />
+
+<br />
+
+Vinha, com effeito, da fazenda&mdash;furioso com o
+caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos
+homens. Tinham-lhe roubado uma por&ccedil;&atilde;o de
+cebolinho;
+e, abafado de c&oacute;lera, alliviava-se repetindo
+com gozo o nome do Inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, mano, que at&eacute; lhe fica mal!&mdash;exclamou
+D. Josepha tomada d'escrupulos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora mana, deixemos essas pieguices para a
+quaresma! Digo <em>co'os diabos!</em> e
+repito <em>co'os diabos</em>!
+Mas eu l&aacute; disse ao caseiro, que se sentir gente na
+fazenda, carregue a espingarda e fa&ccedil;a fogo!
+<span class="pagenum">[294]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha uma falta de respeito pela propriedade...
+disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou
+o conego. Um cebolinho que dava saude s&oacute; olhar
+para elle! Pois senhores, l&aacute; vai! Isto &eacute; o que eu
+chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!&mdash;acrescentou
+convictamente; porque o roubo do
+seu cebolinho, o cebolinho d'um conego, parecia-lhe
+um acto t&atilde;o negro d'impiedade como se tivessem
+sido furtados os vasos santos da S&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Falta de temor a Deus, falta de religi&atilde;o, observou
+D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual falta de religi&atilde;o! replicou o conego exasperado.
+Falta de cabos de policia, &eacute; o que &eacute;!&mdash;E
+voltando-se para Amaro:&mdash;Hoje &eacute; o enterro da velha,
+hein? Inda mais essa! V&aacute;, mana, mande-me l&aacute;
+dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro ent&atilde;o, retomado pela sua
+preoccupa&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estavamos c&aacute; a fallar do caso do Jo&atilde;o Eduardo:
+o <em>Communicado</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; outra maroteira que tal! fez logo o conego.
+Vejam essa, tambem! Que quadrilha vai pelo
+mundo, que quadrilha!&mdash;E ficou de bra&ccedil;os cruzados,
+com os olhos arregalados, como contemplando
+uma legi&atilde;o de monstros, soltos pelo universo, e
+arremessando-se
+com impudencia contra as reputa&ccedil;&otilde;es,
+os principios da Igreja, a honra das familias e o cebolinho
+do clero.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas
+<span class="pagenum">[295]</span>
+recommenda&ccedil;&otilde;es a D. Josepha, que o
+acompanh&aacute;ra
+ao patamar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o hoje, noite de pezames, n&atilde;o se faz nada.
+&Aacute;manh&atilde; falla &aacute; rapariga, e
+l&aacute; para o fim da semana
+leva-m'a &aacute; S&eacute;. Bem. E conven&ccedil;a a
+rapariga,
+D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que
+Deus tem os olhos em si. Falle-lhe t&ecirc;so, falle-lhe
+t&ecirc;so!... E o nosso conego que se entenda com a S.
+Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P&oacute;de ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha,
+e, quer ella queira quer n&atilde;o, hei de p&ocirc;l-a
+no caminho da salva&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Amen, disse o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+N'essa noite, com effeito, D. Josepha &laquo;n&atilde;o fez
+nada&raquo;. Eram os pezames na rua da Misericordia.
+Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente
+por uma s&oacute; vela com um
+<em>abat-jour</em> verde-escuro.
+A S. Joanneira e Amelia, de luto, occupavam tristemente
+o canap&eacute; ao centro; e em redor, nas fileiras
+de cadeiras apoiadas &aacute; parede, as amigas, cobertas
+de negro pesado, conservavam-se funebremente immoveis,
+de faces contristadas, n'um torp&ocirc;r mudo:
+&aacute;s vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na
+sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou
+Arthur Couceiro, ia em bicos de p&eacute;s espevitar o
+murr&atilde;o da v&eacute;la: a snr.<sup>a</sup> D.
+Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o expectorava
+o seu catarrho com um som choroso: e
+no silencio ouviam tamancos bater o lagedo da rua,
+ou os quartos d'hora no relogio da Misericordia.
+<br />
+
+<br />
+
+A intervallos a <em>Ru&ccedil;a</em>,
+toda de negro, entrava
+<span class="pagenum">[296]</span>
+com o taboleiro de d&ocirc;ces e copos de chasada; levantava-se
+ent&atilde;o o <em>abat-jour</em>; e as
+velhas, que j&aacute;
+iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara,
+levavam logo os len&ccedil;os aos olhos, e, com ais,
+serviam-se de bolinhos da Encarna&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo l&aacute; estava, a um canto, ignorado,
+ao p&eacute; da Gansoso surda que dormia com a boca
+aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde
+o olhar d'Amelia, que n&atilde;o se movia, com o rosto sobre
+o peito, as m&atilde;os no rega&ccedil;o, torcendo e
+destorcendo
+o seu len&ccedil;o de cambraiela. O padre Amaro
+e o conego Dias vieram &aacute;s nove horas: o parocho
+com passos graves foi dizer &aacute; S. Joanneira:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora, o golpe &eacute; grande. Mas consolemo-nos,
+pensando que sua excellentissima mana
+est&aacute; a esta hora gozando a companhia de Jesus
+Christo.
+<br />
+
+<br />
+
+Houve em redor uma murmura&ccedil;&atilde;o de
+solu&ccedil;os;
+e como n&atilde;o restavam cadeiras, os dois ecclesiasticos
+sentaram-se aos dois cantos do canap&eacute;, tendo no
+meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram
+assim reconhecidos pessoas de familia; a snr.<sup>a</sup>
+D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o notou baixinho a D. Joaquina
+Gansoso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, at&eacute; d&aacute; gosto v&ecirc;l-os assim todos
+quatro!
+<br />
+
+<br />
+
+E at&eacute; &aacute;s dez horas a noite de pezames continuou
+soturna e somnolenta, perturbada apenas pela
+tosse constante de Jo&atilde;o Eduardo que estava constipado,
+e que&mdash;na opini&atilde;o da snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+Dias
+que o disse a todos, depois&mdash;&laquo;tossia s&oacute; para fazer
+<span class="pagenum">[297]</span>
+tro&ccedil;a e para achincalhar o respeito aos mortos&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a dois dias, &aacute;s oito horas da manh&atilde;, a
+snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias e Amelia entraram na
+S&eacute;&mdash;depois
+de terem fallado no terra&ccedil;o &aacute; Amparo, mulher
+do boticario, que tinha uma crian&ccedil;a com sarampo,
+e, apesar de n&atilde;o ser coisa de cuidado, &laquo;viera
+&aacute; cautela fazer uma promessa&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz
+parda. Amelia, pallida sob a sua mantilha de renda,
+parou defronte do altar de Nossa Senhora das D&ocirc;res,
+deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o
+rosto sobre o livro de missa. A snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+Dias, com passos f&ocirc;fos, depois de se ter prostrado
+diante da capella do Sant&iacute;ssimo e do altar-m&oacute;r,
+foi
+empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre
+Amaro l&aacute; passeava, com os hombros vergados, as
+m&atilde;os atraz das costas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o? perguntou logo, erguendo para D. Josepha
+a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam
+inquietos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; alli, disse a velha baixinho, n'uma
+express&atilde;o
+de triumpho. Fui eu mesmo buscal-a! Ai,
+fallei-lhe t&ecirc;so, senhor parocho, n&atilde;o lh'as poupei!
+Agora &eacute; comsigo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre,
+apertando-lhe as m&atilde;os ambas com for&ccedil;a. Deus
+ha de lh'o levar em conta.
+<span class="pagenum">[298]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir
+o len&ccedil;o, a carteira dos papeis; e, cerrando devagarinho
+a porta da sacristia, desceu &aacute; igreja. Amelia
+ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel
+contra o pilar branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pst, fez-lhe D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo
+tremulamente com as m&atilde;os as pregas da mantilha
+em roda do pesco&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha.
+Vou &aacute; Amparo da botica, e venho depois por
+ella... Ora vai, filha, vai, Deus t'alumie essa alma!
+<br />
+
+<br />
+
+E sahiu, com mesuras a todos os altares.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos da botica&mdash;que era inquilino do conego
+e um pouco ronceiro na renda&mdash;desbarretou-se
+com espalhafato apenas D. Josepha appareceu &aacute; porta,
+e conduziu-a logo acima, &aacute; sala de cortinas de
+cassa, onde a Amparo costurava &aacute; janella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a
+velha. N&atilde;o largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada
+na S&eacute;, e venho aqui descansar um bocadinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, se me d&aacute; licen&ccedil;a... E como
+vai o nosso
+conego?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tornou a ter a d&ocirc;r. Mas tem soffrido de
+tonturas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Come&ccedil;os da primavera, disse o Carlos que
+retom&aacute;ra
+o seu ar magestoso, de p&eacute; no meio da sala,
+com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu
+me tenho sentido perturbado... N&oacute;s, as pessoas
+sangu&iacute;neas,
+soffremos sempre d'isto que se p&oacute;de chamar
+<span class="pagenum">[299]</span>
+o renascimento da seiva... Ha uma abundancia
+d'humores no sangue, que, n&atilde;o sendo eliminados
+pelos canaes proprios, v&atilde;o, por assim dizer,
+abrir caminho, aqui e al&eacute;m, pelo corpo, sob a
+f&oacute;rma
+de furunculo, espinha, nascida, &aacute;s vezes em logares
+bem incommodos, e, ainda que em si insignificantes,
+acompanhados sempre, por assim dizer, d'um cortejo...
+Perd&atilde;o, sinto o praticante a palrar... Se me
+d&aacute; licen&ccedil;a... Respeitos ao nosso conego. Que use
+a
+magnesia de James!
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha ent&atilde;o quiz v&ecirc;r a menina com o sarampo.
+Mas n&atilde;o passou da porta do quarto, recommendando
+&aacute; pequena, que arregalava uns olhos de
+febre, muito abafada na roupa, &laquo;n&atilde;o se descuidasse
+das suas ora&ccedil;&otilde;esinhas de manh&atilde; e
+&aacute; noite&raquo;. Aconselhou
+&aacute; Amparo alguns remedios, que eram milagrosos
+no sarampo; mas se a promessa f&ocirc;ra feita com
+f&eacute;, a menina podia-se considerar curada... Ai, todos
+os dias dava gra&ccedil;as a Deus de se n&atilde;o ter casado!
+Que filhos eram s&oacute; para trabalho e canceiras; e
+com as quezilias que traziam e o tempo que tomavam,
+eram at&eacute; causa d'uma mulher se descuidar das
+suas praticas e metter a alma no inferno...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem raz&atilde;o, D. Josepha, disse a Amparo, &eacute; um
+castigo... E eu com cinco! &Aacute;s vezes fazem-me t&atilde;o
+doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me
+a chorar s&oacute; commigo...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham voltado para junto da janella, e gozaram
+muito, espreitando o senhor administrador do concelho,
+que, por traz da vidra&ccedil;a da
+reparti&ccedil;&atilde;o, namorava
+<span class="pagenum">[300]</span>
+de binoculo a do Telles alfaiate.&mdash;A&iacute;, era um
+escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades
+assim! O secretario geral em um desaf&ocirc;ro com
+a Novaes... Que se podia esperar de homens sem
+religi&atilde;o, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha,
+estava predestinada a parecer como Gomorrha
+pelo fogo do c&eacute;o?&mdash;A Amparo cosia com a cabe&ccedil;a
+baixa, envergonhada talvez diante d'aquella
+indigna&ccedil;&atilde;o
+piedosa, dos desejos culpados que a roiam
+de v&ecirc;r o Passeio Publico e de ouvir os cantores em
+S. Carlos.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas bem depressa a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+come&ccedil;ou a
+fallar do escrevente. A Amparo n&atilde;o sabia nada; e a
+velha teve a satisfa&ccedil;&atilde;o de contar prolixamente,
+&laquo;tim-tim
+por tim-tim&raquo;, a historia do
+<em>Communicado</em>, o desgosto
+na rua da Misericordia, e a campanha de
+Natario para descobrir o <em>liberal</em>.
+Alargou-se principalmente
+sobre o caracter de Jo&atilde;o Eduardo, a sua
+impiedade, as suas orgias... E, considerando um
+dever de christ&atilde; aniquilar o atheu, deu mesmo a
+entender que alguns roubos, ultimamente commettidos
+em Leiria, eram &laquo;obra de Jo&atilde;o Eduardo&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+A Amparo declarou-se &laquo;banzada&raquo;. O casamento
+ent&atilde;o, com a Ameliasinha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso pertence &aacute; historia, declarou com jubilo
+D. Josepha Dias. V&atilde;o p&ocirc;l-o f&oacute;ra de
+casa! E por muito
+feliz se deve o homem dar em n&atilde;o ir parar ao
+banco dos r&eacute;os... Que a mim o deve, e &aacute; prudencia
+do mano e do senhor padre Amaro. Que havia motivos
+para o ferrar na cadeia!
+<span class="pagenum">[301]</span><br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas a pequena gostava d'elle, ao que parece.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma
+rapariga de ju&iacute;zo, de muita virtude! Apenas conheceu
+os desaf&ocirc;ros, foi a primeira a dizer que n&atilde;o, e
+que n&atilde;o! Ai! detestava-o...&mdash;E D. Josepha, baixando
+a voz em confidencia, contou &laquo;que era positivo
+que elle vivia com uma desgra&ccedil;ada para os lados
+do quartel&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E
+aquillo &eacute; homem que da sua boca nunca sae sen&atilde;o
+a verdade pura... Foi muito delicado commigo,
+devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo
+dizer a casa, pedir-me conselhos... Emfim, muito
+attencioso.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica
+desembara&ccedil;ada um momento (que n&atilde;o o tinham
+deixado
+respirar toda a manh&atilde;!) e vinha fazer companhia
+&aacute;s senhoras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o j&aacute; sabe, snr. Carlos, exclamou logo D.
+Josepha, o caso do <em>Communicado</em> e do
+Jo&atilde;o Eduardo?
+<br />
+
+<br />
+
+O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos.
+Que rela&ccedil;&atilde;o havia entre um artigo t&atilde;o
+indigno
+e esse mancebo que lhe parecia honesto?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Honesto!? ganiu a snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias. Foi
+elle que o escreveu, snr. Carlos!
+<br />
+
+<br />
+
+E vendo o Carlos morder o bei&ccedil;o de surpreza,
+D. Josepha, enthusiasmada, repetiu a historia da
+&laquo;maroteira&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece?
+<span class="pagenum">[302]</span><br />
+
+<br />
+
+O pharmaceutico deu a sua opini&atilde;o, n'uma voz
+vagarosa, sobrecarregada da auctoridade d'um vasto
+entendimento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem
+o dir&atilde;o commigo, &eacute; uma vergonha para Leiria. Eu
+j&aacute; tinha observado, quando li o
+<em>Communicado</em>: a religi&atilde;o
+&eacute; a base da sociedade, e minal-a &eacute;, por assim
+dizer, querer aluir o edificio... &Eacute; uma desgra&ccedil;a
+que haja na cidade d'esses sectarios do materialismo
+e da republica, que, como &eacute; sabido, querem
+destruir tudo o que existe: proclamam que os homens
+e as mulheres se devem unir com a promiscuidade
+de c&atilde;es e cadellas... (Desculpem exprimir-me
+assim, mas a sciencia &eacute; a sciencia). Querem ter
+o direito de entrar em minha casa, levar-me as pratas
+e o suor do meu rosto; n&atilde;o admittem que haja
+auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de
+cuspir na sagrada hostia...
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito
+arripiada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem
+sou liberal... Que, francamente o digo, eu n&atilde;o
+sou fanatico... Nem pelo facto d'um homem pertencer
+ao sacerdocio, o julgo um santo, n&atilde;o... Por
+exemplo, sempre embirrei com o parocho Migueis...
+Era uma giboia! Desculpe-me a senhora, mas era
+uma giboia. Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas
+j&aacute; l&aacute; vai... Derramamos o nosso sangue nas
+trincheiras do Porto, justamente para n&atilde;o haver lei
+das rolhas... Disse-lh'o na cara: &laquo;v. s.<sup>a</sup>
+&eacute; uma
+giboia!&raquo;
+<span class="pagenum">[303]</span>
+Mas, emfim, quando um homem veste uma
+batina deve ser respeitado... E o
+<em>Communicado</em>, repito,
+&eacute; um vergonha para Leiria... E tambem lhe
+digo, com esses atheus, esses republicanos, n&atilde;o deve
+haver considera&ccedil;&atilde;o!... Eu sou homem pacifico,
+aqui a Amparosinho conhece-me bem; pois se eu tivesse
+d'aviar uma receita para um republicano declarado,
+n&atilde;o tinha duvida, em logar de lhe dar uma
+d'essas composi&ccedil;&otilde;es beneficas que s&atilde;o
+o orgulho de
+nossa sciencia, de lhe mandar uma d&oacute;se d'acido
+prussico... N&atilde;o, n&atilde;o direi que lhe mandasse acido
+prussico... mas se estivesse no banco dos jurados
+havia de lhe fazer cahir em cima todo o peso da lei!
+<br />
+
+<br />
+
+E balan&ccedil;ou-se um momento sobre a ponta das
+chinelas, lan&ccedil;ando um grande gesto em redor, como
+se esperasse os applausos d'um conselho de districto
+ou d'uma municipalidade em sess&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas na S&eacute; bateram ent&atilde;o devagar as onze; e D.
+Josepha embrulhou-se &aacute; pressa no seu mantelete para
+ir buscar a pequena, coitada, que havia d'estar
+farta d'esperar.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe
+(como um mimo que remettia ao seu senhorio):
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Repita ao nosso conego quaes s&atilde;o as minhas
+opini&otilde;es... Que n'essa quest&atilde;o do
+<em>Communicado</em> e
+d'ataques ao clero, estou d'alma e cora&ccedil;&atilde;o com
+suas
+senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo
+vai-se a embrulhar.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava
+<span class="pagenum">[304]</span>
+ainda no confessionario. A velha tossiu alto,
+ajoelhou, e, com as m&atilde;os sobre a face, abysmou-se
+n'uma devo&ccedil;&atilde;o &aacute; Senhora do Rosario. A
+igreja ficou
+n'uma immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha,
+voltando-se para o confessionario, espreitou por
+entre os dedos; Amelia conservava-se immovel, com
+a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido
+negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu
+na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os
+vidros d'uma janella ao lado. Emfim houve no confessionario
+um rangido da madeira, um frou-frou de
+vestidos nas lages,&mdash;e D. Josepha, voltando-se, viu
+de p&eacute; diante d'ella Amelia com a face escarlate e o
+olhar reluzindo muito.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; ha muito tempo &aacute; espera, madrinha!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um bocadinho. Est&aacute;s promptinha, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram
+da S&eacute;. Ainda cahia uma chuva fina; mas o
+snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com officios
+para o governo civil, foi leval-as &aacute; rua da Misericordia
+debaixo do seu guardachuva.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XIV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, &aacute; noitinha, ia sahir de casa para
+a rua da Misericordia, levando debaixo do bra&ccedil;o um
+rolo de amostras de papel de parede para Amelia
+escolher, quando &aacute; porta encontrou a
+<em>Ru&ccedil;a</em> que ia
+puxar a campainha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;, <em>Ru&ccedil;a</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As senhoras foram passar a noite f&oacute;ra de casa,
+e aqui est&aacute; esta carta que manda a menina.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo sentiu apertar-se-lhe o
+cora&ccedil;&atilde;o, e
+seguia com o olhar pasmado a
+<em>Ru&ccedil;a</em>, que descia a
+rua, batendo os tamancos. Foi ao p&eacute; do candieiro,
+defronte, abriu a carta:
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">&laquo;Snr. Jo&atilde;o
+Eduardo.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;O que estava decidido a respeito do nosso casamento
+era na persuas&atilde;o que era v. s.<sup>a</sup> uma
+pessoa
+<span class="pagenum">[306]</span>
+de bem e que me poderia fazer feliz; mas como
+se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu
+o artigo do <em>Districto</em>, e calumniou
+os amigos da casa
+e me insultou a mim, e como os seus costumes
+n&atilde;o me d&atilde;o garantia de felicidade na vida de
+casada,
+deve desde hoje considerar tudo acabado entre
+n&oacute;s, pois n&atilde;o ha banhos publicados nem despezas
+feitas. E eu espero, bem como a mam&atilde;, que o senhor
+seja bastante delicado para n&atilde;o nos voltar a
+casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe
+communico por ordem da mam&atilde;, e sou
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="signature">
+&laquo;criada de v. s.<sup>a</sup>
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;<em>Amelia
+Caminha</em>&raquo;.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede
+defronte onde batia a claridade do candieiro,
+immovel como uma pedra, com o seu rolo de papeis
+pintados debaixo do bra&ccedil;o. Machinalmente voltou a
+casa. As m&atilde;os tremiam-lhe tanto, que mal podia
+accender o candieiro. De p&eacute;, junto da mesa, releu
+a carta. Depois ficou alli, fatigando a vista contra a
+chamma da torcida, com uma sensa&ccedil;&atilde;o arrefecedora
+de Immobilidade e de Silencio, como se subitamente,
+sem choque, toda a vida universal tivesse emmudecido
+e parado. Pensou onde teriam <em>ellas</em>
+ido passar
+a noite. Lembran&ccedil;as de ser&otilde;es felizes na rua da
+Misericordia atravessaram-lhe devagar na memoria:
+Amelia trabalhava, com a cabe&ccedil;a baixa, e entre o
+<span class="pagenum">[307]</span>
+cabello muito preto e o collar muito branco o seu
+pesco&ccedil;o tinha uma pallidez que a luz amaciava...
+Ent&atilde;o a id&eacute;a de que a perdera para sempre
+varou-lhe
+o cora&ccedil;&atilde;o com um frio de punhalada. Apertou
+as fontes entre as m&atilde;os, tonto. Que havia de fazer?
+que havia de fazer? Resolu&ccedil;&otilde;es bruscas
+relampejavam-lhe
+um momento no espirito, esvaiam-se. Queria
+escrever-lhe! tiral-a por justi&ccedil;a! ir para o Brazil!
+saber quem descobrira que elle era o auctor do
+artigo!&mdash;E como isto era o mais practicavel &aacute;quella
+hora, correu &aacute; redac&ccedil;&atilde;o da
+<em>Voz do Districto</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho, estirado no canap&eacute;, com a v&eacute;la ao
+p&eacute;
+sobre uma cadeira, saboreava os jornaes de Lisboa.
+A face decomposta de Jo&atilde;o Eduardo assustou-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que me perdeste, maroto!
+<br />
+
+<br />
+
+E d'um s&oacute; f&ocirc;lego accusou furiosamente o corcunda
+de o ter trahido.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho erguera-se devagar, procurando imperturbavel
+a bolsa do tabaco na algibeira da jaqueta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te
+a minha palavra d'honra que n&atilde;o disse a ninguem
+do <em>Communicado</em>. &Eacute; verdade
+que ninguem
+me perguntou...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas quem foi, ent&atilde;o? gritou o escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+Agostinho enterrou a cabe&ccedil;a nos hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu o que sei &eacute; que os padres andavam n'uma
+azafama para saber quem era. O Natario esteve ahi
+uma manh&atilde;, por causa do annuncio de uma viuva
+que recorre &aacute; caridade publica, mas do
+<em>Communicado</em>
+<span class="pagenum">[308]</span>
+n&atilde;o se disse nem palavra... O doutor Godinho
+&eacute; que sabia, entende-te com elle! Mas ent&atilde;o
+fizeram-te
+alguma?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mataram-me! disse Jo&atilde;o Eduardo lugubremente.
+<br />
+
+<br />
+
+Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado,
+e sahiu arremessando a porta. Passeou na Pra&ccedil;a;
+foi ao acaso pelas ruas; depois, attrahido pela obscuridade,
+&aacute; estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma
+intoleravel palpita&ccedil;&atilde;o surda latejar-lhe
+interiormente
+contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos,
+parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por
+vezes a id&eacute;a da sua desgra&ccedil;a rasgava-lhe
+subitamente
+o cora&ccedil;&atilde;o, e ent&atilde;o imaginava
+v&ecirc;r toda a paizagem
+oscillar e o ch&atilde;o da estrada afigurava-se-lhe
+molle como um lama&ccedil;al. Voltou pela S&eacute; quando
+batiam
+onze horas; e achou-se na rua da Misericordia,
+com o olhar cravado para a janella da sala de jantar,
+onde havia ainda luz; a vidra&ccedil;a do quarto
+d'Amelia alumiou-se tambem; ella ia deitar-se, decerto...
+Veio-lhe um desejo furioso da sua belleza,
+do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa:
+uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois
+uma saudade indefinida, profunda, foi-o amollecendo,
+e chorou muito tempo, enternecendo-se mais
+com o som dos seus proprios solu&ccedil;os,&mdash;at&eacute; que
+ficou
+adormecido, de bru&ccedil;os, n'uma massa inerte.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia
+<span class="pagenum">[309]</span>
+para a Pra&ccedil;a, quando ao p&eacute; do Arco
+Jo&atilde;o
+Eduardo lhe sahiu d'emboscada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quero-lhe fallar, menina Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella recuou assustada, disse a tremer:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tem que me fallar...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas elle plant&aacute;ra-se diante d'ella, muito decidido,
+com os olhos vermelhos como carv&otilde;es:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quero-lhe dizer... L&aacute; do artigo, &eacute; verdade,
+fui eu que o escrevi, foi uma desgra&ccedil;a; mas a menina
+tinha-me ralado de ciumes... Mas o que a menina
+diz de maus costumes &eacute; uma calumnia. Eu
+sempre fui um homem de bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Amaro &eacute; que o conhece! Faz
+favor de me deixar passar...
+<br />
+
+<br />
+
+Ao nome do parocho, Jo&atilde;o Eduardo fez-se livido
+de raiva:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! &eacute; o senhor padre Amaro! &Eacute; o maroto do
+padre! Pois veremos! Ou&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada,
+t&atilde;o alto, que um sujeito gordo de chale-manta
+parou olhando.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo recuou, tirando o chap&eacute;o; e ella,
+immediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, n'um desespero, correu a casa do doutor
+Godinho. J&aacute; na vespera, por entre os seus-accessos
+de ch&ocirc;ro, sentindo-se t&atilde;o abandonado, se
+lembr&aacute;ra
+do doutor Godinho. F&ocirc;ra outr'ora seu escrevente; e
+<span class="pagenum">[310]</span>
+como por pedido d'elle entr&aacute;ra no cartorio do Nunes
+Ferral, e por sua influencia ia ser accommodado
+no governo civil, julgava-o uma Providencia prodiga
+e inesgotavel! Demais, desde que escrevera o
+<em>Communicado</em> considerava-se da
+redac&ccedil;&atilde;o da <em>Voz do
+Districto</em>, do grupo da Maia; agora, que era atacado
+pelos padres, devia claramente ir acolher-se &aacute; forte
+protec&ccedil;&atilde;o do seu chefe, do doutor Godinho, do
+inimigo
+da reac&ccedil;&atilde;o, o &laquo;Cavour de
+Leiria&raquo;, como dizia,
+arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor
+dos <em>Ferr&otilde;es</em>.&mdash;E
+Jo&atilde;o Eduardo, dirigindo-se ao casar&atilde;o
+amarello, ao p&eacute; do Terreiro onde o doutor vivia,
+ia n'um alvoro&ccedil;o d'esperan&ccedil;as, contente com se
+refugiar, como um c&atilde;o escorra&ccedil;ado, entre as
+pernas
+d'aquelle colosso.
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho descera j&aacute; ao escriptorio, e repoltreado
+na sua poltrona abbacial de pr&eacute;gos amarellos,
+com os olhos no tecto de carvalho escuro,
+acabava com beatitude o charuto do almo&ccedil;o. Recebeu
+com magestade os &laquo;bons dias&raquo; de Jo&atilde;o
+Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que temos, amigo?
+<br />
+
+<br />
+
+As altas estantes d'in-folios graves, as resmas
+d'autos, o apparatoso painel representando o marquez
+de Pombal, de p&eacute; n'um terra&ccedil;o sobre o Tejo,
+expulsando
+com o dedo a esquadra ingleza&mdash;acanharam
+como sempre Jo&atilde;o Eduardo; e foi com voz
+embara&ccedil;ada
+que disse vinha alli para que sua excellencia
+lhe d&eacute;sse remedio n'uma desgra&ccedil;a que lhe
+succedia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desordens, bordoada?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, senhor, negocios de familia.
+<span class="pagenum">[311]</span><br />
+
+<br />
+
+Contou ent&atilde;o, prolixamente, a sua historia desde
+a publica&ccedil;&atilde;o do
+<em>Communicado</em>: leu muito commovido,
+a carta d'Amelia; descreveu a scena ao p&eacute; do
+Arco... Alli estava agora, escorra&ccedil;ado da rua da
+Misericordia
+por obras do senhor parocho! E parecia-lhe
+a elle, apesar de n&atilde;o ser formado em Coimbra,
+que contra um padre que se introduzia n'uma familia,
+desinquietava uma menina simples, a levava por
+intrigas a romper com o noivo e ficava de portas a
+dentro senhor d'ella&mdash;devia haver leis!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o sei, senhor doutor, mas deve haver
+leis!
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho parecia contrariado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leis!? exclamou tra&ccedil;ando vivamente a perna.
+Que leis quer voss&ecirc; que haja? Quer querelar do parocho?...
+Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o relogio?
+insultou-o pela imprensa? N&atilde;o. Ent&atilde;o?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as
+senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes,
+senhor doutor! Calumniou-me!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem testemunhas?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+E o doutor Godinho, assentando os cotov&ecirc;los sobre
+a banca, declarou que como advogado n&atilde;o tinha
+nada a fazer. Os tribunaes n&atilde;o tomavam conhecimento
+d'essas quest&otilde;es, d'esses dramas moraes por
+assim dizer, que se passavam nas alcovas domesticas...
+Como homem, como particular, como Alipio
+de Vasconcellos Godinho tambem n&atilde;o podia intervir
+<span class="pagenum">[312]</span>
+porque n&atilde;o conhecia o senhor padre Amaro, nem
+essas senhoras da rua da Misericordia... Lamentava
+o facto, porque emfim f&ocirc;ra novo, sentira a poesia
+da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o
+que eram esses transes do cora&ccedil;&atilde;o... E ahi
+est&aacute; tudo
+o que elle podia fazer&mdash;lamentar! Tambem para
+que tinha elle dado a sua affei&ccedil;&atilde;o a uma
+beata?...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo interrompeu-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A culpa n&atilde;o &eacute; d'ella, senhor doutor! A culpa
+&eacute; do padre que a anda a desencaminhar! A culpa
+&eacute; d'essa canalha do cabido!
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho estendeu com severidade a
+m&atilde;o, e aconselhou o snr. Jo&atilde;o Eduardo que tivesse
+cuidado com semelhantes asser&ccedil;&otilde;es! Nada provava
+que o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia
+que n&atilde;o fosse a d'um habil director espiritual...
+E recommendava ao snr. Jo&atilde;o Eduardo, com
+a auctoridade que lhe davam os annos e a sua
+posi&ccedil;&atilde;o
+no paiz, que n&atilde;o fosse espalhar, por despeito,
+accusa&ccedil;&otilde;es que s&oacute; serviam para
+destruir o prestigio
+do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem
+constituida!&mdash;Sem elle, tudo seria anarchia e orgia!
+<br />
+
+<br />
+
+E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava
+n'essa manh&atilde; com &laquo;o dom da palavra&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a face consternada do escrevente, que n&atilde;o
+se movia, de p&eacute; junto &aacute; banca, impacientava-o; e
+disse com seccura, puxando para diante de si um
+volume d'autos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, acabemos, que quer o amigo? J&aacute; v&ecirc;,
+eu n&atilde;o lhe posso dar remedio.
+<span class="pagenum">[313]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo replicou, com um movimento de
+coragem desesperada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer
+alguma coisa por mim... Porque emfim eu fui uma
+victima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi
+o <em>Communicado</em>. E tinha-se combinado
+que havia
+de ser segredo. O Agostinho n&atilde;o o disse, s&oacute; o
+senhor doutor o sabia...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor pulou de indigna&ccedil;&atilde;o na sua cadeira
+abbacial:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a
+entender que fui eu que o disse? N&atilde;o disse... Isto
+&eacute;, disse; disse-o a minha mulher, porque n'uma
+familia bem constituida n&atilde;o deve haver segredos
+entre esposo e esposa. Ella perguntou-me, disse-lh'o...
+Mas supponhamos que fui eu que o espalhei
+pelas ruas. De duas uma: ou o
+<em>Communicado</em> era
+uma calumnia, e ent&atilde;o sou eu que devo accusal-o
+de ter polluido um jornal honrado com um acervo
+de diffama&ccedil;&atilde;es; ou era verdade, e
+ent&atilde;o que
+homem &eacute; o senhor que se envergonha das verdades
+que solta, e que n&atilde;o se atreve a manter &aacute;
+luz do dia as opini&otilde;es que redigiu na escurid&atilde;o
+da
+noite?
+<br />
+
+<br />
+
+Duas lagrimas ennevoaram os olhos de Jo&atilde;o
+Eduardo. Ent&atilde;o, diante d'aquella express&atilde;o
+esmorecida,
+satisfeito de o ter esmagado com uma argumenta&ccedil;&atilde;o
+t&atilde;o logica e t&atilde;o poderosa, o doutor Godinho
+abrandou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, n&atilde;o nos zanguemos, disse. N&atilde;o se falla
+<span class="pagenum">[314]</span>
+mais era pontos d'honra... O que p&oacute;de acreditar &eacute;
+que lamento o seu desgosto.
+<br />
+
+<br />
+
+Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal.
+Que n&atilde;o succumbisse; havia mais meninas em Leiria
+e meninas de bons principios que n&atilde;o viviam
+sob a direc&ccedil;&atilde;o da sotaina. Que fosse forte, e que
+se consolasse pensando que elle, doutor Godinho&mdash;e
+era elle!&mdash;tambem tivera em mo&ccedil;o desgostos
+do cora&ccedil;&atilde;o. Que evitasse o dominio das
+paix&otilde;es
+que lhe seria prejudicial na carreira publica. E
+que se o n&atilde;o fizesse por seu interesse proprio, o
+fizesse ao menos em atten&ccedil;&atilde;o a elle, doutor
+Godinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo sahiu do escriptorio, indignado,
+julgando-se &laquo;trahido&raquo; pelo doutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto succede-me a mim, resmungava, porque
+sou um pobre diabo, n&atilde;o dou votos nas
+elei&ccedil;&otilde;es,
+n&atilde;o vou &aacute;s
+<em>soir&eacute;es</em> do Novaes,
+n&atilde;o subscrevo para
+o club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de
+contos de reis!...
+<br />
+
+<br />
+
+Veio-lhe ent&atilde;o um desejo furioso de se vingar
+dos padres, dos ricos, e da religi&atilde;o que os justifica.
+Voltou muito decidido ao escriptorio, e entreabrindo
+a porta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa excellencia ao menos agora d&aacute; licen&ccedil;a
+que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta
+maroteira, cascar n'essa canalha...
+<br />
+
+<br />
+
+Esta audacia do escrevente indignou o doutor.
+Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando
+terrivelmente os bra&ccedil;os:
+<span class="pagenum">[315]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O snr. Jo&atilde;o Eduardo est&aacute; realmente a abusar!
+Pois o senhor vem-me pedir que transforme
+um jornal d'id&eacute;as n'um jornal de
+diffama&ccedil;&otilde;es!? V&aacute;,
+n&atilde;o se prenda! Pe&ccedil;a-me que insulte os principios
+da
+religi&atilde;o, que achincalhe o Redemptor, que repita as
+babuseiras de Renan, que ataque as leis fundamentaes
+do Estado, que injurie o rei, que vitupere a
+institui&ccedil;&atilde;o da familia! O senhor est&aacute;
+ebrio!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor doutor!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor est&aacute; ebrio! Cuidado, meu caro amigo,
+cuidado, olhe que vai por um declive! &Eacute; por
+esse caminho que se chega a perder o respeito da
+auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. &Eacute; por
+esse caminho que se vai ao crime! Escusa d'arregalar
+os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu! Tenho a
+experiencia de vinte annos de f&ocirc;ro. Homem, detenha-se!
+refreie essas paix&otilde;es! Safa! Que idade tem
+o senhor?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vinte e seis annos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois n&atilde;o ha desculpa para um homem de vinte
+e seis annos ter essas id&eacute;as subversivas. Adeus,
+feche a porta. E escute: escusa de pensar em mandar
+outro <em>Communicado</em> para outro
+qualquer jornal.
+N&atilde;o lh'o consinto, eu que o tenho protegido
+sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa
+de negar, estou-lh'o a l&ecirc;r nos olhos. Pois n&atilde;o
+lh'o consinto! &Eacute; para seu bem, para lhe poupar uma
+m&aacute; ac&ccedil;&atilde;o social!
+<br />
+
+<br />
+
+Tomou uma grande attitude na poltrona, repetiu
+com for&ccedil;a:
+<span class="pagenum">[316]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma pessima ac&ccedil;&atilde;o social! Aonde nos querem
+os senhores levar com os seus materialismos,
+os seus atheismos?! Quando tiverem dado cabo da
+religi&atilde;o de nossos paes, que t&ecirc;m os senhores para
+a substituir?! Que t&ecirc;m?! Mostre l&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+A express&atilde;o embara&ccedil;ada de Jo&atilde;o Eduardo
+(que
+n&atilde;o tinha alli, para a mostrar, uma religi&atilde;o que
+substituisse
+a de nossos paes) fez triumphar o doutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o t&ecirc;m nada! T&ecirc;m lama, quando muito
+t&ecirc;m
+palavriado! Mas emquanto eu f&ocirc;r vivo, pelo menos
+em Leiria, ha de ser respeitada a F&eacute; e o principio
+da Ordem! Podem p&ocirc;r a Europa a fogo e sangue,
+em Leiria n&atilde;o h&atilde;o de erguer cabe&ccedil;a. Em
+Leiria
+estou eu &aacute;lerta, e juro que lhes hei de ser funesto!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo recebia d'hombros vergados estas
+amea&ccedil;as, sem as comprehender. Como podia o seu
+<em>Communicado</em> e as intrigas da rua da
+Misericordia
+produzirem assim catastrophes sociaes e
+revolu&ccedil;&otilde;es
+religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder
+decerto a amizade do doutor, o emprego no governo
+civil... Quiz abrandal-o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor doutor, mas vossa excellencia bem
+v&ecirc;...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paix&otilde;es,
+a vingan&ccedil;a o v&atilde;o levando por um caminho fatal...
+O que espero &eacute; que os meus conselhos o detenham.
+Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta,
+homem!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de
+<span class="pagenum">[317]</span>
+fazer agora? O doutor Godinho, aquelle colosso, repellia-o
+com palavras tremendas! E que podia elle,
+pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro
+que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos,
+o Papa, classe solidaria e compacta que lhe apparecia
+como uma medonha cidadella de bronze erguendo-se
+at&eacute; ao c&eacute;o?! Eram elles que tinham causado
+a resolu&ccedil;&atilde;o d'Amelia, a sua carta, a dureza das
+suas palavras. Era uma intriga de parochos, conegos
+e beatas. Se elle pudesse arrancal-a &aacute;quella influencia,
+ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha
+que lhe bordava chinelas, e que vinha toda
+c&oacute;rada v&ecirc;l-o passar &aacute; janella! As
+suspeitas que outr'ora
+tivera tinham-se desvanecido n'aquelles ser&otilde;es
+felizes, depois de decidido o casamento, quando ella,
+costurando junto do candieiro, fallava da mobilia
+que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha.
+Ella amava-o, decerto... Mas qu&ecirc;! tinham-lhe
+dito que elle era o auctor do
+<em>Communicado</em>, que era
+hereje, que tinha costumes devassos; o parocho, na
+sua voz pedante, amea&ccedil;&aacute;ra-a com o inferno; o
+conego,
+furioso, e todo poderoso na rua da Misericordia
+porque dava para a panella, fall&aacute;ra t&ecirc;so&mdash;e a
+pobre
+menina, assustada, dominada, com aquelle bando
+tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe
+ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida,
+de boa f&eacute;, que elle era uma fera! E &aacute;quella
+hora, emquanto elle alli andava pelas ruas, escorra&ccedil;ado
+e desgra&ccedil;ado, o padre Amaro, na saleta
+da rua da Misericordia, enterrado na poltrona, senhor
+<span class="pagenum">[318]</span>
+da casa e senhor da rapariga, de perna tra&ccedil;ada, palrava
+d'alto! Canalha! E n&atilde;o haver leis que o vingassem!
+e n&atilde;o poder sequer &laquo;fazer escandalo&raquo;,
+agora
+que a <em>Voz do Districto</em> se lhe
+tornava inaccessivel!
+<br />
+
+<br />
+
+Vinham-lhe ent&atilde;o desejos furiosos de demolir o
+parocho aos murros, com a for&ccedil;a do padre Brito.
+Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos
+n'um jornal que revelassem as intrigas da rua
+da Misericordia, amotinassem a opini&atilde;o, cahissem sobre
+o padre como catastrophes, o for&ccedil;assem a elle,
+ao conego e aos outros a desapparecerem corridos
+da casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a
+Ameliasinha, livre d'aquelles galfarros, correria logo
+aos seus bra&ccedil;os, com lagrimas de
+reconcilia&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Procurava assim &aacute; for&ccedil;a convencer-se que
+&laquo;a
+culpa n&atilde;o era d'ella&raquo;; recordava os mezes de
+felicidade
+antes da chegada do parocho; arranjava
+explica&ccedil;&otilde;es
+naturaes para aquellas maneirinhas ternas
+que ella outr'ora tinha para o padre Amaro, e que
+lhe tinham dado ciumes desesperados:&mdash;era o desejo,
+coitada, de ser agradavel ao hospede, ao amigo
+do senhor conego, de o reter para vantagem da
+m&atilde;i e da casa! E al&eacute;m d'isso, como ella andava
+contente depois de resolvido o casamento! A sua
+indigna&ccedil;&atilde;o
+contra o <em>Communicado</em>, estava certo,
+n&atilde;o
+era natural d'ella&mdash;vinha-lhe soprada pelo parocho
+e pelas beatas. E achava uma consola&ccedil;&atilde;o n'esta
+id&eacute;a
+que n&atilde;o era repellido como namorado, como marido&mdash;mas
+que era uma victima das intrigas do torpe
+padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o
+<span class="pagenum">[319]</span>
+odiava como liberal! Isto accumulava-lhe na alma
+um rancor desordenado contra o padre; descendo
+a rua procurava anciosamente uma vingan&ccedil;a, atirando
+a imagina&ccedil;&atilde;o aqui e al&eacute;m&mdash;mas
+vinha-lhe
+sempre a mesma id&eacute;a, o artigo de jornal, a verrina,
+a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida
+revoltava-o. Ah, se tivesse por si um
+&laquo;figur&atilde;o&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Um homem do campo, amarello como uma cidra,
+que ia caminhando devagar, com o bra&ccedil;o ao
+peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor
+Gouv&ecirc;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na primeira rua, &aacute; esquerda, o port&atilde;o verde
+ao p&eacute; do lampe&atilde;o, disse Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+E uma esperan&ccedil;a immensa alumiou-lhe bruscamente
+a alma: o doutor Gouv&ecirc;a &eacute; que o podia salvar!
+O doutor era seu amigo: tratava-o por
+<em>tu</em> desde
+que o cur&aacute;ra havia tres annos da pneumonia;
+approvava muito o seu casamento com Amelia; havia
+ainda semanas pergunt&aacute;ra-lhe ao p&eacute; da
+Pra&ccedil;a:&mdash;&laquo;Ent&atilde;o,
+quando se faz essa rapariga feliz?&raquo; E que
+respeitado, que temido na rua da Misericordia! Era
+medico de todas as amigas da casa que, apesar de
+se escandalisarem com a sua irreligi&atilde;o, dependiam
+humildemente da sua sciencia para os achaques, os
+flatos, os xaropes. Al&eacute;m d'isso, o doutor Gouv&ecirc;a,
+inimigo
+decidido da &laquo;padraria&raquo;, decerto se ia indignar
+com aquella intriga beata: e Jo&atilde;o Eduardo
+via-se j&aacute; entrando na rua da Misericordia atraz do
+doutor Gouv&ecirc;a, que reprehendia a S. Joanneira, arrasava
+<span class="pagenum">[320]</span>
+o padre Amaro, convencia as velhas,&mdash;e a
+sua felicidade recome&ccedil;ava, inabalavel agora!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor doutor est&aacute;? perguntou elle quasi
+alegre, &aacute; criada que no pateo estendia a roupa ao
+sol.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; na consulta, snr. Jo&atilde;osinho,
+fa&ccedil;a favor
+d'entrar.
+<br />
+
+<br />
+
+Em dias de mercado os doentes do campo affluiam
+sempre. Mas &aacute;quella hora&mdash;quando os visinhos das
+freguezias se reunem nas tabernas&mdash;havia s&oacute; um
+velho, uma mulher com uma crian&ccedil;a ao collo e o
+homem do bra&ccedil;o ao peito, esperando n'uma saleta
+baixa com bancos, dois manjaric&otilde;es na janella e uma
+grande gravura da Coroa&ccedil;&atilde;o da Rainha Victoria.
+Apesar
+do sol claro que entrava do pateo, e de uma
+fresca folhagem de tilia que ro&ccedil;ava o peitoril da janella,
+a saleta dava tristeza, como se as paredes, os
+bancos, os mesmos manjaric&otilde;es estivessem saturados
+da melancolia das doen&ccedil;as que alli tinham passado.
+Jo&atilde;o Eduardo entrou e sentou-se a um canto.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando
+de ter esperado tanto: era de uma freguezia
+distante, deix&aacute;ra no mercado a irm&atilde;, e havia uma
+hora que o senhor doutor estava com duas senhoras!
+A cada momento a crian&ccedil;a rabujava, ella sacudia-a
+nos bra&ccedil;os: calavam-se depois: o velho arrega&ccedil;ava
+a cal&ccedil;a, contemplava com satisfa&ccedil;&atilde;o
+uma
+chaga na canella envolta em trapos: e o outro homem
+dava bocejos desconsolados que tornavam mais
+lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora
+<span class="pagenum">[321]</span>
+enervava, amollecia o escrevente; sentia perder gradualmente
+o animo de occupar o doutor Gouv&ecirc;a;
+preparava laboriosamente a sua historia, mas ella
+parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar.
+Vinha-lhe ent&atilde;o um desalento, que as faces insipidas
+dos doentes tornavam ainda mais intenso.
+Positivamente era uma coisa bem triste esta vida,
+cheia s&oacute; de miserias, de sentimentos trahidos, de
+afflic&ccedil;&otilde;es, de doen&ccedil;as! Erguia-se; e
+com as m&atilde;os
+atraz das costas ia olhar desconsoladamente a
+Coroa&ccedil;&atilde;o
+da Rainha Victoria.
+<br />
+
+<br />
+
+De vez em quando a mulher entreabria a porta,
+a espreitar se as duas senhoras ainda l&aacute; estariam.
+L&aacute; estavam; e atrav&eacute;s do batente de baeta verde,
+que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas
+vozes pachorrentas palrarem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em cahindo aqui &eacute; dia perdido! rosnava o
+velho.
+<br />
+
+<br />
+
+Tambem elle deix&aacute;ra a cavalgadura &aacute; porta do
+Fuma&ccedil;a, e a rapariga na pra&ccedil;a... E o que teria a
+esperar na botica, depois! Com tres legoas ainda a
+fazer para voltar &aacute; freguezia!... Ser doente &eacute;
+bom,
+mas para quem &eacute; rico e tem vagares!
+<br />
+
+<br />
+
+A id&eacute;a da doen&ccedil;a, da solid&atilde;o que ella
+traz, faziam
+agora parecer a Jo&atilde;o Eduardo mais amarga a
+perda de Amelia. Se adoecesse teria de ir para o
+hospital. O malvado do padre tir&aacute;ra-lhe tudo&mdash;mulher,
+felicidade, confortos de familia, d&ocirc;ces companhias
+da vida!
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim sentiram no corredor as duas senhoras
+<span class="pagenum">[322]</span>
+que sahiam. A mulher com a crian&ccedil;a apanhou o
+seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando-se
+logo do banco junto da porta, disse com
+satisfa&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Agora c&aacute; o patr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossemec&ecirc; tem muito que consultar? perguntou-lhe
+Jo&atilde;o Eduardo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, &eacute; s&oacute; receber a receita.
+<br />
+
+<br />
+
+E immediatamente contou a historia da sua chaga:
+f&ocirc;ra uma trave que lhe cahira em cima; n&atilde;o fizera
+caso; depois a ferida assanh&aacute;ra-se; e agora alli
+estava, manco e cortidinho de d&ocirc;res.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E vossa senhoria, &eacute; coisa de cuidado? perguntou
+elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o estou doente, disse o escrevente. S&atilde;o
+negocios com o senhor doutor.
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois homens olharam-n'o com inveja.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim foi a vez do velho, depois a do homem
+amarello de bra&ccedil;o ao peito. Jo&atilde;o Eduardo,
+s&oacute;, passeava
+nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito
+difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protec&ccedil;&atilde;o
+ao
+doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar
+primeiro de d&ocirc;res do peito ou desarranjos de
+estomago, e depois, incidentalmente, contar os seus
+infortunios...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante
+d'elle, com a sua longa barba grisalha que lhe cahia
+sobre a quinzena de velludo preto, o largo chap&eacute;o
+desabado na cabe&ccedil;a, cal&ccedil;ando as luvas de fio
+d'Escocia.
+<span class="pagenum">[323]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&aacute;! &eacute;s tu, rapaz! Ha novidade na
+rua da Misericordia?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo c&oacute;rou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, senhor doutor, queria-lhe fallar
+em particular.
+<br />
+
+<br />
+
+Seguiu-o ao gabinete&mdash;o conhecido gabinete do
+doutor Gouv&ecirc;a, que com o seu cahos de livros, o
+seu tom poeirento, uma panoplia de flechas selvagens
+e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade
+a reputa&ccedil;&atilde;o d'uma &laquo;cella
+d'alchimista&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor puxou o seu
+<em>cebol&atilde;o</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um quarto para as duas. S&ecirc; breve.
+<br />
+
+<br />
+
+A face do escrevente exprimiu o embara&ccedil;o de
+condensar uma narra&ccedil;&atilde;o t&atilde;o complicada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; bom, disse o doutor, explica-te como puderes.
+N&atilde;o ha nada mais difficil que ser claro e breve;
+&eacute; necessario ter genio. Que &eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo ent&atilde;o tartamudeou a sua historia,
+insistindo sobretudo na perfidia do padre, exagerando
+a innocencia de Amelia...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor escutava-o, cofiando a barba.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vejo o que &eacute;. Tu e o padre, disse elle, quereis
+ambos a rapariga. Como elle &eacute; o mais esperto
+e o mais decidido, apanhou-a elle. &Eacute; lei natural: o
+mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e
+a pr&ecirc;sa pertencem-lhe.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquillo pareceu a Jo&atilde;o Eduardo um gracejo. Disse
+com a voz perturbada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa excellencia est&aacute; a ca&ccedil;oar, senhor doutor,
+mas a mim retalha-se-me o cora&ccedil;&atilde;o!
+<span class="pagenum">[324]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, acudiu o doutor com bondade, estou
+a philosophar, n&atilde;o estou a ca&ccedil;oar... Mas emfim,
+que
+queres tu que eu te fa&ccedil;a?
+<br />
+
+<br />
+
+Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem,
+com mais pompa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu tenho a certeza que se vossa excellencia
+lhe fallasse...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor sorriu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu posso receitar &aacute; rapariga <em>este ou
+aquelle
+xarope</em>, mas n&atilde;o lhe posso imp&ocirc;r
+<em>este ou aquelle homem</em>!
+Queres que lhe v&aacute; dizer: &laquo;A menina ha de
+preferir aqui o snr. Jo&atilde;o Eduardo?&raquo; Queres que
+v&aacute;
+dizer ao padre, um magan&atilde;o que eu nunca vi: &laquo;O
+senhor faz favor de n&atilde;o seduzir esta menina?&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me
+como um homem de maus costumes, um
+patife...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o te calumniaram. Sob o ponto de vista
+do padre e d'aquellas senhoras que jogam &aacute; noite
+o quino na rua da Misericordia tu &eacute;s um patife:
+um christ&atilde;o que nos periodicos vitupera abbades, conegos,
+curas, personagens t&atilde;o importantes para se
+communicar com Deus e para se salvar a alma, &eacute;
+um patife. N&atilde;o te calumniaram, amigo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas, senhor doutor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em
+obediencia &aacute;s instruc&ccedil;&otilde;es do senhor
+padre fulano ou
+sicrano, comporta-se como uma boa catholica. &Eacute; o
+que te digo. Toda a vida do bom catholico, os seus
+pensamentos, as suas id&eacute;as, os seus sentimentos, as
+<span class="pagenum">[325]</span>
+suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas
+noites, as suas rela&ccedil;&otilde;es de familia e de
+visinhan&ccedil;a,
+os pratos do seu jantar, o seu vestuario e os seus
+divertimentos&mdash;tudo isto &eacute; regulado pela auctoridade
+ecclesiastica (abbade, bispo ou conego), approvado
+ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado
+pelo <em>director da consciencia</em>. O bom
+catholico,
+como a tua pequena, n&atilde;o se pertence; n&atilde;o tem
+raz&atilde;o, nem vontade, nem arbitrio, nem sentir proprio;
+o seu cura pensa, quer, determina, sente por
+ella. O seu unico trabalho n'este mundo, que &eacute; ao
+mesmo tempo o seu unico direito e o seu unico dever,
+&eacute; aceitar esta direc&ccedil;&atilde;o; aceital-a sem
+a discutir;
+obedecer-lhe, d&ecirc; por onde der; se ella contraria
+as suas id&eacute;as, deve pensar que as suas id&eacute;as
+s&atilde;o
+falsas; se ella fere as suas affei&ccedil;&otilde;es, deve
+pensar
+que as suas affei&ccedil;&otilde;es s&atilde;o culpadas.
+Dado isto, se o
+padre disse &aacute; pequena que n&atilde;o devia nem casar,
+nem sequer fallar comtigo, a creatura prova, obedecendo-lhe,
+que &eacute; uma boa catholica, uma devota consequente,
+e que segue na vida, logicamente, a regra
+moral que escolheu. Aqui est&aacute;, e desculpa o
+serm&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo ouvia com respeito, com espanto
+estas phrases, a que a face placida, a bella barba grisalha
+do doutor davam uma auctoridade maior. Parecia-lhe
+agora quasi impossivel recuperar Amelia,
+se ella pertencia assim t&atilde;o absolutamente, alma e
+sentidos, ao padre que a confessava. Mas emfim,
+porque era elle considerado um marido prejudicial?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem
+<span class="pagenum">[326]</span>
+de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me
+bem; eu n&atilde;o fa&ccedil;o sen&atilde;o trabalhar; eu
+n&atilde;o frequento
+tabernas nem tro&ccedil;as; eu n&atilde;o bebo, eu
+n&atilde;o
+j&oacute;go; as minhas noites passo-as na rua da Misericordia,
+ou em casa a fazer ser&atilde;o para o cartorio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Meu rapaz, tu p&oacute;des ter socialmente todas as
+virtudes; mas, segundo a religi&atilde;o de nossos paes,
+todas as virtudes que n&atilde;o s&atilde;o catholicas
+s&atilde;o inuteis
+e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo,
+verdadeiro, s&atilde;o grandes virtudes; mas para os padres
+e para a Igreja n&atilde;o contam. Se tu f&ocirc;res um
+modelo de bondade mas n&atilde;o f&ocirc;res &aacute;
+missa, n&atilde;o jejuares,
+n&atilde;o te confessares, n&atilde;o te desbarretares para
+o senhor cura&mdash;&eacute;s simplesmente um maroto. Outros
+personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita
+e cuja regra de vida foi impeccavel, t&ecirc;m sido
+julgados verdadeiros canalhas porque n&atilde;o foram
+baptisados antes de ter sido perfeitos. Has de ter
+ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado Plat&atilde;o,
+de Cat&atilde;o, etc... Foram sujeitos famosos pelas
+suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que &eacute; o grande
+chav&atilde;o da doutrina, disse que das virtudes d'esses
+homens estava cheio o inferno... Isto prova que
+a moral catholica &eacute; differente da moral natural e da
+moral social... Mas s&atilde;o coisas que tu comprehendes
+mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a
+doutrina catholica, um dos grandes desavergonhados
+que passeiam as ruas da cidade; e o meu visinho
+Peixoto, que matou a mulher com pancadas e
+que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma
+<span class="pagenum">[327]</span>
+filhita de dez annos, &eacute; entre o clero um homem excellente
+porque cumpre os seus deveres de devoto
+e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo, estas
+coisas s&atilde;o assim. E parece que s&atilde;o boas, porque
+ha milhares de pessoas respeitaveis que as consideram
+boas, o Estado mantem-as, gasta at&eacute; um dinheir&atilde;o
+para as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as&mdash;e
+eu, que estou aqui a fallar, pago todos
+os annos um quartinho para que ellas continuem a
+ser assim. Tu naturalmente pagas menos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pago sete vintens, senhor doutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas emfim vaes &aacute;s festas, ouves musica, serm&atilde;o,
+desforras-te dos teus sete vintens. Eu, o meu
+quartinho perco-o; consolo-me apenas com a id&eacute;a
+de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja&mdash;da
+Igreja que em vida me considera um bandido, e
+que para depois de morto me tem preparado um inferno
+de primeira classe. Emfim, parece-me que temos
+cavaqueando bastante... Que queres mais?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava
+o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que
+se um homem de palavras t&atilde;o sabias, de tantas
+id&eacute;as, se interessasse por elle, toda a intriga seria
+facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu logar
+na rua da Misericordia recobrados para sempre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o vossa excellencia n&atilde;o p&oacute;de
+fazer nada
+por mim? disse muito desconsolado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia.
+Tens outra pneumonia a curar? N&atilde;o? Ent&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo suspirou:
+<span class="pagenum">[328]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sou uma victima, senhor doutor!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fazes mal. N&atilde;o deve haver victimas, quando
+n&atilde;o seja sen&atilde;o para impedir que haja
+tyrannos&mdash;disse
+o doutor, pondo o seu largo chap&eacute;o desabado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porque no fim de tudo, exclamou ainda Jo&atilde;o
+Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguid&atilde;o
+d'afogado, no fim de tudo o que o patife do
+parocho quer, com todos os seus pretextos, &eacute; a rapariga!
+Se ella fosse um camafeu, bem se importava
+o maroto que eu fosse um impio ou n&atilde;o! O que
+elle quer &eacute; a rapariga!
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor encolheu os hombros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; natural, coitado&mdash;disse, j&aacute; com a
+m&atilde;o no
+fecho da porta. Que queres tu? Elle tem para as
+mulheres, como homem, paix&otilde;es e org&atilde;os; como
+confessor, a importancia d'um Deus. &Eacute; evidente que
+ha de utilisar essa importancia para satisfazer essas
+paix&otilde;es; e que ha de cobrir essa
+satisfa&ccedil;&atilde;o natural
+com as apparencias e com os pretextos do servi&ccedil;o
+divino... &Eacute; natural.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo ent&atilde;o, vendo-o abrir a porta,
+desvanecer-se
+a esperan&ccedil;a que o trouxera alli, disse,
+furioso, vergastando o ar com o chap&eacute;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Canalha de padres! Foi ra&ccedil;a que sempre detestei!
+Queria-a v&ecirc;r varrida da face da terra, senhor
+doutor!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; outra tolice, disse o doutor, resignando-se
+a escutal-o ainda, e parando &aacute; porta do quarto.
+Ouve l&aacute;. Tu cr&ecirc;s em Deus? no Deus do
+c&eacute;o, no Deus
+<span class="pagenum">[329]</span>
+que l&aacute; est&aacute; no alto do c&eacute;o, e que
+&eacute; l&aacute; de cima o
+principio de toda a justi&ccedil;a e de toda a verdade?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, surprehendido, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu creio, sim senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E no peccado original?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tambem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na vida futura, na redemp&ccedil;&atilde;o, etc?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fui educado n'essas cren&ccedil;as...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o para que queres varrer os padres da
+face da terra? Deves pelo contrario ainda achar que
+s&atilde;o poucos. &Eacute;s um liberal racionalista nos
+limites da
+Carta, ao que vejo... Mas se cr&ecirc;s no Deus do c&eacute;o,
+que nos dirige l&aacute; de cima, e no peccado original, e
+na vida futura, precisas d'uma classe de sacerdotes
+que te expliquem a doutrina e a moral revelada de
+Deus, que te ajudem a purificar da macula original
+e te preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas
+dos padres. E parece-me mesmo uma terrivel falta
+de logica que os desacredites pela imprensa...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, attonito, balbuciou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas vossa excellencia, senhor doutor... Desculpe-me
+vossa excellencia, mas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dize, homem. Eu qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa excellencia n&atilde;o precisa dos padres n'este
+mundo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nem no outro. Eu n&atilde;o preciso dos padres no
+mundo, porque n&atilde;o preciso do Deus do c&eacute;o. Isto
+quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro
+em mim, isto &eacute;, o principio que dirige as minhas
+ac&ccedil;&otilde;es e os meus juizos. Vulgo Consciencia...
+Talvez
+<span class="pagenum">[330]</span>
+n&atilde;o comprehendas bem... O facto &eacute; que estou
+aqui a exp&ocirc;r doutrinas subversivas... E realmente
+s&atilde;o tres horas...
+<br />
+
+<br />
+
+E mostrou-lhe o <em>cebol&atilde;o</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; porta do pateo, Jo&atilde;o Eduardo disse-lhe ainda:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa excellencia ent&atilde;o desculpe, senhor doutor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o ha de qu&ecirc;... Manda a rua da Misericordia
+ao diabo!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo interrompeu com calor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; bom de dizer, senhor doutor, mas
+quando a paix&atilde;o est&aacute; a roer c&aacute; por
+dentro!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! fez o doutor, &eacute; uma bella e grande coisa
+a paix&atilde;o! O amor &eacute; uma das grandes
+for&ccedil;as da
+civilisa&ccedil;&atilde;o. Bem dirigida levanta um mundo e
+bastava
+para nos fazer a revolu&ccedil;&atilde;o moral...&mdash;E mudando
+de tom:&mdash;Mas escuta. Olha que isso &aacute;s vezes
+n&atilde;o &eacute; paix&atilde;o, n&atilde;o
+est&aacute; no cora&ccedil;&atilde;o... O
+cora&ccedil;&atilde;o
+&eacute; ordinariamente um termo de que nos servimos,
+por decencia, para designar outro org&atilde;o. &Eacute;
+precisamente
+esse org&atilde;o o unico que est&aacute; interessado, a
+maior parte das vezes, em quest&otilde;es de sentimento.
+E n'esses casos o desgosto n&atilde;o dura. Adeus, estimo
+que seja isso!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro.
+Sentia-se enervado, todo cansado da noite
+desesperada que pass&aacute;ra, d'aquella manh&atilde; cheia de
+passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e
+do doutor Gouv&ecirc;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acabou-se, pensava, n&atilde;o posso fazer mais nada!
+&Eacute; aguentar.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha a alma extenuada de tantos esfor&ccedil;os de
+paix&atilde;o, d'esperan&ccedil;a e de c&oacute;lera.
+Desejaria ir estirar-se
+ao comprido, n'um sitio isolado, longe de advogados,
+de mulheres e de padres, e dormir durante
+mezes. Mas como j&aacute; passava das tres horas, apressava-se
+para o cartorio do Nunes. Teria talvez ainda
+de ouvir um serm&atilde;o por ter chegado t&atilde;o tarde!
+Triste
+vida a sua!
+<br />
+
+<br />
+
+Dobr&aacute;ra a esquina no Terreiro, quando ao p&eacute; da
+<span class="pagenum">[332]</span>
+casa de pasto do Osorio se encontrou com um mo&ccedil;o
+de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito
+larga, e com um bigodinho t&atilde;o preto que parecia
+posti&ccedil;o sobre as suas fei&ccedil;&otilde;es
+extremamente pallidas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute;l&eacute;! Que &eacute; feito, Jo&atilde;o
+Eduardo?
+<br />
+
+<br />
+
+Era um Gustavo, typographo da <em>Voz do
+Districto</em>,
+que havia dois mezes f&ocirc;ra para Lisboa. Segundo dizia
+o Agostinho, era &laquo;rapaz de cabe&ccedil;a e instruidote,
+mas d'id&eacute;as do diabo&raquo;. Escrevia &aacute;s
+vezes artigos de
+Politica Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas
+e retumbantes, amaldi&ccedil;oando Napole&atilde;o III, o czar
+e os oppressores do povo, chorando a escravid&atilde;o da
+Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre
+elle e Jo&atilde;o Eduardo proviera de conversas sobre
+religi&atilde;o,
+em que ambos exhalavam o seu odio ao clero
+e a sua admira&ccedil;&atilde;o por Jesus Christo. A
+revolu&ccedil;&atilde;o
+d'Hespanha enthusiasm&aacute;ra-o tanto que aspir&aacute;ra
+a pertencer &aacute; Internacional; e o desejo de viver
+n'um centro operario, onde houvesse associa&ccedil;&otilde;es,
+discursos e fraternidade, lev&aacute;ra-o a Lisboa.
+Encontr&aacute;ra
+l&aacute; bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava
+a m&atilde;i, velha e doente, e como era mais economico
+viverem juntos, volt&aacute;ra a Leiria. O
+<em>Districto</em>,
+al&eacute;m d'isso, na perspectiva
+d'elei&ccedil;&otilde;es, prosperava a
+ponto de augmentar o salario aos tres typographos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De modo que l&aacute; estou outra vez com o rachitico...
+<br />
+
+<br />
+
+Vinha jantar, e convidou logo Jo&atilde;o Eduardo a
+que lhe fizesse companhia. N&atilde;o havia d'acabar o
+mundo, que diabo, por elle faltar um dia ao cartorio!
+<span class="pagenum">[333]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo ent&atilde;o lembrou-se que desde a vespera
+n&atilde;o tinha comido. Era talvez a debilidade que
+o trouxera assim estonteado, t&atilde;o prompto a desanimar...
+Decidiu-se logo&mdash;contente, depois das emo&ccedil;&otilde;es
+e das fadigas da manh&atilde;, de se estirar no banco
+da taberna, diante d'um prato cheio, na intimidade
+com um camarada d'odios iguaes aos seus. Demais,
+os repell&otilde;es que soffrera davam-lhe uma necessidade,
+uma avidez de sympathia; e foi com calor
+que disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, valeu! Caes-me do c&eacute;o! Este mundo
+&eacute; uma choldra. Se n&atilde;o fosse por alguma hora
+que se passa em amizade, caramba, n&atilde;o valia a pena
+andar por c&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Este modo, t&atilde;o novo no Jo&atilde;o Eduardo, no
+<em>P&acirc;catinho</em>,
+espantou Gustavo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porqu&ecirc;? As coisas n&atilde;o correm bem? Turras
+com a besta do Nunes, hein? perguntou-lhe.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o. Um bocado de
+<em>spleen</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso de <em>spleen</em> &eacute;
+d'inglez! Oh menino, havias
+de v&ecirc;r o Taborda no <em>Amor
+londrino</em>!... Deixa l&aacute; o
+<em>spleen</em>. &Eacute; deitar lastro
+para dentro e carregar no liquido!
+<br />
+
+<br />
+
+Travou-lhe do bra&ccedil;o, metteu-o pela porta da taberna.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva o tio Osorio! Saude e fraternidade!
+<br />
+
+<br />
+
+O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem
+obeso e contente da vida, com as mangas da
+camisa arrega&ccedil;adas at&eacute; aos hombros, os
+bra&ccedil;os n&uacute;s
+muito brancos apoiados sobre o balc&atilde;o, a face balofa
+<span class="pagenum">[334]</span>
+e finoria, felicitou logo Gustavo de o v&ecirc;r de novo em
+Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das
+m&aacute;s aguas de Lisboa e do muito <em>pau
+campeche</em> nos
+vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo, plantando-se diante do contador, de chap&eacute;o
+para a nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que
+tanto o enthusiasm&aacute;ra em Lisboa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tio Osorio, sirva-nos figado de rei, com rim
+grelhado de padre!
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Osorio, prompto &aacute; r&eacute;plica, disse logo,
+dando
+um rasp&atilde;o de rodilha sobre o zinco do contador:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o temos c&aacute; d'isso, snr. Gustavo. Isso
+&eacute; petisco
+da capital.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o est&atilde;o voss&ecirc;s muito atrazados!
+Em Lisboa
+era todos os dias o meu almo&ccedil;o... Bem, acabou-se,
+d&ecirc;-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho,
+isso!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;H&atilde;o de ser servidos como amigos.
+<br />
+
+<br />
+
+Accommodaram-se &aacute; &laquo;mesa dos
+envergonhados&raquo;,
+entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina
+de chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo,
+&laquo;mo&ccedil;o instruido e de pouca
+tro&ccedil;a&raquo;, veio elle mesmo
+trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando
+os copos ao avental enxovalhado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que ha de novo pela capital, snr. Gustavo?
+Como vai por l&aacute; aquillo?
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo deu immediatamente seriedade ao
+rosto; passou a m&atilde;o pelos cabellos, e deixou cahir
+algumas phrases enigmaticas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tremidito... Muito pouca vergonha em politica...
+<span class="pagenum">[335]</span>
+A classe operaria come&ccedil;a a mexer-se... Falta
+d'uni&atilde;o, por ora... Est&aacute;-se &aacute; espera
+de v&ecirc;r como as
+coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas!
+Tudo depende d'Hespanha ...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o tio Osorio, que junt&aacute;ra alguns vintens e
+compr&aacute;ra uma fazenda, tinha horror a tumultos...
+O que se queria no paiz era paz... Sobretudo o que
+lhe desagradava era contar-se com hespanhoes...
+De Hespanha, deviam os cavalheiros sabel-o, &laquo;nem
+bom vento nem bom casamento&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Os povos s&atilde;o todos irm&atilde;os! exclamou Gustavo.
+Quando se tratar d'atirar abaixo Bourbons e imperadores,
+camarilhas e fidalguia, n&atilde;o ha portuguezes
+nem hespanhoes, todos s&atilde;o irm&atilde;os! Tudo
+&eacute; fraternidade,
+tio Osorio!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois ent&atilde;o &eacute; beber-lhe &aacute; saude, e
+beber-lhe
+rijo, que isso &eacute; que faz andar o negocio, disse o tio
+Osorio tranquillamente, rolando a sua obesidade para
+f&oacute;ra do cubiculo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Elephante! rosnou o typographo, chocado
+com aquella indifferen&ccedil;a pela Fraternidade dos Povos.
+Que se podia esperar, de resto, d'um proprietario
+e d'um agente d'elei&ccedil;&otilde;es?
+<br />
+
+<br />
+
+Trauteou a <em>Marselheza</em>, enchendo os
+copos d'alto,
+e quiz saber o que tinha feito o amigo Jo&atilde;o
+Eduardo... J&aacute; se n&atilde;o ia pelo
+<em>Districto</em>? O rachitico
+dissera-lhe que n&atilde;o havia despegal-o da rua da
+Misericordia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E quando &eacute; esse casamento, por fim?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo c&oacute;rou, disse vagamente:
+<span class="pagenum">[336]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada decidido... Tem havido difficuldades.&mdash;E
+acrescentou com um sorriso desconsolado:&mdash;Temos
+tido arrufos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pieguices! soltou o typographo, com um movimento
+d'hombros, que exprimia um desdem de
+revolucionario pelas frivolidades do sentimento.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pieguices... N&atilde;o sei se s&atilde;o pieguices, disse
+Jo&atilde;o Eduardo. O que sei &eacute; que d&atilde;o
+desgostos... Arrasam
+um homem, Gustavo...
+<br />
+
+<br />
+
+Calou-se, mordendo o bei&ccedil;o, para recalcar a
+emo&ccedil;&atilde;o que o revolvia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o typographo achava todas essas historias de
+mulheres ridiculas. O tempo n&atilde;o estava para amores...
+O homem do povo, o operario que se agarrava
+a uma saia para n&atilde;o despegar, era um inutil...
+era um vendido! Em que se devia pensar n&atilde;o era
+em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar
+o trabalho das garras do capital, acabar com os
+monopolios, trabalhar para a republica! N&atilde;o se queria
+lamuria, queria-se ac&ccedil;&atilde;o, queria-se a
+for&ccedil;a!&mdash;E
+carregava furiosamente no <em>r</em> da
+palavra&mdash;a forrr&ccedil;a!&mdash;agitando
+os seus pulsos magrissimos de tisico sobre
+o grande prato d'iscas que o mo&ccedil;o trouxera.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo
+em que o typographo, doido pela Julia padeira,
+apparecia sempre com os olhos vermelhos como carv&otilde;es,
+e atroava a typographia com suspiros medonhos.
+A cada <em>ai</em> os camaradas,
+tro&ccedil;ando, davam
+uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo
+e o Medeiros tinham-se esmurrado no pateo...
+<span class="pagenum">[337]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha quem falla! disse por fim. &Eacute;s como os
+outros... Est&aacute;s ahi a palrar, e quando te chega
+&eacute;s
+como os outros.
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo ent&atilde;o&mdash;que, desde que em Lisboa
+frequent&aacute;ra um Club democratico d'Alcantara e
+ajud&aacute;ra
+a redigir um manifesto aos irm&atilde;os cigarreiros
+em <em>gr&egrave;ve</em>, se considerava
+exclusivamente votado ao
+servi&ccedil;o do Proletariado e da Republica&mdash;escandalisou-se.
+Elle? Elle como os outros? Perder o seu tempo
+com saias?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; vossa senhoria muito enganado!&mdash;E recolheu-se
+a um silencio chocado, partindo com furor
+a sua isca.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo receou tel-o offendido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Gustavo, sejamos razoaveis: um homem
+p&oacute;de ter os seus principios, trabalhar pela sua causa,
+mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma fam&iacute;lia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca! exclamou o typographo exaltado. O
+homem que casa est&aacute; perdido! D'ahi por diante &eacute;
+ganhar a papa, n&atilde;o se mexer do buraco, n&atilde;o ter um
+momento para os amigos, passear de noite os marmanjos
+quando elles berram com os dentes... &Eacute; um
+inutil! &eacute; um vendido! As mulheres n&atilde;o entendem
+nada de politica. T&ecirc;m medo que o homem se metta
+em barulhos, tenha turras com a policia... Est&aacute; um
+patriota atado de p&eacute;s e m&atilde;os! E quando ha um
+segredo
+a guardar? O homem casado n&atilde;o p&oacute;de guardar
+um segredo!... E ahi est&aacute; &aacute;s vezes uma
+revolu&ccedil;&atilde;o
+compremettida... S&ecirc;bo p'r'&aacute; familia! Outra de
+azeitonas, tio Osorio!
+<span class="pagenum">[338]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A pansa do tio Osorio appareceu entre os tabiques.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o que est&atilde;o os senhores aqui a questionar,
+que parece que entraram os da <em>Maia</em>
+no conselho
+de districto?
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de perna
+estirada, e interpellando-o d'alto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O tio Osorio &eacute; que vai dizer. Diga l&aacute; o amigo.
+Vossemec&ecirc; era homem de mudar as suas opini&otilde;es
+politicas para fazer a vontade &aacute; sua patr&ocirc;a?
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Osorio acariciou o cacha&ccedil;o e disse com
+um tom finorio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres
+s&atilde;o mais espertas que n&oacute;s... E em politica, como
+em negocio, quem f&ocirc;r com o que ellas dizem vai
+pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se
+quer que lhe diga, j&aacute; vai em vinte annos e n&atilde;o me
+tenho achado mal.
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo pulou no banco:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; &eacute; um vendido! gritou.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Osorio, acostumado &aacute;quella express&atilde;o
+querida
+do typographo, n&atilde;o se escandilisou; gracejou
+at&eacute;, com o seu amor &aacute;s boas r&eacute;plicas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vendido n&atilde;o direi, mas vendedor p'r'&oacute; que
+quizer... Pois &eacute; o que lhe digo, snr. Gustavo. O senhor
+casar&aacute;, e depois m'as contar&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que lhe hei de contar, &eacute; quando houver
+uma revolu&ccedil;&atilde;o, entrar-lhe por aqui d'espingarda
+ao
+hombro, e mettel-o em conselho de guerra, seu capitalista!
+<span class="pagenum">[339]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois emquanto isso n&atilde;o chega &eacute; beber-lhe e
+beber-lhe rijo, disse o tio Osorio retirando-se com
+pachorra.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hippopotamo! resmungou o typographo.
+<br />
+
+<br />
+
+E, como adorava discuss&otilde;es, recome&ccedil;ou
+logo&mdash;sustentando
+que o homem, embei&ccedil;ado por uma saia,
+n&atilde;o tem firmeza nas suas convic&ccedil;&otilde;es
+politicas...
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo sorria tristemente, n'uma
+nega&ccedil;&atilde;o
+muda, pensando comsigo que, apesar da sua paix&atilde;o
+por Amelia, n&atilde;o se tinha confessado nos dois ultimos
+annos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho provas! berrava Gustavo.
+<br />
+
+<br />
+
+Citou um livre-pensador das suas rela&ccedil;&otilde;es que,
+para manter a paz domestica, se sujeitava a jejuar
+&aacute;s sextas-feiras, e a palmilhar aos domingos o caminho
+da capella de ripan&ccedil;o debaixo do bra&ccedil;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; o que te ha de succeder!... Tu tens id&eacute;as
+menos m&aacute;s a respeito de religi&atilde;o, mas ainda te
+hei
+de v&ecirc;r d'opa vermelha e cirio na m&atilde;o na
+prociss&atilde;o
+do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo n&atilde;o
+custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes...
+Mas pratical-os em familia, quando se tem
+uma mulher bonita e devota, &eacute; o diabo! &Eacute; o que te
+ha de succeder, se &eacute; que te n&atilde;o vai succedendo
+j&aacute;:
+has de atirar as tuas convic&ccedil;&otilde;es liberaes para o
+caix&atilde;o
+do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo fazia-se escarlate de
+indigna&ccedil;&atilde;o.
+Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha
+Amelia certa, aquella accusa&ccedil;&atilde;o (que o typographo
+fazia s&oacute; para questionar, para palrar) tel-o-hia
+escandalisado.
+<span class="pagenum">[340]</span>
+Mas hoje! Justamente quando elle perdera
+Amelia por ter dito d'alto, n'um jornal, o seu
+horror a beatos! Hoje que se achava alli, com o
+cora&ccedil;&atilde;o
+partido, roubado de toda a alegria, exactamente
+pelas suas opini&otilde;es liberaes!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso dito a mim tem gra&ccedil;a! disse com uma
+amargura sombria.
