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+Project Gutenberg's O crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
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+Title: O crime do padre Amaro
+ scenas da vida devota
+
+Author: José Maria Eça de Queirós
+
+Release Date: April 13, 2010 [EBook #31971]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
+
+
+
+Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
+Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was
+produced from images generously made available by National
+Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
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+
+
+ *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
+ existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
+ versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
+ o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
+ corrigidos.
+
+ Rita Farinha (Abril 2010)
+
+
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+
+
+
+Obras do mesmo auctor:
+
+*Os Maias.* 2 grossos volumes. 2$000
+
+*O Crime do Padre Amaro.* Terceira edição inteiramente refundida,
+recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1
+grosso volume. 1$200
+
+*O Primo Bazilio.* Segunda edição. 1 grosso volume. 1$000
+
+*A Reliquia.* 1 grosso volume. 1$000
+
+*O Mandarim.* Segunda edição. 1 volume. 500
+
+No prelo:
+
+*Correspondencia de Fradique Mendes.* 1 volume.
+
+
+
+
+EÇA DE QUEIROZ
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+SCENAS DA VIDA DEVOTA
+
+TERCEIRA EDIÇÃO
+
+Inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na acção da
+edição primitiva
+
+
+
+PORTO
+
+LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
+
+Casa editora
+
+*LUGAN & GEMELIOUX, Successores*
+
+1889
+
+Todos os direitos reservados
+
+
+
+
+Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70
+
+
+
+
+NOTA
+
+(DA 2.^a EDIÇÃO)
+
+
+O Crime do Padre Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção
+da Critica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado--O
+Primo Bazilio. E no Brazil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se
+adduzir nenhuma prova effectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma
+imitação do romance do snr. E. Zola--La Faute de l'Abbé Mouret; ou que
+este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos sociaes
+suggerira a idéa, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro.
+
+Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto. O Crime do
+Padre Amaro foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e
+publicado em 1874. O livro do snr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret (que
+é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escripto e publicado em
+1875.
+
+Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas
+como subalterna e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado no
+cerebro, no pensamento do snr. Zola, e ter avistado, entre as fórmas
+ainda indecisas das suas creações futuras, a figura do abbade
+Mouret,--exactamente como o veneravel Anchises no valle dos Elyseos
+podia vêr, entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa
+luminosa do Lethes, aquelle que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas
+são possiveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais
+extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos--e
+outros prodigios provados.
+
+O que, segundo penso, mostra melhor que a accusação carece de exactidão,
+é a simples comparação dos dois romances. La Faute de l'Abbé Mouret é,
+no seu episodio central, o quadro allegorico da iniciação do primeiro
+homem e da primeira mulher no amor. O abbade Mouret (Sergio), tendo sido
+atacado d'uma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação
+mystica no culto da Virgem, na solidão d'um valle abrazado da Provença
+(primeira parte do livro), é levado para convalescer ao _Paradou_,
+antigo parque do seculo XVII a que o abandono refez uma virgindade
+selvagem, e que é a representação allegorica do Paraiso. Ahi, tendo
+perdido na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu
+sacerdocio e da existencia da aldeia, e a consciencia do universo a
+ponto de ter medo do sol e das arvores do _Paradou_ como de monstros
+estranhos--erra, durante mezes, pelas profundidades do bosque inculto,
+com Albina que é o genio, a Eva d'esse logar de legenda; Albina e
+Sergio, semi-nús como no Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto
+que os impelle, uma arvore mysteriosa, da rama da qual cae a influencia
+aphrodisiaca da materia procreadora; sob este symbolo da Arvore da
+Sciencia se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir,
+na sua innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar o amor;
+depois, n'uma mutua vergonha subita, notando a sua nudez, cobrem-se de
+folhagens; e d'ahi os expulsa, os arranca o padre Archangins, que é a
+personificação theocratica do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro
+o abbade Mouret recupera a consciencia de si mesmo, subtrae-se á
+influencia dissolvente da adoração da Virgem, obtem por um esforço da
+oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade, e
+torna-se um asceta sem nada d'humano, uma sombra cahida aos pés da cruz;
+e, é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de
+Albina, que se asphyxiou no _Paradou_ sob um montão de flôres de
+perfumes fortes.
+
+Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser
+apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret não tinham infelizmente
+lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda
+a sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro.
+
+Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade cornea ou má fé
+cynica poderia assemelhar esta bella allegoria idyllica, a que está
+misturado o pathetico drama d'uma alma mystica, ao Crime do Padre Amaro
+que, como podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no fundo, uma
+intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d'uma velha
+Sé de provincia portugueza.
+
+Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal
+a attenção que ella tem dado aos meus trabalhos.
+
+
+Bristol, 1 de janeiro de 1880.
+
+_Eça do Queiroz._
+
+
+
+
+O CRIME
+
+DO
+
+PADRE AMARO
+
+
+
+
+I
+
+
+Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé,
+José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho
+era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero diocesano
+pelo _comilão dos comilões_. Contavam-se historias singulares da sua
+voracidade. O Carlos da Botica--que o detestava--costumava dizer, sempre
+que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de sangue, muito
+enfartado:
+
+--Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!
+
+Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe--á hora em que
+defronte, na casa do dr. Godinho que fazia annos, se polkava com
+alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral
+não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um
+cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos, palavras muito rudes.
+
+Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo
+vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra, não comprehendia
+certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao
+principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido
+padre Gusmão, tão cheio de _labia_!
+
+E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de
+visões, José Migueis escandalisava-as, rosnando:
+
+--Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus! Mais miôlo na bola!
+
+As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
+
+--Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, creatura!
+
+Era miguelista--e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus
+jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:
+
+--Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guardasol vermelho.
+
+Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado--com uma
+criada velha e um cão, o _Joli_. O seu unico amigo era o chantre
+Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D.
+Joaquim gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto
+Minho. O parocho tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco, de
+grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio--que fallava
+fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas.
+
+O chantre estimava-o. Chamava-lhe _Frei Hercules_.
+
+--_Hercules_ pela força, explicava sorrindo, _Frei_ pela gula.
+
+No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava
+offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros
+conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual,
+o primeiro torrão de terra:
+
+--É a ultima pitada que lhe dou!
+
+Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado;
+o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado Novaes; foi
+celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre,
+e affirmou-se com respeito--_que sua excellencia tinha muita pilheria!_
+
+Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho,
+o _Joli_. A criada entrára com sezões no hospital; a casa fôra fechada;
+o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno,
+extremamente gordo,--que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o
+habito das batinas, avido d'um dono, apenas via um padre punha-se a
+seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz _Joli_;
+enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um
+pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã appareceu morto
+ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguem
+tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente
+esquecido.
+
+Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho.
+Dizia-se que era um homem muito novo, sahido apenas do seminario. O seu
+nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias
+politicas, e o jornal de Leiria, _A Voz do Districto_, que estava na
+opposição, fallou com amargura, citando o Golgotha, no _favoritismo da
+côrte_ e na _reacção clerical_. Alguns padres tinham-se escandalisado
+com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor
+chantre.
+
+--Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse
+o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia
+(Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o
+parocho é um bello rapagão. De sorte que--acrescentou sorrindo com
+satisfação--depois de _Frei Hercules_ vamos talvez ter _Frei Apollo_.
+
+Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego
+Dias que fôra, nos primeiros annos do seminario, seu mestre de Moral. No
+seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado,
+cheio de espinhas carnaes...
+
+--Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem
+lombrigas!... De resto bom rapaz. E espertote...
+
+O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o
+ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as
+olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de
+frades lascivos e glotões.
+
+O tio Patricio, o _antigo_, negociante da Praça, muito liberal, e que
+quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia ás
+vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão,
+encostado ao guardachuva:
+
+--Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
+
+O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.^a D. Josepha Dias, e uma
+criada, que todos conheciam tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada
+n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de
+ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria
+propriedades arrendadas, dava jantares com perú, e tinha reputação o seu
+vinho _duque_ de 1815. Mas o facto saliente da sua vida--o facto
+commentado e murmurado--era a sua antiga amizade com a snr.^a Augusta
+Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural de S. João da
+Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes.
+Tinha uma filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita,
+forte, muito desejada.
+
+O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro
+Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou os
+seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de costumes, a sua
+obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «_um timbre que é um regalo!_»
+
+--Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a
+calhar!
+
+Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a
+gloria d'um bispado!
+
+E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura
+servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
+
+Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova.
+Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de
+pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a
+Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes
+e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de
+expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes,
+que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho
+cobriam o chão; e os grossos cylindros de pedra, que acalcam e recamam
+os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.
+
+Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o
+rio vem são collinas baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama
+verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos,
+estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais
+viva e humana--com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com
+os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e
+lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras
+baixas entre dois renques de salgueiros pallidos, estende-se até os
+primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de
+aguas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas
+uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé, um canto do muro
+do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos
+cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações
+rebeldes, onde destacam as ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde
+nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar
+historico.
+
+Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á
+beira do rio. É um logar recolhido, coberto de arvores antigas.
+Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando baixo, o
+conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre
+«uma idéa que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!»
+Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel,
+barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de
+quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro
+Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me
+convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o
+bastante. O que é necessario é que a casa seja respeitavel, socegada,
+central; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos;
+deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes
+favores não cahirão em terreno ingrato. Sobretudo que a patrôa seja
+pessoa accommodada e de boa lingua.»
+
+Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S.
+Joanneira! resumiu o conego com um grande contentamento. É rica idéa,
+hein?
+
+--Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz servil.
+
+--Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde
+servir de escriptorio. Tem boa mobilia, boas roupas...
+
+--Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.
+
+O conego continuou:
+
+--É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas,
+comida, criada, póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia. E
+depois sempre tem o parocho de casa.
+
+--Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o
+coadjutor. Sim, póde ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor
+parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo.
+
+O conego tinha parado:
+
+--Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas
+telhas com a afilhada da mãi? E o conego Pedroso não vive com a cunhada,
+e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora essa!
+
+--Eu dizia... attenuou o coadjutor.
+
+--Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como
+se fosse uma hospedaria. Então o secretario geral não esteve lá uns
+poucos de mezes?
+
+--Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.
+
+--Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E
+parando, com uma attitude confidencial:--E depois a mim é que me
+convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!
+
+Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse, baixando a voz:
+
+--Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...
+
+--Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E
+com uma entonação terna, risonhamente paternal:--que ella é merecedora,
+é merecedora. Boa até alli, meu amigo!--Parou, esgazeando os
+olhos:--Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em
+ponto, está n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se
+sem razão.» Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno
+passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não
+tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o _padre
+santo_, vossê sabe? é como ella me chama.
+
+Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação babosa:
+
+--Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!
+
+--E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.
+
+--Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada
+até alli! Pois olhe que já não é criança! Mas nem um cabello branco, nem
+um, nem um só! E então que côr de pelle!--E mais baixo, com um sorriso
+guloso:--E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui!--Indicava o lado do pescoço
+debaixo do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:--É
+uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que
+lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o
+covilhete de geleia, é o pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella
+d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de vossê
+vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está
+tão boa que parece que foi cozida em agua benta!»--E pondo a mão
+espalmada sobre o peito:--São coisas que tocam a gente cá por dentro,
+Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não ha outra.
+
+O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.
+
+--Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as
+palavras, eu bem sei que por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma
+grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente.
+Já o tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.
+
+O coadjutor teve um gesto affirmativo.
+
+--A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem,
+Mendes! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do
+guardasol.
+
+--As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor
+com uma voz chorosa. E depois d'um silencio acrescentou baixo:--Mas
+aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!
+
+--Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario
+geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que
+tenho dado para a panella, Mendes!