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo galhofou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, n&atilde;o me constou ainda que fosses um
+<em>martyr da liberdade</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Por quem &eacute;s n&atilde;o me apoquentes, Gustavo, disse
+o escrevente muito chocado. Tu n&atilde;o sabes o que
+se tem passado. Se soubesses n&atilde;o me dizias isso...
+<br />
+
+<br />
+
+Contou-lhe ent&atilde;o a historia do
+<em>Communicado</em>&mdash;calando
+todavia que o escrevera n'um fogo de ciumes,
+e apresentando-o como uma pura affirma&ccedil;&atilde;o
+de principios... E que notasse esta circumstancia,
+ia ent&atilde;o casar com uma rapariga devota, n'uma casa
+que era mais frequentada por padres que a sacristia
+da S&eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E assignaste? perguntou Gustavo, espantado
+da revela&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O doutor Godinho n&atilde;o quiz, disse o escrevente
+c&oacute;rando um pouco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E d&eacute;ste-lhes uma desanda, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A todos, de rachar!
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo, enthusiasmado, berrou por &laquo;outra
+de tinto&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Encheu os copos com transporte, bebeu uma
+grande saude a Jo&atilde;o Eduardo.
+<span class="pagenum">[341]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Caramba, quero v&ecirc;r isso! Quero mandal-o &aacute;
+rapaziada em Lisboa!... E que effeito fez?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um escandalo mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E os padrecas?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em braza!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas como souberam que eras tu?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho
+n&atilde;o o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho,
+que o sabia pelo marido, e que o f&ocirc;ra metter no bico
+do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio
+da rua das Therezas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um gordo, que parece hydropico?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que b&ecirc;sta! rugiu o typographo com rancor.
+<br />
+
+<br />
+
+Olhava agora Jo&atilde;o Eduardo com respeito, aquelle
+Jo&atilde;o Eduardo que se lhe revelava inesperadamente
+um paladino do livre-pensamento.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bebe, amigo, bebe!&mdash;dizia-lhe, enchendo-lhe
+o copo com affecto, como se aquelle esfor&ccedil;o heroico
+de liberalismo necessitasse ainda, depois de
+tantos dias, reconfortos excepcionaes.
+<br />
+
+<br />
+
+E que se tinha passado? Que tinha dito a gente
+da rua da Misericordia?
+<br />
+
+<br />
+
+Tanto interesse commoveu Jo&atilde;o Eduardo: e d'um
+f&ocirc;lego fez a sua confidencia. Mostrou-lhe mesmo a
+carta d'Amelia que ella decerto, coitada, f&ocirc;ra levada
+a escrever n'um terror do inferno, sob a press&atilde;o dos
+padres furiosos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E aqui tens a victima que eu sou, Gustavo!
+<br />
+
+<br />
+
+Era-o com effeito; e o typographo considerava-o
+<span class="pagenum">[342]</span>
+com uma admira&ccedil;&atilde;o crescente. J&aacute;
+n&atilde;o era o <em>Pacatinho</em>,
+o escrevente do Nunes, o chichisb&eacute;o da rua
+da Misericordia&mdash;era uma <em>victima das
+persegui&ccedil;&otilde;es
+religiosas</em>. Era a primeira que o typographo via; e,
+apesar de n&atilde;o lhe apparecer na attitude tradicional
+das estampas de propaganda, amarrado a um poste
+de fogueira ou fugindo com a familia espavorida a
+soldados que galopam da sombra do ultimo plano,
+achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente
+aquella honra social. Que <em>chic</em> que
+lhe daria a elle
+entre a rapaziada d'Alcantara! Famosa pechincha, ser
+uma <em>victima da
+reac&ccedil;&atilde;o</em> sem perder o conforto
+das
+iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!&mdash;Mas
+sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o!
+Para se vingarem d'um liberal, intrigarem-no,
+tiraram-lhe a noiva!&mdash;Oh, que canalha!... E
+esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e &aacute;
+Familia, trovejou d'alto contra o clero, que &eacute; quem
+sempre destroe essa institui&ccedil;&atilde;o social, perfeita,
+d'origem
+divina!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso precisa uma vingan&ccedil;a medonha, menino!
+&Eacute; necessario arrasal-os!
+<br />
+
+<br />
+
+Uma vingan&ccedil;a? Jo&atilde;o Eduardo desejava-a,
+vorazmente!
+Mas qual?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual? Contar tudo no <em>Districto</em>,
+n'um artigo
+tremendo!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho:
+d'alli por diante o <em>Districto</em> estava
+fechado
+aos senhores livre-pensadores!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cavalgadura! rugiu o typographo.
+<span class="pagenum">[343]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas tinha uma id&eacute;a, caramba! Publicar um folheto!
+Um folheto de vinte paginas, o que se chama
+no Brazil uma <em>mofina</em>, mas n'um
+estylo floreado
+(elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero
+com um desabamento de verdades mortaes!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella
+sympathia activa de Gustavo, vendo n'elle um irm&atilde;o,
+soltou as ultimas confidencias, as mais dolorosas.
+O que havia no fundo da intriga era a paix&atilde;o
+do padre Amaro pela pequena, e era para se apoderar
+d'ella que o escorra&ccedil;ava a elle... O inimigo,
+o malvado, o carrasco&mdash;era o parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo apertou as m&atilde;os na cabe&ccedil;a:
+semelhante
+caso (que todavia era para elle trivial, nas locaes
+que compunha) succedido a um amigo seu que
+estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe
+monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores
+de Tiberio na velhice, violando, em banhos perfumados,
+as carnes delicadas de mancebos patricios.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o queria acreditar. Jo&atilde;o Eduardo accumulou
+as provas. E ent&atilde;o Gustavo, que tinha molhado vastamente
+de tinta as iscas de figado, ergueu os punhos
+fechados, e com a face entumecida, dente rilhado,
+berrou em rouco:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Abaixo a religi&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou
+em r&eacute;plica:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva Pio Nono!
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido.
+Mas Jo&atilde;o Eduardo socegou-o. E o typographo,
+<span class="pagenum"><a name="p344" id="p344">[344]</a></span>
+sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo
+do copo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, com os cotov&ecirc;los sobre a mesa, a garrafa
+entre elles, conversaram baixo, de rosto a rosto,
+sobre o plano do folheto. A coisa era facil: escrevel-o-hiam
+ambos. Jo&atilde;o Eduardo queria-o em f&oacute;rma
+de romance, d'enredo negro, dando ao personagem
+do parocho os vicios e as perversidades de Caligula
+e d'Hellogabalo. O typographo por&eacute;m queria um livro
+philosophico, de estylo e de principios, que <a href="#e5">demolisse</a>
+d'uma vez para sempre o Ultramontanismo!
+Elle mesmo se encarregava de imprimir a obra aos
+ser&otilde;es, <em>gratis</em>,
+j&aacute; se sabe.&mdash;Mas appareceu-lhes ent&atilde;o,
+bruscamente, uma difficuldade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O papel? Como se ha de arranjar o papel?
+<br />
+
+<br />
+
+Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum
+os tinha&mdash;nem um amigo que, por dedica&ccedil;&atilde;o
+aos principios, lh'os adiantasse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado!
+lembrou vivamente o typographo.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo co&ccedil;ou desconsoladamente a
+cabe&ccedil;a.
+Estava justamente pensando no Nunes e na sua
+indigna&ccedil;&atilde;o de devoto, de membro da junta de
+parochia,
+d'amigo do chantre, apenas l&ecirc;sse o pamphleto!
+E se soubesse que era o seu escrevente que o
+compuzera, com as pennas do cartorio, no papel alma&ccedil;o
+do cartorio... Via-o j&aacute; r&ocirc;xo de c&oacute;lera,
+al&ccedil;ando
+sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa
+gordalhufa, e gritando na voz de grillo:&mdash;&laquo;F&oacute;ra
+d'aqui, pedreiro-livre, f&oacute;ra d'aqui!&raquo;
+<span class="pagenum">[345]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ficava eu bem arranjado, disse Jo&atilde;o Eduardo
+muito s&eacute;rio, nem mulher nem p&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Isto fez lembrar tambem a Gustavo a c&oacute;lera provavel
+do doutor Godinho, dono da typographia. O
+doutor Godinho, que depois da reconcilia&ccedil;&atilde;o com a
+gente da rua da Misericordia, retom&aacute;ra publicamente
+a sua consideravel posi&ccedil;&atilde;o de pilar da Igreja e
+esteio da F&eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o diabo, p&oacute;de-nos sahir caro, disse elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; impossivel! disse o escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o praguejaram de raiva. Perder uma occasi&atilde;o
+d'aquellas para p&ocirc;r a calva &aacute; mostra ao clero!
+<br />
+
+<br />
+
+O plano do folheto, como uma columna tombada
+que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que
+estava derrubado, d'uma altura, d'uma importancia
+colossal. N&atilde;o era j&aacute; a
+demoli&ccedil;&atilde;o local d'um parocho
+scelerado, era a ruina, ao longe e ao largo, de todo
+o clero, dos jesuitas, do poder temporal, de outras
+coisas funestas...&mdash;Maldi&ccedil;&atilde;o! se n&atilde;o
+fosse o Nunes,
+se n&atilde;o fosse o Godinho, se n&atilde;o fossem os nove
+mil reis do papel...
+<br />
+
+<br />
+
+Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro
+e dependencia do patr&atilde;o, que at&eacute; para um
+folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Positivamente &eacute; necessario uma
+revolu&ccedil;&atilde;o!
+affirmou o typographo. &Eacute; necessario arrasar tudo,
+tudo!&mdash;E o seu largo gesto sobre a mesa indicava,
+n'um formidavel nivelamento social, uma demoli&ccedil;&atilde;o
+de igrejas, palacios, bancos, quarteis e predios de
+Godinhos!&mdash;Outra do tinto, tio Osorio!...
+<span class="pagenum">[346]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o tio Osorio n&atilde;o apparecia. Gustavo martellou
+a mesa a toda a for&ccedil;a com o cabo da faca. E
+emfim, furioso, sahiu f&oacute;ra ao contador &laquo;para
+arrebentar
+a pansa &aacute;quelle vendido que fazia assim esperar
+um cidad&atilde;o&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando
+com o bar&atilde;o de Via-Clara, que, em vesperas
+d'elei&ccedil;&otilde;es,
+vinha pelas casas de pasto apertar a m&atilde;o aos
+compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o
+bar&atilde;o, com a sua luneta d'ouro, os botins de verniz
+sobre o s&oacute;lo terreo, tossicando ao cheiro acre do
+azeite fervido e das emana&ccedil;&otilde;es das borras de
+vinho.
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao
+cubiculo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; com o bar&atilde;o, disse n'uma surdina
+respeitosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas vendo Jo&atilde;o Eduardo aniquilado, com a cabe&ccedil;a
+entre os punhos, o typographo exhortou-o a
+n&atilde;o esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar
+com uma beata...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu
+Jo&atilde;o Eduardo com um repell&atilde;o no prato.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o te afflijas, prometteu o typographo com
+solemnidade, que a vingan&ccedil;a n&atilde;o vem longe!
+<br />
+
+<br />
+
+Fez-lhe ent&atilde;o, baixo, a confidencia &laquo;das coisas
+que se preparavam em Lisboa&raquo;. Tinham-lhe afian&ccedil;ado
+que havia um club republicano a que at&eacute; pertenciam
+figur&otilde;es&mdash;o que era para elle uma garantia
+superior de triumpho. Al&eacute;m d'isso, a rapaziada
+do trabalho mexia-se... Elle mesmo&mdash;e murmurava
+<span class="pagenum">[347]</span>
+quasi contra a face de Jo&atilde;o Eduardo, estirado sobre
+a mesa&mdash;f&ocirc;ra fallado para pertencer a uma
+sec&ccedil;&atilde;o
+da Internacional, que devia organisar um hespanhol
+de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se disfar&ccedil;ava
+por causa da policia; e a coisa falh&aacute;ra porque o
+<em>Comit&eacute;</em> tinha falta de
+fundos... Mas era certo haver
+um homem, que possuia um talho, que promettera
+cem mil reis... O exercito, al&eacute;m d'isso, estava na
+coisa: tinha visto n'uma reuni&atilde;o um sujeito barrigudo
+que lhe tinham dito que era major, e que tinha
+cara de major...&mdash;De modo que, com todos
+estes elementos, a opini&atilde;o d'elle Gustavo, era que
+dentro de mezes, governo, rei, fidalgos, capitalistas,
+bispos, todos esses monstros iam pelos ares!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o somos n&oacute;s os reisinhos, menino!
+Godinho,
+Nunes, toda a cambada ferramol-a na enxovia
+de S. Francisco. Eu a quem me atiro &eacute; ao Godinho...
+Padres, derreamol-os &aacute; pancada! E o povo
+respira, emfim!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas d'aqui at&eacute; l&aacute;! suspirou Jo&atilde;o
+Eduardo, que
+pensava com amargura que quando a revolu&ccedil;&atilde;o
+viesse j&aacute; seria tarde para recuperar a Ameliasinha...
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Osorio ent&atilde;o appareceu com a garrafa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora at&eacute; que emfim, &laquo;seu fidalgo&raquo;!
+disse o
+typographo a trasbordar de sarcasmo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se pertence &aacute; classe, mas &eacute;-se
+tratado
+por ella com considera&ccedil;&atilde;o, replicou logo o tio
+Osorio,
+a quem a satisfa&ccedil;&atilde;o fazia parecer mais pansudo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Por causa de meia duzia de votos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dezoito na freguezia, e esperan&ccedil;as de dezenove.
+<span class="pagenum">[348]</span>
+E que se ha de servir mais aos cavalheiros? Nada
+mais? Pois &eacute; pena. Ent&atilde;o &eacute; beber-lhe,
+&eacute; beber-lhe!
+<br />
+
+<br />
+
+E correu a cortina, deixando os dois amigos em
+frente da garrafa cheia, aspirarem a uma
+Revolu&ccedil;&atilde;o
+que lhes permittisse&mdash;a um rehaver a menina Amelia,
+a outro espancar o patr&atilde;o Godinho.
+<br />
+
+<br />
+
+Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim
+do cubiculo. O tio Osorio, que se interessava por elles
+por serem rapazes d'instruc&ccedil;&atilde;o, notou logo,
+examinando-os
+do canto do balc&atilde;o onde saboreava o
+seu <em>Popular</em>, que &laquo;vinham
+tocaditos&raquo;. Jo&atilde;o Eduardo,
+sobretudo, de chap&eacute;o carregado e bei&ccedil;o trombudo:
+&laquo;pessoa de mau vinho&raquo;, pensou o tio Osorio, que
+o conhecia pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre,
+depois dos seus tres litros, resplandecia de jubilo.
+Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e
+gingando para o balc&atilde;o, batendo d'alto com as suas
+duas placas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Encafua mais essas na burra, Osorio pipa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que &eacute; pena &eacute; que sejam s&oacute; duas,
+snr. Gustavo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah bandido! imaginas que o suor do povo,
+o dinheiro do trabalho &eacute; para encher a pansa dos
+Philistinos? Mas n&atilde;o as perdes! Que no dia do ajuste
+de contas quem ha de ter a honra de te furar
+esse bandulho ha de ser c&aacute; o Bibi... E o Bibi sou
+eu... Eu &eacute; que sou o Bibi! N&atilde;o &eacute;
+verdade, Jo&atilde;o,
+quem &eacute; o Bibi?
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo n&atilde;o o escutava: muito carrancudo,
+olhava com desconfian&ccedil;a um borracho, que na mesa
+<span class="pagenum">[349]</span>
+do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo
+na palma da m&atilde;o e o cachimbo nos dentes,
+embasbac&aacute;ra,
+maravilhado, para os dois amigos.
+<br />
+
+<br />
+
+O typographo puxou-o para o balc&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dize aqui ao tio Osorio quem &eacute; o Bibi! Quem &eacute;
+o Bibi?... Olhe p'ra isto, tio Osorio! Rapaz de talento,
+e dos bons! Veja-me isto! Com duas pennadas d&aacute;
+cabo do ultramontanismo! &Eacute; c&aacute; dos meus! Tambem
+entre n&oacute;s &eacute; p'r'&aacute; vida e
+p'r'&aacute; morte. Deixa l&aacute; a conta,
+Osorio barrigudo, ouve o que te digo! Este &eacute; dos
+bons... E se elle aqui voltar e quizer dois litros a
+credito, &eacute; dar-lh'os... C&aacute; o Bibi responde por
+tudo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Temos pois, come&ccedil;ou o tio Osorio, iscas a dois,
+salada a dois...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o borracho arranc&aacute;ra-se com esfor&ccedil;o ao seu
+banco: de cachimbo espetado, arrotando forte, veio
+plantar-se diante do typographo, e, tremeleando nas
+pernas, estendeu-lhe a m&atilde;o aberta.
+<br />
+
+<br />
+
+Gustavo considerou-o d'alto, com nojo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quer voss&ecirc;? Aposto que foi voss&ecirc; que
+berrou ha pouco &laquo;Viva Pio Nono&raquo;? Seu vendido...
+Tire p'ra l&aacute; a pata!
+<br />
+
+<br />
+
+O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando
+contra Jo&atilde;o Eduardo, offereceu-lhe a m&atilde;o
+espalmada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Arrede p'ra l&aacute;, seu animal! disse-lhe o escrevente
+desabrido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava
+o borracho.
+<br />
+
+<br />
+
+E n&atilde;o se arredava, com os cinco dedos muito
+espetados, despedindo um halito fetido.
+<span class="pagenum">[350]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, furioso, atirou-o de repell&atilde;o
+contra
+o contador.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Brincadeiras de m&atilde;os, n&atilde;o! exclamou logo
+severamente
+o tio Osorio. Brutalidades, n&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que se n&atilde;o mettesse commigo, rosnou o escrevente.
+E a voss&ecirc; fa&ccedil;o-lhe o mesmo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem n&atilde;o tem decencia vai p'r'&aacute; rua, disse
+muito grave o tio Osorio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem vai p'r'&aacute; rua, quem vai p'r'&aacute; rua?
+rugiu o escrevente, empinando-se, de punho fechado.
+Repita l&aacute; isso d'ir p'r'&aacute; rua! Com quem
+est&aacute;
+voss&ecirc; a fallar?
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Osorio n&atilde;o replicava, apoiado sobre as
+m&atilde;os ao balc&atilde;o, patenteando os seus enormes
+bra&ccedil;os
+que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os
+dois, e declarou que era necessario ser-se cavalheiro!
+Quest&otilde;es e m&aacute;s palavras, n&atilde;o! Podia-se
+chalacear
+e tro&ccedil;ar os amigos, mas como cavalheiros! E
+alli s&oacute; havia cavalheiros!
+<br />
+
+<br />
+
+Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava
+muito resentido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Jo&atilde;o! oh, Jo&atilde;o! dizia-lhe com grandes
+gestos, isso n&atilde;o &eacute; d'um homem illustrado!
+<br />
+
+<br />
+
+Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras!
+Com repentes, com vinho desordeiro, n&atilde;o havia pandega,
+nem sociedade, nem fraternidade!
+<br />
+
+<br />
+
+Voltou ao tio Osorio, fallando-lhe sobre o hombro,
+excitado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu respondo por elle, Osorio! &Eacute; um cavalheiro!
+<span class="pagenum">[351]</span>
+Mas tem tido desgostos, e n&atilde;o est&aacute; acostumado
+a um litro de mais. &Eacute; o que &eacute;! Mas &eacute;
+dos bons...
+Voss&ecirc; desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por
+elle...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a
+m&atilde;o ao tio Osorio. O taberneiro declarou com emphase
+que n&atilde;o quizera insultar o cavalheiro. Os
+<em>shake-hands</em>
+ent&atilde;o succederam-se com vehemencia. Para
+consolidar a reconcilia&ccedil;&atilde;o, o typographo pagou
+tres
+&laquo;canas brancas&raquo;. Jo&atilde;o Eduardo, por brio,
+offereceu
+tambem um &laquo;giro&raquo; de cognac. E com os copos em
+fila sobre o balc&atilde;o, trocavam boas palavras, tratavam-se
+de cavalheiros&mdash;emquanto o borracho, esquecido
+ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabe&ccedil;a
+sobre os punhos e o nariz sobre o litro, se babava
+silenciosamente, com o cachimbo cravado nos
+dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;D'isto &eacute; que eu g&oacute;sto! dizia o typographo a
+quem a aguardente augment&aacute;ra a ternura. Harmonia!
+C&aacute; o meu fraco &eacute; a harmonia! Harmonia entre
+a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria
+era v&ecirc;r uma grande mesa, e toda a humanidade
+sentada n'um banquete, e fogo preso, e chala&ccedil;a, e
+decidirem-se as quest&otilde;es sociaes! E o dia n&atilde;o vem
+longe em que voss&ecirc; o ha de v&ecirc;r, tio Osorio!... Em
+Lisboa as coisas v&atilde;o-se preparando p'ra isso. E o
+tio Osorio &eacute; que ha de fornecer o vinho... Hein,
+que negociosinho! Diga que n&atilde;o sou amigo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado, snr. Gustavo, obrigado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto aqui entre n&oacute;s, hein, que somos todos
+<span class="pagenum">[352]</span>
+cavalheiros! E c&aacute; este&mdash;abra&ccedil;ava Jo&atilde;o
+Eduardo&mdash;&eacute;
+como se fosse irm&atilde;o! Entre n&oacute;s &eacute;
+p'r'&aacute; vida e
+p'r'&aacute; morte! E &eacute; mandar a tristeza ao diabo,
+rapaz!
+Toca a escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Nunes racho-o! soltou com for&ccedil;a o escrevente,
+que, depois das &laquo;saudes&raquo; com cana, parecia
+mais sombrio.
+<br />
+
+<br />
+
+Dois soldados entraram ent&atilde;o na taberna&mdash;e
+Gustavo julgou que eram horas d'ir para a typographia.
+Sen&atilde;o, n&atilde;o se haviam de separar todo o dia,
+n&atilde;o se haviam de separar toda a vida!... Mas o
+trabalho &eacute; dever, o trabalho &eacute; virtude!
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiram, emfim, depois de mais
+<em>shake-hands</em>
+com o tio Osorio. &Aacute; porta, Gustavo jurou ainda ao
+escrevente uma lealdade d'irm&atilde;o; obrigou-o a aceitar
+a sua bolsa de tabaco; e desappareceu &aacute; esquina
+da rua, de chap&eacute;o para a nuca, trauteando o
+<em>Hymno
+do trabalho</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo, s&oacute;, abalou logo para a rua da
+Misericordia.
+Ao chegar &aacute; porta da S. Joanneira, apagou
+com cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu
+um pux&atilde;o tremendo ao cord&atilde;o da campainha.
+<br />
+
+<br />
+
+A <em>Ru&ccedil;a</em> veio, correndo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A Ameliasinha? Quero-lhe fallar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As senhoras sahiram, disse a
+<em>Ru&ccedil;a</em> espantada
+do modo do snr. Jo&atilde;osinho.
+<span class="pagenum">[353]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mente, sua bebeda! berrou o escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+A rapariga, aterrada, fechou a porta d'estalo.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo foi-se encostar &aacute; parede defronte,
+e ficou alli, de bra&ccedil;os cruzados, observando a casa:
+as janellas estavam fechadas, as cortinas de cassa
+corridas: dois len&ccedil;os de rap&eacute; do conego seccavam
+em baixo na varanda.
+<br />
+
+<br />
+
+Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a
+aldrava. Depois repicou com furor a campainha.
+Ninguem appareceu: ent&atilde;o, indignado, partiu para
+os lados da S&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao desembocar no largo, diante da fachada da
+igreja, parou, procurando em redor com o sobr'olho
+carregado: mas o largo parecia deserto; &aacute; porta
+da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau,
+guardava pela arreata um burro carregado de
+herva; aqui e al&eacute;m, gallinhas iam picando o ch&atilde;o
+vorazmente; o port&atilde;o da igreja estava fechado; e
+apenas se ouvia o ruido de martelladas n'uma casa
+ao p&eacute; em que havia obras.
+<br />
+
+<br />
+
+E Jo&atilde;o Eduardo ia seguir para os lados da Alameda&mdash;quando
+appareceram no terra&ccedil;o da igreja,
+da banda da sacristia, o padre Silverio e o padre
+Amaro, conversando, devagar.
+<br />
+
+<br />
+
+Batia ent&atilde;o um quarto na torre, e o padre Silverio
+parou a acertar o seu
+<em>cebol&atilde;o</em>. Depois os dois
+padres observaram maliciosamente a janella da
+administra&ccedil;&atilde;o,
+de vidra&ccedil;as abertas, onde se via, no
+escuro, o vulto do senhor administrador de binoculo
+cravado para a casa do Telles alfaiate. E desceram
+<span class="pagenum">[354]</span>
+emfim a escadaria da S&eacute;, rindo d'hombro a
+hombro, divertidos com aquella paix&atilde;o que escandalisava
+Leiria.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que o parocho viu Jo&atilde;o Eduardo que
+estac&aacute;ra no meio do largo. Parou para voltar &aacute;
+S&eacute;
+decerto, evitar o encontro; mas viu o port&atilde;o fechado,
+e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio
+que tirava tranquillamente a sua caixa de rap&eacute;,&mdash;quando
+Jo&atilde;o Eduardo, arremessando-se, sem
+uma palavra, atirou a toda a for&ccedil;a um murro ao
+hombro d'Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho, aturdido, ergueu frouxamente o guardachuva.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acudam! berrou logo o padre Silverio, recuando
+de bra&ccedil;os no ar. Acudam!
+<br />
+
+<br />
+
+Da porta da administra&ccedil;&atilde;o um homem correu,
+agarrou furiosamente o escrevente pela gola:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; preso! rugia. Est&aacute; preso!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acudam, acudam! berrava Silverio a distancia.
+<br />
+
+<br />
+
+Janellas no largo abriam-se &aacute; pressa. A Amparo
+da botica, em saia branca, appareceu &aacute; varanda, espavorida;
+o Carlos precipit&aacute;ra-se do laboratorio em
+chinelas; e o senhor administrador, debru&ccedil;ado na
+sacada, bracejava, com o binoculo na m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim o escriv&atilde;o da administra&ccedil;&atilde;o, o
+Domingos,
+compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas:
+e com o cabo de policia levou logo para a
+administra&ccedil;&atilde;o o escrevente, que n&atilde;o
+resistia, todo
+pallido...
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor
+<span class="pagenum">[355]</span>
+parocho para a botica; fez preparar, com estrepito,
+fl&ocirc;r de laranja e ether; gritou pela esposa, para arranjar
+uma cama... Queria examinar o hombro de
+sua senhoria: haveria intumecencia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado, n&atilde;o &eacute; nada, dizia o parocho muito
+branco. N&atilde;o &eacute; nada. Foi um rasp&atilde;o.
+Basta-me uma
+gota d'agua...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho
+do Porto; e correu acima a buscar-lh'o, trope&ccedil;ando
+nos pequenos que se lhe penduravam das saias, dando
+ais, explicando pela escada &aacute; criada que tinham
+querido matar o senhor parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute; porta da botica junt&aacute;ra-se gente, que embascava
+para dentro; um dos carpinteiros que trabalhavam
+nas obras affirmava que &laquo;f&ocirc;ra uma
+facada&raquo;;
+e uma velha por traz debatia-se, de pesco&ccedil;o esticado,
+para v&ecirc;r o <em>sangue</em>. Emfim,
+a pedido do parocho,
+que receava escandalo, o Carlos veio magestosamente
+declarar que n&atilde;o queria motim &agrave; porta! O
+senhor parocho estava melhor. F&ocirc;ra apenas um s&ocirc;co,
+um rasp&atilde;o de m&atilde;o... Elle respondia por sua
+senhoria.
+<br />
+
+<br />
+
+E, como o burro ao lado come&ccedil;&aacute;ra a ornear, o
+pharmaceutico voltando-se indignado para o rapazito
+que o segurava pela arreata:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E tu n&atilde;o tens vergonha, no meio d'um desgosto
+d'estes, um desgosto para toda a cidade, de
+ficar aqui com esse animal, que n&atilde;o faz sen&atilde;o
+zurrar!
+Para longe, insolente, para longe!
+<br />
+
+<br />
+
+Aconselhou ent&atilde;o os dois sacerdotes a que subissem
+para a sala, para evitar a &laquo;curiosidade da
+popula&ccedil;a&raquo;.
+<span class="pagenum">[356]</span>
+E a boa Amparo appareceu logo com dois
+calices do Porto, um para o senhor parocho, outro
+para o senhor padre Silverio que se deix&aacute;ra cahir a
+um canto do canap&eacute;, apavorado ainda, extenuado
+d'emo&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois
+de ter chupado a ultima gota de
+<em>porto</em>, e &eacute; a
+primeira vez que me vejo n'um barulho!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, mais socegado agora, affectando
+bravura, chasqueou o padre Silverio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; tomou o caso muito ao tragico, collega...
+E l&aacute; ser a primeira, vamos l&aacute;... Todos sabem
+que o collega esteve pegado com o Natario...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era
+entre sacerdotes, amigo!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo
+outro calix ao senhor parocho, quiz saber &laquo;os particulares,
+todos os particulares...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o ha particulares, minha senhora, eu vinha
+aqui com o collega... Vinhamos cavaqueando... O
+homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido,
+deu-me um rasp&atilde;o no hombro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas porqu&ecirc;? porqu&ecirc;? exclamou a boa senhora,
+apertando as m&atilde;os, n'um assombro.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos ent&atilde;o deu a sua opini&atilde;o. Ainda havia
+dias, elle dissera, diante da Amparosinho e de D.
+Josepha, a irm&atilde; do respeitavel conego Dias, que estas
+id&eacute;as de materialismo e atheismo estavam levando
+a mocidade aos mais perniciosos excessos... E
+mal sabia elle ent&atilde;o que estava prophetisando!
+<span class="pagenum"><a name="p357" id="p357">[357]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vejam vossas senhorias este rapaz! Come&ccedil;a
+por esquecer todos os deveres de christ&atilde;o (assim
+nol-o affirmou D. Josepha), associa-se com bandidos,
+achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam
+vossas senhorias a progress&atilde;o), n&atilde;o contente
+com estes extravios, publica nos periodicos ataques
+abjectos contra a <a href="#e6">religi&atilde;o</a>...
+E emfim, possuido de
+uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo
+da cathedral, sobre um sacerdote exemplar (n&atilde;o &eacute;
+por vossa senhoria estar presente) e tenta assassinal-o!
+Ora, pergunto eu, o que ha no fundo de tudo
+isto? Odio, puro odio &aacute; religi&atilde;o de nossos paes!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<a href="#e7">Infelizmente</a> assim &eacute;,
+suspirou o padre Silverio.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Amparo, indifferente &aacute;s causas philosophicas
+do delicto, ardia na curiosidade de saber o que
+se passaria na administra&ccedil;&atilde;o, o que diria o
+escrevente,
+se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se
+logo a ir averiguar.
+<br />
+
+<br />
+
+De resto, disse elle, era o seu dever, como homem
+de sciencia, esclarecer a justi&ccedil;a sobre as consequencias
+que <a href="#e8">podia ter</a> trazido um murro, a
+for&ccedil;a de bra&ccedil;o, na regi&atilde;o delicada da
+clavicula...
+(ainda que, louvado Deus, n&atilde;o havia fractura, nem
+incha&ccedil;o), e sobretudo queria revelar &aacute;
+auctoridade,
+para que ella tomasse as suas providencias, que
+aquella tentativa d'espancamento n&atilde;o provinha de
+vingan&ccedil;a pessoal. Que podia ter feito o senhor parocho
+da S&eacute; ao escrevente do Nunes? Provinha
+d'uma vasta conspira&ccedil;&atilde;o d'atheus e republicanos
+contra o sacerdocio de Christo!
+<span class="pagenum">[358]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes
+gravemente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; o que eu vou provar cabalmente ao senhor
+administrador do concelho!
+<br />
+
+<br />
+
+Na sua precipita&ccedil;&atilde;o zelosa de conservador
+indignado,
+ia mesmo de chinelas e quinzena de laboratorio:
+mas Amparo alcan&ccedil;ou-o no corredor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, filho! a sobrecasaca, p&otilde;e a sobrecasaca
+ao menos, que o administrador &eacute; de ceremonia!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o
+Carlos, com a imagina&ccedil;&atilde;o trabalhando viva
+(aquella
+desgra&ccedil;ada imagina&ccedil;&atilde;o que, como elle
+dizia, at&eacute; &aacute;s
+vezes lhe dava d&ocirc;res de cabe&ccedil;a), ia preparando o
+seu
+depoimento, que faria ruido na cidade. Fallaria de
+p&eacute;. Na saleta da administra&ccedil;&atilde;o seria
+um apparato
+judicial: &aacute; sua mesa, o senhor administrador, grave
+como a personifica&ccedil;&atilde;o da Ordem; em redor os
+amanuenses, activos sobre o seu papel sellado; e o
+r&eacute;o, defronte, na attitude tradicional dos criminosos
+politicos, os bra&ccedil;os cruzados sobre o peito, a
+fronte alta desafiando a morte. Elle, Carlos, ent&atilde;o,
+entraria e diria: <em>Senhor administrador, aqui venho
+espontaneamente p&ocirc;r-me ao servi&ccedil;o da vindicta
+social</em>!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro,
+que &eacute; tudo resultado d'uma conspira&ccedil;&atilde;o
+do racionalismo.
+P&oacute;des estar certa, Amparosinho, &eacute; uma
+conspira&ccedil;&atilde;o do racionalismo! disse, puxando, com
+um gemido d'esfor&ccedil;o, as presilhas dos botins de
+cano.
+<span class="pagenum">[359]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E repara se elle falla da pequena, da S. Joanneira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hei de tomar notas. Mas n&atilde;o se trata da S.
+Joanneira. Isto &eacute; um processo politico!
+<br />
+
+<br />
+
+Atravessou o largo magestosamente, certo que os
+visinhos, pelas portas, murmuravam: <em>L&aacute; vai
+o Carlos
+dep&ocirc;r</em>... Ia dep&ocirc;r, sim, mas
+n&atilde;o sobre o murro no
+hombro de sua senhoria. Que importava o murro?
+O grave era o que estava por traz do murro&mdash;uma
+conspira&ccedil;&atilde;o contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a
+Propriedade! &Eacute; o que elle provaria d'alto ao senhor
+administrador. Este murro, excellentissimo senhor,
+&eacute; o primeiro excesso d'uma grande
+revolu&ccedil;&atilde;o social!
+<br />
+
+<br />
+
+E empurrando o batente de baeta que dava accesso
+para a administra&ccedil;&atilde;o do concelho de Leiria, ficou
+um momento com a m&atilde;o no ferrolho, enchendo o
+v&atilde;o da porta da pompa da sua pessoa. N&atilde;o,
+n&atilde;o havia
+o apparato judicial que elle concebera. O r&eacute;o l&aacute;
+estava, sim, pobre Jo&atilde;o Eduardo, mas sentado &aacute;
+beira do banco, com as orelhas em braza, olhando
+estupidamente o soalho. Arthur Couceiro, embara&ccedil;ado
+com a presen&ccedil;a d'aquelle intimo dos ser&otilde;es da
+S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o n&atilde;o
+olhar fix&aacute;ra o nariz sobre o immenso copiador d'officios,
+onde desdobr&aacute;ra o <em>Popular</em>
+da vespera. O amanuense
+Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito
+s&eacute;rias, embebia-se na ponta da penna de pato
+que aparava sobre a unha. O escriv&atilde;o Domingos,
+esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis rascunhava
+com furor; o processo estava-se decerto apressando;
+<span class="pagenum"><a name="p360" id="p360">[360]</a></span>
+era tempo de trazer a sua id&eacute;a... E o Carlos
+ent&atilde;o adiantando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Meus senhores! O senhor administrador?
+<br />
+
+<br />
+
+Justamente a voz de sua excellencia chamou de
+dentro do seu gabinete:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; snr. Domingos?
+<br />
+
+<br />
+
+O escriv&atilde;o perfilou-se, puxando os oculos para a
+testa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor administrador!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor tem phosphoros?
+<br />
+
+<br />
+
+O Domingos procurou anciosamente pela algibeira,
+na gaveta, entre os papeis...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Algum dos senhores tem phosphoros?
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um rebuscar de m&atilde;os sobre a mesa...
+N&atilde;o, n&atilde;o havia phosphoros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; snr. Carlos, o senhor tem phosphoros?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tenho, snr. Domingos. Sinto.
+<br />
+
+<br />
+
+O senhor administrador appareceu ent&atilde;o, ageitando
+as suas lunetas de <a href="#e9">tartaruga</a>:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ninguem tem phosphoros, hein? &Eacute; extraordinario
+que n&atilde;o haja aqui nunca phosphoros! Uma
+reparti&ccedil;&atilde;o
+d'estas sem um phosphoro... Que fazem os
+senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez
+meia duzia de caixas!
+<br />
+
+<br />
+
+Os empregados olhavam-se consternados d'essa
+falta flagrante no material do servi&ccedil;o administrativo.
+E o Carlos, apoderando-se logo da presen&ccedil;a e da
+atten&ccedil;&atilde;o de sua excellencia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui
+venho solicito e espontaneo, por assim dizer...
+<span class="pagenum">[361]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu
+a auctoridade. O parocho e o outro ainda est&atilde;o l&aacute;
+na botica?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho e o senhor padre Silverio
+ficaram com minha esposa a repousar da commo&ccedil;&atilde;o
+que...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem a bondade de lhes ir dizer que s&atilde;o c&aacute;
+precisos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu estou &aacute; disposi&ccedil;&atilde;o da lei.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que venham quanto antes... S&atilde;o cinco horas
+e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que massada
+tem sido esta aqui, todo o dia! A reparti&ccedil;&atilde;o
+fecha-se
+&aacute;s tres!
+<br />
+
+<br />
+
+E sua excellencia, rodando sobre os tac&otilde;es, foi
+debru&ccedil;ar-se &aacute; sacada do seu
+gabinete&mdash;&aacute;quella sacada
+d'onde elle diariamente, das onze &aacute;s tres, retorcendo
+o bigode louro e entesando o plastron azul,
+depravava a mulher do Telles.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos abria j&aacute; o batente verde, quando um
+<em>pst</em> do Domingos o deteve.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; amigo Carlos&mdash;e o sorrisinho do escriv&atilde;o
+tinha uma supplica&ccedil;&atilde;o tocante&mdash;desculpe, hein?
+Mas... Traz-me de l&aacute; uma caixita de phosphoros?
+<br />
+
+<br />
+
+N'este momento &agrave; porta apparecia o padre Amaro;
+e por traz a massa enorme do Silverio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu desejava fallar ao senhor administrador em
+particular, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Todos os empregados se ergueram; Jo&atilde;o Eduardo
+tambem, branco como a cal do muro. O parocho,
+com as suas passadas subtis d'ecclesiastico, atravessou
+<span class="pagenum">[362]</span>
+a reparti&ccedil;&atilde;o, seguido do bom Silverio que ao
+passar diante do escrevente descreveu d'esguelha
+um semi-circulo cauteloso, com terror ao r&eacute;o; o senhor
+administrador acudira a receber suas senhorias;
+e a porta do gabinete fechou-se discretamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Temos composi&ccedil;&atilde;o, rosnou o experiente Domingos,
+piscando o olho aos collegas.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos sent&aacute;ra-se descontente. Viera alli para
+esclarecer a auctoridade sobre os perigos sociaes
+que amea&ccedil;avam Leiria, o Districto e a Sociedade,
+para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo
+elle, era um processo politico&mdash;e alli estava
+calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do
+r&eacute;o! Nem lhe tinham offerecido uma cadeira! Seria
+realmente intoleravel que as coisas se arranjassem
+entre o parocho e o administrador sem o
+consultarem a elle! Elle, o unico que percebera
+n'aquelle murro dado no hombro do padre&mdash;n&atilde;o
+o punho do escrevente, mas a m&atilde;o do Racionalismo!
+Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe
+um erro funesto na administra&ccedil;&atilde;o do Estado.
+Positivamente o administrador n&atilde;o tinha a capacidade
+necessaria para salvar Leiria dos perigos da
+revolu&ccedil;&atilde;o! Bem se dizia na Arcada&mdash;era uma
+bambocha!
+<br />
+
+<br />
+
+A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas
+do administrador reluziram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar?
+disse sua excellencia.
+<br />
+
+<br />
+
+O escriv&atilde;o apressou-se com importancia; e a
+<span class="pagenum">[363]</span>
+porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah!
+aquella porta, fechada diante d'elle, deixando-o de
+f&oacute;ra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires,
+com o Arthur, entre as intelligencias subalternas, elle
+que promettera &aacute; Amparosinho fallar d'alto ao administrador!
+E quem era ouvido, e quem era chamado?
+O Domingos, um animal notorio, que come&ccedil;ava
+<em>satisfa&ccedil;&atilde;o</em> com
+um <em>c</em> cedilhado! Que se podia
+de resto esperar d'uma auctoridade que passava as
+manh&atilde;s de binoculo a deshonrar uma familia? Pobre
+Telles, seu visinho, seu amigo!... N&atilde;o, realmente
+devia fallar ao Telles!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a sua indigna&ccedil;&atilde;o cresceu quando viu o Arthur
+Couceiro, um empregado da reparti&ccedil;&atilde;o, na ausencia
+do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha,
+vir familiarmente junto do r&eacute;o, dizer-lhe com melancolia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, Jo&atilde;o, que rapaziada, que rapaziada!...
+Mas a coisa arranja-se, ver&aacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o tinha encolhido tristemente os hombros.
+Havia meia hora que alli estava, sentado &aacute; beira
+d'aquelle banco, sem se mexer, sem despregar os
+olhos do soalho, sentindo-se interiormente t&atilde;o vazio
+de id&eacute;as, como se lhe tivessem tirado os miolos.
+Todo o vinho, que na taberna do Osorio e no
+largo da S&eacute; lhe accendia na alma fogachos de
+c&oacute;lera,
+lhe retesava os pulsos n'um desejo de desordem,
+parecia subitamente eliminado do seu organismo.
+Sentia-se agora t&atilde;o inoffensivo como quando
+no cartorio aparava cautelosamente a sua penna
+<span class="pagenum">[364]</span>
+de pato. Um grande cansa&ccedil;o entorpecia-o; e
+alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo
+o seu s&ecirc;r, pensando estupidamente que ia viver
+para uma enxovia em S. Francisco, dormir n'uma
+palho&ccedil;a, comer da Misericordia... N&atilde;o tornaria a
+passear na Alameda, n&atilde;o veria mais Amelia... A
+casita em que vivia seria alugada a outro... Quem
+tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho,
+ia morrer de fome, decerto... A n&atilde;o ser que a Eugenia,
+a visinha, o recolhesse...
+<br />
+
+<br />
+
+O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua
+excellencia, e fechando vivamente a porta sobre si,
+em triumpho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhes dizia eu? Composi&ccedil;&atilde;o! Arranjou-se
+tudo!
+<br />
+
+<br />
+
+E para Jo&atilde;o Eduardo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seu feliz&atilde;o! Parabens! parabens!
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo
+administrativo desde o tempo dos Cabraes! E ia
+retirar-se enojado (como no quadro classico o Stoico
+que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor
+administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos
+se ergueram.
+<br />
+
+<br />
+
+Sua excellencia deu dois passos na reparti&ccedil;&atilde;o,
+e revestido de gravidade, distillando as palavras,
+com as lunetas cravadas no r&eacute;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Amaro, que &eacute; um sacerdote
+todo caridade e bondade, veio-me exp&ocirc;r... Emfim,
+veio-me supplicar que n&atilde;o d&eacute;sse mais andamento a
+este negocio... Sua senhoria com raz&atilde;o n&atilde;o quer
+<span class="pagenum">[365]</span>
+v&ecirc;r o seu nome arrastado nos tribunaes. Al&eacute;m
+d'isso,
+como sua senhoria disse muito bem, a religi&atilde;o,
+de que elle &eacute;... de que elle &eacute;, posso dizel-o, a
+honra
+e o mod&ecirc;lo, imp&otilde;e-lhe o perd&atilde;o da
+offensa... Sua
+senhoria reconhece que o ataque foi brutal, mas
+frustrado... Al&eacute;m d'isso parece que o senhor estava
+bebedo...
+<br />
+
+<br />
+
+Todos os olhos se fixaram em Jo&atilde;o Eduardo, que
+se fez escarlate. Aquillo pareceu-lhe n'esse momento
+peor que a pris&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, continuou o administrador, por altas
+considera&ccedil;&otilde;es que eu pesei devidamente, tomo a
+responsabilidade
+de o soltar. Veja agora como se porta.
+A auctoridade n&atilde;o o perde d'olho... Bem, p&oacute;de ir
+com Deus!
+<br />
+
+<br />
+
+E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. Jo&atilde;o
+Eduardo ficou immovel, como parvo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Posso ir, hein? balbuciou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P'r'&aacute; China, p'ra onde quizer! <em>Liberus,
+libera,
+liberum!</em> exclamou o Domingos que, interiormente
+detestando padres, jubilava com aquelle final.
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo olhou um momento em redor os
+empregados, o carrancudo Carlos; duas lagrimas
+bailavam-lhe nas palpebras; de repente agarrou o
+chap&eacute;o e abalou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos,
+esfregando vivamente as m&atilde;os.
+<br />
+
+<br />
+
+Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui
+e al&eacute;m, &aacute; pressa. &Eacute; que era tarde! O
+Pires recolhia
+as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de
+<span class="pagenum">[366]</span>
+vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica.
+E no v&atilde;o da janella, amuado, esperando ainda, o
+Carlos olhava sombriamente o largo.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim os dois padres sahiram acompanhados
+at&eacute; &aacute; porta pelo senhor administrador, que,
+terminados
+os deveres publicos, reapparecia homem de
+sociedade.&mdash;Ent&atilde;o porque n&atilde;o tinha o amigo
+Silverio
+vindo a casa da baroneza de Via-Clara? Houvera
+um voltarete furibundo. O Peixoto lev&aacute;ra dois codilhos.
+Tinha dito blasphemias medonhas!... Criado
+de suas senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse
+harmonisado. Cuidado com o degrau... &Aacute;s ordens
+de suas senhorias...
+<br />
+
+<br />
+
+Ao voltar por&eacute;m ao seu gabinete dignou-se parar
+diante da mesa do Domingos, e retomando alguma
+solemnidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A coisa passou-se bem. &Eacute; um bocado irregular,
+mas sensata! Bem basta j&aacute; os ataques que ha
+contra o clero nos jornaes... A coisa podia fazer
+barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido
+ciumes do padre, que queria desinquietar a rapariga,
+etc. &Eacute; mais prudente abafar a coisa... Quanto
+mais que, segundo o parocho me provou, toda a
+influencia que elle tem exercido na rua da Misericordia
+ou onde diabo &eacute;, tem tido por fim livrar a
+rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se
+v&ecirc;, &eacute; um bebedo e uma fera!
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos roia-se. Todas aquellas explica&ccedil;&otilde;es eram
+dadas ao Domingos! A elle, nada! Alli ficava, esquecido
+no v&atilde;o da janella!
+<span class="pagenum">[367]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas n&atilde;o! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete,
+chamou-o mysteriosamente com o dedo.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado
+com a auctoridade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu estava para passar pela botica&mdash;disse-lhe
+o administrador baixo e sem transi&ccedil;&atilde;o, dando-lhe
+um
+papel dobrado&mdash;para que me mandasse isto a casa,
+hoje. &Eacute; uma receita do doutor Gouv&ecirc;a... Mas
+j&aacute; que
+o amigo aqui est&aacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu tinha vindo para me p&ocirc;r &aacute;
+disposi&ccedil;&atilde;o da
+vindicta...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso est&aacute; acabado! interrompeu vivamente sua
+excellencia. N&atilde;o se esque&ccedil;a, mande-me isso antes
+das seis. &Eacute; para tomar ainda esta noite. Adeus.
+N&atilde;o
+se esque&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o faltarei, disse s&ecirc;ccamente o Carlos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao entrar na botica, a sua c&oacute;lera flammejava. Ou
+elle n&atilde;o se chamava Carlos, ou havia de mandar
+uma correspondencia tremenda ao
+<em>Popular</em>!... Mas
+a Amparo, que lhe espreit&aacute;ra a volta da varanda,
+correu, atirando-lhe as perguntas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o? Que se passou? O rapaz foi p'r'&aacute; rua?
+Que disse elle? Como foi?
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos fixava-a, com as pupillas chammejantes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o foi culpa minha, mas triumphou o materialismo!
+Elles o pagar&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas tu que disseste?
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, vendo os olhos da Amparo e os do praticante
+abertos para devorar a cita&ccedil;&atilde;o do seu
+depoimento&mdash;o
+Carlos, tendo de resalvar a dignidade de
+<span class="pagenum">[368]</span>
+esposo e a superioridade de patr&atilde;o, disse laconicamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dei a minha opini&atilde;o, com firmeza!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E elle que disse, o administrador?
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que o Carlos, recordando-se, leu a receita
+que amarrot&aacute;ra na m&atilde;o. A
+indigna&ccedil;&atilde;o emmudeceu-o&mdash;vendo
+que era aquelle todo o resultado
+da sua grande entrevista com a auctoridade!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;? perguntou s&ocirc;fregamente a Amparo.
+<br />
+
+<br />
+
+O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo
+profissional e o bom renome da auctoridade,
+o Carlos exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um frasco de xarope de Gibert para o senhor
+administrador! Ahi tem a receita, snr. Augusto.
+<br />
+
+<br />
+
+A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia,
+conhecia os beneficios do mercurio, fez-se t&atilde;o
+escarlate como as fitas flammejantes que lhe enfeitavam
+a cuia.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Toda essa tarde se fallou com excita&ccedil;&atilde;o pela
+cidade
+&laquo;da tentativa d'assassinato de que estivera para
+ser victima o senhor parocho&raquo;. Algumas pessoas
+censuravam o administrador por n&atilde;o ter procedido:
+os cavalheiros da opposi&ccedil;&atilde;o sobretudo, que viram
+na debilidade d'aquelle funccionario uma prova incontestavel
+de que o governo ia, com os seus desperdicios
+e as suas corrup&ccedil;&otilde;es, levando o paiz a um
+abysmo!
+<span class="pagenum">[369]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o padre Amaro, esse, era admirado como
+um santo. Que piedade! que mansid&atilde;o! O senhor
+chantre mandou-o chamar &aacute; noitinha, recebeu-o paternalmente
+com um &laquo;viva o meu cordeiro paschal&raquo;!
+E depois de escutar a historia do insulto, a generosa
+interven&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Filho, exclamou, isso &eacute; alliar a mocidade de
+Telemacho &aacute; prudencia de Mentor! Padre Amaro,
+voss&ecirc; era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade
+de Salento!
+<br />
+
+<br />
+
+Quando Amaro entrou &aacute; noite em casa da S.
+Joanneira&mdash;foi como a appari&ccedil;&atilde;o d'um santo escapo
+&aacute;s feras do Circo ou &aacute; plebe de Diocleciano!
+Amelia,
+sem disfar&ccedil;ar a sua exalta&ccedil;&atilde;o,
+apertou-lhe ambas as
+m&atilde;os, muito tempo, toda tremula, com os olhos humidos.
+Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona
+verde do conego. A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+quiz mesmo que se lhe puzesse uma almofada para
+elle apoiar o hombro dorido. Depois teve de
+contar miudamente toda a scena, desde o momento
+em que, conversando com o collega Silverio (que
+se port&aacute;ra muito bem), avist&aacute;ra o escrevente no
+meio do largo, de bengal&atilde;o al&ccedil;ado e ar de
+matamouros...
+<br />
+
+<br />
+
+Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O
+escrevente apparecia-lhes peor que Longuinhos e
+que Pilatos. Que malvado! O senhor parocho devia-o
+ter calcado aos p&eacute;s! Ah! era d'um santo, ter
+perdoado!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fiz o que me inspirou o cora&ccedil;&atilde;o, disse elle
+<span class="pagenum">[370]</span>
+baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de Nosso
+Senhor Jesus Christo: elle manda offerecer a face
+esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face
+direita...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, a isto, escarrou grosso e observou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofet&atilde;o
+&aacute; face direita... Emfim, s&atilde;o ordens de Nosso
+Senhor
+Jesus Christo, offere&ccedil;o a face esquerda. S&atilde;o
+ordens
+de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever
+de sacerdote, oh, senhoras, desanco o patife!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou
+do canto uma vozinha expirante e desconhecida.
+<br />
+
+<br />
+
+Acontecimento extraordinario! Era a snr.<sup>a</sup> D.
+Anna
+Gansoso que fall&aacute;ra depois de dez longos annos
+de taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor que nada
+sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim,
+sob um impulso de sympathia pelo senhor parocho,
+uma vibra&ccedil;&atilde;o humana!&mdash;Todas as senhoras lhe
+sorriram,
+agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu
+com bondade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quasi nada, snr.<sup>a</sup> D. Anna, quasi nada, minha
+senhora... Que elle deu de rijo! Mas eu sou de boa
+carnadura.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias,
+furiosa &aacute; id&eacute;a do punho do escrevente
+descarregado
+sobre aquelle hombro santo. Que monstro!
+Eu queria-o v&ecirc;r com uma grilheta a trabalhar
+na estrada! Que eu &eacute; que o conhecia! A mim nunca
+elle me enganou... Sempre lhe achei cara d'assassino!
+<span class="pagenum">[371]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estava embriagado, homens com vinho... arriscou
+timidamente a S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi um clamor. Ai, que o n&atilde;o desculpasse! Parecia
+at&eacute; sacrilegio! Era uma fera, era uma fera!
+<br />
+
+<br />
+
+E a exulta&ccedil;&atilde;o foi grande quando Arthur Couceiro,
+apparecendo, deu logo da porta a novidade, a
+ultima: o Nunes mand&aacute;ra chamar o Jo&atilde;o Eduardo e
+dissera-lhe (palavras textuaes): &laquo;Eu, bandidos e
+malfeitores n&atilde;o os quero no meu cartorio. Rua!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira ent&atilde;o commoveu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pobre rapaz, fica sem ter que comer...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que beba! que beba! gritou a snr.<sup>a</sup> D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Todos riram. S&oacute; Amelia, curvada sobre a sua costura,
+se fizera muito pallida, aterrada &aacute;quella id&eacute;a
+que Jo&atilde;o Eduardo teria talvez fome...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois olhem, n&atilde;o acho caso para rir! disse a
+S. Joanneira. &Eacute; at&eacute; coisa que me vai tirar o
+somno...
+Pensar que o rapaz ha de querer um bocado
+de p&atilde;o e n&atilde;o ha de ter... Credo! N&atilde;o,
+isso n&atilde;o! E
+o senhor padre Amaro desculpe...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro tambem n&atilde;o desejava que o rapaz
+cahisse em miseria! N&atilde;o era homem de rancor, elle!
+E se o escrevente viesse &aacute; sua porta com necessidade,
+duas ou tres placas (n&atilde;o era rico, n&atilde;o podia
+mais), mas tres ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as
+de cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo!
+Olhavam-n'o, babosas, com as m&atilde;os vagamente postas.
+A sua presen&ccedil;a, como a d'um S. Vicente de Paulo,
+<span class="pagenum"><a name="p372" id="p372">[372]</a></span>
+exhalando caridade, dava &aacute; sala uma suavidade
+de capella: e a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+suspirou
+de gozo devoto.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes
+apertos de m&atilde;os em redor, rompeu em triumpho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o j&aacute; sabem? O <a href="#e10">patife</a>,
+o assassino,
+escorra&ccedil;ado
+de toda a parte como um c&atilde;o! O Nunes expulsou-o
+do cartorio. O doutor Godinho disse-me agora
+que no governo civil n&atilde;o punha elle os p&eacute;s.
+Enterrado,
+demolido! &Eacute; um allivio p'r'&aacute; gente de bem!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ao senhor padre Natario se deve! exclamou
+D. Josepha Dias.
+<br />
+
+<br />
+
+Todos o reconheciam. F&ocirc;ra elle, com a sua habilidade,
+a sua labia, que descobrira a perfidia de Jo&atilde;o
+Eduardo, salv&aacute;ra a Ameliasinha, Leiria, a Sociedade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E em tudo o que pretender, o maroto, ha de
+me encontrar pela frente. Emquanto elle estiver em
+Leiria n&atilde;o o largo! Que lhes disse eu, minhas senhoras?...
+&laquo;Eu &eacute; que o esmago!&raquo; Pois ahi o
+t&ecirc;m esmagado!
+<br />
+
+<br />
+
+A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona,
+regaladamente, no repouso merecido de uma
+victoria difficil. E voltando-se para Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora, o que l&aacute; vai, l&aacute; vai! Livrou-se de
+uma fera, &eacute; o que lhe posso dizer!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o os louvores&mdash;que j&aacute; lhe tinham repetido
+prolixamente desde que ella rompera com a fera&mdash;recome&ccedil;aram,
+mais vivos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi a coisa de mais virtude que tens feito em
+toda a tua vida!
+<span class="pagenum">[373]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a gra&ccedil;a de Deus que te tocou!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute;s em gra&ccedil;a, filha!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim &eacute; Santa Amelia, disse o conego erguendo-se,
+enfastiado d'aquellas glorifica&ccedil;&otilde;es. Pois
+parece-me que temos fallado bastante do patife...
+Mande agora a senhora vir o ch&aacute;, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia permanecia calada, cosendo &aacute; pressa; erguia
+&aacute;s vezes rapidamente para Amaro um olhar desassocegado;
+pensava em Jo&atilde;o Eduardo, nas amea&ccedil;as
+de Natario; e imaginava o escrevente com as faces
+encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas
+dos casaes... E emquanto as senhoras se accommodavam,
+palrando, &aacute; mesa do ch&aacute;, ella p&ocirc;de
+dizer
+baixo a Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o posso socegar com a id&eacute;a que o rapaz
+soffra necessidades... Eu bem sei que &eacute; um malvado,
+mas... &Eacute; como um espinho c&aacute; por dentro. Tira-me
+toda a alegria.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro disse-lhe ent&atilde;o, com muita bondade,
+mostrando-se superior &aacute; injuria, n'um alto espirito
+de caridade christ&atilde;:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha rica filha, s&atilde;o tolices... O homem n&atilde;o
+morre de fome. Ninguem morre de fome em Portugal.
+&Eacute; novo, tem saude, n&atilde;o &eacute; tolo, ha de
+se arranjar...
+N&atilde;o pense n'isso... Aquillo &eacute; palavriado do
+padre Natario... O rapaz naturalmente sae de Leiria,
+n&atilde;o tornamos a ouvir fallar d'elle... E em toda a
+parte ha de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe,
+e Deus ha de tomar isso em conta.
+<br />
+
+<br />
+
+Estas palavras t&atilde;o generosas, ditas baixo, com
+<span class="pagenum">[374]</span>
+um olhar amante, tranquillisaram-na inteiramente. A
+clemencia, a caridade do senhor parocho pareceram-lhe
+melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos
+e de monges piedosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois do ch&aacute;, ao quino, ficou junto d'elle. Uma
+alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente.
+Tudo o que at&eacute; ahi a importun&aacute;ra e a
+assust&aacute;ra,
+Jo&atilde;o Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera
+emfim da sua vida: o rapaz iria para longe,
+empregar-se&mdash;e o senhor parocho alli estava, todo
+d'ella, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa,
+os seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento
+em que todos faziam um alarido indignado
+contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quin&aacute;ra
+e brandia o cart&atilde;o triumphante, foram as m&atilde;os que
+se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro
+simultaneo, perdido na gralhada das velhas, ergueu
+o peito d'ambos; e at&eacute; ao fim da noite foram marcando
+os seus cart&otilde;es, muito calados, com as faces
+acc&ecirc;sas, sob a press&atilde;o brutal do mesmo desejo.
+<br />
+
+<br />
+
+Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia
+aproximou-se do piano para correr uma escala, e
+Amaro p&ocirc;de murmurar-lhe ao ouvido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, filhinha, que te quero tanto! E n&atilde;o podermos
+estar s&oacute;s...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ia responder&mdash;quando a voz de Natario,
+que se embrulhava no seu capote ao p&eacute; do aparador,
+exclamou, muito severa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o as senhoras deixam andar por aqui semelhante
+livro?
+<span class="pagenum">[375]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella
+indigna&ccedil;&atilde;o, a olhar o largo volume encadernado
+que Natario indicava com a ponta do guardachuva,
+como um objecto abominavel. D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o
+aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando
+que seria alguma d'essas novellas, t&atilde;o famosas, em
+que se passam coisas immoraes. E Amelia chegando-se
+tambem, disse, admirada de tal reprova&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas &eacute; o <em>Panorama</em>...
+&Eacute; um volume do
+<em>Panorama</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; o <em>Panorama</em> vejo
+eu, disse Natario com
+seccura. Mas tambem vejo isto.&mdash;Abriu o volume
+na primeira pagina branca, e leu
+alto:&mdash;&laquo;<em>Pertence-me
+este volume a mim, Jo&atilde;o Eduardo Barbosa, e
+serve-me de recreio nos meus ocios</em>.&raquo;
+N&atilde;o comprehendem,
+hein? Pois &eacute; muito simples... Parece incrivel
+que as senhoras n&atilde;o saibam que esse homem,
+desde que poz as m&atilde;os n'um sacerdote, est&aacute;
+<em>ipso facto</em>
+excommungado, e excommungados todos os objectos
+que lhe pertencem!
+<br />
+
+<br />
+
+Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se
+do aparador onde jazia aberto o
+<em>Panorama</em> fatal,
+arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo, &aacute;quella
+id&eacute;a da Excommunh&atilde;o que se lhes representava
+como um desabamento de catastrophes, um aguaceiro
+de raios despedidos das m&atilde;os do Deus Vingador:
+e alli ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado,
+em torno de Natario, que, de capot&atilde;o pelos hombros
+e bra&ccedil;os cruzados, gozava o effeito da sua
+revela&ccedil;&atilde;o.
+<span class="pagenum">[376]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a S. Joanneira, no seu assombro, arriscou-se
+a perguntar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor padre Natario est&aacute; a fallar s&eacute;rio?
+<br />
+
+<br />
+
+Natario indignou-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se estou a fallar s&eacute;rio!? Essa &eacute; forte! Pois eu
+havia de gracejar sobre um caso d'excommunh&atilde;o,
+minha senhora? Pergunte ahi ao senhor conego se
+eu estou a gracejar!
+<br />
+
+<br />
+
+Todos os olhos se voltaram para o conego, essa
+inesgotavel fonte de saber ecclesiastico.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ent&atilde;o, tomando logo o ar pedagogico que
+lhe voltava dos seus antigos habitos do seminario
+sempre que se tratava de doutrina, declarou que o
+collega Natario tinha raz&atilde;o. Quem espanca um sacerdote,
+sabendo que &eacute; um sacerdote, est&aacute;
+<em>ipso facto</em>
+excommungado. &Eacute; doutrina assente. &Eacute; o que se
+chama
+a excommunh&atilde;o latente; n&atilde;o necessita a
+declara&ccedil;&atilde;o
+do pontifice ou do bispo, nem o ceremonial,
+para ser valida, e para que todos os fieis considerem
+o offensor como excommungado. Devem-no tratar portanto
+como tal... Evital-o a elle, e ao que lhe pertence...
+E este caso de p&ocirc;r m&atilde;os sacrilegas n'um
+sacerdote era t&atilde;o especial, continuava o conego n'um
+tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando
+os casos de excommunh&atilde;o tacita, conserva-a
+todavia para o que maltrata um sacerdote...&mdash;Citou
+ainda mais bullas, as Constitui&ccedil;&otilde;es de Innocencio
+IX e de Alexandre VII, a Constitui&ccedil;&atilde;o Apostolica,
+outras legisla&ccedil;&otilde;es temerosas; rosnou latins,
+aterrou
+as senhoras.
+<span class="pagenum">[377]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esta &eacute; a doutrina, concluiu dizendo; mas a
+mim parece-me melhor n&atilde;o se fazer d'isso espalhafato...
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha Dias acudiu logo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&oacute;s &eacute; que n&atilde;o podemos arriscar a
+nossa
+alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas
+excommungadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; destruir! exclamou D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; queimar! &eacute; queimar!
+<br />
+
+<br />
+
+D. Joaquina Gansoso arrast&aacute;ra Amelia para o v&atilde;o
+da janella, perguntando-lhe se tinha outros objectos
+pertencentes ao homem. Amelia, atarantada, confessou
+que tinha algures, n&atilde;o sabia onde, um len&ccedil;o,
+uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; para o fogo, &eacute; para o fogo! gritava a Gansoso
+excitada.
+<br />
+
+<br />
+
+A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras,
+arrebatadas n'um furor santo. D. Josepha Dias,
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o fallavam com gozo do
+<em>fogo</em>,
+enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial
+de extermina&ccedil;&atilde;o devota. Amelia e a Gansoso,
+no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a
+roupa branca, as fitas e as calcinhas, &aacute; ca&ccedil;a dos
+&laquo;objectos
+excommungados&raquo;. E a S. Joanneira assistia,
+attonita e assustada, &aacute;quelle alarido
+d'auto-de-f&eacute; que
+atravessava bruscamente a sua sala pacata, refugiada
+ao p&eacute; do conego, que depois de ter rosnado algumas
+palavras sobre &laquo;a Inquisi&ccedil;&atilde;o em casas
+particulares&raquo;,
+se enterr&aacute;ra commodamente na poltrona.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; para lhes fazer sentir que se n&atilde;o perde
+impunemente
+<span class="pagenum">[378]</span>
+o respeito &aacute; batina, dizia Natario baixo
+a Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabe&ccedil;a,
+contente d'aquellas c&oacute;leras beatas que eram
+como a affirma&ccedil;&atilde;o ruidosa do amor que lhe tinham
+as senhoras.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas D. Josepha impacientava-se. Agarr&aacute;ra j&aacute; o
+<em>Panorama</em> com as pontas do chale,
+para evitar o
+contagio, e gritava para dentro, para o quarto, onde
+continuava pelos gavet&otilde;es uma rebusca furiosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o appareceu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C&aacute; est&aacute;, c&aacute; est&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Era a Gansoso que entrava triumphante com a
+cigarreira, a velha luva e o len&ccedil;o de algod&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+E as senhoras, em alarido, arremetteram para a
+cozinha. A mesma S. Joanneira as seguiu, como boa
+dona de casa, para fiscalisar a fogueira.
+<br />
+
+<br />
+
+Os tres padres ent&atilde;o, s&oacute;s, olharam-se&mdash;e riram.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As mulheres t&ecirc;m o diabo no corpo, disse o
+conego philosophicamente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, padre-mestre, n&atilde;o senhor, acudiu
+logo Natario fazendo-se s&eacute;rio. Eu rio porque a coisa,
+assim vista, parece patusca. Mas o sentimento &eacute;
+bom. Prova a verdadeira devo&ccedil;&atilde;o ao sacerdocio,
+horror
+&aacute; impiedade... Emfim o sentimento &eacute; excellente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O sentimento &eacute; excellente, confirmou Amaro,
+tambem s&eacute;rio.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ergueu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; que se pilhassem o homem eram capazes
+de o queimar... N&atilde;o lh'o digo a brincar, que a mana
+<span class="pagenum">[379]</span>
+tem figados para isso... &Eacute; um Torquemada de
+saias...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; na verdade, est&aacute; na verdade, affirmou
+Natario.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o resisto a ir v&ecirc;r a
+execu&ccedil;&atilde;o! exclamou
+o conego. Eu quero v&ecirc;r com os meus olhos!
+<br />
+
+<br />
+
+E os tres padres ent&atilde;o foram at&eacute; &aacute;
+porta da cozinha.
+As senhoras l&aacute; estavam, em p&eacute; diante da lareira,
+batidas da luz violenta da fogueira que fazia
+destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que
+j&aacute; se tinham coberto. A
+<em>Ru&ccedil;a</em>, de joelhos, soprava
+esfalfada. Tinham cortado com o fac&atilde;o a
+encarderna&ccedil;&atilde;o
+do <em>Panorama</em>; e as folhas retorcidas
+e negras,
+com um faiscar de fagulhas, voavam pela chamin&eacute;
+nas linguas do fogo claro. S&oacute; a luva de pellica
+n&atilde;o se consumia. Debalde com as tenazes a punham
+no vivo da chamma: tisnava, reduzida a um
+caro&ccedil;o engorolado; mas n&atilde;o ardia. E a sua
+resistencia
+aterrava as senhoras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que &eacute; a da m&atilde;o direita com que
+commetteu
+o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe! aconselhava da
+porta o conego muito divertido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O mano faz favor de n&atilde;o tro&ccedil;ar com coisas
+s&eacute;rias! gritou D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, mana! a senhora quer saber melhor que
+um sacerdote como &eacute; que se queima um impio? A
+preten&ccedil;&atilde;o n&atilde;o est&aacute;
+m&aacute;! &Eacute; bufar-lhe, &eacute; bufar-lhe!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, confiadas na sciencia do senhor conego, a
+Gansoso e D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, acocoradas,
+bufaram
+<span class="pagenum">[380]</span>
+tambem. As outras olhavam, n'um sorriso mudo,
+o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella
+extermina&ccedil;&atilde;o
+grata a Nosso Senhor. O fogo estalava,
+pulando com uma for&ccedil;a galharda, na gloria da sua
+antiga func&ccedil;&atilde;o de purificador dos peccados.&mdash;E
+por
+fim sobre as achas em braza, nada restou do
+<em>Panorama</em>,
+do len&ccedil;o e da luva do impio.
+<br />
+
+<br />
+
+A essa hora Jo&atilde;o Eduardo, o impio, no seu quarto,
+sentado aos p&eacute;s da cama, solu&ccedil;ava, com a face
+banhada em lagrimas, pensando em Amelia, nos
+bons ser&otilde;es da rua da Misericordia, na cidade para
+onde iria, na roupa que empenharia, e perguntando
+em v&atilde;o a si mesmo porque o tratavam assim, elle
+que era t&atilde;o trabalhador, que n&atilde;o queria mal a
+ninguem,
+e que a adorava tanto, a ella?
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XVI
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+No domingo seguinte havia missa cantada na S&eacute;,
+e a S. Joanneira e Amelia atravessaram a Pra&ccedil;a para
+ir buscar D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, que em dias
+de mercado e de &laquo;populacho&raquo; nunca sahia
+s&oacute;, receosa
+que lhe roubassem as joias ou lhe insultassem
+a castidade.
+<br />
+
+<br />
+
+N'essa manh&atilde;, com effeito, a affluencia das freguezias
+enchia a Pra&ccedil;a: os homens em grupo, atravancando
+a rua, muito s&eacute;rios, muito barbeados, de
+jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma
+fortuna de grilh&otilde;es e de cora&ccedil;&otilde;es
+d'ouro sobre peitos
+pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se
+por traz dos balc&otilde;es alastrados de len&ccedil;aria e de
+chitas;
+nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo
+mercado, entre os saccos de farinha, os mont&otilde;es de
+<span class="pagenum">[382]</span>
+lou&ccedil;a, os cestos de br&ocirc;a, ia um regatear sem fim;
+havia multid&atilde;o ao p&eacute; das tendas onde reluzem os
+espelhinhos
+redondos e transbordam os m&oacute;lhos de rosarios;
+velhas faziam preg&atilde;o por traz dos seus taboleiros
+de cavacas; e os pobres, afreguezados &aacute; cidade,
+choramingavam Padre-nossos pelas esquinas.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; senhoras passavam para a missa, todas em
+s&ecirc;das, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia
+de cavalheiros, t&ecirc;sos nos seus fatos de casimira nova,
+fumando caro, gozando o domingo.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor,
+um atrevido, disse mesmo alto d'um grupo: <em>Ai, que
+me leva o cora&ccedil;&atilde;o!</em> E as duas
+senhoras, apressando-se,
+dobravam para a rua do Correio, quando lhes
+appareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao
+peito. N&atilde;o as tinha visto desde &laquo;o desacato do
+largo
+da S&eacute;&raquo;, e rompeu logo em
+exclama&ccedil;&otilde;es. Ai, filhas,
+que desgosto aquelle! O malvado do escrevente!
+Elle tinha tido tanto que fazer, que s&oacute; n'essa
+manh&atilde;
+&eacute; que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os
+sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se
+a vestir; elle quiz-lhe v&ecirc;r o bra&ccedil;o e felizmente,
+louvores a Deus, nem uma pisadura... E se
+ellas vissem, que carnadura t&atilde;o delicada, que pelle
+t&atilde;o branca... Uma pellinha d'archanjo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas querem voss&ecirc;s saber, filhas? Encontrei-o
+n'uma grande afflic&ccedil;&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+As duas senhoras assustaram-se. Porqu&ecirc;, Libaninho?
+<br />
+
+<br />
+
+A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava,
+<span class="pagenum">[383]</span>
+tinha ido n'essa madrugada para o hospital com
+um febr&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E alli est&aacute; o pobre santo sem criada, sem nada!
+Vejam voss&ecirc;s! Para hoje bem, que vai jantar
+com o nosso conego (tambem l&aacute; estive, ai, que santo!),
+mas &aacute;manh&atilde;, mas depois? Que elle j&aacute;
+tem em
+casa a irm&atilde; da Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas,
+a Dionysia! Foi o que eu lhe disse: a Dionysia p&oacute;de
+ser uma santa, mas que reputa&ccedil;&atilde;o!... &Eacute;
+que n&atilde;o
+ha peor em Leiria... Uma perdida que n&atilde;o p&otilde;e os
+p&eacute;s na igreja... Tenho a certeza que o senhor chantre
+at&eacute; havia de reprovar!
+<br />
+
+<br />
+
+As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia
+(mulher que n&atilde;o cumpria os preceitos, que
+represent&aacute;ra
+em theatros de curiosos) n&atilde;o convinha ao
+senhor parocho...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o
+que lhe convinha? Eu l&aacute; lh'o disse, l&aacute; lhe fiz a
+proposta.
+&Eacute; ferrar-se outra vez em tua casa. Que &eacute; onde
+est&aacute; bem, com gente que o acarinha, que lhe trata
+da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo &eacute; virtude!
+Elle n&atilde;o disse que
+<em>n&atilde;o</em> nem que
+<em>sim</em>. Mas
+olha que se lhe podia l&ecirc;r na cara que est&aacute; a
+morrer
+por isso... Tu &eacute; que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia fizera-se t&atilde;o escarlate como a sua gravata
+de s&ecirc;da da India. E a S. Joanneira disse ambiguamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fallar-lhe n&atilde;o... Eu n'essas coisas sou muito
+delicada... Bem comprehendes...
+<span class="pagenum">[384]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era como teres um santo de portas a dentro,
+filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te d'isso!
+E era um gosto para todos... Tenho a certeza que
+at&eacute; Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora
+adeus, pequenas, que vou de fugida. N&atilde;o vos demoreis,
+que est&aacute; a missinha a cahir.
+<br />
+
+<br />
+
+As duas senhoras continuaram caladas at&eacute; casa
+de D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o. Nenhuma queria arriscar
+primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade
+t&atilde;o inesperada, t&atilde;o grave, do senhor parocho
+voltar
+para a rua da Misericordia! Foi s&oacute; quando pararam
+que a S. Joanneira disse, ao puxar &agrave; campainha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, o senhor parocho realmente n&atilde;o p&oacute;de ter
+a Dionysia de portas a dentro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, at&eacute; causa horror!
+<br />
+
+<br />
+
+Foi tambem a express&atilde;o da snr.<sup>a</sup> D.
+Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+quando lhe contaram, em cima, a doen&ccedil;a da
+Vicencia e a installa&ccedil;&atilde;o da Dionysia: causava
+horror!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que eu n&atilde;o a conhe&ccedil;o, disse a excellente
+senhora.
+E tenho at&eacute; vontade de a conhecer. Que me
+dizem que &eacute; dos p&eacute;s &agrave;
+cabe&ccedil;a uma crosta de peccado!
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira ent&atilde;o fallou da &laquo;proposta do
+Libaninho&raquo;.
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o declarou logo com
+ardor que era uma inspira&ccedil;&atilde;o de Nosso Senhor. Que
+nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da
+Misericordia! At&eacute; parece que mal elle se f&ocirc;ra
+embora,
+Deus retir&aacute;ra a sua gra&ccedil;a da casa...
+N&atilde;o houvera
+sen&atilde;o desgostos&mdash;o
+<em>Communicado</em>, a d&ocirc;r de
+estomago
+do conego, a morte da entrevadinha, aquelle
+<span class="pagenum">[385]</span>
+desgra&ccedil;ado casamento (que estivera por um
+<em>triz</em>, que
+horror!), o escandalo do largo da S&eacute;... A casa tinha
+parecido engui&ccedil;ada!... E era at&eacute; peccado deixar
+viver
+o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da
+Vicencia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas
+meias!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em parte nenhuma p&oacute;de estar melhor que em
+tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas a
+dentro... E para ti &eacute; uma honra, &eacute; estar em
+gra&ccedil;a.
+Olha, filha, se eu n&atilde;o fosse s&oacute;, sempre o digo,
+quem
+o hospedava era eu! Que aqui &eacute; que elle estava
+bem... Que salinha para elle, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as
+suas preciosidades.
+<br />
+
+<br />
+
+A sala com effeito era toda ella uma immensa
+armazenagem de santaria e de
+<em>bric-&agrave;-brac</em> devoto:
+sobre as duas commodas de pau preto com fechaduras
+de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas,
+as Nossas Senhoras vestidas de s&ecirc;da azul, os
+Meninos Jesus frizados com o ventresinho gordo e a
+m&atilde;o aben&ccedil;oadora, os Santo Antonios no seu burel,
+os S. Sebasti&otilde;es bem fr&eacute;chados, os S.
+Jos&eacute;s barbudos.
+Havia santos exoticos, que eram o seu orgulho,
+que lhe fabricavam em Alcoba&ccedil;a&mdash;S. Paschoal
+Bayl&atilde;o,
+S. Didacio, S. Chrisolo, S. Gorislano... Depois
+eram os bentinhos, os rosarios de metal e de caro&ccedil;os
+d'azeitonas, contas de c&ocirc;res, rendas amarellas
+d'antigas alvas, cora&ccedil;&otilde;es de vidro escarlate,
+almofadinhas
+com J. M. entrela&ccedil;ados a missanga, ramos
+bentos, palmas de martyres, cartuchinhos d'incenso.