+
+--Que ella tem uma fazendita, considerou o coadjutor.
+
+--Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as
+decimas, os jornaes! Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os seis
+tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella
+tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um
+allivio, Mendes.
+
+--É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.
+
+Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma
+pallida côr azul; o ar estava immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito
+vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se
+com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.
+
+Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram então pelo caminho
+lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto d'um
+silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da
+canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa,
+olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos--e fios
+de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho.
+Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada,
+estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia
+subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de
+laranja que annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma
+decoração muito rica.
+
+--Bonita tarde! disse o coadjutor.
+
+O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:
+
+--Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?
+
+Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou,
+e voltando-se para o coadjutor:
+
+--Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S.
+Joanneira! É uma pechincha para todos.
+
+--Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande
+pechincha!
+
+E entraram na igreja, persignando-se.
+
+
+
+
+II
+
+
+Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela
+diligencia de Chão de Maçãs, que traz o correio á tarde; e desde as seis
+horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz, á
+espera de Amaro.
+
+Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamisada que vai
+junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se
+vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de
+casebres pobres, velhas fiavam á porta; crianças sujas brincavam pelo
+chão, mostrando os seus enormes ventres nús; e gallinhas em redor iam
+picando vorazmente as immundicies esquecidas. Em redor do chafariz cheio
+de ruido, onde os cantaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham,
+soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam,
+meneando a chibata de junco; com o seu cantaro bojudo de barro
+equilibrado á cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares,
+meneando os quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada
+sobre o estomago, conversavam, esperando, _a vêr quem viria_. A
+diligencia tardava. Quando o crepusculo desceu, uma lamparina luziu no
+nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando uma a uma,
+com uma luz soturna, as janellas do hospital.
+
+Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as lanternas accesas,
+entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavallos brancos, e
+veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro
+do tio Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos
+_Diarios Populares_; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao
+canto da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente; e um homem que
+vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéo alto e comprido capote
+ecclesiastico, desceu cautelosamente, agarrando-se ás guardas de ferro
+dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em
+redor.
+
+--Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado, oh, ladrão!
+
+--Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, emquanto
+o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão.
+
+D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça,
+entre a corpulencia vagarosa do conego Dias e a figura esguia do
+coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube-se
+que era o parocho novo; e disse-se logo na botica que era _uma boa
+figura de homem_. O João Bicha levava adiante um bahú e um sacco de
+chita; e como áquella hora já estava bebedo, ia resmungando o _Bemdito_.
+
+Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor da Praça as casas
+estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada sahia a luz triste
+dos candieiros de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas,
+caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar á Praça,
+tortuosas, tenebrosas, com um lampeão mortiço, pareciam deshabitadas. E
+no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.
+
+O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho «o que lhe
+arranjára». Não lhe tinha procurado casa: seria necessario comprar
+mobilia, buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe melhor
+tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes respeitavel, de muito
+conchego--e n'essas condições (e alli estava o amigo coadjutor que o
+podia dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem arejada, muito
+aceio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretario geral
+e o inspector dos estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a
+bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito economica e
+cheia de condescendencias...
+
+--Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu _cozido_, prato de meio,
+café...
+
+--Vamos a saber, Padre-Mestre: preço? disse o parocho.
+
+--Seis tostões. Que diabo, é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...
+
+--Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.
+
+--E é longe da Sé? perguntou Amaro.
+
+--Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos. Na casa ha uma
+rapariga, continuou com a sua voz pausada o conego Dias. É a filha da S.
+Joanneira. Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha de
+genio, mas bom fundo... Aqui tem vôsse a sua rua.
+
+Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da
+velha Misericordia, com um lampeão lugubre ao fundo.
+
+--E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego, batendo na aldraba de
+uma porta esguia.
+
+No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam
+saliencia, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos
+cantos em caixas de madeira; as janellas de cima, pequeninas, eram de
+peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata
+amolgada.
+
+A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e
+sardenta, alumiava com um candieiro de petroleo; e a figura da S.
+Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda,
+alta, muito branca, d'aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham
+já em redor a pelle engelhada; os cabellos arripiados, com um enfeite
+escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas
+percebiam-se uns braços rechonchudos, um collo copioso e roupas aceadas.
+
+--Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego subindo.
+
+--Muita honra em receber o senhor parocho! muita honra! Ha de vir muito
+cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.
+
+Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello, com um vasto canapé
+de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de
+baeta verde.
+
+--É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira. Para receber, para
+espairecer... Aqui--acrescentou abrindo uma porta--é o seu quarto de
+dormir. Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...--Abriu os gavetões,
+gabou a cama batendo a elasticidade dos colxões--Uma campainha para
+chamar sempre que queira... As chavinhas da commoda estão aqui... Se
+gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...
+
+--Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, disse o parocho com a
+sua voz baixa e suave.
+
+--É pedir! O que ha, da melhor vontade...
+
+--Oh creatura de Deus! interrompeu o conego jovialmente, o que elle quer
+agora é cear!
+
+--Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as seis que está o caldo a
+apurar...
+
+E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:
+
+--Vá, _Ruça_, mexe-te, mexe-te!...
+
+O conego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:
+
+--É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.
+
+--Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre, disse o parocho, calçando
+os seus chinelos de ourelo. Olha o seminario!... E em Feirão! Cahia-me a
+chuva na cama.
+
+Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cornetas.
+
+--Que é aquillo? perguntou Amaro, indo á janella.
+
+--Ás nove e meia, o toque de recolher.
+
+Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro esmorecia. A noite
+estava muito negra. E havia sobre a cidade um silencio concavo, de
+abobada.
+
+Depois das cornetas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado
+do quartel; por baixo da janella um soldado, que se demorára n'alguma
+viella do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia sahia
+constantemente o agudo piar das corujas.
+
+--É triste isto, disse Amaro.
+
+Mas a S. Joanneira gritou de cima:
+
+--Póde subir, senhor conego! Está o caldo na mesa!
+
+--Ora vá, vá, que vossê deve estar a cahir de fome, Amaro!--disse o
+conego, erguendo-se muito pesado.
+
+E detendo um momento o parocho pela manga do casaco:
+
+--Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora! Da
+gente se babar!...
+
+
+No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa
+alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo á
+luz forte d'um candieiro d'_abat-jour_ verde. Da terrina subia o vapor
+cheiroso do caldo, e na larga travessa a gallinha gorda, afogada n'um
+arroz humido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma
+apparencia succulenta de prato morgado. No armario envidraçado, um pouco
+na sombra, viam-se côres claras de porcelana; a um canto, ao pé da
+janella, estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado. Na
+cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha d'um taboleiro
+de roupa lavada, o parocho esfregou as mãos, regalado.
+
+--Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a S. Joanneira. D'ahi
+póde-lhe vir frio.--Foi fechar as portadas das janellas; chegou-lhe um
+caixão de areia para as pontas dos cigarros.--E o senhor conego toma um
+copinho de geleia, sim?
+
+--Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o conego, sentando-se e
+desdobrando o guardanapo.
+
+A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o parocho
+que, com a cabeça sobre o prato, comia em silencio o seu caldo, soprando
+a colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito preto, levemente
+annelado. O rosto era oval, de pelle trigueira e fina, os olhos negros e
+grandes, com pestanas compridas.
+
+O conego, que não o via desde o seminario, achava-o mais forte, mais
+viril.
+
+--Vossê era enfezadito...
+
+--Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me bem.--Contou então a sua
+triste existencia em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do
+inverno, só, com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto,
+fazendo-o espumar.
+
+--Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta gota não pilhava vossê no
+seminario.
+
+Fallaram do seminario.
+
+--Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o conego.
+
+--E do Carôcho, que roubava as batatas?
+
+Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias, recordavam as historias
+de então, o catarrho do reitor, e o mestre de canto-chão que deixára um
+dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.
+
+--Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.
+
+A S. Joanneira então poz na mesa um prato covo com maçãs assadas.
+
+--Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou logo o conego. A bella
+maçã assada! nunca me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona
+de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona de casa!
+
+Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados.
+Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; poz no prato do conego, com
+requintes devotos, uma maçã desfeita polvilhada de assucar; e
+batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle:
+
+--Isto é um santo, senhor parocho, isto é um santo! Ai, devo-lhe muitos
+favores!
+
+--Deixe fallar, deixe fallar..., dizia o conego.--Espalhava-se-lhe no
+rosto um contentamento baboso.--Boa gota! acrescentou, saboreando o seu
+calix de _porto_. Boa gota!
+
+--Olhe que ainda é dos annos da Amelia, senhor conego.
+
+--E onde está ella, a pequena?
+
+--Foi ao _Morenal_ com a D. Maria. Aquillo naturalmente foram para casa
+das Gansosos passar a noite.
+
+--Cá esta senhora é proprietaria, explicou o conego, fallando do
+_Morenal_. É um condado!--Ria com bonhomia, e os seus olhos luzidios
+percorriam ternamente a corpulencia da S. Joanneira.
+
+--Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga de terra..., disse ella.
+
+Mas vendo a criada encostada á parede, sacudida com afflicções de tosse:
+
+--Ó mulher, vai tossir lá p'ra dentro! credo!
+
+A moça sahiu, pondo o avental sobre a boca.
+
+--Parece doente, coitada, observou o parocho.
+
+Muito achacada, muito!... A _pobre de Christo_ era sua afilhada, orphã,
+e estava quasi tisica. Tinha-a tomado por piedade...
+
+--E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a
+desavergonhada... Metteu-se ahi com um soldado!...
+
+O padre Amaro baixou devagar os olhos--e trincando migalhas perguntou se
+havia muitas doenças n'aquelle verão.
+
+--Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego. Mettem-se pelas
+melancias, depois tarraçadas de agua... E suas febritas...
+
+Fallaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.
+
+--Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso
+Senhor Jesus Christo, tenho saude, tenho!
+
+--Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a
+S. Joanneira.--Contou immediatamente a grande desgraça que tinha em
+casa, uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos! Ia fazer sessenta
+annos... No inverno viera-lhe um catarrho, e desde então, coitadinha,
+definhava, definhava...
+
+--Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque de tosse! Pensei que
+se ia embora. Agora descansou mais...
+
+Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois da sua Ameliasinha, das
+Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo--sentada, com o gato no
+collo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O
+conego, pesado, cerrava as palpebras; tudo na sala parecia ir
+gradualmente adormecendo; a luz do candieiro esmorecia.
+
+--Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se, isto são horas!
+
+O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as _graças_.
+
+--O senhor parocho quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S.
+Joanneira.
+
+--Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!
+
+E desceu devagar, palitando os dentes.
+
+A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro. Mas nos primeiros
+degraus o parocho parou, e voltando-se, affectuosamente:
+
+--É verdade, minha senhora, ámanhã é sexta-feira, é jejum...
+
+--Não, não, acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina,
+bocejando, vossê ámanhã janta commigo. Eu venho por cá, vamos ao
+chantre, á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que
+isto aqui nunca ha peixe.
+
+A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:
+
+--Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor parocho. Tenho o maior
+escrupulo!
+
+--Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente hoje em dia ninguem
+cumpre...
+
+--Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella. Mas eu! credo!... A
+salvação da minha alma antes de tudo!
+
+A campainha em baixo, então, retiniu fortemente.
+
+--Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira. Abre, _Ruça_!
+
+A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.
+
+-És tu, Amelia?
+
+Uma voz disse _adeusinho! adeusinho!_ E appareceu, subindo quasi a
+correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bella rapariga,
+forte, alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um
+ramo de alecrim.
+
+--Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou agora á noitinha,
+sobe!
+
+Amelia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de
+cima, onde o parocho ficára, encostado ao corrimão. Respirava fortemente
+de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos e negros luziam; e
+sahia d'ella uma sensação de frescura e de prados atravessados.
+
+O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando
+_boas noites!_ com a cabeça baixa. O conego, que descia atraz,
+pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amelia:
+
+--Então isto são horas, sua bréjeira!
+
+Ella teve um risinho, encolheu-se.
+
+--Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto
+devagarinho com a sua mão grossa e cabelluda.
+
+Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois d'ir buscar o guardasol á
+saleta, sahia, dizendo á criada, que erguia o candieiro sobre a escada:
+
+--Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então ás oito, Amaro!
+Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza á Senhora da Piedade que te
+seque essa catarrheira.
+
+O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva,
+tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a
+gravura antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu Breviario,
+ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe
+grandes bocejos; e então por cima, sobre o tecto, através das orações
+rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir o _tic-tic_ das
+botinas de Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao
+despir-se.
+
+
+
+
+III
+
+
+Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros.
+Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma
+amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o _Menino
+das selvas_, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na
+primeira pagina branca: _Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e
+verdadeira amiga que sempre tem sido,--Marqueza d'Alegros_. Possuia
+tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de
+sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr
+ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra
+sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge.
+Amaro completára então seis annos. Tinha uma irmã mais velha que desde
+pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do
+bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro;
+conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes
+escrupulos, a vigiar a sua educação.
+
+A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a
+maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma
+pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito
+devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da
+Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas
+preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o _chic_ fallando com igual
+fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um
+jornalista de então dissera d'ellas:--Pensam todos os dias na _toilette_
+com que hão de entrar no paraiso.
+
+No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas
+aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se.
+A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas:
+cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os
+altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas
+pelo trabalho de _salvar a sua alma_; liam os livros beatos e dôces;
+como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e
+cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão.
+
+A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida
+ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino
+recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era
+estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo
+fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio
+porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O
+capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.^a D.
+Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe
+lições de francez e de geographia.
+
+Amaro era, como diziam os criados, _um mosquinha morta_. Nunca brincava,
+nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás
+alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do
+respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido,
+torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras--vagamente assustado
+das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas.
+
+Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As
+criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio
+d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as
+saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás
+vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre
+grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos
+languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As
+criadas, além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as
+outras: era Amaro o que _fazia as queixas_. Tornou-se enredador, muito
+mentiroso.
+
+Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o
+seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz
+em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações
+gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia
+tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as
+auréolas dos Martyres.
+
+No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca
+dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava
+constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas;
+bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente
+preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em
+que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao
+travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.
+
+
+N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço,
+a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no
+seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna,
+entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset
+ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha
+então treze annos.
+
+As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para
+Lisboa, para casa da snr.^a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna.
+Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um
+homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o
+aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia
+fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos
+cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.^a Gonçalves. O
+marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo;
+carregava-a de joias e chamava-lhe _a sua duqueza_.
+
+Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera
+tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle;
+passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos
+jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos,
+esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos,
+o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro
+como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer
+logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano
+azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da
+cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o _cebola_ e o tio
+chamava-lhe o _burro_. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle
+comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.
+
+Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os
+dias lh'o lembrava:
+
+--Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo
+quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar
+comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios!
+
+E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.
+
+Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação.
+Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente
+dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe
+desagradava _ser padre_. Desde que sahira das rezas perpetuas de
+Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos
+santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora
+marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas
+e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que
+se falla baixo com as mulheres,--vivendo entre ellas, cochichando,
+sentindo-lhes o calor penetrante,--e se recebem presentes em bandejas de
+prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo;
+monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o
+seu copo de _madeira_. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes
+chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára,
+estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas
+que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala,
+todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava,
+para as entreter, com a sua bella voz:
+
+
+Mulatinha da Bahia,
+Nascida no Capujá...
+
+
+Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para
+se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela
+primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla,
+passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou
+ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a
+reparar muito nas mulheres--e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes
+melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da
+escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao
+jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma
+janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via
+parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz:
+parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que
+não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e
+mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos
+theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no
+fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com
+botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado
+até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a
+louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe
+então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a
+vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas
+viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com
+botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça,
+como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se
+infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:
+
+--Então tu não estudas, mariola?
+
+E d'ahi a pouco, sobre o _Tito-Livio_, cabeceando de somno, sentindo-se
+desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o
+diccionario.
+
+Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de
+padre, _porque não poderia casar_. Já as convivencias da escóla tinham
+introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás
+escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello.
+
+
+Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um
+pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as
+batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das sinetas--deram-lhe
+uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto
+bonito agradou. Começaram a tratal-o por _tu_, a admittil-o, durante as
+horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se
+contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente
+se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam
+com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não
+podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de
+cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor
+se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as
+ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres
+dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim.
+Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores
+definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola:
+abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se
+faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e
+invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes--o almocreve
+que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia
+cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes,
+apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro.
+
+Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma
+diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do
+chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros
+alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos
+charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com
+elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das
+madrugadas ou sob a claridade das estrellas!
+
+E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente
+de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario
+da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares
+de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões
+quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos!
+
+Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto
+enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se
+tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do
+gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava
+encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas!
+
+Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando
+como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com
+regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos
+serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo
+diante dos lentes--chegou a ter boas notas.
+
+Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com
+beatitude e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos
+da _Imitação_ ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo,
+empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo
+algum volumesinho de _Louvores a Maria_; e cumpriam com delicia as
+regras mais miudas--até subir só um degrau de cada vez, como recommenda
+S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só
+lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla.
+
+Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios
+d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros
+de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de
+ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas
+que se accumulam no _frou-frou_ das sêdas sobre o tapete do altar-mór,
+cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja:
+ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o _tlim-tlim_
+d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um
+chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas
+largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser
+alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos
+seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem,
+ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.
+
+Amaro não desejava nada:
+
+--Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente.
+
+No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario
+era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas
+cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir.
+Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite
+negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe,
+salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso:
+sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das
+suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o
+desejo da Mulher.
+
+Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada
+sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés
+a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe
+a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a
+santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura;
+amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo
+a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da
+imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então
+vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama
+d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no
+confessionario, ao domingo.
+
+Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua
+voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras
+unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa
+mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando
+a Virgem, calcassem aos pés a _serpente ominosa_! E depois era o mestre
+de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de
+_vencer a Natureza_! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S.
+Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a
+Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente,
+Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião...
+
+--E como disse o nosso padre S. Jeronymo,--e assoava-se
+estrondosamente--Caminho de iniquidades, _iniquitas via_!
+
+Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era
+esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o
+altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras?
+Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu
+encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo
+reino dos céos,--ora vai fugindo diante d'ella como do Universal
+Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a
+não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a
+ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam,
+desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos
+desfallecia no desejo de os quebrar.
+
+E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os
+jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes,
+mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho
+serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão
+doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos
+punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia:
+luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a
+natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles:
+desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho
+baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de
+cigarros--quantos encantos do peccado!
+
+Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam
+contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da
+alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo
+tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos
+_in-folios_ vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto:
+rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de
+Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do
+pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos
+corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria
+bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um
+quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores
+eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana
+Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre
+nervosa.
+
+
+Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois
+recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset:
+
+«Meu querido filho e novo collega.--Agora que está ordenado, entendo em
+minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios,
+pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros
+debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o
+legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam
+importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que
+fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da
+querida marqueza--para quem deve erguer em sua alma uma gratidão
+eterna--está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe
+dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o
+estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de
+qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado
+illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza,
+e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.^o 53. Se
+toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita como o meu
+querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal
+relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou
+rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos
+apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu
+querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso
+querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na
+Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema
+bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia.
+Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos
+da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se
+encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos
+comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os
+refrigerios que dá--o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo
+collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa
+chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes,
+supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu
+caro pupillo.» _Liset_.
+
+«P. S.--O appellido do marido de sua irmã é Trigoso.» _Liset_.
+
+Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira,
+serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves.
+
+Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi
+deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á
+lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram
+nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas
+congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão;
+ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a
+Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da
+serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito,
+sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira.
+
+Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.^o 53, a casa da tia:
+achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó
+d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu
+os seus magros braços a Amaro.
+
+-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança!
+
+Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com
+exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos,
+foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.
+
+--Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te
+de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai!
+desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...
+
+Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido
+para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza
+d'Alegros, a snr.^a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar,
+conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e
+um e duas vezes ministro do reino.
+
+E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi
+uma manhã a casa da snr.^a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta
+um _coupé_ esperava.
+
+--A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e
+quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca.
+
+N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau
+de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de
+claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a
+testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um
+signalzinho de cabellos claros.
+
+--A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na
+mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.
+
+--O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle
+é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria!
+
+Amaro sorria-se.
+
+--Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa?
+
+Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia...
+
+--De maneira que vim requerer, senhora condessa.
+
+Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara,
+e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de
+cambraias.
+
+--Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de
+fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá.--E com o dedo sobre
+o canto da boca:--Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor
+é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.--E
+rindo com os seus largos dentes frescos:--Parece que o estou a vêr
+traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa!
+
+--Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
+
+--Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem.
+
+Deu-lhe a mão, calçada de _peau de suède_, n'um aperto sacudido que fez
+tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o _coupé_, magra e
+ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
+
+Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa
+pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de
+ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a
+tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra
+zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do velho
+canapé de palhinha fazia _crochet_, com a luneta encavallada na ponta do
+nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do _Panorama_.
+
+Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e
+immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente _agua fresca!_
+Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em
+redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam
+vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem
+destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
+
+Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da
+noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava
+cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com
+rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: _fique descansado,
+meu marido ha de fallar!_ E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma
+casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e
+importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas.
+
+Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que
+no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as
+satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava
+de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando
+nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno,
+pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a carne
+contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
+
+No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
+
+--Não está, disse-lhe um criado da cavallariça.
+
+Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e
+Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho
+fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao
+cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim
+escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça
+pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto
+silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu
+guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para
+acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta,
+o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um
+reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó
+esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho
+n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava
+das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala
+tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:
+
+--Não sei se incommódo...
+
+Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se
+surprehendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era
+o senhor conde.
+
+--Sou Amaro...
+
+--Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a
+bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade...
+
+E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças
+brancas muito curtas:
+
+--É a pessoa de quem lhe fallei.--Voltou-se para Amaro:--É o senhor
+ministro.
+
+Amaro curvou-se, servilmente.
+
+--O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno
+em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...
+
+--Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado,
+com o guardasol na mão.
+
+--Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,--já não ha
+d'isso!--fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o
+temos parocho... Onde, senhor padre Amaro?
+
+--Feirão, excellentissimo senhor.
+
+--Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome.
+
+--Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um
+homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com
+soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de
+pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita.
+
+--Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem
+distracções, com um clima horrivel...
+
+--Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro
+timidamente.
+
+--Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.--E mascava o seu
+charuto.
+
+--É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos
+e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro!
+Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um
+gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.
+
+--É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias
+devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o
+estimulo...
+
+--Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos,
+profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos.
+
+O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção.
+
+--Não acha? perguntou-lhe o conde.
+
+--Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte...
+Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas
+crises eleitoraes. D'um grande serviço!
+
+--Pois sim. Mas...
+
+--Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa
+excellencia em Thomar. Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada
+mais.
+
+O conde acudiu:
+
+--Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes
+eleitoraes.
+
+--Perdão... queria interromper o outro.
+
+O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras
+pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento:
+
+--A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu
+estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...