+<span class="pagenum">[386]</span>
+As paredes desappareciam forradas de estampas de
+Virgens de todas as devo&ccedil;&otilde;es,&mdash;equilibradas sobre
+o orbe, enrodilhadas aos p&eacute;s da cruz, trespassadas
+d'espadas. Cora&ccedil;&otilde;es d'onde gotejava sangue,
+cora&ccedil;&otilde;es
+d'onde sahia uma fogueira, cora&ccedil;&otilde;es d'onde
+dardejavam
+raios: ora&ccedil;&otilde;es encaixilhadas para as festas
+particularmente amadas&mdash;o <em>Casamento de Nossa
+Senhora</em>, a
+<em>Inven&ccedil;&atilde;o da Santa
+Cruz</em>, os <em>Estigmas
+de S. Francisco</em>, sobretudo o <em>Parto
+da Santa
+Virgem</em>, a mais devota, que vem pelas quatro
+temporas. Sobre as mesas lamparinas acc&ecirc;sas, para
+serem collocadas sem demora aos santos especiaes,
+quando a boa senhora tivesse a sua sciatica,
+ou que o catarrho se assanhasse, ou lhe viessem
+as caimbras. Ella mesma, s&oacute; ella, arrumava,
+espanejava, lustrava toda aquella santa popula&ccedil;&atilde;o
+celeste, aquelle arsenal beato, que era apenas sufficiente
+para a salva&ccedil;&atilde;o da sua alma e o allivio
+dos seus achaques. O seu grande cuidado era a
+colloca&ccedil;&atilde;o dos santos; alterava-a constantemente,
+porque &aacute;s vezes, por exemplo, sentia que Santo
+Eleuterio n&atilde;o gostava d'estar ao p&eacute; de S.
+Justino,
+e ia ent&atilde;o pendural-o a distancia, n'uma companhia
+mais sympathica ao santo. E distinguia-os
+(segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe
+explicava), dando-lhes uma devo&ccedil;&atilde;o graduada, e
+n&atilde;o
+tendo por S. Jos&eacute; de segunda classe o respeito que
+sentia por S. Jos&eacute; de primeira classe. Aquella riqueza
+era a inveja das amigas, a edifica&ccedil;&atilde;o dos
+curiosos,
+e fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a
+<span class="pagenum">[387]</span>
+vinha visitar, abrangendo a sala n'um olhar langoroso:&mdash;Ai,
+filha, &eacute; o reininho dos c&eacute;os!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o &eacute; verdade, continuava a excellente senhora
+radiante, que elle aqui &eacute; que estava bem, o
+santinho do parocho? &Eacute; como ter o c&eacute;o debaixo da
+m&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a
+sua casa arranjada com devo&ccedil;&atilde;o, ella que era
+rica...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o o nego, tenho aqui empregadinhos alguns
+centos de mil reis. Sem contar o que est&aacute; no relicario...
+<br />
+
+<br />
+
+Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim!
+Tinha l&aacute; uma lascasinha da verdadeira Cruz,
+um bocado quebrado do espinho da Cor&ocirc;a, um farrapinho
+do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se
+com azedume, entre as devotas, que coisas t&atilde;o preciosas,
+d'origem divina, deviam estar no sacrario da
+S&eacute;. D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, temendo que
+o senhor
+chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, s&oacute; o
+mostrava &aacute;s intimas, mysteriosamente. E o santo sacerdote,
+que lh'o obtivera, fizera-a jurar sobre o
+Evangelho de n&atilde;o revelar a procedencia &laquo;para
+evitar
+fallatorios&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira, como sempre, admirou sobretudo
+o farrapinho do cueiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que reliquia, que reliquia! murmurava.
+<br />
+
+<br />
+
+E D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o muito baixo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o ha melhor. Trinta mil reis me custou...
+Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo!&mdash;E
+babando-se toda, diante do trapinho precioso:&mdash;O
+<span class="pagenum">[388]</span>
+cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino,
+o seu cueirinho...
+<br />
+
+<br />
+
+Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o
+relicario no gavet&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o meio dia ia bater&mdash;e as tres senhoras
+apressaram-se para a S&eacute;, para pilhar logar no
+altar-m&oacute;r.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; no largo encontraram D. Josepha Dias, que se
+precipitava para a igreja, s&ocirc;frega da missa, com o
+mantelete descahido sobre o hombro e uma pluma
+do chap&eacute;o a despregar-se. Tinha estado toda a
+manh&atilde;
+n'um phrenesi com a criada! F&ocirc;ra necessario
+fazer ella todos os preparos para o jantar... Ai, tinha
+medo que nem a missinha lhe d&ecirc;sse virtude, de
+nervosa que estava...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que temos l&aacute; o senhor parocho hoje... Voss&ecirc;s
+sabem que adoeceu a criada... Ah, j&aacute; me esquecia,
+o mano quer que tu l&aacute; v&aacute;s jantar tambem, Amelia.
+Diz que &eacute; para haverem duas damas e dois cavalheiros...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia riu d'alegria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, &aacute; noitinha...
+Credo, vesti-me tanto &aacute; pressa, que at&eacute; parece
+que me est&aacute; a cahir o saiote!
+<br />
+
+<br />
+
+Quando as quatro senhoras entraram, a igreja
+estava j&aacute; cheia. Era uma missa cantada ao Santissimo.
+E apesar de contrario ao rigor do ritual, por um
+costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto
+na liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando
+presente a Eucharistia, musica de rebeca, violoncello
+<span class="pagenum">[389]</span>
+e flauta. O altar, muito ornado, com as
+reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva;
+docel, frontal, paramentos dos missaes eram brancos,
+com relevos d'ouro desmaiado; nos vasos erguiam-se
+ramos pyramidaes de fl&ocirc;res e folhagens
+brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como
+velarios, punham dos dois lados do tabernaculo a
+brancura de duas vastas azas desdobradas, lembrando
+a Pomba Espiritual; e os vinte casti&ccedil;aes erguiam
+as suas chammas amarellas em throno at&eacute; ao sacrario
+aberto, que mostrava d'alto, engastada n'um
+rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e ba&ccedil;a. Por
+toda a igreja apinhada corria uma susurra&ccedil;&atilde;o
+lenta;
+aqui e al&eacute;m um catarrho expectorava, uma crian&ccedil;a
+choramigava; o ar adensava-se j&aacute; dos halitos juntos
+e d'um cheiro d'incenso; e do c&ocirc;ro, onde as figuras
+dos musicos se moviam por traz dos bra&ccedil;os
+dos rebec&otilde;es e das estantes, vinha a cada momento
+um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim.
+As quatro amigas tinham-se apenas accommodado
+junto do altar-m&oacute;r, quando os dois acolythos, um
+t&ecirc;so como um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado,
+entraram do lado da sacristia, sustentando
+alto e direito nas m&atilde;os os dois casti&ccedil;aes
+consagrados;
+atraz o Pimenta vesgo, com uma sobrepelliz
+muito vasta para elle, lan&ccedil;ando os seus sapat&otilde;es
+em
+passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois
+successivamente, durante o rumor do ajoelhar
+pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os
+dois diaconos; e emfim, paramentado de branco,
+<span class="pagenum">[390]</span>
+d'olhos baixos e m&atilde;os postas, com aquelle recolhimento
+humilde que pede o ritual e que exprime a
+mansid&atilde;o de Jesus marchando ao Calvario, entrou o
+padre Amaro&mdash;ainda vermelho da quest&atilde;o furiosa
+que tivera na sacristia, antes de se revestir, por causa
+da lavagem das alvas.
+<br />
+
+<br />
+
+E o c&ocirc;ro immediatamente atacou o
+<em>Introito</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada
+para o parocho&mdash;que era, como dizia o conego,
+&laquo;um grande artista para missas cantadas&raquo;; todo o
+cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade,
+que cavalheirismo nas sauda&ccedil;&otilde;es ceremoniosas
+aos diaconos! Como se prostrava bem diante do altar,
+aniquilado e escravisado, sentindo-se cinza, sentindo-se
+p&oacute; diante de Deus, que assiste de perto, cercado
+da sua c&ocirc;rte e da sua familia celeste! Mas era
+sobretudo admiravel nas ben&ccedil;&atilde;os; passava devagar
+as m&atilde;os sobre o altar como para apanhar, recolher a
+gra&ccedil;a que alli cahia do Christo presente, e atirava-a
+depois com um gesto largo de caridade por toda a
+nave, por sobre o estendal de len&ccedil;os brancos de
+cabe&ccedil;a,
+at&eacute; ao fundo onde os homens do campo muito
+apertados, de varapau na m&atilde;o, pasmavam para
+a scintilla&ccedil;&atilde;o do sacrario! Era ent&atilde;o
+que Amelia o
+amava mais, pensando que aquellas m&atilde;os
+aben&ccedil;oadoras
+lh'as apertava ella com paix&atilde;o por baixo da
+mesa do quino: aquella voz, com que elle lhe chamava
+<span class="pagenum">[391]</span>
+<em>filhinha</em>, recitava agora as
+ora&ccedil;&otilde;es ineffaveis,
+e parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a
+mais que os graves do org&atilde;o! Imaginava com
+orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam
+tambem; mas s&oacute; tinha ciumes, um ciume de devota
+que sente os encantos do c&eacute;o, quando elle ficava
+diante do altar, na posi&ccedil;&atilde;o extatica que manda o
+ritual,
+t&atilde;o immovel como se a sua alma se tivesse remontado
+longe, para as alturas, para o Eterno e para
+o Insensivel. Preferia-o, por o sentir mais humano
+e mais accessivel, quando, durante o
+<em>Kirie</em> ou a
+leitura da Epistola, elle se sentava com os diaconos
+no banco de damasco vermelho; ella queria ent&atilde;o
+attrahir-lhe um olhar; mas o senhor parocho permanecia
+de olhos baixos n'uma compostura modesta.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face
+banhada n'um sorriso, admirava-lhe o perfil, a cabe&ccedil;a
+bem feita, os paramentos dourados&mdash;e lembrava-se
+quando o vira a primeira vez descendo a escada
+da rua da Misericordia, com o seu cigarro na m&atilde;o.
+Que romance se pass&aacute;ra desde essa noite! Recordava
+o Morenal, o salto do vallado, a scena da morte
+da titi, aquelle beijo ao p&eacute; da lareira... Ai, como
+acabaria tudo aquillo? Queria ent&atilde;o rezar; folheava
+o livro, mas vinha-lhe &aacute; id&eacute;a o que o Libaninho
+n'essa
+manh&atilde; dissera: &laquo;o senhor parocho tinha uma
+pellesinha
+t&atilde;o branca como um archanjo...&raquo; Devia-a ter
+decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo
+intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora
+visita&ccedil;&atilde;o do demonio,&mdash;e para a repellir
+arregalava
+<span class="pagenum">[392]</span>
+os olhos para o sacrario e para o throno que
+o padre Amaro, cercado dos diaconos, incensava em
+semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores,
+emquanto o c&ocirc;ro berrava o
+<em>Offertorio</em>... Depois
+elle mesmo, de p&eacute;, no segundo degrau do altar, de
+m&atilde;os postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia
+ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero;
+um perfume d'incenso derramava-se, como
+uma annuncia&ccedil;&atilde;o celeste; ennevoava-se o sacrario
+sob os rolos alvos de fumo; e o parocho apparecia
+a Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh,
+adorava-o ent&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+A igreja tremia ao clamor do org&atilde;o em pleno;
+de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a for&ccedil;a;
+em cima, al&ccedil;ando-se entre os bra&ccedil;os dos
+rebec&otilde;es,
+o mestre da capella, no fogo da execu&ccedil;&atilde;o,
+brandia desesperadamente a sua batuta feita d'um
+rolo de canto-ch&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia sahiu da igreja muito fatigada, muito
+pallida.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao jantar, em casa do conego, a snr.<sup>a</sup> D. Josepha
+censurou-a repetidamente de &laquo;n&atilde;o dar
+palavra&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o fallava, mas debaixo da mesa o seu p&eacute;sinho
+n&atilde;o cessava de ro&ccedil;ar, pisar o do padre Amaro.
+Como escurecera cedo tinham accendido as velas; o
+conego abrira uma garrafa, n&atilde;o do seu famoso
+<em>duque</em>
+de 1815, mas do &laquo;1847&raquo;, para acompanhar a
+<span class="pagenum">[393]</span>
+travessa d'aletria, que enchia o centro da mesa, com
+as iniciaes do parocho desenhadas a canella; era,
+como explic&aacute;ra o conego, &laquo;uma galanteria da mana
+ao convidado&raquo;. Amaro fizera logo uma saude com
+o 1847 &laquo;&aacute; digna dona da casa&raquo;. Ella
+resplandecia,
+medonha no seu vestido de bareje verde. O que
+sentia &eacute; que o jantar fosse t&atilde;o mau... Que
+aquella
+Gertrudes est&aacute;va-se a fazer uma desleixada... Ia-lhe
+deixando esturrar o pato com macarr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou
+o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o favores do senhor parocho. &Eacute; porque eu
+lhe acudi a tempo... Mais uma colh&eacute;rzinha d'aletria,
+senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada mais, minha senhora, tenho a minha
+conta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o para desgastar, v&aacute; mais esse copito do
+47, disse o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle mesmo bebeu pausadamente um bom gole,
+deu um <em>ah</em> de
+satisfa&ccedil;&atilde;o, e repoltreando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boa gota! Assim p&oacute;de-se viver!
+<br />
+
+<br />
+
+Estava j&aacute; rubro, e parecia mais obeso, com o
+seu grosso jaquet&atilde;o de flanella e o guardanapo atado
+ao pesco&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Boa gota! repetiu, d'este n&atilde;o provou hoje voss&ecirc;
+nas galhetas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, mano! exclamou D. Josepha com a
+boca cheia de fios d'aletria, muito escandalisada da
+irreverencia.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego encolheu os hombros com desprezo.
+<span class="pagenum">[394]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O credo &eacute; p'r'&aacute; missa! Esta
+preten&ccedil;&atilde;o de se
+metter sempre em quest&otilde;es que n&atilde;o percebe! Pois
+fique sabendo que &eacute; d'uma grande importancia a
+quest&atilde;o da qualidade do vinho, na missa. &Eacute; que
+&eacute;
+necessario que o vinho seja bom...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Concorre para a dignidade do santo sacrificio,
+disse o parocho muito s&eacute;rio, fazendo uma caricia de
+joelho a Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E n&atilde;o &eacute; s&oacute; isso, disse o conego
+tomando logo
+o tom pedagogo. &Eacute; que o vinho, quando n&atilde;o
+&eacute;
+bom e tem ingredientes, deixa um deposito nas galhetas;
+e, se o sacrist&atilde;o n&atilde;o &eacute; cuidadoso e
+n&atilde;o as
+limpa, as galhetas ganham um cheiro pessimo. E sabe
+a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote,
+quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor
+Jesus Christo, n&atilde;o est&aacute; prevenido e faz-lhe uma
+careta.
+Ora ahi tem a senhora!
+<br />
+
+<br />
+
+E deu um forte chup&atilde;o ao calix. Mas estava fallador
+n'essa noite, e depois d'arrotar devagar, interpellou
+de novo D. Josepha, assombrada de tanta
+sciencia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E diga-me l&aacute; ent&atilde;o a senhora, j&aacute; que
+&eacute; t&atilde;o
+doutora: o vinho, no divino sacrificio, deve ser branco
+ou tinto?
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para
+se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emende a menina, mugiu o conego de dedo
+em riste para Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella recusou-se, com um risinho. Como n&atilde;o era
+sacrist&atilde;o, n&atilde;o sabia...
+<span class="pagenum">[395]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emende o senhor parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, ent&atilde;o devia
+ser branco...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E porqu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E porque? continuava o conego, pedante e
+ronc&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o sabia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando
+pela primeira vez consagrou, fel-o com vinho branco.
+E a raz&atilde;o &eacute; muito simples: &eacute; porque na
+Jud&eacute;a n'esse
+tempo, como &eacute; notorio, n&atilde;o se fabricava vinho
+tinto... Repita-me a senhora a aletria, fa&ccedil;a favor.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas,
+o padre Amaro queixou-se do Bento sacrist&atilde;o.
+N'essa manh&atilde; antes de se paramentar&mdash;justamente
+quando entr&aacute;ra o senhor conego na sacristia&mdash;acabava
+de lhe dar uma desanda a respeito das alvas.
+Em primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia
+que vivia amancebada com um carpinteiro, em grande
+escandalo, e que era indigna de tocar os paramentos
+santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher
+trazia-as t&atilde;o enxovalhadas que era um desacato
+usal-as no divino sacrificio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as
+a mim, acudiu D. Josepha. Dou-as &aacute; minha
+lavadeira, que &eacute; pessoa de muita virtude e traz a
+roupa escarolada. Ai, at&eacute; era uma honra para mim!
+Eu mesmo as passava a ferro, e at&eacute; se podia benzer
+o ferro...
+<span class="pagenum"><a name="p396" id="p396">[396]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego (que positivamente estava n'aquella
+noite d'uma loquacidade copiosa) interrompeu-a,
+e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre
+lhe quero dizer, amigo e collega, que commetteu
+hoje um erro de palmatoria.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro pareceu inquieto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que erro, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente,
+j&aacute; com os diaconos ao lado, quando fez
+a cortezia &aacute; imagem da sacristia, em logar de fazer
+a cortezia profunda, fez s&oacute; a meia cortezia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alto l&aacute;, padre-mestre! exclamou o padre Amaro.
+&Eacute; o texto da rubrica. <em>Facta reverentia
+cruci</em>,
+feita a reverencia &aacute; cruz: isto &eacute;, a reverencia
+simples,
+abaixar ligeiramente a cabe&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+E, para <a href="#e11">exemplificar</a>, fez uma
+cortezia a D. Josepha
+que lhe sorriu toda, torcendo-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nego! exclamou formidavelmente o conego
+que em sua casa, &aacute; sua mesa, punha d'alto as suas
+opini&otilde;es. E nego com os meus auctores. Elles ahi
+v&atilde;o!&mdash;E deixou-lhe cahir em cima, como penedos
+d'autoridade, os nomes venerados de Laboranti, Baldeschi,
+Merati, Turrino e Pavonio.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro afast&aacute;ra a cadeira, puzera-se em attitude
+de controversia, contente de poder, diante d'Amelia,
+&laquo;enterrar&raquo; o conego, mestre de theologia moral e
+um colosso de liturgia pratica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
+<span class="pagenum"><a name="p397" id="p397">[397]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alto, ladr&atilde;o, bramiu o conego, Castaldus &eacute;
+meu!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Castaldus &eacute; meu, padre-mestre!
+<br />
+
+<br />
+
+E encarni&ccedil;aram-se, puxando cada um para si o
+veneravel Castaldus e a auctoridade da sua facundia.
+D. Josepha pulava de gozo na cadeira, murmurando
+para Amelia com a cara franzida de riso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, que gostinho v&ecirc;l-os! Ai, que santos!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro continuava, com o gesto alto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E al&eacute;m d'isso tenho por mim o bom-senso,
+padre-mestre. <em>Prim&ograve;</em>, a
+rubrica, como expuz.
+<em>Secund&ograve;</em>,
+o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na
+<a href="#e12">cabe&ccedil;a</a>, n&atilde;o
+deve fazer cortezia inteira,
+porque lhe
+p&oacute;de cahir o barrete e temos desacato maior.
+<em>Terti&ograve;</em>,
+seguir-se-hia um absurdo, porque ent&atilde;o a cortezia
+antes da missa &aacute; cruz da sacristia seria maior que
+a que se faz depois da missa &aacute; cruz do altar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas a cortezia &aacute; cruz do altar... bradou o
+conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; meia cortezia. Leia a rubrica: <em>Caput
+inclinat</em>.
+Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia deixar
+de ser assim! Sabe porqu&ecirc;? Porque depois da
+missa o sacerdote est&aacute; no auge da dignidade, uma
+vez que tem dentro em si o corpo e sangue de Nosso
+Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto &eacute; meu!
+<br />
+
+<br />
+
+E de p&eacute;, esfregou vivamente as m&atilde;os, triumphando.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego abatera a papeira sobre as pregas do
+guardanapo, como um boi atordoado. E depois d'um
+momento:
+<span class="pagenum">[398]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; n&atilde;o deixa de ter raz&atilde;o... Eu
+foi para
+o ouvir... Faz-me honra c&aacute; o discipulo, acrescentou
+piscando o olho a Amelia. Pois &eacute; beber, &eacute; beber!
+E
+depois salta o caf&eacute;sinho bem quente, mana Josepha!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas um forte repique &aacute; campainha sobresaltou-os.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a S. Joanneira, disse D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+A Gertrudes entrou com um chale e uma manta
+de l&atilde;:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Aqui est&aacute; isto que vem de casa da menina
+Amelia. A senhora manda muitos recados, que n&atilde;o
+p&oacute;de vir, que se achou incommodada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o com quem hei de eu ir? disse logo
+Amelia, inquieta.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego estendeu o bra&ccedil;o sobre a mesa, e dando-lhe
+uma palmadinha na m&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em ultimo caso com este seu criado. E essa
+virtudesinha podia ir socegada...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem coisas, mano! gritou a velha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe l&aacute;, mana. O que passa pela boca d'um
+santo, santo fica.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho approvou ruidosamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem muita raz&atilde;o o senhor conego Dias! O que
+passa pela pela boca d'um santo, santo fica! Para que
+viva!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute; sua!
+<br />
+
+<br />
+
+E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados
+da controversia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia fic&aacute;ra assustada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jesus, que ter&aacute; a mam&atilde;! Que ser&aacute;?
+<span class="pagenum">[399]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora o que ha de ser! pregui&ccedil;a! disse-lhe o
+parocho, rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te
+eu levar, vamos todos levar-te...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai a menina em charola, rosnou o conego
+descascando a sua p&ecirc;ra.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos
+em redor, e passando a m&atilde;o pelo estomago:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois olhem, disse, n&atilde;o me estou tambem a
+sentir bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;? que &eacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um amea&ccedil;osito da d&ocirc;r. Passou, n&atilde;o
+vale nada.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha, j&aacute; assustada, n&atilde;o queria que elle
+comesse
+a p&ecirc;ra. Que a ultima vez que lhe dera f&ocirc;ra
+por causa da fructa...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas elle, obstinado, cravou os dentes na p&ecirc;ra.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Passou, passou, rosnava.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi sympathia com a mam&atilde;, disse o parocho
+baixo a Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+De repente o conego afastou a cadeira, e torcendo-se
+de lado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o estou bem, n&atilde;o estou bem! Jesus! Oh,
+diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!
+<br />
+
+<br />
+
+Alvoro&ccedil;aram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o
+pelo bra&ccedil;o at&eacute; ao quarto, gritando &aacute;
+criada
+que fosse buscar o doutor. Amelia correu &aacute; cozinha
+a aquecer uma flanella para lhe p&ocirc;r no estomago.
+Mas n&atilde;o apparecia flanella. Gertrudes topava contra
+as cadeiras, espavorida, &aacute; procura do seu chale para
+sahir.
+<span class="pagenum">[400]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute; sem chale, sua estupida! gritou-lhe Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+A rapariga abalou. Dentro o conego dava urros.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o, realmente assustado, entrou-lhe no
+quarto. D. Josepha de joelhos diante da commoda
+gemia ora&ccedil;&otilde;es a uma grande lithographia de Nossa
+Senhora das D&ocirc;res; e o pobre padre-mestre, estirado
+de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas, minha senhora, disse o parocho severamente,
+n&atilde;o se trata agora de rezar. &Eacute; necessario
+fazer-lhe
+alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor parocho, n&atilde;o ha nada, n&atilde;o ha nada,
+choramingou a velha. &Eacute; uma d&ocirc;r que vem e vai
+n'um momento. N&atilde;o d&aacute; tempo p'ra nada! Um
+ch&aacute;
+de tilia allivia-o &aacute;s vezes... Mas por desgra&ccedil;a
+hoje
+nem tilia tenho! Ai, Jesus!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a
+pouco voltava esbaforido com a Dionysia, que vinha
+offerecer a sua actividade e a sua experiencia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o senhor conego, felizmente, sentira-se de
+repente alliviado!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha.
+Rica tilia! &Eacute; de muita caridade. Elle agora
+naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe sempre
+depois da d&ocirc;r... Eu vou para ao p&eacute; d'elle,
+desculpem-me...
+Esta foi peor que as outras... S&atilde;o estas
+fructas mald...&mdash;Reteve a blasphemia, aterrada.&mdash;S&atilde;o
+as fructas de Nosso Senhor. &Eacute; a sua divina vontade...
+Desculpem-me, sim?
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia e o parocho ficaram s&oacute;s na sala. Os seus
+olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de se
+<span class="pagenum">[401]</span>
+beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no
+quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro
+disse ent&atilde;o alto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pobre padre-mestre! &Eacute; uma d&ocirc;r terrivel.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;D&aacute;-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A
+mam&atilde; j&aacute; andava com o presentimento. Ainda me
+tinha
+dito antes d'hontem: &eacute; o tempo da d&ocirc;r do senhor
+conego, estou com mais cuidado...
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho suspirou, e baixinho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu &eacute; que n&atilde;o tenho quem pense nas minhas
+d&ocirc;res...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia pousou n'elle longamente os seus bellos
+olhos humedecidos de ternura:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o diga isso...
+<br />
+
+<br />
+
+As suas m&atilde;os iam apertar-se ardentemente por
+sobre a mesa; mas D. Josepha appareceu, encolhida
+no seu chale. O mano tinha adormecido. E ella
+estava que n&atilde;o se podia ter nas pernas. Ai, aquelles
+abalos arrazavam-lhe a saude! Accendera duas
+velas a S. Joaquim e fizera uma promessa a Nossa
+Senhora da Saude. Era a segunda aquelle anno, por
+causa da d&ocirc;r do mano. E Nossa Senhora n&atilde;o lhe
+tinha
+faltado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca falta a quem a implora com f&eacute;, minha
+senhora, disse com un&ccedil;&atilde;o o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O alto relogio d'armario bateu ent&atilde;o cavamente
+oito horas. Amelia fallou outra vez no cuidado em
+que estava pela mam&atilde;... Demais a mais ia-se a fazer
+t&atilde;o tarde...
+<span class="pagenum">[402]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; que quando eu sahi estava a choviscar,
+disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia correu &aacute; janella, inquieta. O lagedo defronte,
+debaixo do candieiro, reluzia muito molhado.
+O c&eacute;o estava tenebroso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jesus, vamos ter uma noite d'agua!
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha estava afflicta com o contratempo;
+mas a Amelia bem via, ella agora n&atilde;o podia despegar
+de casa; a Gertrudes f&ocirc;ra ao doutor; naturalmente
+n&atilde;o o encontr&aacute;ra, andava a procural-o de casa
+em casa, quem sabe quando viria...
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho ent&atilde;o lembrou que a Dionysia (que
+viera com elle e esperava na cozinha) podia ir acompanhar
+a snr.<sup>a</sup> D. Amelia. Eram dois passos,
+n&atilde;o havia
+ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas
+at&eacute; &aacute; esquina da Pra&ccedil;a... Mas deviam
+apressar-se,
+que ia cahir agua!
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para
+Amelia. Recommendou-lhe muito que contasse &aacute; mam&atilde;
+o que tinha succedido. Mas que n&atilde;o se affligisse
+ella, que o mano estava melhor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada,
+dize-lhe que se fez tudo o que se p&ocirc;de, mas que a
+d&ocirc;r n&atilde;o deu tempo para nada!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, l&aacute; direi. Boa noite.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia
+ent&atilde;o quiz esperar. Mas o parocho, apressado,
+puxou-a pelo bra&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o vale nada, n&atilde;o vale nada!
+<span class="pagenum">[403]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo
+do guardachuva, com a Dionysia ao lado, muito calada,
+de chale pela cabe&ccedil;a. Todas as janellas estavam
+apagadas; no silencio as goteiras cantavam
+d'enxurr&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jesus, que noite! disse Amelia. Vai-se-me a
+perder o vestido.
+<br />
+
+<br />
+
+Estavam ent&atilde;o na rua das Sousas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que agora cae a cantaros, disse Amaro.
+Realmente parece-me que o melhor &eacute; entrar no pateo
+de minha casa e esperar um bocado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o! acudiu Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe
+estragar o vestido... &Eacute; um instante, &eacute; um
+aguaceiro.
+Para aquelle lado, v&ecirc;, est&aacute; a alliviar. Vai
+passar...
+&Eacute; uma tolice... A mam&atilde;, se a visse apparecer
+debaixo d'uma carga d'agua, zangava-se, e com raz&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, e
+empurrando Amelia de leve:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um instante, vai passar, entre...
+<br />
+
+<br />
+
+E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando
+as cordas d'agua que reluziam &aacute; luz do candieiro defronte.
+Amelia estava toda atarantada. A negrura do
+pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe
+delicioso estar assim n'aquella escurid&atilde;o, ao p&eacute;
+d'elle,
+ignorada de todos... Insensivelmente attrahida,
+ro&ccedil;ava-se-lhe pelo hombro; e recuava logo, inquieta
+de ouvir a sua respira&ccedil;&atilde;o t&atilde;o agitada,
+de o sentir
+<span class="pagenum">[404]</span>
+t&atilde;o junto das saias. Percebia por traz, sem a v&ecirc;r,
+a
+escada que levava ao quarto d'elle; e tinha um desejo
+immenso de lhe ir v&ecirc;r acima os seus moveis,
+os seus arranjos... A presen&ccedil;a da Dionysia, encolhida
+contra a porta e muito calada, embara&ccedil;ava-a; todavia
+a cada momento voltava os olhos para ella,
+receando que desapparecesse, se sumisse na negrura
+do pateo ou da noite...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o come&ccedil;ou a bater com os p&eacute;s
+no
+ch&atilde;o, a esfregar as m&atilde;os, arripiado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages
+est&atilde;o regeladas... Realmente era melhor esperar
+em cima na sala de jantar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o! disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pieguices! At&eacute; a mam&atilde; se havia de zangar...
+V&aacute;, Dionysia, accenda luz em cima.
+<br />
+
+<br />
+
+A matrona immediatamente galgou os degraus.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ent&atilde;o, muito baixo, tomando o bra&ccedil;o
+d'Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porque n&atilde;o? Que pensas tu? &Eacute; uma pieguice.
+&Eacute; emquanto n&atilde;o passa o aguaceiro. Dize...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondia, respirando muito forte. Amaro
+pousou-lhe a m&atilde;o sobre o hombro, sobre o peito,
+apertando-lh'o, acariciando a s&ecirc;da. Toda ella estremeceu.
+E foi-o emfim seguindo pela escada, como
+tonta, com as orelhas a arder, trope&ccedil;ando a cada degrau
+na roda do vestido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Entra p'r'&aacute;hi, &eacute; o quarto, disse-lhe elle ao
+ouvido.
+<br />
+
+<br />
+
+Correu &aacute; cozinha. Dionysia accendia a vela.
+<span class="pagenum">[405]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de
+confessar aqui a menina Amelia. &Eacute; um caso muito
+s&eacute;rio... Volta d'aqui a meia hora. Toma.&mdash;Metteu-lhe
+tres placas na m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia descal&ccedil;ou os sapatos, desceu em pontas
+de p&eacute;s e fechou-se na loja do carv&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia l&aacute; estava,
+immovel, toda pallida. O parocho fechou a porta&mdash;e
+foi para ella, calado, com os dentes cerrados,
+soprando como um touro.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia
+desceu logo, muito embrulhada na manta: ao
+abrirem a porta do pateo passavam na rua dois borrachos
+galrando: Amelia recuou rapidamente para o
+escuro. Mas Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo
+a rua deserta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; a barra livre, minha rica menina...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o
+passo para a rua da Misericordia. J&aacute; n&atilde;o chovia;
+havia
+estrellas; e uma frialdade s&ecirc;cca annunciava o
+norte e o bom tempo.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XVII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha
+&aacute; cabeceira que ia chegando a hora da missa, saltou
+alegremente da cama. E, enfiando o velho paletot
+que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa
+outra manh&atilde; em Feir&atilde;o em que acord&aacute;ra
+aterrado
+por ter na vespera, pela primeira vez depois de
+padre, peccado brutalmente sobre a palha da estrebaria
+da residencia com a Joanna Vaqueira. E n&atilde;o
+se atrevera a dizer missa com aquelle crime na alma,
+que o abafava com um peso de penedo. Consider&aacute;ra-se
+contaminado, immundo, maduro para o inferno,
+segundo todos os santos padres e o seraphico
+concilio de Trento. Tres vezes cheg&aacute;ra &aacute; porta da
+igreja, tres vezes recu&aacute;ra assombrado. Tinha a certeza
+de que, se ousasse tocar na Eucharistia com
+<span class="pagenum">[408]</span>
+aquellas m&atilde;os com que repanh&aacute;ra os saiotes da
+Vaqueira,
+a capella se aluir&iacute;a sobre elle, ou ficaria paralysado
+vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada
+alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador!
+Mont&aacute;ra a cavallo e trot&aacute;ra duas horas, pelos
+barreiros
+de D. Jo&atilde;o, para ir &aacute; Gralheira confessar-se ao
+bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos
+de innocencia, de exagera&ccedil;&otilde;es piedosas e de
+terrores
+novi&ccedil;os! Agora tinha aberto os olhos em redor
+&aacute; realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e
+monsenhores n&atilde;o peccavam sobre a palha da estrebaria,
+n&atilde;o&mdash;era em alcovas commodas, com a ceia
+ao lado. E as igrejas n&atilde;o se aluiam, e S. Miguel Vingador
+n&atilde;o abandonava por t&atilde;o pouco os confortos
+do c&eacute;o!
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o era isso o que o inquietava&mdash;o que o inquietava
+era a Dionysia, que elle ouvia na cozinha,
+arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir-lhe
+agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella
+matrona introduzida, installada no seu segredo. N&atilde;o
+duvidava decerto da sua discri&ccedil;&atilde;o, era o seu
+<em>officio</em>;
+e algumas meias libras manteriam a sua fidelidade.
+Mas repugnava ao seu pudor de padre saber
+que aquella velha concubina de auctoridades civis e
+militares, que rol&aacute;ra a sua massa de gordura por todas
+as torpezas seculares da cidade, conhecia as
+suas fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam
+sob a batina de parocho. Preferiria que fosse o Silverio
+ou Natario que o tivesse visto na vespera,
+todo inflammado: era entre sacerdotes, ao menos!...
+<span class="pagenum">[409]</span>
+E o que o incommodava era a id&eacute;a de ser
+observado por aquelles olhinhos cynicos, que n&atilde;o se
+impressionavam nem com a austeridade das batinas
+nem com a respeitabilidade dos uniformes, porque
+sabiam que por baixo estava igualmente a mesma
+miseria bestial da carne...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
+<br />
+
+<br />
+
+N&oacute;s de dedos bateram discretamente &agrave; porta do
+quarto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se
+vivamente sobre a mesa, como absorvido,
+abysmado nos seus papeis.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre
+o lavatorio, tossiu, e fallando sobre as costas
+d'Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; senhor parocho, olhe que isto assim n&atilde;o tem
+geito. Hontem iam vendo sahir daqui a pequena. &Eacute;
+muito s&eacute;rio, menino... Para bem de todos &eacute;
+necessario
+segredo!
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o a podia imp&ocirc;r! A mulher
+estabelecia-se,
+&agrave; for&ccedil;a, na sua confidencia. Aquellas palavras
+mesmo,
+murmuradas com medo das paredes, revelando
+uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem
+d'uma cumplicidade t&atilde;o experiente.
+<br />
+
+<br />
+
+Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Iam vendo, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam
+ser dois cavalheiros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade.
+<span class="pagenum">[410]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E na sua posi&ccedil;&atilde;o, senhor parocho, na
+posi&ccedil;&atilde;o
+da pequena!... Tudo se deve fazer pelo calado...
+Nem os moveis do quarto devem saber! Em coisas
+que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse
+de morte!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o decidiu-se bruscamente a aceitar a
+<em>protec&ccedil;&atilde;o</em> da
+Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+Rebuscou n'um canto da gaveta, metteu-lhe meia
+libra na m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou
+ella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou
+elle recostado na cadeira, esperando os conselhos
+da matrona.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella disse muito naturalmente, sem affecta&ccedil;&atilde;o de
+mysterio ou de malicia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A mim parece-me que para v&ecirc;r a pequena
+n&atilde;o ha como a casa do sineiro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A casa do sineiro!?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente
+disposi&ccedil;&atilde;o do sitio. Um dos quartos ao
+p&eacute; da
+sacristia, como elle sabia, dava para um pateo onde
+se tinha feito um barrac&atilde;o no tempo das obras. Pois
+bem, justamente do outro lado eram as trazeiras da
+casa do sineiro... A porta da cozinha do tio Esguelhas
+abria para o pateo: era sahir da sacristia, atravessal-o,
+e o senhor parocho estava no ninho!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ella?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ella entra pela porta do sineiro, pela porta
+da rua que d&aacute; para o adro. N&atilde;o passa viva alma,
+&eacute;
+<span class="pagenum">[411]</span>
+um ermo. E se alguem visse, nada mais natural,
+era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro...
+Isto, j&aacute; se v&ecirc;, &eacute; ainda pelo alto, que
+o plano
+p&oacute;de-se aperfei&ccedil;oar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, comprehendo, &eacute; um esbo&ccedil;o, disse Amaro
+que passeava pelo quarto reflectindo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu conhe&ccedil;o bem o sitio, senhor parocho, e
+creia o que lhe digo: para um senhor ecclesiastico
+que tem o seu arranjinho, n&atilde;o ha melhor que a casa
+do sineiro!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro parou diante d'ella, rindo, familiarisando-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; tia Dionysia, diga l&aacute; com franqueza:
+n&atilde;o &eacute;
+a primeira vez que voss&ecirc; aconselha a casa do sineiro,
+hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ent&atilde;o negou, muito decisivamente. Era homem
+que nem conhecia, o tio Esguelhas! Mas tinha-lhe
+vindo aquella id&eacute;a de noite, a malucar na cama.
+Pela manh&atilde; cedo f&ocirc;ra examinar o sitio, e
+reconhecera
+que estava a calhar.
+<br />
+
+<br />
+
+Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta;
+e voltando-se ainda, com um ultimo conselho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo est&aacute; em que vossa senhoria se entenda
+bem com o sineiro.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era isso agora o que preoccupava o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Esguelhas passava na S&eacute;, entre os serventes
+e os sacrist&atilde;es, por um
+<em>macambusio</em>. Tinha uma
+<span class="pagenum">[412]</span>
+perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes,
+que desejariam o emprego para os seus protegidos,
+sustentavam mesmo que aquelle defeito o tornava,
+segundo a Regra, improprio para o servi&ccedil;o da Igreja.
+Mas o antigo parocho Jos&eacute; Migueis, em obediencia
+ao senhor bispo, conserv&aacute;ra-o na S&eacute;, argumentando
+que o trambolh&atilde;o desastroso que motiv&aacute;ra a
+amputa&ccedil;&atilde;o f&ocirc;ra na torre, n'uma
+occasi&atilde;o de festa,
+collaborando no culto: <em>ergo</em> estava
+claramente indicada
+a inten&ccedil;&atilde;o de Nosso Senhor em n&atilde;o
+prescindir
+do tio Esguelhas. E quando Amaro tom&aacute;ra conta da
+parochia, o c&ocirc;xo valera-se da influencia da S. Joanneira
+e d'Amelia para conservar, como elle dizia, a
+<em>corda do sino</em>. Era al&eacute;m
+d'isso (e f&ocirc;ra a opini&atilde;o da
+rua da Misericordia) uma obra de caridade. O tio Esguelhas,
+viuvo, tinha uma filha de quinze annos paralytica,
+desde pequena, das pernas. &laquo;O diabo embirrou
+com as pernas da familia&raquo;, costumava dizer
+o tio Esguelhas. Era decerto esta desgra&ccedil;a que lhe
+dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga
+(cujo nome era Antonia, e que o pai chamava
+T&oacute;t&oacute;) o torturava com perrices, phrenesis,
+caprichos
+abominaveis. O doutor Gouv&ecirc;a declar&aacute;ra-a
+<em>hysterica</em>:
+mas era uma certeza, para as pessoas de bons principios,
+que a T&oacute;t&oacute; estava <em>possuida do
+Demonio</em>. Houvera
+mesmo o plano de a exorcismar: o senhor vigario
+geral, por&eacute;m, sempre assustado com a imprensa,
+hesit&aacute;ra em conceder a permiss&atilde;o ritual, e
+tinham-lhe
+feito apenas, sem resultado, as aspers&otilde;es simples
+de agua benta. De resto n&atilde;o se sabia a natureza do
+<span class="pagenum">[413]</span>
+<em>endemoninhamento</em> da paralytica: a
+snr.<sup>a</sup> D. Maria
+da Assump&ccedil;&atilde;o ouvira dizer que consistia em uivar
+como um lobo; a Gansosinho, em outra vers&atilde;o, assegurava
+que a desgra&ccedil;ada se dilacerava com as
+unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam
+pela rapariga, respondia s&ecirc;ccamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; est&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Os intervallos do seu servi&ccedil;o da igreja passava-os
+todos com a filha no casebre. S&oacute; atravessava o
+largo para ir &aacute; botica por algum remedio, ou comprar
+bolos &aacute; confeitaria da Thereza. Todo o dia
+aquelle recanto da S&eacute;, o pateo, o barrac&atilde;o, o
+alto
+muro ao lado coberto de parietarias, a casa ao fundo
+com a sua janella de portada negra n'uma parede
+lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma
+sombra humida: e os meninos do c&ocirc;ro, que &aacute;s vezes
+se arriscavam a ir p&eacute;-ante-p&eacute;, pelo pateo,
+espreitar
+o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado
+&aacute; lareira, com o cachimbo na m&atilde;o, cuspilhando
+tristemente
+para as cinzas.
+<br />
+
+<br />
+
+Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a
+missa do senhor parocho. E Amaro, n'essa manh&atilde;, ao
+revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo a muleta,
+ia j&aacute; ruminando a sua historia&mdash;porque n&atilde;o podia
+pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem
+explicar, d'algum modo, que o desejava para um servi&ccedil;o
+religioso... E que servi&ccedil;o, a n&atilde;o ser preparar,
+em segredo e longe das opposi&ccedil;&otilde;es mundanas,
+alguma
+alma terna para o convento e para a santidade?
+<br />
+
+<br />
+
+Ao v&ecirc;l-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns
+<span class="pagenum">[414]</span>
+&laquo;bons dias&raquo; amaveis. Achou-lhe uma bella cara de
+saude! Tambem n&atilde;o admirava&mdash;porque, segundo
+todos os santos padres, a frequenta&ccedil;&atilde;o dos sinos,
+pela virtude particular que lhes communica a
+consagra&ccedil;&atilde;o,
+d&atilde;o uma alegria e um bem-estar especiaes.
+Contou ent&atilde;o com bonhomia ao tio Esguelhas e aos
+dois sacrist&atilde;es que, quando era pequeno, em casa
+da senhora marqueza d'Alegros, o seu grande desejo
+era ser um dia sineiro...
+<br />
+
+<br />
+
+Riram muito, extasiando-se com a pilheria de sua
+senhoria.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se riam, &eacute; verdade. E n&atilde;o me
+ficava
+mal... N'outros tempos eram clerigos d'ordens menores
+que tocavam os sinos. Os nossos santos padres
+consideram-n'os um dos meios mais efficazes
+da piedade. L&aacute; disse a glosa pondo o verso na b&ocirc;ca
+do sino:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2"><em>Laudo Deum, populum voco,
+congrego clerum.<br />
+
+Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...</em>
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O que quer dizer, como sabem: <em>Louvo a Deus, chamo
+o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento
+as pestes, alegro as festas</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Citava a glosa com respeito, j&aacute; revestido d'amicto
+e alva, no meio da sacristia; e o tio Esguelhas
+impertigava-se sobre a sua muleta &aacute;quellas palavras
+que lhe davam uma auctoridade e uma importancia
+imprevista.
+<br />
+
+<br />
+
+O sacrist&atilde;o tinha-se aproximado com a casula
+<span class="pagenum">[415]</span>
+r&ocirc;xa. Mas Amaro n&atilde;o termin&aacute;ra a
+glorifica&ccedil;&atilde;o dos
+sinos;&mdash;explicou ainda a sua grande virtude em
+dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns
+sabios presump&ccedil;osos), n&atilde;o s&oacute; porque
+communicam
+ao ar a un&ccedil;&atilde;o que recebem da
+ben&ccedil;&atilde;o, mas porque
+dispersam os demonios que erram entre os vendavaes
+e os trov&otilde;es. O santo concilio de Mil&atilde;o
+recommenda
+que se toquem os sinos sempre que haja
+tormenta...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou
+sorrindo com solicitude pelo sineiro, aconselho-lhe
+que n'esses casos &eacute; melhor n&atilde;o se arriscar.
+Sempre
+&eacute; estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso,
+tio Mathias.
+<br />
+
+<br />
+
+E recebeu sobre os hombros a casula, murmurando
+com muita compostura:
+<br />
+
+<br />
+
+-<em>Domine, quis dixisti jugum meum</em>...
+Aperte
+mais os cord&otilde;es por traz, tio Mathias.
+<em>Suave est, et
+onus meum leve</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Fez uma cortezia &aacute; imagem e entrou na igreja,
+na attitude da rubrica, d'olhos baixos e corpo direito;
+emquanto o Mathias, depois de ter tambem saudado
+com um rasp&atilde;o de p&eacute; o Christo da sacristia,
+se apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear
+a garganta.
+<br />
+
+<br />
+
+Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave,
+no <em>Offertorio</em> e ao
+<em>Orate fratres</em>, o padre Amaro
+dirigia-se
+sempre (por uma benevolencia que o ritual
+permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse
+por sua inten&ccedil;&atilde;o particular;&mdash;e o tio Esguelhas,
+com
+<span class="pagenum">[416]</span>
+a sua muleta pousada ao lado, abysmava-se ent&atilde;o
+n'uma devo&ccedil;&atilde;o mais respeitosa. Mesmo ao
+<em>Benedicat</em>,
+depois de ter come&ccedil;ado a ben&ccedil;&atilde;o
+voltado para o altar
+para recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia,
+terminou-a, virando-se devagar para o tio
+Esguelhas especialmente, como para lhe dar a elle
+s&oacute; as Gra&ccedil;as e Dons de Nosso Senhor!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar
+na sacristia, v&aacute;-me esperar ao pateo que temos
+que conversar.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o tardou a vir ter com elle, com uma face grave
+que impressionou o sineiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho
+fallar-lhe d'um caso s&eacute;rio... Verdadeiramente
+pedir-lhe um favor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho!
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o era um favor... Porque, quando se
+tratava
+do servi&ccedil;o de Deus, todos tinham o dever de
+concorrer na propor&ccedil;&atilde;o das suas
+for&ccedil;as... Tratava-se
+d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim,
+para lhe provar a confian&ccedil;a que tinha n'elle, ia-lhe
+dizer o nome...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; a Ameliasinha da S. Joanneira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz, senhor parocho?!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma voca&ccedil;&atilde;o, tio Esguelhas! V&ecirc;-se o
+dedo de
+Deus! &Eacute; extraordinario...
+<br />
+
+<br />
+
+Contou-lhe ent&atilde;o uma historia diffusa que ia forjando
+laboriosamente, segundo as sensa&ccedil;&otilde;es que
+imaginava
+v&ecirc;r na face pasmada do sineiro. A rapariga
+desgost&aacute;ra-se da vida, com as desaven&ccedil;as que
+tivera
+<span class="pagenum">[417]</span>
+com o noivo. Mas a m&atilde;i, que estava velha, que
+a necessitava para o governo da casa, n&atilde;o queria
+consentir, suppondo que era uma velleidade... Mas
+n&atilde;o, era voca&ccedil;&atilde;o... Elle sabia-o...
+Infelizmente,
+quando havia opposi&ccedil;&atilde;o, a conducta do sacerdote
+era
+muito delicada... Todos os dias os jornaes impios
+(e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as
+influencias do clero... As auctoridades, mais impias
+que os jornaes, punham obstaculos... Havia leis terriveis...
+Se soubessem que elle andava a instruir a
+menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que
+queria o tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do
+tempo! Ora, elle necessitava ter com a pequena
+muitas e muitas conferencias: para a experimentar,
+para conhecer as suas disposi&ccedil;&otilde;es, v&ecirc;r
+bem se &eacute; para
+a Solid&atilde;o que ella tem geito, ou para a Penitencia,
+ou para o servi&ccedil;o dos enfermos, ou para a
+Adora&ccedil;&atilde;o
+Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a
+por dentro e por f&oacute;ra.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas onde? exclamou, abrindo os bra&ccedil;os como
+na desola&ccedil;&atilde;o d'um santo dever contrariado. Onde?
+Em casa da m&atilde;i n&atilde;o p&oacute;de ser,
+j&aacute; andam desconfiados.
+Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua.
+Em minha casa, j&aacute; v&ecirc;, menina nova...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De modo que, tio Esguelhas... E estou certo
+que voss&ecirc; m'o ha de agradecer... pensei na sua
+casa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a
+casa, os trastes, est&aacute; tudo &aacute;s ordens!
+<span class="pagenum">[418]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem v&ecirc;, &eacute; no interesse d'aquella alma,
+&eacute; um
+regosijo para Nosso Senhor...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E p'ra mim, senhor parocho, e p'ra mim!
+<br />
+
+<br />
+
+O que o tio Esguelhas receava &eacute; que a casa n&atilde;o
+fosse decente e n&atilde;o tivesse as commodidades...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento
+de todos os confortos humanos. Comtanto que
+haja duas cadeiras e uma mesa para p&ocirc;r o livro da
+ora&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+De resto, por outro lado, dizia o sineiro, l&aacute; como
+sitio retirado e casa socegada estava a preceito. Ficavam
+alli, elle e a menina, como os monges no deserto.
+Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle
+sahia a dar o seu giro. Na cozinha n&atilde;o poderiam
+accommodar-se, porque o quartito da pobre T&oacute;t&oacute;
+era
+ao p&eacute;... Mas tinham o quarto d'elle, em cima.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro bateu com a m&atilde;o na testa. N&atilde;o
+se lembr&aacute;ra da paralytica!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas!
+exclamou.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava
+agora todo interessado n'aquella conquista d'uma
+noiva para Nosso Senhor; queria por for&ccedil;a que o seu
+telhado abrigasse a santa prepara&ccedil;&atilde;o da alma da
+menina...
+Talvez lhe attrahisse a elle a piedade de
+Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades
+da casa. A T&oacute;t&oacute; n&atilde;o
+embara&ccedil;ava. N&atilde;o se mexia da
+cama. O senhor parocho entrava pela cozinha do
+lado da sacristia, a menina vinha pela porta da rua:
+subiam, fechavam-se no quarto...
+<span class="pagenum">[419]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ella que faz, a T&oacute;t&oacute;? perguntou o padre
+Amaro, hesitando ainda.
+<br />
+
+<br />
+
+Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora
+fazia bonecas e apaixonava-se por ellas a ponto de
+ter febre; outros dias passava-os n'um silencio medonho
+com os olhos cravados na parede. Mas &aacute;s vezes
+estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgra&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Devia-se entreter, devia l&ecirc;r, disse o padre
+Amaro para mostrar interesse.
+<br />
+
+<br />
+
+O sineiro suspirou. N&atilde;o sabia l&ecirc;r, a pequena,
+nunca quizera aprender. Era o que elle lhe dizia&mdash;se
+pudesses l&ecirc;r j&aacute; te n&atilde;o pesava tanto a
+vida! Mas
+ent&atilde;o? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre
+Amaro devia ter a caridade de a persuadir, quando
+viesse a casa...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o parocho n&atilde;o o escutava, todo abysmado
+n'uma id&eacute;a que lhe alumi&aacute;ra a face d'um sorriso.
+Ach&aacute;ra subitamente a explica&ccedil;&atilde;o
+natural a dar &aacute; S.
+Joanneira e &aacute;s amigas das visitas d'Amelia a casa do
+sineiro: era a ensinar a l&ecirc;r a paralytica! A educal-a!
+A abrir-lhe a alma &aacute;s bellezas dos livros santos, da
+historia dos martyres e da ora&ccedil;&atilde;o!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando
+as m&atilde;os de jubilo. &Eacute; em sua casa que se ha
+de fazer da rapariga uma santa. E d'isto&mdash;e a sua
+voz deu um grave profundo&mdash;um segredo inviolavel!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho! fez o sineiro, quasi offendido.
+<span class="pagenum">[420]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Conto comsigo! disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Veio logo &aacute; sacristia escrever um bilhete, que devia
+passar em segredo a Amelia, em que lhe explicava
+detalhadamente &laquo;o arranjinho que fizera para
+gozarem novas e divinas felicidades&raquo;. Prevenia-a que
+o pretexto para ella vir todas as semanas a casa do
+sineiro devia ser a educa&ccedil;&atilde;o da paralytica: elle
+mesmo
+o proporia &aacute; noite em casa da mam&atilde;.
+&laquo;Que n'isto,
+dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus
+que se alumiasse com uma boa instruc&ccedil;&atilde;o religiosa
+as trevas d'aquella alma. E matamos assim, querido
+anjo, dois coelhos com uma s&oacute; cacheirada!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente
+&aacute; mesa do almo&ccedil;o, com um contentamento
+pleno de si, da vida e das d&ocirc;ces facilidades que n'ella
+encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo,
+solid&atilde;o da carne, tudo o que o consumira mezes e
+mezes, al&eacute;m na rua da Misericordia e alli na rua das
+Sousas, pass&aacute;ra. Estava emfim installado &aacute; larga
+na
+felicidade! E recordava, abysmado n'um gozo mudo,
+com o garfo esquecido na m&atilde;o, toda aquella
+meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os
+mentalmente um a um, saturando-se da
+deliciosa certeza da posse&mdash;como o lavrador que
+percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos
+invejaram muitos annos. Ah, n&atilde;o tornaria a olhar de
+lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam
+na Alameda com as suas mulheres pelo bra&ccedil;o! Tambem
+elle agora tinha uma, toda sua, alma e carne,
+linda, que o adorava, que usava boas roupas brancas,
+<span class="pagenum">[421]</span>
+e trazia no peito um cheirinho d'agua de colonia!
+Era padre, &eacute; verdade... Mas para isso tinha o
+seu grande argumento: &eacute; que o comportamento do
+padre, logo que n&atilde;o d&ecirc; escandalo entre os fieis,
+em
+nada prejudica a efficacia, a utilidade, a grandeza da
+religi&atilde;o. Todos os theologos ensinam que a ordem
+dos sacerdotes foi instituida para administrar os sacramentos;
+o essencial &eacute; que os homens recebam a
+santidade interior e sobrenatural que os sacramentos
+cont&ecirc;m; e comtanto que elles sejam dispensados
+segundo as formulas consagradas, que importa que
+o sacerdote seja santo ou peccador? O sacramento
+communica a mesma virtude. N&atilde;o &eacute; pelos meritos
+do sacerdote que elles operam, mas pelos meritos
+de Jesus Christo. O que &eacute; baptisado ou ungido, ou
+seja por m&atilde;os puras ou por m&atilde;os torpes, fica
+igualmente bem lavado da macula original, ou
+bem preparado para a vida eterna. Isto l&ecirc;-se em
+todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico concilio
+de Trento. Os fieis nada perdem, na sua alma
+e na sua salva&ccedil;&atilde;o, com a indignidade do parocho.
+E se o parocho se arrepende &aacute; hora extrema, tambem
+se lhe n&atilde;o fecham as portas do c&eacute;o. Logo em
+definitiva tudo acaba bem, e em paz geral...&mdash;E
+o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer
+o seu caf&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia, ao fim do almo&ccedil;o, veio saber, muito
+risonha, se o senhor parocho fall&aacute;ra ao tio Esguelhas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fallei por alto, disse elle ambiguamente. N&atilde;o
+<span class="pagenum">[422]</span>
+ha nada decidido... Roma n&atilde;o se construiu n'um
+dia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! fez ella.
+<br />
+
+<br />
+
+E recolheu-se &aacute; cozinha, pensando que o senhor
+parocho mentia como um hereje. Tambem, n&atilde;o se
+importava... Nunca gost&aacute;ra de arranjos com os senhores
+ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam
+sempre...
+<br />
+
+<br />
+
+E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu &aacute; escada
+a dizer-lhe&mdash;que emfim, ella tinha a olhar pela
+sua casa, e quando o senhor parocho tivesse arranjado
+criada...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A snr.<sup>a</sup> D. Josepha Dias anda-me a tratar
+d'isso,
+Dionysia. Espero ter alguem &aacute;manh&atilde;. Mas
+voss&ecirc;
+appare&ccedil;a... Agora que somos amigos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando o senhor parocho quizer &eacute; chamar-me
+da janella para o quintal, disse ella do alto da escada.
+Para tudo que precisar. De tudo sei um bocadinho,
+at&eacute; de desarranjos e de partos... E n'este
+ponto posso at&eacute; dizer...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o padre n&atilde;o a escutava: atir&aacute;ra com a porta
+de repell&atilde;o, fugindo, indignado d'aquella utilidade
+torpe assim brutalmente offerecida.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S.
+Joanneira da filha do sineiro.
+<br />
+
+<br />
+
+Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa
+noite, emquanto na sala se galrava alto, aproxim&aacute;ra-se
+do piano, onde Amelia, com os dedos pregui&ccedil;osos,
+<span class="pagenum">[423]</span>
+corria escalas, e abaixando-se para accender
+o cigarro &aacute; vela, murmur&aacute;ra:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Optimo!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde
+a Gansoso estava contando uma catastrophe que
+l&ecirc;ra n'um jornal, succedida em Inglaterra: uma mina
+de carv&atilde;o que desab&aacute;ra, sepultando cento e vinte
+trabalhadores. As velhas arripiavam-se horrorisadas.
+A Gansoso ent&atilde;o, gozando o effeito, accumulou
+loquazmente os detalhes: a gente que estava f&oacute;ra
+esfor&ccedil;&aacute;ra-se
+por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes
+em baixo os gemidos e os ais; era ao lusco-fusco;
+havia uma tormenta de neve...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se
+na sua poltrona, gozando o calor da sala e a
+seguran&ccedil;a dos tectos.
+<br />
+
+<br />
+
+A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o declarou que todas
+essas minas, essas machinas estrangeiras lhe causavam
+medo. Vira uma fabrica ao p&eacute; d'Alcoba&ccedil;a, e
+parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa
+que Nosso Senhor n&atilde;o as via com bons olhos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; como os caminhos de ferro, disse D. Josepha.
+Tenho a certeza que foram inspirados pelo demonio!
+N&atilde;o o digo a rir. Mas vejam aquelles uivos,
+aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro galhofou,&mdash;assegurando &aacute; snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha que eram ricamente commodos para andar
+depressa! Mas, tornando-se logo s&eacute;rio, acrescentou:
+<span class="pagenum">[424]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em todo o caso &eacute; incontestavel, que ha n'essas
+inven&ccedil;&otilde;es da sciencia moderna muito do demonio.
+E &eacute; por isso que a nossa santa Igreja as
+aben&ccedil;&ocirc;a,
+primeiro com ora&ccedil;&otilde;es e depois com agua benta.
+H&atilde;o de saber que &eacute; o costume. Com agua benta para
+lhes fazer o exorcismo, expulsar o espirito inimigo:
+e com ora&ccedil;&otilde;es para as resgatar do peccado
+original
+que n&atilde;o s&oacute; existe no homem, mas nas coisas
+que elle construe. &Eacute; por isso que se benzem e se purificam
+as locomotivas... Para que o demonio n&atilde;o
+se possa servir d'ellas para seu uso.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o quiz immediatamente
+uma explica&ccedil;&atilde;o. Como era a maneira usual do
+Inimigo
+se servir dos caminhos de ferro?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O
+Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era
+esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem
+passageiros, e como essas almas n&atilde;o estavam
+preparadas pela Extrema-Un&ccedil;&atilde;o, o demonio alli
+mesmo,
+z&aacute;s, apoderava-se d'ellas!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; de velhaco! rosnou o conego, com uma
+admira&ccedil;&atilde;o
+secreta por aquella manha t&atilde;o habil do Inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o abanou-se
+langorosamente,
+com o rosto banhado n'um sorriso de beatitude:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados,
+a n&oacute;s &eacute; que n&atilde;o nos succedia isso...
+Que n&atilde;o nos
+pilhava desprevenidas!
+<br />
+
+<br />
+
+Era verdade; e todas gozaram um momento
+<span class="pagenum"><a name="p425" id="p425">[425]</a></span>
+aquella certeza deliciosa de estarem preparadas, de
+poderem lograr a malicia do Tentador!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro ent&atilde;o tossiu como para preparar
+as vias, e apoiando as duas m&atilde;os sobre a mesa,
+n'um tom de pratica:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; necessario muita vigilancia para conservar
+de longe o demonio. Ainda hoje eu estava a pensar
+n'isso (foi mesmo a minha medita&ccedil;&atilde;o) a respeito
+de
+um caso bem triste que tenho l&aacute; ao p&eacute; da
+S&eacute;... &Eacute;
+a filhita do sineiro.
+<br />
+
+<br />
+
+As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe
+as palavras, n'uma curiosidade subitamente
+excitada, esperando ouvir a historia picante d'alguma
+fa&ccedil;anha de Satanaz. E o parocho continuou com uma
+voz a que o silencio em redor dava solemnidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alli est&aacute; aquella rapariga, todo o santo dia,
+pregada na cama! N&atilde;o sabe l&ecirc;r, n&atilde;o tem
+devo&ccedil;&otilde;es
+habituaes, n&atilde;o tem o costume da
+medita&ccedil;&atilde;o; &eacute; por
+consequencia, para empregar a express&atilde;o de S.
+Clemente&mdash;<em>uma
+alma sem defeza</em>. O que succede?
+Que o demonio, que ronda constantemente e n&atilde;o
+perde dentada, estabelece-se alli como em sua casa!
+Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas,
+s&atilde;o phrenesis, desesperos, furores sem raz&atilde;o...
+Emfim
+o pobre homem tem a vida estragada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou
+D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, indignada d'aquella
+impudencia de Satanaz, <a href="#e13">installando-se</a>
+n'um corpo,
+n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava
+dos contrafortes da S&eacute;.
+<span class="pagenum">[426]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro acudiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem a D. Maria raz&atilde;o. O escandalo &eacute; enorme.
+Mas ent&atilde;o? Se a rapariga n&atilde;o sabe l&ecirc;r!
+Se n&atilde;o sabe
+uma ora&ccedil;&atilde;o, se n&atilde;o tem quem a instrua,
+quem lhe
+leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe
+ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...
+<br />
+
+<br />
+
+Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala,
+de hombros vergados, n'uma m&aacute;goa de pastor a
+quem uma for&ccedil;a desproporcional arrebata uma ovelha
+amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia,
+com effeito, uma piedade que o invadia, uma compaix&atilde;o
+verdadeira por aquella pobre creatura, a
+quem a falta de consola&ccedil;&otilde;es devia tornar mais
+intensa
+a agonia da immobilidade...
+<br />
+
+<br />
+
+As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle
+caso triste d'abandono d'alma,&mdash;sobretudo pela d&ocirc;r
+que elle parecia trazer ao senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+A snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, que percorria
+em imagina&ccedil;&atilde;o o abundante arsenal da
+devo&ccedil;&atilde;o,
+lembr&aacute;ra logo que se lhe puzessem alguns santos &aacute;
+cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete
+Chagas... Mas o silencio das amigas exprimiu bem
+a insufficiencia d'aquella galeria devota.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As senhoras dir-me-h&atilde;o talvez, disse o padre
+Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da
+filha do sineiro. Mas &eacute; uma alma! &Eacute; uma alma como
+as nossas!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Todos t&ecirc;m direito &aacute; gra&ccedil;a do Senhor,
+disse
+o conego gravemente, n'um sentimento d'imparcialidade,
+admittindo a igualdade das classes logo que
+<span class="pagenum">[427]</span>
+n&atilde;o se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos
+do c&eacute;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P'ra Deus n&atilde;o ha pobre nem rico, suspirou a
+S. Joanneira. Antes pobre, que dos pobres &eacute; o reino
+do c&eacute;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, antes rico, acudiu o conego, estendendo
+a m&atilde;o para deter aquella falsa
+interpreta&ccedil;&atilde;o da lei
+divina. Que o c&eacute;o tambem &eacute; para os ricos. A
+senhora
+n&atilde;o comprehende o preceito. <em>Beati
+pauperes</em>, bemditos
+os pobres, quer dizer que os pobres devem-se
+achar felizes na pobreza; n&atilde;o desejarem os bens dos
+ricos; n&atilde;o quererem mais que o bocado de p&atilde;o que
+t&ecirc;m; n&atilde;o aspirarem a participar das riquezas dos
+outros, sob pena de n&atilde;o serem bemditos. &Eacute; por
+isso,
+saiba a senhora, que essa canalha que pr&eacute;ga que os
+trabalhadores e as clases baixas devem viver melhor
+do que vivem, vai d'encontro &aacute; expressa vontade da
+Igreja e de Nosso Senhor, e n&atilde;o merece sen&atilde;o
+chicote,
+como excommungados que s&atilde;o! Ouf!
+<br />
+
+<br />
+
+E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O
+padre Amaro, esse, permanecia calado, com o cotov&ecirc;lo
+sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia
+lan&ccedil;ar a sua id&eacute;a, como vinda d'uma
+inspira&ccedil;&atilde;o divina,
+prop&ocirc;r que fosse Amelia levar uma
+educa&ccedil;&atilde;o
+devota &aacute; triste paralytica... E hesitava supersticiosamente
+diante do seu motivo todo carnal, todo de
+concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora,
+exageradamente, abysmada n'uma treva d'agonia.
+Sentia toda a caridade que haveria em consolal-a,
+entretel-a, fazer-lhe os dias menos amargos...
+<span class="pagenum"><a name="p428" id="p428">[428]</a></span>
+Esta ac&ccedil;&atilde;o redimiria decerto muitas culpas,
+encantaria
+Deus, se fosse feita n'um puro espirito de fraternidade
+christ&atilde;! Vinha-lhe uma compaix&atilde;o sentimental
+de bom rapaz por aquelle miseravel corpo
+pregado n'uma cama, sem nunca v&ecirc;r o sol nem a
+rua... E alli estava embara&ccedil;ado, n'aquella piedade
+que o invadia, sem se decidir, co&ccedil;ando a nuca, arrependido
+quasi de ter fallado &aacute;s senhoras da
+T&oacute;t&oacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma id&eacute;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; senhor padre Amaro, se se lhe mandasse
+aquelle livro com pinturas de vidas dos santos?
+Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me
+alma... N&atilde;o &eacute;s tu que o tens, Amelia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, disse ella, sem erguer os olhos da costura.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o olhou-a. Tinha-a quasi esquecido.
+Estava agora do outro lado da mesa, abainhando
+um esfreg&atilde;o: a risca muita fina desapparecia na
+abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro
+ao lado punha um tra&ccedil;o lustroso; as pestanas
+pareciam mais longas, mais negras sobre a pelle
+da face, d'um trigueiro calido, que uma tinta rosada
+aquecia; o vestido justo, que se franzia n'uma
+prega sobre o hombro, elevava-se amplamente sobre
+a f&oacute;rma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo
+da respira&ccedil;&atilde;o igual... Era aquella a belleza que
+mais appetecia n'ella; imaginava-os d'uma c&ocirc;r de
+neve, redondos e cheios; tivera-a nos bra&ccedil;os, sim,
+mas vestida, e as suas m&atilde;os s&ocirc;fregas tinham
+<a href="#e14">encontrado</a>
+s&oacute; a s&ecirc;da fria... Mas na casa do sineiro seriam
+<span class="pagenum">[429]</span>
+d'elle, sem obstaculo, sem vestidos, &aacute;
+disposi&ccedil;&atilde;o dos
+seus labios. Por Deus! e nada impedia que ao mesmo
+tempo consolassem a alma da T&oacute;t&oacute;! N&atilde;o
+hesitou
+mais. E erguendo a voz, no meio do palratorio das
+velhas que discutiam agora a desappari&ccedil;&atilde;o da
+<em>Vida
+dos Santos</em>:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, minhas senhoras, n&atilde;o &eacute; com
+livros que
+se vale &aacute; rapariga... Sabem a id&eacute;a que me veio?
+Era um de n&oacute;s, o que estiver menos occupado, levar-lhe
+a palavra de Deus e educar aquella alma!&mdash;E
+acrescentou, sorrindo:&mdash;E a fallar a verdade,
+a pessoa mais desoccupada aqui de todos n&oacute;s &eacute; a
+menina Amelia...
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade
+de Nosso Senhor vinda n'uma revela&ccedil;&atilde;o. Os
+olhos de todas accenderam-se n'uma excita&ccedil;&atilde;o
+devota,
+&aacute; id&eacute;a d'aquella miss&atilde;o de caridade,
+que partia
+alli d'ellas, da rua da Misericordia... Extasiavam-se,
+no ante-gosto guloso dos elogios do senhor
+chantre e do cabido! Cada uma dava o seu conselho,
+n'uma assiduidade de participar da santa obra,
+de partilharem as recompensas que o c&eacute;o certamente
+prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com
+calor que invejava Amelia; e chocou-se muito vendo-a
+de repente rir.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Imaginas que n&atilde;o o faria com a mesma
+devo&ccedil;&atilde;o?
+J&aacute; est&aacute;s com o orgulho da boa
+ac&ccedil;&atilde;o... Olha
+que assim n&atilde;o t'aproveita!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso,
+<span class="pagenum"><a name="p430" id="p430">[430]</a></span>
+deitada para as costas da cadeira, suffocando-se
+para se conter.
+<br />
+
+<br />
+
+Os olhinhos de D. Joaquina chammejavam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; indecente, &eacute; indecente! gritava.
+<br />
+
+<br />
+
+Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os
+Santos Evangelhos que f&ocirc;ra uma id&eacute;a extravagante
+que tivera, que era nervoso...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, disse D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o, ella tem
+raz&atilde;o
+em s'orgulhar. Que &eacute; uma honra p'r'&aacute; casa! Em
+se sabendo...
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho interrompeu com severidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&atilde;o se deve saber, snr.<sup>a</sup> D.
+Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o!
+De que serve, aos olhos do Senhor, uma
+boa obra de que se tire alarde e vangloria?
+<br />
+
+<br />
+
+D. Maria vergou os hombros, humilhando-se &aacute;
+reprehens&atilde;o.
+E Amaro, com gravidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto n&atilde;o deve sahir d'aqui. &Eacute; entre Deus e
+n&oacute;s. Queremos salvar uma alma, consolar uma enferma,
+e n&atilde;o ter elogios nos periodicos. Pois n&atilde;o
+&eacute;
+assim, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ergueu-se pesadamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; esta noite tem fallado com a lingua de
+ouro de S. Chrysostomo. Eu estou edificado; e n&atilde;o
+se me dava agora de v&ecirc;r apparecer as torradas.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o, emquanto a
+<em>Ru&ccedil;a</em> n&atilde;o
+trazia o ch&aacute;,
+que se decidiu que Amelia, todas as semanas, uma
+ou duas vezes segundo fosse a sua devo&ccedil;&atilde;o, <a href="#e15">iria
+em</a>
+segredo, para que a ac&ccedil;&atilde;o fosse mais valiosa aos
+olhos de Deus, passar uma hora &agrave; cabeceira da paralytica,
+<span class="pagenum">[431]</span>
+l&ecirc;r-lhe a <em>Vida dos Santos</em>,
+ensinar-lhe rezas
+e insufflar-lhe a virtude.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, resumiu a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o
+voltando-se para Amelia, n&atilde;o te digo sen&atilde;o
+uma coisa: abichaste!
+<br />
+
+<br />
+
+A <em>Ru&ccedil;a</em> entrou com o
+taboleiro, no meio dos risos
+que provoc&aacute;ra a &laquo;tolice de D. Maria&raquo;,
+como disse
+Amelia, que se fizera escarlate.&mdash;E foi assim que
+ella e o padre Amaro se puderam v&ecirc;r livremente,
+para gloria do Senhor e humilha&ccedil;&atilde;o do Inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora
+duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas
+&aacute; paralytica perfizessem ao fim do mez o numero
+symbolico de sete, que devia corresponder, na id&eacute;a
+das devotas, &aacute;s <em>Sete
+li&ccedil;&otilde;es de Maria</em>. Na vespera o
+padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que
+deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de
+ter varrido toda a casa e preparado o quarto para
+a pratica do senhor parocho. Amelia n'esses dias erguia-se
+cedo: tinha sempre alguma saia branca a
+engommar, algum la&ccedil;arote a comp&ocirc;r; a
+m&atilde;i estranhava-lhe
+aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua
+de colonia de que ella se inundava; mas Amelia
+explicava que &laquo;era para inspirar &aacute;
+T&oacute;t&oacute; id&eacute;as de
+aceio e de frescura&raquo;. E depois de vestida sentava-se,
+esperando as onze horas, muito s&eacute;ria, respondendo
+distrahidamente &aacute;s conversas da m&atilde;i, com
+<span class="pagenum">[432]</span>
+uma c&ocirc;r nas faces, os olhos cravados nos ponteiros
+do relogio: emfim a velha matraca gemia cavamente
+as onze horas, e ella, depois d'uma olhadella ao
+espelho, sahia, dando uma beijoca &aacute; mam&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+Ia sempre receosa, n'uma inquieta&ccedil;&atilde;o de ser
+espreitada.
+Todas as manh&atilde;s pedia a Nossa Senhora
+da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e
+se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola,
+para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos
+mendigos e vagabundos. O que a assustava era o
+largo da S&eacute;, sobre o qual a Amparo da botica, costurando
+por traz da janella, exercia uma vigilancia
+incessante. Fazia-se ent&atilde;o pequenina no seu mantelete,
+e abaixando o guardasol sobre o rosto, entrava
+emfim na S&eacute;, sempre com o p&eacute; direito.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida
+n'uma luz fusca, amedrontava-a: parecia-lhe sentir,
+na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma reprehens&atilde;o
+ao seu peccado; imaginava que os olhos de
+vidro das imagens, as pupillas pintadas dos paineis
+se fixavam n'ella, com uma insistencia cruel, e percebiam
+o arfar que ao seu seio dava a esperan&ccedil;a do
+prazer. &Aacute;s vezes mesmo, atravessada d'uma
+supersti&ccedil;&atilde;o,
+para dissipar o descontentamento dos santos,
+promettia dar-se n'essa manh&atilde; toda &aacute;
+T&oacute;t&oacute;, occupar-se
+caridosamente s&oacute; d'ella, e n&atilde;o se deixar tocar
+sequer
+no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se
+ao entrar na casa do sineiro o n&atilde;o encontrava, ia logo,
+sem se deter ao p&eacute; da cama da T&oacute;t&oacute;,
+postar-se
+&agrave; janella da cozinha, vigiando a porta massi&ccedil;a da
+sacristia
+<span class="pagenum">[433]</span>
+de que ella conhecia uma por uma as chapas
+negras de ferro.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle apparecia, emfim. Era ent&atilde;o nos come&ccedil;os de
+mar&ccedil;o; j&aacute; tinham chegado as andorinhas;
+ouviam-n'as
+chilrear, n'aquelle silencio melancolico, esvoa&ccedil;ando
+entre os contrafortes da S&eacute;. Aqui e al&eacute;m,
+plantas dos logares humidos cobriam os cantos d'uma
+verdura escura. Amaro, &aacute;s vezes muito galante, ia
+procurar uma florzinha. Amelia impacientava-se, rufava
+na vidra&ccedil;a da cozinha. Elle apressava-se; ficavam
+um momento &aacute; porta, apertando-se as m&atilde;os,
+com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim
+v&ecirc;r a T&oacute;t&oacute;&mdash;e dar-lhe os bolos que o
+parocho
+lhe trazia no bolso da batina.
+<br />
+
+<br />
+
+A cama da T&oacute;t&oacute; era na alcova, ao lado da cozinha;
+o seu corpinho de tisica quasi n&atilde;o fazia saliencia
+enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores
+enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses
+dias tinha vestido um chambre branco, os cabellos
+reluziam-lhe d'oleo; porque ultimamente, desde as
+visitas d'Amaro, viera-lhe &laquo;uma birra de parecer
+alguem&raquo;,
+como dizia encantado o tio Esguelhas, a
+ponto de se n&atilde;o querer separar d'um espelho e
+d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e
+obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa
+suja, as bonecas que agora desprezava.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia sentava-se um instante aos p&eacute;s do catre,
+perguntando-lhe se estud&aacute;ra o A B C, obrigando-a a
+dizer aqui e al&eacute;m o nome d'uma letra. Depois queria
+que ella repetisse sem a errar a ora&ccedil;&atilde;o que lhe
+<span class="pagenum">[434]</span>
+andava ensinando;&mdash;emquanto o padre, sem passar
+da porta, esperava, com as m&atilde;os nos bolsos, enfastiado,
+embara&ccedil;ado com os olhos reluzentes da paralytica
+que o n&atilde;o deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe
+o corpo com pasmo e com ardor, e que
+pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro
+t&atilde;o chupado que se lhe via a saliencia das
+maxillas. N&atilde;o sentia agora nem compaix&atilde;o nem
+caridade
+pela T&oacute;t&oacute;; detestava aquella demora; achava
+a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem
+pesavam aquelles momentos em que, para n&atilde;o escandalisar
+muito Nosso Senhor, se resignava a fallar
+&agrave; paralytica. A T&oacute;t&oacute; parecia odial-a;
+respondia-lhe
+muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio
+rancoroso, voltada para a parede; um dia
+despeda&ccedil;&aacute;ra
+o alphabeto; e encolhia-se toda encruada
+se Amelia lhe queria compor o chale sobre os hombros
+ou conchegar-lhe a roupa...
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a
+Amelia; ella punha logo diante da T&oacute;t&oacute; o livro
+com
+estampas da <em>Vida dos Santos</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute;, ficas agora a v&ecirc;r as figuras... Olha, este
+&eacute; S. Matheus, esta Santa Virginia... Adeus, eu vou
+l&aacute; a cima com o senhor parocho rezarmos para que
+Deus te d&ecirc; saude e te deixe ir passear... N&atilde;o
+estragues
+o livro, que &eacute; peccado.
+<br />
+
+<br />
+
+E subiam a escada, emquanto a paralytica, estendendo
+o pesco&ccedil;o s&ocirc;fregamente, os seguia, escutando
+o ranger dos degraus, com olhos chammejantes
+que lagrimas de raiva ennevoavam. O quarto,
+<span class="pagenum">[435]</span>
+em cima, era muito baixo, sem forro, com um tecto
+de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao
+lado da cama pendia a candeia que puzera sobre a
+parede um penacho negro do fumo. E Amaro ria
+sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas&mdash;a
+mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
+caneca d'agua, e duas cadeiras dispostas ao lado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; p'r'&aacute; nossa conferencia, para te ensinar os
+deveres de freira, dizia elle, galhofando.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ensina, ent&atilde;o! murmurava ella de bra&ccedil;os
+abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso
+calido onde brilhava um branquinho dos dentes,
+n'um abandono que se offerecia.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pesco&ccedil;o, pelos
+cabellos; &agrave;s vezes mordia-lhe a orelha; ella dava
+um gritinho; e ficavam ent&atilde;o muito quedos, escutando,
+com medo da paralytica em baixo. O parocho
+depois fechava as portadas da janella e a porta
+muito perra que tinha d'empurrar com o joelho.