+
+--Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas
+mascadas de charuto.
+
+--Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos _imbroglios_...
+Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão.
+
+--Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o
+a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo
+representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...
+
+--Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e
+desacredita a politica.
+
+--Mas são ou não as maiorias um principio _sagrado_? gritava rubro o das
+suiças, accentuando o adjectivo.
+
+--São um principio _respeitavel_.
+
+--Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!
+
+O padre Amaro escutava, immovel.
+
+--Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E
+dirigindo-se a um reposteiro que levantou:--Entre. É o senhor padre
+Amaro, Joanna!
+
+Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de
+casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas
+largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do
+chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos
+brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas
+alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara
+empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com
+contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se
+logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da
+senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de
+ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda,
+sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os
+joelhos abertos, occupava-se em balançar, como um pendulo, um
+_pince-nez_ de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadellinha, e
+com a sua mão sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo branco
+como algodão.
+
+--Como está, snr. Amaro?--A cadella rosnou.--Quieta, _Joia_... Sabe que
+já fallei no seu negocio? Quieta, _Joia_... O ministro está alli.
+
+--Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.
+
+--Sente-se aqui, senhor padre Amaro.
+
+Amaro pousou-se á beira d'um _fauteil_, com o seu guardasol na mão--e
+reparou então n'uma senhora alta que estava de pé, junto do piano,
+fallando com um rapaz louro.
+
+--Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse a condessa. Diga-me uma
+coisa: sua irmã?
+
+--Está em Coimbra, casou.
+
+--Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anneis.
+
+Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava, com um gesto
+embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.
+
+--O senhor padre Liset está para fóra? perguntou.
+
+--Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. Está o
+mesmo sempre; muito amavel, muito dôce. É a alma mais virtuosa!...
+
+--Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo estirando as pernas.
+
+--Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos! Pois então o padre Liset,
+tão respeitavel!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma
+bondade... Vê-se que é um coração delicado...
+
+--Pois sim, mas o padre Felix...
+
+--Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma pessoa de muita virtude,
+decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais...--E com um gesto
+delicado procurava a palavra:--mais fina, mais distincta... Emfim, vive
+com outra gente.--E sorrindo para Amaro:--Pois não acha?
+
+Amaro não conhecia o padre Felix, não se recordava do padre Liset.
+
+--Já é velho o senhor padre Liset, observou ao acaso.
+
+--Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que
+enthusiasmo!... Ai, é outra coisa!--E voltando-se para a senhora que
+estava junto do piano:--Pois não achas, Thereza?
+
+--Já vou, respondeu Thereza, toda absorvida.
+
+Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com
+a sua alta e forte estatura, uma linha de hombros e de seio magnifica;
+os cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a pallidez do
+rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Marie Antoinette; o seu
+vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as
+pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom
+monotono das alvuras da sala; o collo, os braços estavam cobertos por
+uma gaze preta, que fazia apparecer através a brancura da carne; e
+sentia-se nas suas fórmas a firmeza dos marmores antigos, com o calor
+d'um sangue rico.
+
+Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que Amaro não comprehendia,
+cerrando e abrindo o seu leque preto--e o rapaz louro, bonito,
+escutava-a retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado de vidro
+entalado no olho.
+
+--Havia muita devoção na sua parochia, snr. Amaro? perguntava no emtanto
+a condessa.
+
+--Muita, muito boa gente.
+
+--É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ella com
+um tom piedoso.--Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos
+captiveiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de
+Carcavellos, rezar na pequena capella antiga, conversar com as boas
+almas da aldeia!--e a sua voz tornára-se terna.
+
+O rapaz rechonchudo ria-se:
+
+--Ora, prima! dizia; ora, prima!--Não, elle, se o obrigassem a ouvir
+missa n'uma capellinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!...
+Não comprehendia, por exemplo, a religião sem musica... Era lá possivel
+uma festa religiosa sem uma boa voz de contralto!?
+
+--Sempre é mais bonito, disse Amaro.
+
+--Está claro que é. É outra coisa! Tem _cachet_! Ó prima, lembra-se
+d'aquelle tenor... como se chamava elle? O Vidalti. Lembra-se do
+Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglezinhos? O _tantum ergo_?
+
+--Eu preferia-o no _Baile de mascaras_, disse a condessa.
+
+--Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!
+
+No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á senhora condessa,
+fallando-lhe baixo, muito risonho. Amaro admirava a nobreza da sua
+estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma luva, e
+apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu Thereza, depois de se ter
+aproximado vagarosamente da janella e olhado para a rua--foi sentar-se
+n'uma _causeuse_ com um abandono que punha em relêvo a magnifica
+esculptura do seu corpo; e voltando-se preguiçosamente para o rapaz
+rechonchudo:
+
+--Vamo-nos, João?
+
+A condessa disse-lhe então:
+
+--Sabes que o senhor padre Amaro foi creado commigo em Bemfica?
+
+Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava sobre elle os seus
+bellos olhos d'um negro humido como o setim preto coberto de agua.
+
+--Está na provincia agora? perguntou ella, bocejando um pouco.
+
+--Sim, minha senhora, vim ha dias.
+
+--Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando vagarosamente o seu
+leque.
+
+Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse,
+acariciando o cabo do guardasol:
+
+--Na serra, minha senhora.
+
+--Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Ha sempre neve, diz que a
+igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao
+ministro a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...
+
+--O quê? disse Thereza.
+
+A condessa contou que Amaro requerera para uma parochia melhor. Fallou
+de sua mãi, da amizade que ella tinha a Amaro...
+
+--Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe dava... Não se lembra?
+
+--Não sei, minha senhora.
+
+--Frei _Maleitas_!... Tem graça! Como o snr. Amaro era amarellito,
+sempre mettido na capella...
+
+Mas Thereza, dirigindo-se á condessa:
+
+--Sabes com que se parece este senhor?
+
+A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.
+
+--Não se parece com aquelle pianista do anno passado? continuou Thereza.
+Não me lembra agora o nome...
+
+--Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante. No cabello, não.
+
+--Está visto, o outro não tinha corôa!
+
+Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando a sua soberba
+cauda, sentou-se ao piano.
+
+--Sabe musica? perguntou, voltando-se para Amaro.
+
+--A gente aprende no seminario, minha senhora.
+
+Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas,
+e tocou a phrase do _Rigoleto,_ parecida com o _Minuete de Mozart_, que
+diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro acto, da senhora de
+Crécy--e cujo rhythmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que
+findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.
+
+Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as suas alvuras de nuvem, o
+piano apaixonado, o collo de Thereza que elle via sob a negra
+transparencia da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos
+arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéa d'uma existencia
+superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em _coupés_
+acolchoados, com arias de operas, melancolias de bom gosto e amores d'um
+gozo raro. Enterrado na elasticidade da _causeuse_, sentindo a musica
+chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu
+cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e,
+assustado, demora o seu prazer--pensando que vai voltar á dureza das
+côdeas sêccas e á poeira dos caminhos.
+
+No emtanto Thereza, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga aria
+inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:
+
+
+_The village seems dead and asleep
+When Lubin is away!..._
+
+
+--Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça apparecendo á porta,
+batendo dôcemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!
+
+--Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia, disse Thereza erguendo-se
+logo.
+
+O ministro veio, com uma pressa galante:
+
+--Que é, minha senhora? que é?
+
+O conde e o sujeito de magnificas suiças tinham entrado discutindo
+ainda.
+
+--A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse Thereza ao ministro.
+
+--Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.
+
+--Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se confortavelmente,
+com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma
+coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...
+
+--Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a
+melhor parochia vaga?
+
+--Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando para Amaro, que vergou
+os hombros, córado.
+
+O homem das suiças, que estava de pé fazendo saltar circumspectamente os
+berloques, adiantou-se, cheio de informações:
+
+--Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do districto e séde do
+bispado.
+
+--Leiria? disse Thereza. Bem sei, é onde ha umas ruinas?
+
+--Um castello, minha senhora, edificado por D. Diniz.
+
+--Leiria é excellente!
+
+--Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, séde do bispado, uma
+cidade... O senhor padre Amaro é um ecclesiastico novo...
+
+--Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor não é novo?
+
+O ministro sorriu, curvando-se.
+
+--Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava
+ternamente a cabeça da arara.
+
+--Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido! A prima Thereza
+chamou-lhe novo!
+
+--Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja
+excepcional; eu não sou tambem tão antigo...
+
+--Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820!
+
+--Era meu pai, calumniador, era meu pai!
+
+Todos riram.
+
+--Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O senhor padre Amaro vai
+para Leiria!
+
+--Bem, bem, succumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma
+tyrannia!
+
+--_Thank you_, fez Thereza, estendendo-lhe a mão.
+
+--Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse o ministro fixando-a.
+
+--Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento para o chão,
+distrahida, dando pequeninas pancadas no vestido de sêda, levantou-se,
+foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce aria ingleza:
+
+
+_The village seems dead and asleep
+When Lubin is away!..._
+
+
+Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.
+
+--É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se com o bispo.
+D'aqui a uma semana está nomeado. Póde ir descansado.
+
+Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto
+do piano:
+
+--Senhor ministro, eu agradeço...
+
+--Á senhora condessa, á senhora condessa, disse o ministro sorrindo.
+
+--Minha senhora, eu agradeço, veio elle dizer á condessa, todo curvado.
+
+--Ai, agradeça a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias, parece.
+
+--Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.
+
+--Lembre-me nas suas orações, senhor padre Amaro, disse ella. E
+continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano--as tristezas da
+aldeia quando Lubin esta ausente!
+
+
+Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornára a
+esquecer aquella manhã em casa da senhora condessa de Ribamar,--o
+ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo o
+seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e
+louro que dizia _yes_...Cantava-lhe sempre no cerebro aquella aria
+triste do _Rigoleto_; e perseguia-o a brancura dos braços de Thereza sob
+a gaze negra! Instinctivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em
+torno do pescoço airoso do rapaz louro:--detestava-o então, e a língua
+barbara que fallava, e a terra heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as
+fontes á idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher divina e
+sentir o seu vestido de sêda preta roçar pela sua batina de lustrina
+velha, na escura intimidade do confessionario.
+
+Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para
+Santa Apolonia, com um gallego que lhe levava o bahú. A madrugada
+rompia. A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se. Ás vezes
+uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe
+interminaveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com
+as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; n'uma ou
+n'outra rua uma voz aguda já apregoava os jornaes; e os moços dos
+theatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.
+
+Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do sol alaranjava o ar por
+detraz dos montes da Outra-Banda: o rio estendia-se, immovel, riscado de
+correntes de côr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava,
+vagarosa e branca.
+
+
+
+
+IV
+
+
+Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada do parocho novo, e todos
+sabiam já que tinha trazido um bahú de lata, que era magro e alto, e que
+chamava _Padre-Mestre_ ao conego Dias.
+
+As amigas da S. Joanneira,--as intimas--a D. Maria da Assumpção, as
+Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa d'ella _para se pôrem ao
+facto_... Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A S. Joanneira,
+radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas
+arregaçadas, nos arranjos da manhã; e immediatamente, com animação,
+contou a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o que tinha dito...
+
+--Mas venham vossês cá abaixo, sempre quero que vejam.
+
+Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de lata, uma prateleira que
+lhe arranjára para os livros.
+
+--Está muito bem, está tudo muito bem, diziam as velhas andando pelo
+quarto, devagar, com respeito, como n'uma igreja.
+
+--Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso apalpando o panno das largas
+bandas que pendiam ao comprido do cabide.--É obra para um par de moedas!
+
+--E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira erguendo a tampa do bahú.
+
+O grupo das velhas curvou-se com admiração.
+
+--A mim o que me consola é que elle seja um rapaz novo, disse D. Maria
+da Assumpção, piedosamente.
+
+--Tambem a mim, disse com auctoridade a D. Joaquina Gansoso. Estar a
+gente a confessar-se e a vêr o pingo do rapé, como era com o Raposo,
+credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Migueis! Não, lá isso
+Deus me mate com gente nova!
+
+A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do parocho,--um
+crucifixo que estava ainda embrulhado n'um jornal velho, o album de
+retratos, onde o primeiro cartão era uma photographia do Papa abençoando
+a christandade. Todas se extasiaram.
+
+--É o mais que se póde, diziam, é o mais que se póde!
+
+Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na porque
+adquirira, hospedando o parocho, uma auctoridade quasi ecclesiastica.
+
+--Vossês apparecem á noite, disse ella do alto da escada.
+
+--Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção, já á porta da rua, traçando o
+seu mantelete.--Pudera!... Para o vermos á vontade!
+
+Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo de Leiria; e subindo a
+correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:
+
+--Ó S. Joanneira!
+
+--Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava á janella.
+
+--Então o senhor parocho veio, hein? perguntou o Libaninho, mostrando á
+porta da sala de jantar o seu rosto gordinho côr de limão, a calva
+luzidia; e vindo para ella com o passinho miudo, um gingar de quadris:
+
+--Então que tal, que tal? tem bom feitio?
+
+A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu
+ar piedoso, a brancura dos seus dentes...
+
+--Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura
+devota.--Mas não se podia demorar, ia para a repartição!--Adeus,
+filhinha, adeus!--E batia com a sua mão papuda no hombro da S.
+Joanneira.--Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei hontem a
+Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!
+
+A criada tinha entrado.
+
+--Adeus, _Ruça_! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãi dos
+Homens.--E avistando Amelia pela porta do quarto entreaberta:--Ai, que
+estás mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!
+
+E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada
+rapidamente, ganindo:
+
+--Adeusinho! adeusinho, pequenas!
+
+--Ó Libaninho, vens á noite?
+
+--Ai, não posso, filha, não posso!--E a sua vozinha era quasi
+chorosa.--Olha que ámanhã é Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de
+direito!
+
+
+Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias, e tinha-lhe entregado
+uma carta de recommendação do senhor conde de Ribamar.
+
+--Conheci muito o senhor conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta
+e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso:
+ha que annos isso vai!
+
+E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, fallou com satisfação do
+seu tempo: contou anecdotas da Junta, apreciou os homens de então,
+imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excellencia), os _tics_,
+as caturrices--sobretudo Manoel Passos, que elle descrevia passeando na
+Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéo de grandes abas,
+dizendo:
+
+--_Animo, patriotas! o Xavier aguenta-se!_
+
+Os senhores ecclesiasticos da camara riram com gozo. Houve uma grande
+cordialidade. Amaro sahiu muito lisonjeado.
+
+Depois jantou em casa do conego Dias, e foram passear ambos pela estrada
+de Marrazes. Uma luz dôce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia
+nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga
+tranquilidade; fumos esbranquiçados sahiam dos casaes, e sentiam-se os
+chocalhos melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da
+ponte, e disse, olhando em redor a paizagem suave:
+
+--Pois senhores, parece-me que me hei de dar bem aqui!
+
+--Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego, sorvendo o seu rapé.
+
+Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joanneira.
+
+As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candieiro de
+petroleo, Amelia costurava.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção vestira-se, como nos domingos, de sêda
+preta: o seu _chinó_, d'um louro avermelhado, estava coberto com as
+rendas d'um _enfeite_ negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes,
+solemnemente pousadas no regaço, reluziam de anneis; do broche sobre o
+pescoço até ao cinto, um grosso grilhão d'ouro cahia com passadores
+lavrados. Conservava-se direita e ceremoniosa, com a cabeça um pouco de
+lado, os oculos d'ouro assentes sobre o nariz acavallado: tinha no
+queixo um grande signal cabelludo; e quando se fallava de devoções ou de
+milagres dava um geito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria
+os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas.
+Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.
+
+--Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joanneira.
+
+Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, commovida.
+
+--Estas são as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido..., disse a S.
+Joanneira ao parocho.
+
+Amaro comprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum
+dinheiro, mas costumavam receber hospedes. A mais velha, a snr.^a D.
+Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma testa enorme e larga,
+dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida.
+Embrulhada no seu chale, direita, com os braços cruzados, fallava
+perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal
+dos homens e dava-se toda á Igreja.
+
+A irmã, a snr.^a D. Anna, era extremamente surda. Nunca fallava, e com
+os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar
+tranquillamente os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido
+preto de riscas amarellas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda
+a noite, e só accentuava a sua presença de vez em quando por suspiros
+agudos: dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio.
+Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papeis
+para caixas de dôce.
+
+Estava tambem a snr.^a D. Josepha, a irmã do conego Dias. Tinha a
+alcunha de _castanha pilada_. Era uma creaturinha mirrada, de linhas
+aduncas, pelle engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um
+perpetuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contracções
+nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor
+Godinho chamava-lhe a _estação central_ das intrigas de Leiria.
+
+--Então passeou muito, senhor parocho? perguntou ella logo
+impertigando-se.
+
+--Fomos quasi até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o conego,
+sentando-se pesadamente por detraz da S. Joanneira.
+
+--Não achou bonito, senhor parocho? acudiu snr.^a D. Joaquina Gansoso.
+
+--Muito bonito.
+
+Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas vistas: a snr.^a D.
+Josepha gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que
+nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja
+da Encarnação, no alto.
+
+--Desfruta-se muito d'alli.
+
+Amelia disse sorrindo:
+
+--Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da ponte, debaixo dos
+chorões.--E partindo com os dentes o fio da costura:--É tão triste!
+
+Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul
+muito justo ao seio bonito; pescoço branco e cheio sahia d'um collarinho
+voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes
+brilhava; e pareceu ao parocho que um buçosinho lhe punha aos cantos da
+boca uma sombra subtil e dôce.
+
+Houve um pequeno silencio--o conego Dias com o beiço descahido ia já
+cerrando as palpebras.
+
+--Que será feito do senhor padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.
+
+--Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo! lembrou piedosamente a
+snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+Um rapaz que estava junto do aparador disse então:
+
+--Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da Barrosa.
+
+--Homem! disse logo com azedume a irmã do conego, a snr.^a D. Josepha
+Dias, é milagre ter o senhor reparado!
+
+--Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se e chegando-se ao grupo
+das velhas.
+
+Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pelle branca, regular,
+um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, cahido
+aos cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.
+
+--Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.^a D. Josepha Dias. O senhor,
+que nem lhe tira o chapéo!
+
+--Eu!?
+
+--Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante. E acrescentou: Ai,
+senhor parocho, bem póde chamar o snr. João Eduardo para o bom
+caminho!--E teve um risinho maligno.
+
+--Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse elle rindo, com as
+mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amelia.
+
+--É uma graça! exclamou a snr.^a D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o
+senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não ha de
+ganhar o céo!
+
+--Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se bruscamente para João
+Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é
+uma impostora?
+
+--Credo, Jesus! disse a snr.^a D. Maria da Assumpção apertando as mãos e
+fitando João Eduardo com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer
+isso? Cruzes!
+
+--Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente o conego, que espertára,
+desdobrando o seu lenço vermelho--não era capaz de dizer uma d'essas.
+
+Amaro perguntou então:
+
+--Quem é a Santa da Arregassa?
+
+--Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho? exclamou n'uma
+admiração a snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+--Ha de ter ouvido, affirmava a snr.^a D. Josepha Dias com auctoridade.
+Diz que os jornaes de Lisboa vem cheios d'isso!
+
+--É com effeito uma coisa bem extraordinaria, ponderou com um tom
+profundo o conego.
+
+A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:
+
+--Ai, não imagina, senhor parocho, é o milagre dos milagres!
+
+--Se é! se é! disseram.
+
+Houve um recolhimento devoto.
+
+--Mas então...? perguntou Amaro, todo curioso.
+
+--Olhe, senhor parocho, começou a snr.^a D. Joaquina Gansoso
+endireitando-se no chale, fallando com solemnidade: a Santa é uma mulher
+que aqui ha n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na cama...
+
+--Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assumpção, tocando-lhe
+com o leque no braço.
+
+--Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.
+
+--Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S. Joanneira. E o conego
+apoiou-a, oscillando gravemente a cabeça.
+
+--Está entrevadinha de todo, senhor parocho! rompeu a irmã do conego,
+avida de fallar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto!--E
+mostrava o dedo minimo.--Para a gente a ouvir é necessario pôr-lhe a
+orelha ao pé da boca!
+
+--Pois se ella se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a
+snr.^a D. Maria da Assumpção. Coitadinha! que até a gente lembrar-se...
+
+Houve entre as velhas um silencio commovido. João Eduardo, que por traz
+das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode,
+disse então:
+
+--Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos dizem: é que aquillo
+é uma doença nervosa.
+
+Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas, um escandalo; a
+snr.^a D. Maria da Assumpção persignou-se logo «á cautela».
+
+--Pelo amor de Deus! gritou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor diga isso
+diante de quem quizer, menos de mim! É uma affronta!
+
+--É que até póde cahir um raio, dizia para os lados, baixo, a snr.^a D.
+Maria da Assumpção, muito aterrada.
+
+--Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.^a D. Josepha Dias, o senhor é
+um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas.--E voltando-se
+para o lado de Amelia, muito azeda:--Olhe, filha minha é que eu lhe não
+dava!
+
+Amelia córou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho tambem, curvou-se
+sarcasticamente:
+
+--Eu digo o que dizem os medicos. E de resto, acredite que não tenho
+prentenções a casar com pessoa da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.^a
+D. Josepha!
+
+O conego deu uma risada muito pesada.
+
+--Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.
+
+--Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.
+
+--Tudo, senhor parocho, disse a snr.^a D. Joaquina Gansoso: está sempre
+de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ella peça tem a graça do
+Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se de toda a molestia. E
+depois, quando communga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no
+ar, com os olhos erguidos para o céo, que até chega a fazer terror.
+
+Mas n'este momento uma voz disse á porta da sala:
+
+--Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!
+
+Era um rapaz extremamente alto, amarello, com as faces cavadas, uma
+grenha riçada, um bigode á D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na
+boca, porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante; e nos seus
+olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas.
+Trazia uma guitarra na mão.
+
+--Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.
+
+--Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se. Sempre as dôres no
+peito, a tossesita ...
+
+Então não se dava bem com o oleo de figados de bacalhau?
+
+--Qual! fez elle desconsoladamente.
+
+--Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a snr.^a
+D. Joaquina Gansoso com auctoridade.
+
+Elle riu, com uma jovialidade subita:
+
+--Uma viagem á Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas!
+Um pobre amanuense de administração com dezoito vintens por dia, mulher
+e quatro filhos... Para a Madeira!
+
+--E como vai ella, a Joannita?
+
+--Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus! Gorda, sempre com bom
+appetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; de mais
+a mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho! Paciencia!
+paciencia!--E encolhia os hombros.
+
+Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe uma palmada no joelho:
+
+--E como vai a nossa Madre-Abbadessa?
+
+Todos riram: e a snr.^a D. Joaquina Gansoso informou o parocho que
+aquelle rapaz, o Arthur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bella
+voz. Era a melhor da cidade para modinhas.
+
+A _Ruça_ tinha então entrado com o chá; a S. Joanneira, enchendo as
+chavenas d'alto, dizia:
+
+--Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do
+Sousa...
+
+E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:
+
+--Se está azedinho é carregar-lhe no sal!
+
+As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente
+as torradas, sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos
+pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam prudentemente os lenços
+sobre o regaço.
+
+--Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia, apresentando-lhe o
+prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.