+Amelia ia-se despindo devagar; e com as saias cahidas
+aos p&eacute;s ficava um momento immovel, como
+uma f&oacute;rma branca na escurid&atilde;o do quarto. Em redor
+o padre, preparando-se, respirava forte. Ella ent&atilde;o
+persignava-se depressa, e sempre ao subir para
+o leito dava um suspirosinho triste.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia s&oacute; podia demorar-se at&eacute; ao meio dia. O
+padre Amaro por isso pendurava o seu
+<em>cebol&atilde;o</em> no
+prego da candeia. Mas quando n&atilde;o ouviam as badaladas
+da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar
+d'um gallo visinho.
+<span class="pagenum"><a name="p436" id="p436">[436]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixa l&aacute;... Est&aacute;s sempre com a pressa...
+<br />
+
+<br />
+
+Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassid&atilde;o
+d&ocirc;ce, muito chegados um ao outro. Pelas vigas
+separadas do telhado mal junto viam aqui e
+al&eacute;m fendas de luz: &aacute;s vezes sentiam um gato, com
+as suas passadas fofas, vadiar, fazendo bolir alguma
+telha solta; ou um passaro, pousando, chilreava e
+ouviam-lhe o fremito das azas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, s&atilde;o horas, dizia Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre queria detel-a; n&atilde;o se fartava de lhe
+beijar a orelhinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Lamb&atilde;o! murmurava ella. Deixa-me!
+<br />
+
+<br />
+
+Vestia-se &aacute; pressa no escuro do quarto; depois
+ia abrir a janella, vinha ainda abra&ccedil;ar o pesco&ccedil;o
+de
+Amaro, que fic&aacute;ra estatelado sobre o leito; e ia emfim
+arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralytica
+sentir em baixo, saber que tinha acabado a conferencia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o findava ainda de a beijocar: ella
+ent&atilde;o,
+para acabar, fugia-lhe, ia escancarar a porta do
+quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas
+a cozinha sem olhar para a T&oacute;t&oacute;, e entrava na
+sacristia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, essa, antes de sahir, vinha v&ecirc;r a paralytica,
+saber se gost&aacute;ra das estampas. Encontrava-a
+&aacute;s vezes com a cabe&ccedil;a debaixo dos cobertores, que
+entalava e prendia com as m&atilde;os para se <a href="#e16">esconder</a>;
+outras vezes, sentada na cama, examinava Amelia
+com olhos em que se accendia uma curiosidade viciosa;
+<span class="pagenum">[437]</span>
+chegava o rosto para ella, com as narinas dilatadas
+que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta,
+c&oacute;rando tambem; queixava-se ent&atilde;o de ser
+tarde, recolhia a <em>Vida dos
+Santos</em>,&mdash;e sahia, amaldi&ccedil;oando
+aquella creatura t&atilde;o maliciosa na sua mudez.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passar no largo, &aacute;quella hora, via sempre a
+Amparo &aacute; janella. Ultimamente mesmo julg&aacute;ra
+prudente
+contar-lhe em segredo a sua caridade com a
+T&oacute;t&oacute;. A Amparo, mal a via, chamava-a; e
+debru&ccedil;ando-se
+toda na varanda:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o como vai a T&oacute;t&oacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; vai.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; l&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; soletra.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a ora&ccedil;&atilde;o a Nossa Senhora?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; a diz.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, que devo&ccedil;&atilde;o a tua, filha!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos,
+que estava tambem no segredo, deixava o balc&atilde;o
+para vir &aacute; porta admirar Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vem da sua grande miss&atilde;o de caridade, hein?
+dizia, d'olho arregalado, balanceando-se na ponta das
+chinelas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estive um bocado com a pequena, a entretel-a...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado!
+Pois v&aacute;, minha santa menina, recados &aacute;
+mam&atilde;.
+<span class="pagenum">[438]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Voltava-se ent&atilde;o para dentro, para o praticante:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de
+passar o seu tempo, como as outras, em namoros,
+faz-se anjo da guarda! Passa a fl&ocirc;r dos annos com
+uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o
+materialismo, e essas porcarias s&atilde;o capazes d'inspirar
+ac&ccedil;&otilde;es d'este jaez... S&oacute; a
+religi&atilde;o, meu caro
+senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada
+de philosophos vissem isto! Que eu, tenha o senhor
+em vista, admiro a philosophia, mas quando ella,
+por assim dizer, vai de m&atilde;os dadas com a
+religi&atilde;o...
+Sou homem de sciencia e admiro um Newton,
+um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras)
+se a philosophia se afasta da religi&atilde;o... (grave
+bem estas palavras) dentro de dez annos, snr.
+Augusto, est&aacute; a philosophia enterrada!
+<br />
+
+<br />
+
+E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos
+lentos, de m&atilde;os atraz das costas, ruminando o
+fim da philosophia.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XVIII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi aquelle o periodo mais feliz da vida de
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Ando na gra&ccedil;a de Deus&raquo;, pensava elle
+&aacute;s vezes
+&aacute; noite, ao despir-se, quando por um habito ecclesiastico,
+fazendo o exame dos seus dias, via que
+elles se seguiam faceis, t&atilde;o confortaveis, t&atilde;o
+regularmente
+gozados. N&atilde;o houvera, nos ultimos dois mezes,
+nem attritos nem difficuldades no servi&ccedil;o da parochia;
+todo o mundo, como dizia o padre Saldanha,
+andava d'um humor de santo. D. Josepha Dias
+arranj&aacute;ra-lhe muito barata uma cozinheira excellente,
+e que se chamava Escolastica. Na rua da Misericordia
+tinha a sua c&ocirc;rte admiradora e devota; cada
+semana, uma ou duas vezes, vinha &aacute;quella hora deliciosa
+e celeste na casa do tio Esguelhas; e para
+completar a harmonia at&eacute; a esta&ccedil;&atilde;o ia
+t&atilde;o linda, que
+j&aacute; no Morenal come&ccedil;avam a abrir as rosas.
+<span class="pagenum">[440]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o que o encantava era que nem as velhas,
+nem os padres, ninguem da sacristia suspeitava os
+seus <em>rendez-vous</em> com Amelia.
+Aquellas visitas &aacute; T&oacute;t&oacute;
+tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe
+&laquo;as devo&ccedil;&otilde;es da pequena&raquo;; e
+n&atilde;o a interrogavam
+com particularidades, pelo principio beato que
+as devo&ccedil;&otilde;es s&atilde;o um segredo que se tem
+com Nosso
+Senhor. S&oacute; &aacute;s vezes alguma das senhoras
+perguntava
+a Amelia&mdash;como ia a doente; ella assegurava
+que estava muito mudada, que come&ccedil;ava a abrir
+os olhos &aacute; lei de Deus; ent&atilde;o, muito
+discretamente,
+fallavam de coisas differentes. Havia apenas o
+plano vago de irem um dia, mais tarde, quando
+a T&oacute;t&oacute; soubesse bem o seu catecismo e pela
+efficacia
+da ora&ccedil;&atilde;o se tivesse tornado boa, admirar
+em romaria a obra santa de Amelia e a humilha&ccedil;&atilde;o
+do Inimigo.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia mesmo, perante esta confian&ccedil;a t&atilde;o larga
+na sua virtude, propuzera um dia a Amaro, como
+muito habil&mdash;dizer &aacute;s amigas que o senhor parocho
+&aacute;s vezes vinha assistir &aacute; pratica piedosa que
+ella fazia
+&aacute; T&oacute;t&oacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Assim, se alguem te surprehendesse a entrar
+para a casa do tio Esguelhas, j&aacute; n&atilde;o havia
+suspeitas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me parece necessario, disse elle. Deus
+est&aacute; comnosco, filha, &eacute; claro. N&atilde;o
+queiramos intrometter-nos
+nos seus planos. Elle v&ecirc; mais longe que
+n&oacute;s...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella concordou logo&mdash;como em tudo que sahia
+dos seus labios. Desde a primeira manh&atilde;, na casa
+<span class="pagenum">[441]</span>
+do tio Esguelhas, ella abandon&aacute;ra-se-lhe absolutamente,
+toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento:
+n&atilde;o havia na sua pelle um cabellinho, n&atilde;o
+corria no seu cerebro uma id&eacute;a a mais pequenina,
+que n&atilde;o pertencesse ao senhor parocho. Aquella
+possess&atilde;o de todo o seu s&ecirc;r n&atilde;o a
+invadira gradualmente;
+f&ocirc;ra completa, no momento que os seus
+fortes bra&ccedil;os se tinham fechado sobre ella. Parecia
+que os beijos d'elle lhe tinham sorvido, esgotado a
+alma: agora era como uma dependencia inerte da
+sua pessoa. E n&atilde;o lh'o occultava; gozava em se humilhar,
+offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda
+escrava; queria que elle pensasse por ella e vivesse
+por ella; descarreg&aacute;ra-se n'elle, com
+satisfa&ccedil;&atilde;o,
+d'aquelle fardo da responsabilidade que sempre
+lhe pes&aacute;ra na vida; os seus juizos agora vinham-lhe
+formados do cerebro do parocho, t&atilde;o naturalmente
+como se sahisse do cora&ccedil;&atilde;o d'elle o sangue que
+lhe
+corria nas veias. &laquo;O senhor parocho queria ou o senhor
+parocho dizia&raquo; era para ella uma raz&atilde;o toda
+sufficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos n'elle,
+n'uma obediencia animal: tinha s&oacute; a curvar-se
+quando elle fallava, e quando vinha o momento a
+desapertar o vestido.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro gozava prodigiosamente esta domina&ccedil;&atilde;o;
+ella desforrava-o de todo um passado de dependencias&mdash;a
+casa do tio, o seminario, a sala branca do
+senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre
+era uma curvatura humilde que lhe fatigava a
+alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, &aacute; camara
+<span class="pagenum">[442]</span>
+ecclesiastica, aos canones, &aacute; Regra que nem lhe
+permittia ter uma vontade propria nas suas
+rela&ccedil;&otilde;es
+com o sacrist&atilde;o. E agora, emfim, tinha alli aos seus
+p&eacute;s aquelle corpo, aquella alma, aquelle s&ecirc;r vivo
+sobre
+quem reinava com despotismo. Se passava os
+seus dias, por profiss&atilde;o, louvando, adorando e incensando
+Deus,&mdash;era elle tambem agora o Deus
+d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devo&ccedil;&atilde;o
+pontual. Para ella ao menos, era bello, superior
+aos condes e aos duques, t&atilde;o digno da mitra como
+os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois
+de ter estado um momento pensativa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu podias chegar a Papa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;D'esta massa se fazem, respondeu elle com
+seriedade.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella acreditava-o&mdash;com um receio, todavia, que
+as altas dignidades o afastassem d'ella, o levassem
+para longe de Leiria. Aquella paix&atilde;o, em que estava
+abysmada e que a saturava, torn&aacute;ra-a estupida e
+obtusa a tudo o que n&atilde;o respeitava ao senhor parocho
+ou ao seu amor. Amaro de resto n&atilde;o lhe consentia
+interesses, curiosidades alheias &aacute; sua pessoa.
+Prohibia-lhe at&eacute; que l&ecirc;sse romances e poesias.
+Para
+que se havia de fazer doutora? Que lhe importava
+o que ia no mundo? Um dia que ella fall&aacute;ra, com
+algum appetite, d'um baile que iam dar os Vias-Claras,
+offendeu-se como d'uma trai&ccedil;&atilde;o. Fez-lhe em
+casa do tio Esguelhas accusa&ccedil;&otilde;es tremendas: era
+uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanaz!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas mato-te! Percebes? Mato-te!&mdash;exclamou,
+<span class="pagenum">[443]</span>
+agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar
+acc&ecirc;so.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha um medo, que o pungia, de a v&ecirc;r subtrahir-se
+ao seu imperio, perder-lhe a adora&ccedil;&atilde;o muda
+e absoluta. Pensava &aacute;s vezes que ella se fatigaria,
+com o tempo, d'um homem que n&atilde;o lhe satisfazia
+as vaidades e os gostos de mulher, sempre mettido
+na sua batina negra, com a cara rapada e a cor&ocirc;a
+aberta. Imaginava que as gravatas de c&ocirc;res, os bigodes
+bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme
+de lanceiros exercem sobre as mulheres uma
+fascina&ccedil;&atilde;o decisiva. E se a ouvia fallar d'algum
+official
+do destacamento, d'algum cavalheiro da cidade,
+eram ciumes desabridos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;G&oacute;stas d'elle? Hein? &Eacute; pelos trapos, pelo
+bigode?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;G&oacute;sto d'elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas escusava de fallar da creatura, ent&atilde;o! Era
+ter curiosidade, p&ocirc;r o pensamento n'outro! D'essas
+faltas de vigilancia sobre a alma e a vontade &eacute; que
+se aproveitava o demonio!...
+<br />
+
+<br />
+
+Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular&mdash;que
+a poderia attrahir, arrastar para f&oacute;ra da
+sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos
+complicados, toda a communica&ccedil;&atilde;o com a cidade.
+Convenceu mesmo a m&atilde;i que a n&atilde;o deixasse ir
+s&oacute;
+&aacute; Arcada e &aacute;s lojas. E n&atilde;o cessava de
+lhe representar
+os homens como monstros d'impiedade, cobertos
+de peccados como d'uma crosta, estupidos e falsos,
+votados ao inferno! Contava-lhe horrores de quasi
+<span class="pagenum">[444]</span>
+todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe aterrada,
+mas curiosa:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como sabes tu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o te posso dizer, respondia com uma reticencia,
+indicando que lhe fechava os labios o segredo
+da comfiss&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos
+com a glorifica&ccedil;&atilde;o do sacerdocio. Desenrolava-lhe
+com pompa a erudi&ccedil;&atilde;o dos seus antigos compendios,
+fazendo-lhe o elogio das func&ccedil;&otilde;es, da
+superioridade
+do padre. No Egypto, grande na&ccedil;&atilde;o da antiguidade,
+o homem s&oacute; podia ser rei se era sacerdote! Na Persia,
+na Ethiopia, um simples padre tinha o privilegio
+de desthronar os reis, disp&ocirc;r das cor&ocirc;as! Onde
+havia
+uma auctoridade igual &aacute; sua? Nem mesmo na
+c&ocirc;rte do c&eacute;o. O padre era superior aos anjos e aos
+seraphins&mdash;porque a elles n&atilde;o f&ocirc;ra dado como ao
+padre o poder maravilhoso de perdoar os peccados!
+Mesmo a Virgem Maria, tinha ella um poder maior
+que elle, padre Amaro? N&atilde;o: com todo o respeito
+devido &agrave; magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer
+com S. Bernardino de Sena: &laquo;o sacerdote excede-te,
+&oacute; m&atilde;i amada!&raquo;&mdash;porque, se a Virgem
+tinha
+incarnado Deus no seu castissimo seio, f&ocirc;ra s&oacute; uma
+vez, e o padre, no santo sacrificio da missa, incarnava
+Deus todos os dias! E isto n&atilde;o era argucia
+d'elle, todos os santos padres o admittiam...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hein, que te parece?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida
+de voluptuosidade.
+<span class="pagenum">[445]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o deslumbrava-a com cita&ccedil;&otilde;es
+venerandas:
+S. Clemente, que chamou ao padre &laquo;o Deus da terra&raquo;;
+o eloquente S. Chrysostomo, que disse &laquo;que o
+padre &eacute; o embaixador que vem dar as ordens de
+Deus&raquo;. E Santo Ambrosio que escreveu: &laquo;entre a
+dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior
+differen&ccedil;a que a que existe entre o chumbo e o
+ouro&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o ouro &eacute; c&aacute; o menino, dizia Amaro com
+palmadinhas no peito. Que te parece?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella atirava-se-lhe aos bra&ccedil;os, com beijos vorazes,
+como para tocar, possuir n'elle o &laquo;ouro de Santo
+Ambrosio&raquo;, o &laquo;embaixador de Deus&raquo;, tudo o
+que
+na terra havia mais alto e mais nobre, o s&ecirc;r que
+excede em gra&ccedil;a os archanjos!
+<br />
+
+<br />
+
+Era este poder divino do padre, esta familiaridade
+com Deus, tanto ou mais que a influencia da sua
+voz&mdash;que a faziam cr&ecirc;r na promessa que elle lhe
+repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria
+sobre ella o interesse, a amizade de Deus;
+que depois de morta dois anjos viriam tomal-a pela
+m&atilde;o para a acompanhar e desfazer todas as duvidas
+que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do c&eacute;o; e que
+na sua sepultura, como succedera em Fran&ccedil;a a uma
+rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente
+rosas brancas, como prova celeste de que a
+virgindade n&atilde;o se estraga nos abra&ccedil;os santos d'um
+padre...
+<br />
+
+<br />
+
+Isto encantava-a. &Aacute;quella id&eacute;a da sua cova
+perfumada
+de rosas brancas, ficava toda pensativa, n'um
+<span class="pagenum">[446]</span>
+antegosto de felicidades mysticas, com suspirinhos
+de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria
+morrer.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro galhofava.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A fallar da morte, com essas carnesinhas...
+<br />
+
+<br />
+
+Engord&aacute;ra com effeito. Estava agora d'uma belleza
+ampla e toda igual. Perdera aquella express&atilde;o
+inquieta que lhe punha nos labios uma seccura e lhe
+afilava o nariz. Nos seus bei&ccedil;os havia um vermelho
+quente e humido; o seu olhar tinha risos sob um
+fluido sereno; toda a sua pessoa uma apparencia
+madura de fecundidade. Fizera-se pregui&ccedil;osa: em
+casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava
+a olhar longamente com um sorriso mudo e fixo;
+e tudo parecia ficar adormecido um momento,
+a agulha, o panno que ella costurava, toda a sua
+pessoa... Estava revendo o quarto do sineiro, o catre,
+o senhor parocho em mangas de camisa.
+<br />
+
+<br />
+
+Passava os seus dias esperando as oito horas, em
+que elle apparecia regularmente com o conego. Mas
+os ser&otilde;es agora pezavam-lhe. Elle
+recommend&aacute;ra-lhe
+muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de
+obediencia, a ponto de nunca se sentar ao p&eacute; d'elle
+ao ch&aacute;, e de nem mesmo lhe offerecer bolos. Odiava
+ent&atilde;o a presen&ccedil;a das velhas, a gralhada das
+vozes,
+as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel
+no mundo, excepto estar s&oacute; com elle... Mas
+depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquelle
+rosto todo alterado, aquellas suffoca&ccedil;&otilde;es de
+delirio,
+aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da
+<span class="pagenum">[447]</span>
+morte, assustavam &aacute;s vezes o padre. Erguia-se no
+cotov&ecirc;lo, inquieto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute;s incommodada?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella abria os olhos espantados, como resurgindo
+de muito longe; e era realmente bella, cruzando os
+bra&ccedil;os n&uacute;s sobre o peito descoberto, dizendo
+lentamente
+com a cabe&ccedil;a que n&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XIX
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Uma circumstancia inesperada veio estragar
+aquellas manh&atilde;s da casa do sineiro. Foi a extravagancia
+da T&oacute;t&oacute;. Como disse o padre Amaro, &laquo;a
+rapariga
+sahia-lhes um monstro&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha agora por Amelia uma avers&atilde;o desabrida.
+Apenas ella se aproximava da cama, atirava a cabe&ccedil;a
+para debaixo dos cobertores, torcendo-se com
+phrenesi se lhe sentia a m&atilde;o ou a voz. Amelia fugia,
+impressionada com a id&eacute;a de que o diabo que
+habitava a T&oacute;t&oacute;, recebendo o cheiro que ella
+trazia
+da igreja nos vestidos, impregnados d'incenso e salpicados
+d'agua benta, se espolinhava de terror dentro
+do corpo da rapariga...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro quiz reprehender a T&oacute;t&oacute;, fazer-lhe sentir,
+em palavras tremendas, a sua ingratid&atilde;o demoniaca
+<span class="pagenum">[450]</span>
+para com a menina Amelia que vinha entretel-a,
+ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas
+a paralytica rompeu n'um ch&ocirc;ro hysterico; depois,
+de repente, ficou immovel, hirta, esbugalhando os
+olhos em alvo, com uma escuma branca na b&ocirc;ca.
+Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua;
+Amaro, por prudencia, recitou os exorcismos... E
+Amelia desde ent&atilde;o resolveu &laquo;deixar a fera em
+paz&raquo;. N&atilde;o tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem
+ora&ccedil;&otilde;es a Sant'Anna.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar v&ecirc;l-a
+um instante. N&atilde;o passavam da porta da alcova,
+perguntando-lhe
+d'alto &laquo;como ia&raquo;. Nunca respondia. E
+elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos
+selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo d'um
+a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com
+uma faisca&ccedil;&atilde;o metallica nos vestidos d'Amelia e
+na
+batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava
+por baixo, n'uma curiosidade avida que lhe dilatava
+desesperadamente as narinas e lhe arreganhava
+os bei&ccedil;os lividos. Mas era a mudez, obstinada
+e rancorosa, que os incommodava sobretudo. Amaro,
+que n&atilde;o acreditava muito em possessos e endemoninhados,
+via alli os symptomas de <em>loucura
+furiosa</em>.
+Os sustos d'Amelia augmentaram.&mdash;Felizmente que
+as pernas inertes cravavam a T&oacute;t&oacute; alli na
+enxerga!
+Sen&atilde;o, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e
+mord&ecirc;l-os n'um accesso!
+<br />
+
+<br />
+
+Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer
+da manh&atilde;, &laquo;depois d'aquelle
+espectaculo&raquo;; e
+<span class="pagenum">[451]</span>
+decidiu ent&atilde;o, d'ahi por diante, subir para o quarto
+sem fallar &aacute; T&oacute;t&oacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi peor. Quando a via atravessar da porta da
+rua para a escada, a T&oacute;t&oacute; debru&ccedil;ava-se
+para f&oacute;ra
+do leito, agarrada &aacute;s bordas da enxerga, n'um
+esfor&ccedil;o
+ancioso para a seguir, para a v&ecirc;r, com a face
+toda descomposta do desespero da sua immobilidade.
+E Amelia ao entrar no quarto sentia vir de baixo
+uma risadinha s&ecirc;cca, ou um
+<em>ui!</em> prolongado e
+uivado que a gelava...
+<br />
+
+<br />
+
+Andava agora aterrada: viera-lhe a id&eacute;a que
+Deus estabelecera alli, ao lado do seu amor com o
+parocho, um demonio implacavel para a escarnecer
+e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe
+que o nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declar&aacute;ra
+peccado cr&ecirc;r em <em>pessoas
+possessas</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas para que ha rezas, ent&atilde;o, e exorcismos?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; da religi&atilde;o velha. Agora vai-se mudar
+tudo isso... Emfim a sciencia &eacute; a sciencia...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella presentia que Amaro a enganava&mdash;e a T&oacute;t&oacute;
+estragava a sua felicidade. Emfim Amaro achou o
+meio de escaparem &laquo;&aacute; maldita rapariga&raquo;:
+era entrarem
+ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar
+a cozinha para subir a escada, e a posi&ccedil;&atilde;o
+da cama da T&oacute;t&oacute;, na alcova, n&atilde;o lhe
+permittia v&ecirc;l-os,
+quando elles cautelosamente passassem p&eacute; ante p&eacute;.
+Era facil, de resto, porque &aacute; hora do
+<em>rendez-vous</em>,
+entre as onze e o meio dia, nos dias de semana, a
+sacristia estava deserta.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas succedia que, quando elles entravam em
+<span class="pagenum">[452]</span>
+pontas de p&eacute;s e mordendo a respira&ccedil;&atilde;o,
+os seus
+passos, por mais subtis, faziam ranger os velhos degraus
+da escada. E ent&atilde;o a voz da T&oacute;t&oacute; sahia
+da
+alcova, uma voz rouca e aspera, berrando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Passa f&oacute;ra c&atilde;o! passa f&oacute;ra
+c&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a
+paralytica. Amelia tremia, toda branca.
+<br />
+
+<br />
+
+E a creatura uivava de dentro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; v&atilde;o os c&atilde;es! l&aacute;
+v&atilde;o os c&atilde;es!
+<br />
+
+<br />
+
+Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se
+por dentro. Mas aquella voz d'um desolamento lugubre,
+que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes
+ainda, perseguia-os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&atilde;o a pegar-se os c&atilde;es! est&atilde;o a
+pegar-se os
+c&atilde;es!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de
+terror. Jurava n&atilde;o voltar &aacute;quella casa maldita...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre
+furioso. Onde nos havemos de v&ecirc;r ent&atilde;o? Queres
+que nos deitemos nos bancos da sacristia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava
+Amelia, apertando as m&atilde;os.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada! &Eacute; doida... E o pobre tio Esguelhas
+tem tido um desgosto... Emfim, que queres que
+lhe fa&ccedil;a?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondia. Mas em casa, quando se ia
+aproximando o dia de <em>rendez-vous</em>,
+come&ccedil;ava a tremer
+&aacute; id&eacute;a d'aquella voz que lhe atroava sempre
+nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror
+ia-a despertando lentamente do adormecimento de
+<span class="pagenum">[453]</span>
+todo o s&ecirc;r, era que cahira nos bra&ccedil;os do parocho.
+Interrogava-se agora: n&atilde;o andaria commettendo um
+peccado irremissivel? As affirma&ccedil;&otilde;es de Amaro,
+assegurando-lhe
+o perd&atilde;o do Senhor, j&aacute; n&atilde;o a
+tranquillisavam.
+Ella bem via, quando a T&oacute;t&oacute; uivava,
+uma pallidez cobrir o rosto do parocho, como correr-lhe
+no corpo um calefrio do inferno entrevisto. E se
+Deus os desculpava&mdash;porque deixava assim o demonio
+atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e
+o escarneo?
+<br />
+
+<br />
+
+Ajoelhava ent&atilde;o aos p&eacute;s da cama, arremessava
+ora&ccedil;&otilde;es sem fim para Nossa Senhora das
+D&ocirc;res, pedindo-lhe
+que a alumiasse, que lhe dissesse o que
+era aquella persegui&ccedil;&atilde;o da
+T&oacute;t&oacute;, e se era sua inten&ccedil;&atilde;o
+divina mandar-lhe assim um aviso medonho.
+Mas Nossa Senhora n&atilde;o lhe respondia. N&atilde;o a sentia
+como outr'ora descer do c&eacute;o &aacute;s suas
+ora&ccedil;&otilde;es, entrar-lhe
+na alma aquella tranquillidade suave como
+uma onda de leite que era uma visita&ccedil;&atilde;o da
+Senhora.
+Ficava toda murcha, torcendo as m&atilde;os,
+abandonada da gra&ccedil;a. Promettia ent&atilde;o
+n&atilde;o voltar a
+casa do sineiro;&mdash;mas quando o dia chegava, &aacute;
+id&eacute;a d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos que lhe levavam
+a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se
+toda fraca contra a tenta&ccedil;&atilde;o; vestia-se, jurando
+que era a ultima vez; e ao toque das onze partia,
+com as orelhas a arder, o cora&ccedil;&atilde;o tremendo da
+voz da T&oacute;t&oacute; que ia ouvir, as entranhas
+abrazando-se
+no desejo do homem que a ia atirar para cima
+da enxerga.
+<span class="pagenum">[454]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ao entrar na igreja n&atilde;o rezava, com medo dos
+santos.
+<br />
+
+<br />
+
+Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se
+&aacute; auctoridade sagrada da sua batina. Elle ent&atilde;o,
+vendo-a chegar t&atilde;o pallida e
+t&atilde;o
+transtornada, galhofava para a tranquillisar. N&atilde;o,
+era uma tolice, se iam agora estragar o regalosinho
+d'aquellas manh&atilde;s, porque havia uma doida na
+casa! Promettera-lhe de resto procurar outro sitio
+para se v&ecirc;rem: e mesmo com o fim de a distrahir,
+aproveitando a solid&atilde;o da sacristia, mostrava-lhe
+&aacute;s
+vezes os paramentos, os calices, as vestimentas, procurando
+interessal-a por um frontal novo ou por
+uma antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela
+familiaridade com que tocava nas reliquias, que era
+ainda o senhor parocho e n&atilde;o perdera o seu credito
+no c&eacute;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi assim que uma manh&atilde; lhe fez v&ecirc;r uma capa
+de Nossa Senhora, que havia dias cheg&aacute;ra de presente
+d'uma devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a
+muito. Era de setim azul, representando um firmamento,
+com estrellas bordadas, e um centro, de lavor
+rico, onde flammejava um cora&ccedil;&atilde;o d'ouro cercado
+de rosas d'ouro. Amaro desdobr&aacute;ra-a, fazendo
+scintillar junto da janella os bordados espessos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a
+hontem na imagem... Vai-lhe como
+um brinco. Um bocadito comprida, talvez...&mdash;E
+olhando Amelia, n'uma compara&ccedil;&atilde;o da sua alta
+estatura
+com a figura atarracada da imagem da Senhora:&mdash;A
+<span class="pagenum">[455]</span>
+ti &eacute; que te havia de ficar bem. Deixa v&ecirc;r...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella recuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, credo, que peccado!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolice! disse elle adiantando-se com a capa
+aberta, mostrando o forro de setim branco, d'uma
+alvura de nuvem matutina. N&atilde;o est&aacute; benzida...
+&Eacute;
+como se viesse da modista.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o, dizia ella frouxamente, com os
+olhos j&aacute; luzidios de desejo.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ent&atilde;o zangou-se. Queria talvez saber melhor
+do que elle o que era peccado, n&atilde;o? Vinha agora a
+menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuarios
+dos santos?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora n&atilde;o seja tola. Deixe v&ecirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito
+o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar
+toda envolvida no manto, assustada e immovel,
+com um sorriso c&aacute;lido de gozo devoto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh filhinha, que linda que ficas!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ent&atilde;o, movendo-se com uma cautela solemne,
+chegou-se ao espelho da sacristia&mdash;um antigo
+espelho de reflexo esverdeado com um caixilho
+negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz.
+Mirou-se um momento, n'aquella s&ecirc;da azul celeste
+que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrellas,
+com uma magnificencia sideral. Sentia-lhe o
+peso rico. A santidade que o manto adquirira no
+contacto com os hombros da imagem penetrava-a
+d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais d&ocirc;ce
+que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no
+<span class="pagenum">[456]</span>
+corpo a caricia do ether do paraiso. Parecia-lhe ser
+uma santa no andor, ou mais alto, no c&eacute;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro babava-se para ella:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh filhinha, &eacute;s mais linda que Nossa Senhora!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto,
+linda. N&atilde;o tanto como Nossa Senhora... Mas
+com o seu rosto trigueiro, de labios rubros, alumiado
+por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse
+sobre o altar, com cantos ao org&atilde;o e um culto
+susurrando em redor, faria palpitar bem forte o
+cora&ccedil;&atilde;o dos fieis...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe
+os bra&ccedil;os sobre o seio, apertou-a toda&mdash;e
+estendendo os labios por sobre os d'ella, deu-lhe
+um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia
+cerravam-se, a cabe&ccedil;a inclinava-se-lhe para traz, pesada
+de desejo. Os bei&ccedil;os do padre n&atilde;o se desprendiam,
+avidos, sorvendo-lhe a alma. A respira&ccedil;&atilde;o d'ella
+apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um
+gemido desfalleceu sobre o hombro do padre, desc&oacute;rada
+e morta de gozo.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo
+as palpebras como acordada de muito longe;
+uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh Amaro, que horror, que peccado!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolice! disse elle.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas ella desprendia-se do manto, toda afflicta:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tira-m'o, tira-m'o! gritava, como se a s&ecirc;da
+a queimasse.
+<span class="pagenum">[457]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o Amaro fez-se muito s&eacute;rio. Realmente
+n&atilde;o
+se devia brincar com coisas sagradas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&atilde;o est&aacute; benzida... N&atilde;o tem
+duvida...
+<br />
+
+<br />
+
+Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no
+len&ccedil;ol branco, collocou-o no gavet&atilde;o, sem uma
+palavra.
+Amelia olhava-o petrificada: e s&oacute; os seus labios
+pallidos se moviam n'uma ora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas
+d'irem a casa do sineiro&mdash;recuou, como diante do
+demonio que a chamasse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hoje n&atilde;o! exclamou, implorando-o.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a
+pieguice... Ella bem sabia que n&atilde;o era peccado,
+quando as coisas n&atilde;o estavam benzidas... Era ser
+muito pobre d'espirito... Que demonio, s&oacute; meia hora,
+ou um quarto d'hora!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella, sem responder, ia-se aproximando da porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o n&atilde;o queres?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella voltou-se, e com uns olhos supplicantes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hoje n&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou
+rapidamente a igreja, de cabe&ccedil;a baixa e olhos
+nas lages, como se passasse entre as amea&ccedil;as cruzadas
+dos santos indignados.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+No dia seguinte de manh&atilde;, a S. Joanneira, que
+estava na sala de jantar, sentindo o senhor conego
+subir soprando forte, veio encontral-o &aacute; escada e fechou-se
+com elle na saleta.
+<span class="pagenum">[458]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Queria contar-lhe a afflic&ccedil;&atilde;o que tivera de
+madrugada.
+A Amelia acord&aacute;ra de repente aos gritos,
+que Nossa Senhora lhe estava a pousar o p&eacute; no
+pesco&ccedil;o!
+que suffocava! que a T&oacute;t&oacute; a queimava por detraz!
+e que as labaredas do inferno subiam mais alto
+que as torres da S&eacute;!... Emfim um horror!... Viera
+encontral-a em camisa a correr pelo quarto, como
+doida. D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque
+de nervos. Toda a casa estivera em alvoro&ccedil;o...
+A pobre pequena l&aacute; estava de cama, e em toda a
+manh&atilde; apenas toc&aacute;ra n'uma colher de caldo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pesad&ecirc;los, disse o conego. Indigest&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor conego, n&atilde;o! exclamou a S. Joanneira,
+que parecia acabrunhada, sentada diante d'elle
+na borda d'uma cadeira. &Eacute; outra coisa: s&atilde;o
+aquellas
+desgra&ccedil;adas visitas &aacute; filha do sineiro!
+<br />
+
+<br />
+
+E ent&atilde;o desabafou, com a effus&atilde;o labial de quem
+abre os diques a um descontentamento accumulado.
+Nunca quizera dizer nada, porque emfim reconhecia
+que era uma grande obra de caridade. Mas,
+desde que aquillo come&ccedil;&aacute;ra, a rapariga parecia
+transtornada.
+Ultimamente, ent&atilde;o, andava de todo. Ora
+alegrias sem raz&atilde;o, ora umas trombas de dar melancolia
+aos moveis. De noite sentia-a passear pela
+casa at&eacute; tarde, abrir as janellas... &Aacute;s vezes
+tinha
+at&eacute; medo de lhe v&ecirc;r o olhar t&atilde;o
+exquisito: quando
+vinha de casa do sineiro era sempre branca como
+a cal, a cahir de fraqueza. Tinha de tomar logo
+um caldo... Emfim, dizia-se que a T&oacute;t&oacute; tinha o
+demonio
+no corpo. E o senhor chantre, o outro que
+<span class="pagenum">[459]</span>
+tinha morrido (Deus lhe falle n'alma), costumava
+dizer que n'este mundo as duas coisas que se pegavam
+mais &aacute;s mulheres eram tisicas e demonio no
+corpo. Parecia-lhe, pois, que n&atilde;o devia consentir
+que a pequena fosse a casa do sineiro, sem estar
+certa que aquillo nem lhe prejudicava a saude nem
+lhe prejudicava a alma. Emfim, queria que uma
+pessoa de juizo, d'experiencia, fosse examinar a
+T&oacute;t&oacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N'uma palavra, disse o conego que escut&aacute;ra
+d'olhos cerrados aquella verbosidade repassada de
+lamuria, o que a senhora quer &eacute; que eu v&aacute;
+v&ecirc;r a
+paralytica e saber &aacute; justa o que se passa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era um allivio p'ra mim, riquinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade
+de matrona, reservava para a intimidade das
+s&eacute;stas, enterneceu o conego. Fez uma caricia ao
+pesco&ccedil;o
+gordo da sua velhota, prometteu com bondade
+ir estudar o caso...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute;manh&atilde;, que a T&oacute;t&oacute;
+est&aacute; s&oacute;, lembrou logo a
+S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente.
+Podia assim v&ecirc;r como as duas se davam, se
+havia influencia do espirito maligno...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que isto que eu fa&ccedil;o &eacute; d'agradecer...
+&Eacute; por
+ser p'ra quem &eacute;... Que bem me bastam os meus
+achaques, sem me occupar dos negocios de Satanaz.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira recompensou-o com uma beijoca
+sonora.
+<span class="pagenum"><a name="p460" id="p460">[460]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, sereias, sereias!... murmurou o conego
+philosophicamente.
+<br />
+
+<br />
+
+No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era
+uma perturba&ccedil;&atilde;o nos seus habitos, toda uma
+manh&atilde;
+desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo d'exercitar
+a sua sagacidade; al&eacute;m d'isso odiava o espectaculo
+de doen&ccedil;as e de todas as circumstancias humanas
+relacionadas com a morte. Mas, emfim, fiel &aacute; sua
+promessa, d'ahi a dias, na manh&atilde; em que f&ocirc;ra
+prevenido
+que Amelia ia &aacute; T&oacute;t&oacute;, arrastou-se
+contrariado
+para a botica do Carlos; e installou-se, com um
+olho no <em>Popular</em> e outro na porta,
+&aacute; espera que a
+rapariga <a href="#e17">atravessasse</a> para a
+S&eacute;. O amigo Carlos estava
+ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares
+sentado &aacute; escrivaninha, de testa sobre o punho,
+relendo o seu Soares de Passos; f&oacute;ra, o sol j&aacute;
+quente dos fins de abril fazia rebrilhar o lageado do
+largo; n&atilde;o passava ninguem; e s&oacute; quebravam o
+silencio
+as martelladas nas obras do doutor Pereira.
+Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado
+longo tempo, com o <em>Popular</em> cahido
+nos joelhos,
+o medonho sacrificio que fazia pela sua velhota,
+ia cerrando as palpebras, j&aacute; tomado da quebreira,
+n'aquelle repouso calado do meio dia proximo&mdash;quando
+entrou na botica um ecclesiastico.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, abbade Ferr&atilde;o, voss&ecirc; pela cidade! exclamou
+o conego Dias despertando do seu quebranto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De fugida, collega, de fugida, disse o outro
+collocando cuidadadosamente sobre uma cadeira dois
+grossos volumes que trazia, amarrados n'um barbante.
+<span class="pagenum">[461]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Depois voltou-se e tirou com respeito o seu chap&eacute;o
+ao praticante.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha o cabello todo branco; devia passar j&aacute;
+dos sessenta annos; mas era robusto, uma alegria
+bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes
+magnificos a que uma saude de granito conservava
+o esmalte; o que o desfigurava era um nariz
+enorme.
+<br />
+
+<br />
+
+Informou-se logo com bondade se o amigo Dias
+estava alli de visita ou infelizmente por motivo de
+doen&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, estou aqui &aacute; espera... Uma embaixada
+de truz, amigo Ferr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, fez o velho discretamente.&mdash;E emquanto
+tirava com methodo d'uma carteira atulhada de papeis
+a receita para o praticante, deu ao conego noticias
+da freguezia. Era l&aacute;, nos Poyaes, que o conego
+tinha a fazenda, a Rico&ccedil;a. O abbade Ferr&atilde;o
+pass&aacute;ra
+de manh&atilde; diante da casa e fic&aacute;ra surprehendido
+vendo que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo
+Dias tinha algumas id&eacute;as d'ir l&aacute; passar o
+ver&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o tinha. Mas como trouxera obras dentro
+e a fachada estava uma vergonha, mand&aacute;ra-lhe dar
+uma m&atilde;o d'oca. Emfim era necessario alguma apparencia,
+sobretudo n'uma casa que estava &aacute; beira da
+estrada, onde passava todos os dias o morgadelho
+dos Poyaes, um parlapat&atilde;o que imaginava que s&oacute;
+elle tinha um palacete decente em dez leguas &aacute; roda...
+S&oacute; para metter ferro &aacute;quelle atheu! Pois
+n&atilde;o
+lhe parecia, amigo Ferr&atilde;o?
+<span class="pagenum">[462]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade estava justamente lamentando comsigo
+aquelle sentimento de vaidade n'um sacerdote;
+mas, por caridade christ&atilde;, para n&atilde;o contrariar o
+collega,
+apressou-se a dizer:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, est&aacute; claro. A limpeza &eacute;
+a alegria
+das coisas...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ent&atilde;o, vendo passar no largo uma saia
+e um mantelete, foi &aacute; porta affirmar-se se era Amelia.
+N&atilde;o era. E voltando, retomado agora da sua
+preoccupa&ccedil;&atilde;o, vendo que o praticante
+f&ocirc;ra dentro ao
+laboratorio, disse ao ouvido do Ferr&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma embaixada da fortuna! Vou v&ecirc;r uma endemoninhada!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, fez o abbade, todo s&eacute;rio &aacute; id&eacute;a
+d'aquella
+responsabilidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quer voss&ecirc; vir commigo, abbade? &Eacute; aqui
+perto...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar
+ao senhor vigario geral, f&ocirc;ra depois ao Silverio para
+lhe pedir aquelles dois volumes, vinha alli aviar
+uma receita para um velho da freguezia, e tinha
+d'estar de volta aos Poyaes ao toque das duas horas.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego insistiu; era um instante, e o caso parecia
+curioso...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade ent&atilde;o confessou ao caro collega que
+eram coisas que n&atilde;o gostava d'examinar. Aproximava-se
+sempre d'ellas com um espirito rebelde &aacute;
+cren&ccedil;a, com desconfian&ccedil;as e suspeitas que lhe
+diminuiam
+a imparcialidade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas emfim ha prodigios! disse o conego.&mdash;Apesar
+<span class="pagenum"><a name="p463" id="p463">[463]</a></span>
+das suas proprias duvidas, n&atilde;o gostava
+d'aquella hesita&ccedil;&atilde;o do abbade, a proposito d'um
+phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias,
+estava interessado. Repetiu com seccura:&mdash;Tenho
+alguma experiencia, e sei que ha prodigios.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade.
+Negar que Deus ou a Rainha do c&eacute;o possa apparecer
+a uma creatura &eacute; contra a doutrina da Igreja...
+Negar que o demonio possa habitar o corpo de
+um homem, seria estabelecer um erro funesto...
+Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e &aacute; familia de
+Sara. Est&aacute; claro, ha prodigios. Mas que rarissimos
+que s&atilde;o, conego Dias!
+<br />
+
+<br />
+
+Calou-se um momento olhando o conego, que tapava
+o nariz com rap&eacute; em silencio&mdash;e continuou
+mais baixo, com o olho brilhante e fino:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E depois n&atilde;o tem o collega notado que &eacute; uma
+coisa que s&oacute; succede &aacute;s mulheres? &Eacute;
+s&oacute; a ellas, cuja
+<a href="#e18">malicia</a> &eacute;
+t&atilde;o grande que o proprio
+Salom&atilde;o n&atilde;o
+lhes p&ocirc;de resistir, cujo temperamento &eacute;
+t&atilde;o nervoso,
+t&atilde;o contradictorio que os medicos n&atilde;o as
+comprehendem.
+&Eacute; s&oacute; a ellas que succedem prodigios!... O
+collega j&aacute; ouviu de ter apparecido a nossa Santa
+Virgem a um respeitavel tabelli&atilde;o? J&aacute; ouviu d'um
+digno juiz de direito possuido do espirito maligno?
+N&atilde;o. Isto faz reflectir... E eu concluo que &eacute;
+malicia
+n'ellas, illus&atilde;o, imagina&ccedil;&atilde;o,
+doen&ccedil;a, etc... N&atilde;o lhe
+parece? A minha regra n'esses casos &eacute; v&ecirc;r tudo
+isso
+d'alto e com muita indifferen&ccedil;a.
+<span class="pagenum">[464]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente
+o guardasol, fazendo para o largo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pst, pst! Eh l&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada
+d'aquelle encontro que a ia ainda retardar mais. E
+j&aacute; o senhor parocho devia estar desesperado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De modo que, disse o conego &aacute; porta abrindo
+o seu guardasol, voss&ecirc;, abbade, era lhe cheirando
+a prodigio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Suspeito logo escandalo.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego contemplou-o um momento, com respeito:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc;, Ferr&atilde;o, &eacute; capaz de dar quinaus
+a Salom&atilde;o
+em prudencia!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade,
+offendido com aquella injusti&ccedil;a feita &aacute;
+incomparavel
+sabedoria de Salom&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ao proprio Salom&atilde;o! affirmou ainda o conego
+da rua.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha preparado uma historia habil para justificar
+a sua visita &aacute; paralytica; mas durante a sua
+conversa&ccedil;&atilde;o com o abbade ella
+escap&aacute;ra-lhe, como
+tudo o que deixava um momento nos reservatorios
+da memoria; e foi sem transi&ccedil;&atilde;o que disse
+simplesmente
+a Amelia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamos l&aacute;, tambem quero ir v&ecirc;r essa
+T&oacute;t&oacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente,
+j&aacute; l&aacute; estava! Mas sua madrinha Nossa
+Senhora das D&ocirc;res, que ella invocou logo n'aquella
+<span class="pagenum">[465]</span>
+afflic&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o a deixou enleada no
+embara&ccedil;o.&mdash;E o
+conego, que caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido
+ouvindo-lhe dizer com um risinho:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viva, hoje &eacute; o dia das visitas &aacute;
+T&oacute;t&oacute;! O senhor
+parocho disse-me que tambem talvez hoje apparecesse
+por l&aacute;... Talvez l&aacute; esteja at&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! O amigo parocho tambem? Est&aacute; bom, est&aacute;
+bom. Faremos uma consulta &aacute; T&oacute;t&oacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ent&atilde;o, contente da sua malicia, tagarellou
+sobre a T&oacute;t&oacute;. O senhor conego ia v&ecirc;r...
+Era uma
+creatura incomprehensivel... Ultimamente, ella n&atilde;o
+tinha querido contar em casa, mas a T&oacute;t&oacute;
+tom&aacute;ra-lhe
+birra... E dizia coisas, tinha um modo de fallar de
+c&atilde;es e d'animaes, d'arripiar!... Ai, era um encargo
+que j&aacute; lhe pesava... Que a rapariga n&atilde;o lhe
+escutava
+as li&ccedil;&otilde;es, nem as ora&ccedil;&otilde;es,
+nem os conselhos...
+Era uma fera!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O cheiro &eacute; desagradavel! rosnou o conego
+entrando.
+<br />
+
+<br />
+
+Que queria! A rapariga era uma porca, n&atilde;o havia
+tel-a arranjado. O pai, esse, um desleixado tambem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta
+da alcova&mdash;que agora, em obediencia &aacute;s ordens
+do senhor parocho, o tio Esguelhas deixava sempre
+fechada.
+<br />
+
+<br />
+
+Encontraram a T&oacute;t&oacute; meio erguida sobre a cama,
+com a face acc&ecirc;sa n'uma curiosidade, &aacute;quella voz
+do
+conego que n&atilde;o conhecia.
+<span class="pagenum">[466]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora viva l&aacute; a snr.<sup>a</sup>
+T&oacute;t&oacute;! disse
+elle da porta,
+sem se aproximar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute;, comprimenta o senhor conego, disse Amelia,
+come&ccedil;ando logo, com uma caridade desacostumada,
+a comp&ocirc;r a roupa da cama, a arrumar
+a alcova. Dize-lhe como est&aacute;s... N&atilde;o te
+fa&ccedil;as
+amuada!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a T&oacute;t&oacute; permaneceu t&atilde;o muda como a
+imagem
+de S. Bento que tinha &aacute; cabeceira, examinando
+muito aquelle sacerdote t&atilde;o gordo, t&atilde;o grisalho,
+t&atilde;o differente do senhor parocho... E os seus olhos,
+mais brilhantes todos os dias &aacute; medida que se lhe
+cavavam as faces, iam, como de costume, do homem
+para Amelia, n'uma anciedade de perceber
+porque o trazia ella alli, aquelle velho obeso, e
+se ia tambem subir com elle para o quarto.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse,
+e alli, diante do c&oacute;nego, a T&oacute;t&oacute;,
+tomada do
+seu phrenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de
+c&atilde;es!... Com o pretexto de dar uma arrumadella
+foi &agrave; cozinha vigiar o pateo. Faria um signal da janella,
+apenas Amaro apparecesse.
+<br />
+
+<br />
+
+E o conego, s&oacute; na alcova da T&oacute;t&oacute;,
+preparando-se
+para come&ccedil;ar as suas observa&ccedil;&otilde;es, ia
+perguntar-lhe
+quantas eram as pessoas da Santissima Trindade,&mdash;quando
+ella, adiantando a face, lhe disse n'uma voz
+subtil como um s&ocirc;pro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o outro?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego n&atilde;o comprehendeu. Que fallasse alto!
+Que era?
+<span class="pagenum">[467]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O outro, o que vem com ella!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego chegou-se, com a orelha dilatada de
+curiosidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que outro?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O bonito. O que vai com ella p'r&oacute; quarto. O
+que a belisca...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo,
+repousada, com os olhos cerrados e respirando
+regaladamente, como n'um allivio repentino de todo
+o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado d'assombro,
+permanecia na mesma postura, dobrado sobre
+a cama como para ascultar a T&oacute;t&oacute;. Ergueu-se por
+fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu d'espa&ccedil;o
+uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta
+entre os dedos, os olhos muito vermelhos cravados
+na colcha da T&oacute;t&oacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, senhor conego, que lhe parece c&aacute; a minha
+doente? perguntou Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle respondeu, sem a olhar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim senhor, muito bem... Vai bem... &Eacute; exquisita...
+Pois &eacute; andar, &eacute; andar... Adeus...
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiu, resmungando que tinha negocios,&mdash;e voltou
+immediatamente &aacute; botica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um copo d'agua! exclamou, cahindo em cheio
+sobre a cadeira.
+<br />
+
+<br />
+
+O Carlos, que volt&aacute;ra, apressou-se, offerecendo
+fl&ocirc;r de laranja, perguntando se sua excellencia estava
+incommodado...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cansadote, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+Tomou o <em>Popular</em> de sobre a mesa, e
+alli ficou,
+<span class="pagenum">[468]</span>
+sem se mexer, abysmado nas columnas do periodico.
+O Carlos tentou fallar da politica do paiz, depois
+dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios
+que amea&ccedil;avam a Sociedade, depois da deficiencia
+da administra&ccedil;&atilde;o do concelho de que era
+agora um adversario feroz... Debalde. Sua excellencia
+grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos,
+emfim, recolheu-se a um silencio chocado, comparando,
+n'um desdem interior que lhe vincava de
+sarcasmo os cantos dos bei&ccedil;os, a obtusidade soturna
+d'aquelle sacerdote &agrave; palavra inspirada d'um Lacordaire
+e d'um Malh&atilde;o! Por isso o Materialismo em
+Leiria, em todo o Portugal erguia a sua cabe&ccedil;a d'hydra...
+<br />
+
+<br />
+
+Batia uma hora na torre quando o conego, que
+vigiava a Pra&ccedil;a pelo canto do olho, vendo passar
+Amelia, arremessou o jornal, sahiu da botica sem dizer
+uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para
+casa do tio Esguelhas. A T&oacute;t&oacute; estremeceu de medo
+ao v&ecirc;r de novo aquella figura bojuda apparecer
+&aacute; porta da alcova. Mas o conego riu-se para ella,
+chamou-lhe T&oacute;t&oacute;sinha, prometteu-lhe um pinto para
+bolos; e mesmo sentou-se aos p&eacute;s da cama com um
+<em>ah!</em> regalado, dizendo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora vamos n&oacute;s agora conversar, amiguinha...
+Esta &eacute; que &eacute; a pernita doente, hein? Coitadita!
+Deixa
+que te has de curar... Hei de pedir a Deus... Fica
+por minha conta.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha,
+olhando aqui e al&eacute;m, inquieta, na
+perturba&ccedil;&atilde;o que
+<span class="pagenum">[469]</span>
+lhe dava aquelle homem a s&oacute;s com ella t&atilde;o perto
+que lhe sentia o halito forte.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, ouve c&aacute;, disse elle chegando-se mais
+para ella, fazendo ranger o catre com o seu peso.
+Ouve c&aacute;, quem &eacute; o outro? Quem &eacute; que
+vem com a
+Amelia?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella respondeu logo, atirando as palavras d'um
+f&ocirc;lego:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o bonito, &eacute; o magro, v&ecirc;m ambos,
+sobem
+p'r'&oacute; quarto, fecham-se por dentro, s&atilde;o como
+c&atilde;es!
+<br />
+
+<br />
+
+Os olhos do conego injectaram-se para f&oacute;ra das
+orbitas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas quem &eacute; elle, como se chama? O teu pai
+que te disse?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o outro, &eacute; o parocho, o Amaro! fez ella
+impaciente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E v&atilde;o p'r'&oacute; quarto, hein? l&aacute; p'ra
+cima? E
+tu que ouves, tu que ouves? Dize tudo, pequena,
+dize tudo!
+<br />
+
+<br />
+
+A paralytica ent&atilde;o contou, com um furor que dava
+tons sibilantes &agrave; sua voz de tisica,&mdash;como ambos
+entravam, e a vinham v&ecirc;r, e se ro&ccedil;avam um
+pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam
+l&aacute; uma hora fechados...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que
+lhe punha uma chamma nos olhos morti&ccedil;os, queria
+saber os detalhes torpes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ouve l&aacute;, T&oacute;t&oacute;sinha, tu que ouves?
+Ouves
+ranger a cama?
+<span class="pagenum">[470]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ella respondeu com a cabe&ccedil;a affirmativamente,
+toda pallida, os dentes cerrados.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E olha, T&oacute;t&oacute;sinha, j&aacute; os viste
+beijarem-se,
+abra&ccedil;arem-se? Anda, dize, que te dou dois pintos.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o descerrava os labios; e a sua face transtornada
+parecia ao conego selvagem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu embirras com ella, n&atilde;o &eacute; verdade?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella fez que sim n'uma affirma&ccedil;&atilde;o feroz de
+cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E vistel-os beliscarem-se?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o como c&atilde;es! soltou ella por entre os dentes.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ent&atilde;o endireitou-se, bufou outra vez
+com o seu grande s&ocirc;pro d'encalmado, e co&ccedil;ou
+vivamente
+a cor&ocirc;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena...
+Agasalha-te. N&atilde;o te constipes...
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiu; e ao fechar com for&ccedil;a a porta exclamou
+alto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isto &eacute; a infamia das infamias! Eu mato-o! eu
+perco-me!
+<br />
+
+<br />
+
+Esteve um momento considerando e partiu para
+a rua das Sousas, de guardasol em riste, apressando
+a sua obesidade, com a face apopletica de furor.
+No largo da S&eacute;, por&eacute;m, parou a reflectir ainda; e
+rodando
+sobre os tac&otilde;es, entrou na igreja. Ia t&atilde;o levado
+que, esquecendo um habito de quarenta annos,
+n&atilde;o dobrou o joelho ao Santissimo. E arremessou-se
+para a sacristia&mdash;justamente quando o padre Amaro
+sahia, cal&ccedil;ando cuidadosamente as luvas pretas
+<span class="pagenum">[471]</span>
+que usava agora sempre para agradar &aacute; Ameliasinha.
+<br />
+
+<br />
+
+O aspecto descomposto do conego assombrou-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; isso, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que &eacute;? exclamou o conego de golpe, &eacute; a
+maroteira das maroteiras! &Eacute; a sua infamia! &eacute; a
+sua
+infamia!...
+<br />
+
+<br />
+
+E emmudeceu, suffocado de c&oacute;lera.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, que se fizera muito pallido, balbuciou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que est&aacute; voss&ecirc; a dizer, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego tom&aacute;ra f&ocirc;lego:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o ha padre-mestre! O senhor desencaminhou
+a rapariga! Isso &eacute; que &eacute; uma canalhice mestra!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, ent&atilde;o, franziu a testa como descontente
+d'um gracejo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que rapariga!? O senhor est&aacute; a brincar...
+<br />
+
+<br />
+
+Sorriu mesmo, affectando seguran&ccedil;a; e os seus
+bei&ccedil;os brancos tremiam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, eu vi! berrou o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho, subitamente aterrado, recuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Viu!?
+<br />
+
+<br />
+
+Imagin&aacute;ra n'um relance uma trai&ccedil;&atilde;o, o
+conego
+escondido n'um recanto da casa do tio Esguelhas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o vi, mas &eacute; como se visse!&mdash;continuou o
+conego n'um tom tremendo. Sei tudo. Venho de l&aacute;.
+Disse-m'o a T&oacute;t&oacute;. Fecham-se no quarto horas e
+horas! At&eacute; se ouve em baixo ranger a cama! &Eacute; uma
+ignominia !
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal
+acossado e entalado a um canto, uma resistencia
+de desespero.
+<span class="pagenum">[472]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga-me uma coisa. O que &eacute; que o senhor
+tem com isso?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego pulou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor
+ainda me falla n'esse tom!? O que tenho &eacute; que vou
+d'aqui immediatamente dar parte de tudo ao senhor
+vigario geral!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro, livido, foi para elle com o punho
+fechado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, seu maroto!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; l&aacute;? que &eacute; l&aacute;?
+exclamou o conego de
+guardasol erguido. Voss&ecirc; quer-me p&ocirc;r as
+m&atilde;os?
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro conteve-se; passou a m&atilde;o sobre
+a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de
+um momento, fallando com uma serenidade for&ccedil;ada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ou&ccedil;a l&aacute;, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o
+ao senhor uma vez na cama com a S. Joanneira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mente! mugiu o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma
+noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas
+de camisa, ella tinha-se erguido, estava a apertar
+o collete. At&eacute; o senhor me perguntou
+&laquo;<em>quem est&aacute;
+ahi?</em>&raquo; Vi, como estou a v&ecirc;l-o
+agora. O senhor a
+dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor
+vive ha dez annos amigado com a S. Joanneira, &aacute;
+face de todo o clero! Ora ahi tem!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, j&aacute; antes esfalfado dos excessos do seu
+furor, ficou agora, &aacute;quellas palavras, como um boi
+atordoado. S&oacute; p&ocirc;de dizer d'ahi a pouco, muito
+murcho:
+<span class="pagenum">[473]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que traste que voss&ecirc; me sae!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro ent&atilde;o, quasi tranquillo, certo do
+silencio do conego, disse com bonhomia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Traste porqu&ecirc;? Diga-me l&aacute;! Traste
+porqu&ecirc;?
+Temos ambos culpas no cartorio, eis ahi est&aacute;. E olhe
+que eu n&atilde;o fui perguntar, nem peitar a
+T&oacute;t&oacute;... Foi
+muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem
+agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral
+&eacute; para a esc&oacute;la e para o serm&atilde;o.
+C&aacute; na vida eu
+fa&ccedil;o isto, o senhor faz aquillo, os outros fazem o que
+podem. O padre-mestre que j&aacute; tem idade agarra-se
+&aacute; velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena.
+&Eacute; triste, mas que quer? &Eacute; a natureza que manda.
+Somos homens. E como sacerdotes, para honra
+da classe, o que temos &eacute; fazer costas!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego escutava-o, bamboleando a cabe&ccedil;a, na
+aceita&ccedil;&atilde;o muda d'aquellas verdades. Tinha-se
+deixado
+cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta c&oacute;lera
+inutil; e erguendo os olhos para Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas voss&ecirc;, homem, no come&ccedil;o da carreira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E voss&ecirc;, padre-mestre, no fim da carreira!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o riram ambos. Immediatamente cada um
+declarou retirar as palavras offensivas que tinha dito;
+e apertaram-se gravemente a m&atilde;o. Depois conversaram.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, o que o tinha enfurecido era ser l&aacute;
+com a pequena de casa. Se fosse com outra... at&eacute;
+estimava! Mas a Ameliasinha!... Se a pobre m&atilde;i
+viesse a saber estourava de desgosto.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas a m&atilde;i escusa de saber! exclamou Amaro.
+<span class="pagenum">[474]</span>
+Isto &eacute; entre n&oacute;s, padre-mestre! Isto &eacute;
+segredo de
+morte! Nem a m&atilde;i sabe de nada, nem eu mesmo
+digo &aacute; pequena o que se passou hoje entre n&oacute;s. As
+coisas ficam como estavam, e o mundo continua a
+rolar... Mas voss&ecirc;, padre-mestre, tenha cuidado!...
+Nem uma palavra &aacute; S. Joanneira... Que n&atilde;o haja
+agora trai&ccedil;&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, com a m&atilde;o sobre o peito, deu gravemente
+a sua palavra d'honra de cavalheiro e de sacerdote
+que aquelle segredo ficava para sempre sepultado
+no seu cora&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o apertaram ainda uma outra vez affectuosamente
+a m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a torre gemeu as tres badaladas. Era a hora
+de jantar do conego.
+<br />
+
+<br />
+
+E ao sahir, batendo nas costas de Amaro, fazendo
+luzir um olho d'entendedor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois seu velhaco, tem dedo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quer voss&ecirc;? Que diabo... Come&ccedil;a-se por
+brincadeira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem! disse o conego sentenciosamente, &eacute;
+o que a gente leva de melhor d'este mundo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, padre-mestre, &eacute; verdade!
+&Eacute; o que
+a gente leva de melhor d'este mundo.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade
+d'alma. At&eacute; ahi incommodava-o, por vezes,
+a id&eacute;a de que correspondera ingratamente &aacute;
+confian&ccedil;a, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado
+<span class="pagenum">[475]</span>
+na rua da Misericordia. Mas a tacita approva&ccedil;&atilde;o
+do
+conego viera tirar-lhe, como elle dizia, aquelle espinho
+da consciencia. Porque emfim, o chefe de familia,
+o cavalheiro respeitavel, o cabe&ccedil;a&mdash;era o conego.
+A S. Joanneira era apenas uma concubina...
+E Amaro mesmo, &agrave;s vezes agora, em tom de galhofa,
+tratava o Dias de <em>seu caro sogro</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Outra circumstancia viera alegral-o: a T&oacute;t&oacute;
+adoecera
+de repente: o dia seguinte ao da visita do conego,
+pass&aacute;ra-o soltando golfadas de sangue: o doutor
+Cardoso, chamado &aacute; pressa, fall&aacute;ra de tisica
+galopante,
+quest&atilde;o de semanas, caso decidido...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que &eacute;
+tr&aacute;s... tr&aacute;s...&mdash;Era a sua maneira de pintar a
+morte, que, quando tem pressa, conclue o seu trabalho
+com uma fou&ccedil;ada aqui, outra al&eacute;m.
+<br />
+
+<br />
+
+As manh&atilde;s na casa do tio Esguelhas eram agora
+tranquillas. Amelia e o parocho j&aacute; n&atilde;o entravam
+em
+pontas de p&eacute;s, tentando esgueirar-se para o prazer,
+despercebidos da T&oacute;t&oacute;. Batiam com as portas,
+palravam
+forte, certos que a T&oacute;t&oacute; estava bem prostrada
+de febre, sob os len&ccedil;oes humidos dos suores constantes.
+Mas Amelia, por escrupulo, n&atilde;o deixava de
+rezar todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras
+da T&oacute;t&oacute;. &Aacute;s vezes mesmo ao despir-se,
+no
+quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um
+rostinho triste:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filho! at&eacute; me parece peccado, n&oacute;s aqui a
+gozarmos, e a pobre pequena l&aacute; em baixo a luctar
+com a morte...
+<span class="pagenum">[476]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles
+de fazer, se era a vontade de Deus?...
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, resignando-se &aacute; vontade de Deus em
+tudo, ia deixando cahir as s&aacute;ias.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que
+impacientavam o padre Amaro. Em certos dias apparecia
+muito murcha; trazia sempre algum sonho
+lugubre a contar, que a tortur&aacute;ra toda a noite, e em
+que ella pretendia descobrir avisos de desgra&ccedil;as...
+<br />
+
+<br />
+
+Perguntava-lhe &aacute;s vezes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se eu morresse, tinhas muita pena?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham
+apenas uma hora para se verem, e haviam
+d'estar a estragal-a com lamurias?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que n&atilde;o imaginas, dizia ella, trago o
+cora&ccedil;&atilde;o
+negro como a noite.
+<br />
+
+<br />
+
+Com effeito as amigas da m&atilde;i estranhavam-na.
+&Aacute;s vezes durante ser&otilde;es inteiros n&atilde;o
+descerrava os
+labios, pendida sobre a sua costura, picando mollemente
+a agulha; ou ent&atilde;o, muito cansada mesmo para
+trabalhar, ficava junto da mesa fazendo girar devagar
+o <em>abat-jour</em> verde do candieiro, com
+o olhar
+vazio e a alma muito longe.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; rapariga, deixa esse
+<em>abat-jour</em> em paz! diziam-lhe
+as senhoras nervosas.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava
+muito lentamente a s&aacute;ia branca que havia semanas
+andava abainhando. A m&atilde;i, vendo-a sempre t&atilde;o
+pallida, pens&aacute;ra em chamar o doutor Gouveia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o &eacute; nada, minha m&atilde;i, &eacute;
+nervoso, passa...
+<span class="pagenum">[477]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O que provava a todos que era nervoso eram os
+sustos subitos que a tomavam&mdash;a ponto de dar um
+grilo, quasi desmaiar, se de repente uma porta batia.
+Certas noites mesmo, exigia que a m&atilde;i viesse
+dormir ao p&eacute; d'ella, com medo de pesad&ecirc;los e de
+vis&otilde;es.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o que diz sempre o senhor doutor Gouveia,
+observava a m&atilde;i ao conego, &eacute; uma rapariga que
+necessita
+casar...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego pigarreava grosso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o
+que precisa. Tem de mais, ao que parece...
+<br />
+
+<br />
+
+Era com effeito a id&eacute;a do conego, que a rapariga
+(como elle dizia s&oacute; comsigo) &laquo;andava-se a arrasar
+de felicidade&raquo;. Nos dias em que sabia que ella f&ocirc;ra
+v&ecirc;r a T&oacute;t&oacute;, n&atilde;o se fartava
+de a estudar, cocando-a
+do fundo da poltrona com um olho pesado e lubrico.
+Prodigalisava-lhe agora as familiaridades paternaes.
+Nunca a encontrava na escada sem a deter, com coceguinhas
+aqui e alli, palmadinhas na face muito
+prolongadas. Queria-a em casa repetidas vezes pela
+manh&atilde;; e emquanto Amelia palrava com D. Josepha,
+o conego n&atilde;o cessava de rondar em torno d'ella, arrastando
+as chinelas com um ar de velho gallo. E
+eram entre Amelia e a m&atilde;i conversas sem fim sobre
+esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria
+um bom dote.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Seu magan&atilde;o, tem dedo!&mdash;dizia sempre o
+conego quando estava s&oacute; com Amaro, arregalando
+os olhos redondos. Aquillo &eacute; um bocado de rei!
+<span class="pagenum"><a name="p478" id="p478">[478]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro entufava-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o &eacute; mau bocado, padre-mestre, &eacute; um
+bom
+bocado.
+<br />
+
+<br />
+
+Era este um dos <a href="#e19">grandes</a> gozos
+d'Amaro&mdash;ouvir
+gabar aos collegas a belleza d'Amelia, que era chamada
+entre o clero &laquo;a fl&ocirc;r das devotas&raquo;. Todos
+lhe
+invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito
+com ella em que se ajanotasse nos domingos, &aacute;
+missa; zang&aacute;ra-se mesmo ultimamente de a v&ecirc;r
+quasi sempre entrouxada n'um vestido de merino
+escuro, que lhe dava um ar de velha penitente.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia, agora, j&aacute; n&atilde;o tinha aquella
+necessidade
+amorosa de contentar em tudo o senhor parocho.
+Acord&aacute;ra quasi inteiramente d'aquelle adormecimento
+estupido d'alma e do corpo, em que a lan&ccedil;&aacute;ra
+o primeiro abra&ccedil;o de Amaro. Vinha-lhe apparecendo
+distinctamente a consciencia pungente da sua culpa.
+N'aquelles negrumes d'um espirito beato e escravo,
+fazia-se um amanhecimento de raz&atilde;o.&mdash;O que era
+ella no fim? A concubina do senhor parocho. E esta
+id&eacute;a, posta assim descarnadamente, parecia-lhe terrivel.
+N&atilde;o que lamentasse a sua virgindade, a sua honra,
+o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda
+por elle, pelos delirios que elle lhe dava. Mas havia
+alguma coisa peor a temer que as reprova&ccedil;&otilde;es do
+mundo: eram as vingan&ccedil;as de Nosso Senhor. Era da
+perda possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou
+de mais medonho ainda, d'algum castigo de Deus, n&atilde;o
+das puni&ccedil;&otilde;es transcendentes que acabrunham a alma
+al&eacute;m da tumba, mas dos tormentos que v&ecirc;m durante
+<span class="pagenum">[479]</span>
+a vida, que a feririam na sua saude, no seu bem-estar
+e no seu corpo. Eram vagos medos de doen&ccedil;as,
+de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de
+fome&mdash;de todas essas penalidades de que ella suppunha
+prodigo o Deus do seu catecismo. Como em
+pequena, nos dias em que se esquecia de pagar &aacute;
+Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia
+que ella a fizesse cahir na escada ou levar palmatoadas
+na mestra, arrefecia de medo agora, &aacute; id&eacute;a
+de que Deus, em castigo d'ella se deitar na cama
+com um padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse
+ou a reduzisse a pedir esmola pelas viellas.
+Estas id&eacute;as n&atilde;o a deixavam, desde o dia em que na
+sacristia pecc&aacute;ra de concupiscencia dentro do manto
+de Nossa Senhora. Tinha a certeza que a Santa Virgem
+a odiava, e que n&atilde;o cessava de reclamar contra
+ella; debalde procurava abrandal-a, com um fluxo
+incessante de ora&ccedil;&otilde;es humilhadas; sentia bem
+Nossa Senhora, inaccessivel e desdenhosa, de costas
+voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe sorrira;
+nunca mais aquellas m&atilde;os se tinham aberto para
+receber com agrado as suas ora&ccedil;&otilde;es, como ramos
+congratulatorios. Era um silencio s&ecirc;cco, uma hostilidade
+gelada de divindade offendida. Ella conhecia o
+credito que Nossa Senhora tem nos concilios do c&eacute;o;
+desde pequena lh'o tinham ensinado; tudo o que
+ella deseja o obtem, como uma recompensa devida
+aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe &aacute;
+sua direita, o Deus-Padre falla-lhe &aacute; esquerda... E
+comprehendia bem que para ella n&atilde;o havia
+esperan&ccedil;a&mdash;e
+<span class="pagenum">[480]</span>
+que alguma coisa medonha se preparava
+l&aacute; era cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia
+sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com um
+desabamento de catastrophe. Que seria?
+<br />
+
+<br />
+
+Cessaria as suas rela&ccedil;&otilde;es com Amaro, se o
+ousasse:
+mas receava quasi tanto a sua c&oacute;lera como a de
+Deus. Que seria d'ella, se tivesse contra si Nossa Senhora
+e o senhor parocho? Al&eacute;m d'isso, amava-o.
+Nos seus bra&ccedil;os, todo o terror do c&eacute;o, a mesma
+id&eacute;a
+do c&eacute;o desapparecia; refugiada alli, contra o seu
+peito, n&atilde;o tinha medo das iras divinas: o desejo, o
+furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe
+uma coragem colerica; era com um brutal
+desafio ao c&eacute;o que se enroscava furiosamente ao seu
+corpo.&mdash;Os terrores vinham depois, s&oacute; no seu quarto.
+Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas
+d'envelhecimento ao canto dos labios seccos e
+ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga que
+irritava o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que tens tu, que parece te espremeram
+o succo? perguntava-lhe elle quando aos primeiros
+beijos a sentia toda fria, toda inerte.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Passei mal a noite... Nervoso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam,
+repetidas agora todos os dias. Se tinha
+dito a missa com fervor? Se tinha lido o Breviario?
+Se tinha feito a ora&ccedil;&atilde;o mental?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabes tu que mais? disse elle furioso. S&ecirc;bo!
+<span class="pagenum">[481]</span>
+E esta! Tu pensas que eu sou ainda seminarista, e
+que tu &eacute;s o padre examinador, que verifica se cumpri
+a Regra? Ora a tolice!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que &eacute; necessario estar bem com Deus,
+murmurava
+ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Era com effeito a sua preoccupa&ccedil;&atilde;o, agora, que
+Amaro <em>fosse um bom padre</em>. Contava,
+para se salvar
+e para se livrar da c&oacute;lera de Nossa Senhora, com a
+influencia do parocho na c&ocirc;rte de Deus: e temia
+que elle por negligencia de devo&ccedil;&atilde;o a perdesse, e
+que, diminuindo o seu fervor, diminuissem os seus
+meritos aos olhos do Senhor. Queria-o conservar
+santo e favorito do c&eacute;o, para colher os proveitos da
+sua protec&ccedil;&atilde;o mystica.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro chamava a isto &laquo;caturrices de freira velha&raquo;.
+Detestava-as, por as achar frivolas&mdash;e porque
+tomavam um tempo precioso, n'aquellas manh&atilde;s da
+casa do sineiro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&oacute;s n&atilde;o viemos aqui para lamurias, dizia elle,
+muito s&ecirc;ccamente. Fecha a porta, se queres.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella obedecia,&mdash;e ent&atilde;o aos primeiros beijos
+na penumbra da janella cerrada, elle reconhecia emfim
+a sua Amelia, a Amelia dos primeiros dias, o delicioso
+corpo que lhe tremia todo nos bra&ccedil;os, em espasmos
+de paix&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo
+e tyrannico, que aquellas horas escassas n&atilde;o satisfaziam.
+Ah! positivamente, como mulher n&atilde;o havia
+outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo
+em Lisboa, mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices,
+<span class="pagenum">[482]</span>
+sim, mas era n&atilde;o as tomar a s&eacute;rio, e gozar
+emquanto
+era novo!
+<br />
+
+<br />
+
+E gozava. A sua vida por todos os lados tinha
+confortos e do&ccedil;uras&mdash;como uma d'estas salas onde
+tudo &eacute; acolchoado, n&atilde;o ha moveis duros nem
+angulos,
+e o corpo, onde quer que pouse, encontra a
+elasticidade molle d'uma almofada.
+<br />
+
+<br />
+
+Decerto, o melhor eram as suas manh&atilde;s em casa
+do tio Esguelhas. Mas tinha outros regalos. Comia
+bem: fumava caro n'uma boquilha d'espuma:
+toda a sua roupa branca era nova e de linho: compr&aacute;ra
+alguma mobilia: e n&atilde;o tinha, como outr'ora,
+embara&ccedil;os de dinheiro, porque a snr.<sup>a</sup>
+D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, a sua melhor confessada, l&aacute;
+estava com
+a bolsa prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma
+pechincha: uma noite em casa da S. Joanneira, a
+excellente senhora, a proposito d'uma familia d'inglezes
+que vira passar n'um
+<em>char-&aacute;-banc</em> para ir
+visitar
+a Batalha, exprimira a opini&atilde;o que os inglezes
+eram herejes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o baptisados como n&oacute;s, observ&aacute;ra
+D. Joaquina
+Gansoso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois sim, filha, mas &eacute; um baptismo para rir.
+N&atilde;o &eacute; o nosso rico baptismo, n&atilde;o lhes
+vale.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego ent&atilde;o, que gostava de a torturar, declarou
+pausadamente que a snr.<sup>a</sup> D. Maria dissera
+uma blasphemia. O santo concilio de Trento, no seu
+canon IV, sess&atilde;o VII, l&aacute; determin&aacute;ra
+&laquo;que aquelle
+que disser que o baptismo dado aos herejes, em nome
+do Padre, do Filho e do Espirito, n&atilde;o &eacute; o
+<span class="pagenum">[483]</span>
+verdadeiro baptismo, seja excommungado!&raquo; E a D.
+Maria, segundo o santo concilio, estava desde esse
+momento excommungada!...
+<br />
+
+<br />
+
+A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia
+foi lan&ccedil;ar-se aos p&eacute;s d'Amaro, que em penitencia
+da sua injuria feita ao canon IV, sess&atilde;o VII do santo
+concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de
+inten&ccedil;&atilde;o
+pelas almas do purgatorio&mdash;que D. Maria
+lhe estava pagando a cinco tost&otilde;es cada uma.
+<br />
+
+<br />
+
+Assim, elle podia &aacute;s vezes entrar na casa do tio
+Esguelhas com um ar de satisfa&ccedil;&atilde;o mysteriosa e um
+embrulhosinho na m&atilde;o. Era algum presente para
+Amelia, um len&ccedil;o de s&ecirc;da, uma gravatinha de
+c&ocirc;res,
+um par de luvas. Ella extasiava-se com aquellas
+provas da affei&ccedil;&atilde;o do senhor parocho; e era
+ent&atilde;o
+no quarto escuro um delirio d'amor, emquanto em
+baixo a tisica, sobre a T&oacute;t&oacute;, ia fazendo
+&laquo;tr&aacute;s...
+tr&aacute;s...&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XX
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor conego? Quero-lhe fallar. Depressa!
+<br />
+
+<br />
+
+A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio,
+e correu acima contar a D. Josepha que o
+senhor parocho viera procurar o senhor conego, e
+com uma cara t&atilde;o transtornada que decerto tinha
+succedido alguma desgra&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio,
+fechou-a de repell&atilde;o, e sem mesmo dar os bons
+dias ao collega, exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A rapariga est&aacute; gravida!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego, que estava escrevendo, cahiu como
+uma massa fulminada para as costas da cadeira:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz voss&ecirc;!?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Gravida!
+<span class="pagenum">[486]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E no silencio que se fez o soalho gemia sob os
+passeios furiosos do parocho da janella para a estante.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; voss&ecirc; certo d'isso? perguntou emfim o
+conego com pavor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Certissimo! A mulher j&aacute; ha dias andava desconfiada.
+J&aacute; n&atilde;o fazia sen&atilde;o chorar... Mas agora
+&eacute;
+certo... As mulheres conhecem, n&atilde;o se enganam.
+Ha todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olha que espiga! ponderou o conego atordoado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Imagine voss&ecirc; o escandalo! A m&atilde;i, a
+visinhan&ccedil;a...
+E se suspeitam de mim?... Estou perdido...
+Eu n&atilde;o quero saber, eu fujo!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego co&ccedil;ava estupidamente o cacha&ccedil;o, com
+o bei&ccedil;o cahido como uma tromba. Representavam-se-lhe
+j&aacute; os gritos em casa, a noite do parto, a S.
+Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade
+extincta para sempre...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado.
+Que pensa voss&ecirc;? Veja se tem alguma
+id&eacute;a... Eu n&atilde;o sei, eu estou idiota, estou de
+todo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi est&atilde;o as consequencias, meu caro collega.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute; p'r'&oacute; inferno, homem! N&atilde;o se
+trata de moral...
+Est&aacute; claro que foi uma asneira... Adeus, est&aacute;
+feita!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas ent&atilde;o que quer voss&ecirc;? disse o conego.