+
+--Obrigado.
+
+--Aquelle alli. É toucinho do céo.
+
+--Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E olhou para ella, tomando
+o bolo com a ponta dos dedos.
+
+O snr. Arthur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela
+alumiava o caderno de musica; e Amelia, logo que a _Ruça_ levou a
+bandeja, accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarello.
+
+--Então hoje que ha de ser? perguntou Arthur.
+
+Os pedidos cruzaram-se:
+
+--_O guerrilheiro! O noivado do sepulchro! O descrido! o Nunca mais!_
+
+O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:
+
+--Ó Couceiro, vá lá aquella do _Tio Cosme, meu bréjeiro!_
+
+As mulheres reprovaram:
+
+--Credo! por quem é, senhor conego! Que lembrança!
+
+E a snr.^a D. Joaquina Gansoso resumiu:
+
+--Nada: uma coisa de sentimento para o senhor parocho fazer idéa.
+
+--Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento, ó Arthur, uma coisa de
+sentimento!
+
+Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente á face uma expressão
+dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:
+
+
+Adeus, meu anjo! eu vou partir sem ti!
+
+
+Era uma canção dos tempos romanticos de 51, o _Adeus!_ Dizia uma suprema
+despedida, n'um bosque, por uma tarde pallida d'outono; depois, o homem
+solitario e precito, que inspirára um amor funesto, ia errar desgrenhado
+á beira do mar; havia uma sepultura esquecida n'um valle distante,
+brancas virgens vinham chorar á claridade do luar!
+
+--Muito bonito, muito bonito! murmuravam.
+
+Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervallos, durante o
+acompanhamento, sorria em redor--e na sua boca cheia de sombra viam-se
+os restos de dentes pôdres. O padre Amaro, ao pé da janella, fumando,
+contemplava Amelia, enlevado n'aquella melodia sentimental e morbida: o
+seu perfil fino, de encontro á luz, tinha uma linha luminosa; destacava
+harmoniosamente a curva do seu peito; e elle seguia as suas palpebras de
+grandes pestanas, que do teclado para a musica se erguiam e se abaixavam
+com um movimento dôce. João Eduardo, junto d'ella, voltava-lhe as folhas
+da musica.
+
+Mas Arthur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, n'um gesto
+desolado e vehemente, soltou a ultima estrophe:
+
+
+E um dia, emfim, d'este viver fatal,
+Repousarei na escuridão da campa!
+
+
+--Bravo! bravo! exclamaram.
+
+E o conego Dias commentou baixo ao parocho:
+
+--Ah! para coisas de sentimento não ha outro.--E bocejando enormemente:
+Pois menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.
+
+Mas chegára a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituaes;
+e a snr.^a D. Josepha Dias, com o seu olho d'avara a luzir, chocalhava
+já vivamente o grosso sacco dos numeros.
+
+--Aqui tem um logar, senhor parocho, disse Amelia.
+
+Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio
+sentar-se um pouco córado, ageitando timidamente a _volta_.
+
+Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz dormente, o conego começou
+a tirar os numeros. A snr.^a D. Anna Gansoso dormitava ao seu canto,
+resonando ligeiramente.
+
+Com o _abat-jour_ as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, cahindo
+sobre o chale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões
+ennegrecidos do uso e as mãos sêccas das velhas, pousadas em attitudes
+aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela
+derretia-se com uma chamma alta e direita.
+
+O conego rosnava os numeros com as pilherias veneraveis da tradição: 1,
+cabeça de porco!--3, figura de entremez!
+
+--Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.
+
+--Ternei, murmurava outra com gozo.
+
+E a irmã do conego, sôfrega:
+
+--Chocalhe esses numeros, mano Placido! Vá!
+
+--E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o
+Arthur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.
+
+Emfim o conego _quinou_. E Amelia olhando em redor pela sala:
+
+--Então não joga, snr. João Eduardo? disse ella. Onde está?
+
+João Eduardo sahiu da sombra da janella, por traz da cortina.
+
+--Tome lá este cartão, ande, jogue.
+
+--E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joanneira. Seja o
+senhor recebedor!
+
+João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez
+reis.
+
+--Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.
+
+Fôra a irmã do conego que não tocára no seu cobre acastellado. João
+Eduardo disse, curvando-se:
+
+--Parece-me que a snr.^a D. Josepha não entrou.
+
+--Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas! Até fui a primeira!
+Credo! Duas moedas de cinco reis, por signal! Que tal está o homem!
+
+--Ah! bem, disse elle então, fui eu que me esqueci! Cá ponho.--E rosnou:
+Beata e ladra!
+
+E a irmã do conego dizia no emtanto baixo á snr.^a D. Maria da
+Assumpção:
+
+--Queria vêr se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!
+
+--Só quem não está feliz é o senhor parocho, observaram.
+
+Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; ás vezes mesmo esquecia-se
+de marcar, e Amelia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovêlo:
+
+--Olhe que não marcou, senhor parocho!
+
+Tinham já apostado dois ternos: ella ganhára; depois faltou a ambos para
+_quinarem_ o numero trinta e seis.
+
+Em roda repararam.
+
+--Ora vamos a vêr se _quinam_ ambos, disse a snr.^a D. Maria da
+Assumpção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.
+
+Mas o trinta e seis não sahía; havia outras quadras nos cartões alheios;
+Amelia receava que _quinasse_ a snr.^a D. Joaquina Gansoso, que se mexia
+muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria,
+involuntariamente interessado.
+
+O conego tirava os numeros com uma pachorra maliciosa.
+
+--Vá! vá! ande com isso, senhor conego! diziam-lhe.
+
+Amelia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:
+
+--Dava tudo para que sahisse o trinta e seis!
+
+--Sim? Ahi o tem... Trinta e seis! disse o conego.
+
+--_Quinamos!_ gritou ella, triumphante; e tomando o cartão do parocho e
+o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito córada.
+
+--Ora Deus os abençôe, disse o conego, jovial, entornando-lhes diante o
+pires cheio de moedas de dez reis.
+
+--Parece milagre! considerou a snr.^a D. Maria da Assumpção,
+piedosamente.
+
+Mas tinham dado onze horas; e depois da _tumba_ final as velhas
+começaram a agasalhar-se. Amelia sentou-se ao piano, tocando ao de leve
+uma polka. João Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:
+
+--Muitos parabens por ter _quinado_ com o senhor parocho. Que
+enthusiasmo!--E como ella ia responder:--Boa noite! disse elle
+sêccamente, embrulhando-se no seu chale-manta com despeito.
+
+A _Ruça_ alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam
+ganindo _adeusinhos_. O snr. Arthur harpejava a guitarra, cantarolando o
+_Descrido_.
+
+Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviario; mas
+distrahia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes pôdres de
+Arthur, sobretudo o perfil de Amelia. Sentado á beira da cama, com o
+Breviario aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos
+pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu
+buçosinho gracioso...
+
+Sentia a cabeça pesada do jantar do conego e da monotonia do _quino_,
+com uma grande sêde além d'isso das lulas e do vinhito do Porto. Quiz
+beber, mas não tinha agua no quarto. Lembrou-se então que na sala de
+jantar havia uma bilha d'Extremoz com agua fresca, muito boa, da
+nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu
+devagarinho. Havia **luz** na sala, estava o reposteiro corrido:
+ergueu-o e recuou com um _ah!_ Vira n'um relance Amelia, em saia branca,
+a desfazer o atacador do collete: estava junto do candieiro e as mangas
+curtas, o decote da camisa deixavam vêr os seus braços brancos, o seio
+delicioso. Ella deu um pequeno grito, correu para o quarto.
+
+Amaro ficou immovel, com um suor á raiz dos cabellos. Poderiam suspeitar
+uma offensa! Palavras indignadas iam sahir decerto através do reposteiro
+do quarto, que ainda se balouçava agitado!
+
+Mas a voz de Amelia, serena, perguntou de dentro:
+
+--Que queria, senhor parocho?
+
+--Vinha buscar agua... balbuciou elle.
+
+--Aquella _Ruça_! aquella desleixada! Desculpe, senhor parocho,
+desculpe. Olhe ahi ao pé da mesa, a bilha. Achou?
+
+--Achei! achei!
+
+Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a agua escorria-lhe
+pelos dedos.
+
+Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por baixo passos nervosos
+pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos hombros e em chinelas,
+fumava, excitado, pelo quarto.
+
+
+
+
+V
+
+
+Ella, em cima, não dormia tambem. Sobre a commoda, dentro de uma bacia,
+a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de murrão de azeite;
+brancuras de saias cahidas no chão destacavam; e os olhos do gato, que
+não socegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade
+phosphorica verde.
+
+Na casa visinha uma criança chorava sem cessar, Amelia sentia a mãi
+embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:
+
+
+Dorme, dorme, meu menino,
+Que a tua mãi foi á fonte!
+
+
+Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente Sousa deixára com um
+filho no berço, e gravida d'outro--para ir casar a Extremoz! Tão bonita
+era, tão loura--e mirrada agora, tão chupada!
+
+
+Dorme, dorme, meu menino.
+Que a tua mãi foi á fonte!
+
+
+Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha sete annos sua mãi
+dizia-a, nas longas noites de inverno, ao irmãosinho que morrera!
+
+Lembrava-se bem! Moravam então n'outra casa, ao pé da estrada de Lisboa;
+á janella do seu quarto havia um limoeiro e a mãi punha, na sua ramagem
+luzidia, os coeiros do Joãosinho a seccarem ao sol. Não conhecera o
+papá. Fôra militar, morrera novo; e a mãi ainda suspirava ao fallar da
+sua bella figura com o uniforme de cavallaria. Aos oito annos ella foi
+para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita roliça e
+branca, que fôra tacho das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os seus
+oculos redondos, junto á janella, empurrando a agulha, morria-se por
+contar historias do convento: as perrices da escrivã, sempre a
+escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com
+uma pronuncia minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que
+se dizia descendente dos Tavoras; e a legenda de uma freira que morrera
+de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores,
+soltando gemidos dolorosos e clamando:--Augusto! Augusto!
+
+Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava então tanto de
+festas d'igreja e da convivencia dos santos, que desejava ser uma
+«freirinha, muito bonita, com um véosinho muito branco.» A mamã era
+muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e
+robusto, que soprava de asthma ao subir a escada e tinha uma voz
+fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia chamava-lhe
+_padrinho_. Quando ella voltava da mestra, á tarde, encontrava-o sempre
+a palestrar com a mãi, na sala, de batina desabotoada, deixando vêr o
+longo collete de velludo preto com raminhos bordados a amarello. O
+senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a taboada.
+
+Á noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o conego Cruz; e um
+velhito calvo, de perfil de passaro, com oculos azues, que fôra frade
+franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãi, com
+as suas _meias_; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos
+negros do cigarro e trazia sempre a sua viola. Mas ás nove horas
+mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ella via a luz, ouvia as
+vozes; depois fazia-se um silencio, e o capitão, repenicando a guitarra,
+cantava o _lundum da Figueira_.
+
+Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipathicos:
+sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e
+molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe
+devagarinho a orelha, e ella sentia o seu halito impregnado de cebola e
+de cigarro. O seu amiguinho era o conego Cruz, magro, com o cabello todo
+branco, a volta sempre aceada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho,
+comprimentando com a mão sobre o peito e uma voz suave cheia de ss. Já
+então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer
+«bagatella» fallavam-lhe sempre dos castigos do céo; de tal sorte que
+Deus apparecia-lhe como um sêr que só sabe dar o soffrimento e a morte e
+que é necessario abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando
+os padres. Por isso, se ás vezes ao deitar lhe esquecia uma
+Salve-Rainha, fazia penitencia no outro dia, porque temia que Deus lhe
+mandasse sezões ou a fizesse cahir na escada.
+
+Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de musica. A
+mãi tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um
+pano verde, tão desafinado, que servia de aparador! Amelia costumava
+cantarolar pela casa; a sua voz fina e fresca agradava ao senhor
+chantre, e as amigas da mãi diziam-lhe:
+
+--Tu tens ahi um piano, porque não mandas ensinar a rapariga? Sempre é
+uma prenda! olha que lhe póde servir de muito!
+
+O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé d'Evora,
+extremamente infeliz: a filha unica, muito linda, fugira-lhe com um
+alferes para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da Praça, que
+ia muito á capital, vira-a descer a rua do Norte, de _garibaldi_
+escarlate e alvaiade n'um olho, com um marinheiro inglez. O velho cahira
+em grande melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe dado um
+emprego no cartorio da camara ecclesiastica. Era uma figura triste de
+romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer
+até aos hombros os seus cabellos brancos e finos; os olhos, cansados,
+lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e
+parecia muito transido, no seu capote côr de vinho que só lhe chegava á
+cintura e que tinha uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o _Tio Cegonha_
+pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia um dia tinha-lhe
+chamado _Tio Cegonha_; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.
+
+O velho poz-se a sorrir:
+
+--Ai, chame, minha rica menina, chame! _Tio Cegonha_?... ora, que tem?
+Cegonha sou eu, e bem cegonha!
+
+Era então no inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a
+aspera estação opprimia os pobres. Viam-se n'aquelle anno familias
+esfomeadas indo á camara pedir pão. O _Tio Cegonha_ vinha sempre ao
+meio-dia dar a lição; o seu guardachuva azul deixava um ribeiro na
+escada; tiritava; e quando se sentava escondia, na sua vergonha de
+velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do
+frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado e não o
+deixava escrever no cartorio.
+
+--Prendem-se-me os dedos... dizia tristemente.
+
+Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro mez das lições, o velho
+appareceu muito contente, com umas grossas luvas de lã.
+
+--Ah, _Tio Cegonha_, como vem quentinho! disse-lhe Amelia.
+
+--Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas
+meias de lã. Deus a abençôe, minha menina, Deus a abençôe!
+
+E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas. Amelia tornára-se a «sua
+rica amiguinha». Já lhe fazia confidencias: contava-lhe as suas
+necessidades, as saudades da filha, as suas glorias na Sé d'Evora,
+quando diante do senhor **arcebispo**, vistoso na sua sobrepelliz
+escarlate, acompanhava o _Lausperenne_.
+
+Amelia não se esqueceu das meias de lã do _Tio Cegonha_. Pediu ao
+chantre que lhe désse umas meias de lã.
+
+--Ora essa! para quê? para ti? disse elle com o seu riso grosso.
+
+--Para mim, sim senhor.
+
+--Deixe fallar, senhor chantre! disse a S. Joanneira. Olha a idéa!
+
+--Não deixe fallar, não! dê, sim?
+
+Lançou-lhe os braços ao pescoço, fez-lhe olhinhos dôces.
+
+--Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! ha de ser o
+diabo!... Pois sim, ahi tens.--E deu-lhe dois pintos para umas meias de
+lã.
+
+No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um papel, que dizia por fóra
+em letras garrafaes: _Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discipula_.
+
+Uma manhã, depois, viu-o mais amarello, mais chupado:
+
+--Ó _Tio Cegonha_, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartorio?
+
+O velho sorriu-se:
+
+--Ora, minha rica menina, quanto me hão de dar? uma bagatella. Quatro
+vintens por dia. Mas o snr. Netto faz-me algum bem...
+
+--E chegam-lhe, quatro vintens?
+
+--Ora! como hão de chegar!
+
+Sentiram-se os passos da mãi; e Amelia, retomando gravemente a attitude
+de lição, começou a solfejar alto, com um ar profundo.
+
+E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãi a dar de
+almoçar e de jantar ao _Tio Cegonha_ nos dias de lição. Assim se
+estabeleceu entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre _Tio
+Cegonha_, sahindo do seu frio isolamento, acolhia-se áquella amizade
+inesperada, como a um conchego tepido. Encontrava n'ella o elemento
+feminino que amam os velhos, com as caricias, as suavidades de voz, as
+delicadezas de enfermeira; achava n'ella a unica admiradora da sua
+musica; e via-a sempre attenta ás historias do seu tempo, ás recordações
+da velha Sé d'Evora que elle amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando
+se fallava de procissões ou de festas de igreja:
+
+--Para isso Evora! em Evora é que é!
+
+Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua
+vida: já tocava contradansas e antigas arias de velhos compositores; a
+snr.^a D. Maria da Assumpção estranhava que o mestre lhe não ensinasse o
+_Trovador_.
+
+--Coisa mais linda! dizia.
+
+Mas o _Tio Cegonha_ só conhecia a musica classica, arias ingenuas e
+dôces de Lully, motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos dos
+dôces tempos freiraticos.
+
+Uma manhã o _Tio Cegonha_ encontrou Amelia muito amarella e triste.
+Desde a vespera queixava-se de «mal-estar». Era um dia nublado, muito
+frio. O velho queria ir-se embora.
+
+--Não, não, _Tio Cegonha_, disse ella, toque alguma coisa para eu me
+entreter.
+
+Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas
+extremamente melancolica.
+
+--Que lindo! que lindo! dizia Amelia, de pé junto ao piano.
+
+E quando o velho deu as ultimas notas:
+
+--O que é? perguntou ella.
+
+O _Tio Cegonha_ contou-lhe que era o começo de uma _Meditação_ feita por
+um frade seu amigo.
+
+--Coitado, disse, teve bem o seu tormento!
+
+Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se no mocho do piano,
+embrulhando-se no seu chale:
+
+--Diga, _Tio Cegonha_, diga!
+
+Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ella
+morrera no convento d'aquelle amor infeliz; e elle, de dôr e de saudade,
+fizera-se frade franciscano...
+
+--Parece que o estou a vêr...
+
+--Era bonito?
+
+--Se era! Um rapaz na flôr da vida, rico... Um dia veio ter commigo ao
+orgão: «Olha o que eu fiz», disse-me elle. Era um papel de musica. Abria
+em ré menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que
+musica! Mas não me lembra o resto!
+
+E o velho, commovido, repetiu no piano as notas plangentes da
+_Meditação_ em ré menor.
+
+Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De noite veio-lhe uma
+grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade
+frasciscano, na sombra do orgão da Sé d'Evora. Via os seus olhos
+profundos reluzirem n'uma face encovada: e, longe, a freira pallida, nos
+seus habitos brancos, encostada ás grades negras do mosteiro, sacudida
+pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades
+franciscanos caminhava para o côro: elle ia no fim de todos, curvado,
+com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandalias, emquanto um grande
+sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava:
+era um vasto céo negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com habitos
+de convento e um ruido ineffavel de beijos insaciaveis, giravam, levadas
+por um vento mystico; mas desvaneciam-se como nevoas, e na vasta
+escuridão ella via apparecer um grande coração em carne viva, todo
+trespassado de espadas--e as gotas de sangue que cahiam d'elle enchiam o
+céo d'uma chuva escarlate.
+
+Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouvêa tranquillisou a S.
+Joanneira com uma simples palavra:
+
+--Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze annos da rapariga.
+Hão de lhe vir ámanhã as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se.
+Temol-a mulher.
+
+A S. Joanneira comprehendeu.
+
+--Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter as paixões fortes!
+acrescentou o velho pratico, sorrindo e sorvendo a sua pitada.
+
+Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço
+d'açorda, cahiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternação
+inesperada para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada, em
+saias brancas, chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assumpção, as
+snr.^{as} Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dôr: e a snr.^a D.
+Josepha Dias resumiu as consolações de todas, dizendo:
+
+--Deixa, filha, que te não ha de faltar quem te ampare!
+
+Era então no começo de setembro; a snr.^a D. Maria da Assumpção, que
+tinha uma casa na praia da Vieira, propôz levar a S. Joanneira e Amelia
+para a estação dos banhos, para ella espalhar, nos bons ares saudaveis,
+em logar differente, aquella dôr.
+
+--É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joanneira. Sempre me lembra
+que era alli que elle punha o guardachuva... Alli que elle se sentava a
+vêr-me costurar!
+
+--Está bom, está bom, deixa-te d'isso. Come e bebe, toma os teus banhos,
+e o que lá vai lá vai. Olha que elle tinha bem os seus sessenta.
+
+--Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha!
+
+Amelia tinha então quinze annos, mas era já alta e de bonitas fórmas.
+Foi uma alegria para ella a estação na Vieira! Nunca vira o mar; e não
+se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta agua azul,
+muito mansa, cheia de sol; ás vezes no horisonte passava um fumo delgado
+de paquete; a monotona e gemente cadencia da vaga adormentava-a; e em
+redor o areal faiscava, a perder de vista, sob o céo azul-ferrete.
+
+Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé. Era a hora do banho:
+as barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras,
+sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar,
+palrando; os homens, de sapatos brancos, estendidos em esteiras,
+chupavam o cigarro, riscavam emblemas na areia; emquanto o poeta Carlos
+Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto da
+vaga, seguido do seu Terra-Nova. Ella sahia então da barraca com o seu
+vestido de flanella azul, a toalha no braço, tiritando de susto e de
+frio: tinha-se persignado ás escondidas e toda tremula, agarrada á mão
+do banheiro, escorregando na areia, entrava na agua, rompendo a custo a
+maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ella
+mergulhava, e ficava aos saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua
+salgada. Mas, quando sahia do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a
+toalha pela cabeça, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso
+do vestido encharcado, risonha, cheia de reacção; e em redor vozes
+amigas perguntavam:
+
+--Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hein?
+
+Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o
+recolher das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros,
+luzidia sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de occasos
+ricamente dourados, sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!
+
+D. Maria da Assumpção tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz,
+filho do snr. Brito de Alcobaça, seu parente. Chamava-se Agostinho, ia
+frequentar o quinto anno de direito na Universidade. Era um moço
+delgado, de bigode castanho, pera, cabello comprido deitado para traz, e
+luneta: recitava versos, sabia tocar guitarra, contava anecdotas de
+caloiros, fazia _partidas_, e era famoso na Vieira, entre os homens,
+«por saber conversar com senhoras».
+
+--O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça áquella. Lá
+para sociedade não ha outro!
+
+Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que os olhos do snr.
+Agostinho Brito se fitavam constantemente n'ella, «p'ra namoro». Amelia
+córava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e
+admirava-o, achava-o muito «dengueiro».
+
+Um dia em casa da snr.^a D. Maria da Assumpção pediram a Agostinho para
+recitar.
+
+--Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou elle,
+jovial.
+
+--Ora vá! não se faça rogado, disseram, insistindo.
+
+--Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.
+
+--A _Judia_, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaça.
+
+--Qual _Judia_! disse elle, ha de ser mas ha do ser a _Morena_!--E olhou
+para Amelia.--Foi uma poesia que fiz hontem.
+
+--Valeu, valeu!
+
+--E cá o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de caçadores, tomando
+logo a guitarra.
+
+Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o cabello para traz, fincou
+a luneta, apoiou as duas mãos ás costas d'uma cadeira, e fitando Amelia:
+
+--Á _Morena_ de Leiria! disse.
+
+
+Nasceste nos verdes campos
+Onde Leiria é famosa,
+Tens a frescura da rosa,
+E o teu nome sabe a mel...
+
+
+--Perdão! exclamou o recebedor, a snr.^a D. Juliana não está boa...