+N&atilde;o quer decerto que se d&ecirc; uma droga &aacute;
+rapariga,
+que a arrase...
+<span class="pagenum">[487]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro encolheu os hombros, impaciente com
+aquella id&eacute;a insensata. O padre-mestre, positivamente,
+estava divagando...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas ent&atilde;o que quer voss&ecirc;? repetia o conego
+n'um tom cavo, arrancando as palavras do abysmo
+do thorax.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quero!? quero que n&atilde;o haja escandalo!
+Que hei de eu querer?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De quantos mezes est&aacute; ella?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De quantos mezes? Est&aacute; d'agora, est&aacute; d'um
+mez...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o &eacute; casal-a! exclamou o conego com
+explos&atilde;o.
+Ent&atilde;o &eacute; casal-a com o escrevente!
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro deu um pulo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C'os diabos, tem voss&ecirc; raz&atilde;o! &Eacute; de
+mestre!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego affirmou gravemente com a cabe&ccedil;a que
+era &laquo;de mestre&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Casal-a j&aacute;! Emquanto &eacute; tempo!
+<em>Pater est
+quem nupti&aelig; demonstrant</em>... Quem
+&eacute; marido &eacute; que
+&eacute; pai.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos
+azues, a touca negra de D. Josepha. N&atilde;o se pudera
+conter em cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi
+agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas
+e coll&aacute;ra o ouvido &aacute; fechadura do escriptorio;
+mas o grosso reposteiro de baet&atilde;o estava cerrado por
+dentro, um ruido de lenha que se descarregava na
+rua abafava as vozes. A boa senhora ent&atilde;o decidiu-se
+a entrar, &laquo;a dar os bons dias ao senhor parocho&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas debalde, por detraz dos vidros defumados,
+<span class="pagenum">[488]</span>
+os seus olhinhos agudos esquadrinharam anciosamente
+o car&atilde;o espesso do mano e a face pallida d'Amaro.
+Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como
+duas janellas fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente
+do rheumatico do senhor chantre, da
+not&iacute;cia que corria sobre o casamento do senhor secretario
+geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou
+que tinha n'esse dia uma famosa orelheira para
+o jantar&mdash;e a snr.<sup>a</sup> D. Josepha, roendo-se, viu-o
+abalar depois de ter dito j&aacute; por detraz do reposteiro
+ao conego:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o at&eacute; &aacute; noite em casa da S.
+Joanneira,
+padre-mestre, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; &aacute; noite.
+<br />
+
+<br />
+
+E o conego, muito grave, continuou a escrever.
+D. Josepha ent&atilde;o n&atilde;o se conteve; e depois de
+arrastar
+um momento as chinelas em torno da banca do
+mano:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha novidade?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Grande novidade, mana! disse-lhe o conego,
+sacudindo os bicos da penna. Morreu o senhor D.
+Jo&atilde;o VI!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapat&otilde;es,
+cruelmente perseguida por uma risadinha do
+mano.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi &aacute; noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira,
+emquanto Amelia em cima, com a morte n'alma,
+martellava a <em>Valsa dos dois mundos</em>,
+que os
+dois padres, muito chegados no canap&eacute;, de cigarro
+nos dentes, por debaixo do tenebroso painel onde
+<span class="pagenum"><a name="p489" id="p489">[489]</a></span>
+a vaga m&atilde;o do cenobita se estendia em garra sobre
+a caveira, cochicharam o seu plano:&mdash;antes de
+tudo era <a href="#e20">necessario</a> achar
+Jo&atilde;o Eduardo, que
+desapparecera
+de Leiria; a Dionysia, mulher de faro, ia
+bater todos os recantos da cidade para descobrir a
+toca em que a fera se acoutava; depois, immediatamente,
+porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia...
+S&oacute; quatro palavras simples: que soubera que
+elle f&ocirc;ra victima d'uma intriga; que nunca perdera
+nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma
+repara&ccedil;&atilde;o; e que <a href="#e21">viesse</a>
+v&ecirc;l-a... Se
+o rapaz hesitasse
+agora, o que n&atilde;o era provavel (o conego affirmava-o),
+fazia-se-lhe reluzir a esperan&ccedil;a do emprego
+no governo civil, facil d'obter pelo Godinho, inteiramente
+governado pela mulher, que era uma escravasinha
+do padre Silverio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta
+o escrevente, que dir&aacute; elle a esta
+revolu&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, exclamou o conego com uma grande
+palmada na c&ocirc;xa, que me tinha esquecido! Pois voss&ecirc;
+n&atilde;o sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o sabia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quebrou uma perna! Cahiu da egoa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esta manh&atilde;. Eu soube-o agora &agrave; noitinha. Eu
+sempre lh'o disse: homem, esse animal ferra-lhe alguma!
+Pois senhores, ferrou-lh'a. E t&ecirc;sa! Tem p'ra
+p&ecirc;ras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras
+l&aacute; em cima sabem nada.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi uma desola&ccedil;&atilde;o, em cima, quando souberam.
+<span class="pagenum">[490]</span>
+Amelia fechou o piano. Todos lembraram logo remedios
+que se lhe devia mandar, foi uma gralhada de
+offerecimentos&mdash;ligaduras, fios, um unguento das
+freiras d'Alcoba&ccedil;a, meia garrafinha d'um lic&ocirc;r dos
+monges do deserto d'ao p&eacute; de Cordova... Era necessario
+tambem assegurar a interven&ccedil;&atilde;o do c&eacute;o:
+e cada
+uma se promptificou a usar do seu valimento
+com os santos da sua intimidade: D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o,
+que ultimamente praticava com Santo Eleuterio,
+offereceu a sua influencia; D. Josepha Dias encarregava-se
+d'interessar Nossa Senhora da Visita&ccedil;&atilde;o;
+D. Joaquina Gansoso afian&ccedil;ou S. Joaquim...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E l&aacute; a menina? perguntou o conego a Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu?...
+<br />
+
+<br />
+
+E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua
+alma, pensando que ella, com os seus peccados e
+os seus del&iacute;rios, perdera a util amizade de Nossa Senhora
+das D&ocirc;res.&mdash;E n&atilde;o poder ella tambem concorrer
+com a sua influencia no c&eacute;o para restabelecer
+a perna de Natario, foi uma das amarguras maiores,
+talvez a puni&ccedil;&atilde;o mais viva que sentira desde que
+amava o padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro
+participou a Amelia o plano do padre-mestre. Preparou-a,
+revelando-lhe primeiro que o conego sabia
+tudo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sabe tudo em segredo de confiss&atilde;o, acrescentou
+<span class="pagenum">[491]</span>
+para a socegar. Al&eacute;m d'isso elle e tua m&atilde;i
+t&ecirc;m
+culpas em cartorio... Tudo fica em familia...
+<br />
+
+<br />
+
+Depois tomou-lhe a m&atilde;o, e olhando-a com ternura,
+como compadecendo-se j&aacute; das lagrimas afflictas
+que ella ia chorar:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora escuta, filha. N&atilde;o te afflijas com o que
+te vou dizer, mas &eacute; necessario, &eacute; a nossa
+salva&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s primeiras palavras, por&eacute;m, do casamento com
+o escrevente, Amelia indignou-se com espalhafato.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nunca, antes morrer!
+<br />
+
+<br />
+
+O qu&ecirc;? Elle punha-a n'aquelle estado e agora
+queria descartar-se d'ella e passal-a a outro? Era ella
+porventura um trapo que se usa e que se atira
+a um pobre? Depois de ter posto f&oacute;ra de casa o homem,
+havia de humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe
+nos bra&ccedil;os?... Ah, n&atilde;o! Tambem ella tinha o seu
+brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era
+no Brazil!
+<br />
+
+<br />
+
+Enterneceu-se ent&atilde;o. Ah, elle j&aacute; n&atilde;o a
+amava,
+estava farto d'ella! Ah, que desgra&ccedil;ada, que
+desgra&ccedil;ada
+que era!&mdash;Atirou-se de bru&ccedil;os para a cama e
+rompeu n'um ch&ocirc;ro estridente.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua!
+dizia Amaro desesperado, sacudindo-a pelo bra&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me importa! Que ou&ccedil;am! P'r'&aacute; rua
+vou
+eu gritar que estou n'este estado, que foi o senhor
+padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo
+furioso de lhe bater. Mas conteve-se; e com uma
+voz que tremia sob a sua serenidade:
+<span class="pagenum"><a name="p492" id="p492">[492]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu est&aacute;s f&oacute;ra de ti, filha... Dize
+l&aacute;, posso eu
+casar comtigo? N&atilde;o! Bem, ent&atilde;o que queres? Se se
+percebe que est&aacute;s assim, se tens o filho em casa,
+v&ecirc;
+o escandalo!... Por ti, est&aacute;s perdida, perdida p'ra
+sempre! E eu, se se souber, que me succede? Perdido
+tambem, suspenso, mettido em processo talvez...
+De que queres tu que eu viva? Queres que
+morra de fome?
+<br />
+
+<br />
+
+Enterneceu-se tambem &aacute;quella id&eacute;a das
+priva&ccedil;&otilde;es
+e das miserias do padre interdicto.&mdash;Ah, era ella,
+era ella que o n&atilde;o amava, e que depois d'elle ter
+sido t&atilde;o carinhoso e t&atilde;o delicado, lhe queria
+pagar
+com o escandalo e com a desgra&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o! exclamou Amelia em
+solu&ccedil;os, lan&ccedil;ando-se-lhe
+ao pesco&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+E ficaram abra&ccedil;ados, tremendo no mesmo
+<a href="#e22">enternecimento</a>,&mdash;ella
+molhando de pranto o hombro do parocho,
+elle mordendo o bei&ccedil;o com os olhos todos
+turvos d'agua.
+<br />
+
+<br />
+
+Desprendeu-se brandamente, emfim, e limpando
+as lagrimas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, filha, &eacute; uma desgra&ccedil;a que nos
+succede,
+mas tem de ser. Se tu soffres, imagina eu! V&ecirc;r-te
+casada, a viver com outro... Nem fallemos n'isso...
+Mas ent&atilde;o, &eacute; a fatalidade, &eacute; Deus que
+a manda!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella fic&aacute;ra aniquilada, &aacute; beira do leito, tomada
+ainda de grandes solu&ccedil;os. Tinha chegado emfim o
+castigo, a vingan&ccedil;a de Nossa Senhora, que ella sentia
+preparar-se ha tempos no fundo dos c&eacute;os, como
+uma tormenta complicada. Ahi estava, agora, peor
+<span class="pagenum">[493]</span>
+que os fogos do Purgatorio! Tinha de se separar de
+Amaro que imaginava amar mais, e ir viver com o
+outro, com o excommungado! Como poderia ella nunca
+reentrar na gra&ccedil;a de Deus, depois de ter dormido
+e vivido com um homem que os canones, o Papa,
+toda a terra, todo c&eacute;o consideravam maldito?... E
+devia ser esse seu marido, talvez o pai d'outros filhos...
+Ah, Nossa Senhora vingava-se de mais!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E como posso eu casar com elle, Amaro, se
+o homem est&aacute; excommungado?!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando
+os argumentos. Era necessario n&atilde;o exagerar...
+O rapaz, verdadeiramente, excommungado n&atilde;o
+estava... Natario e o conego tinham interpretado mal
+os canones e as bullas... Bater n'um sacerdote que
+n&atilde;o estava revestido n&atilde;o era motivo
+d'excommunh&atilde;o
+<em>ipso facto</em>, segundo certos
+auctores... Elle, Amaro,
+era d'essa opini&atilde;o... De mais a mais podiam levantar-lhe
+a excommunh&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu comprehendes... Como disse o santo concilio
+de Trento, e como sabes, <em>n&oacute;s atamos e
+desatamos</em>.
+O mo&ccedil;o foi excommungado?... Bem, levantamos-lhe
+a excommunh&atilde;o... Fica t&atilde;o limpo como
+d'antes. N&atilde;o, isso n&atilde;o te d&ecirc; cuidado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas de que havemos de viver, se elle perdeu
+o emprego?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu n&atilde;o me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o
+emprego. Arranja-lh'o o padre-mestre. Est&aacute; tudo
+combinadinho, filha!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondeu, muito quebrada e muito triste,
+<span class="pagenum">[494]</span>
+com duas lagrimas persistentes ao comprido das
+faces.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dize c&aacute;, tua m&atilde;i n&atilde;o desconfia de
+nada?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, por ora n&atilde;o se percebe, respondeu ella
+com um grande ai.
+<br />
+
+<br />
+
+Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando
+para sahir; elle de cabe&ccedil;a baixa, trilhando
+lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas
+manh&atilde;s d'outr'ora, quando s&oacute; havia alli beijos e
+risadinhas
+abafadas; tudo mud&aacute;ra agora, at&eacute; o tempo
+que estava todo nublado, um dia de fim de ver&atilde;o,
+amea&ccedil;ando chuva.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Percebe-se que estive a chorar? perguntou ella,
+compondo ao espelho o cabello.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o. Vaes-te?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A mam&atilde; est&aacute; &aacute; minha espera...
+<br />
+
+<br />
+
+Deram um beijo triste, e ella sahiu.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na
+pista de Jo&atilde;o Eduardo. A sua actividade desenvolvera-se,
+sobretudo, mal soubera que o conego Dias, o
+rica&ccedil;o, estava interessado na
+&laquo;pesquiza&raquo;. E todos os
+dias, &aacute; noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo
+port&atilde;o d'Amaro a dar-lhe as novidades: j&aacute; sabia
+que
+o escrevente estivera ao principio em Alcoba&ccedil;a com
+um primo boticario; depois f&ocirc;ra para Lisboa; ahi,
+com uma carta de recommenda&ccedil;&atilde;o do doutor
+Gouv&ecirc;a,
+empreg&aacute;ra-se no cartorio d'um procurador; mas
+<span class="pagenum">[495]</span>
+o procurador, passados dias, por uma fatalidade,
+morrera de apoplexia; e desde ent&atilde;o o rasto de
+Jo&atilde;o
+Eduardo perdia-se no vago, no cahos da capital. Havia,
+sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada
+e os passos: era o typographo, o Gustavo. Mas
+infelizmente o Gustavo, depois d'uma quest&atilde;o com
+o Agostinho, deix&aacute;ra o
+<em>Districto</em> e desapparecera.
+Ninguem sabia para onde f&ocirc;ra; por desgra&ccedil;a, a
+m&atilde;i
+do typographo n&atilde;o a podia informar&mdash;porque morrera
+tambem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhores! dizia o conego quando o padre
+Amaro lhe ia levar estes fios d'informa&ccedil;&atilde;o. Oh,
+senhores!
+mas ent&atilde;o n'essa historia toda a gente morre!
+Isso &eacute; uma hecatombe!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; graceja, padre-mestre, mas &eacute;
+s&eacute;rio.
+Olhe que um homem em Lisboa &eacute; agulha em palheiro.
+&Eacute; uma fatalidade!
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, afflicto j&aacute;, vendo passar os dias,
+escreveu
+&aacute; tia, pedindo-lhe que esquadrinhasse por toda a Lisboa,
+a v&ecirc;r se por l&aacute; apparecera &laquo;um tal
+Jo&atilde;o Eduardo
+Barbosa...&raquo; Recebeu uma carta da tia em garatujas
+de tres paginas, queixando-se do Jo&atilde;osinho, do
+seu Jo&atilde;osinho, que lhe fizera a vida um inferno,
+embebedando-se
+com genebra a ponto que n&atilde;o lhe paravam
+hospedes em casa. Mas estava agora mais
+tranquilla: o pobre Jo&atilde;osinho havia dias
+jur&aacute;ra-lhe
+pela alma da mam&atilde; que d'ahi por diante n&atilde;o
+beberia
+sen&atilde;o gazosa. Emquanto ao tal Jo&atilde;o Eduardo
+pergunt&aacute;ra na visinhan&ccedil;a e ao snr. Palma do
+ministerio
+das obras publicas, que conhecia toda a gente,
+<span class="pagenum">[496]</span>
+mas nada averigu&aacute;ra. Havia, sim, um Joaquim Eduardo
+que tinha uma loja de quinquilherias no bairro...
+E se fosse o negocio com elle bem ia, que era
+um homem de bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&eacute;rias! l&eacute;rias! interrompeu o conego
+impaciente.
+<br />
+
+<br />
+
+Resolveu-se elle ent&atilde;o a escrever. E instado pelo
+padre Amaro (que n&atilde;o cessava de lhe representar o
+que a S. Joanneira e elle mesmo, conego Dias, soffreria
+com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu
+amigo da capital as despezas necessarias para empregar
+a policia. A resposta demorou-se, mas veio
+emfim, promettedora e magnifica! O habil policia
+Mendes descobrira Jo&atilde;o Eduardo! Somente n&atilde;o lhe
+sabia ainda a morada, avist&aacute;ra-o apenas n'um
+caf&eacute;;
+mas em dois ou tres dias o amigo Mendes promettia
+informa&ccedil;&otilde;es precisas.
+<br />
+
+<br />
+
+O desespero dos dois sacerdotes, por&eacute;m, foi grande
+quando, d'ahi a dias, o amigo do conego escreveu
+que o indiv&iacute;duo, que o habil policia Mendes
+tom&aacute;ra
+por Jo&atilde;o Eduardo, n'um caf&eacute; da Baixa, sobre
+signaes incompletos, era um mo&ccedil;o de Santo Thyrso
+que estava na capital a fazer concurso para delegado...
+E havia tres libras e dezesete tost&otilde;es de despeza.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando
+para Amaro furioso. E no fim de contas foi o senhor
+que gozou, que se refocillou, e sou eu que estou
+aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e
+a fazer desembolsos d'esta ordem!
+<span class="pagenum">[497]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os
+hombros &aacute; injuria.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas n&atilde;o estava nada perdido, gra&ccedil;as a Deus. A
+Dionysia l&aacute; andava no faro!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia recebia estas noticias com desconsola&ccedil;&atilde;o.
+Depois das primeiras lagrimas, a irremediavel necessidade
+impuzera-se-lhe, muito forte. Por fim que
+lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle
+seu desgra&ccedil;ado corpo de cinta fina e quadris estreitos,
+n&atilde;o poderia esconder o seu estado. E que faria
+ent&atilde;o? Fugir de casa, ir como a filha do tio Cegonha
+para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos
+inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que f&ocirc;ra
+a amiga do padre Abilio, levar pela cara os ratos
+mortos que lhe atiravam os soldados? N&atilde;o. Ent&atilde;o,
+tinha de casar...
+<br />
+
+<br />
+
+Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete
+mezes (era t&atilde;o frequente!), legitimado pelo sacramento,
+pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu
+filho teria um pap&aacute;, receberia uma
+educa&ccedil;&atilde;o, n&atilde;o
+seria um engeitado...
+<br />
+
+<br />
+
+Desde que o senhor parocho lhe affirm&aacute;ra, em
+juramento, que o escrevente <em>n&atilde;o estava
+realmente
+excommungado</em>, que com algumas
+ora&ccedil;&otilde;es se lhe
+levantaria a excommunh&atilde;o, os seus escrupulos devotos
+esmoreciam como brazas que se apagam. No
+fim, em todos os erros do escrevente, ella s&oacute; podia
+<span class="pagenum">[498]</span>
+descobrir a incita&ccedil;&atilde;o do ciume e do amor:
+f&ocirc;ra n'um
+despeito de namorado que escrevera o
+<em>Communicado</em>,
+f&ocirc;ra n'um furor de paix&atilde;o trahida que
+espanc&aacute;ra
+o senhor parocho... Ah! n&atilde;o lhe perdoava esta brutalidade!
+Mas que castigado f&ocirc;ra! Sem emprego, sem
+casa, sem mulher, t&atilde;o perdido na miseria anonyma
+de Lisboa que nem a policia o achava! E tudo por
+ella. Pobre rapaz! No fim n&atilde;o era feio... Fallavam
+da sua impiedade; mas vira-o sempre muito attento
+&aacute; missa, rezava todas as noites uma
+ora&ccedil;&atilde;o especial
+a S. Jo&atilde;o que ella lhe dera impressa n'um cart&atilde;o
+bordado...
+<br />
+
+<br />
+
+Com o emprego no governo civil podiam ter
+uma casinha e uma criada... Porque n&atilde;o seria feliz,
+por fim? Elle n&atilde;o era rapaz de botequins, nem de
+vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe imp&ocirc;r
+os seus gostos e as suas devo&ccedil;&otilde;es. E seria
+agradavel
+sahir aos domingos de manh&atilde; para a missa,
+arranjada, de marido ao lado, comprimentada de todos,
+podendo, &aacute; face da cidade, passear o seu filho
+muito vistoso na sua touca de rendas e na sua grande
+capa franjada! Quem sabe se, ent&atilde;o, pelos carinhos
+que d&eacute;sse ao pequerrucho e pelos confortos de
+que cercasse o homem, o c&eacute;o e Nossa Senhora se
+n&atilde;o abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter
+outra vez no c&eacute;o aquella amiga, a sua querida Nossa
+Senhora, amavel e confidente, sempre prompta a curar-lhe
+as d&ocirc;res, a livral-a de infortunios, occupada
+a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!
+<br />
+
+<br />
+
+Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura;
+<span class="pagenum">[499]</span>
+pensava assim, mesmo no caminho para casa do
+sineiro; e depois de ter estado um momento com a
+T&oacute;t&oacute;, muito quieta agora, extenuada da febre
+lenta,
+quando subia ao quarto, a primeira pergunta a Amaro
+era:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, ha alguma novidade?
+<br />
+
+<br />
+
+Elle franzia a testa, rosnava:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A Dionysia l&aacute; anda... Porqu&ecirc;, tens muita
+pressa?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tenho muita pressa, tenho, respondia ella
+muito s&eacute;ria, que a vergonha &eacute; para mim.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle calava-se; e havia tanto odio como amor
+nos beijos que lhe dava&mdash;&aacute;quella mulher que se resignava
+assim t&atilde;o facilmente a ir dormir com outro!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha ciumes d'ella&mdash;que lhe tinham vindo ultimamente
+desde que a vira conformar-se &aacute;quelle
+casamento odioso! Agora, que ella j&aacute; n&atilde;o chorava,
+come&ccedil;ava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas;
+e secretamente desesperava-se d'ella n&atilde;o preferir a
+vergonha com elle &aacute; rehabilita&ccedil;&atilde;o com
+o outro. N&atilde;o
+lhe custaria tanto se ella continuasse a barafustar,
+a fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova
+s&eacute;ria de amor, em que a sua vaidade se banharia
+deliciosamente;
+mas aquella aceita&ccedil;&atilde;o do escrevente
+agora, sem repugnancia e sem gestos d'horror, indignava-o
+como uma trai&ccedil;&atilde;o. Viera a suspeitar que
+a ella no fundo n&atilde;o lhe <em>desagradava a
+mudan&ccedil;a</em>.
+Jo&atilde;o Eduardo por fim era um homem; tinha a for&ccedil;a
+<span class="pagenum">[500]</span>
+dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello bigode.
+Ella teria nos bra&ccedil;os d'elle o mesmo delirio
+que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho
+consumido de rheumatismo, ella n&atilde;o mostraria a mesma
+resigna&ccedil;&atilde;o. Ent&atilde;o, por
+vingan&ccedil;a do padre, para
+&laquo;lhe desmanchar o arranjo&raquo;, desejava que
+Jo&atilde;o
+Eduardo n&atilde;o apparecesse: e muitas vezes, quando a
+Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe
+com um mau sorriso:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se canse. O homem n&atilde;o apparece. Deixe
+l&aacute;... N&atilde;o vale a pena ganhar d&ocirc;r de
+peito...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Dionysia tinha o peito forte&mdash;e uma noite
+veio, triumphante, dizer-lhe que estava na pista
+do homem! Vira emfim o Gustavo, o typographo, entrar
+para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia
+ia-lhe fallar, e havia de se saber tudo...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle
+casamento, por que anci&aacute;ra no primeiro momento de
+terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catastrophe
+da sua vida.
+<br />
+
+<br />
+
+Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem
+que elle expuls&aacute;ra, que elle supprimira, alli lhe vinha,
+por uma d'estas peripecias malignas em que a
+Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente.
+E a id&eacute;a que elle ia tel-a nos bra&ccedil;os,
+que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a
+elle, que balbuciaria <em>oh,
+Jo&atilde;o!</em>&mdash;como agora murmurava
+<em>oh, Amaro!</em>&mdash;enfurecia-o. E
+n&atilde;o podia evitar
+o casamento; todos o queriam, ella, o conego,
+at&eacute; a Dionysia com o seu z&ecirc;lo venal!
+<span class="pagenum">[501]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+De que lhe servia ser um homem com sangue
+nas veias e as paix&otilde;es fortes d'um corpo s&atilde;o?
+Tinha
+de dizer adeus &aacute; rapariga,&mdash;v&ecirc;l-a partir de
+bra&ccedil;o
+dado com o <em>outro</em>, com o marido, irem
+ambos para
+casa brincar com o filho, um filho que era seu! E elle
+assistiria &aacute; destrui&ccedil;&atilde;o da sua alegria
+de bra&ccedil;os cruzados,
+esfor&ccedil;ando-se por sorrir, voltaria a viver s&oacute;,
+eternamente s&oacute;, e a rel&ecirc;r o Breviario!... Ah! se
+fosse no tempo em que se supprimia um homem com
+uma denuncia d'heresia!... Que o mundo recuasse
+duzentos annos, e o snr. Jo&atilde;o Eduardo havia de saber
+o que custa achincalhar um sacerdote e casar
+com a menina Amelia...
+<br />
+
+<br />
+
+E esta id&eacute;a absurda, na exalta&ccedil;&atilde;o da
+febre em
+que estava, apoderou-se t&atilde;o fortemente da sua
+imagina&ccedil;&atilde;o
+que toda a noite a sonhou&mdash;n'um sonho vivido,
+que muitas vezes depois contou rindo &aacute;s senhoras.
+Era uma rua estreita batida d'um sol ardente;
+entre as altas portas chapeadas, uma popula&ccedil;a
+apinhava-se; pelos balc&otilde;es, fidalgos muito bordados
+retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam,
+entre as pregas das mantilhas, acc&ecirc;sos n'um furor
+santo. E pela cal&ccedil;ada, a prociss&atilde;o do
+auto-de-f&eacute; movia-se
+devagar, n'um vasto ruido, sob o tremendo
+dobre a finados de todos os sinos visinhos. Adiante
+os flagellantes semi-nus, de capuz branco sobre o
+rosto, dilaceravam-se, uivando o
+<em>Miserere</em>, com as
+costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia
+Jo&atilde;o Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes,
+a camisa alva sarapintada de diabos c&ocirc;r
+<span class="pagenum">[502]</span>
+de fogo, tendo ao peito um rotulo em que estava
+escripto&mdash;<span class="smallcaps">POR HEREJE</span>;
+por traz um
+medonho
+servente do Santo Officio espica&ccedil;ava furiosamente o
+jumento; e ao p&eacute; um padre, erguendo alto o crucifixo,
+berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do arrependimento.
+E elle, Amaro, caminhava ao lado cantando
+o <em>Requiem</em>, de Breviario aberto n'uma
+m&atilde;o,
+com a outra aben&ccedil;oando as velhas, as amigas da rua
+da Misericordia que se agachavam para lhe beijar a
+alva. &Aacute;s vezes voltava-se para gozar aquella pompa
+lugubre, e via ent&atilde;o a longa fila da confraria
+dos Nobres: aqui era um personagem pansudo e
+apopletico, al&eacute;m uma face de mystico com um bigode
+feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava
+uma tocha acc&ecirc;sa, e na outra m&atilde;o sustentava o
+chap&eacute;o cuja pluma negra varria o ch&atilde;o. Os
+capacetes
+dos arcabuzeiros reluziam; uma c&oacute;lera devota
+contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o
+prestito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o
+clamor do canto-ch&atilde;o, os gritos dos fanaticos, o dobrar
+aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um
+terror que enchia toda a cidade,&mdash;aproximando-se
+da plataf&oacute;rma de tijolo onde j&aacute; fumegavam as
+pilhas
+de lenha.
+<br />
+
+<br />
+
+E o seu desengano foi grande, depois d'aquella
+gloria ecclesiastica do sonho, quando a criada o veio
+acordar cedo com agua quente para a barba.
+<br />
+
+<br />
+
+Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. Jo&atilde;o
+Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se
+com Amelia &aacute;s onze horas; e foi a primeira coisa
+<span class="pagenum">[503]</span>
+que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau
+modo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O homem appareceu... Pelo menos appareceu
+o amigo intimo, o typographo, que sabe onde a
+b&ecirc;sta p&aacute;ra...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, que estava n'um dia de desalento e terror,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ainda bem, que se acaba este tormento!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro teve um risinho repassado de fel:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o agrada-te, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se te parece, n'este susto em que ando...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia.
+Susto! N&atilde;o estava m&aacute; hypocrisia! Susto de
+qu&ecirc;?
+Com uma m&atilde;i que era uma babosa, que lhe consentia
+tudo... O que era, era que queria casar...
+Queria outro! N&atilde;o lhe agradava aquelle divertimento
+pela manh&atilde;, de fugida... Queria a coisa commodamente,
+em casa. Imaginava a menina que o illudia a
+elle, um homem de trinta annos e quatro annos de
+experiencia de confiss&atilde;o? Via bem atrav&eacute;s
+d'ella...
+Era como as outras, queria mudar d'homem.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondia, muito pallida. E Amaro, furioso
+com o seu silencio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Calas-te, est&aacute; claro... Que has de tu dizer? Se
+&eacute; a verdade pura!... Depois dos meus sacrificios...
+Depois do que tenho soffrido por ti... Apparece-te o
+outro, larga para o outro!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu-se, e batendo o p&eacute;, desesperada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foste tu que quizeste, Amaro!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pudera! Se imaginas que me havia de perder
+<span class="pagenum">[504]</span>
+por tua causa! Est&aacute; claro que quiz!...&mdash;E olhando-a
+d'alto, fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma
+muito recta:&mdash;Mas nem vergonha tens de mostrar a
+alegria, o furor de ir para o homem!... &Eacute;s uma
+desavergonhada,
+&eacute; o que &eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou
+o mantelete para sahir.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo
+bra&ccedil;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. &Eacute;s uma
+desavergonhada... Estou-te a dizer. Est&aacute;s morta por
+dormir com o outro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois acabou-se, estou! disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me mates! gritou ella. &Eacute; o teu filho!
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: &aacute;quella
+palavra, &aacute;quella id&eacute;a do seu filho, uma piedade,
+um amor desesperado revolveu todo o seu s&ecirc;r: e
+arremessando-se
+sobre ella, n'um abra&ccedil;o que a esmagava,
+como querendo sepultal-a no peito, absorvel-a
+toda s&oacute; para si, atirando-lhe beijos furiosos que a
+magoavam,
+pela face e pelos cabellos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Perd&ocirc;a, murmurava, perd&ocirc;a, minha Ameliasinha!
+Perd&ocirc;a, que estou doido!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella solu&ccedil;ava, n'um pranto nervoso;&mdash;e toda a
+manh&atilde; foi no quarto do sineiro um delirio d'amor a
+que aquelle sentimento da maternidade, ligando-os
+como um sacramento, dava uma ternura maior, um
+renascimento incessante de desejo, que os lan&ccedil;ava
+cada vez mais &aacute;vidos nos bra&ccedil;os um do outro.
+<span class="pagenum">[505]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Esqueceram as horas; e Amelia s&oacute; se decidiu a
+saltar do leito quando ouviram em baixo na cozinha
+a muleta do tio Esguelhas.
+<br />
+
+<br />
+
+Emquanto ella se arranjava &aacute; pressa diante do
+bocado d'espelho que ornava a parede, Amaro diante
+d'ella contemplava-a com melancolia, vendo-a a passar
+o pente nos cabellos&mdash;nos cabellos que elle
+dentro em breve n&atilde;o tornaria a v&ecirc;r pentear; deu
+um grande suspiro, disse-lhe enternecido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&atilde;o a acabar os nossos bons dias, Amelia.
+&Eacute;s tu que queres... Has de te lembrar algumas vezes
+d'estas boas manh&atilde;s...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o digas isso! fez ella com os olhos arrazados
+d'agua.
+<br />
+
+<br />
+
+E atirando-se-lhe de repente ao pesco&ccedil;o, com a
+antiga paix&atilde;o dos tempos felizes, murmurou-lhe:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hei de ser sempre a mesma para ti... Mesmo
+depois de casada.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro agarrou-lhe as m&atilde;os s&ocirc;fregamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Juras?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Juro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pela hostia sagrada?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Juro pela hostia sagrada, juro por Nossa Senhora!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre que tenhas occasi&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, Ameliasinha! oh, filha! n&atilde;o te trocava
+por uma rainha!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella
+ao leito, ouvia-a em baixo fallar tranquillamente
+<span class="pagenum">[506]</span>
+com o tio Esguelhas; e dizia comsigo que era uma
+grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que
+havia de fazer andar n'uma roda viva o pateta do
+escrevente.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Aquelle &laquo;pacto&raquo;, como lhe chamava o padre
+Amaro, tornou-se entre elles t&atilde;o irrevogavel que
+j&aacute;
+lhe discutiam tranquillamente os detalhes. O casamento
+com o escrevente consideravam-no como uma
+d'estas necessidades que a sociedade imp&otilde;e e que
+suffoca as almas independentes, mas a que a natureza
+se subtrae pela menor fenda, como um gaz
+irreductivel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro
+marido d'Amelia era o senhor parocho; era o marido
+da alma, para quem seriam guardados os melhores
+beijos, a obediencia intima, a vontade; o outro
+teria quando muito o <em>cadaver</em>...
+J&aacute; &aacute;s vezes
+mesmo tramavam o plano habil das correspondencias
+secretas, dos logares occultos de
+<em>rendez-vous</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos,
+em todo o fogo da paix&atilde;o. Diante da certeza
+que em algumas semanas o casamento ia tornar
+&laquo;tudo branco como a neve&raquo;, os seus transes tinham
+desapparecido, o mesmo terror da vingan&ccedil;a do c&eacute;o
+calm&aacute;ra-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro
+f&ocirc;ra como a chicotada que esperta um cavallo que
+pregui&ccedil;a e se atraza: e a sua paix&atilde;o,
+sacudindo-se
+e relinchando forte, ia-a de novo levando no impeto
+d'uma carreira fogosa.
+<span class="pagenum">[507]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, esse regosijava-se. Ainda &aacute;s vezes, decerto,
+a id&eacute;a d'aquelle homem, de dia e de noite
+com ella, importunava-o... Mas, no fundo, que
+compensa&ccedil;&otilde;es!
+Todos os perigos desappareciam magicamente,
+e as sensa&ccedil;&otilde;es requintavam. Findavam para
+elle aquellas atrozes responsabilidades da
+seduc&ccedil;&atilde;o,
+e ficava-lhe a mulher mais appetitosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Instava agora com a Dionysia para que acabasse
+emfim aquella fastidiosa campanha. Mas a boa
+mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
+multiplicidade d'esfor&ccedil;os, n&atilde;o podia descobrir o
+typographo&mdash;aquelle
+famoso Gustavo que possuia, como
+os an&otilde;es de romance de cavallaria, o segredo da
+torre maravilhosa onde vive o principe encantado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor! dizia o conego, isso at&eacute; j&aacute; cheira
+mal! Ha quasi dois mezes &aacute; busca d'um patife!...
+Homem, escreventes n&atilde;o faltam. Arranje-se outro!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas emfim, uma noite em que elle entr&aacute;ra a descansar
+em casa do parocho, a Dionysia appareceu;
+e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os
+dois padres tomavam o seu caf&eacute;:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;At&eacute; que emfim!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, Dionysia?
+<br />
+
+<br />
+
+A mulher, por&eacute;m, n&atilde;o se apressou: sentou-se
+mesmo, com licen&ccedil;a dos senhores, porque vinha derreada...
+N&atilde;o, o senhor conego n&atilde;o imaginava os
+passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo
+lembrava-lhe a historia, que lhe contavam
+em pequena, d'um veado que estava sempre &aacute; vista
+e que os ca&ccedil;adores a galope nunca alcan&ccedil;avam. Uma
+<span class="pagenum">[508]</span>
+persegui&ccedil;&atilde;o assim!... Mas, finalmente
+apanh&aacute;ra-o...
+E tocadito, por signal.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acabe, mulher! berrou o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois aqui est&aacute;, disse ella. Nada!
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois sacerdotes olharam-na mystificados.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada qu&ecirc;, creatura?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nada. O homem foi p'r'&oacute; Brazil!
+<br />
+
+<br />
+
+O Gustavo recebera de Jo&atilde;o Eduardo duas cartas:
+na primeira, onde lhe dava a morada, para o
+lado do Po&ccedil;o do Borratem, annunciava-lhe a
+resolu&ccedil;&atilde;o
+de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que
+mud&aacute;ra de casa, sem lhe indicar a nova
+<em>adresse</em>, e
+declarava que pelo proximo paquete embarcava para
+o Rio; n&atilde;o dizia nem com que dinheiro, nem com
+que esperan&ccedil;as. Tudo era vago e mysterioso. Desde
+ent&atilde;o, havia um mez, o rapaz n&atilde;o
+torn&aacute;ra a escrever,
+d'onde o typographo concluia que ia a essa
+hora nos altos mares...&mdash;&laquo;Mas havemos de vingal-o!&raquo;
+tinha elle dito a Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego remexia pausadamente o seu caf&eacute;, embatocado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito
+branco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acho-a boa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda!
+disse surdamente Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Amen, respondeu gravemente o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXI
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A
+sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas,
+tudo perdido e sumido nas brumas do mar,
+a caminho para o Brazil!
+<br />
+
+<br />
+
+Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o
+parocho, banhada em lagrimas, perguntando-lhe todos
+os dias o que havia de fazer.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, succumbido, sem id&eacute;a, ia para o padre-mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fez-se tudo o que se p&ocirc;de, dizia o conego desolado.
+&Eacute; aguentar. N&atilde;o se mettesse n'ellas!
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro voltava para Amelia com consola&ccedil;&otilde;es
+muito murchas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo se ha de arranjar, &eacute; esperar em Deus!
+<span class="pagenum">[510]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Era bom o momento para contar com Deus, quando
+Elle, indignado, a acabrunhava de miserias! E
+aquella indecis&atilde;o, n'um homem e n'um padre, que
+devia ter a habilidade e a for&ccedil;a de a salvar,
+desesperavam-na;
+a sua ternura por elle sumia-se como
+a agua que a areia absorve; e ficava um sentimento
+confuso em que sob o desejo persistente j&aacute; transluzia
+o odio.
+<br />
+
+<br />
+
+Espa&ccedil;ava agora de semana a semana os encontros
+na casa do sineiro. Amaro n&atilde;o se queixava;
+aquellas boas manh&atilde;s do quarto do tio Esguelhas,
+eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo
+tinha um rastro de solu&ccedil;os; e aquillo enervava-o
+tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem
+de bru&ccedil;os para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
+<br />
+
+<br />
+
+No fundo accusava-a de exagerar os seus embara&ccedil;os,
+de lhe communicar um terror desproporcionado.
+Outra mulher, de melhor senso, n&atilde;o faria semelhante
+espalhafato... Mas qu&ecirc;, uma beata hysterica,
+toda nervos, toda medo, toda exalta&ccedil;&atilde;o!... Ah,
+n&atilde;o havia duvida, f&ocirc;ra &laquo;uma famosa
+asneira&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+Tambem Amelia pensava que f&ocirc;ra &laquo;uma
+asneira&raquo;.
+E n&atilde;o ter nunca imaginado que aquillo lhe poderia
+succeder! Qual! Como mulher, correra para o
+amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,&mdash;e agora
+que sentia nas entranhas o filho, eram as lagrimas
+e os espantos e as queixas! A sua vida era lugubre:
+de dia tinha de se conter diante da m&atilde;i,
+applicar-se &aacute; sua costura, conversar, affectar felicidade...
+<span class="pagenum">[511]</span>
+Era de noite que a imagina&ccedil;&atilde;o desencadeada a
+torturava com uma incessante phantasmagoria de
+castigos, d'este e do outro mundo, miserias, abandonos,
+desprezo da gente honrada e chammas do purgatorio...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o que um acontecimento inesperado veio
+fazer divers&atilde;o &aacute;quella anciedade que se ia
+tornando
+um habito morbido do seu espirito. Uma noite a criada
+do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer
+que a snr.<sup>a</sup> D. Josepha estava &aacute;
+morte.
+<br />
+
+<br />
+
+Na vespera a excellente senhora sentira-se doente
+com uma pontada no lado, mas insistira em ir &aacute; Senhora
+da Incarna&ccedil;&atilde;o rezar a sua cor&ocirc;a; voltou
+transida,
+com uma d&ocirc;r maior e uma ponta de febre; e
+n'essa tarde, quando o doutor Gouv&ecirc;a foi chamado,
+tinha-se declarado uma pneumonia aguda.
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joaneira correu logo a installar-se l&aacute; como
+enfermeira. E ent&atilde;o, durante semanas, na tranquilla
+casa do conego, foi um alvoro&ccedil;o de
+dedica&ccedil;&otilde;es afflictas:
+as amigas, quando se n&atilde;o espalhavam pelas
+igrejas a fazer promessas e a implorar os seus santos
+devotos, estavam l&aacute; em permanencia, sahindo e entrando
+no quarto da doente com passos de phantasmas,
+accendendo aqui e al&eacute;m lamparinas &aacute;s imagens,
+torturando o doutor Gouv&ecirc;a com perguntas
+piegas. &Aacute; noite na sala, com o candieiro a meia luz,
+era pelos cantos um cochichar de vozes lugubres; e
+ao ch&aacute;, entre cada mastigadella de torrada, havia
+suspiros, lagrimas furtivamente limpadas...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego l&aacute; estava a um canto, aniquilado, succumbido
+<span class="pagenum">[512]</span>
+com aquella brusca appari&ccedil;&atilde;o da doen&ccedil;a
+e do seu scenario melancolico&mdash;as garrafadas de
+botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do
+medico, as faces compungidas que vem saber se ha
+melhoras, o halito febril espalhado em toda a casa,
+o timbre funerario que toma o relogio de parede no
+abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam
+dias no logar em que cahiram, o anoitecer de
+cada dia com a sua amea&ccedil;a de treva eterna... De
+resto, um pezar sincero prostrava-o; havia cincoenta
+annos que vivia com a mana e era animado por
+ella; o longo habito torn&aacute;ra-lh'a cara; e as suas
+caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato
+pela casa faziam como uma parte mesma de seu
+s&ecirc;r... Al&eacute;m d'isso, quem sabe se a morte,
+entrando-lhe
+em casa, para poupar passos, o n&atilde;o levaria
+tambem!...
+<br />
+
+<br />
+
+Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao
+menos ninguem pensava, ninguem reparava n'ella;
+nem a sua face triste e os vestigios de lagrimas pareceriam
+estranhos, n'aquelle perigo em que estava
+a madrinha. Demais os servi&ccedil;os de enfermeira occupavam-n'a:
+como era a mais forte e a mais nova,
+agora que a S. Joaneira estava estafada de vigilias,
+era ella que passava as longas noites &aacute; beira de D.
+Josepha: e n&atilde;o havia ent&atilde;o desvelos que
+n&atilde;o tivesse,
+para abrandar Nossa Senhora e o c&eacute;o com aquella
+caridade pela doente, para merecer igual piedade
+quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada
+n'um leito... Vinha-lhe agora, sob a impress&atilde;o
+<span class="pagenum">[513]</span>
+funebre que se exhalava da casa, o presentimento
+repetido que morreria de parto; &aacute;s vezes s&oacute;,
+embrulhada
+no seu chale aos p&eacute;s da doente, ouvindo-lhe
+o gemer monotono, enternecia-se sobre a sua propria
+morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os
+olhos de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma,
+da sua mocidade e dos seus amores... Ia ent&atilde;o
+ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina
+bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o
+papel claro da parede a sua sombra disforme que se
+quebrava no tecto; e alli ficava rezando, pedindo a
+Nossa Senhora que n&atilde;o lhe recusasse o paraiso...
+Mas a velha mexia-se com um ai doloroso; ia ent&atilde;o
+aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe baixo. Vinha depois
+&aacute; sala v&ecirc;r no relogio se era o momento do remedio;
+e estremecia &aacute;s vezes, sentindo vir do quarto
+proximo um pio de flautim ou um som rouco de
+trombone; era o conego a resonar.
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim, uma manh&atilde;, o doutor Gouv&ecirc;a declarou
+D. Josepha livre de perigo. Foi um vivo regosijo para
+as senhoras&mdash;certa, cada uma, que aquillo era
+devido &aacute; interven&ccedil;&atilde;o particular do seu
+santo devoto.
+E d'ahi a duas semanas houve uma festa na casa,
+quando D. Josepha, pela primeira vez, amparada nos
+bra&ccedil;os de todas as amigas, deu dois passos tremulos
+no quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a
+doen&ccedil;a! Aquella vozinha irritada, em que as palavras
+eram despedidas como settas envenenadas, assemelhava-se
+agora apenas a um som expirante,
+quando, n'um esfor&ccedil;o ancioso da vontade, pedia a
+escarradeira
+<span class="pagenum">[514]</span>
+ou o xarope. Aquelle olhar sempre &aacute;lerta,
+escrutador e maligno, estava hoje como refugiado
+no fundo das orbitas, assustado da luz, das sombras
+e dos contornos das coisas. E o seu corpo, t&atilde;o
+t&ecirc;so outr'ora, d'uma seccura de ramo de sarmento,
+agora ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada
+dos agasalhos, parecia um trapo tambem.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas emfim o doutor Gouv&ecirc;a, apesar d'annunciar
+uma convalescen&ccedil;a longa e delicada, dissera rindo
+ao conego, diante das amigas (depois de ter visto
+D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo
+de se chegar &aacute; janella), que com muita cautela,
+tonicos, e as ora&ccedil;&otilde;es de todas aquellas boas
+senhoras&mdash;a
+mana estava ainda para amores...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas
+ora&ccedil;&otilde;es
+n&atilde;o lhe h&atilde;o de faltar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E eu n&atilde;o lhe hei de faltar com os tonicos,
+disse o doutor. De modo que, o que resta &eacute;
+congratularmo-nos.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella jovialidade do doutor era para todos
+como a certeza da saude proxima.
+<br />
+
+<br />
+
+E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se
+o fim d'agosto, fallou de alugar casa na Vieira, como
+costumava um anno sim outro n&atilde;o, para ir tomar
+os seus banhos de mar. O anno passado n&atilde;o
+f&ocirc;ra. Este era o anno de praia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a mana l&aacute;, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar,
+&eacute; que acaba de ganhar for&ccedil;as e carnes...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o doutor Gouv&ecirc;a desapprovou a jornada. O
+ar muito picante e muito rico do mar n&atilde;o convinha
+<span class="pagenum">[515]</span>
+&aacute; fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem para
+a quinta da Rico&ccedil;a, nos Poyaes, logar abrigado e muito
+temperado.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou
+as lamurias. O qu&ecirc;! ir enterrar-se todo o
+ver&atilde;o, o melhor tempo do anno, na Rico&ccedil;a! E os
+seus banhos, meu Deus, os seus banhos?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Veja o senhor,&mdash;dizia elle a Amaro, uma noite
+no escriptorio,&mdash;veja o que eu tenho sofrido...
+Durante a doen&ccedil;a, que desarranjo, que desordem
+na casa! Ch&aacute; f&ocirc;ra d'horas, jantar esturrado! E os
+cuidados que tive, que me emmagreceram... E agora,
+quando eu pensava poder ir refazer-me para a
+praia, n&atilde;o senhor, vai p'r'&aacute; Rico&ccedil;a,
+dispensa os teus
+banhos... Isto &eacute; o que eu chamo sofrer! E no fim
+de tudo n&atilde;o fui eu que estive doente. Mas sou eu
+que as aguento... Perder dois annos a fio os meus
+banhos!...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, ent&atilde;o, deu de repente uma punhada na
+mesa, e exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, veio-me uma boa id&eacute;a!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego olhou-o com duvida, como se n&atilde;o achasse
+possivel a uma intelligencia humana descobrir o
+fim dos seus males.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando digo uma boa id&eacute;a, padre-mestre, devia
+dizer uma id&eacute;a sublime!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Acabe, creatura...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escute. O senhor vai p'r'&aacute; Vieira, e a S. Joanneira,
+est&aacute; claro, vai tambem. Naturalmente alugam
+<span class="pagenum">[516]</span>
+casa um ao p&eacute; do outro, como ella me disse que
+tinham feito ha dois annos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adiante...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira.
+Agora, a senhora sua mana parte p'r'&aacute; Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o a creatura ha de ir s&oacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o! exclamou Amaro em triumpho. Vai com
+a Amelia! A Amelia vai-lhe servir de enfermeira!
+V&atilde;o ambas s&oacute;s! e l&aacute; na
+Rico&ccedil;a, n'aquelle buraco
+onde n&atilde;o vai viva alma, n'aquelle casar&atilde;o onde
+p&oacute;de uma pessoa viver sem que ninguem em roda
+suspeite, l&aacute; &eacute; que a rapariga tem o filho! Hein,
+que
+lhe parece?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego erguera-se com os olhos redondos
+d'admira&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, famosa id&eacute;a!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que concilia tudo! O senhor toma os seus
+banhos. A S. Joanneira, longe, n&atilde;o sabe o que se
+passa. Sua mana goza os ares... A Amelia tem um
+sitio escondido p'r'&aacute; coisa... &Aacute;
+Rico&ccedil;a ninguem a
+vai v&ecirc;r... A D. Maria tambem vai p'r'&aacute; Vieira. As
+Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom successo
+ahi pelos principios de novembro... Da Vieira, e
+isso fica por sua conta, n&atilde;o volta ninguem dos nossos
+at&eacute; principios de dezembro... E quando nos reunirmos
+de novo est&aacute; a rapariga limpa e fresca.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois senhores, por ser a primeira id&eacute;a que
+voss&ecirc; tem n'estes dois ultimos annos, &eacute; uma grande
+id&eacute;a!
+<span class="pagenum">[517]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigado, padre-mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas havia uma difficuldade feia: era o ir &aacute; D. Josepha,
+&aacute; rigorista D. Josepha, t&atilde;o implacavel
+&aacute;s fraquezas
+do sentimento, &aacute; D. Josepha que pedia para
+as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas&mdash;as
+letras marcadas na testa com ferro em braza,
+os a&ccedil;outes nas pra&ccedil;as publicas, os
+<em>in pace</em> tenebrosos&mdash;ir
+&aacute; D. Josepha e pedir-lhe para ser cumplice
+d'um parto!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A mana vai dar urros! disse o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&oacute;s veremos, padre-mestre, replicou Amaro
+repoltreando-se e balou&ccedil;ando a perna, muito certo
+do seu prestigio devoto. N&oacute;s veremos... Hei de lhe
+eu fallar... E quando lhe tiver contado umas l&eacute;rias...
+Quando lhe tiver representado que &eacute; para ella um
+caso de consciencia encobrir a pequena... Quando
+lhe lembrar que nas vesperas da morte &eacute; que se deve
+fazer alguma boa ac&ccedil;&atilde;o, para n&atilde;o se
+apresentar &aacute;
+porta do paraiso com as m&atilde;os vazias... N&oacute;s
+veremos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Talvez, talvez, disse o conego. A occasi&atilde;o &eacute;
+boa, porque a pobre mana est&aacute; fraquita do juizo e
+leva-se como uma crian&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as m&atilde;os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois &eacute; m&atilde;os &aacute; obra! &Eacute;
+m&atilde;os &aacute; obra!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E &eacute; necessario n&atilde;o perder tempo, porque o
+escandalo estala. Olhe que esta manh&atilde;, l&aacute; em
+casa,
+a besta do Libaninho p&ocirc;z-se a gracejar com a rapariga,
+a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, que patife! rugiu o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o, n&atilde;o seria por mal. Mas que a rapariga
+<span class="pagenum">[518]</span>
+tem engrossado, &eacute; facto... Com esta
+ataranta&ccedil;&atilde;o da
+doen&ccedil;a ninguem tem tido olhos para nada... Mas
+agora p&oacute;de-se reparar... &Eacute; s&eacute;rio,
+amigo, &eacute; s&eacute;rio!
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Por isso, logo na manh&atilde; seguinte, Amaro foi, segundo
+a express&atilde;o do conego, &laquo;dar a grande abordagem
+&aacute; mana&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Antes, por&eacute;m, explicou em baixo no escriptorio
+ao padre-mestre o seu plano: primeiro, ia dizer a
+D. Josepha que o conego estava na inteira ignorancia
+do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia,
+n&atilde;o em segredo de confiss&atilde;o (n'esse caso
+n&atilde;o
+o poderia revelar) mas pelas confidencias secretas
+dos dois&mdash;de Amelia e do homem casado que a seduzira!...
+Do homem casado, sim!... Porque emfim
+era necessario provar &aacute; velha que havia a impossibilidade
+d'uma repara&ccedil;&atilde;o legitima...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego co&ccedil;ava a cabe&ccedil;a descontente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso n&atilde;o vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe
+bem que n&atilde;o iam homens casados &aacute; rua da
+Misericordia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E o Arthur Couceiro? exclamou Amaro, sem
+escrupulo.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur,
+sem dentes, cheio de filhos, com os seus olhos
+de carneiro triste, accusado de perder virgens!...
+N&atilde;o, essa era boa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o p&eacute;ga, parocho amigo, n&atilde;o
+p&eacute;ga! Outra,
+outra...
+<span class="pagenum">[519]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas ent&atilde;o subitamente partiu dos labios d'ambos
+o mesmo nome,&mdash;o Fernandes, o Fernandes da loja
+de panos! Bello homem, que Amelia admirava
+muito! Sempre que sahia ia-lhe &aacute; loja: tinha mesmo
+havido indigna&ccedil;&atilde;o na rua da Misericordia, havia
+dois annos, com a ousadia do Fernandes que acompanh&aacute;ra
+Amelia pela estrada de Marrazes at&eacute; ao Morenal!
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; se sabe, n&atilde;o se dizia explicitamente
+&aacute; mana,&mdash;mas
+dava-se-lhe a entender que f&ocirc;ra o Fernandes.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro subiu rapidamente para o quarto da
+velha, que era por cima do escriptorio. Esteve l&aacute;
+meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para
+o conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem
+as solas d'Amaro, ora a tosse cavernosa da
+velha... E no seu passeio habitual pelo escriptorio,
+da estante para a janella, com as m&atilde;os atraz das
+costas e a caixa de rap&eacute; nos dedos, ia considerando
+quantos incommodos, quantas despezas lhe traria
+ainda aquelle &laquo;divertimento do senhor parocho&raquo;!
+Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis mezes...
+Depois o medico, a parteira que era elle naturalmente
+que havia de pagar... Depois algum enxoval
+para o pequeno... E que se lhe havia de fazer,
+ao pequeno?... Na cidade, a Roda f&ocirc;ra supprimida;
+em Ourem, como os recursos da Misericordia
+eram escassos e a affluencia dos engeitados escandalosa,
+tinham posto um homem ao p&eacute; da sineta da
+Roda, para interrogar e p&ocirc;r embara&ccedil;os; havia
+indaga&ccedil;&otilde;es
+de paternidade, restitui&ccedil;&otilde;es de
+crian&ccedil;as; e a
+<span class="pagenum">[520]</span>
+auctoridade, finoria, combatia o excesso dos engeitamentos
+com o terror dos vexames...
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo
+um erri&ccedil;amento de difficuldades para lhe sacudir
+a pachorra e estragar-lhe a digest&atilde;o...&mdash;Mas o
+excellente conego, no fundo, n&atilde;o se indignava; sempre
+tivera uma affei&ccedil;&atilde;o de velho mestre pelo parocho;
+para a Amelia sempre o inclin&aacute;ra um fraco
+meio paternal, meio lubrico; e mesmo j&aacute; sentia pelo
+&laquo;pequeno&raquo; uma vaga condescendencia d'av&ocirc;.
+<br />
+
+<br />
+
+A porta abriu-se, e o parocho appareceu triumphante.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo &aacute;s mil maravilhas, padre-mestre! Que
+lhe dizia eu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Consentiu?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em tudo. N&atilde;o foi sem difficuldade... Ia-se
+abespinhando. Fallei-lhe do homem casado... Que
+a rapariga estava com a cabe&ccedil;a perdida, queria-se
+matar... Que se ella n&atilde;o consentisse em encobrir
+a coisa era responsavel por uma desgra&ccedil;a... Lembre-se
+a senhora que est&aacute; com os p&eacute;s p'r'&aacute;
+cova,
+que Deus p&oacute;de chamal-a d'um momento a outro, e
+que se tiver na consciencia este peso, n&atilde;o ha padre
+que lhe d&ecirc; a absolvi&ccedil;&atilde;o!... Lembre-se
+que morre
+p'r'&aacute;hi como um c&atilde;o!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, disse o conego approvando, fallou-lhe
+com prudencia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar
+&aacute; S. Joanneira, e de a levar p'r'&aacute; Vieira quanto
+antes...
+<span class="pagenum">[521]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Outra coisa, amigo, interrompeu o conego.
+Tem voss&ecirc; pensado no destino que se ha de dar ao
+fructo?
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho co&ccedil;ou desconsoladamente a cabe&ccedil;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, padre-mestre... Isso &eacute; outra difficuldade...
+Tem-me apoquentado muito... Naturalmente
+dal-o a criar a alguma mulher, longe, l&aacute; p'ra
+Alcoba&ccedil;a
+ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre,
+era que a crian&ccedil;a nascesse morta!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era um anjinho mais... rosnou o conego sorvendo
+a sua pitada.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Logo n'essa noite elle fallou &aacute; S. Joanneira da
+ida para a Vieira, em baixo na saleta onde ella estava
+arranjando pires de marmelada que andavam a
+seccar para a convalescen&ccedil;a de D. Josepha.
+Come&ccedil;ou
+por dizer que lhe alug&aacute;ra a casa do Ferreiro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas isso &eacute; um nicho! exclamou ella logo. Onde
+hei de eu metter a pequena?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora ahi &eacute; que est&aacute;. &Eacute; que justamente
+a Amelia
+d'esta vez n&atilde;o vai &aacute; Vieira.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o vai!?
+<br />
+
+<br />
+
+Foi s&oacute; ent&atilde;o que o conego lhe explicou que a
+mana n&atilde;o podia ir s&oacute; para a Rico&ccedil;a, e
+que elle tinha
+pensado em mandar com ella Amelia... Era
+uma id&eacute;a que lhe viera n'essa manh&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o posso ir, tenho de tomar os meus banhos,
+a senhora bem sabe... A pobre de Christo
+<span class="pagenum">[522]</span>
+n&atilde;o ha de estar para l&aacute; s&oacute;, com uma
+criada. Portanto...
+<br />
+
+<br />
+
+A S. Joanneira teve um silenciosinho desconsolado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso &eacute; verdade. Mas olhe, para lhe dizer com
+franqueza, custa-me bem deixar a pequena... Se
+eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual ia! A senhora vem p'r'&aacute; Vieira. Eu tambem
+n&atilde;o hei de estar l&aacute; s&oacute;... Sua ingrata,
+sua ingrata!...&mdash;E
+tomando um tom muito s&eacute;rio:&mdash;A
+senhora veja bem. A Josepha est&aacute; com os p&eacute;s
+p'r'&aacute;
+cova. Ella sabe que o que eu tenho para mim chega.
+Ella tem affei&ccedil;&atilde;o &aacute; pequena, sempre
+&eacute; madrinha;
+se a vir agora a tratal-a na doen&ccedil;a, a estar alli
+s&oacute; com ella uns mezes, fica pelo bei&ccedil;o. Olhe que
+a mana ainda vale um par de mil cruzados. A pequena
+p&oacute;de apanhar um bom dote. N&atilde;o lhe digo
+mais nada...
+<br />
+
+<br />
+
+E a S. Joanneira concordou logo&mdash;uma vez que
+era vontade do senhor conego.
+<br />
+
+<br />
+
+Em cima, Amaro estava contando rapidamente a
+Amelia &laquo;o grande plano&raquo;, a scena com a velha: que
+ella se promptific&aacute;ra logo, coitadinha, j&aacute; cheia
+de caridade,
+desejando at&eacute; ajudar para o enxoval do pequeno...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N'ella p&oacute;des ter confian&ccedil;a, &eacute; uma
+santa... De
+modo que est&aacute; tudo salvo, filha. &Eacute; estar mettida
+quatro ou cinco mezes na Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a
+esta&ccedil;&atilde;o da Vieira, o divertimento dos banhos!...
+Ir
+<span class="pagenum">[523]</span>
+enterrar-se todo um ver&atilde;o n'aquelle sinistro
+casar&atilde;o
+da Rico&ccedil;a! A unica vez que l&aacute; f&ocirc;ra,
+j&aacute; ao fim da
+tarde, fic&aacute;ra estarrecida de medo. Tudo t&atilde;o
+escuro,
+d'um echo t&atilde;o concavo... Tinha a certeza que ia
+l&aacute;
+morrer, n'aquelle degredo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolice! fez Amaro. &Eacute; dar gra&ccedil;as ao Senhor de
+me ter inspirado esta id&eacute;a de
+salva&ccedil;&atilde;o. Demais tens
+a D. Josepha, tens a Gertrudes, o pomar para passear...
+E eu vou-te l&aacute; v&ecirc;r todos os dias. At&eacute;
+has de
+gostar, ver&aacute;s.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim que lhe hei de eu fazer? &Eacute; aguentar.
+E com duas grossas lagrimas nas palpebras, amaldi&ccedil;oava
+intimamente aquella paix&atilde;o que s&oacute; amarguras
+lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia
+para a Vieira, a for&ccedil;ava a ella a ir fechar-se na
+solid&atilde;o
+da Rico&ccedil;a, ouvindo tossir a velha e os c&atilde;es uivar
+na quinta...&mdash;E a mam&atilde;, que diria a mam&atilde;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que ha de dizer? A D. Josepha n&atilde;o p&oacute;de ir
+p'r'&aacute; quinta s&oacute;, sem uma enfermeira de
+confian&ccedil;a!
+N&atilde;o te d&ecirc; cuidado. O padre-mestre est&aacute;
+l&aacute; em baixo
+a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que j&aacute;
+aqui estou s&oacute; ha bocado comtigo, e n'estes ultimos
+dias &eacute; necessario ter cautelinha...
+<br />
+
+<br />
+
+Desceu. Justamente o conego subia, e encontraram-se
+na escada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o? perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo arranjado. E por l&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Idem.
+<span class="pagenum">[524]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E no escuro da escada os dois padres apertaram-se
+silenciosamente a m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos,
+Amelia partiu com D. Josepha para a Rico&ccedil;a n'um
+<em>char-&agrave;-banc</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham arranjado, com almofadas, um recanto
+commodo para a convalescente. O conego acompanhava-a,
+furioso com aquelle incommodo. E a Gertrudes
+ia em cima na almofada, &aacute; sombra da montanha
+que faziam sobre o tope do carro os bah&uacute;s de
+couro, os cestos, as latas, as trouxas, os saccos de
+chita, o a&ccedil;afate onde miava o gato, e um fardo amarrado
+com cordas contendo os paineis dos santos mais
+queridos de D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S.
+Joanneira para a Vieira, de noite, por causa da calma.
+A rua da Misericordia estava atravancada com o
+carro de bois, que conduzia as lou&ccedil;as, os
+enxerg&otilde;es,
+o trem de cozinha; e no mesmo
+<em>char-&agrave;-banc</em> que
+f&ocirc;ra &aacute; Cortegassa, ia agora a S. Joanneira e a
+<em>Ru&ccedil;a</em>
+que levava tambem no rega&ccedil;o um a&ccedil;afate com o
+gato.
+<br />
+
+<br />
+
+O conego f&ocirc;ra na vespera, s&oacute; Amaro assistia
+&aacute;
+partida da S. Joanneira. E depois de toda uma azafama,
+de galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas
+por um cestinho que esquecera ou um embrulho
+que desapparecia, quando a
+<em>Ru&ccedil;a</em> emfim fechou
+<span class="pagenum">[525]</span>
+a porta &aacute; chave, a S. Joanneira, j&aacute; no estribo do
+<em>char-&agrave;-banc</em>, rompeu a
+chorar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, minha senhora, ent&atilde;o! disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal
+sabe o que me custa... Parece que a n&atilde;o torno a
+v&ecirc;r. Appare&ccedil;a pela Rico&ccedil;a,
+fa&ccedil;a-me essa esmola. Veja
+se ella est&aacute; contente...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute; descansada, minha senhora.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por
+tudo... Ai os favores que lhe devo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tolices, minha senhora... Boa jornada, d&ecirc;
+noticias! Recados ao padre-mestre. Adeus, minha senhora!
+adeus, Ru&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+O <em>char-&agrave;-banc</em> partiu. E
+pelo mesmo caminho por
+onde elle ia rolando, Amaro foi andando devagar
+at&eacute; &aacute; estrada da Figueira. Eram ent&atilde;o
+nove horas,
+nascera j&aacute; o luar d'uma noite calida e serena de
+agosto. Uma tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem
+calada. Aqui e al&eacute;m uma fachada saliente de
+casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do
+arvoredo. Ao p&eacute; da ponte, parou a olhar melancolicamente
+o rio que corria sobre a areia com uma susurra&ccedil;&atilde;o
+monotona; nos logares em que as arvores
+se debru&ccedil;avam, havia escurid&otilde;es cerradas; e
+adiante
+uma claridade tremia sobre a agua, como um tecido
+de filigrana faiscante. Alli esteve, n'aquelle silencio
+que o calmava, fumando cigarros e atirando
+as pontas para o rio, embebido n'uma tristeza vaga.
+Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a cidade,
+passou pela rua da Misericordia n'um enternecimento
+<span class="pagenum">[526]</span>
+de recorda&ccedil;&otilde;es: a casa, com as janellas fechadas,
+sem as cortinas de cassa, parecia abandonada
+para sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos
+aos cantos da janella... Quantas vezes
+Amelia e elle se tinham encostado &aacute;quella varanda!
+Havia ent&atilde;o um craveiro fresco, e conversando, ella
+cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha
+acabado agora!&mdash;E na Misericordia, ao lado, o
+piar das corujas no silencio dava-lhe uma
+sensa&ccedil;&atilde;o
+de ruina, de solid&atilde;o e de fim eterno.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi andando para casa, devagar, com os olhos
+arrazados d'agua.
+<br />
+
+<br />
+
+A criada veio logo &aacute; escada dizer-lhe que o tio
+Esguelhas, n'uma afflic&ccedil;&atilde;o, viera procural-o duas
+vezes,
+haviam de ser nove horas. A T&oacute;t&oacute; estava a morrer,
+e s&oacute; queria receber os sacramentos da m&atilde;o do
+senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa
+em voltar assim n'essa noite, para um fim t&atilde;o triste,
+ao meio das recorda&ccedil;&otilde;es felizes da sua
+paix&atilde;o, foi,
+para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o
+aquella morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e
+como completando a subita dispers&atilde;o de quanto at&eacute;
+ahi o interess&aacute;ra ou estivera misturado &aacute; sua
+vida.
+<br />
+
+<br />
+
+A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e
+na escurid&atilde;o da entrada topou com duas mulheres
+que sahiam suspirando. Foi logo direito &aacute; alcova da
+paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da
+igreja, ardiam sobre uma mesa; um len&ccedil;ol branco
+cobria o corpo da T&oacute;t&oacute;; e o padre Silverio, que
+f&ocirc;ra
+<span class="pagenum">[527]</span>
+decerto chamado por estar de semana, lia o Breviario,
+com o len&ccedil;o nos joelhos, os seus grandes oculos
+na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o
+por toda a parte... A pobre de Christo queria-o
+a voss&ecirc;... Eu, quando me foram buscar, ia fazer
+a partida a casa do Novaes. &Eacute; a partida do sabbado...
+Que scena! Morreu na impenitencia, como
+era dos livros. Quando me viu, e que voss&ecirc; n&atilde;o
+vinha,
+que espectaculo! At&eacute; tive medo que me cuspisse
+no crucifixo...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta
+do len&ccedil;ol, mas deixou-o logo recahir sobre a face
+da morta. Depois subiu acima ao quarto onde o sineiro,
+estirado sobre a cama, voltado para a parede,
+solu&ccedil;ava desesperadamente; estava com elle
+outra mulher, que se conservava a um canto, muda
+e immovel, com os olhos no ch&atilde;o, no vago aborrecimento
+que lhe dava aquelle pesado dever de visinha.
+Amaro tocou no hombro do sineiro, fallou-lhe:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; necessario resigna&ccedil;&atilde;o, tio
+Esguelhas... S&atilde;o
+decretos do Senhor... Para ella &eacute; at&eacute; uma
+felicidade.
+<br />
+
+<br />
+
+O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho,
+por entre o v&eacute;o das lagrimas que lhe alagavam
+os olhos, tomou-lhe a m&atilde;o, quiz beijar-lh'a.
+Amaro recuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso,
+ha de lhe levar em conta a sua d&ocirc;r...
+<br />
+
+<br />
+
+Elle n&atilde;o o escutava, sacudido d'um pranto
+convulsivo,&mdash;emquanto
+<span class="pagenum">[528]</span>
+a mulher, muito tranquillamente,
+limpava ora um ora outro canto do olho.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio
+d'aquelle servi&ccedil;o excepcional, tomou o seu logar ao
+p&eacute; da vela, com o Breviario na m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Alli ficou at&eacute; tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe
+que o tio Esguelhas tinha pegado a dormir; e
+ella promettia voltar com a amortalhadeira, mal
+rompesse a manh&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+Toda a casa ent&atilde;o ficou n'aquelle silencio, que a
+visinhan&ccedil;a do vasto edificio da S&eacute; fazia parecer
+mais
+soturno; s&oacute; &aacute;s vezes um mocho piava debilmente
+nos contrafortes, ou o grosso bord&atilde;o batia os quartos.
+E Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas
+preso alli por uma for&ccedil;a superior da consciencia
+sobresaltada,
+ia precipitando as ora&ccedil;&otilde;es... &Aacute;s vezes
+o
+livro cahia-lhe sobre os joelhos; e ent&atilde;o, immovel,
+sentindo por detraz a presen&ccedil;a d'aquelle cadaver coberto
+do len&ccedil;ol, recordava, n'um contraste amargo,
+outras horas em que o sol banhava o pateo, as andorinhas
+esvoa&ccedil;avam, e elle e Amelia subiam rindo
+para aquelle quarto onde agora, sobre a mesma cama,
+o tio Esguelhas dormitava com solu&ccedil;os mal acalmados...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O conego Dias recommend&aacute;ra muito a Amaro que
+ao menos nas primeiras semanas, para evitar as suspeitas
+da mana e da criada, n&atilde;o fosse &aacute;
+Rico&ccedil;a. E a
+vida d'Amaro tornou-se ent&atilde;o mais triste, mais vazia
+que outr'ora, quando pela primeira vez deixando
+a casa da S. Joanneira viera para a rua das Sousas.
+Todos os seus conhecidos estavam f&oacute;ra de Leiria: D.
+Maria da Assump&ccedil;&atilde;o na Vieira; as Gansosinhos ao
+p&eacute;
+d'Alcoba&ccedil;a com a tia, a famosa tia que havia dez
+annos estava para morrer e para lhes deixar uma
+grande herdade. Depois do servi&ccedil;o da S&eacute;, as
+horas,
+todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo.
+N&atilde;o estaria mais separado de toda a
+communica&ccedil;&atilde;o
+humana, se como Santo Antonio vivesse nos
+areaes do deserto libyco. S&oacute; o coadjutor que, coisa
+<span class="pagenum">[530]</span>
+singular, nunca lhe apparecia nos tempos felizes,
+volt&aacute;ra agora, como o companheiro fatidico das
+horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana,
+ao fim do jantar, mais magro, mais chupado,
+mais soturno, com o seu eterno guardachuva na
+m&atilde;o. Amaro odiava-o; &aacute;s vezes, para o
+imp&ocirc;r, fingia-se
+todo occ&uacute;pado n'uma leitura; ou precipitando-se
+para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as
+passadas lentas:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a
+rabiscar uma coisa.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o homem installava-se, com o odioso guardachuva
+entre os joelhos:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se prenda, senhor parocho, n&atilde;o se prenda.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro, torturado por aquella figura lugubre
+que n&atilde;o se mexia na cadeira, atirava a penna, furioso,
+agarrava o chap&eacute;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o estou hoje p'r'&aacute; coisa, vou espairecer.
+<br />
+
+<br />
+
+E &aacute; primeira esquina descartava-se bruscamente
+do coadjutor.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes, farto de solid&atilde;o, ia visitar o
+Silverio.
+Mas a felicidade pachorrenta d'aquelle s&ecirc;r obeso, occupado
+em colleccionar receitas de medicina caseira
+e em observar as perturba&ccedil;&otilde;es phantasticas da sua
+digest&atilde;o; os seus constantes louvores do doutor Godinho,
+dos pequenos e da senhora; as chala&ccedil;as obsoletas
+que elle repetia havia quarenta annos e a innocente
+hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam
+Amaro. Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga
+<span class="pagenum">[531]</span>
+era a felicidade por fim: porque n&atilde;o havia de elle
+ser tambem um bom padre caturra, com uma pequenina
+mania tyrannica, parasita regalado d'uma
+familia respeitavel, tendo um d'estes sangues tranquillos
+que giram sob camadas de gordura, sem perigo
+de transbordar e de causar desgra&ccedil;as, como um
+riacho que corre por debaixo d'uma montanha?...
+<br />
+
+<br />
+
+Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura,
+mal tratada ao principio, o retinha ainda na cama
+com o apparelho na perna. Mas ahi, enjoava-o o aspecto
+do quarto&mdash;impregnado d'um cheiro d'arnica
+e de suor, com uma profus&atilde;o de trapos ensopados
+em malgas vidradas, e esquadr&otilde;es de garrafas sobre
+a commoda entre fileiras de santos. Natario, mal
+o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras
+dos medicos! A sua m&aacute; sorte habitual! As torturas
+a que o for&ccedil;avam! O atrazo em que estava a medicina
+n'este maldito paiz!... E ia salpicando o soalho
+negro de expectora&ccedil;&otilde;es e de pontas de cigarro.
+Desde
+que estava doente, a saude dos outros, sobretudo dos
+amigos, indignava-o como uma offensa pessoal.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E voss&ecirc; sempre rijo, hein? Pudera!&mdash;murmurava
+com rancor.
+<br />
+
+<br />
+
+E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe
+doera a cabe&ccedil;a! E que o alarve do abbade se gabava
+de nunca ter estado na cama depois das sete da
+manh&atilde;! Animaes!
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o dava-lhe as novidades: alguma carta
+que recebera do conego, da Vieira, as melhoras
+da D. Josepha...
+<span class="pagenum">[532]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Natario n&atilde;o se interessava pelas pessoas a
+quem apenas o unia a convivencia e a amizade; interessavam-n'o
+s&oacute; os seus inimigos, com quem tinha
+liga&ccedil;&otilde;es d'odio. Queria saber do escrevente, se
+j&aacute; tinha estourado de fome...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir
+aqui n'esta maldita cama!...
+<br />
+
+<br />
+
+As sobrinhas appareciam ent&atilde;o&mdash;duas creaturinhas
+sardentas, d'olhos muito pisados. O seu grande
+desgosto era que o titi n&atilde;o mandasse vir a
+<em>benzedeira</em>
+p&ocirc;r-lhe <em>virtude</em> na perna:
+era o que tinha
+curado o morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...
+<br />
+
+<br />
+
+Natario, na presen&ccedil;a das <em>duas rosas do seu
+canteiro</em>,
+calmava-se.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitaditas, n&atilde;o &eacute; por falta de cuidados d'ellas
+que eu ainda n&atilde;o arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
+<br />
+
+<br />
+
+E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo,
+voltavam-se para o lado limpando os olhos
+aos len&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sahia d'alli, mais enfastiado.
+<br />
+
+<br />
+
+Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela
+estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento
+da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa,
+concordando com aquella paizagem de collinas
+tristes e arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe
+como essa mesma estrada monotona e longa,
+sem um incidente que a alegrasse, estirando-se
+desoladamente at&eacute; se perder nas brumas do crepusculo.
+<span class="pagenum">[533]</span>
+&Aacute;s vezes, ao voltar, entrava no cemiterio, ia
+passeando entre os renques de cyprestes, sentindo
+&aacute;quella hora do fim da tarde a
+emana&ccedil;&atilde;o adocicada
+das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se
+&aacute; grade dourada do jazigo da familia Gouv&ecirc;a,
+contemplando
+os emblemas em relevo, um chap&eacute;o armado
+e um espadim, seguindo as negras letras da
+famosa ode que lhe adorna a lapida:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">Caminhante, detem-te a contemplar</div>
+
+<div class="poetry1">Estes restos
+mortaes;</div>
+
+<div class="poetry2">E, se sentires a m&aacute;goa a
+transbordar,</div>
+
+<div class="poetry1">Detem teus ais.</div>
+
+<div class="poetry2">Que Julio Cabral da Silva Maldonado</div>
+
+<div class="poetry1">Mendon&ccedil;a
+de Gouv&ecirc;a,</div>
+
+<div class="poetry2">Mo&ccedil;o fidalgo, bacharel
+formado,</div>
+
+<div class="poetry1">Filho da illustre
+C&ecirc;a,</div>
+
+<div class="poetry2">Ex-administrador d'este concelho,</div>
+
+<div class="poetry1">Commendador de
+Christo,</div>
+
+<div class="poetry2">Foi de virtudes singular espelho,</div>
+
+<div class="poetry1">Caminhante,
+cr&ecirc; n'isto.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Depois era o rico mausol&eacute;o do Moraes, onde sua
+esposa, que agora, rica e quarentona, vivia em concubinagem
+com o bello capit&atilde;o Trigueiros, fizera
+gravar uma piedosa quadra:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Entre os anjos espera, &oacute; esposo,<br />
+
+A metade do teu cora&ccedil;&atilde;o<br />
+
+Que no mundo ficou, t&atilde;o s&oacute;zinha,<br />
+
+Toda entregue ao dever da ora&ccedil;&atilde;o!...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao
+muro, via um homem ajoelhado ao p&eacute; d'uma cruz
+negra, que um chor&atilde;o assombreava, ao lado da valla
+<span class="pagenum">[534]</span>
+dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta
+no ch&atilde;o, rezando sobre a sepultura da
+T&oacute;t&oacute;. Ia fallar-lhe,
+e mesmo, n'uma igualdade que aquelle logar
+justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro,
+conversando. Amaro, com bondade, consolava o
+velho: de que servia &aacute; desgra&ccedil;ada rapariga a vida
+para a passar estirada n'uma cama?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre era viver, senhor parocho... E eu,
+veja agora isto, s&oacute;sinho de dia e de noite!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Todos t&ecirc;m as suas solid&otilde;es, tio Esguelhas, dizia
+melancolicamente Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O sineiro ent&atilde;o suspirava, perguntava pela snr.<sup>a</sup>
+D. Josepha, pela menina Amelia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;L&aacute; est&aacute; na quinta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitadita, n&atilde;o est&aacute; m&aacute; estopada...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cruzes da vida, tio Esguelhas.
+<br />
+
+<br />
+
+E continuavam calados por entre as ruas de buxo
+que fecham os canteiros cheios do negrejamento
+das cruzes e da brancura das lapidas novas. Amaro,
+&aacute;s vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo
+tinha aspergido e consagrado: onde estariam
+aquellas almas que elle recommend&aacute;ra a Deus em
+latim, distrahido, engorolando &aacute; pressa as
+ora&ccedil;&otilde;es
+para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da
+cidade; elle conhecia de vista as pessoas da familia;
+vira-as ent&atilde;o lavadas em lagrimas, e agora passeavam
+em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao
+balc&atilde;o das lojas...
+<br />
+
+<br />
+
+Voltava para casa mais triste,&mdash;e a sua longa
+noite come&ccedil;ava, infindavel. Tentava l&ecirc;r; mas ao
+fim
+<span class="pagenum">[535]</span>
+das dez primeiras linhas bocejava de tedio e de fadiga.
+&Aacute;s vezes escrevia ao conego. &Aacute;s nove horas
+tomava ch&aacute;; e depois era um passear sem fim pelo
+quarto, fumando ma&ccedil;os de cigarros, parando &aacute;
+janella
+a olhar a negrura da noite, lendo aqui e al&eacute;m
+uma noticia ou um annuncio do
+<em>Popular</em> e recome&ccedil;ando
+a passear com bocejos t&atilde;o cavos que a criada
+os ouvia na cozinha.
+<br />
+
+<br />
+
+Para entreter estas noites melancolicas, e por um
+excesso de sensibilidade ociosa, tent&aacute;ra fazer versos,
+pondo o seu amor e a historia dos dias felizes nas
+formulas conhecidas da saudade lyrica:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">Lembras-te d'esse tempo da delicias,<br />
+
+&Oacute; anjo feiticeiro, Amelia amada,<br />
+
+Quando tudo eram risos e ventura<br />
+
+E a vida nos corria socegada?
+<br />
+
+<br />
+
+Lembras-te d'essa noite de poesia<br />
+
+Em que a lua brilhava pelos c&eacute;os,<br />
+
+E n&oacute;s unindo as almas, &oacute; Amelia,<br />
+
+Erguemos nossa prece para Deus?...
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a despeito de todos os esfor&ccedil;os nunca pass&aacute;ra
+d'estas duas quadras&mdash;apesar de as ter produzido
+com uma facilidade promettedora&mdash;como se o
+seu s&ecirc;r contivesse apenas estas duas gottas isoladas
+de poesia, e, soltas ellas &aacute; primeira press&atilde;o,
+nada
+mais restasse sen&atilde;o a s&ecirc;cca prosa do temperamento
+carnal.
+<br />
+
+<br />
+
+E esta existencia varia relax&aacute;ra-lhe t&atilde;o
+subtilmente
+todo o machinismo da vontade e da ac&ccedil;&atilde;o,
+<span class="pagenum">[536]</span>
+que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa
+concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso
+como o peso d'um fardo injusto. Preferia ainda
+os tedios da ociosidade aos tedios da occupa&ccedil;&atilde;o.
+A
+n&atilde;o serem os deveres estrictos que elle n&atilde;o podia
+desleixar sem escandalo e sem
+censura&mdash;desembara&ccedil;&aacute;ra-se,
+pouco a pouco, de todas as praticas do
+zelo interior: nem a ora&ccedil;&atilde;o mental, nem as
+visitas
+regulares ao Santissimo, nem as medita&ccedil;&otilde;es
+espirituaes,
+nem o rosario &aacute; Virgem, nem a leitura &aacute; noite
+do Breviario, nem o exame de consciencia&mdash;todas
+estas obras da devo&ccedil;&atilde;o, estes meios secretos de
+santifica&ccedil;&atilde;o progressiva substituia-os pelos
+infindaveis
+passeios pelo quarto, do lavatorio &aacute; janella, e
+por ma&ccedil;os de cigarros fumados at&eacute; ao negro dos
+dedos.
+A missa, pela manh&atilde;, era rapidamente engorolada;
+o servi&ccedil;o da parochia feito com surdas revoltas
+de impaciencia; torn&aacute;ra-se consummadamente o
+<em>Indignus sacerdos</em> dos ritualistas; e
+tinha na sua
+ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete
+meios defeitos que os theologos attribuem ao <em>mau
+padre</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+S&oacute; lhe restava atrav&eacute;s da sua sentimentalidade
+um appetite tremendo. E como a cozinheira era excellente,
+e a snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, antes da
+sua partida para a Vieira, lhe deix&aacute;ra um fornecimento
+de cento e cincoenta missas a cruzado&mdash;banqueteava-se,
+tratando-se a gallinha e a geleia, regando-se
+d'um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre
+lhe escolhera. E alli ficava &aacute; mesa, horas esquecidas,
+<span class="pagenum">[537]</span>
+de perna esticada, fumando sobre o caf&eacute;,
+e lamentando n&atilde;o ter &aacute; m&atilde;o a sua
+Ameliasita...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que far&aacute; ella por l&aacute;, a pobre Ameliasita!
+pensava,
+espregui&ccedil;ando-se com tedio e com langor.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+A pobre Ameliasita, na Rico&ccedil;a, amaldi&ccedil;oava a sua
+vida.
+<br />
+
+<br />
+
+Logo durante a jornada no
+<em>char-&agrave;-banc</em> D. Josepha
+lhe fizera tacitamente sentir que d'ella n&atilde;o tinha
+a esperar nem a antiga amizade, nem o perd&atilde;o do
+escandalo... E assim foi, quando se installaram. A
+velha tornou-se intratavel: era todo um modo cruel
+de abandonar o <em>tu</em>, de a tratar por
+<em>menina</em>; uma recusa
+rispida se Amelia lhe queria arranjar a almofada
+ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo
+quando ella lhe passava o ser&atilde;o no quarto, costurando;
+e a todo o momento allus&otilde;es suspiradas ao
+triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos
+seus dias...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe
+que a madrinha seria toda caridade, toda
+cumplicidade; entregava-a por fim a uma semelhante
+ferocidade de velha virgem devota!...
+<br />
+
+<br />
+
+Quando se viu n'aquelle casar&atilde;o da Rico&ccedil;a, n'um
+quarto regelado, pintado a c&ocirc;r de canario, lugubremente
+mobilado com uma cama de docel e duas cadeiras
+de couro, chorou toda a noite com a cabe&ccedil;a,
+enterrada no travessseiro&mdash;torturada por um c&atilde;o
+que debaixo das janellas, estranhando sem duvida
+<span class="pagenum">[538]</span>
+as luzes e o movimento na casa, uivou at&eacute; de madrugada.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia desceu &aacute; quinta a v&ecirc;r os caseiros.
+Era talvez boa gente com quem podia distrahir-se.
+Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um cypreste,
+carregada de luto: um grande len&ccedil;o negro tingido,
+muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de
+farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza
+de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda
+peor, semelhante a um ourango-tango, com duas
+orelhas enormes muito despegadas do craneo, uma
+saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas,
+um corpo desengon&ccedil;ado de tisico, de peito mettido
+para dentro. Abalou bem depressa, foi v&ecirc;r o pomar:
+andava maltratado; as ruasitas estavam invadidas
+por um herva&ccedil;al humido; e a sombra das arvores
+muito juntas, n'um terreno baixo, cercado d'altos
+muros, dava uma sensa&ccedil;&atilde;o doentia.
+<br />
+
+<br />
+
+Era ainda preferivel passar os seus dias mettida
+no casar&atilde;o; dias infindaveis em que as horas se iam
+movendo com o vagar fastidioso d'um desfilar funerario.
+<br />
+
+<br />
+
+O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas
+recebia a impress&atilde;o triste da paizagem que se
+estendia defronte, uma ondula&ccedil;&atilde;o monotona de
+terras
+estereis com alguma magra arvore aqui e al&eacute;m,
+um ar abafado em que parecia errar constantemente
+a exhala&ccedil;&atilde;o de paues proximos e de baixas
+humidas,
+e a que nem o sol de setembro dissipava o
+tom sezonatico.
+<span class="pagenum">[539]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Logo pela manh&atilde; ia ajudar a levantar D. Josepha,
+accommodal-a no canap&eacute;; depois vinha costurar
+para ao p&eacute; d'ella&mdash;como outr'ora na rua da Misericordia
+para ao p&eacute; da m&atilde;i; mas agora em logar das
+boas &laquo;cavaqueiras&raquo; tinha s&oacute; o silencio
+intratavel da
+velha e a sua ronqueira incessante. Pens&aacute;ra em fazer
+vir o seu piano da cidade; mas, apenas em tal
+fallou, a velha exclamou com azedume:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A menina est&aacute; doida... N&atilde;o tenho saude para
+tocatas! Ora o desproposito!
+<br />
+
+<br />
+
+A Gertrudes tambem n&atilde;o lhe fazia companhia;
+nas horas em que n&atilde;o estava ao p&eacute; da velha, ou na
+cozinha, desapparecia; era justamente d'aquella freguezia,
+e passava o seu tempo pelos casaes, palrando
+com as antigas visinhas.
+<br />
+
+<br />
+
+A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o
+seu rozario, ficava junto &aacute; janella olhando estupidamente
+as grada&ccedil;&otilde;es da luz poente; todos os campos
+pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um
+silencio parecia descer, pousar sobre a terra; depois
+uma primeira estrellinha tremeluzia e brilhava; e
+diante d'ella era ent&atilde;o s&oacute; uma massa inerte de
+sombra
+muda at&eacute; ao horisonte, aonde ainda ficava um
+momento uma delgada tira c&ocirc;r de laranja desbotada.
+O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou contorno
+de objecto em redor que o prendesse, ia muito
+saudoso para longe, para a Vieira; &aacute;quella hora
+a m&atilde;i e as amigas recolhiam do passeio na praia;
+j&aacute;
+todas as redes estavam apanhadas; j&aacute; pelos palheiros
+come&ccedil;am a apparecer as luzes; &eacute; a hora do
+ch&aacute;,
+<span class="pagenum">[540]</span>
+dos quinos alegres, quando os rapazes da cidade v&atilde;o
+em rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma
+flauta, improvisando
+<em>soir&eacute;es</em>. E ella alli,
+s&oacute;!...
+<br />
+
+<br />
+
+Era ent&atilde;o necessario deitar a velha, rezar com ella
+e com a Gertrudes o ter&ccedil;o. Accendiam depois o candieiro
+de lat&atilde;o, pondo-lhe diante uma velha chapeleira
+para dar sombra ao rosto da doente; e todo o
+ser&atilde;o, no silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor
+do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
+<br />
+
+<br />
+
+Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas,
+n'um medo constante de ladr&otilde;es; e ent&atilde;o
+come&ccedil;ava
+para Amelia a hora dos terrores supersticiosos.
+N&atilde;o podia adormecer, sentido ao p&eacute; a negrura
+d'aquellas antigas salas deshabitadas e em redor o
+tenebroso silencio dos campos. Ouvia ruidos inexplicaveis:
+era o soalho do corredor que estalava, sob
+passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente
+se dobrava como sob um halito invisivel; ou
+a distancia, para os lados da cozinha, o baque surdo
+d'um corpo. Accumulava ent&atilde;o as
+ora&ccedil;&otilde;es, encolhida
+debaixo da roupa; mas, se adormecia, as vis&otilde;es
+do pesad&ecirc;lo continuavam-lhe os terrores da vigilia.
+Uma vez acord&aacute;ra de repente, a uma voz que dizia,
+gemendo, por traz da alta barra da cama:&mdash;<em>Amelia,
+prepara-te, o teu fim chegou!</em> Espavorida, em camisa,
+atravessou correndo a casa, foi refugiar-se na cama
+da Gertrudes.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou
+quando ella ia adormecer: <em>Amelia, lembra-te dos teus
+peccados! Prepara-te, Amelia!</em> Deu um grito, desmaiou.
+<span class="pagenum">[541]</span>
+Felizmente a Gertrudes, que ainda se n&atilde;o deit&aacute;ra,
+correu &aacute;quelle ai agudo que cort&aacute;ra o silencio
+do casar&atilde;o. Achou-a estirada ao trav&eacute;s do leito,
+com
+os cabellos soltos da rede rojando no ch&atilde;o, as
+m&atilde;os
+geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher
+do caseiro, e at&eacute; de madrugada foi uma azafama
+para a chamar &aacute; vida. Desde esse dia a Gertrudes
+dormia ao p&eacute; d'ella&mdash;e a voz n&atilde;o tornou a
+amea&ccedil;al-a
+por traz da barra.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas, de noite e de dia, n&atilde;o a deixou mais a id&eacute;a
+da morte e o pavor do inferno. Por esse tempo, um
+vendedor ambulante d'estampas passou pela Rico&ccedil;a;
+e a snr.<sup>a</sup> D. Josepha comprou-lhe duas
+lithographias&mdash;a
+<em>Morte do Justo</em> e a
+<em>Morte do Peccador</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; bom que cada um tenha o exemplo vivo
+diante dos olhos, disse ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n&atilde;o duvidou ao principio que a velha,
+que contava morrer no mesmo apparato de gloria
+com que expirava o <em>Justo</em> da estampa,
+lhe quizera
+mostrar a ella, a <em>peccadora</em>, a scena
+pavorosa que a
+esperava. Odiou-a por aquella &laquo;picardia&raquo;. Mas a sua
+imagina&ccedil;&atilde;o aterrada n&atilde;o tardou a dar
+&aacute; compra da
+estampa outra explica&ccedil;&atilde;o: era Nossa Senhora que
+alli
+mand&aacute;ra o vendedor de pinturas, para lhe mostrar
+ao vivo na lithographia da <em>Morte do
+Peccador</em> o espectaculo
+da sua agonia: e estava ent&atilde;o certa que
+tudo seria assim, tra&ccedil;o por tra&ccedil;o&mdash;o seu anjo da
+guarda fugindo aos solu&ccedil;os; Deus-Padre desviando
+o rosto d'ella com repugnancia; o esqueleto da morte
+rindo &aacute;s gargalhadas; e demonios de c&ocirc;res
+rutilantes,
+<span class="pagenum">[542]</span>
+com todo um arsenal de torturas, apoderando-se
+d'ella, uns pelas pernas, outros pelos cabellos,
+arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna
+chammejante toda abalada da tormenta de rugidos
+que solta a Eterna D&ocirc;r... E ella podia v&ecirc;r ainda,
+no
+fundo dos c&eacute;os, a grande balan&ccedil;a&mdash;com um dos
+pratos muito alto onde as suas ora&ccedil;&otilde;es
+n&atilde;o pesavam
+mais que uma penna de canario, e o outro prato cahido,
+de cordas retesadas, sustentando a enxerga da
+cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
+<br />
+
+<br />
+
+Cahiu ent&atilde;o n'uma melancolia hysterica que a envelhecia;
+passava os dias suja e desarranjada, n&atilde;o
+querendo dar cuidado ao seu corpo peccador; todo o
+movimento, todo o esfor&ccedil;o lhe repugnava; as mesmas
+ora&ccedil;&otilde;es lhe custavam, como se as julgasse
+inuteis;
+e tinha atirado para o fundo d'uma arca o enxoval
+que andava a costurar para o filho&mdash;porque o
+odiava, aquelle s&ecirc;r que ella sentia mexer-se-lhe
+j&aacute;
+nas entranhas e que era a causa da sua perdi&ccedil;&atilde;o.
+Odiava-o&mdash;mas menos que o outro, o parocho que
+lh'o fizera, o padre malvado que a tent&aacute;ra, a
+estrag&aacute;ra,
+a atir&aacute;ra &aacute;s chammas do inferno! Que desespero
+quando pensava n'elle! Estava em Leiria socegado,
+comendo bem, confessando outras, namorando-as
+talvez&mdash;e ella alli s&oacute;sinha, com o ventre condemnado
+e enfartado do peccado que elle l&aacute; depuzera,
+ia-se afundindo na perdi&ccedil;&atilde;o sempiterna!
+<br />
+
+<br />
+
+Decerto esta excita&ccedil;&atilde;o a teria matado&mdash;se
+n&atilde;o
+fosse o abbade Ferr&atilde;o que come&ccedil;&aacute;ra
+ent&atilde;o a vir v&ecirc;r
+muito regularmente a irm&atilde; do amigo conego.
+<span class="pagenum">[543]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua
+da Misericordia; dizia-se l&aacute; que o Ferr&atilde;o tinha
+&laquo;id&eacute;as
+exquisitas&raquo;: mas n&atilde;o era possivel recusar-lhe nem
+a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia
+muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se
+succedido na diocese, e elle alli fic&aacute;ra esquecido
+n'aquella freguezia pobre, de congrua atrazada,
+n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo
+vigario geral, que nunca dera um passo para o
+favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavriado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Voss&ecirc; &eacute; um dos bons theologos do reino.
+Voss&ecirc;
+est&aacute; predestinado por Deus para um bispado. Voss&ecirc;
+ainda apanha a mitra. Voss&ecirc; ha de ficar na historia
+da Igreja portugueza como um grande bispo Ferr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom!
+Mas era necessario que eu tivesse o arrojo d'um Affonso
+d'Albuquerque ou d'um D. Jo&atilde;o de Castro, para
+aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
+<br />
+
+<br />
+
+E alli fic&aacute;ra, entre gente pobre, n'uma aldeia de
+terra escassa, vivendo de dois peda&ccedil;os de p&atilde;o e
+uma chavena de leite, com uma batina limpa onde
+os remendos faziam um mappa, precipitando-se a
+uma meia legua por um temporal desfeito se um parochiano
+tinha uma d&ocirc;r de dentes, passando uma hora
+a consolar uma velha a quem tinha morrido uma
+cabra... E sempre de bom humor, sempre com um
+cruzado no fundo do bolso dos cal&ccedil;&otilde;es para uma
+necessidade
+do seu visinho, grande amigo de todos os
+rapazitos a quem fazia botes de corti&ccedil;a, e n&atilde;o
+duvidando
+<span class="pagenum">[544]</span>
+parar, se encontrava uma rapariga bonita, o
+que era raro na freguezia, e exclamar: &laquo;Linda
+mo&ccedil;a,
+Deus a aben&ccedil;&ocirc;e!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes
+era t&atilde;o celebre, que lhe chamavam &laquo;a
+donzella&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando
+horas d'esta&ccedil;&atilde;o aos p&eacute;s do Santissimo
+Sacramento;
+cumprindo com uma felicidade fervente as
+menores praticas da vida devota; purificando-se para
+os trabalhos do dia com uma profunda ora&ccedil;&atilde;o
+mental, uma medita&ccedil;&atilde;o de f&eacute;, d'onde a
+sua alma
+sahia mais agil, como d'um banho fortificante; preparando-se
+para o somno com um d'estes longos e
+piedosos exames de consciencia, t&atilde;o uteis, que Santo
+Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que
+Plutarcho e Seneca, e que s&atilde;o a
+correc&ccedil;&atilde;o laboriosa
+e subtil dos pequenos defeitos, o aperfei&ccedil;oamento
+meticuloso da virtude activa, emprehendido com um
+fervor de poeta que rev&ecirc; um poema querido... E todo
+o tempo que tinha vago, abysmava-se n'um cahos
+de livros.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha s&oacute; um defeito o abbade Ferr&atilde;o: gostava de
+ca&ccedil;ar! Cohibia-se, porque a ca&ccedil;a tira muito
+tempo,
+e &eacute; sanguinario matar uma pobre ave que anda azafamada
+pelos campos nos seus negocios domesticos.
+Mas nas claras manh&atilde;s d'inverno, quando ainda ha
+orvalho nas giestas, se via passar um homem d'espingarda
+ao hombro, o passo vivo, seguido do seu
+perdigueiro&mdash;iam-se-lhe os olhos n'elle... &Aacute;s vezes
+<span class="pagenum">[545]</span>
+por&eacute;m, a tenta&ccedil;&atilde;o vencia: agarrava
+furtivamente a
+espingarda, assobiava &aacute;
+<em>Janota</em>, e com as abas do
+casac&atilde;o ao vento, l&aacute; ia o theologo illustre, o
+espelho
+de piedade, atrav&eacute;s de campos e valles... E d'ahi
+a pouco&mdash;pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz
+em terra! E l&aacute; voltava o santo homem com a espingarda
+debaixo do bra&ccedil;o, os dois passaros na algibeira,
+cosendo-se com os muros, rezando o seu rosario
+&aacute; Virgem, e respondendo aos <em>bons
+dias</em> da gente
+pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito
+criminoso.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade Ferr&atilde;o, apesar do seu aspecto
+&laquo;g&ecirc;bo&raquo;
+e do seu grande nariz, agradou a Amelia, logo desde
+a primeira visita &aacute; Rico&ccedil;a; e a sua sympathia
+cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com
+pouco alvoro&ccedil;o, apesar do respeito que o mano conego
+tinha pela sciencia do abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+A velha, com effeito depois de ter estado s&oacute; com
+elle n'uma pratica d'horas, condemn&aacute;ra-o com uma
+unica palavra, na sua auctoridade de velha devota
+experiente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; relaxado!
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o se tinham realmente comprehendido. O bom
+Ferr&atilde;o, tendo vivido tantos annos n'aquella parochia
+de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de
+m&atilde;es a filhas, no mesmo molde de
+devo&ccedil;&atilde;o simples
+a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono
+da freguezia, tendo pouca experiencia de confiss&atilde;o,
+encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada
+de devota de cidade, d'um beaterio caturra
+<span class="pagenum">[546]</span>
+e atormentado; e ao ouvir aquella extraordinaria
+lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; estranho, &eacute; estranho...
+<br />
+
+<br />
+
+Percebera bem ao principio que tinha diante de
+si uma d'essas degenera&ccedil;&otilde;es morbidas do
+sentimento
+religioso, que a theologia chama <em>Doen&ccedil;a dos
+escrupulos</em>&mdash;e
+de que na sua generalidade est&atilde;o affectadas
+hoje todas as almas catholicas; mas depois,
+a certas revela&ccedil;&otilde;es da velha, receou estar
+realmente
+em presen&ccedil;a d'uma maniaca perigosa; e instinctivamente,
+com o singular horror que os sacerdotes
+t&ecirc;m pelos doidos, recuou a cadeira.
+<br />
+
+<br />
+
+Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em
+que cheg&aacute;ra &aacute; Rico&ccedil;a (contava ella),
+ao come&ccedil;ar o rosario
+a Nossa Senhora, lembr&aacute;ra-lhe de repente que
+lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era
+t&atilde;o efficaz nas d&ocirc;res das pernas... Trinta e oito
+vezes de seguida recome&ccedil;&aacute;ra o rosario, e sempre o
+saiote escarlate se interpunha entre ella e Nossa Senhora!...
+Ent&atilde;o desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E
+immediatamente sentira d&ocirc;res vivas nas pernas, e
+tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era
+Nossa Senhora por vingan&ccedil;a a espetar-lhe alfinetes
+nas pernas...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade pulou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, minha senhora!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o &eacute; tudo, senhor abbade!
+<br />
+
+<br />
+
+Havia outro peccado que a torturava: quando rezava,
+&agrave;s vezes, sentia vir a expectora&ccedil;&atilde;o;
+e, tendo
+ainda o nome de Deus ou da Virgem na b&ocirc;ca, tinha
+<span class="pagenum">[547]</span>
+de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera
+pensando que o nome de Deus ou da Virgem
+lhe descia d'embrulhada para o estomago e se ia
+misturar com as fezes! Que havia de fazer?
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade, d'olhar esgazeado, limpava o suor da
+testa.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas isto n&atilde;o era o peor: o grave era, que na
+noite antecedente estava toda socegada, toda em virtude,
+a rezar a S. Francisco Xavier&mdash;e de repente,
+nem ella soube como, p&otilde;e-se a pensar como seria
+S. Francisco Xavier n&uacute; em p&ecirc;llo!
+<br />
+
+<br />
+
+O bom Ferr&atilde;o n&atilde;o se moveu, atordoado. Emfim,
+vendo-a a olhar anciosa para elle, &aacute; espera das suas
+palavras e dos seus conselhos, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ha muito que sente esses terrores, essas
+duvidas...?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sempre, senhor abbade, sempre!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E tem convivido com pessoas que, como a senhora,
+s&atilde;o sujeitas a essas inquieta&ccedil;&otilde;es?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Todas as pessoas que conhe&ccedil;o, duzias d'amigas,
+todo o mundo... O Inimigo n&atilde;o me escolheu s&oacute;
+a mim... A todos se atira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E que remedio dava a essas anciedades d'alma...?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade,
+o senhor parocho, o snr. Silverio, o snr. Guedes, todos,
+todos nos tiravam sempre d'embara&ccedil;os... E com
+uma habilidade, com uma virtude...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade Ferr&atilde;o ficou calado um momento: sentia-se
+<span class="pagenum">[548]</span>
+triste, pensando que por todo o reino tantos
+centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente
+o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo
+o mundo dos fieis n'um terror abjecto do c&eacute;o, representando
+Deus e os seus santos como uma c&ocirc;rte
+que n&atilde;o &eacute; menos corrompida nem melhor que a de
+Caligula e dos seus libertos.
+<br />
+
+<br />
+
+Quiz ent&atilde;o levar &aacute;quelle nocturno cerebro de
+devota,
+povoado de phantasmagorias, uma luz mais
+alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas
+inquieta&ccedil;&otilde;es
+vinham da imagina&ccedil;&atilde;o torturada pelo terror
+d'offender a Deus... Que o Senhor n&atilde;o era um amo
+feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo...
+Que &eacute; por amor que &eacute; necessario servil-o,
+n&atilde;o por
+medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora
+a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cahir no estomago,
+eram perturba&ccedil;&otilde;es da raz&atilde;o doente.
+Aconselhou-lhe
+confian&ccedil;a em Deus, bom regimen para ganhar
+for&ccedil;as. Que n&atilde;o se cansasse em
+ora&ccedil;&otilde;es exageradas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se
+e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre
+isto, e havemos de serenar essa alma.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha
+s&ecirc;ccamente.
+<br />
+
+<br />
+
+E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a
+trazer-lhe a botija para os p&eacute;s, D. Josepha exclamou,
+toda indignada, quasi choramingando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o presta p'ra nada, n&atilde;o presta p'ra
+nada!...
+<span class="pagenum">[549]</span>
+N&atilde;o me percebeu... &Eacute; um tapado... &Eacute; um
+pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n'um sacerdote
+do Senhor...
+<br />
+
+<br />
+
+Desde esse dia n&atilde;o tornou a revelar ao abbade
+os peccados medonhos que continuava a commetter;
+e quando elle, por dever, quiz recome&ccedil;ar a
+educa&ccedil;&atilde;o
+da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios
+que, como se confessava com o senhor padre Gusm&atilde;o,
+n&atilde;o sabia se seria delicado receber d'outro a
+direc&ccedil;&atilde;o moral...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade fez-se vermelho, respondeu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem raz&atilde;o, minha senhora, tem raz&atilde;o, deve-se
+ter muita delicadeza n'essas coisas...
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado
+no quarto a saber-lhe da saude, de ter fallado do
+tempo, da esta&ccedil;&atilde;o, das doen&ccedil;as que
+iam, d'alguma
+festa na igreja,&mdash;apressava-se em se despedir e ir
+para o terra&ccedil;o conversar com Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Vendo-a sempre t&atilde;o tristonha, interess&aacute;ra-se por
+ella; para Amelia, as visitas do abbade eram uma
+distrac&ccedil;&atilde;o, n'aquella solid&atilde;o da
+Rico&ccedil;a; e assim se
+iam familiarisando, a ponto que nos dias em que
+elle regularmente vinha, Amelia punha um mantelete
+e ia pelo caminho dos Poyaes esperal-o at&eacute; junto
+&aacute; casa do ferrador. As conversas do abbade, fallador
+incansavel, entretinham-na, t&atilde;o differentes dos mexericos
+da rua da Misericordia,&mdash;como o espectaculo
+d'um largo valle com arvores, planta&ccedil;&otilde;es, aguas,
+pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos habituados
+&aacute;s quatro paredes caiadas d'uma trapeira
+<span class="pagenum">[550]</span>
+da cidade. Tinha com effeito uma d'estas
+conversa&ccedil;&otilde;es
+semelhantes aos <em>jornaes semanaes de
+recreio</em>,
+o <span class="smallcaps">Thesouro das familias</span>
+ou as
+<span class="smallcaps">Leituras para ser&otilde;es</span>,
+em que de ha tudo&mdash;doutrina moral, historias
+de viagens, anecdotas dos grandes homens,
+disserta&ccedil;&otilde;es
+sobre a lavoura, cita&ccedil;&atilde;o d'uma boa
+chala&ccedil;a,
+tra&ccedil;os sublimes da vida d'um santo, um verso aqui
+e al&eacute;m, e at&eacute; receitas, como uma muito util que
+deu
+a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem. S&oacute;
+era monotono quando fallava da sua familia parochiana,
+dos casamentos, baptisados, doen&ccedil;as, quest&otilde;es,
+ou quando come&ccedil;ava as suas historias de ca&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego
+das Tristes, quando uma revoada de perdizes...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam
+fa&ccedil;anhas da <em>Janota</em>,
+pontarias fabulosas contadas
+em mimica, com imita&ccedil;&otilde;es de vozes de passaros,
+e <em>pum, pum</em> de fusilaria. Ou
+ent&atilde;o eram descrip&ccedil;&otilde;es
+das ca&ccedil;adas selvagens que elle l&ecirc;ra com
+gula&mdash;a ca&ccedil;a ao tigre do Nepal, ao le&atilde;o d'Argelia
+e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a
+imagina&ccedil;&atilde;o da rapariga para longe, para os paizes
+exoticos onde a herva &eacute; alta como os pinheiros, o
+sol queima como um ferro em braza, e entre cada
+ramagem reluzem os olhos d'uma fera... E depois,
+a proposito de tigres e de malaios, lembrava-lhe
+uma historia curiosa de S. Francisco Xavier, e eil-o
+lan&ccedil;ado, o terrivel palrador, na
+descrip&ccedil;&atilde;o dos feitos
+da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas
+do cerco de Diu!
+<span class="pagenum">[551]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que
+o abbade, tendo come&ccedil;ado por enumerar as vantagens
+que o conego tiraria de transformar o pomar
+em terra de lavoura, acab&aacute;ra por contar perigos e
+valores dos missionarios da India e do Jap&atilde;o&mdash;que
+Amelia, ent&atilde;o em toda a intensidade dos seus terrores
+nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e
+dos sobresaltos que lhe davam.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, que vergonha! disse o abbade rindo;
+uma senhora da sua idade ter medo de pap&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ent&atilde;o, attrahida por aquella bondade do senhor
+abbade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite
+por detraz da barra da cama.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade p&ocirc;z-se s&eacute;rio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora, isso s&atilde;o imagina&ccedil;&otilde;es
+que deve
+a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodigios
+no mundo, mas Deus n&atilde;o se p&otilde;e assim a fallar
+a qualquer, por detraz das barras das camas, nem
+permitte ao demonio que o fa&ccedil;a... Essas vozes, se
+as ouve, e se os seus peccados s&atilde;o grandes, n&atilde;o
+v&ecirc;m
+de detraz da cama, v&ecirc;m-lhe de si mesmas, da sua
+consciencia... E p&oacute;de ent&atilde;o fazer dormir ao
+p&eacute; de
+si a Gertrudes, e cem Gertrudes, e todo o batalh&atilde;o
+de infanteria, que as ha de continuar a ouvir... Havia
+de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que &eacute;
+necessario &eacute; calmar a consciencia que reclama penitencia
+e purifica&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinham subido ao terra&ccedil;o, fallando assim: e Amelia
+sent&aacute;ra-se fatigada n'um dos bancos de pedra
+que alli havia, e fic&aacute;ra a olhar a quinta ao longe,
+<span class="pagenum">[552]</span>
+os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a
+eira, e a distancia os campos que se succediam planos
+e avivados do tom humido que lhes dera a chuva
+ligeira da manh&atilde;: agora a tarde estava d'uma
+placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas
+que o sol do poente tocava de vivos c&ocirc;r de
+rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras t&atilde;o sensatas
+do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado
+que lhe pesava na alma como um penedo se
+tornasse ligeiro e se dissipasse sob a ac&ccedil;&atilde;o da
+penitencia.
+E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso
+igual &aacute; quieta&ccedil;&atilde;o dos campos que se
+estendiam diante
+d'ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Um passaro cantou, depois calou-se; e recome&ccedil;ou
+d'ahi a um momento com um trinado t&atilde;o vibrante,
+t&atilde;o alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um rouxinol...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Os rouxinoes n&atilde;o cantam a esta hora, disse o
+abbade. &Eacute; um melro... Ahi est&aacute; um que
+n&atilde;o tem
+medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que
+enthusiasmo, o magan&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Era com effeito um gorgear triumphante, um del&iacute;rio
+de melro feliz, que dera de repente a todo o
+pomar uma sonoridade festiva.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um
+passaro contente, subitamente, sem raz&atilde;o, n'um d'estes
+abalos nervosos que vem &agrave;s mulheres hystericas,
+rompeu a chorar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, que &eacute; isso, que &eacute; isso? fez o
+abbade
+muito surprehendido.
+<span class="pagenum">[553]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Tomou-lhe a m&atilde;o, com uma familiaridade de velho
+e d'amigo, calmando-a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que infeliz que sou!... murmurou ella aos
+solu&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle ent&atilde;o muito paternal:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tem raz&atilde;o para o ser... Sejam quaes forem
+as afflic&ccedil;&otilde;es, as
+inquieta&ccedil;&otilde;es, uma alma christ&atilde;
+tem sempre a consola&ccedil;&atilde;o &aacute;
+m&atilde;o... N&atilde;o ha peccado
+que Deus n&atilde;o perd&ocirc;e, nem d&ocirc;r que
+n&atilde;o calme, lembre-se
+d'isso... O que n&atilde;o deve &eacute; guardar em si o
+seu desgosto... &Eacute; isso que a suffoca, que a faz chorar...
+Se eu lhe posso valer, socegal-a, &eacute; procurar-me...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando? disse ella toda desejosa j&aacute; de se refugiar
+na protec&ccedil;&atilde;o d'aquelle santo homem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quando quizer, disse elle rindo. Eu n&atilde;o tenho
+horas para consolar... A igreja est&aacute; sempre aberta,
+Deus est&aacute; sempre presente...
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha
+se erguia, Amelia foi &aacute; residencia; e durante
+duas horas esteve prostrada diante do pequeno confessionario
+de pinho&mdash;que o bom abbade por suas
+m&atilde;os pint&aacute;ra d'azul escuro, com extraordinarias
+cabecinhas
+d'anjos que em logar d'orelhas tinham
+azas, uma obra d'alta arte de que elle fallava com
+uma secreta vaidade.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXIII
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro acab&aacute;ra de jantar, e fumava,
+com os olhos no tecto, para n&atilde;o v&ecirc;r o
+car&atilde;o chupado
+do coadjutor que havia meia hora alli estava,
+immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma
+pergunta que cahia no silencio da sala como os quartos
+melancolicos que d&aacute; de noite um relogio de cathedral.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor parocho j&aacute; n&atilde;o &eacute; assignante
+da <em>Na&ccedil;&atilde;o</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, leio o
+<em>Popular</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+O coadjutor recahiu no silencio, come&ccedil;ando logo
+a colligir laboriosamente as palavras para uma
+nova pergunta. Soltou-a emfim, com lentid&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o se tornou a saber d'aquelle infame que
+escreveu o <em>Communicado</em>?
+<span class="pagenum">[556]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, foi para o Brazil.
+<br />
+
+<br />
+
+A criada entrou, n'este momento, dizendo que
+&laquo;estava alli uma pessoa que queria fallar ao senhor
+parocho&raquo;. Era a sua maneira d'annunciar a presen&ccedil;a
+de Dionysia na cozinha.
+<br />
+
+<br />
+
+Havia semanas que ella n&atilde;o apparecia&mdash;e Amaro,
+curioso, sahiu logo da sala fechando a porta sobre
+si, e chamou a matrona ao patamar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Grande novidade, senhor parocho! E vim a
+correr, que &eacute; s&eacute;rio. Est&aacute;
+c&aacute; o Jo&atilde;o Eduardo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente
+a fallar d'elle! &Eacute; extraordinario! Olha que coincidencia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E j&aacute;
+estou informada de tudo. O homem est&aacute; mestre dos
+filhos do Morgadinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que Morgadinho?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O Morgadinho dos Poyaes... Se vive l&aacute;, ou se
+vai pela manh&atilde; e vem &aacute; noite, isso n&atilde;o
+sei. O que
+sei &eacute; que voltou... E janota, fato novo... Eu entendi
+que devia avisar, porque p&oacute;de estar certo que
+elle, mais dia menos dia, d&aacute; pela Ameliasinha l&aacute;
+na
+Rico&ccedil;a... &Eacute; no caminho p'ra casa do Morgado...
+Que lhe parece?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando
+n&atilde;o serve &eacute; que apparece. Ent&atilde;o por
+fim n&atilde;o foi
+para o Brazil?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pelos modos, n&atilde;o... Que a sombra d'elle n&atilde;o
+era, era elle mesmo em carne e osso... A sahir da
+loja do Fernandes por signal, e todo peralta... Sempre
+<span class="pagenum">[557]</span>
+&eacute; bom avisar a rapariga, senhor parocho, que
+se n&atilde;o v&aacute; ella plantar de janella...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava&mdash;e
+d'ahi a um quarto d'hora, desembara&ccedil;ado do
+coadjutor, ia no caminho da Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Batia-lhe forte o cora&ccedil;&atilde;o quando avistou o
+casar&atilde;o
+amarello, pintado de novo, o largo terra&ccedil;o lateral
+em linha com o muro do pomar, ornado d'espa&ccedil;o
+a espa&ccedil;o no parapeito de vasos nobres de pedra.
+Ia emfim, depois de t&atilde;o longas semanas, v&ecirc;r a sua
+Ameliasinha! E j&aacute; se alvoro&ccedil;ava &aacute;
+id&eacute;a das exclama&ccedil;&otilde;es
+apaixonadas com que ella lhe cahiria nos
+bra&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao rez do ch&atilde;o eram as cavallari&ccedil;as, do tempo
+da familia morgada que outr'ora alli habit&aacute;ra, agora
+abandonadas &aacute;s ratazanas e aos tortulhos, recebendo
+a luz por estreitas janellas gradeadas que
+quasi desappareciam sob camadas de teias de aranha;
+entrava-se por um immenso pateo escuro, onde
+havia longos annos se acastellava a um canto
+toda uma montanha de pipas vazias; e o lance d'escadaria
+nobre, que levava aos aposentos, era &aacute; direita,
+flanqueado de dois le&otilde;esinhos de pedra, benignos
+e somnolentos.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro subiu at&eacute; um sot&atilde;o de tecto de carvalho
+apainelado, sem mobilia, com a metade do soalho
+coberta de feij&atilde;o s&ecirc;cco.
+<span class="pagenum"><a name="p558" id="p558">[558]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+E, embara&ccedil;ado, bateu as palmas.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante,
+toda despenteada e em saia branca; deu um
+gritinho, bateu com a porta&mdash;e o parocho sentiu-a
+fugir para o interior do casar&atilde;o. Ficou muito desconsolado
+no meio do sal&atilde;o, com o seu guardasol
+debaixo do bra&ccedil;o, pensando na boa familiaridade
+com que entrava na rua da Misericordia&mdash;que at&eacute;
+pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel
+das paredes clarear-se d'alegria.
+<br />
+
+<br />
+
+Ia bater as palmas outra vez, j&aacute; quesilado, quando
+a Gertrudes <a href="#e23">appareceu</a>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho!
+Ora at&eacute; que emfim! Minha senhora, &eacute; o senhor
+parocho!&mdash;gritava,
+na alegria de v&ecirc;r emfim uma visita
+querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro
+da Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao
+fundo da casa, um quarto enorme, onde, n'um pequeno
+canap&eacute; perdido a um canto, a velha passava
+os dias encolhida no seu chale, com os p&eacute;s embrulhados
+n'um cobertor.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, D. Josepha! Como est&aacute;? Como est&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o p&ocirc;de responder, tomada d'um accesso
+de tosse que lhe dera a commo&ccedil;&atilde;o da visita.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como v&ecirc;, senhor parocho, murmurou emfim
+muito fraca. Para aqui vou, arrastando esta velhice.
+E vossa senhoria? Porque n&atilde;o tem apparecido?
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres
+da S&eacute;. E comprehendia agora, ao v&ecirc;r aquella face
+<span class="pagenum">[559]</span>
+amarella e cavada, com uma medonha touca de rendas
+negras, que tristes horas Amelia alli devia passar.
+Perguntou por ella; avist&aacute;ra-a de longe, mas
+ella deit&aacute;ra a fugir...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que n&atilde;o estava decente para apparecer,
+disse a velha. Hoje foi dia de barrela.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro quiz ent&atilde;o saber em que se entretinham,
+como passavam os dias n'aquella solid&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu para aqui estou. A pequena para ahi anda.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma
+fadiga e a sua ronqueira crescia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o n&atilde;o se tem dado bem com a
+mudan&ccedil;a,
+minha senhora?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella disse que n&atilde;o, n'um movimento de cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes
+que fic&aacute;ra de p&eacute;, ao lado do canap&eacute;,
+gozando a
+presen&ccedil;a do senhor parocho.&mdash;Deixe fallar... &Eacute;
+que
+a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os
+dias, d&aacute; o seu passeinho at&eacute; &aacute; sala,
+come a sua azita
+de frango... Temol-a aqui, temol-a arribada...
+&Eacute; o que diz o senhor abbade Ferr&atilde;o, a saude foge
+a toda a brida e para voltar vem a passo...
+<br />
+
+<br />
+
+A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate,
+com o seu antigo robe-de-chambre de merino
+r&ocirc;xo, o cabello arranjado &aacute; pressa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje
+tem sido um dia de balburdia...
+<br />
+
+<br />
+
+Elle apertou-lhe a m&atilde;o gravemente: e ficaram
+calados, como se estivessem separados pela distancia
+d'um deserto. Ella n&atilde;o tirava os olhos do ch&atilde;o,
+enrolando
+<span class="pagenum">[560]</span>
+com a m&atilde;o tremula uma ponta da manta de
+l&atilde; que trazia solta pelos hombros. Amaro achava-a
+mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga
+de velhice aos cantos da b&ocirc;ca. Para romper
+aquelle silencio estranho, perguntou-lhe tambem se
+se dava bem...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para aqui vou indo... &Eacute; um pouco triste isto.
+&Eacute; como diz o senhor abbade Ferr&atilde;o, &eacute;
+muito grande
+para a gente se sentir em familia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ninguem veio para aqui para se divertir, disse
+a velha sem descerrar as palpebras, com uma
+voz s&ecirc;cca que perdera toda a fadiga.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia baixou a cabe&ccedil;a, fazendo-se pallida.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o, comprehendendo n'um relance que
+a velha torturava Amelia, disse com muita severidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, n&atilde;o foi para se divertirem... Mas
+tambem n&atilde;o foi para se entristecerem de proposito...
+P&ocirc;r-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
+outros a vida negra, &eacute; uma falta horrivel de caridade;
+n&atilde;o ha peccado peor aos olhos do Senhor... &Eacute;
+indigno da gra&ccedil;a de Deus quem tal pratica...
+<br />
+
+<br />
+
+A velha rompeu a choramingar, muito excitada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, o que Deus me guardou para os ultimos
+annos da vida...
+<br />
+
+<br />
+
+Gertrudes amimou-a. Ent&atilde;o, senhora, que at&eacute;
+lhe fazia peor estar a affligir-se assim... Ora o disparate!
+Tudo se havia de remediar com a ajuda de
+Deus. Saude n&atilde;o havia de faltar, nem alegria...
+<span class="pagenum">[561]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia cheg&aacute;ra-se &aacute; janella, decerto para
+esconder
+tambem as lagrimas que lhe saltavam dos olhos.
+E o parocho, consternado com a scena, come&ccedil;ou a
+dizer que D. Josepha n&atilde;o estava supportando com
+a verdadeira resigna&ccedil;&atilde;o d'uma christ&atilde;
+aquelles dias
+de doen&ccedil;a... Nada escandalisava mais Nosso Senhor
+que v&ecirc;r as creaturas revoltarem-se contra as d&ocirc;res
+ou os encargos que elle mandava... Era insultar a
+justi&ccedil;a dos seus decretos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem raz&atilde;o, senhor parocho, tem raz&atilde;o, murmurou
+a velha muito contrita. Eu &aacute;s vezes nem sei
+o que digo... S&atilde;o coisas da doen&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, minha senhora, &eacute; resignar-se e
+tratar de v&ecirc;r tudo c&ocirc;r de rosa. &Eacute; o
+sentimento que
+Deus mais aprecia. Eu comprehendo que &eacute; duro, estar
+para aqui enterrada...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o que diz o senhor abbade Ferr&atilde;o, acudiu
+Amelia voltando da janella, a madrinha estranha...
+Assim arrancada aos habitos de tantos annos...
+<br />
+
+<br />
+
+Notando ent&atilde;o a cita&ccedil;&atilde;o repetida das
+palavras do
+abbade Ferr&atilde;o, Amaro perguntou se elle costumava
+vir v&ecirc;l-as...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia.
+Vem quasi todos os dias.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um santo! exclamou a Gertrudes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente
+d'um enthusiasmo t&atilde;o vivo. Pessoa de muita
+virtude...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De muita virtude, suspirou a velha. Mas...&mdash;Calou-se,
+n&atilde;o ousando decerto exprimir as suas
+<span class="pagenum">[562]</span>
+reservas de devota.&mdash;E exclamou n'uma supplica:&mdash;Ai,
+o senhor parocho &eacute; que devia vir por aqui,
+ajudar-me a levar esta cruz da doen&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Hei de vir, minha senhora, hei de vir. &Eacute; bom
+para a distrahir, para lhe dar as noticias... E a proposito,
+tive hontem carta do nosso conego.
+<br />
+
+<br />
+
+Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da
+carta. O padre-mestre j&aacute; tinha quinze banhos. A praia
+estava cheia de gente. A D. Maria pass&aacute;ra doente
+com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes
+grandes passeatas a v&ecirc;r recolher as r&ecirc;des. A S.
+Joanneira, boa, mas fallando sempre na filha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pobre mam&atilde;... choramingou Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a velha n&atilde;o se interessava com as novidades,
+gemendo a sua ronqueira. Foi Amelia que perguntou
+pelos amigos de Leiria, pelo senhor padre
+Natario, pelo senhor padre Silverio...
+<br />
+
+<br />
+
+Ia escurecendo j&aacute;: a Gertrudes f&ocirc;ra preparar o
+candieiro. Amaro emfim ergueu-se:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois, minha senhora, at&eacute; outro dia. Esteja
+certa que hei de apparecer de vez em quando. E nada
+d'affligir... Agasalho, boa dieta, e a misericordia
+de Deus n&atilde;o a ha de abandonar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o nos falte, senhor parocho, n&atilde;o nos
+falte!...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia estendera-lhe a m&atilde;o, para se despedir alli
+no quarto; mas Amaro gracejando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se n&atilde;o lhe causa incommodo, menina Amelia,
+sempre &eacute; bom vir mostrar-me o caminho, que eu
+perco-me n'este casar&atilde;o.
+<span class="pagenum">[563]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiram ambos. E apenas no sal&atilde;o, a que as tres
+largas vidra&ccedil;as davam ainda uma claridade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro
+parando.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que mere&ccedil;o eu mais? respondeu ella baixando
+os olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Desavergonhada, eu lh'as cantarei!... Minha
+Ameliasinha, se soubesses o que me tem custado...
+<br />
+
+<br />
+
+E fallando, ia abra&ccedil;al-a pelo pesco&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas ella recuou, toda perturbada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute; isso? fez Amaro assombrado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Esse modo! Tu n&atilde;o me queres dar um beijo,
+Amelia? Tu est&aacute;s doida?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu as m&atilde;os para elle, n'uma
+supplica&ccedil;&atilde;o
+anciosa, fallando toda tremula:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou.
+Bem basta o que peccamos... Quero morrer na gra&ccedil;a
+de Deus... Que nunca mais se falle em semelhante
+coisa!... Foi uma desgra&ccedil;a... Acabou-se...
+Agora o que quero &eacute; o socego de minha alma...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu est&aacute;s tola! Quem te metteu isso na cabe&ccedil;a?
+Ouve c&aacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi para ella outra vez, com os bra&ccedil;os abertos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me toque, pelo amor de Deus,&mdash;e vivamente
+recuou at&eacute; &aacute; porta.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle olhou-a um momento, n'uma c&oacute;lera muda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, como queira, disse por fim. Em todo o
+caso, quero prevenil-a que o Jo&atilde;o Eduardo voltou,
+<span class="pagenum">[564]</span>
+que passa aqui todos os dias, e que &eacute; bom n&atilde;o se
+p&ocirc;r de janella.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me importa a mim o Jo&atilde;o Eduardo e os
+outros e tudo o que passou?...
+<br />
+
+<br />
+
+Elle acudiu, trasbordando d'um sarcasmo amargo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, agora o grande homem &eacute; o senhor
+abbade Ferr&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Devo-lhe muito, &eacute; o que sei...
+<br />
+
+<br />
+
+A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro
+acc&ecirc;so. E Amaro, sem se despedir d'Amelia,
+abalou, de guardachuva em riste, rilhando os dentes
+de raiva.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a longa caminhada at&eacute; &aacute; cidade calmou-o.
+Aquillo na rapariga por fim era apenas um accesso
+de virtude e d'escrupulos! Vira-se alli s&oacute; n'aquelle
+casar&atilde;o, amargurada pela velha, impressionada pelos
+palavr&otilde;es do moralista Ferr&atilde;o, longe d'elle, e
+tinha-lhe
+vindo aquella reac&ccedil;&atilde;o de devota com os seus
+terrores do outro-mundo e appetites de innocencia...
+Chala&ccedil;a! Se elle come&ccedil;asse a ir &aacute;
+Rico&ccedil;a, n'uma semana
+reganhava todo o seu dominio... Ah, conhecia-a
+bem! Era s&oacute; tocar-lhe, piscar-lhe o olho... Estava
+logo rendida.
+<br />
+
+<br />
+
+Passou por&eacute;m uma noite inquieta, desejando-a
+mais que nunca. E ao outro dia &aacute; uma hora marchou
+para a Rico&ccedil;a, levando-lhe um ramo de rosas.
+<br />
+
+<br />
+
+A velha ficou toda contente ao v&ecirc;l-o. &Eacute; que lhe
+<span class="pagenum">[565]</span>
+dava saude a presen&ccedil;a do senhor parocho! E se n&atilde;o
+fosse a distancia havia de lhe pedir a esmola de vir
+todas as manh&atilde;s. At&eacute; depois d'aquella visitinha
+rezava
+com mais fervor...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro sorria, distrahido, com os olhos cravados
+na porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a menina Amelia? perguntou por fim.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sahiu... Isso agora todas as manh&atilde;s &eacute; a
+passeata,
+disse a velha com azedume. Vai &aacute; residencia,
+&eacute; t&ocirc;da do abbade...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova
+devo&ccedil;&atilde;o, hein?... &eacute; pessoa de muitos
+meritos, o
+abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, n&atilde;o presta, n&atilde;o presta! exclamou D.
+Josepha.
+N&atilde;o me percebe. Tem id&eacute;as muito exquisitas.
+N&atilde;o d&aacute; virtude...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem de livros... disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a velha erguera-se sobre o cotov&ecirc;lo, e baixando
+a voz, com o magro car&atilde;o acc&ecirc;so em odio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E aqui p'ra n&oacute;s, a Amelia tem-se portado
+muito mal! Nunca lh'o hei de perdoar... Confessou-se
+ao abbade... &Eacute; uma indelicadeza, sendo a confessada
+do senhor parocho, n&atilde;o tendo recebido de vossa
+senhoria sen&atilde;o favores... &Eacute; uma ingrata,
+&eacute; uma
+trai&ccedil;oeira!...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fizera-se pallido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que me diz a senhora?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A verdade! Que ella n&atilde;o o nega. At&eacute; se orgulha!
+&Eacute; uma perdida, &eacute; uma perdida! Depois do
+favor que lhe estamos a fazer...
+<span class="pagenum">[566]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro disfar&ccedil;ou a indigna&ccedil;&atilde;o que o
+revolvia.
+Riu at&eacute;. Era necessario n&atilde;o exagerar...
+N&atilde;o havia
+ingratid&atilde;o. Era uma quest&atilde;o de f&eacute;. Se
+a rapariga
+pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha
+raz&atilde;o em se abrir com elle... O que todos queriam
+&eacute; que ella salvasse a sua alma... Que fosse
+pela direc&ccedil;&atilde;o de fulano ou sicrano, isso
+n&atilde;o importava...
+E nas m&atilde;os do abbade estava bem.
+<br />
+
+<br />
+
+E chegando vivamente a cadeira para o leito da
+velha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o agora, todas as manh&atilde;s vai &agrave;
+residencia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quasi todas... Que ella n&atilde;o ha de tardar, vai
+depois d'almo&ccedil;o, volta sempre a esta hora... Ai, tem-me
+causado isto um desgosto!...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro deu um passeiosinho nervoso pelo quarto,
+e estendendo a m&atilde;o &aacute; velha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois minha senhora, eu n&atilde;o me posso demorar,
+que vim de fugida... At&eacute; um dia cedo.
+<br />
+
+<br />
+
+E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade
+que ficasse para jantar&mdash;-desceu os degraus
+como uma pedra que rola, metteu furioso pelo caminho
+da residencia, ainda com o seu ramo na
+m&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Esperava encontrar Amelia na estrada; e n&atilde;o
+tardou em a avistar quasi ao p&eacute; da casa do ferreiro,
+agachada ao p&eacute; do vallado, apanhando sentimentalmente
+florinhas silvestres.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto
+d'ella.
+<span class="pagenum">[567]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ella ergueu-se, com um gritinho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que fazes tu aqui!? repetiu.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;quelle <em>tu</em>, e
+&aacute;quella voz colerica, ella poz rapidamente
+um dedo na b&ocirc;ca, assustada. O senhor abbade
+estava dentro da casa com o ferreiro...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ouve l&aacute;, disse Amaro com os olhos chammejantes,
+agarrando-lhe o bra&ccedil;o&mdash;tu confessaste-te ao
+abbade?...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P'ra que quer saber? Confessei... N&atilde;o &eacute;
+vergonha
+nenhuma...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas confessaste <em>tudo, tudo</em>?
+perguntou elle
+com os dentes cerrados de raiva.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella perturbou-se, e tratando-o ainda por
+<em>tu</em>:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foste tu que me disseste muitas vezes... Que
+era o maior peccado n'este mundo, esconder alguma
+coisa ao confessor!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bebeda! rugiu Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Os seus olhos devoravam-na. E, atrav&eacute;s da nevoa
+de c&oacute;lera que lhe enchia o cerebro e lhe fazia
+latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita,
+com umas redondezas em todo o corpo que ardia
+por abra&ccedil;ar, com uns labios vermelhos avivados
+pelo largo ar do campo que elle queria morder at&eacute;
+ao sangue.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ouve, disse-lhe cedendo a uma invas&atilde;o brutal
+do desejo. Ouve... Acabou-se, n&atilde;o me importa.
+Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas has de ser
+a mesma para mim!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, n&atilde;o! disse ella com for&ccedil;a,
+desprendendo-se,
+prompta a fugir para casa do ferreiro.
+<span class="pagenum">[568]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu m'as pagar&aacute;s, maldita!&mdash;rosnou o padre
+por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho
+com passadas de desesperado.
+<br />
+
+<br />
+
+E n&atilde;o abrandou o passo at&eacute; &aacute; cidade,
+levado de
+um impulso d'indigna&ccedil;&atilde;o que, sob aquella
+d&ocirc;ce paz
+d'um meio d'outono, lhe suggeria planos de vingan&ccedil;as
+ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com
+o ramo na m&atilde;o. Mas ahi, na solid&atilde;o do quarto,
+veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotencia.
+Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade
+dizer que ella estava gravida? Seria denunciar-se a
+si. Espalhar que estava amigada com o abbade Ferr&atilde;o?
+Era absurdo: um velho de quasi setenta annos,
+d'uma fealdade de caricatura, com todo um
+passado de virtude santa... Mas perdel-a, n&atilde;o tornar
+a ter nos bra&ccedil;os aquelle corpo de neve, n&atilde;o
+ouvir mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe
+arrebatavam a alma para alguma coisa de melhor
+que o c&eacute;o... Isso n&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+E era possivel que ella, em seis ou sete semanas,
+tivesse assim esquecido tudo? N'aquellas longas
+noites na Rico&ccedil;a, s&oacute; na cama, n&atilde;o lhe
+viria uma
+recorda&ccedil;&atilde;o das manh&atilde;s no quarto do tio
+Esguelhas?...
+Decerto: elle sabia-o da experiencia de
+tantas confessadas que lhe tinham revelado afflictas
+a tenta&ccedil;&atilde;o muda e teimosa que n&atilde;o
+deixa a carne
+que uma vez peccou...
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o: devia perseguil-a, e por todos os modos
+soprar-lhe aquelle desejo que agora ardia n'elle mais
+alto e mais ruidoso.
+<span class="pagenum">[569]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis
+paginas, absurda, cheia d'implora&ccedil;&otilde;es
+apaixonadas,
+de argucias mysticas, de pontos d'exclama&ccedil;&atilde;o e de
+amea&ccedil;as de suicidio...
+<br />
+
+<br />
+
+Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta
+veio s&oacute; &aacute; noite, por um rapazito da quinta.
+Com que sofreguid&atilde;o rasgou o sobrescripto! Eram
+apenas estas palavras: &laquo;Pe&ccedil;o-lhe que me deixe em
+paz com os meus peccados.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o desistiu: ao outro dia l&aacute; estava na
+Rico&ccedil;a a
+visitar a velha. Amelia achava-se no quarto de D.
+Josepha, quando elle appareceu. Fez-se muito pallida;
+mas os seus olhos n&atilde;o deixaram a costura&mdash;durante
+a meia hora que elle alli ficou, ora n'um
+silencio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona,
+ora respondendo distrahidamente &aacute; tagarellice
+da velha, muito falladora essa manh&atilde;.
+<br />
+
+<br />
+
+E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia
+entrar fechava-se rapidamente no quarto: s&oacute; vinha,
+se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe &laquo;que estava
+alli o senhor o parocho que a queria v&ecirc;r&raquo;. Ia
+ent&atilde;o, estendia-lhe a m&atilde;o, que elle achava sempre
+a escaldar&mdash;e tomando a sua eterna costura, junto
+da janella, ia picando o posponto com uma taciturnidade
+que desesperava o padre.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha-lhe escripto outra carta. Ella n&atilde;o respondera.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o jurava n&atilde;o voltar &aacute;
+Rico&ccedil;a, desprezal-a,&mdash;mas
+depois de ter passado a noite, rolando-se pela
+cama sem poder dormir, com a mesma vis&atilde;o da
+<span class="pagenum">[570]</span>
+nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro,
+l&aacute; partia de manh&atilde; para a Rico&ccedil;a,
+c&oacute;rando quando o
+apontador das obras na estrada, que o via passar todos
+os dias, lhe tirava o seu bon&eacute; d'oleado.
+<br />
+
+<br />
+
+N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casar&atilde;o,
+dera com o abbade Ferr&atilde;o que &aacute; porta abria o
+seu guardachuva.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ol&aacute;, por aqui, senhor abbade! disse elle.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade respondeu naturalmente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Em vossa senhoria &eacute; que n&atilde;o ha que estranhar,
+que vem por aqui todos os dias...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o se conteve; e tremendo de c&oacute;lera:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho
+ou n&atilde;o? A casa &eacute; sua?
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella brutalidade t&atilde;o injustificavel offendeu o
+abbade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois era melhor para todos que n&atilde;o viesse...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E porque, senhor abbade? e porque?&mdash;gritou
+Amaro, perdido.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o o bom homem estremeceu. Commettera,
+alli, a culpa mais grave do sacerdote catholico: o
+que sabia d'Amaro, dos seus amores, era em segredo
+de confiss&atilde;o; e era trahir o mysterio do sacramento,
+mostrar que desapprovava aquella insistencia
+no peccado. Tirou muito baixo o seu chap&eacute;o e disse
+humildemente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem vossa senhoria raz&atilde;o. Pe&ccedil;o
+perd&atilde;o do que
+disse, sem reflectir. Muito boas tardes, senhor parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito boas tardes, senhor abbade.
+<span class="pagenum">[571]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n&atilde;o entrou na Rico&ccedil;a. Voltou para a cidade
+sob a chuva que batia forte agora. E, apenas
+em casa, escreveu uma longa carta a Amelia, em
+que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o
+d'accusa&ccedil;&otilde;es&mdash;sobretudo de lhe trahir
+indirectamente
+o segredo da confiss&atilde;o. Como das outras,
+d'esta carta n&atilde;o veio resposta da Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o Amaro come&ccedil;ou a acreditar que tanta
+resistencia
+n&atilde;o podia vir s&oacute; do arrependimento e do
+terror do inferno... &laquo;Alli ha homem&raquo;, pensou. E
+devorado d'um ciume negro principiou a rondar de
+noite a Rico&ccedil;a; mas n&atilde;o viu nada; o
+casar&atilde;o permanecia
+adormecido e apagado. Uma occasi&atilde;o, por&eacute;m,
+ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu
+adiante no caminho que desce dos Poyaes uma voz
+cantarolar sentimentalmente a valsa dos <em>Dois
+mundos</em>,
+e um ponto brilhante de charuto acc&ecirc;so adiantar-se
+na escurid&atilde;o. Assustado, refugiou-se n'um casebre
+que desmantelava em ruinas do outro lado da
+estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando, viu
+ent&atilde;o um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta
+claro, parado, contemplando as janellas da Rico&ccedil;a.
+Um furor de ciume apossou-se d'elle, e ia saltar
+e atacar o homem&mdash;quando o viu seguir tranquillamente
+ao comprido da estrada, de charuto alto,
+trauteando:
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ouves ao longe retumbar na serra<br />
+
+O som do bronze que nos causa horror...
+</div>
+
+<span class="pagenum">[572]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido
+Jo&atilde;o Eduardo. Mas teve a certeza que se
+um homem fallava de noite a Amelia ou entrava na
+quinta&mdash;n&atilde;o era decerto o escrevente. Todavia, receoso
+de ser descoberto, n&atilde;o tornou a rondar o casar&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Era com effeito Jo&atilde;o Eduardo, que sempre que
+passava pela Rico&ccedil;a, de dia ou de noite, parava um
+momento a olhar melancolicamente as paredes que
+<em>ella</em> habitava. Porque apesar de
+tantas desillus&otilde;es,
+Amelia permanecera para o pobre rapaz a
+<em>ella</em>, a
+bem amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em
+Ourem, nem em Alcoba&ccedil;a, nem pelas estalagens onde
+err&aacute;ra, nem em Lisboa onde cheg&aacute;ra como vem
+&aacute; praia uma quilha de barco naufragado, deix&aacute;ra
+um
+momento de a ter presente na alma e de se enternecer
+com as saudades d'ella. Durante esses dias
+t&atilde;o amargos de Lisboa, os peores da sua vida, em
+que f&ocirc;ra fiel de feitos d'um cartorio obscuro, perdido
+n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastid&atilde;o
+d'uma Roma ou d'uma Babylonia e em que sentia
+o duro egoismo das multid&otilde;es azafamadas,
+esfor&ccedil;ava-se
+mesmo por desenvolver mais esse amor
+que lhe dava como a do&ccedil;ura d'uma companhia. Achava-se
+menos isolado, tendo sempre no espirito aquella
+imagem com quem travava dialogos imaginados,
+nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do
+<span class="pagenum">[573]</span>
+Sodr&eacute;, accusando-a das tristezas que o envelheciam.
+<br />
+
+<br />
+
+E esta paix&atilde;o, sendo para elle como a indefinida
+justifica&ccedil;&atilde;o das suas miserias, tornava-o aos
+seus
+proprios olhos interessante. Era &laquo;um martyr de
+amor&raquo;; isto consolava-o, como o consol&aacute;ra nas suas
+primeiras desespera&ccedil;&otilde;es considerar-se
+&laquo;uma victima
+das persegui&ccedil;&otilde;es religiosas&raquo;.
+N&atilde;o era um pobre diabo
+banal a quem o acaso, a pregui&ccedil;a, a falta d'amigos,
+a sorte e os remendos do casaco mant&ecirc;m fatalmente
+nas priva&ccedil;&otilde;es da dependencia: era um homem
+de grande cora&ccedil;&atilde;o, a quem uma catastrophe
+em parte amorosa e em parte politica, um drama
+domestico e social, for&ccedil;&aacute;ra assim, depois de
+luctas
+heroicas, a viajar d'um a outro cartorio com um
+sacco de lustrina cheio d'autos. O destino torn&aacute;ra-o
+igual a tantos heroes que lera nas novellas sentimentaes...
+E o seu paletot co&ccedil;ado, os seus jantares
+a quatro vintens, os dias em que n&atilde;o tinha dinheiro
+para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia
+e &aacute; persegui&ccedil;&atilde;o d'uma classe poderosa,
+dando assim,
+por um instincto muito humano, uma origem
+grandiosa &aacute;s suas miserias triviaes... Quando via
+passar os que elle chamava os
+<em>felizes</em>&mdash;individuos
+batendo tipoia, rapazes que encontrava com uma
+linda mulher pelo bra&ccedil;o, gente bem atabafada que
+se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgra&ccedil;ado
+pensando que tambem elle possuia um grande luxo
+interior que era aquelle amor infeliz. E quando emfim
+por um acaso obteve a certeza d'um emprego
+<span class="pagenum">[574]</span>
+no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua
+aventura banal d'emigrante, repetindo-se durante todo
+o dia que ia passar os mares, exilado do seu paiz
+por uma tyrannia combinada de padres e auctoridades
+e por ter amado uma mulher!
+<br />
+
+<br />
+
+Quem lhe diria ent&atilde;o, ao emmalar o seu fato no
+bah&uacute; de lata, que d'ahi a semanas estaria outra vez
+a meia legua d'esses padres e d'essas auctoridades,
+contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! F&ocirc;ra
+aquelle singular Morgadinho de Poyaes,&mdash;que n&atilde;o
+era nem Morgadinho nem de Poyaes, e apenas um
+rica&ccedil;o excentrico de ao p&eacute; d'Alcoba&ccedil;a
+que compr&aacute;ra
+aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e
+que com a posse da terra recebia do povo da freguezia
+a honra do titulo: f&ocirc;ra esse santo cavalheiro
+que o livr&aacute;ra dos enj&ocirc;os no paquete e dos acasos
+da emigra&ccedil;&atilde;o. Encontr&aacute;ra-o casualmente
+no cartorio
+onde elle ainda trabalhava nas vesperas da viagem.
+O Morgadinho, cliente do velho Nunes, conhecia-lhe
+a historia, a fa&ccedil;anha do
+<em>Communicado</em>, o escandalo
+no largo da S&eacute;; e j&aacute; de ha muito concebera por
+elle uma sympathia ardente.
+<br />
+
+<br />
+
+O Morgadinho tinha com effeito por padres um
+odio maniaco, a ponto de n&atilde;o l&ecirc;r no jornal a
+noticia
+d'um crime, sem decidir (ainda mesmo quando
+o culpado estava j&aacute; sentenciado) que &laquo;no fundo
+devia
+d'haver na historia um sotaina&raquo;. Dizia-se que
+este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua
+primeira mulher, devota celebre d'Alcoba&ccedil;a. Apenas
+viu Jo&atilde;o Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima,
+<span class="pagenum">[575]</span>
+teve immediatamente a id&eacute;a de o trazer para
+Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a
+educa&ccedil;&atilde;o
+das primeiras letras dos seus dois pequenos
+como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano.
+Imaginava de resto Jo&atilde;o Eduardo um impio;
+e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar
+os rapazitos n'um &laquo;atheismo desbragado&raquo;.
+Jo&atilde;o
+Eduardo aceitou, com as lagrimas nos olhos: era
+um salario magnifico que lhe vinha, uma posi&ccedil;&atilde;o,
+uma familia, uma rehabilita&ccedil;&atilde;o estrondosa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o
+que faz por mim!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; p'ra meu gosto proprio!... &Eacute; p'ra arreliar
+a canalha! E partimos &aacute;manh&atilde;!
+<br />
+
+<br />
+
+Em Ch&atilde;o de Ma&ccedil;&atilde;s, apenas desceu do
+wagon,
+exclamou logo para o chefe da esta&ccedil;&atilde;o que
+n&atilde;o conhecia
+Jo&atilde;o Eduardo, nem a sua historia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C&aacute; o trago, c&aacute; o trago em triumpho! Vem
+p'ra quebrar a cara a toda a padraria... E se houver
+custas a pagar, sou eu que as pago!
+<br />
+
+<br />
+
+O chefe da esta&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+estranhou&mdash;porque o
+Morgadinho passava no districto por maluco.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua
+chegada, que Jo&atilde;o Eduardo soube que Amelia e D.
+Josepha estavam na Rico&ccedil;a. Soube-o pelo bom abbade
+Ferr&atilde;o, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava,
+e que recebia em casa, n&atilde;o como padre, mas
+como cavalheiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferr&atilde;o,
+costumava elle dizer, mas como padre abomino-o!
+<span class="pagenum">[576]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E o bom Ferr&atilde;o sorria, sabendo que, sob aquella
+ferocidade d'impio obtuso, havia um santo
+cora&ccedil;&atilde;o,
+um pai-de-pobres na freguezia...
+<br />
+
+<br />
+
+O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios,
+questionador incansavel; &aacute;s vezes os dois tinham
+pelejas tremendas sobre historia, botanica,
+systemas de ca&ccedil;a... Quando o abbade, no fogo da
+controversia, punha d'alto alguma opini&atilde;o contraria:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor apresenta-me isso como padre ou
+como cavalheiro? exclamava, empinando-se, o Morgado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como cavalheiro, senhor Morgado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o aceito a objec&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; sensata. Mas se
+fosse como padre, quebrava-lhe os ossos.
+<br />
+
+<br />
+
+&Aacute;s vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe
+Jo&atilde;o Eduardo, batendo d'alto no hombro do rapaz,
+n'uma caricia de amador, como um cavallo favorito:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Veja-me isto! J&aacute; ia dando cabo d'um. E ainda
+ha de matar dois ou tres... E se o prenderem hei
+de eu livral-o da forca!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso n&atilde;o &eacute; difficil, senhor Morgado, dizia o
+abbade tomando tranquillamente a sua pitada. Que
+j&aacute; n&atilde;o ha forcas em Portugal...
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o era uma indigna&ccedil;&atilde;o do Morgado.
+N&atilde;o havia
+forcas? E porque n&atilde;o? Porque tinhamos um governo
+livre e um rei constitucional! Que se se seguisse
+a vontade dos padres, havia uma forca em
+cada pra&ccedil;a e uma fogueira em cada esquina!
+<span class="pagenum">[577]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga-me uma coisa, snr. Ferr&atilde;o, o senhor
+vem defender aqui em minha casa a inquisi&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, senhor Morgado, eu nem sequer fallei da
+inquisi&ccedil;&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o fallou por medo! Porque sabe perfeitamente
+que lhe enterrava uma faca no estomago!
+<br />
+
+<br />
+
+E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo
+um vendaval com as abas prodigiosas do seu
+robe-de-chambre amarello.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;No fundo um anjo, diria o abbade a Jo&atilde;o
+Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre,
+se o soubesse em necessidade... E voss&ecirc; aqui
+est&aacute; bem, Jo&atilde;o Eduardo... &Eacute;
+n&atilde;o lhe reparar nas
+manias...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha tomado affei&ccedil;&atilde;o a Jo&atilde;o Eduardo,
+o abbade
+Ferr&atilde;o: e sabendo por Amelia a famosa legenda do
+<em>Communicado</em> quizera, segundo a sua
+express&atilde;o
+querida, &laquo;folhear o homem aqui e al&eacute;m&raquo;.
+Convers&aacute;ra
+com elle tardes inteiras na rua de loureiros da
+quinta, na residencia onde Jo&atilde;o Eduardo se ia fornecer
+de livros; e sob o &laquo;exterminador de padres&raquo;,
+como dizia o Morgado, encontr&aacute;ra um pobre
+mo&ccedil;o sensivel, com uma religi&atilde;o sentimental,
+ambi&ccedil;&otilde;es
+de paz domestica, e prezando muito o trabalho.
+Ent&atilde;o viera-lhe uma id&eacute;a que, sobretudo por lhe
+ter
+acudido um dia que sahia das suas devo&ccedil;&otilde;es ao
+Santissimo,
+lhe pareceu descida de cima, da vontade
+do Senhor: era o casal-o com Amelia. N&atilde;o seria difficil
+levar aquelle cora&ccedil;&atilde;o fraco e terno a perdoar o
+erro d'ella; e a pobre rapariga, depois de tantos
+<span class="pagenum">[578]</span>
+transes, extincta aquella paix&atilde;o que lhe entr&aacute;ra
+na
+alma como um s&ocirc;pro do Demonio, levando-lhe a vontade,
+a paz e o pudor d'empurr&atilde;o para o abysmo,
+encontraria na companhia de Jo&atilde;o Eduardo todo um
+resto de vida calmo, e contente, um canto suave
+d'interior, refugio d&ocirc;ce e purifica&ccedil;&atilde;o
+do passado.
+N&atilde;o fallou nem a um, nem a outro, n'esta id&eacute;a que
+o enternecia. N&atilde;o era o momento agora, que ella
+trazia nas entranhas o filho do
+<em>outro</em>. Mas ia preparando
+com amor aquelle resultado,&mdash;sobretudo
+quando estava com Amelia, contando-lhe as suas conversas
+com Jo&atilde;o Eduardo, algum dito muito sensato
+que elle tivera, os bons cuidados de preceptor
+que estava desenvolvendo na educa&ccedil;&atilde;o dos
+Morgaditos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; um bom rapaz, dizia. Homem de familia...
+D'estes a quem uma mulher p&oacute;de realmente confiar
+a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao
+mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia n&atilde;o respondia, c&oacute;rando.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; n&atilde;o podia objectar &aacute;quelles elogios
+persuasivos
+a antiga, a grande objec&ccedil;&atilde;o&mdash;o
+<em>Communicado</em>,
+a impiedade! O abbade Ferr&atilde;o destruira-lh'a um
+dia, com uma palavra:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz n&atilde;o
+escreveu contra os sacerdotes, escreveu contra os
+phariseus!
+<br />
+
+<br />
+
+E para attenuar este julgamento severo, o menos
+caridoso que tivera havia muitos annos, acrescentou:
+<span class="pagenum">[579]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Emfim, foi uma falta grave... Mas est&aacute; muito
+arrependido. Pagou-o com lagrimas, e com fome.
+<br />
+
+<br />
+
+E isto enternecia Amelia.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+F&ocirc;ra tambem por esse tempo que o doutor Gouv&eacute;a
+come&ccedil;&aacute;ra a vir &aacute; Rico&ccedil;a,
+porque D. Josepha tinha
+peorado com os dias mais frios do outono. Amelia,
+ao principio, &aacute; hora da visita, fechava-se no seu
+quarto, tremendo &aacute; id&eacute;a de v&ecirc;r o seu
+estado descoberto
+pelo velho doutor Gouv&ecirc;a, o medico da casa,
+aquelle homem d'uma severidade legendaria. Mas
+emfim f&ocirc;ra necessario apparecer no quarto da velha,
+para receber as suas instruc&ccedil;&otilde;es de enfermeira
+sobre
+as horas dos remedios e as dietas. E um dia que
+acompanh&aacute;ra o doutor at&eacute; &aacute; porta,
+ficou gelada,
+vendo-o parar, voltar-se para ella cofiando a sua
+grande barba branca que lhe cahia sobre o jaquet&atilde;o
+de velludo, e dizer-lhe sorrindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu bem tinha dito a tua m&atilde;i que te casasse!
+<br />
+
+<br />
+
+Duas lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, bem, pequena, n&atilde;o te quero mal por
+isso. Est&aacute;s na verdade. A natureza manda conceber,
+n&atilde;o manda casar. O casamento &eacute; uma
+f&oacute;rmula administrativa...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as
+duas lagrimas muito redondinhas a correrem-lhe devagar
+pela face. Elle bateu-lhe com os dedos no
+queixo, muito paternal:
+<span class="pagenum">[580]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me.
+Acho que te tornaste util &aacute; ordem geral das
+coisas. Vamos ao que importa...
+<br />
+
+<br />
+
+Deu-lhe ent&atilde;o conselhos sobre a hygiene que devia
+ter.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E quando chegar a occasi&atilde;o, se te vires atrapalhada,
+manda-me chamar...
+<br />
+
+<br />
+
+Ia descer; Amelia deteve-o, e com uma supplica&ccedil;&atilde;o
+assustada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas o senhor doutor n&atilde;o vai dizer nada na cidade...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Gouv&eacute;a parou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o n&atilde;o &eacute; estupida?...
+Est&aacute; bom, tambem
+t'o perd&ocirc;o. Est&aacute; na logica do teu temperamento.
+N&atilde;o,
+n&atilde;o digo nada, rapariga. Mas p'ra que diabo,
+ent&atilde;o,
+n&atilde;o casaste tu com esse pobre Jo&atilde;o Eduardo?
+Fazia-te
+t&atilde;o feliz como o outro, e j&aacute; n&atilde;o
+tinhas de pedir
+segredo... Emfim, isso para mim &eacute; um detalhe
+secundario... O essencial &eacute; o que te disse... Manda-me
+chamar. N&atilde;o te fies muito nos teus santos...
+Eu entendo mais d'isso que Santa Brigida ou l&aacute;
+quem &eacute;. Que tu &eacute;s forte, e has de dar um bom
+mocet&atilde;o
+ao Estado.
+<br />
+
+<br />
+
+Todas estas palavras que em parte n&atilde;o comprehendera
+bem, mas em que sentia uma vaga justifica&ccedil;&atilde;o
+e uma bondade d'av&ocirc; indulgente, sobretudo
+aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que
+as barbas grisalhas do doutor, umas barbas de Padre
+Eterno, davam um ar d'infallibilidade, reconfortaram-na,
+augmentaram a serenidade que havia semanas
+<span class="pagenum">[581]</span>
+gozava, desde a sua confiss&atilde;o desesperada na capella
+dos Poyaes.
+<br />
+
+<br />
+
+Ah, f&ocirc;ra decerto Nossa Senhora, compadecida
+emfim dos seus tormentos, que lhe mand&aacute;ra do c&eacute;o
+aquella inspira&ccedil;&atilde;o de se ir entregar toda dorida
+aos
+cuidados do abbade Ferr&atilde;o! Parecia-lhe que
+deix&aacute;ra
+l&aacute;, no seu confessionario azul-ferrete, todas as
+amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso
+que lhe abafava a alma. A cada uma das
+suas consola&ccedil;&otilde;es t&atilde;o persuasivas
+sentira desapparecer
+o negrume que lhe tapava o c&eacute;o: agora via tudo
+azul; e quando rezava, j&aacute; Nossa Senhora n&atilde;o
+desviava o rosto indignado. &Eacute; que era t&atilde;o
+differente
+aquella maneira de confessar do abbade! Os seus
+modos n&atilde;o eram os do representante rigido d'um
+Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino
+e de maternal que passava na alma como
+uma caricia; em logar de lhe erguer diante dos olhos
+o sinistro scenario das chammas do Inferno, mostr&aacute;ra-lhe
+um vasto c&eacute;o misericordioso com as portas
+largamente abertas, e os caminhos multiplicados que
+l&aacute; conduzem, t&atilde;o faceis e t&atilde;o
+d&ocirc;ces de trilhar que
+s&oacute; a obstina&ccedil;&atilde;o dos rebeldes se recusa
+a tental-os.
+Deus apparecia, n'aquella suave interpreta&ccedil;&atilde;o da
+outra
+vida, como um bom bisav&ocirc; risonho; Nossa Senhora
+era uma irm&atilde; de caridade; os santos, camaradas
+hospitaleiros! Era uma religi&atilde;o amavel, toda banhada
+de gra&ccedil;a, em que uma lagrima pura basta para
+remir uma existencia de peccado. Que differente da
+soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada
+<span class="pagenum">[582]</span>
+e tremula! T&atilde;o differente&mdash;como aquella pequena
+capella d'aldeia da vasta massa de cantaria da
+S&eacute;. L&aacute;, na velha S&eacute;, muralhas da
+espessura de covados
+separavam da vida humana e natural: tudo
+era escurid&atilde;o, melancolia, penitencia, faces severas
+d'imagens; nada do que faz a alegria do mundo alli
+entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o
+ar largo dos prados, nem os risos dos labios vivos;
+alguma fl&ocirc;r que havia era artificial; o
+enxota-c&atilde;es l&aacute;
+se postava ao portal para n&atilde;o deixar passar as criancinhas;
+at&eacute; o sol estava exilado, e toda a luz que
+havia vinha dos lampadarios funebres. E alli, na capellita
+dos Poyaes, que familiaridade da natureza
+com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a
+aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos
+brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar
+era como um jardinete e um pomar; pardaes
+atrevidos vinham chilrear at&eacute; junto aos pedestaes
+das cruzes; &aacute;s vezes um boi grave mettia o focinho
+pela porta com a antiga familiaridade do curral de
+Belem, ou uma ovelha tresmalhada vinha regosijar-se
+de v&ecirc;r um da sua ra&ccedil;a, o Cordeiro Paschal, dormir
+regaladamente ao fundo do altar com a santa
+cruz entre as patas.
+<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera,
+&laquo;n&atilde;o queria impossiveis&raquo;. Sabia bem que
+ella
+n&atilde;o podia arrancar n'um momento aquelle amor culpado,
+que ganh&aacute;ra raizes at&eacute; &aacute;s profundezas
+do seu
+s&ecirc;r. Queria apenas que quando a assaltasse a id&eacute;a
+de Amaro se abrigasse logo na id&eacute;a de Jesus. Com
+<span class="pagenum">[583]</span>
+a for&ccedil;a colossal de Satanaz, que tem o poder d'um
+Hercules, uma pobre rapariga n&atilde;o p&oacute;de luctar
+bra&ccedil;o
+a bra&ccedil;o: p&oacute;de s&oacute;mente refugiar-se na
+ora&ccedil;&atilde;o quando
+o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e espumar
+em torno d'esse asylo impenetravel. Elle mesmo cada
+dia a ia ajudando n'aquella repurifica&ccedil;&atilde;o da
+alma,
+com uma solicitude de enfermeiro: f&ocirc;ra elle
+que lhe marc&aacute;ra, como um ensaiador n'um theatro,
+a attitude que devia ter na primeira visita de Amaro
+&aacute; Rico&ccedil;a; era elle que chegava, com alguma breve
+palavra reconfortante como um cordial, se a via
+vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se
+a noite f&ocirc;ra agitada das lembran&ccedil;as calidas dos
+prazeres
+passados, era durante toda a manh&atilde; uma boa
+palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava
+familiarmente que o c&eacute;o lhe daria alegrias
+maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Cheg&aacute;ra,
+com uma subtileza de theologo, a demonstrar-lhe
+que no amor do parocho n&atilde;o havia sen&atilde;o
+brutalidade
+e furor bestial; que, d&ocirc;ce como era o amor
+do homem, o amor do padre s&oacute; podia ser uma
+explos&atilde;o
+momentanea do desejo comprimido; quando
+tinham come&ccedil;ado as cartas do parocho,
+analys&aacute;ra-lh'as
+phrase a phrase, revelando-lhe o que ellas
+continham de hypocrisia, de egoismo, de rhetorica,
+e de desejo torpe...
+<br />
+
+<br />
+
+Ia-a assim lentamente desgostando do parocho.
+Mas n&atilde;o a desgostava do amor legitimo, purificado
+pelo sacramento; conhecia bem que ella era toda
+de carne e de desejos, e que lan&ccedil;al-a violentamente
+<span class="pagenum">[584]</span>
+no mysticismo seria apenas torcer-lhe um momento
+o instincto natural e n&atilde;o crear-lhe uma paz duradoura.
+N&atilde;o tentava arrancal-a bruscamente &aacute; realidade
+humana; elle n&atilde;o a queria para freira; s&oacute;
+desejava
+que aquella for&ccedil;a amante que sentia n'ella
+servisse &aacute; alegria d'um esposo e &aacute; util harmonia
+d'uma familia, e n&atilde;o se gastasse erradamente em
+concubinagens casuaes... No fundo, o bom Ferr&atilde;o
+preferiria decerto na sua alma de sacerdote que a
+rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses
+egoistas do amor individual, e se d&eacute;sse,
+como irm&atilde; da caridade, como enfermeira d'um recolhimento,
+ao amor mais largo de toda a humanidade.
+Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito
+bonita e muito fraca; n&atilde;o seria prudente assustal-a
+com sacrificios t&atilde;o altos; era toda mulher&mdash;toda mulher
+devia ficar; limitar-lhe a ac&ccedil;&atilde;o era estragar-lhe
+a utilidade. Christo n&atilde;o lhe bastava com os seus
+membros &iacute;deaes pregados na cruz: era-lhe necessario
+um homem como todos, de bigode e chap&eacute;o alto.
+Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob
+a legitima&ccedil;&atilde;o sacramental...
+<br />
+
+<br />
+
+Assim a ia curando d'aquella paix&atilde;o morbida
+com uma direc&ccedil;&atilde;o de todos os dias, uma d'estas
+persistencias
+de missionario que s&oacute; d&aacute; a f&eacute; sincera,
+pondo a subtileza d'um casuista ao servi&ccedil;o da moralidade
+d'um philosopho, paternal e habil&mdash;uma
+cura maravilhosa de que o bom abbade em segredo
+tirava alguma vaidade.
+<br />
+
+<br />
+
+E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu
+<span class="pagenum">[585]</span>
+que emfim a paix&atilde;o por Amaro j&aacute; n&atilde;o
+era na alma
+d'ella um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado,
+arrumado no fundo da sua memoria como
+n'um jazigo, escondido j&aacute; sob a delicada florescencia
+d'uma virtude nova. Assim julgava pelo menos
+o bom Ferr&atilde;o&mdash;vendo-a agora alludir ao passado
+com o olhar tranquillo, sem aquelles rubores que
+outr'ora lhe escaldavam a face ao simples nome de
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Ella, com effeito, j&aacute; n&atilde;o pensava no senhor
+parocho
+com a commo&ccedil;&atilde;o d'outr'ora: o terror do peccado,
+a influencia penetrante do abbade, aquella
+brusca separa&ccedil;&atilde;o do meio devoto em que o seu
+amor se desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade
+maior, sem sustos nocturnos e sem a inimizade
+de Nossa Senhora, tudo concorr&ecirc;ra para que
+o fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo
+a alguma braza que rebrilhava surdamente.
+O parocho estivera ao principio na sua alma com o
+prestigio d'um idolo coberto d'oiro; mas tantas vezes,
+desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de
+terror religioso ou de arrependimento hysterico,
+aquelle idolo, que todo o dourado lhe fic&aacute;ra nas
+m&atilde;os, e a f&oacute;rma trivial e escura que apparecia
+por
+baixo j&aacute; n&atilde;o a deslumbrava; viu por isso o abbade
+derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar.
+Se ainda pensava em Amaro, &eacute; porque n&atilde;o podia
+deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a
+tentava ainda era o prazer e n&atilde;o o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+E com a sua natureza de boa rapariga tinha um
+<span class="pagenum">[586]</span>
+reconhecimento sincero pelo abbade. Como dissera a
+Amaro n'aquella tarde, &laquo;devia-lhe tudo&raquo;. Era o que
+sentia agora tambem pelo doutor Gouv&ecirc;a, que vinha
+regularmente v&ecirc;r a velha de dois em dois dias.
+Eram os seus bons amigos, como dois pap&aacute;s que o
+c&eacute;o lhe mandava&mdash;um que lhe promettia a saude,
+outro a gra&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Refugiada n'aquellas duas protec&ccedil;&otilde;es, gozou uma
+paz adoravel nas ultimas semanas de outubro. Os
+dias iam muito serenos e muito tepidos. Era bom
+estar no terra&ccedil;o, pelas tardes, n'aquella serenidade
+outonal dos campos. O doutor Gouv&ecirc;a &aacute;s vezes
+encontrava-se
+com o abbade Ferr&atilde;o; ambos se estimavam;
+depois da visita &aacute; velha, iam para o terra&ccedil;o,
+e come&ccedil;avam logo as suas eternas quest&otilde;es sobre
+Religi&atilde;o e sobre Moral.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo
+os seus dois amigos ao p&eacute;, aquelles dois colossos
+de sciencia e de santidade, abandonava-se ao
+encanto da hora suave, olhando a quinta onde as
+arvores j&aacute; empallideciam. Pensava no futuro; elle
+apparecia-lhe agora facil e seguro; era forte, e o
+parto, com a presen&ccedil;a do doutor, seria apenas uma
+hora de d&ocirc;res; depois, livre d'aquella
+complica&ccedil;&atilde;o,
+voltaria para a cidade e para a mam&atilde;... E ent&atilde;o
+uma outra esperan&ccedil;a, que nascera das conversas constantes
+do abbade sobre Jo&atilde;o Eduardo, vinha bailar-lhe
+na imagina&ccedil;&atilde;o. Porque n&atilde;o?... Se o
+pobre rapaz
+a amasse ainda, e perdoasse!... Elle nunca lhe repugn&aacute;ra
+como homem, e seria um casamento esplendido
+<span class="pagenum">[587]</span>
+agora que elle tinha a amizade do Morgado. Dizia-se
+que Jo&atilde;o Eduardo ia ser o administrador da
+casa... E entrevia-se vivendo nos Poyaes, passeando
+na caleche do Morgado, chamada para jantar por
+uma campainha, servida por um escudeiro de libr&eacute;...
+Ficava muito tempo immovel, banhada na do&ccedil;ura
+d'esta perspectiva, emquanto o abbade e o doutor
+ao fundo do terra&ccedil;o pelejavam sobre a doutrina
+da Gra&ccedil;a e da Consciencia, e monotonamente a agua
+das regas murmurava no pomar.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de
+n&atilde;o v&ecirc;r apparecer o senhor parocho,
+mand&aacute;ra expressamente
+o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria
+a esmola d'uma visita. O homem volt&aacute;ra com a espantosa
+noticia de que o senhor parocho partira para
+a Vieira, e n&atilde;o viria sen&atilde;o d'ahi a duas semanas.
+A velha choramingou de desgosto. E Amelia, n'essa
+noite, no seu quarto, n&atilde;o p&ocirc;de adormecer&mdash;na
+irrita&ccedil;&atilde;o
+que lhe dava aquella id&eacute;a do senhor parocho
+a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella decerto,
+chalaceando com as senhoras na praia, e andando de
+ser&atilde;o em ser&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Com a primeira semana de novembro vieram
+as chuvas. A Rico&ccedil;a parecia agora mais lugubre
+n'aquelles dias curtos, banhados d'agua, sob um c&eacute;o
+de tempestade. O abbade Ferr&atilde;o, tolhido de rheumatismo,
+j&aacute; n&atilde;o apparecia na quinta. O doutor
+Gouv&ecirc;a,
+<span class="pagenum">[588]</span>
+depois da visita de meia hora, abalava no seu velho
+<em>cabriolet</em>. A unica
+distrac&ccedil;&atilde;o de Amelia era estar &aacute;
+janella por dentro dos vidros: tres vezes vira passar
+Jo&atilde;o Eduardo na estrada; mas elle ao avistal-a baixava
+os olhos ou refugiava-se mais sob o guardachuva.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia
+ser a parteira, apesar do doutor Gouv&ecirc;a ter aconselhado
+a Michaela, matrona d'uma experiencia de
+trinta annos. Mas Amelia &laquo;n&atilde;o queria mais gente no
+segredo&raquo;, e al&eacute;m d'isso Dionysia trazia-lhe as
+noticias
+d'Amaro, que ella sabia pela cozinheira. O senhor
+parocho tinha-se achado t&atilde;o bem na Vieira que
+se ia demorar at&eacute; dezembro. Aquelle &laquo;procedimento
+infame&raquo; indignava-a: n&atilde;o duvidava que o parocho
+queria estar longe quando chegassem os transes, os
+perigos do parto. Al&eacute;m d'isso era decidido d'ha muito
+que a crian&ccedil;a havia de ser entregue a uma ama
+de ao p&eacute; de Ourem, que a criaria na aldeia: e agora
+o tempo chegava, e a ama n&atilde;o estava fallada,
+e o senhor parocho apanhava conchinhas &aacute; beira-mar!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; indecente, Dionysia, exclamava Amelia furiosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! n&atilde;o me parece bem, n&atilde;o. Que eu podia
+fallar &aacute; ama... Mas bem v&ecirc;, s&atilde;o coisas
+muito s&eacute;rias...
+O senhor parocho &eacute; que se encarregou de tudo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; infame!
+<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'isso ella descuid&aacute;ra-se do enxoval&mdash;e alli
+<span class="pagenum">[589]</span>
+estava na vespera de ter a crian&ccedil;a, sem um trapo
+para a cobrir, sem dinheiro para lh'o comprar! A
+Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas pe&ccedil;as
+de enxoval, que uma mulher que ella tivera em casa
+lhe deix&aacute;ra empenhadas. Mas Amelia recus&aacute;ra-se
+a que o seu filho usasse cueiros alheios, trazendo-lhe
+talvez um contagio de doen&ccedil;a ou uma sorte infeliz.
+<br />
+
+<br />
+
+E por orgulho n&atilde;o queria escrever a Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Al&eacute;m d'isso as impertinencias da velha tornavam-se
+odiosas. A pobre D. Josepha, privada dos auxilios
+devotos d'um padre, um verdadeiro padre (n&atilde;o um
+abbade Ferr&atilde;o), sentia a sua velha alma indefesa exposta
+a todas as audacias de Satanaz: a vis&atilde;o singular
+que tivera de S. Francisco Xavier n&uacute;, repetia-se
+agora com uma insistencia pavorosa a respeito
+de todos os santos: era toda uma c&ocirc;rte do c&eacute;o,
+arrojando tunicas e habitos, e bailando-lhe na
+imagina&ccedil;&atilde;o
+sarabandas em p&ecirc;llo: e a velha estava morrendo
+da persegui&ccedil;&atilde;o d'estes espectaculos dispostos
+pelo demonio. Reclam&aacute;ra o padre Silverio, mas parecia
+que um rheumatismo geral tolhia todo o clero
+diocesano: desde o principio do inverno o Silverio
+estava tambem de cama. O abbade da Cortegassa,
+chamado urgentemente, veio&mdash;mas para lhe communicar
+a receita nova que descobrira de fazer bacalhau
+&agrave; biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso
+dava-lhe um humor feroz, que recahia sobre Amelia
+n'uma chuva de impertinencias.
+<br />
+
+<br />
+
+E a boa senhora estava pensando s&eacute;riamente em
+<span class="pagenum">[590]</span>
+mandar a Amor pelo padre Brito&mdash;quando uma tarde,
+ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor parocho
+appareceu!
+<br />
+
+<br />
+
+Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar,
+de casaco novo e botins de verniz. E palrando longamente
+&aacute;cerca da Vieira, dos conhecidos que estavam,
+da pesca que fizera, dos soberbos quinos
+fazia passar n'aquelle triste quarto de doente velha
+todo um sopro vivificante da vida divertida &aacute; beira-mar.
+D. Josepha tinha duas lagrimas nas palpebras
+do gozo de v&ecirc;r o senhor parocho, de o ouvir.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E a mam&atilde; passa bem, disse elle a Amelia. J&aacute;
+tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze
+tost&otilde;es a uma batotinha que se arranjou... E por
+c&aacute; que t&ecirc;m feito?
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a velha rompeu em queixumes amargos:
+Uma solid&atilde;o! Um tempo de chuva! Uma falta de
+amizades! Ai! ella estava alli a perder a sua alma
+n'aquella quinta fatal...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois eu, disse o padre Amaro tra&ccedil;ando a perna,
+dei-me t&atilde;o bem que estou com id&eacute;as de voltar
+para a semana.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, sem se conter, exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa! outra vez!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der
+uma licen&ccedil;a d'um mez, vou l&aacute; passal-o... Fazem-me
+uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e tomo
+um par de banhos... Estava farto de Leiria, e
+d'aquelle aborrecimento...
+<span class="pagenum">[591]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+A velha parecia desolada. O qu&ecirc;, voltar! Deixal-as
+alli a estarrecer de tristeza!
+<br />
+
+<br />
+
+Elle galhofou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora, as senhoras n&atilde;o precisam c&aacute; de mim.
+Est&atilde;o
+bem acompanhadas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o sei, disse a velha com azedume, se
+os <em>outros</em>&mdash;e accentuou com rancor a
+palavra&mdash;se
+os <em>outros</em> n&atilde;o precisam do
+senhor parocho... Eu &eacute;
+que n&atilde;o estou <em>bem
+acompanhada</em>, estou aqui a perder
+a minha alma... Que as companhias que ahi
+v&ecirc;m n&atilde;o d&atilde;o honra nem proveito.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amelia acudiu para contrariar a velha:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E de mais a mais o senhor abbade Ferr&atilde;o tem
+estado doente... Est&aacute; com rheumatismo. Sem elle a
+casa parece uma pris&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre
+Amaro, erguendo-se para sahir, lamentou o bom abbade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitado! Santo homem... Hei de ir v&ecirc;l-o em
+tendo vagar. Pois &aacute;manh&atilde; c&aacute;
+appare&ccedil;o, D. Josepha,
+e havemos de p&ocirc;r essa alma em paz... N&atilde;o se
+incommode,
+snr.<sup>a</sup> D. Amelia, eu sei agora o caminho.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram
+o sal&atilde;o sem uma palavra. Amaro cal&ccedil;ava as suas
+luvas
+novas de pellica preta. E no alto da escada,
+muito ceremoniosamente, tirando o chap&eacute;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora...
+<br />
+
+<br />
+
+E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito
+tranquillo&mdash;como se ella lhe fosse mais indifferente
+<span class="pagenum">[592]</span>
+que os dois le&otilde;es de pedra, que em baixo dormiam
+com o focinho nas patas.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi para o quarto chorar de bru&ccedil;os sobre a cama,
+de raiva e de humilha&ccedil;&atilde;o. O infame! E nem uma
+palavra
+sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval!
+Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado
+por aquella prenhez que elle lhe dera! Nem
+uma queixa irritada por todos os desprezos que ella
+lhe mostr&aacute;ra!... Nada! Cal&ccedil;ava as luvas, com o
+chap&eacute;o ao lado. Que indigno!
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve
+muito tempo fechado no quarto com a velha.
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, impaciente, rondava no sal&atilde;o com os
+olhos como carv&otilde;es. Elle appareceu emfim, como na
+vespera, cal&ccedil;ando as suas luvas com um ar prospero.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o j&aacute;? disse ella n'uma voz que tremia.
+<br />
+
+<br />
+
+-J&aacute;, sim, minha senhora. Estive n'uma praticasinha
+com a D. Josepha.
+<br />
+
+<br />
+
+Tirou o chap&eacute;o, comprimentando muito profundamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia, livida, murmurou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Infame!
+<br />
+
+<br />
+
+Elle olhou-a, como assombrado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora...&mdash;repetiu.
+<br />
+
+<br />
+
+E, como na vespera, desceu vagarosamente a
+larga escadaria de pedra.
+<br />
+
+<br />
+
+O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o
+ao vigario geral. Depois passou a noite escrevendo-lhe
+<span class="pagenum">[593]</span>
+uma carta&mdash;tres paginas de accusa&ccedil;&otilde;es e de
+lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia,
+mandada verbalmente pelo Jo&atilde;osito da quinta, foi
+&laquo;que talvez apparecesse por l&aacute; na
+quinta-feira&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+Teve outra noite de lagrimas&mdash;emquanto na rua
+das Sousas o padre Amaro esfregava as m&atilde;os, no
+regosijo do seu &laquo;famoso estratagema&raquo;. E todavia
+n&atilde;o o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido
+na Vieira, onde f&ocirc;ra para desabafar com o padre-mestre
+e espalhar a m&aacute;goa nos ares da praia;
+f&ocirc;ra l&aacute; que elle o aprendera, o &laquo;famoso
+estratagema&raquo;,
+n'uma <em>soir&eacute;e</em>, ouvindo
+dissertar sobre o amor
+o brilhante Pinheiro, premiado em direito e gloria
+d'Alcoba&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n'isso, minhas senhoras&mdash;dizia o Pinheiro,
+passando a m&atilde;o pela cabelleira de poeta, ao
+semi-c&iacute;rculo
+de damas que pendiam dos seus labios
+d'ouro&mdash;eu n'isso sou da opini&atilde;o de Lamartine (era
+alternadamente da opini&atilde;o de Lamartine ou de Pelletan).
+Digo como Lamartine: a mulher &eacute; igual &aacute;
+sombra; se correis atraz d'<em>ella</em>,
+foge-vos; se fugis
+d'<em>ella</em>, corre atraz de
+v&oacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um <em>muito bem</em>, exclamado com
+convic&ccedil;&atilde;o:
+mas uma senhora de grandes propor&ccedil;&otilde;es,
+m&atilde;i
+de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia
+o Pinheiro), quiz explica&ccedil;&otilde;es, porque nunca tinha
+visto fugir uma sombra.
+<br />
+
+<br />
+
+O Pinheiro deu-as, scientificamente:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; muito facil d'observar, snr.<sup>a</sup> D.
+Catharina.
+Colloque-se vossa excellencia na praia, quando o sol
+<span class="pagenum">[594]</span>
+come&ccedil;a a declinar, com as costas para o astro. Se
+vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a
+sombra, ella vai-lhe adiante, fugindo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Physica recreativa, muito interessante! murmurou
+o escriv&atilde;o de direito ao ouvido d'Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o parocho n&atilde;o o escutava; bailava-lhe j&aacute; na
+imagina&ccedil;&atilde;o &laquo;o famoso
+estratagema&raquo;. Ah! mal voltasse
+a Leiria, havia de tratar Amelia como uma
+sombra e fugir-lhe para ser seguido...&mdash;E o resultado
+delicioso alli estava&mdash;tres paginas de paix&atilde;o,
+com manchas de lagrimas no papel.
+<br />
+
+<br />
+
+Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia
+esperava-o no terra&ccedil;o, d'onde estivera desde
+manh&atilde;
+vigiando a estrada com um binoculo de theatro.
+Correu a abrir-lhe o port&atilde;osinho verde no muro do
+pomar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, por aqui! disse-lhe o parocho, subindo
+atraz d'ella ao terra&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, como estou s&oacute;sinha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&oacute;sinha?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A madrinha est&aacute; a dormir e a Gertrudes foi
+&aacute; cidade... Tenho estado toda a manh&atilde; aqui ao
+sol.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro &iacute;a penetrando pela casa, sem responder;
+diante d'uma porta aberta parou, vendo um grande
+leito de docel, e em redor cadeiras de couro de convento.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; o seu quarto aqui, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle entrou familiarmente, com o chap&eacute;o na
+cabe&ccedil;a.
+<span class="pagenum">[595]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Muito melhor que o da rua da Misericordia. E
+boas vistas... S&atilde;o as terras do Morgado, al&eacute;m...
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia cerr&aacute;ra a porta, e indo direita a elle,
+com os olhos chammejantes:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Porque n&atilde;o respondeste &aacute; minha carta?
+<br />
+
+<br />
+
+Elle riu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; boa! E porque n&atilde;o respondeste tu
+&aacute;s minhas?
+Quem come&ccedil;ou? Foste tu. Dizes que n&atilde;o queres
+peccar mais. Tambem eu n&atilde;o quero peccar mais.
+Acabou-se...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&atilde;o &eacute; isso! exclamou ella pallida
+d'indigna&ccedil;&atilde;o.
+&Eacute; que ha a pensar na crian&ccedil;a, na ama, no
+enxoval... N&atilde;o &eacute; abandonar-me
+p'r'&aacute;qui!...
+<br />
+
+<br />
+
+Elle poz-se s&eacute;rio, e com um tom resentido:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pe&ccedil;o perd&atilde;o... Eu prezo-me de ser um
+cavalheiro.
+Tudo isso ha de ficar arranjado antes de voltar
+p'r'&aacute; Vieira...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tu n&atilde;o voltas p'r'&aacute; Vieira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem &eacute; que diz isso?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu, que n&atilde;o quero que v&aacute;s!
+<br />
+
+<br />
+
+Puzera-lhe fortemente as m&atilde;os nos hombros, retendo-o,
+apoderando-se d'elle: e alli mesmo, sem
+reparar na porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe
+como outr'ora.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+D'ahi a dois dias o abbade Ferr&atilde;o appareceu
+restabelecido do seu ataque de rheumatismo. Contou
+a Amelia a bondade do Morgado, que cheg&aacute;ra a
+<span class="pagenum">[596]</span>
+mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata
+com agua quente, uma gallinha cozida em arroz.
+Mas era sobretudo a Jo&atilde;o Eduardo que devia a caridade
+melhor; todas as suas horas vagas as passava
+ao p&eacute; da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar,
+ficando com elle at&eacute; &aacute; uma hora da noite n'um
+zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!
+<br />
+
+<br />
+
+E de repente, tomando as m&atilde;os ambas d'Amelia,
+exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga-me, d&aacute; licen&ccedil;a que eu lhe conte tudo,
+que lhe explique?... Que arranje que elle perd&ocirc;e.
+e esque&ccedil;a... E que se fa&ccedil;a este casamento, se
+fa&ccedil;a
+esta felicidade?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella balbuciou espantada, toda escarlate:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Assim de repente... N&atilde;o sei... Hei de pensar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pense. E Deus a alumie! disse o velho com
+fervor.
+<br />
+
+<br />
+
+Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo
+portalzinho do pomar de que Amelia lhe dera a chave.
+Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro.
+E apenas Amaro p&ocirc;z o p&eacute; dentro do pomar,
+rompeu pelo silencio da noite escura um t&atilde;o desabrido
+ladrar de c&atilde;es&mdash;que o senhor parocho abalou
+pela estrada, batendo o queixo de terror.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXIV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro n'essa manh&atilde; mandou &aacute; pressa chamar a
+Dionysia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona
+que estava no mercado veio tarde, quando
+elle &aacute; volta da missa acabava d'almo&ccedil;ar.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro queria saber <em>ao certo e
+immediatamente</em>
+para quando estava a <em>coisa</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O bom successo da pequena?... Entre quinze
+a vinte dias... Porqu&ecirc;, ha novidade?
+<br />
+
+<br />
+
+Havia; e o parocho leu-lhe ent&atilde;o em confidencia
+uma carta que tinha ao lado.
+<br />
+
+<br />
+
+Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo
+&laquo;que a S. Joanneira tinha j&aacute; trinta banhos e
+queria
+voltar! Eu, (acrescentava), perco quasi todas as semanas
+tres, quatro banhos, de proposito para os espa&ccedil;ar
+e dar tempo, porque c&aacute; a minha mulher j&aacute;
+<span class="pagenum">[598]</span>
+sabe que eu sem os meus cincoenta n&atilde;o vai. Ora
+j&aacute; tenho quarenta, veja l&aacute; voss&ecirc;.
+Demais por aqui
+come&ccedil;a a fazer frio dev&eacute;ras. J&aacute; se tem
+retirado muita
+gente. Mande-me pois dizer pela volta do correio
+em que estado est&atilde;o as coisas.&raquo; E n'um
+<em>post-scriptum</em>
+dizia: &laquo;Tem voss&ecirc; pensado que destino se ha
+de dar ao <em>fructo</em>?&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a
+Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego,
+que a Dionysia devia levar ao correio: &laquo;A
+coisa p&oacute;de estar prompta d'aqui a vinte dias. Suspenda
+por todo o modo a volta da m&atilde;i! Isso de
+modo nenhum! Diga-lhe que a pequena n&atilde;o escreve
+nem vai, porque a excellentissima mana passa
+sempre adoentada.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+E tra&ccedil;ando a perna:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora, Dionysia, como diz o nosso conego,
+que destino se ha de dar ao <em>fructo</em>?
+<br />
+
+<br />
+
+A matrona arregalou os olhos de surpreza:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado
+tudo... Que se ia dar a crian&ccedil;a a criar f&oacute;ra da
+terra...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro, est&aacute; claro, interrompeu o parocho
+com impaciencia. Se a crian&ccedil;a nascer viva &eacute;
+evidente
+que se ha de dar a criar, e que ha de ser
+f&oacute;ra da terra... Mas ahi &eacute; que est&aacute;!
+Quem ha de
+ser a ama? &Eacute; isso que eu quero que voss&ecirc; me
+arranje.
+Vai sendo tempo...
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia pareceu muito embara&ccedil;ada. Nunca
+<span class="pagenum">[599]</span>
+gost&aacute;ra de inculcar amas. Ella conhecia uma boa,
+mulher forte e de muito leite, pessoa de confian&ccedil;a;
+mas infelizmente entr&aacute;ra no hospital, doente...
+Sabia d'outra tambem, at&eacute; tivera negocios com
+ella. Era uma Joanna Carreira. Mas n&atilde;o convinha
+porque vivia justamente nos Poyaes, ao p&eacute; da
+Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual n&atilde;o conv&eacute;m! exclamou o parocho. Que
+tem que viva na Rico&ccedil;a?... Em a rapariga convalescendo
+as senhoras v&ecirc;m p'r'&aacute; cidade, e n&atilde;o se
+falla
+mais na Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar
+o queixo. Tambem sabia d'outra. Essa morava
+para o lado da Barrosa, a boa distancia... Criava
+em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mulher fraca, doente?
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia chegou-se ao parocho, e baixando a
+voz:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, menino, eu n&atilde;o gosto d'accusar ninguem.
+Mas, est&aacute; provado, &eacute; uma tecedeira d'anjos!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Uma tecedeira d'anjos!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que &eacute; isso? Que significa isso? perguntou
+o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia gaguejou-lhe uma explica&ccedil;&atilde;o. Eram
+mulheres que recebiam crian&ccedil;as a criar em casa. E
+sem excep&ccedil;&atilde;o as crian&ccedil;as morriam...
+Como tinha
+havido uma muito conhecida que era tecedeira, e
+<span class="pagenum">[600]</span>
+as criancinhas iam para o c&eacute;o... D'ahi &eacute; que
+vinha
+o nome.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o as crian&ccedil;as morrem sempre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sem falhar.
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho passeava devagar pelo quarto, enrolando
+o seu cigarro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga l&aacute; tudo, Dionysia. As mulheres matam-n'as?
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a excellente matrona declarou que n&atilde;o
+queria accusar ninguem! Ella n&atilde;o f&ocirc;ra espreitar.
+N&atilde;o sabia o que se passava nas casas alheias. Mas
+as crian&ccedil;as morriam todas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas quem vai ent&atilde;o entregar uma crian&ccedil;a a
+uma mulher d'essas?
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia sorriu, apiedada d'aquella innocencia
+d'homem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Entregam, sim senhor, &aacute;s duzias!
+<br />
+
+<br />
+
+Houve um silencio. O parocho continuava o seu
+passeio do lavatorio para a janella, de cabe&ccedil;a baixa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que proveito tira a mulher, se as crian&ccedil;as
+morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que se lhe paga um anno de cria&ccedil;&atilde;o
+adiantado,
+senhor parocho. A dez tost&otilde;es ao mez, ou
+quartinho, segundo as posses...
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho agora, encostado &aacute; janella, rufava devagar
+nos vidros.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que fazem as auctoridades, Dionysia?
+<br />
+
+<br />
+
+A boa Dionysia encolheu silenciosamente os hombros.
+<span class="pagenum">[601]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho ent&atilde;o sentou-se, bocejou, e estirando
+as pernas disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer
+&eacute; fallar &aacute; tal ama que vive ao p&eacute; da
+Rico&ccedil;a, &aacute;
+Joanna Carreira. Eu arranjarei isso...
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia fallou ainda das pe&ccedil;as d'enxoval que
+j&aacute; tinha comprado por conta do parocho, d'um
+ber&ccedil;o
+muito barato em segunda m&atilde;o que vira no Z&eacute;
+Carpinteiro&mdash;e ia sahir com a carta para o correio,
+quando o parocho erguendo-se e galhofando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; tia Dionysia, essa coisa da <em>tecedeira
+d'anjos</em>
+&eacute; uma historia, hein?
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho
+sabia que ella n&atilde;o era mulher d'intrigas. Conhecia
+a tecedeira d'anjos ha mais d'oito annos, de lhe
+fallar e de a v&ecirc;r na cidade quasi todas as semanas.
+Ainda no sabbado passado a vira sahir da taberna
+do Grego... O senhor parocho j&aacute; tinha ido &aacute;
+Barrosa?
+<br />
+
+<br />
+
+Esperou a resposta do parocho, e continuou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois bem, sabe o come&ccedil;o da freguezia. Ha
+um muro cahido. Depois &eacute; um caminho que desce.
+Ao fundo d'esse corregosito encontra um po&ccedil;o
+atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem
+um alpendre. &Eacute; l&aacute; que ella vive... Chama-se
+Carlota...
+Isto &eacute; p'ra lhe mostrar que sei, amiguinho!
+<br />
+
+<br />
+
+O parocho ficou toda a manh&atilde; em casa, passeando
+pelo quarto, alastrando o ch&atilde;o de pontas de cigarros.
+Alli estava agora diante d'aquelle episodio
+<span class="pagenum">[602]</span>
+fatal que at&eacute; ahi f&ocirc;ra apenas um cuidado
+distante&mdash;disp&ocirc;r
+do filho!
+<br />
+
+<br />
+
+Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida,
+na aldeia. A m&atilde;i, naturalmente, havia
+de querer ir a todo o momento v&ecirc;l-o, a ama poderia
+fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia,
+o <em>filho do parocho</em>... Algum
+invejoso, que
+lhe cubi&ccedil;asse a parochia, poderia denuncial-o ao senhor
+vigario geral. Escandalo, serm&atilde;o, devassa: e,
+se n&atilde;o fosse suspenso, poderia como o pobre Brito
+ser mandado para longe, para a serra, outra vez
+para os pastores... Ah! se o <em>fructo</em>
+nascesse morto!
+Que solu&ccedil;&atilde;o natural e perpetua! E para a
+crian&ccedil;a,
+uma felicidade! Que destino podia elle ter n'este
+duro mundo? Era o <em>engeitado</em>, era o
+<em>filho do padre</em>.
+Elle era pobre, a m&atilde;i pobre... O rapaz cresceria
+na miseria, vadiando, apanhando o estrume das
+bestas, ramelloso e tosco... De necessidade em necessidade
+iria conhecendo todas as f&oacute;rmas do inferno
+humano: os dias sem p&atilde;o, as noites regeladas,
+a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga
+na vida, a valla na morte... E se morresse&mdash;era
+um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...
+<br />
+
+<br />
+
+E continuava passeando tristemente pelo quarto.
+Realmente o nome era bem posto, <em>tecedeira
+d'anjos</em>...
+Com raz&atilde;o, quem prepara uma crian&ccedil;a para
+a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os
+trabalhos e para as lagrimas... Mais vale torcer-lhe
+o pesco&ccedil;o, e mandal-a direita para a eternidade
+<span class="pagenum">[603]</span>
+bemaventurada! Olha elle! Que vida a sua, n'esses
+trinta annos atraz! Uma infancia melancolica,
+com aquella p&ecirc;ga da marqueza d'Alegros; depois
+a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro;
+e d'ahi as clausuras do seminario, a neve
+constante de Feir&atilde;o, e alli em Leiria tantos transes,
+tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o craneo
+ao nascer, estava agora com duas azas brancas,
+cantando nos c&oacute;ros eternos.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas emfim n&atilde;o havia que philosophar: era partir
+para Poyaes e fallar &aacute; ama, &aacute; snr.<sup>a</sup>
+Joanna
+Carreira.
+<br />
+
+<br />
+
+Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa.
+Ao p&eacute; da ponte veio-lhe por&eacute;m de repente a
+id&eacute;a,
+a curiosidade de ir &aacute; Barrosa v&ecirc;r a
+<em>tecedeira</em>...
+N&atilde;o lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura
+da mulher, os aspectos sinistros do sitio... Demais
+como parocho, como auctoridade ecclesiastica,
+devia observar aquelle peccado organisado n'um recanto
+d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo
+denuncial-o ao senhor vigario geral ou ao secretario
+do governo civil...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas.
+Por aquella tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem
+um passeio a cavallo. N&atilde;o hesitou, ent&atilde;o; foi
+alugar
+uma egoa &aacute; estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco,
+d'espora no p&eacute; esquerdo, choutava a direito pelo
+caminho da Barrosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Ao chegar ao corrego, de que lhe fall&aacute;ra a Dionysia,
+<span class="pagenum">[604]</span>
+apeou, foi andando com a egoa pela arreata.
+A tarde estava admiravel; muito alto no azul, uma
+grande ave fazia semi-circulos vagarosos.
+<br />
+
+<br />
+
+Encontrou emfim o po&ccedil;o atulhado ao p&eacute; de dois
+castanheiros onde passaros ainda chilreavam; adiante
+n'um terreno plano, muito isolada, l&aacute; estava a
+casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe
+na unica janella do lado, accendendo-a n'um resplendor
+d'ouro e braza; e, muito delgado, elevava-se
+da chamin&eacute; um fumo claro no ar sereno.
+<br />
+
+<br />
+
+Uma grande paz estendia-se em redor; no monte,
+escuro da rama dos pinheiros baixos, a capellinha
+da Barrosa punha a alvura alegre da sua parede
+muito caiada.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ia imaginando ent&atilde;o a figura da
+<em>tecedeira</em>;
+sem saber porque, suppunha-a muito alta, com
+um car&atilde;o trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.
+<br />
+
+<br />
+
+Defronte da casa prendeu a egoa &aacute; cancella, e
+olhou pela porta aberta: era uma cozinha terrea, de
+grande lareira, com sahida para o pateo estradado
+de matto onde dois bacorinhos fo&ccedil;avam. Na prateleira
+da chamin&eacute; rebrilhava a lou&ccedil;a branca. Dos
+lados pendiam grandes cassarolas de cobre, d'um lustro
+de casa rica. N'um velho armario meio aberto
+branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem
+que uma claridade parecia sahir do aceio e do arranjo
+das coisas.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ent&atilde;o bateu forte as palmas. Uma r&ocirc;la
+<span class="pagenum">[605]</span>
+pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada
+da parede. Depois chamou alto:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhora Carlota!
+<br />
+
+<br />
+
+Immediatamente do lado do pateo uma mulher
+appareceu, com um crivo na m&atilde;o. E Amaro, surprehendido,
+viu uma agradavel creatura de quasi quarenta
+annos, forte de peitos, ampla de encontros,
+muito branca no pesco&ccedil;o, com duas ricas arrecadas,
+e uns olhos negros que lhe lembraram os d'Amelia
+ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joanneira.
+<br />
+
+<br />
+
+Assombrado, balbuciou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Creio que me enganei... Aqui &eacute; que mora a
+senhora Carlota?
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o se engan&aacute;ra, era ella; mas com a
+id&eacute;a que
+a figura medonha &laquo;que tecia os anjos&raquo; devia estar
+algures, agachada n'um v&atilde;o tenebroso da casa, perguntou
+ainda:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossemec&ecirc; vive aqui s&oacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+A mulher olhou-o desconfiada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, disse por fim, vivo com o meu
+marido...
+<br />
+
+<br />
+
+Justamente o marido sahia do pateo,&mdash;medonho,
+esse, quasi an&atilde;o, com a cabe&ccedil;a embrulhada
+n'um len&ccedil;o e muito enterrada nos hombros, a face
+d'uma amarellid&atilde;o de cera oleosa e lustrosa; no
+queixo annelavam-se os p&ecirc;llos raros d'uma barba
+negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas,
+vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos
+d'insomnia e de bebedeira.
+<span class="pagenum">[606]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Para o seu servi&ccedil;o, vossa senhoria quer alguma
+coisa? disse, muito collado &aacute; saia da mulher.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando
+uma historia que ia forjando laboriosamente. Era
+uma parente que ia ter o seu bom successo. O
+marido n&atilde;o pud&eacute;ra vir fallar-lhes porque estava
+doente... Queriam uma ama para lhes ir para casa,
+e tinham-lhe dito...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, f&oacute;ra de casa, n&atilde;o.
+C&aacute; em casa&mdash;disse o
+an&atilde;o que n&atilde;o se despegava das saias da mulher,
+mirando o parocho de lado com o seu medonho olho
+injectado.
+<br />
+
+<br />
+
+Ah, ent&atilde;o tinham-n'o informado mal... Sentia;
+mas o que o parente queria era uma ama para
+casa.
+<br />
+
+<br />
+
+Veio dirigindo-se para a egoa, devagar; parou,
+e abotoando o casac&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas em casa recebem crian&ccedil;as para
+cria&ccedil;&atilde;o?...&mdash;perguntou
+ainda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Convindo o ajuste, disse o an&atilde;o que o seguia.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro arranjou a espora no p&eacute;, deu um pux&atilde;o
+ao estribo, demorando-se, rondando em torno da
+cavalgadura:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; necessario trazer-lh'a c&aacute;, j&aacute; se
+sabe.
+<br />
+
+<br />
+
+O an&atilde;o voltou-se, trocou um olhar com a mulher
+que fic&aacute;ra &aacute; porta da cozinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tambem se lhe vai buscar, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro batia palmadas no pesco&ccedil;o da egoa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas sendo a coisa de noite, agora com este
+frio, &eacute; matar a crian&ccedil;a...
+<span class="pagenum">[607]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram
+que n&atilde;o lhe fazia mal. Havendo, j&aacute; se sabe,
+carinho e agasalho...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas
+tardes, e trotou pelo corrego.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Amelia agora come&ccedil;ava a andar assustada. De
+dia e de noite s&oacute; pensava n'aquellas horas, que se
+avisinhavam, em que devia sentir chegarem as d&ocirc;res.
+Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha
+tonturas, pervers&otilde;es de gosto&mdash;que o doutor Gouv&ecirc;a
+observava, franzindo a testa descontente. As
+noites eram m&aacute;s, n'uma turba&ccedil;&atilde;o de
+pesad&ecirc;los. J&aacute;
+n&atilde;o eram as allucina&ccedil;&otilde;es religiosas:
+isso cess&aacute;ra
+n'uma subita aplaca&ccedil;&atilde;o de todo o terror devoto:
+n&atilde;o sentiria menos temor de Deus, se j&aacute; fosse uma
+santa canonisada. Eram outros medos, sonhos em
+que o parto se lhe representava de modos monstruosos:
+ora era um s&ecirc;r medonho que lhe saltava das
+entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era
+uma cobra infindavel que lhe sahia de dentro, durante
+horas, como uma fita de leguas, enrolando-se
+no quarto em roscas successivas que ganhavam a
+altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas
+que a deixavam prostrada.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas anciava por ter a crian&ccedil;a. Estremecia &aacute;
+id&eacute;a
+de v&ecirc;r um dia inesperadamente a m&atilde;i apparecer na
+Rico&ccedil;a. Ella escrevera-lhe, queixando-se do senhor
+<span class="pagenum">[608]</span>
+conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que
+j&aacute; reinavam, da solid&atilde;o que se ia fazendo na
+praia.
+Al&eacute;m d'isso D. Maria da Assump&ccedil;&atilde;o
+volt&aacute;ra; felizmente,
+uma noite providencialmente gelada dera-lhe
+durante a jornada uma inflamma&ccedil;&atilde;o dos
+bronchios&mdash;e
+estava de cama para semanas, segundo
+dizia o doutor Gouv&ecirc;a. O Libaninho, esse, tambem
+viera &aacute; Rico&ccedil;a; e sahira lastimando-se de
+n&atilde;o ter
+visto a Amelinha &laquo;que tinha n'esse dia enxaqueca&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se isto se demora mais quinze dias, vem-se
+a descobrir tudo, dizia ella, choramigando, a Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Paciencia, filha. N&atilde;o se p&oacute;de for&ccedil;ar
+a natureza...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella,
+o que tu me tens feito soffrer!
+<br />
+
+<br />
+
+Elle calava-se resignado&mdash;muito bom, muito
+terno agora com ella. Vinha-a v&ecirc;r quasi todas as
+manh&atilde;s, porque n&atilde;o queria pelas tardes encontrar
+o abbade Ferr&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Tranquillis&aacute;ra-a a respeito da ama, dizendo-lhe
+que fall&aacute;ra &aacute; mulher da Rico&ccedil;a
+inculcada pela Dionysia.
+Era uma escolha rica a snr.<sup>a</sup> Joanna Carreira!
+Mulher forte como um carvalho, com barricas
+de leite, e dentes de marfim...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fica-me t&atilde;o longe para vir v&ecirc;r depois a
+crian&ccedil;a...&mdash;suspirava ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos
+de m&atilde;i. Desesperava-se em n&atilde;o poder ella
+mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz&mdash;porque
+havia de ser um rapaz!&mdash;se chamasse
+<span class="pagenum">[609]</span>
+Carlos. Scismava-o j&aacute; homem, e official de cavallaria.
+Enternecia-se com a esperan&ccedil;a de o v&ecirc;r gatinhar...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, eu &eacute; que o queria criar, se n&atilde;o fosse a
+vergonha!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os
+dias era a id&eacute;a de elle ser um engeitadinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario
+&laquo;que lhe inspir&aacute;ra Nossa Senhora&raquo;: ella
+casaria
+j&aacute; com Jo&atilde;o Eduardo, mas o rapaz devia por
+uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que
+o anjinho n&atilde;o fosse um engeitado, casava at&eacute; com
+um calceteiro da estrada! E apertava as m&atilde;os do
+abbade, n'uma supplica&ccedil;&atilde;o loquaz. Que convencesse
+Jo&atilde;o Eduardo, que d&eacute;sse um pap&aacute; ao
+Carlinhos!
+Queria ajoelhar aos p&eacute;s d'elle, do senhor abbade,
+que era o seu pai e o seu protector.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse &eacute;
+tambem o meu desejo, como lhe disse. E ha de arranjar-se,
+mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado
+d'aquella excita&ccedil;&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois, d'ahi a dias, foi outra exalta&ccedil;&atilde;o;
+descobrira
+de repente, uma manh&atilde;, que n&atilde;o devia trahir
+Amaro, &laquo;porque era o pap&aacute; do seu
+Carlinhos&raquo;.
+E disse-o ao abbade; fez c&oacute;rar os sessenta annos do
+bom velho, palrando muito convencidamente dos
+seus deveres d'esposa para com o parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade, que ignorava as visitas do parocho todas
+as manh&atilde;s, assombrou-se.
+<span class="pagenum">[610]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Minha senhora, que est&aacute; a dizer? que est&aacute; a
+dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei
+que lhe tinham passado essas loucuras.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas &eacute; o pai do meu filho, senhor abbade, disse
+ella, olhando-o muito s&eacute;ria.
+<br />
+
+<br />
+
+Fatigou ent&atilde;o Amaro toda uma semana com uma
+ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que
+era o &laquo;pap&aacute; do seu Carlinhos&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente.
+Obrigado. N&atilde;o me gabo da honra...
+<br />
+
+<br />
+
+Ella chorava, ent&atilde;o, aninhada no sof&aacute;. Era
+necessaria
+toda uma complica&ccedil;&atilde;o de caricias para a
+calmar. Fazia-o sentar n'um banquinho junto d'ella;
+tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, co&ccedil;ando-lhe
+devagarinho a cor&ocirc;a; queria que se tirasse
+a photographia ao Carlinhos para a trazerem ambos
+n'uma medalha ao pesco&ccedil;o; e se ella morresse,
+elle havia de levar o Carlinhos &aacute; sepultura, ajoelhal-o,
+p&ocirc;r-lhe as m&atilde;osinhas, fazel-o rezar pela
+mam&atilde;.
+Atirava-se ent&atilde;o para a almofada, tapando o
+rosto com as m&atilde;os:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre
+de mim!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
+<br />
+
+<br />
+
+Ah, aquellas manh&atilde;s na Rico&ccedil;a! Eram para elle
+como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir
+&aacute; velha escutar-lhe as lamurias. Depois, era aquella
+hora com Amelia, que o torturava com as pieguices
+d'um sentimentalismo hysterico,&mdash;estirada no sof&aacute;,
+<span class="pagenum">[611]</span>
+grossa como um tonel, com a face entumecida, os
+olhos papudos...
+<br />
+
+<br />
+
+N'uma d'essas manh&atilde;s, Amelia, que se queixava
+de caimbras, quiz dar um passeio pelo quarto apoiada
+a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho
+robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo
+no caminho, passos de cavallos: chegaram &aacute; janella&mdash;mas
+Amaro recuou vivamente, deixando Amelia
+que embasbac&aacute;ra com a face contra a vidra&ccedil;a. Na
+estrada, galhardamente montado n'uma egoa baia,
+passava Jo&atilde;o Eduardo de paletot branco e chap&eacute;o
+alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um
+poney, outro acorreado n'um burro; e atraz, a distancia,
+n'um passo de respeito e de cortejo, um criado
+de farda, de bota de cano e espor&otilde;es enormes,
+com uma libr&eacute; muito larga que lhe fazia na ilharga
+rugas grotescas, e no chap&eacute;o a roseta escarlate. Ella
+fic&aacute;ra assombrada, seguindo-os at&eacute; que as costas
+do
+lacaio desappareceram &agrave; esquina da casa. Sem uma
+palavra, veio sentar-se no sof&aacute;. Amaro, que continuava
+passeando pelo quarto, teve ent&atilde;o um risinho
+sarcastico:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O idiota, de lacaio &aacute; retaguarda!
+<br />
+
+<br />
+
+Ella n&atilde;o respondeu, muito escarlate. E Amaro,
+chocado, sahiu atirando com a porta, foi para o
+quarto de D. Josepha contar-lhe a cavalgada, e vituperar
+o Morgado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um excommungado de criado de farda! exclamava
+a boa senhora, com as m&atilde;os apertadas na
+<span class="pagenum">[612]</span>
+cabe&ccedil;a. Que vergonha, senhor parocho, que vergonha
+para a nobreza d'estes reinos!
+<br />
+
+<br />
+
+Desde esse dia Amelia n&atilde;o tornou a choramigar,
+se pela manh&atilde; o senhor parocho n&atilde;o vinha. Quem
+esperava agora com impaciencia era o senhor abbade
+Ferr&atilde;o, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o
+n'uma cadeira junto ao canap&eacute;: e depois de rodeios
+demorados d'ave que tenteia a presa, cahia sobre
+a pergunta fatal&mdash;se tinha visto o senhor Jo&atilde;o
+Eduardo?
+<br />
+
+<br />
+
+Queria saber o que elle dissera, se fall&aacute;ra n'ella,
+se a avist&aacute;ra &aacute; janella. Torturava-o com
+curiosidades
+sobre a casa do Morgado, a mobilia da sala,
+o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de
+farda servia &aacute; mesa...
+<br />
+
+<br />
+
+E o bom abbade respondia com paciencia&mdash;contente
+de a v&ecirc;r esquecida do parocho, occupada de
+Jo&atilde;o Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle casamento
+se faria: ella evitava, de resto, pronunciar
+sequer o nome d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu
+ao abbade que lhe perguntava se o senhor parocho
+volt&aacute;ra &aacute; Rico&ccedil;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, vem pela manh&atilde; v&ecirc;r a madrinha... Mas
+eu n&atilde;o lhe appare&ccedil;o, que nem estou decente...
+<br />
+
+<br />
+
+Todo o tempo que podia estar de p&eacute;, passava-o
+agora &aacute; janella, muito arranjada da cinta para cima
+que era o que se podia v&ecirc;r da estrada&mdash;enxovalhada
+das saias para baixo. Estava esperando Jo&atilde;o
+Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em
+quando, com effeito, o gozo de os v&ecirc;r passar, n'aquelle
+<span class="pagenum">[613]</span>
+passo bem lan&ccedil;ado de cavallos de pre&ccedil;o, sobretudo
+o da egoa baia de Jo&atilde;o Eduardo, que elle defronte
+da Rico&ccedil;a fazia sempre ladear, de chicote atravessado
+e perna &aacute; Marialva, como lhe ensin&aacute;ra o Morgado.
+Mas era o lacaio, sobretudo, que a encantava: e
+com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso,
+at&eacute; que &aacute; volta da estrada via desapparecer o
+pobre
+velho, de dorso corcovado, com a gola da farda at&eacute;
+&aacute; nuca e as pernas bamboleantes.
+<br />
+
+<br />
+
+E para Jo&atilde;o Eduardo que delicia aquelles passeios
+com os Morgaditos, na egoa baia! Nunca deixava
+de ir &aacute; cidade: fazia-lhe bater o
+cora&ccedil;&atilde;o o som
+das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da
+Amparo da botica, diante do cartorio do Nunes que
+tinha a sua banca ao p&eacute; da janella, diante da Arcada,
+diante do senhor administrador que l&aacute; estava na
+varanda de binoculo para a Telles&mdash;e o seu desgosto
+era n&atilde;o poder entrar com a egoa, os Morgaditos
+e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho que
+era no interior da casa.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes,
+que voltando &aacute;s duas horas da Barrosa, ao
+chegar ao Po&ccedil;o das Bentas e ao subir para o caminho
+de carros, viu de repente o senhor padre Amaro
+que descia montado n'um garrano. Immediatamente
+Jo&atilde;o Eduardo fez caracolar a egoa. O caminho
+era t&atilde;o estreito, que apesar de se chegarem &agrave;s
+sebes quasi ro&ccedil;aram os joelhos&mdash;e Jo&atilde;o Eduardo
+p&ocirc;de ent&atilde;o, do alto da sua egoa de cincoenta
+moedas,
+agitando amea&ccedil;adoramente o chicote, esmagar
+<span class="pagenum">[614]</span>
+com um olhar o padre Amaro que se encolhia muito
+pallido, com a barba por fazer, a face biliosa, esporeando
+ferozmente o garrano ronceiro. No alto do
+caminho Jo&atilde;o Eduardo ainda parou, voltou-se sobre
+a sella, e viu o parocho que apeava &aacute; porta do casebre
+isolado onde ha pouco, ao passar, os Morgaditos
+tinham rido &laquo;do an&atilde;o&raquo;.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Quem vive alli? perguntou Jo&atilde;o Eduardo ao
+lacaio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Uma Carlota... M&aacute; gente, snr. Jo&atilde;osinho!
+<br />
+
+<br />
+
+Ao passar na Rico&ccedil;a, Jo&atilde;o Eduardo, como sempre,
+poz a passo a egoa baia. Mas n&atilde;o viu por traz
+dos vidros a costumada face pallida sob o len&ccedil;o
+escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas;
+e ao port&atilde;o, desatrellado com os var&otilde;es em
+terra, o <em>cabriolet</em> do doutor
+Gouv&ecirc;a.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+&Eacute; que tinha chegado emfim o dia! N'essa manh&atilde;
+viera da Rico&ccedil;a um mo&ccedil;o da quinta com um bilhete
+de Amelia quasi inintelligivel&mdash;<em>Dionysia depressa,
+a coisa chegou!</em> Trazia ordem tambem de ir chamar
+o senhor doutor Gouv&ecirc;a. Amaro foi elle mesmo
+avisar a Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria
+D. Josepha, lhe inculc&aacute;ra uma ama&mdash;que elle
+j&aacute; ajust&aacute;ra, grande mulher, rija como um
+castanheiro.
+E agora combinaram rapidamente que n'essa
+noite Amaro se postaria com a ama &aacute; portinha do
+<span class="pagenum">[615]</span>
+pomar, e Dionysia viria dar-lhe a crian&ccedil;a bem atabafada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute;s nove da noite, Dionysia. E n&atilde;o nos
+fa&ccedil;a
+esperar!&mdash;recommendou-lhe ainda Amaro vendo-a
+abalar n'um espalhafato.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face
+a face com aquella difficuldade que elle sentia como
+uma coisa viva fixal-o e interrogal-o:&mdash;Que havia
+de fazer &aacute; crian&ccedil;a? Tinha ainda tempo d'ir aos
+Poyaes ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionysia
+conhecia; ou podia montar a cavallo e ir &aacute;
+Barrosa fallar &aacute; Carlota... E alli estava, diante
+d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia.
+Queria serenar, discutir aquelle caso como se fosse
+um ponto de theologia, pesando-lhe os
+<em>pr&oacute;s</em> e os
+<em>contras</em>: mas tinha temerariamente
+diante de si, em
+logar de dois argumentos, duas vis&otilde;es:&mdash;a crian&ccedil;a
+a crescer e a viver nos Poyaes, ou a crian&ccedil;a esganada
+pela Carlota a um canto da estrada da Barrosa...&mdash;E,
+passeando pelo quarto, suava d'angustia,
+quando no patamar a voz inesperada do Libaninho
+gritou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Abre, parochosinho, que sei que est&aacute;s em casa!
+<br />
+
+<br />
+
+Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a
+m&atilde;o, offerecer-lhe uma cadeira. Mas o Libaninho felizmente
+n&atilde;o se podia demorar. Pass&aacute;ra na rua, e
+subira a saber se o amigo parocho tinha noticias
+d'aquellas santinhas da Rico&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&atilde;o bem, v&atilde;o bem, disse Amaro que obrigava
+a face a sorrir, a prazentear.
+<span class="pagenum">[616]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o tenho podido ir l&aacute;, que tenho andado
+mais occupado!... Estou de servi&ccedil;o no quartel...
+N&atilde;o te rias, parochosinho, que estou l&aacute; fazendo
+muita
+virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes
+das chagas de Christo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Andas a converter o regimento, disse Amaro
+que mexia nos papeis da mesa, passeava, n'uma
+inquieta&ccedil;&atilde;o
+d'animal preso.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o &eacute; para as minhas for&ccedil;as,
+parocho, que se
+eu pudesse!... Olha, agora vou eu levar a um sargento
+uns bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha,
+v&atilde;o cheios de virtude. Hontem dei outros
+iguaes a um anspe&ccedil;ada, perfeito rapaz, um amor de
+rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por baixo da camisola...
+Perfeito rapaz!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Devias deixar esses cuidados pelo regimento
+ao coronel, disse Amaro abrindo a janella, abafando
+d'impaciencia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava
+o regimento. Pois adeus, parochosinho. Est&aacute;s
+amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei o
+que isso &eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+Ia a sahir, mas &aacute; porta, parando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, dize c&aacute;, parochosinho, dize c&aacute;: tu ouviste
+alguma coisa?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;De qu&ecirc;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que
+o nosso chantre declar&aacute;ra (palavras do Saldanhinha)
+que lhe constava que ia na cidade um escandalo
+com um senhor ecclesiastico... Mas n&atilde;o disse
+<span class="pagenum">[617]</span>
+<em>quem</em> nem o
+<em>qu&ecirc;</em>... O Saldanha quil-o
+sondar, mas
+o chantre diz que recebera s&oacute; uma denuncia vaga,
+sem nome... Tenho estado a pensar: quem ser&aacute;?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pataratas do Saldanha...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem
+folga s&atilde;o os impios... Quando f&ocirc;res pela
+Rico&ccedil;a d&aacute;
+recados &aacute;quellas santinhas...
+<br />
+
+<br />
+
+E pulou pelos degraus a ir levar &laquo;a virtude&raquo; ao
+batalh&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fic&aacute;ra aterrado. Era elle decerto, eram os
+seus amores com Amelia que j&aacute; iam chegando ao vigario
+geral em denuncias tortuosas! E alli vinha agora
+aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar
+como uma prova viva!... Parecia-lhe extraordinario,
+quasi sobrenatural, ter o Libaninho, que em
+dois annos n&atilde;o lhe viera a casa duas vezes, ter o
+Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando
+elle estava alli n'uma batalha com a consciencia.
+Era como a Providencia, que sob a f&oacute;rma grotesca
+do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe:
+&laquo;N&atilde;o deixes viver quem te p&oacute;de trazer o
+escandalo! Olha que j&aacute; se suspeita de ti!&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+Era decerto Deus apiedado que n&atilde;o queria que
+houvesse na terra mais um engeitado, mais um miseravel,&mdash;e
+que <em>reclamava o seu anjo</em>!...
+<br />
+
+<br />
+
+N&atilde;o hesitou: partiu para a estalagem do Cruz,
+e d'ahi a cavallo para a casa de Carlota.
+<br />
+
+<br />
+
+Demorou-se l&aacute; at&eacute; &aacute;s quatro horas.
+<br />
+
+<br />
+
+De volta a casa atirou o chap&eacute;o para cima da cama,
+<span class="pagenum">[618]</span>
+e sentiu emfim um allivio de todo o seu s&ecirc;r.
+Estava acabado! L&aacute; fall&aacute;ra &aacute; Carlota e
+ao an&atilde;o; l&aacute;
+lhe pag&aacute;ra um anno adiantado; agora era esperar
+pela noite!...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas na solid&atilde;o do quarto toda a sorte de
+imagina&ccedil;&otilde;es
+morbidas o assaltavam: via a Carlota a esganar
+a criancinha r&ocirc;xa; via os cabos de policia mais
+tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da
+administra&ccedil;&atilde;o
+redigindo sobre um joelho o auto de corpo
+de delicto, e elle, de batina, arrastado para a cadeia
+de S. Francisco, em ferros, ao lado do an&atilde;o!
+Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar &aacute;
+Barrosa desfazer o ajuste. Mas uma inercia retinha-o.
+Depois, nada o for&ccedil;ava &aacute; noite a entregar a
+crian&ccedil;a
+&aacute; Carlota... Podia leval-a bem agasalhada &aacute;
+Joanna
+Carreira, a boa ama dos Poyaes...
+<br />
+
+<br />
+
+Para escapar &aacute;quellas id&eacute;as que lhe faziam sob
+o craneo um ruido de tormenta, sahiu, foi v&ecirc;r Natario
+que j&aacute; se erguia&mdash;e que lhe gritou immediatamente
+do fundo da poltrona:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o voss&ecirc; viu, Amaro! O idiota, de lacaio
+atraz!
+<br />
+
+<br />
+
+Jo&atilde;o Eduardo pass&aacute;ra-lhe na rua, na egoa baia,
+com os Morgadinhos; e Natario desde ent&atilde;o rugia de
+impaciencia de est&aacute;r alli amarrado &aacute; cadeira e
+n&atilde;o
+poder recome&ccedil;ar a campanha, expulsal-o por uma
+boa intriga da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa
+e o lacaio.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas n&atilde;o as perde, em Deus me dando pernas...
+<span class="pagenum">[619]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deixe l&aacute; o homem, Natario, disse Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Deixal-o! quando tinha uma id&eacute;a prodigiosa&mdash;que
+era provar ao Morgado, com documentos, que o
+Jo&atilde;o Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao
+amigo Amaro?
+<br />
+
+<br />
+
+Era engra&ccedil;ado, com effeito. O homem n&atilde;o deixava
+de o merecer, s&oacute; pela maneira como olhava
+para a gente de bem, do alto da egoa...&mdash;E Amaro
+fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro,
+de manh&atilde;, no caminho de carros da Barrosa.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; claro! exclamou Natario. Para que somos
+n&oacute;s sacerdotes de Christo? Para exaltar os humildes
+e derrubar os soberbos.
+<br />
+
+<br />
+
+D'alli Amaro foi v&ecirc;r D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o&mdash;que
+j&aacute; se erguera tambem&mdash;que lhe fez a historia
+da sua bronchite e a enumera&ccedil;&atilde;o dos ultimos
+peccados:
+o peor era que, para se distrahir um bocado
+na convalescen&ccedil;a, recostava-se por traz da
+vidra&ccedil;a,
+e um carpinteiro que m&oacute;rava defronte embasbacava
+para ella; e por influencia do maligno, n&atilde;o tinha
+for&ccedil;as para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos
+maus...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas vossa senhoria n&atilde;o est&aacute; com
+atten&ccedil;&atilde;o, senhor
+parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ora essa, minha senhora!
+<br />
+
+<br />
+
+E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos&mdash;porque
+a salva&ccedil;&atilde;o d'aquella velha alma idiota era
+para elle um emprego melhor que a mesma parochia.
+<br />
+
+<br />
+
+J&aacute; escurecia quando entrou em casa. A Escolastica
+queixou-se da demora que lhe esturr&aacute;ra o jantar.
+<span class="pagenum">[620]</span>
+Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho
+e uma garfada d'arroz, que enguliu de p&eacute;, olhando
+com terror pela janella a noite que impassivelmente
+cahia.
+<br />
+
+<br />
+
+Entrava no quarto a v&ecirc;r se os candieiros j&aacute;
+estavam
+acc&ecirc;sos, quando o coadjutor appareceu. Vinha
+fallar-lhe sobre o baptisado do filho do Guedes, que
+estava marcado para o dia seguinte &aacute;s nove horas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Trago luz?&mdash;disse de dentro a criada sentindo
+a visita.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o! gritou logo Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Temia que o coadjutor visse a altera&ccedil;&atilde;o que
+sentia
+nas faces, ou que se installasse para toda a noite.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diz que vem na
+<em>Na&ccedil;&atilde;o</em> d'antes
+d'hontem um
+artigo muito bom, observou o coadjutor, grave.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ah! fez Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio
+para a janella; parava &aacute;s vezes a rufar nos vidros;
+j&aacute; se tinham accendido os candieiros.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o o coadjutor, chocado com aquella treva
+do quarto e aquelle passear de fera n'uma jaula, ergueu-se,
+e com dignidade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou a incommodar talvez...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu
+guardachuva entre os joelhos.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Agora anoitece mais cedo, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Anoitece...
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha
+uma enxaqueca odiosa, que se ia encostar: e o homem
+<span class="pagenum">[621]</span>
+sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado
+do menino do seu amigo Guedes.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro partiu logo para a Rico&ccedil;a. Felizmente a
+noite estava tenebrosa e quente, annunciando chuva.
+Ia agora tomado d'uma esperan&ccedil;a que lhe fazia
+bater o cora&ccedil;&atilde;o: era que a crian&ccedil;a
+nascesse morta!
+E era bem possivel. A S. Joanneira em nova tivera
+duas crian&ccedil;as mortas; a anciedade em que vivera
+Amelia devia ter perturbado a gesta&ccedil;&atilde;o. E se ella
+morresse tambem? Ent&atilde;o a esta id&eacute;a, que nunca lhe
+acudira, invadiu-o bruscamente uma piedade, uma
+ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto,
+e que agora, por obra d'elle, gritava dilacerada
+de d&ocirc;res. E todavia, se ambos morressem, ella e a
+crian&ccedil;a, era o seu peccado e o seu erro que cahiam
+para sempre nos escuros abysmos da eternidade...
+Elle ficava, como antes da sua vinda a Leiria, um
+homem tranquillo, occupado da sua igreja, d'uma
+vida limpa e lavada como uma pagina branca!
+<br />
+
+<br />
+
+Parou junto ao casebre em ruinas &aacute; beira da estrada,
+onde devia estar a pessoa que da Barrosa vinha
+buscar a crian&ccedil;a: n&atilde;o se tinha decidido se seria
+o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar
+o an&atilde;o, para lhe levar o filho, com aquelles
+olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para dentro,
+para as trevas do casebre:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ol&aacute;!
+<br />
+
+<br />
+
+Foi um allivio quando a clara voz da Carlota
+disse da negrura:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;C&aacute; est&aacute;!
+<span class="pagenum">[622]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, &eacute; esperar, snr.<sup>a</sup> Carlota.
+<br />
+
+<br />
+
+Estava contente: parecia-lhe que n&atilde;o tinha nada
+a temer, se o filho partisse aninhado contra aquelle
+robusto seio de quarentona fecunda, t&atilde;o fresca e
+t&atilde;o
+lavada.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o rondar a casa. Estava apagada e muda,
+como um empastamento mais denso de sombra
+n'aquella lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda
+de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No
+ar muito pesado nenhuma folhagem ramalhava. E a
+Dionysia n&atilde;o apparecia.
+<br />
+
+<br />
+
+Aquella demora torturava-o. Podia passar gente
+e v&eacute;l-o rondar na estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se
+no casebre em ruinas ao p&eacute; de Carlota. Foi
+andando ao comprido do muro do pomar, voltou,&mdash;e
+viu ent&atilde;o na porta envidra&ccedil;ada do
+terra&ccedil;o uma
+claridade de luz apparecer.
+<br />
+
+<br />
+
+Correu para a portinha verde do pomar que quasi
+immediatamente se abriu; e a Dionysia, sem uma
+palavra, poz-lhe nos bra&ccedil;os um embrulho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Morta? perguntou elle.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual! Vivo! Um rapag&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+E fechou a porta devagarinho, quando os c&atilde;es,
+farejando rumor, come&ccedil;avam a ladrar.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o o contacto do seu filho, contra o seu peito,
+desmanchou como um vendaval todas as id&eacute;as
+d'Amaro. O qu&ecirc;! ir dal-o &aacute;quella mulher,
+&aacute; tecedeira
+d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado,
+ou em casa o arremessaria &aacute; latrina? Ah! n&atilde;o,
+era o seu filho!
+<span class="pagenum">[623]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Mas que fazer, ent&atilde;o? N&atilde;o tinha tempo de correr
+aos Poyaes e acordar a outra ama... A Dionysia
+n&atilde;o tinha leite... N&atilde;o o podia levar para a
+cidade...
+Oh! que desejo furioso de bater &aacute;quella porta
+da quinta, precipitar-se para o quarto d'Amelia,
+metter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado,
+e todos tres ficarem alli como no conchego
+d'um c&eacute;o! Mas qu&ecirc;, era padre! Maldita fosse a
+religi&atilde;o
+que assim o esmagava!
+<br />
+
+<br />
+
+De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu
+ent&atilde;o para o casebre&mdash;quasi esbarrou com a
+Carlota, que se apoderou logo da crian&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi est&aacute;, disse elle. Mas ou&ccedil;a l&aacute;.
+Isto agora &eacute;
+s&eacute;rio. Agora &eacute; outra coisa. Olhe que o
+n&atilde;o quero
+morto... &Eacute; para o tratar. O que se passou n&atilde;o
+vale...
+&Eacute; para o criar! &eacute; para viver. Voss&ecirc; tem
+a sua
+fortuna... Trate d'elle!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o tem duvida, n&atilde;o tem duvida, dizia a mulher
+apressada.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escute... A crian&ccedil;a n&atilde;o vai bem agasalhada.
+Ponha-lhe o meu capote.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vai bem, senhor, vai bem.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o vai, com mil diabos! &Eacute; o meu filho! Ha
+de levar o capote! N&atilde;o quero que morra de frio!
+<br />
+
+<br />
+
+Atirou-lh'o aos hombros com for&ccedil;a, tra&ccedil;ando-lh'o
+sobre o peito, agasalhando a crian&ccedil;a;&mdash;e a mulher
+j&aacute; enfastiada metteu rapidamente pela estrada.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro ficou alli plantado no meio do caminho,
+vendo o vulto perder-se na negrura. Ent&atilde;o todos os
+seus nervos, depois d'aquelle choque, se relaxaram
+<span class="pagenum">[624]</span>
+n'uma fraqueza de mulher sensivel&mdash;e rompeu a
+chorar.
+<br />
+
+<br />
+
+Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia
+na mesma escurid&atilde;o, n'aquelle silencio que o aterrava.
+Depois, triste e fatigado, veio voltando para a
+cidade, quando batiam as dez badaladas na S&eacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+A essa hora, na sala de jantar da Rico&ccedil;a, o doutor
+Gouv&ecirc;a ceava tranquillamente o frango assado que
+lhe prepar&aacute;ra a Gertrudes, para depois das canceiras
+do dia. O abbade Ferr&atilde;o, sentado junto da mesa,
+assistia-lhe &aacute; ceia; viera munido dos sacramentos para
+o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito;
+durante as oito horas de d&ocirc;res a rapariga
+mostr&aacute;ra-se corajosa; o parto f&ocirc;ra feliz, de
+resto, e
+sahira um rapag&atilde;o que fazia muita honra ao pap&aacute;.
+<br />
+
+<br />
+
+O bom abbade Ferr&atilde;o baixava castamente os
+olhos &aacute;quelles detalhes, no seu pudor de sacerdote.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E agora, dizia o doutor trinchando o peito do
+frango, agora que eu introduzi a crian&ccedil;a no mundo,
+os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer
+a Igreja) apoderam-se d'elle e n&atilde;o o largam at&eacute;
+&aacute;
+morte. Por outro lado, ainda que menos s&ocirc;fregamente,
+o Estado n&atilde;o o perde de vista... E ahi come&ccedil;a
+o desgra&ccedil;ado a sua jornada do ber&ccedil;o &aacute;
+sepultura,
+entre um padre e um cabo de policia!
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade curvou-se, e tomou uma estrondosa
+pitada preparando-se para a controversia.
+<span class="pagenum">[625]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A Igreja, continuava o doutor com serenidade,
+come&ccedil;a, quando a pobre creatura ainda nem tem sequer
+a consciencia da vida, por lhe imp&ocirc;r uma
+religi&atilde;o...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade interrompeu, meio s&eacute;rio, meio rindo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; doutor, ainda que n&atilde;o seja sen&atilde;o
+por caridade
+com a sua alma, devo advertil-o que o sagrado
+Concilio de Trento, canon decimo terceiro, commina
+a pena d'excommunh&atilde;o contra todo o que disser
+que o baptismo &eacute; nullo, por ser imposto sem a
+aceita&ccedil;&atilde;o da raz&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a
+essas amabilidades do Concilio de Trento para commigo
+e outros collegas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Era uma assembl&eacute;a respeitavel! acudiu o abbade
+j&aacute; escandalisado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sublime, abbade. Uma assembl&eacute;a sublime. O
+Concilio de Trento e a Conven&ccedil;&atilde;o foram as duas
+mais
+prodigiosas assembl&eacute;as d'homens que a terra tem
+presenciado...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade fez uma visagem de repugnacia &aacute;quelle
+cotejo irreverente entre os santos auctores da doutrina
+e os assassinos do bom rei Luiz XVI.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o doutor proseguiu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Depois, a Igreja deixa a crian&ccedil;a em paz algum
+tempo emquanto ella faz a sua denti&ccedil;&atilde;o e tem
+o seu ataque de lombrigas...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;V&aacute;, v&aacute;, doutor! murmurava o abbade, escutando-o
+pacientemente, de olhos cerrados&mdash;como significando
+<span class="pagenum">[626]</span>
+&laquo;anda, anda, enterra bem essa alma no
+abysmo de fogo e pez&raquo;!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros
+symptomas de raz&atilde;o, continuava o doutor,
+quando se torna necessario que elle tenha, para o distinguir
+dos animaes, uma no&ccedil;&atilde;o de si mesmo e do
+universo, ent&atilde;o entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe
+tudo! Tudo! T&atilde;o completamente, que um gaiato
+de seis annos que n&atilde;o sabe ainda o
+<em>b-a-b&aacute;</em> tem
+uma sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes
+academias combinadas de Londres, Berlim e Paris!
+O velhaco n&atilde;o hesita um momento para dizer como
+se fez o universo e os seus systemas planetarios;
+como appareceu na terra a crea&ccedil;&atilde;o; como se
+succederam
+as ra&ccedil;as; como passaram as revolu&ccedil;&otilde;es
+geologicas
+do globo; como se formaram as linguas; como
+se inventou a escripta... Sabe tudo: possue
+completa e immutavel a regra para dirigir todas as
+ac&ccedil;&otilde;es e formar todos os juizos; tem mesmo a
+certeza
+de todos os mysterios; ainda que seja myope
+como uma toupeira v&ecirc; o que se passa na profundidade
+dos c&eacute;os e no interior do globo; conhece, como
+se n&atilde;o tivesse feito sen&atilde;o assistir a esse
+espectaculo,
+o que lhe ha de succeder depois de morrer... N&atilde;o
+ha problema que n&atilde;o decida... E quando a Igreja
+tem feito d'este marmanjo uma tal maravilha de saber,
+manda-o ent&atilde;o aprender a l&ecirc;r... O que eu pergunto
+&eacute;: para que?
+<br />
+
+<br />
+
+A indigna&ccedil;&atilde;o tinha emmudecido o abbade.
+<span class="pagenum">[627]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Diga l&aacute; abbade, para que os mandam os senhores
+ensinar a l&ecirc;r? Toda a sciencia universal, o
+<em>res scibilis</em>, est&aacute; no
+Catecismo: &eacute; metter-lh'o na memoria,
+e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia
+de tudo... Sabe tanto como Deus... De facto, &eacute;
+Deus mesmo.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade pulou.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Isso n&atilde;o &eacute; discutir, exclamou, isso
+n&atilde;o &eacute; discutir!...
+Isso s&atilde;o chala&ccedil;as &aacute; Voltaire! Essas
+coisas
+devem-se tratar mais d'alto...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como chala&ccedil;as, abbade? Tome um exemplo: a
+forma&ccedil;&atilde;o das linguas. Como se formaram? Foi Deus,
+que descontente com a Torre de Babel...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia.
+Havia pouco o doutor tinha-lhe dado uma desanda
+no quarto d'Amelia; e agora a matrona fallava-lhe
+sempre encolhida de terror.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor doutor, disse ella no silencio que se
+fez, a menina acordou e diz que quer o filho.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o? A crian&ccedil;a levaram-n'a, n&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A crian&ccedil;a levaram-n'a... disse a Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem, acabou-se...
+<br />
+
+<br />
+
+Dionysia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ou&ccedil;a l&aacute;, diga-lhe que a crian&ccedil;a vem
+&aacute;manh&atilde;...
+Que &aacute;manh&atilde; sem falta que lh'a trazem. Minta.
+Minta como um c&atilde;o; aqui o senhor abbade d&aacute;
+licen&ccedil;a... Que durma, que socegue.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia retirou-se. Mas a controversia n&atilde;o
+recome&ccedil;ou:
+diante d'aquella m&atilde;i que acordava depois
+<span class="pagenum">[628]</span>
+da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho
+que lhe tinham levado para longe e para sempre, os
+dois velhos esqueceram a Torre de Babel e a
+forma&ccedil;&atilde;o
+das linguas. O abbade sobretudo parecia commovido.
+Mas o doutor n&atilde;o tardou, sem piedade, a
+lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da
+situa&ccedil;&atilde;o do padre na sociedade...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada,
+sem responder, como ignorando que houvesse
+um padre n'aquella historia infeliz.
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor ent&atilde;o, seguindo a sua id&eacute;a, discursou
+contra a prepara&ccedil;&atilde;o e
+educa&ccedil;&atilde;o ecclesiastica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi tem o abbade uma educa&ccedil;&atilde;o dominada
+inteiramente pelo absurdo: resistencia &aacute;s mais justas
+solicita&ccedil;&otilde;es da natureza, e resistencia aos mais
+elevados movimentos da raz&atilde;o. Preparar um padre &eacute;
+crear um monstro que ha de passar a sua desgra&ccedil;ada
+existencia n'uma batalha desesperada contra os
+dois factos irresistiveis do universo&mdash;a for&ccedil;a da Materia
+e a for&ccedil;a da Raz&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que est&aacute; o senhor a dizer? exclamou assombrado
+o abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Estou a dizer a verdade. Era que consiste a
+educa&ccedil;&atilde;o d'um sacerdote?
+<em>Prim&ograve;</em>: em o preparar
+para o celibato e para a virgindade; isto &eacute;, para a
+suppress&atilde;o violenta dos sentimentos mais naturaes.
+<em>Secund&ograve;</em>: em evitar todo o
+conhecimento e toda a
+id&eacute;a que seja capaz d'abalar a f&eacute; catholica; isto
+&eacute;, a
+suppress&atilde;o for&ccedil;ada do espirito
+d'indaga&ccedil;&atilde;o e d'exame,
+portanto de toda a sciencia real e humana...
+<span class="pagenum">[629]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade erguera-se, ferido d'uma piedosa
+indigna&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois o senhor nega &aacute; Igreja a sciencia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente
+o doutor, Jesus, os seus primeiros discipulos,
+o illustre S. Paulo representaram em parabolas, em
+epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as
+produc&ccedil;&otilde;es
+do espirito humano eram inuteis, pueris, e
+sobretudo perniciosas...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade passeava pela sala, indo contra um e
+outro movel como um boi espica&ccedil;ado, apertando as
+m&atilde;os na cabe&ccedil;a na desola&ccedil;&atilde;o
+d'aquellas blasphemias;
+n&atilde;o se conteve, gritou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor n&atilde;o sabe o que diz!... Perd&atilde;o, doutor,
+pe&ccedil;o-lhe humildemente perd&atilde;o... O senhor faz-me
+cahir em peccado mortal... Mas isso n&atilde;o &eacute;
+discutir...
+Isso &eacute; fallar com a leviandade d'um jornalista...
+<br />
+
+<br />
+
+Lan&ccedil;ou-se ent&atilde;o com calor n'uma
+disserta&ccedil;&atilde;o sobre
+a sabedoria da Igreja, os seus altos estudos gregos
+e latinos, toda uma philosophia creada pelos santos
+padres...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Leia S. Basilio! exclamou. L&aacute; ver&aacute; o que elle
+diz dos estudos dos auctores profanos, que s&atilde;o a
+melhor prepara&ccedil;&atilde;o para os estudos sagrados! Leia
+a
+<em>Historia dos mosteiros na meia
+idade</em>! Era l&aacute; que
+estava a sciencia, a philosophia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia!
+Por philosophia meia duzia de concep&ccedil;&otilde;es d'um
+espirito mythologico, em que o mysticismo &eacute; posto
+<span class="pagenum">[630]</span>
+em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia!
+Sciencia de commentadores, sciencia de grammaticos...
+Mas vieram outros tempos, nasceram sciencias
+novas que os antigos tinham ignorado, a que o ensino
+ecclesiastico n&atilde;o offerecia nem base nem methodo,
+estabeleceu-se logo o antagonismo entre ellas
+e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos, a
+Igreja ainda tentou supprimil-as pela
+persegui&ccedil;&atilde;o, a
+masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abbade... O
+fogo, sim, o fogo e a masmorra. Mas agora n&atilde;o o
+p&oacute;de fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim...
+E no emtanto contin&uacute;a a dar nos seus seminarios e
+nas suas esc&oacute;las o ensino do passado, o ensino anterior
+a essas sciencias, ignorando-as, e desprezando-as,
+refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar
+as m&atilde;os na cabe&ccedil;a... Estranha ao espirito
+moderno,
+hostil nos seus principios e nos seus methodos
+ao desenvolvimento espontaneo dos conhecimentos
+humanos... O senhor n&atilde;o &eacute; capaz de negar isto!
+Veja o <em>Syllabus</em> no seu canon
+terceiro excommungando
+a Raz&atilde;o... No seu canon decimo terceiro...
+<br />
+
+<br />
+
+A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionysia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A pequena est&aacute; a choramingar, diz que quer
+a crian&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mau, mau! disse o doutor.
+<br />
+
+<br />
+
+E depois d'um momento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que tal aspecto tem ella? Est&aacute; c&oacute;rada?
+Est&aacute;
+inquieta?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o senhor, est&aacute; bem. S&oacute; a
+choramingar, a
+<span class="pagenum">[631]</span>
+fallar no pequeno... Diz que o quer hoje por for&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Converse com ella, distraia-a... Veja se ella
+adormece...
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia retirou-se; e o abbade logo com cuidado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; doutor, supp&otilde;e que lhe possa fazer mal o
+affligir-se?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P&oacute;de-lhe fazer mal, abbade, p&oacute;de&mdash;disse o
+doutor que rebuscava na sua pharmacia portatil. Mas
+eu vou-a fazer dormir... Pois &eacute; verdade, a Igreja
+hoje &eacute; uma intrusa, abbade!
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade tornou a levar as m&atilde;os &aacute;
+cabe&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja
+em Portugal. &Eacute; grato observar-lhe o estado de decadencia...
+<br />
+
+<br />
+
+Pintou-lh'o a largos tra&ccedil;os, de p&eacute;, com o seu
+frasco
+na m&atilde;o. A Igreja f&ocirc;ra a
+Na&ccedil;&atilde;o; hoje era uma minoria
+tolerada e protegida pelo Estado. Domin&aacute;ra nos
+tribunaes, nos conselhos da cor&ocirc;a, na fazenda, na armada,
+fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da
+maioria tinha mais poder que todo o clero do reino.
+F&ocirc;ra a sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia era algum
+latim macarronico. F&ocirc;ra rica, tinha possuido no
+campo districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje
+dependia para o seu triste p&atilde;o diario do ministro
+da justi&ccedil;a, e pedia esmola &aacute; porta das capellas.
+Recrut&aacute;ra-se
+entre a nobreza, entre os melhores do reino;
+e hoje, para reunir um pessoal, via-se no embara&ccedil;o
+e tinha de o ir buscar aos engeitados da Misericordia.
+F&ocirc;ra a depositaria da tradi&ccedil;&atilde;o
+nacional,
+<span class="pagenum">[632]</span>
+do ideal collectivo da patria; e hoje, sem
+communica&ccedil;&atilde;o
+com o pensamento nacional (se &eacute; que o ha)
+era uma estrangeira, uma cidad&atilde; de Roma, recebendo
+de l&aacute; a lei e o espirito...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois se est&aacute; assim t&atilde;o prostrada, mais uma
+raz&atilde;o para a amar!&mdash;disse o abbade, erguendo-se
+escarlate.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Dionysia tinha de novo apparecido &aacute; porta.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que temos mais?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A menina est&aacute;-se a queixar d'um peso na cabe&ccedil;a.
+Diz que sente fa&iacute;scas diante dos olhos...
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor ent&atilde;o immediatamente, sem uma palavra,
+seguiu a Dionysia. O abbade, s&oacute;, passeava pela
+sala ruminando toda uma argumenta&ccedil;&atilde;o
+erri&ccedil;ada de
+textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia
+fazer desabar sobre o doutor Gouv&ecirc;a. Mas, meia hora
+passou, a luz do candieiro ia esmorecendo, e o
+doutor n&atilde;o voltou.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o aquelle silencio da casa, onde s&oacute; o som
+dos seus passos sobre o soalho da sala punha uma
+nota viva, come&ccedil;ou a impressionar o velho. Abriu a
+porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia
+era muito afastado, ao fim da casa, ao p&eacute; do
+terra&ccedil;o;
+n&atilde;o vinha de l&aacute; nem rumor nem luz.
+Recome&ccedil;ou
+o seu passeio solitario na sala, n'uma tristeza
+indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir
+v&ecirc;r tambem a doente; mas o seu caracter, o pudor
+<span class="pagenum">[633]</span>
+sacerdotal n&atilde;o lhe permittiam aproximar-se sequer
+d'uma mulher no leito, em trabalho de parto, a n&atilde;o
+ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra
+hora mais longa, mais funebre, passou. Ent&atilde;o, em
+pontas de p&eacute;s, c&oacute;rando na escurid&atilde;o
+d'aquella audacia,
+foi at&eacute; ao meio do corredor: agora, aterrado,
+sentia no quarto d'Amelia um ruido confuso e surdo
+de p&eacute;s movendo-se vivamente no soalho, como n'uma
+lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu &aacute;
+sala, e abrindo o seu Breviario come&ccedil;ou a rezar.
+Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente,
+n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia
+bater. Depois o arrastar no soalho d'uma bacia de
+lat&atilde;o. E emfim o doutor appareceu.
+<br />
+
+<br />
+
+A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha
+sem gravata, com o collarinho espeda&ccedil;ado; os
+bot&otilde;es
+do collete tinham saltado; e os punhos da camisa,
+voltados para traz, estavam todos manchados
+de sangue.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Alguma coisa, doutor?
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor n&atilde;o respondeu, procurando rapidamente
+pela sala o seu estojo, com a face animada d'um
+calor de batalha. Ia j&aacute; sahir com o estojo, mas
+lembrando-lhe
+a pergunta anciosa do abbade:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tem convuls&otilde;es, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade ent&atilde;o deteve-o &aacute; porta, e muito grave,
+muito digno:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Doutor, se ha perigo, pe&ccedil;o-lhe que se lembre...
+&Eacute; uma alma christ&atilde; em agonia, e eu estou
+aqui.
+<span class="pagenum"><a name="p634" id="p634">[634]</a></span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Certamente, certamente...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade tornou a ficar s&oacute;, esperando. Tudo dormia
+na Rico&ccedil;a, D. Josepha, os caseiros, a quinta, os
+campos em redor. Na sala, um relogio de parede,
+enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca
+do sol e em cima sobre o caixilho a figura esculpida
+em pau d'uma coruja pensativa, um movel de
+castello antigo, bateu a meia noite, depois uma hora.
+O abbade a cada momento ia at&eacute; ao meio do
+corredor: era o mesmo rumor de p&eacute;s n'uma lucta;
+outras vezes um silencio tenebroso. Voltava ent&atilde;o
+para o seu Breviario. Meditava n'aquella pobre rapariga
+que, al&eacute;m no quarto, estava talvez no momento
+que ia decidir da sua eternidade: n&atilde;o tinha ao
+p&eacute; nem a m&atilde;i, nem as amigas: na memoria apavorada
+devia passar-lhe a vis&atilde;o do peccado: diante
+dos olhos turvos apparecia-lhe a face triste do Senhor
+offendido: as d&ocirc;res contorciam o seu corpo miseravel:
+e na escurid&atilde;o em que ia penetrando, sentia
+j&aacute; o halito ardente da aproxima&ccedil;&atilde;o de
+Satanaz.
+Temeroso fim do tempo e da carne!&mdash;Ent&atilde;o rezava
+fervorosamente por ella.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas depois pensava no outro que f&ocirc;ra uma metade
+do seu peccado, e que agora na cidade, estirado
+na cama, resonava tranquillamente. E rezava ent&atilde;o
+tambem por elle.
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha sobre o Breviario um pequeno <a href="#e24">crucifixo</a>.
+E
+contemplava-o com amor, abysmava-se enternecido
+na certeza da sua for&ccedil;a, contra a qual era bem pouca
+a sciencia do doutor e todas as vaidades da raz&atilde;o!
+<span class="pagenum">[635]</span>
+Philosophias, id&eacute;as, glorias profanas,
+gera&ccedil;&otilde;es
+e imperios passam: s&atilde;o como os suspiros ephemeros
+do esfor&ccedil;o humano: s&oacute; ella permanece e
+permanecer&aacute;,
+a cruz&mdash;esperan&ccedil;a dos homens, confian&ccedil;a
+dos desesperados, amparo dos frageis, asylo dos
+vencidos, for&ccedil;a maior da humanidade: <em>crux
+triumphus
+adversus demonios, crux oppugnatorum murus</em>...
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o o doutor entrou, muito escarlate, vibrante
+d'aquella tremenda batalha que estava dando l&aacute; dentro
+&aacute; morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu
+a janella, sem uma palavra, para respirar um momento
+uma golfada d'ar fresco.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como vai ella? perguntou o abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mal, disse o doutor sahindo.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade, ent&atilde;o, ajoelhou, balbuciou a
+ora&ccedil;&atilde;o
+de S. Fulgencio:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor, d&aacute;-lhe primeiro a paciencia, d&aacute;-lhe
+depois a misericordia...
+<br />
+
+<br />
+
+E alli ficou, com a face nas m&atilde;os, apoiado &aacute;
+beira
+da mesa.
+<br />
+
+<br />
+
+A um rumor de passos na sala ergueu a cabe&ccedil;a.
+Era a Dionysia, que suspirava, recolhendo todos os
+guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o, senhora, ent&atilde;o? perguntou-lhe o abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor abbade, est&aacute; perdidinha... Depois
+das convuls&otilde;es que foram d'arripiar, cahiu n'aquelle
+somno, que &eacute; o somno da morte...
+<span class="pagenum">[636]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E olhando para todos os cantos como para se assegurar
+da solid&atilde;o, disse muito excitada:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o quiz dizer nada... Que o senhor doutor
+tem um genio!... Mas sangrar a rapariga
+n'aquelle estado &eacute; querer matal-a... Que ella tinha
+perdido pouco sangue, &eacute; verdade... Mas nunca se
+sangra ninguem em semelhante momento. Nunca,
+nunca!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O senhor doutor &eacute; homem de muita sciencia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;P&oacute;de ter a sciencia que quizer... Eu tambem
+n&atilde;o sou nenhuma tola... Tenho vinte annos d'experiencia...
+Nunca me morreu nenhuma nas m&atilde;os, senhor
+abbade... Sangrar em convuls&otilde;es! At&eacute; causa
+horror!...
+<br />
+
+<br />
+
+Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado
+a creaturinha. At&eacute; lhe quizera administrar chloroformio...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a voz do doutor Gouv&ecirc;a berrou por ella do
+fundo do corredor&mdash;e a matrona abalou, com o seu
+m&oacute;lho de guardanapos.
+<br />
+
+<br />
+
+O medonho relogio, com a sua coruja pensativa,
+bateu as duas horas, depois as tres... O abbade,
+agora, cedia a espa&ccedil;os a uma fadiga de velho, cerrando
+um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente:
+ia respirar o ar pesado da noite, olhar
+aquella treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se,
+a murmurar, com a cabe&ccedil;a baixa, as m&atilde;os postas
+sobre o Breviario:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senhor, volta os teus olhos misericordiosos
+para aquelle leito d'agonia...
+<span class="pagenum">[637]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Foi ent&atilde;o Gertrudes que appareceu commovida.
+O senhor doutor mand&aacute;ra-a a baixo acordar o mo&ccedil;o
+para p&ocirc;r a egoa ao
+<em>cabriolet</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia t&atilde;o
+bem, e de repente isto... Que foi por lhe tirarem o
+filho... Eu n&atilde;o sei quem &eacute; o pai, mas o que sei
+&eacute;
+que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade n&atilde;o respondeu, orando baixo pelo padre
+Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor ent&atilde;o entrou com o seu estojo na
+m&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Se quizer, abbade, p&oacute;de ir, disse.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o abbade n&atilde;o se apressava, olhando o doutor,
+com uma pergunta a bailar-lhe nos labios entreabertos,
+e retendo-a por timidez: emfim, n&atilde;o se
+conteve, e n'um tom de medo:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Fez-se tudo, n&atilde;o ha remedio, doutor?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que n&oacute;s, doutor, n&atilde;o devemos
+aproximar-nos
+d'uma mulher em parto illegitimo sen&atilde;o n'um
+caso extremo...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Est&aacute; n'um caso extremo, senhor abbade, disse
+o doutor, vestindo j&aacute; o seu grande casac&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade ent&atilde;o recolheu o Breviario, a cruz&mdash;mas
+antes de sahir, julgando do seu dever de sacerdote
+p&ocirc;r diante do medico racionalista a certeza da
+eternidade mystica que se desprende do momento
+da morte, murmurou ainda:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; n'este instante que se sente o terror de
+Deus, o v&atilde;o do orgulho humano...
+<span class="pagenum">[638]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor n&atilde;o respondeu, occupado a afivelar o
+seu estojo.
+<br />
+
+<br />
+
+O abbade sahiu&mdash;mas, j&aacute; no meio do corredor,
+voltou ainda, e fallando com inquieta&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois
+dos soccorros da religi&atilde;o, os moribundos voltarem
+a si de repente, por uma gra&ccedil;a especial... A
+presen&ccedil;a do medico ent&atilde;o p&oacute;de ser
+util...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu ainda n&atilde;o vou, ainda n&atilde;o vou, disse o
+doutor, sorrindo involuntariamente de v&ecirc;r a
+presen&ccedil;a
+da Medicina reclamada para auxiliar a efficacia
+da Gra&ccedil;a.
+<br />
+
+<br />
+
+Desceu, a v&ecirc;r se estava prompto o
+<em>cabriolet</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e
+a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O
+leito, todo o quarto estava revolvido como um campo
+de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se.
+Amelia estava immovel, com os bra&ccedil;os
+hirtos, as m&atilde;os crispadas d'uma c&ocirc;r de purpura
+escura&mdash;e
+a mesma c&ocirc;r mais arroxeada cobria-lhe a
+face rigida.
+<br />
+
+<br />
+
+E debru&ccedil;ado sobre ella, com o crucifixo na m&atilde;o,
+o abbade dizia ainda, n'uma voz d'angustia:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Jesu, Jesu, Jesu!</em> Lembra-te da
+gra&ccedil;a de
+Deus! Tem f&eacute; na misericordia divina! Arrepende-te
+no seio do Senhor! <em>Jesu, Jesu, Jesu!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando
+o <em>Miserere</em>. O doutor que
+fic&aacute;ra &aacute; porta retirou-se devagarinho,
+atravessou em bicos de p&eacute;s o corredor, e
+desceu &aacute; rua, onde o mo&ccedil;o segurava a egoa
+atrellada.
+<span class="pagenum">[639]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vamos ter agua, senhor doutor, disse o rapaz
+bocejando de somno.
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Gouv&ecirc;a ergueu a gola do paletot, accommodou
+o seu estojo no assento&mdash;e d'ahi a um momento
+o <em>cabriolet</em> rodava surdamente pela
+estrada,
+sob a primeira pancada de chuva, cortando a escurid&atilde;o
+da noite com o clar&atilde;o vermelho das suas duas
+lanternas.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXV
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia desde as sete da manh&atilde;, o padre
+Amaro esperava a Dionysia em casa, postado &aacute; janella,
+com os olhos cravados na esquina da rua, sem
+reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face.
+Mas a Dionysia n&atilde;o apparecia: e elle teve de partir
+para a S&eacute;, amargurado e doente, a baptisar o filho
+do Guedes.
+<br />
+
+<br />
+
+Foi uma pesada tortura para elle v&ecirc;r aquella
+gente alegre que punha na gravidade da S&eacute;, mais
+sombria por esse escuro dia de dezembro, todo um
+rumor mal contido de regosijo domestico e de festa
+paterna; o pap&aacute; Guedes resplandecente de casaca
+e gravata branca, o padrinho compenetrado com
+uma grande camelia ao peito, as senhoras de gala,
+e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com
+<span class="pagenum">[642]</span>
+pompa um mont&atilde;o de rendas engommadas e de
+la&ccedil;arotes
+azues onde mal se percebiam duas bochechinhas
+trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento
+bem longe na Rico&ccedil;a e na Barrosa, foi engorolando
+&aacute; pressa as ceremonias: soprando em cruz
+sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio
+que j&aacute; habitava aquellas carninhas tenras; impondo-lhe
+o sal sobre a b&ocirc;ca para que elle se desgostasse
+para sempre do sabor amargo do peccado
+e tomasse gosto a nutrir-se s&oacute; da verdade divina;
+tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para
+que elle n&atilde;o escutasse j&aacute;mais as
+solicita&ccedil;&otilde;es da carne
+e j&aacute;mais respirasse os perfumes da terra. E em
+roda, com tochas na m&atilde;o, os padrinhos, os convidados,
+na fadiga que davam tantos latins rosnados
+&aacute; pressa, s&oacute; se occupavam do pequeno, n'um receio
+que elle n&atilde;o respondesse com algum desacato impudente
+&aacute;s tremendas exhorta&ccedil;&otilde;es que lhe fazia
+a
+Igreja sua M&atilde;i.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, ent&atilde;o, pondo de leve o dedo sobre a touquinha
+branca, exigiu do pequerrucho que elle, alli
+em plena S&eacute;, renunciasse para sempre a Satanaz,
+&aacute;s
+suas pompas e &aacute;s suas obras. O sacrist&atilde;o Mathias,
+que dava em latim as respostas rituaes, renunciou
+por elle&mdash;emquanto o pobre pequerrucho abria a
+boquinha a procurar o bico da mama. Emfim o parocho
+dirigiu-se &aacute; pia baptismal seguido de toda a
+familia, das velhas devotas que se tinham juntado,
+de gaiatos que esperavam uma distribui&ccedil;&atilde;o de
+patacos.
+Mas foi toda uma atrapalha&ccedil;&atilde;o para fazer as
+<span class="pagenum">[643]</span>
+un&ccedil;&otilde;es: a parteira commovida n&atilde;o
+atinava a desapertar
+os la&ccedil;arotes do chambre, para p&ocirc;r a n&uacute;
+os
+hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz
+ajudal-a: mas deixou escorregar a tocha, alastrou de
+cera derretida o vestido d'uma senhora, uma visinha
+dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Franciscus, credis?&mdash;perguntava Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+O Mathias apressou-se a affirmar, em nome de
+Francisco:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Credo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Franciscus, vis baptisari?
+<br />
+
+<br />
+
+O Mathias:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Volo.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda
+como um mel&atilde;o tenro: a crian&ccedil;a agora perneava
+n'uma perrice.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris...
+et Filiis... et Espiritus Sancti...
+<br />
+
+<br />
+
+Emfim, acab&aacute;ra! Amaro correu &aacute; sacristia a
+desvestir-se&mdash;emquanto
+a parteira grave, o pap&aacute; Guedes,
+as senhoras enternecidas, as velhas devotas e
+os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados
+sob os guardachuvas, chapinhando a lama, l&aacute;
+iam levando em triumpho Francisco, o novo christ&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro galgou os degraus de casa com o presentimento
+que ia encontrar a Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+L&aacute; estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o,
+amarrotada, enxovalhada da lucta da noite
+e da lama da estrada: e apenas o viu come&ccedil;ou a
+choramingar.
+<span class="pagenum">[644]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que &eacute;, Dionysia?
+<br />
+
+<br />
+
+Ella rompeu em solu&ccedil;os, sem responder.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Morta! exclamou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou
+emfim a matrona.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro tombou para os p&eacute;s da cama como morto
+tambem.
+<br />
+
+<br />
+
+A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a
+face d'agua, de vinagre. Elle recuperou-se um pouco,
+muito pallido: afastou-as com a m&atilde;o, sem fallar;
+e atirou-se de bru&ccedil;os para sobre o travesseiro, n'um
+ch&ocirc;ro desesperado,&mdash;emquanto as duas mulheres
+consternadas iam recolhendo &aacute; cozinha.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Parece que tinha muita amizade &aacute; menina,
+come&ccedil;ou a Escolastica, fallando baixo como na casa
+d'um moribundo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Costume d'ir por l&aacute;. Foi hospede tanto tempo...
+Ai, eram como irm&atilde;os...&mdash;disse a Dionysia,
+ainda chorosa.
+<br />
+
+<br />
+
+Fallaram ent&atilde;o de doen&ccedil;as de
+cora&ccedil;&atilde;o&mdash;porque
+a Dionysia cont&aacute;ra &aacute; Escolastica que a pobre
+menina
+tinha morrido d'um aneurisma rebentado. A Escolastica
+tambem soffria do cora&ccedil;&atilde;o; mas n'ella eram
+flatos,
+dos maus tratos que lhe dera o marido... Ah,
+tinha sido bem infeliz tambem!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossemec&ecirc; toma uma gotinha de caf&eacute;, snr.<sup>a</sup>
+Dionysia?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Olhe, a fallar a verdade, snr.<sup>a</sup> Escolastica,
+tomava
+uma gotinha de geropiga...
+<br />
+
+<br />
+
+A Escolastica correu &aacute; taberna ao fim da rua,
+<span class="pagenum">[645]</span>
+trouxe a geropiga n'um copo de quartilho debaixo
+do avental: e ambas &aacute; mesa, uma molhando sopas
+no caf&eacute;, outra escorropichando o copo, concordavam,
+com suspiros, que n'este mundo tudo eram sustos e
+lagrimas.
+<br />
+
+<br />
+
+Deram onze horas: e a Escolastica pensava em
+levar um caldo ao senhor parocho, quando elle chamou
+de dentro. Estava de chap&eacute;o alto, com o casaco
+abotoado, os olhos vermelhos como carv&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Escolastica, v&aacute; a correr ao Cruz que me mande
+um cavallo... Mas depressa.
+<br />
+
+<br />
+
+Chamou ent&atilde;o a Dionysia: e sentado ao p&eacute; d'ella,
+quasi contra os joelhos da mulher, com a face rigida
+e livida como um marmore, escutou em silencio
+a historia da noite&mdash;as convuls&otilde;es de repente,
+t&atilde;o fortes que ella, a Gertrudes e o senhor doutor
+mal a podiam segurar! o sangue, as prostra&ccedil;&otilde;es em
+que cahia! depois a anciedade da asphyxia que a fazia
+t&atilde;o r&ocirc;xa como a tunica d'uma imagem...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas o mo&ccedil;o do Cruz cheg&aacute;ra com o cavallo. Amaro
+tirou d'uma gaveta, d'entre roupa branca, um pequeno
+crucifixo, deu-o &aacute; Dionysia que ia voltar &aacute;
+Rico&ccedil;a
+para ajudar a amortalhar a menina.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-m'o
+ella dado...
+<br />
+
+<br />
+
+Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa
+despediu a galope. N&atilde;o chovia, agora; e entre as
+nuvens pardas algum raio fraco do sol de dezembro
+fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando chegou ao p&eacute; do po&ccedil;o entulhado, d'onde
+<span class="pagenum">[646]</span>
+se avistava a casa de Carlota, teve de parar, para
+deixar passar um longo rebanho d'ovelhas que tomava
+o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra
+ao hombro e a borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar
+de repente Feir&atilde;o, toda a vida passada, que lhe
+voltava por fragmentos bruscos&mdash;aquellas paizagens
+afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna
+rindo estupidamente dependurada da corda do
+sino; as suas ceias de cabrito assado na Gralheira,
+com o abbade, defronte da chamin&eacute;, onde a lenha
+verde estalava; os longos dias em que se desesperava
+na tristeza da residencia, vendo f&oacute;ra sem cessar
+cahir a neve... E veio-lhe um desejo ancioso
+d'essas solid&otilde;es da serra, d'essa existencia de lobo,
+longe dos homens e das cidades, sepultado l&aacute; com
+a sua paix&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de
+roda chamar, atirando a voz por cima do telhado dos
+curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar os gallos.
+Ninguem respondeu. Seguiu ent&atilde;o pelo caminho
+da aldeia, levando a egoa pela arreata; parou na
+taberna, onde uma mulher obesa fazia meia sentada
+&aacute; porta. Dentro, no escuro da baiuca, dois homens
+com os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas
+n'uma bisca renhida; e um rapazola d'uma amarellid&atilde;o
+de sez&otilde;es, com um len&ccedil;o amarrado na
+cabe&ccedil;a,
+olhava-lhes o jogo tristemente.
+<br />
+
+<br />
+
+A mulher tinha justamente visto passar a snr.<sup>a</sup>
+Carlota, que at&eacute; par&aacute;ra a comprar um quartilho de
+azeite. Devia estar em casa da Michaela, ao adro.
+<span class="pagenum">[647]</span>
+Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu
+de traz da sombra das pipas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Corre, vai &aacute; Michaela, dize &agrave; snr.<sup>a</sup>
+Carlota
+que
+est&aacute; aqui um senhor da cidade.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou
+sentado n'uma pedra, com o seu cavallo pela redea.
+Mas aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi p&ocirc;r
+o ouvido &aacute; fechadura, na esperan&ccedil;a d'ouvir um
+ch&ocirc;ro,
+uma rabuje de crian&ccedil;a. Dentro pesava um silencio
+de caverna abandonada. Mas tranquillisava-o a
+id&eacute;a que a Carlota teria levado a crian&ccedil;a
+comsigo,
+para Michaela. Devia realmente ter perguntando &aacute;
+mulher na taberna, se a Carlota trazia uma crian&ccedil;a
+ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a sua
+janella em cima que tinha uma cortininha de cassa,
+um luxo t&atilde;o raro n'aquellas freguezias pobres; recordava
+a boa ordem, o escarolado da lou&ccedil;a da cozinha...
+Decerto, o pequerrucho devia ter tambem
+um ber&ccedil;o aceado...
+<br />
+
+<br />
+
+Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera
+alli, na mesa da cozinha, quatro libras em ouro,
+pre&ccedil;o adiantado d'um anno de cria&ccedil;&atilde;o,
+e dissera
+cruelmente ao an&atilde;o&mdash;&laquo;conto comsigo&raquo;!
+Pobre pequerruchinho!...
+Mas a Carlota comprehendera bem,
+&aacute; noite na Rico&ccedil;a, que elle agora queria-o vivo,
+o
+seu filho, e creado com mimo!... Todavia n&atilde;o o
+deixaria alli, n&atilde;o, sob o olho raiado de sangue do
+an&atilde;o... Leval-o-hia essa noite &aacute; Joanna Carreira
+dos
+Poyaes...
+<span class="pagenum">[648]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+Que as sinistras historias da Dionysia, a <em>tecedeira
+d'anjos</em>, eram uma legenda insensata. A
+crian&ccedil;a estava
+muito regalada em casa de Michaela, chupando
+aquelle bom peito de quarentona s&atilde;... E vinha-lhe
+ent&atilde;o o mesmo desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se
+em Feir&atilde;o, levar comsigo a Escolastica, educar
+l&aacute; a crian&ccedil;a como sobrinho, revivendo n'elle
+largamente
+todas as emo&ccedil;&otilde;es d'aquelle romance de dois
+annos; e alli passaria n'uma paz triste, na saudade
+de Amelia, at&eacute; ir como o seu antecessor, o abbade
+Gustavo que tambem cre&aacute;ra um sobrinho em Feir&atilde;o,
+repousar para sempre no pequeno cemiterio, de ver&atilde;o
+sob as fl&ocirc;res silvestres, de inverno sob a neve
+branca.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o a Carlota appareceu; e ficou attonita ao
+reconhecer Amaro, sem passar da cancella, com a
+testa franzida, a sua bella face muito grave.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A crian&ccedil;a? exclamou Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+Depois d'um momento, ella respondeu, sem
+perturba&ccedil;&atilde;o:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nem me falle n'isso, que me tem dado um
+desgosto... Hontem mesmo, duas horas depois de
+ter chegado... O pobre anjinho come&ccedil;a a fazer-se
+r&ocirc;xo, e alli me morreu debaixo dos olhos...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mente! gritou Amaro. Quero v&ecirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Entre, senhor, se quer v&ecirc;r.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Mas que lhe disse eu hontem, mulher?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quer, senhor? Morreu. Veja...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem
+<span class="pagenum">[649]</span>
+c&oacute;lera nem receio. Amaro entreviu n'um relance, ao
+p&eacute; da chamin&eacute;, um ber&ccedil;o coberto com um
+saiote escarlate.
+<br />
+
+<br />
+
+Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para
+cima do cavallo. Mas a mulher, muito loquaz subitamente,
+rompeu a dizer que tinha ido justamente
+&agrave; aldeia para encommendar um caix&atilde;osinho
+decente...
+Como vira que era filho de pessoa de bem,
+n&atilde;o o quisera enterrar embrulhado n'um trapo. Mas
+emfim, como o senhor alli estava, parecia-lhe razoavel
+que d&eacute;sse algum dinheiro para a despeza...
+Uns dois mil reis que fossem.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro considerou-a um momento com um desejo
+brutal de a esganar; por fim, metteu-lhe o dinheiro
+na m&atilde;o. E ia trotando no carreiro, quando a
+sentiu ainda correndo, gritando <em>pst!
+pst!</em> A Carlota
+queria-lhe restituir o capote que elle emprest&aacute;ra na
+vespera: tinha feito muito bom servi&ccedil;o, que a
+crian&ccedil;a
+cheg&aacute;ra quente como um roj&atilde;osinho...
+Infelizmente...
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro j&aacute; a n&atilde;o escutava, esporeando furiosamente
+a ilharga da cavalgadura.
+<br />
+
+<br />
+
+Na cidade, depois de apear &agrave; porta do Cruz, n&atilde;o
+entrou em casa. Foi direito ao pa&ccedil;o do bispo. Tinha
+agora uma id&eacute;a s&oacute;: era deixar aquella cidade
+maldita,
+n&atilde;o v&ecirc;r mais as faces das devotas, nem a fachada
+odiosa da S&eacute;...
+<br />
+
+<br />
+
+Foi s&oacute; ao subir a larga escadaria de pedra do
+pa&ccedil;o, que lhe lembrou com inquieta&ccedil;&atilde;o
+o que o Libaninho
+dissera na vespera da indigna&ccedil;&atilde;o do senhor
+<span class="pagenum">[650]</span>
+vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade
+do padre Saldanha, o confidente do pa&ccedil;o, que
+o introduziu logo na livraria de sua excellencia, tranquillisou-o.
+O senhor vigario geral foi muito amavel.
+Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; que tenho um grande desgosto, senhor vigario
+geral. Minha irm&atilde; est&aacute; a morrer em Lisboa. E
+venho pedir a vossa excellencia licen&ccedil;a para l&aacute;
+ir,
+por uns dias...
+<br />
+
+<br />
+
+O senhor vigario geral consternou-se com bondade.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros
+for&ccedil;ados da barca de Charonte.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="poetry2">
+Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat<br />
+
+Et ferruginea subvectat corpora cymba.
+</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... N&atilde;o me esquecerei
+de a recommendar nas minhas ora&ccedil;&otilde;es...
+<br />
+
+<br />
+
+E muito methodico, sua excellencia tomou uma
+nota a lapis.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro, ao sahir do pa&ccedil;o, foi direito &aacute;
+S&eacute;. Fechou-se
+na sacristia, a essa hora deserta: e depois
+de pensar muito tempo com a cabe&ccedil;a entre os punhos,
+escreveu ao conego Dias:
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;Meu caro padre-mestre.&mdash;Treme-me a m&atilde;o ao
+escrever estas linhas. A infeliz morreu. Eu n&atilde;o posso,
+bem v&ecirc;, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse,
+estalava-me o cora&ccedil;&atilde;o. Sua excellentissima
+irm&atilde; l&aacute;
+<span class="pagenum">[651]</span>
+estar&aacute; tratando do enterro... Eu, como comprehende,
+n&atilde;o posso. Muito lhe agrade&ccedil;o tudo...
+At&eacute; um dia,
+se Deus quizer que nos tornemos a v&ecirc;r. Por mim
+conto ir para longe, para alguma pobre parochia de
+pastores, acabar meus dias nas lagrimas, na
+medita&ccedil;&atilde;o
+e na penitencia. Console como puder a desgra&ccedil;a
+da m&atilde;i. Nunca me esquecerei do que lhe devo, emquanto
+tiver um sopro de vida. E adeus, que nem
+sei onde tenho a cabe&ccedil;a.&mdash;Seu amigo do
+C.&mdash;<em>Amaro
+Vieira</em>.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+&laquo;P. S. A crian&ccedil;a morreu tambem, j&aacute; se
+enterrou.&raquo;
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Fechou a carta com uma obreia preta; e depois
+d'arranjar os seus papeis, foi abrir o grande port&atilde;o
+chapeado de ferro, olhar um momento o pateo, o
+barrac&atilde;o, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras
+chuvas j&aacute; davam &aacute;quelle recanto da S&eacute;
+o seu ar
+lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar, sob o silencio
+triste dos altos contrafortes, espreitou &aacute;
+vidra&ccedil;a
+da cozinha do tio Esguelhas: elle l&aacute; estava, sentado
+&aacute; chamin&eacute;, com o cachimbo na b&ocirc;ca,
+cuspilhando
+tristemente para as cinzas. Amaro bateu de leve nos
+vidros&mdash;e quando o sineiro abriu a porta, aquelle
+interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina
+da alcova da T&oacute;t&oacute;, a escada que ia para o quarto,
+agitaram o parocho de tantas recorda&ccedil;&otilde;es e de
+saudades
+t&atilde;o bruscas, que n&atilde;o p&ocirc;de fallar um
+momento,
+com a garganta tomada de solu&ccedil;os.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou
+<span class="pagenum">[652]</span>
+por fim. Vou a Lisboa, tenho minha irm&atilde; a morrer...
+<br />
+
+<br />
+
+E acrescentou com os bei&ccedil;os tremulos d'um ch&ocirc;ro
+que ia romper:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Todas as desgra&ccedil;as v&ecirc;m juntas. Sabe, a pobre
+Ameliasinha l&aacute; morreu de repente...
+<br />
+
+<br />
+
+O sineiro emmudeceu, assombrado.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeus, tio Esguelhas. D&ecirc; c&aacute; a m&atilde;o,
+tio Esguelhas.
+Adeus...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho
+com os olhos arrazados d'agua.
+<br />
+
+<br />
+
+Amaro fugiu para casa, contendo-se para n&atilde;o
+solu&ccedil;ar alto pelas ruas. Disse logo &aacute; Escolastica
+que
+ia partir n'essa noite para Lisboa. O tio Cruz devia
+mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a
+Ch&atilde;o de Ma&ccedil;&atilde;s.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu n&atilde;o tenho sen&atilde;o o dinheiro que &eacute;
+necessario
+para a jornada. Mas o que ahi me fica em len&ccedil;oes
+e toalhas &eacute; para voss&ecirc;...
+<br />
+
+<br />
+
+A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho,
+quiz beijar-lhe a m&atilde;o por tanta generosidade:
+offereceu-se para fazer a mala...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu mesmo a arranjo, Escolastica, n&atilde;o se incommode.
+<br />
+
+<br />
+
+Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando,
+foi logo recolher, examinar as poucas
+roupas que estavam pelos armarios. Mas Amaro
+d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma
+harpa e uma rebeca, em desafina&ccedil;&atilde;o, tocavam a
+valsa dos <em>Dois mundos</em>.
+<span class="pagenum">[653]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;D&ecirc; um tost&atilde;o a esses homens, disse o padre
+furioso. E diga-lhe que v&atilde;o p'r'&oacute; inferno... Que
+est&aacute;
+aqui gente doente!
+<br />
+
+<br />
+
+E at&eacute; &aacute;s cinco horas a Escolastica n&atilde;o
+tornou a
+sentir rumor no quarto.
+<br />
+
+<br />
+
+Quando o mo&ccedil;o do Cruz veio com o cavallo, pensando
+que o senhor parocho adormecera, ella foi-lhe
+bater devagarinho &aacute; porta do quarto, choramingando
+j&aacute; da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de
+capote aos hombros; no meio do quarto prompta
+e acorreada a mala de lona que devia ir &aacute; garupa
+da egoa. Deu-lhe um ma&ccedil;o de cartas para ir entregar
+n'essa noite &agrave; snr.<sup>a</sup> D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o, ao
+padre Silverio e a Natario: e ia descer, entre os
+prantos da mulher, quando sentiu na escada um ruido
+conhecido de muleta, e o tio Esguelhas appareceu
+muito commovido.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Entre, tio Esguelhas, entre.
+<br />
+
+<br />
+
+O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um
+momento:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me
+esquecido de todo, com os desgostos que
+tenho passado. J&aacute; ha tempo que achei no quarto
+isto, e pensei que...
+<br />
+
+<br />
+
+E metteu na m&atilde;o de Amaro um brinco d'ouro.
+Elle reconheceu-o logo: era d'Amelia. Muito tempo
+ella o procur&aacute;ra debalde; solt&aacute;ra-se decerto
+n'alguma
+manh&atilde; d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro
+ent&atilde;o, suffocado, abra&ccedil;ou o tio Esguelhas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por c&aacute;
+<span class="pagenum">[654]</span>
+de mim. D&ecirc; lembran&ccedil;as ao Mathias, tio Esguelhas...
+<br />
+
+<br />
+
+O mo&ccedil;o afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu,
+deixando a Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar
+ambos &aacute; porta.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas depois de ter passado os a&ccedil;udes, ao p&eacute; d'uma
+volta da estrada, teve de apear para comp&ocirc;r o estribo:
+e ia montar, quando appareceram dobrando o
+muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor
+administrador do concelho, muito amigos agora,
+e que vinham, depois do passeio, recolhendo para a
+cidade. Pararam logo a fallar ao senhor parocho&mdash;admirando-se
+de o v&ecirc;r alli, de maleta na garupa,
+com ares de jornada...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; verdade, disse, vou para Lisboa!
+<br />
+
+<br />
+
+O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe
+a felicidade.&mdash;Mas quando o parocho
+fallou da irm&atilde; moribunda, affligiram-se com polidez;
+e o senhor administrador disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deve estar muito sentido, comprehendo... De
+mais a mais essa outra desgra&ccedil;a na casa d'aquellas
+senhoras suas amigas... A pobre Ameliasinha, morta
+assim de repente...
+<br />
+
+<br />
+
+O antigo Bibi exclamou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O qu&ecirc;? A Ameliasinha, aquella bonita que
+morava na rua da Misericordia? Morreu?
+<br />
+
+<br />
+
+O doutor Godinho tambem o ignorava, e pareceu
+consternado.
+<br />
+
+<br />
+
+O senhor administrador soubera-o pela sua criada,
+que o ouvira da Dionysia. Dizia-se que f&ocirc;ra um
+aneurisma.
+<span class="pagenum">[655]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe
+se afflijo as suas cren&ccedil;as respeitaveis, que s&atilde;o
+as
+minhas de resto... Mas Deus commetteu um verdadeiro
+crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da
+cidade! Que olhos, senhores! E depois com aquelle
+picantesinho da virtude...
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, n'um tom de pezames, todos lamentaram
+aquelle golpe que devia ter affectado tanto o senhor
+parocho.
+<br />
+
+<br />
+
+Elle disse muito grave:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com
+as suas boas qualidades, devia fazer, sem duvida,
+uma esposa mod&ecirc;lo... Senti-o muito.
+<br />
+
+<br />
+
+Apertou silenciosamente as m&atilde;os em redor&mdash;e
+emquanto os cavalheiros recolhiam &aacute; cidade, o padre
+Amaro foi trotando pela estrada, que j&aacute; escurecia,
+para a esta&ccedil;&atilde;o de Ch&atilde;o de
+Ma&ccedil;&atilde;s.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia
+sahiu da Rico&ccedil;a. Era uma manh&atilde; aspera: o
+c&eacute;o
+e os campos estavam afogados n'uma nevoa pardacenta;
+e cahia, muito miuda, uma chuva regelada.
+Era longe da quinta a capella dos Poyaes. O menino
+do c&ocirc;ro adiante, de cruz al&ccedil;ada, apressava-se,
+chapinhando
+a lama a grandes pernadas; o abbade Ferr&atilde;o,
+d'estola negra, abrigava-se, murmurando o <em>Exultabunt
+Domino</em>, sob o guardachuva que sustentava ao
+lado o sacrist&atilde;o com o hyssope; quatro trabalhadores
+<span class="pagenum">[656]</span>
+da quinta, abaixando a cabe&ccedil;a contra a chuva
+obliqua, levavam n'uma padiola o esquife que tinha
+dentro o caix&atilde;o de chumbo; e, sob o vasto guardachuva
+do caseiro, a Gertrudes de mant&eacute;o pela cabe&ccedil;a
+ia desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o
+valle triste dos Poyaes cavava-se, todo pardo na neblina,
+n'um grande silencio; e a voz enorme do vigario,
+mugindo o <em>Miserere</em>, rolava pela
+quebrada humida
+onde murmuravam os riachos muito cheios.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas &aacute;s primeiras casas da aldeia os mo&ccedil;os do
+caix&atilde;o pararam derreados; e ent&atilde;o um homem, que
+estava esperando debaixo d'uma arvore sob o seu
+guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro.
+Era Jo&atilde;o Eduardo, de luvas pretas, carregado
+de luto, com as olheiras cavadas em dois sulcos negros,
+grossas lagrimas a correrem-lhe nas faces. E
+immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se
+dois criados de farda, com as cal&ccedil;as muito
+arrega&ccedil;adas
+e tochas na m&atilde;o&mdash;dois lacaios que mand&aacute;ra
+o Morgado, para honrar o enterro d'uma d'essas
+senhoras da Rico&ccedil;a, amigas do abbade.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o, vendo estas duas libr&eacute;s que vinham
+afidalgar
+o prestito, o menino do c&ocirc;ro rompeu logo,
+erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, j&aacute;
+sem fadiga, impertigaram-se &aacute;s varas da padiola: o
+sacrist&atilde;o bramiu um
+<em>Requiem</em> tremendo. E pelas lamas
+do &iacute;ngreme caminho da aldeia foi subindo o
+enterro, emquanto &agrave;s portas as mulheres se ficavam
+persignando, olhando as sobrepellizes brancas e
+o caix&atilde;o de gal&otilde;es d'ouro, que se iam afastando
+seguidos
+<span class="pagenum">[657]</span>
+do grupo de guardachuvas abertos, sob a
+chuva triste.
+<br />
+
+<br />
+
+A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras:
+o sino dobrava: e o enterro sumiu-se para o
+interior da igreja escura, ao canto do <em>Subvenite
+sancti</em> que o sacrist&atilde;o entoou em
+ronco.&mdash;Mas os
+dois criados de farda n&atilde;o entraram porque o senhor
+Morgado assim o tinha ordenado.
+<br />
+
+<br />
+
+Ficaram &aacute; porta, sob o guardachuva, escutando,
+batendo os p&eacute;s regelados. Dentro seguia o
+cantoch&atilde;o;
+depois era um ciciar d'ora&ccedil;&otilde;es que se amortecia:
+e de repente latins funebres lan&ccedil;ados pela
+voz grossa do vigario.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o os dois homens, enfastiados, desceram do
+adro, entraram um momento na taberna do tio Seraphim.
+Dois mo&ccedil;os de gado da quinta do Morgado,
+que bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se
+logo vendo apparecer os dois criados de farda.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Aacute; vontade, rapazes, &eacute; sentar e beber, disse o
+velho baixito que acompanhava Jo&atilde;o Eduardo a cavallo.
+N&oacute;s l&aacute; estamos, na massada do enterro...
+Boas tardes, snr. Seraphim.
+<br />
+
+<br />
+
+Apertaram a m&atilde;o ao Seraphim, que lhes mediu
+duas aguardentes&mdash;e informou-se se a defunta era
+a noiva do snr. Jo&atilde;osinho. Tinham-lhe dito que morrera
+d'uma veia rebentada.
+<br />
+
+<br />
+
+O baixito riu:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual veia rebentada! N&atilde;o lhe rebentou coisa
+nenhuma. O que lhe rebentou foi um rapag&atilde;o pelo
+ventre...
+<span class="pagenum">[658]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Obra do snr. Jo&atilde;osinho? perguntou o Seraphim,
+arregalando o olho br&eacute;jeiro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o me parece, disse o outro com importancia.
+O snr. Jo&atilde;osinho estava em Lisboa... Obra d'algum
+cavalheiro da cidade... Sabe vossemec&ecirc; de
+quem eu desconfio, snr. Seraphim?...
+<br />
+
+<br />
+
+Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna
+gritando que o sahimento j&aacute; ia ao p&eacute; do
+cemiterio,
+e que n&atilde;o faltavam sen&atilde;o &laquo;aquelles
+senhores&raquo;!
+Os lacaios abalaram logo, e alcan&ccedil;aram o enterro
+quando ia passando a pequena grade do cemiterio,
+ao ultimo versiculo do <em>Miserere</em>.
+Jo&atilde;o Eduardo agora
+levava uma vela na m&atilde;o, ia logo atraz do caix&atilde;o
+d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados
+de lagrimas fitos no velludilho negro que o cobria.
+Sem cessar o sino na capella dobrava desoladamente.
+A chuva cahia mais miuda. E todos calados, no
+silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela
+terra molle, iam-se dirigindo para o canto do muro
+onde estava cavada de fresco a cova d'Amelia, negra
+e profunda entre a relva humida. O menino do
+c&ocirc;ro cravou no ch&atilde;o a haste da cruz prateada, e o
+abbade Ferr&atilde;o, adiantando-se at&eacute; &aacute;
+beira do buraco
+escuro, murmurou o <em>Deus cujus
+miseratione</em>... Ent&atilde;o
+Jo&atilde;o Eduardo, muito pallido, vacillou de repente,
+e o guardachuva cahiu-lhe das m&atilde;os; um dos
+criados de farda correu, segurou-o pela cinta; queriam-no
+levar, arrancal-o d'ao p&eacute; da cova; mas elle
+resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados, segurando-se
+desesperadamente &aacute; manga do criado, vendo
+<span class="pagenum">[659]</span>
+o coveiro e os dois mo&ccedil;os amarrarem as cordas
+no caix&atilde;o, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
+esfarellada que rolava, com um ranger de taboas
+mal pregadas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Requiem aeternam donna ei, Domine!</em>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Et lux perpetua luceat ei</em>, mugiu o
+sacrist&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+O caix&atilde;o bateu no fundo com uma pancada surda:
+o abbade espalhou em cima uma pouca de terra
+em f&oacute;rma de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope
+sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Requiescat in pace</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Amen</em>, responderam a voz cava do
+sacrist&atilde;o e
+a voz aguda do menino do c&ocirc;ro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;<em>Amen</em>, disseram todos n'um
+murmurio, que
+ciciou, se perdeu entre os cyprestes, as hervas, os
+tumulos e as nevoas frias d'aquelle triste dia de dezembro.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<h3>XXVI
+</h3>
+
+<br />
+
+<br />
+
+Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoro&ccedil;o
+na Casa Havaneza, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas
+esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que
+atulhavam a porta, e al&ccedil;ando-se em bicos de p&eacute;s
+esticavam o pesco&ccedil;o, por entre a massa dos chapeus,
+para a grade do balc&atilde;o, onde n'uma taboleta
+suspensa se collavam os telegrammas da <em>Agencia
+Havas</em>; sujeitos de faces espantadas sahiam
+consternados,
+exclamando logo para algum amigo mais pacato
+que os esper&aacute;ra f&oacute;ra:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo perdido! Tudo a arder!
+<br />
+
+<br />
+
+Dentro, na multid&atilde;o de grulhas que se apertava
+contra o balc&atilde;o, questionava-se forte; e pelo passeio,
+no largo do Loreto, defronte ao p&eacute; do estanco, pelo
+Chiado at&eacute; ao Magalh&atilde;es, era, por aquelle dia
+j&aacute; quente
+<span class="pagenum">[662]</span>
+do come&ccedil;o de ver&atilde;o, toda uma gralhada de vozes
+impressionadas onde as palavras&mdash;<em>Communistas!
+Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime!
+Internacional!</em>
+voltavam a cada momento, lan&ccedil;adas com
+furor, entre o ruido das tipoias e os preg&otilde;es dos garotos
+gritando <em>supplementos</em>.
+<br />
+
+<br />
+
+Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas
+annunciando os episodios successivos da
+insurrei&ccedil;&atilde;o
+batalhando nas ruas de Paris: telegrammas despedidos
+de Versailles n'um terror dizendo os palacios que
+ardiam, as ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa
+nos pateos dos quarteis e entre os mausoleus dos
+cemiterios; a vingan&ccedil;a que ia saciar-se at&eacute;
+&aacute; escurid&atilde;o
+dos esgotos; a fatal demencia que desvairava
+as fardas e as blusas; e a resistencia que tinha o furor
+de uma agonia com os methodos d'uma sciencia,
+e fazia saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela
+dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convuls&atilde;o, um
+fim de mundo&mdash;que vinte, trinta palavras de repente
+mostravam, n'um relance, a um clar&atilde;o de fogueira.
+<br />
+
+<br />
+
+O Chiado lamentava com indigna&ccedil;&atilde;o aquella ruina
+de Paris. Recordavam-se com exclama&ccedil;&otilde;es os
+edificios
+ardidos, o Hotel de Ville, &laquo;t&atilde;o bonito&raquo;,
+a rua Royale,
+&laquo;aquella riqueza&raquo;. Havia individuos t&atilde;o
+furiosos
+com o incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade
+sua: os que tinham estado em Paris um ou
+dois mezes abriam-se em invectivas, arrogando-se
+uma participa&ccedil;&atilde;o de parisiense na riqueza da
+cidade,
+escandalisados por a insurrei&ccedil;&atilde;o n&atilde;o
+ter respeitado
+monumentos em que elles tinham posto os seus olhos.
+<span class="pagenum">[663]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vejam voss&ecirc;s! exclamava um sujeito gordo.
+O palacio da Legi&atilde;o d'Honra destruido! Ainda n&atilde;o
+ha um mez que eu l&aacute; estive com minha mulher...
+Que infamia! Que patifaria!
+<br />
+
+<br />
+
+Mas espalh&aacute;ra-se que o ministerio recebera outro
+telegramma mais desolador: toda a linha do
+<em>boulevard</em>
+da Bastilha &aacute; Magdalena ardia, e ainda a pra&ccedil;a
+da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos at&eacute;
+ao Arco do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado,
+n'uma demencia, todo aquelle systema de restaurantes,
+caf&eacute;s-concertos, bailes publicos, casas de jogo
+e ninhos de prostitutas! Ent&atilde;o houve por todo o largo
+do Loreto at&eacute; ao Magalh&atilde;es um estremecimento de
+furor. Tinham pois as chammas aniquilado aquella
+centralisa&ccedil;&atilde;o t&atilde;o commoda da
+patuscada! Oh que infamia!
+O mundo acabava! Onde se comeria melhor
+que em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais
+experientes? Onde se tornaria a v&ecirc;r aquelle desfilar
+prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e
+seccos d'inverno, quando as victorias das cocottes
+resplandeciam ao p&eacute; dos phaetons dos agentes da
+Bolsa? Que abomina&ccedil;&atilde;o! Esqueciam-se as
+bibliothecas
+e os museus: mas a saudade era sincera pela
+destrui&ccedil;&atilde;o dos caf&eacute;s e pelo incendio
+dos lupanares.
+Era o fim de Paris, era o fim da Fran&ccedil;a!
+<br />
+
+<br />
+
+N'um grupo ao p&eacute; da Casa Havaneza os questionadores
+politicavam: pronunciava-se o nome de Proudhon
+que, por esse tempo, se come&ccedil;ava a citar vagamente
+em Lisboa como um monstro sanguinolento;
+e as invectivas rompiam contra Proudhon. A
+<span class="pagenum">[664]</span>
+maior parte imaginava que era elle que tinha incendiado.
+Mas o poeta estimado das <em>Fl&ocirc;res e
+Ais</em> acudiu
+dizendo &laquo;que, &agrave; parte as asneiras que Proudhon
+dizia,
+era ainda assim um estylista bastante ameno&raquo;.
+Ent&atilde;o o jogador Fran&ccedil;a berrou:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Qual estylo, qual caba&ccedil;a! Se aqui o pilhasse
+no Chiado rachava-lhe os ossos!
+<br />
+
+<br />
+
+E rachava. Depois do cognac o Fran&ccedil;a era uma
+fera.
+<br />
+
+<br />
+
+Alguns mo&ccedil;os por&eacute;m, a quem o elemento dramatico
+da catastrophe revolvia o instincto romantico,
+applaudiam a heroicidade da Communa&mdash;Vermorel
+abrindo os bra&ccedil;os como o Crucificado, e sob as balas
+que o trespassavam gritando: Viva a humanidade! O
+velho Delecluze, com um fanatismo de santo, dictando
+do seu leito d'agonia as violencias da resistencia...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;S&atilde;o grandes homens! exclamava um rapaz
+exaltado.
+<br />
+
+<br />
+
+Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se
+pallidas, vendo j&aacute; as suas casas na Baixa a
+escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza presa
+de chammas socialistas. Ent&atilde;o era em todos os grupos
+um furor d'auctoridade e repress&atilde;o: era necessario
+que a sociedade, atacada pela Internacional, se refugiasse
+na for&ccedil;a dos seus principios conservadores e
+religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes
+com tendas de capellistas fallavam da &laquo;canalha&raquo; com
+o desdem imponente d'um La Tremouille ou d'um
+Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a
+vingan&ccedil;a. Vadios pareciam furiosos &laquo;contra o
+operario
+<span class="pagenum">[665]</span>
+que quer viver como principe&raquo;. Fallava-se com
+devo&ccedil;&atilde;o na propriedade, no capital!
+<br />
+
+<br />
+
+D'outro lado eram mo&ccedil;os verbosos, localistas excitados
+que declamavam contra o velho mundo, a
+velha id&eacute;a, amea&ccedil;ando-os d'alto, propondo-se a
+derruil-os
+em artigos tremendos.
+<br />
+
+<br />
+
+E assim uma burguezia entorpecida esperava
+deter, com alguns policias, uma evolu&ccedil;&atilde;o social:
+e
+uma mocidade, envernizada de litteratura, decidia
+destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos.
+Mas ninguem se mostrava mais exaltado que
+um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau
+da Casa Havaneza brandia a bengala, aconselhando
+&aacute; Fran&ccedil;a a restaura&ccedil;&atilde;o dos
+Bourbons.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o um homem vestido de preto, que sahira do
+estanco e atravessava por entre os grupos, parou,
+sentindo uma voz espantada que exclamava ao lado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; padre Amaro! &oacute; magan&atilde;o!
+<br />
+
+<br />
+
+Voltou-se: era o conego Dias. Abra&ccedil;aram-se com
+vehemencia, e para conversarem mais tranquillamente
+foram andando at&eacute; ao largo de Cam&otilde;es, e alli
+pararam, junto &aacute; estatua:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ent&atilde;o voss&ecirc; quando chegou, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda
+com os Pimentas da Pojeira por causa d'uma servid&atilde;o
+na quinta, tinha appellado para a Rela&ccedil;&atilde;o, e
+vinha seguir de perto a quest&atilde;o na capital.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E voss&ecirc;, Amaro? Na ultima carta dizia-me que
+tinha vontade de sahir de Santo Thyrso.
+<br />
+
+<br />
+
+Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas
+<span class="pagenum">[666]</span>
+vag&aacute;ra Villa-Franca, e elle, para estar mais perto da
+capital, viera fallar com o senhor conde de Ribamar,
+o seu conde, que l&aacute; andava obtendo a transferencia.
+Devia-lhe tudo, sobretudo &aacute; senhora condessa!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E de Leiria? A S. Joanneira, vai melhor?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o, coitada... Voss&ecirc; sabe, ao principio tivemos
+um susto dos diabos... Pensavamos que lhe ia
+succeder como &aacute; Amelia. Mas n&atilde;o, era
+hydropesia...
+E alli o que ha &eacute; anasarca...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Coitada, santa senhora! E o Natario?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Avelhado. Tem tido seus desgostos. Muita
+lingua.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E diga l&aacute;, padre-mestre, o Libaninho?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o conego
+rindo.
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro riu tambem: e durante um momento
+os dois sacerdotes pararam, apertando as
+ilhargas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Pois &eacute; verdade, disse emfim o conego. A
+coisa tinha sido realmente escandalosa... Porque
+emfim, repare o amigo que o pilharam com o sargento,
+de tal modo que n&atilde;o havia a duvidar...
+E &aacute;s dez horas da noite, na alameda! J&aacute;
+&eacute; imprudencia...
+Mas emfim a coisa esqueceu, e quando o
+Mathias morreu, l&aacute; lhe demos o logar de
+sacrist&atilde;o,
+que &eacute; bem boa posta... Muito melhor que o que
+elle tinha no cartorio... E ha de cumprir com
+zelo!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ha de cumprir com zelo, concordou muito s&eacute;rio
+<span class="pagenum">[667]</span>
+o padre Amaro. E a proposito, a D. Maria da
+Assump&ccedil;&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Homem, rosnam-se coisas... Criado novo...
+Um carpinteiro que morava defronte... O rapaz anda
+no trinque.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Palavra?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;No trinque. Charuto, relogio, luva! Tem pilheria,
+hein?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Eacute; divino!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;As Gansosos na mesma, continuou o conego.
+T&ecirc;m agora a sua criada, a Escolastica.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E da besta do Jo&atilde;o Eduardo?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Eu mandei-lhe dizer, n&atilde;o? L&aacute; est&aacute;
+ainda nos
+Poyaes. O Morgado est&aacute; mal do figado. E o Jo&atilde;o
+Eduardo diz que est&aacute; tisico... que eu n&atilde;o sei,
+nunca mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferr&atilde;o.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Como vai elle, o Ferr&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Bem. Sabe quem eu vi ha dias? A Dionysia.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E ent&atilde;o?
+<br />
+
+<br />
+
+O conego disse uma palavra baixo ao ouvido do
+padre Amaro.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deveras, padre-mestre?
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga
+casa. O D. Luiz da Barrosa &eacute; que lhe deu o dinheiro
+para montar o estabelecimento. Pois aqui
+est&atilde;o as novidades. E voss&ecirc; est&aacute; mais
+forte, homem!
+Fez-lhe bem a mudan&ccedil;a...
+<br />
+
+<br />
+
+E pondo-se diante, galhofando:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;&Oacute; Amaro, e voss&ecirc; a escrever-me que queria
+<span class="pagenum">[668]</span>
+retirar-se para a serra, ir para um convento, passar
+a vida em penitencia...
+<br />
+
+<br />
+
+O padre Amaro encolheu os hombros:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que quer voss&ecirc;, padre-mestre?... N'aquelles
+primeiros momentos... Olhe que me custou! Mas
+tudo passa...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma
+pausa:&mdash;Ah! Mas Leiria j&aacute; n&atilde;o &eacute;
+Leiria!
+<br />
+
+<br />
+
+Passearam ent&atilde;o um momento em silencio, n'uma
+recorda&ccedil;&atilde;o que lhes vinha do passado, os quinos
+divertidos
+da S. Joanneira, as palestras ao ch&aacute;, as passeatas
+ao Morenal, o <em>Adeus</em> e o
+<em>Descrido</em> cantados
+pelo Arthur Couceiro e acompanhados pela pobre
+Amelia, que agora l&aacute; dormia, no cemiterio dos
+Poyaes, sob as fl&ocirc;res silvestres...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E que me diz voss&ecirc; a estas coisas de Fran&ccedil;a,
+Amaro? exclamou de repente o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma
+sucia de padres fuzilados!... Que brincadeira!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;M&aacute; brincadeira, rosnou o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+E o padre Amaro:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E c&aacute; pelo nosso canto parece que come&ccedil;am
+tambem essas id&eacute;as...
+<br />
+
+<br />
+
+O conego assim o ouvira. Ent&atilde;o indignaram-se
+contra essa turba de ma&ccedil;ons, de republicanos, de
+socialistas,
+gente que quer a destrui&ccedil;&atilde;o de tudo o que
+&eacute; respeitavel&mdash;o clero, a instruc&ccedil;&atilde;o
+religiosa, a familia,
+o exercito e a riqueza... Ah! a sociedade estava
+amea&ccedil;ada por monstros desencadeados! Eram
+<span class="pagenum">[669]</span>
+necessarias as antigas repress&otilde;es, a masmorra e a
+forca. Sobretudo inspirar aos homens a f&eacute; e o respeito
+pelo sacerdote.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Ahi &oacute; que est&aacute; o mal, disse Amaro, &eacute;
+que nos
+n&atilde;o respeitam! N&atilde;o fazem sen&atilde;o
+desacreditar-nos...
+Destroem no povo a venera&ccedil;&atilde;o pelo sacerdocio...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Calumniam-nos infamamente, disse n'um tom
+profundo o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+Ent&atilde;o junto d'elles passaram duas senhoras, uma
+j&aacute; de cabellos brancos, o ar muito nobre; a outra,
+uma creaturinha delgada e pallida, d'olheiras batidas,
+os cotov&ecirc;los agudos collados a uma cinta d'esterilidade,
+<em>pouff</em> enorme no vestido, cuia forte,
+tac&otilde;es de
+palmo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Caspit&egrave;! disse o conego baixo, tocando o
+cotov&ecirc;lo
+do collega. Hein, seu padre Amaro?... Aquillo
+&eacute; que voss&ecirc; queria confessar.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;J&aacute; l&aacute; vai o tempo, padre-mestre, disse o
+parocho
+rindo, j&aacute; as n&atilde;o confesso sen&atilde;o
+casadas!
+<br />
+
+<br />
+
+O conego abandonou-se um momento a uma
+grande hilaridade; mas retomou o seu ar ponderoso
+de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente
+o chap&eacute;o a um cavalheiro de bigode grisalho
+e oculos d'ouro, que entrava na pra&ccedil;a, do lado do
+Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guardasol
+debaixo do bra&ccedil;o.
+<br />
+
+<br />
+
+Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com
+bonhomia para os dois sacerdotes; e Amaro, descoberto
+e perfilado, apresentou &laquo;o seu amigo, o senhor
+conego Dias, da S&eacute; de Leiria&raquo;. Conversaram um
+momento
+<span class="pagenum">[670]</span>
+da esta&ccedil;&atilde;o, que j&aacute; ia quente. Depois o
+padre
+Amaro fallou dos ultimos telegrammas.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Que diz vossa excellencia a estas coisas de
+Fran&ccedil;a, senhor conde?
+<br />
+
+<br />
+
+O estadista agitou as m&atilde;os, n'uma
+desola&ccedil;&atilde;o que
+lhe assombreava a face:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem
+me falle n'isso... V&ecirc;r meia duzia de bandidos destruir
+Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias
+que tenho estado doente.
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois sacerdotes, com uma express&atilde;o consternada,
+uniram-se &aacute; d&ocirc;r do estadista.
+<br />
+
+<br />
+
+E ent&atilde;o o conego:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E qual pensa vossa excellencia que ser&aacute; o resultado?
+<br />
+
+<br />
+
+O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras
+que sabiam devagar, sobrecarregadas do peso
+das id&eacute;as, disse:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;O resultado?... N&atilde;o &eacute; difficil prevel-o. Quando
+se tem alguma experiencia da Historia e da Politica,
+o resultado de tudo isto v&ecirc;-se distinctamente.
+T&atilde;o distinctamente como os vejo a vossas senhorias.
+<br />
+
+<br />
+
+Os dois sacerdotes pendiam dos labios propheticos
+do homem de governo.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Suffocada a insurrei&ccedil;&atilde;o&mdash;continuou o senhor
+conde olhando a direito diante de si com o dedo no
+ar, como seguindo, apontando os futuros historicos
+que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro, penetrava&mdash;suffocada
+a insurrei&ccedil;&atilde;o, dentro de tres mezes
+temos de novo o imperio... Se vossas senhorias
+<span class="pagenum">[671]</span>
+tivessem visto como eu uma recep&ccedil;&atilde;o nas Tulherias
+ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio,
+haviam de dizer, como eu, que a Fran&ccedil;a &eacute;
+profundamente
+imperialista e s&oacute; imperialista... Temos
+pois Napole&atilde;o III: ou talvez elle abdique, e a
+imperatriz tome a regencia na menoridade do principe
+imperial... Eu aconselharia antes, e j&aacute; o fiz
+saber, que era esta talvez a solu&ccedil;&atilde;o mais
+prudente.
+Como consequencia immediata temos o Papa
+em Roma outra vez senhor do poder temporal...
+Eu, a fallar a verdade, e j&aacute; o fiz saber, n&atilde;o
+approvo
+uma restaura&ccedil;&atilde;o papal. Mas eu n&atilde;o lhes
+estou aqui a dizer o que approvo, ou o que reprovo.
+Felizmente n&atilde;o sou o dono da Europa...
+Seria um encargo superior &aacute; minha idade e &aacute;s
+minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha
+experiencia da Politica e da Historia me aponta
+como certo... Dizia eu...? Ah! a imperatriz
+no throno de Fran&ccedil;a, Pio Nono no throno de Roma,
+ahi temos a democracia esmagada entre estas
+duas for&ccedil;as sublimes, e creiam vossas senhorias
+um homem que conhece a sua Europa e os
+elementos de que se comp&otilde;e a sociedade moderna,
+creiam que depois d'este exemplo da Communa n&atilde;o
+se torna a ouvir fallar de republica, nem de quest&atilde;o
+social, nem de povo, n'estes cem annos mais
+chegados!...
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Deus Nosso Senhor o ou&ccedil;a, senhor conde, fez
+com un&ccedil;&atilde;o o conego.
+<br />
+
+<br />
+
+Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma pra&ccedil;a
+<span class="pagenum">[672]</span>
+de Lisboa, em conversa&ccedil;&atilde;o intima com um estadista
+illustre, perguntou ainda, pondo nas palavras
+uma anciedade de conservador assustado:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;E cr&ecirc; vossa excellencia que essas id&eacute;as de
+republica, de materialismo, se possam espalhar entre
+n&oacute;s?
+<br />
+
+<br />
+
+O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois
+padres, at&eacute; quasi junto das grades que cercam a estatua
+de Luiz de Cam&otilde;es:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;N&atilde;o lhes d&ecirc; isso cuidado, meus senhores,
+n&atilde;o
+lhes d&ecirc; isso cuidado! &Eacute; possivel que haja ahi um
+ou dois esturrados que se queixem, digam tolices
+sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um
+marasmo, e que vamos cahindo no embrutecimento,
+e que isto assim n&atilde;o p&oacute;de durar dez annos. etc.
+etc. Babuseiras!...
+<br />
+
+<br />
+
+Tinha-se encostado quasi &aacute;s grades da estatua, e
+tomando uma attitude de confian&ccedil;a:
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;A verdade, meus senhores, &eacute; que os estrangeiros
+invejam-nos... E o que vou a dizer n&atilde;o &eacute;
+para lisonjear a vossas senhorias: mas emquanto
+n'este paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas
+senhorias, Portugal ha de manter com dignidade
+o seu logar na Europa! Porque a f&eacute;, meus senhores,
+&eacute; a base da ordem!
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram
+com for&ccedil;a os dois sacerdotes.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Sen&atilde;o, vejam vossas senhorias isto! Que paz,
+que anima&ccedil;&atilde;o, que prosperidade!
+<br />
+
+<br />
+
+E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do
+<span class="pagenum">[673]</span>
+Loreto, que &aacute;quella hora, n'um fim de tarde serena
+concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias rodavam
+devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia
+e tac&atilde;o alto, com os movimentos derreados, a pallidez
+chlorotica d'uma degenera&ccedil;&atilde;o de ra&ccedil;a;
+n'alguma
+magra pileca, ia trotando algum mo&ccedil;o de nome historico,
+com a face ainda esverdeada da noitada de
+vinho; pelos bancos da pra&ccedil;a gente estirava-se n'um
+torp&ocirc;r de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos
+sobre as suas altas rodas, era como o symbolo
+de agriculturas atrazadas de seculos; fadistas gingavam,
+de cigarro nos dentes; algum burguez enfastiado
+lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas;
+nas faces enfezadas de operarios havia como a
+personifica&ccedil;&atilde;o das industrias moribundas... E
+todo
+este mundo decrepito se movia lentamente, sob um
+c&eacute;o lustroso de clima rico, entre garotos apregoando
+a loteria e a batota publica, e rapazitos de voz plangente
+offerecendo o <em>Jornal das pequenas
+novidades</em>:
+e iam, n'um vagar madra&ccedil;o, entre o largo onde se
+erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque
+comprido das casarias da pra&ccedil;a onde brilhavam tres
+taboletas de casas de penhores, negrejavam quatro
+entradas de taberna, e desembocavam, com um tom
+sujo d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro
+de prostitui&ccedil;&atilde;o e de crime.
+<br />
+
+<br />
+
+&mdash;Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta
+paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus
+senhores, n&atilde;o admira realmente que sejamos a inveja
+da Europa!
+<span class="pagenum">[674]</span>
+<br />
+
+<br />
+
+E o homem d'estado, os dois homens de religi&atilde;o,
+todos tres em linha, junto &aacute;s grades do monumento,
+gozavam de cabe&ccedil;a alta esta certeza gloriosa da
+grandeza do seu paiz,&mdash;alli ao p&eacute; d'aquelle pedestal,
+sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto
+e nobre, com os seus largos hombros de cavalleiro
+forte, a epopeia sobre o cora&ccedil;&atilde;o, a espada firme,
+cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da
+antiga patria&mdash;patria para sempre passada, memoria
+quasi perdida!
+<br />
+
+<br />
+
+Outubro 1878&mdash;Outubro 1879.
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<br />
+
+<div class="fbox">
+<h2>Lista de erros corrigidos</h2>
+
+<div style="text-align: center;">Aqui encontram-se
+listados todos os erros encontrados e corrigidos:</div>
+
+<br />
+
+<br />
+
+<table style="width: 80%; text-align: left; margin-left: auto; margin-right: auto;" border="0" cellpadding="4" cellspacing="4">
+
+ <tbody>
+
+ <tr align="right">
+
+ <td style="width: 61px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 121px;">Original</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;"></td>
+
+ <td style="font-weight: bold; text-align: center; width: 135px;">Correc&ccedil;&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e1" id="e1"></a><a href="#p81">#p&aacute;g.
+81</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">?uz</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">luz</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e2" id="e2"></a><a href="#p88">
+#p&aacute;g. 88</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">arcepispo</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">arcebispo</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e3" id="e3"></a><a href="#p95">
+#p&aacute;g. 95</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">bran&ccedil;os</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">bra&ccedil;os</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right; width: 61px;"><a name="e4" id="e4"></a><a href="#p152">
+#p&aacute;g.
+152</a></td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 121px;">elle</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 5px;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center; width: 135px;">ella</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e5" id="e5"></a><a href="#p344">
+#p&aacute;g. 344</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">demolissse</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">demolisse</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e6" id="e6"></a><a href="#p357">
+#p&aacute;g. 357</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">relig&atilde;o</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">religi&atilde;o</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e7" id="e7"></a><a href="#p357">
+#p&aacute;g. 357</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">Infelimente</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">Infelizmente</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e8" id="e8"></a><a href="#p357">
+#p&aacute;g. 357</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">podia ter ter</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">podia ter</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e9" id="e9"></a><a href="#p360">
+#p&aacute;g. 360</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">tataruga</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">tartaruga</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e10" id="e10"></a><a href="#p372">
+#p&aacute;g. 372</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">patite</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">patife</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e11" id="e11"></a><a href="#p396">
+#p&aacute;g. 396</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">exemplicar</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">exemplificar</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e12" id="e12"></a><a href="#p397">
+#p&aacute;g. 397</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">cebe&ccedil;a</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">cabe&ccedil;a</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e13" id="e13"></a><a href="#p425">
+#p&aacute;g. 425</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">installado-se</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">installando-se</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e14" id="e14"></a><a href="#p428">
+#p&aacute;g. 428</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">encondo</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">encontrado</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e15" id="e15"></a><a href="#p430">
+#p&aacute;g. 430</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">iria em em</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">iria em</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e16" id="e16"></a><a href="#p436">
+#p&aacute;g. 436</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">enconder</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">esconder</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e17" id="e17"></a><a href="#p460">
+#p&aacute;g. 460</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">atravessassse</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">atravessasse</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e18" id="e18"></a><a href="#p463">
+#p&aacute;g. 463</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">malacia</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">malicia</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e19" id="e19"></a><a href="#p478">
+#p&aacute;g. 478</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">grades</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">grandes</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e20" id="e20"></a><a href="#p489">
+#p&aacute;g. 489</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">necesario</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">necessario</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e21" id="e21"></a><a href="#p489">
+#p&aacute;g. 489</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">viessa</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">viesse</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e22" id="e22"></a><a href="#p492">
+#p&aacute;g. 492</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">entercimento</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">enternecimento</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e23" id="e23"></a><a href="#p558">
+#p&aacute;g. 558</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">appareeeu</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">appareceu</td>
+
+ </tr>
+
+ <tr>
+
+ <td style="text-align: right;"><a name="e24" id="e24"></a><a href="#p634">
+#p&aacute;g. 634</a></td>
+
+ <td style="text-align: center;">cruxifico</td>
+
+ <td style="text-align: center;">...</td>
+
+ <td style="text-align: center;">crucifixo</td>
+
+ </tr>
+
+ </tbody>
+</table>
+
+<div style="text-align: center;">
+<br />
+
+O original n&atilde;o tem cap&iacute;tulo XI, no entanto, a
+numera&ccedil;&atilde;o das p&aacute;ginas n&atilde;o
+apresenta quebra
+na narra&ccedil;&atilde;o. Opt&aacute;mos por
+n&atilde;o corrigir a
+numera&ccedil;&atilde;o dos cap&iacute;tulos.<br />
+<br />
+
+</div>
+
+</div>
+
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O crime do padre Amaro, by
+José Maria Eça de Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
+***** This file should be named 31971-h.htm or 31971-h.zip *****
+This and all associated files of various formats will be found in:
+ https://www.gutenberg.org/3/1/9/7/31971/
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+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
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+works. See paragraph 1.E below.
+
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+or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
+Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
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+ returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
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+opportunities to fix the problem.
+
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+in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
+WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
+WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
+
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+warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
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+law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
+interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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+provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
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+trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
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+with this agreement, and any volunteers associated with the production,
+promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
+harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
+that arise directly or indirectly from any of the following which you do
+or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
+work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
+Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
+
+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
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+Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
+
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+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
+including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
+Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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