+
+Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça; tinha-se feito muito
+pallida, e, lentamente, desmaiava na cadeira, com os **braços**
+pendentes, o queixo sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a
+para o quarto de Amelia; quando lhe desapertaram o vestido e lhe deram
+vinagre a respirar, ergueu-se sobre o cotovêlo, olhou em redor,
+começaram a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fóra, os homens em
+grupo, commentavam:
+
+--Foi o calor, diziam.
+
+--O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento de caçadores.
+
+O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a
+casa acompanhar a snr.^a D. Juliana. D. Maria da Assumpção e a S.
+Joanneira, atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia vento, um
+criado levava um lampeão, e todos caminhavam na areia, calados.
+
+--Tudo isto é teu proveito, disse a snr.^a D. Maria da Assumpção baixo á
+S. Joanneira, demorando-se um pouco atraz.
+
+--Meu!?
+
+--Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era namoro do
+Agostinho. Mas o rapaz aqui anda pelo beiço pela Amelia. A Juliana
+percebeu, viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, zás!
+
+--Ora essa!... disse a S. Joanneira.
+
+--Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as
+tias. É um partidão!
+
+Ao outro dia, á hora do banho, a S. Joanneira vestia-se na sua barraca,
+e Amelia, sentada na areia, esperava, pasmada para o mar.
+
+--Olá! sósinha! disse uma voz por detraz.
+
+Era Agostinho. Amelia, calada, começou a riscar a areia com a sombrinha.
+O snr. Agostinho suspirou, alisou outro pedaço d'areia com o pé,
+escreveu--Amelia. Ella, muito vermelha, quiz apagar com a mão.
+
+--Então! disse elle. E debruçando-se, baixo:--É o nome da _Morena_, bem
+vê. _O seu nome sabe a mel!_...
+
+Ella sorriu:
+
+--Ande que fez hontem desmaiar aquella pobre Juliana, disse.
+
+--Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou farto d'aquelle estafermo!
+Então que quer? Eu cá sou assim. Tanto digo que me não importo com ella,
+como digo que ha uma pessoa por quem dava tudo... Eu sei...
+
+--Quem é? É a snr.^a D. Bernarda?
+
+Era uma velha hedionda, viuva de um coronel.
+
+--É, disse elle rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado, é pela
+D. Bernarda.
+
+--Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar, com os olhos baixos,
+riscando a areia.
+
+--Diga-me uma coisa, está a mangar commigo? exclamou Agostinho puxando
+uma cadeirinha, sentando-se junto d'ella.
+
+Amelia pôz-se de pé.
+
+--Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou elle offendido.
+
+--Eu é que estava cansada de estar sentada.
+
+Calaram-se um momento.
+
+--Já tomou banho? disse ella.
+
+--Já.
+
+--Estava frio hoje?
+
+--Estava.
+
+As palavras de Agostinho eram agora muito sêccas.
+
+--Zangou-se? disse ella dôcemente, pondo-lhe de leve a mão no hombro.
+
+Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo
+risonho, exclamou com vehemencia:
+
+--Estou mesmo doido por si!
+
+--Chut!... disse ella.
+
+A mãi de Amelia, levantando o pano da barraca, sahia, muito abafada, de
+lenço amarrado na cabeça.
+
+--Mais fresquinha, hein? perguntou logo Agostinho, tirando o chapéo de
+palha.
+
+--Estava por aqui?
+
+--Vim dar uma vista d'olhos. E agora toca ao almocinho, hein?
+
+--Se é servido... disse a S. Joanneira.
+
+Agostinho, muito galante, offereceu o braço á mamã.
+
+E desde então seguia sempre Amelia, de manhã no banho, de tarde á
+beira-mar; apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros versos--o
+_Sonho_. Uma estrophe era violenta:
+
+
+Senti-te contra o meu peito
+Tremer, palpitar, ceder...
+
+
+Ella murmurava-os com grande commoção, de noite, suspirando, abraçando o
+travesseiro.
+
+Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da
+snr.^a D. Maria da Assumpção e das amigas fôra dar um passeio ao luar. Á
+volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o céo, cahíram
+gotas d'agua. Estavam então junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras,
+aos gritinhos, quizeram abrigar-se. Agostinho, com Amelia pelo braço,
+rindo alto, foi penetrando longe dos outros na espessura; e então, sob o
+monotono e gemente rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:
+
+--Estou doido por ti, filha!
+
+--Creio lá n'isso! murmurou ella.
+
+Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:
+
+--Sabes? talvez eu tenha de me ir ámanhã embora.
+
+--Vai-se?
+
+--Talvez; não sei ainda. Além d'ámanhã é a matricula.
+
+--Vai-se... suspirou Amelia.
+
+Elle então tomou-lhe a mão, apertou-lh'a com furor:
+
+--Escreve-me! disse.
+
+--E a mim escreve-me? disse ella.
+
+Agostinho agarrou-a pelos hombros e machucou-lhe a boca de beijos
+vorazes.
+
+--Deixe-me! deixe-me! dizia ella suffocada.
+
+De repente teve um gemido dôce como um arrulho de ave, e
+abandonava-se--quando a voz aguda de D. Joaquina Gansoso gritou:
+
+--Ha uma aberta. É andar! é andar!
+
+E Amelia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o
+guardachuva da mamã.
+
+Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras
+chuvas, e dentro em pouco tambem Amelia, a mãi, a snr.^a D. Maria da
+Assumpção voltaram para Leiria.
+
+Passou o inverno.
+
+E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da Assumpção deu parte que o
+Agostinho Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento
+justo com a menina do Vimeiro.
+
+--Caspitè! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus
+trinta contos! Olha o méco!
+
+E diante de todos Amelia rompeu a chorar.
+
+Amava Agostinho; e não podia esquecer aquelles beijos de noite no
+pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que não tornaria a ter alegria!
+Ainda lembrada d'aquelle moço da historia do _Tio Cegonha_, que por amor
+se escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira:
+deu-se a uma forte devoção, manifestação exagerada das tendencias que
+desde pequenina as convivencias de padres tinham lentamente creado na
+sua natureza sensivel; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes
+do quarto de lithographias coloridas de santos; passava longas horas na
+igreja, accumulando Salve-Rainhas á Senhora da Encarnação. Ouvia todos
+os dias missa, quiz commungar todas as semanas--e as amigas da mãi
+achavam-na «um modêlo, de dar virtude a incredulos»!
+
+Foi por esse tempo que o conego Dias e sua irmã, a snr.^a D. Josepha
+Dias, começaram a frequentar a casa da S. Joanneira. Dentro em pouco o
+conego tornou-se o «amigo da familia». Depois do almoço era certo com a
+sua cadellinha, como outr'ora o chantre com o seu guardachuva.
+
+--Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joanneira. Mas o
+senhor chantre não ha dia nenhum que me não lembre d'elle!
+
+A irmã do conego tinha então organisado com a S. Joanneira a _Associação
+das Servas da Senhora da Piedade_. A snr.^a D. Maria da Assumpção, as
+Gansosos «filiaram-se»; e a casa da S. Joanneira tornou-se um centro
+ecclesiastico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joanneira; «a Sé,
+como dizia com tedio o Carlos da botica, era agora na rua da
+Misericordia». Parte dos conegos, o novo chantre vinham todas as
+sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha.
+As criadas, por escrupulo, eram examinadas em doutrina antes de serem
+aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de um
+homem--_não é temente a Deus_, havia o dever de o desacreditar
+santamente. As nomeações de sineiros, coveiros, serventes de sacristia
+arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras piedosas. Tinham
+tomado um certo vestuario entre o preto e o rôxo: toda a casa cheirava a
+cera e a incenso; e a S. Joanneira, mesmo, monopolisára o commercio das
+hostias.
+
+Assim passaram annos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se:
+a ligação do conego Dias e da S. Joanneira, muito commentada, afastou os
+padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia tambem--como era
+de tradição n'aquella diocese, fatal aos chantres; e já não eram
+divertidos os quinos das sextas-feiras. Amelia mudára muito; crescera:
+fizera-se uma bella moça de vinte e dois annos, d'olhar avelludado,
+beiços muito frescos--e achava a sua paixão pelo Agostinho uma «tontice
+de criança». A sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na
+religião e na igreja era o apparato, a festa--as bellas missas cantadas
+ao orgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o
+altar-mór na gloria das flôres cheirosas, o roçar das correntes dos
+incensadores de prata, os unisonos que rompem briosamente no côro das
+alleluias. Tomava a Sé como a sua Opera: Deus era o seu luxo. Nos
+domingos de missa gostava de se vestir, de se perfumar com agua de
+colonia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mór, sorrindo ao padre
+Brito ou ao conego Saldanha.--Mas em certos dias, como dizia a mãi,
+«murchava»: voltavam então os abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam,
+lhe punham duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha n'essas
+occasiões horas d'uma vaga saudade parva e morbida, em que só a
+consolava cantar pela casa o Santissimo ou as notas lugubres do toque da
+Agonia. Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre--e lamentava
+então que a Sé fosse uma ampla estructura de pedra d'um estylo frio e
+jesuitico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada,
+forrada de papel, illuminada a gaz; e padres bonitos officiando a um
+altar ornado como uma _étagère_.
+
+Fizera vinte e tres annos quando conheceu João Eduardo, no dia da
+procissão de _Corpus-Christi_, em casa do tabellião Nunes Ferral, onde
+elle era escrevente. Amelia, a mãi, a snr.^a D. Josepha Dias tinham ido
+vêr a procissão da bella varanda do tabellião, guarnecida de colchas de
+damasco amarello. João Eduardo estava lá, modesto, sério, todo vestido
+de preto. Havia muito que Amelia o conhecia; mas n'aquella tarde,
+reparando na brancura da sua pelle e na gravidade com que ajoelhava,
+pareceu-lhe «muito bom rapaz».
+
+Á noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de collete branco, foi pela
+sala exclamando, enthusiasmado, com a sua voz de grillo:--É tirar pares,
+é tirar pares!--emquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio
+estridente uma mazurka franceza. João Eduardo aproximou-se de Amelia:
+
+--Ai, eu não danso!... disse ella logo com ar sêcco.
+
+João Eduardo não dansou tambem, foi encostar-se a uma hombreira com a
+mão na abertura do collete, os olhos fitos em Amelia. Ella percebia,
+desviava o rosto, mas estava contente; e quando João Eduardo, vendo uma
+cadeira vazia, veio sentar-se ao pé d'ella, Amelia fez-lhe logo logar
+accommodando os folhos de sêda, agradada. O escrevente, embaraçado,
+torcia o bigode com a mão tremula. Por fim Amelia voltando-se para elle:
+
+--Então o senhor não dansa tambem?
+
+--E a snr.^a D. Amelia? disse elle baixo.
+
+Ella inclinou-se para traz, e batendo nas pregas do vestido:
+
+--Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.
+
+--Nunca se ri? perguntou elle, pondo na voz uma intenção fina.
+
+--Ás vezes rio quando ha de quê, disse ella olhando-o de lado.
+
+--De mim, por exemplo.
+
+--De si!? ora essa! Está a caçoar commigo? Porque me hei de eu rir do
+senhor? Boa!... Então o senhor que tem que faça rir?--E agitava o seu
+leque de sêda preta.
+
+Elle calou-se, procurando as idéas, as delicadezas.
+
+--Então sério, sério, não dansa?
+
+--Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!
+
+--É porque me interesso por si.
+
+--Ora, deixe lá! disse ella fazendo um indolente gesto de negativa.
+
+--Palavra!
+
+Mas a snr.^a D. Josepha Dias, que os vigiava, aproximou-se, de testa
+muito franzida--e João Eduardo levantou-se, intimidado.
+
+Á sahida, quando Amelia no corredor punha os seus agasalhos, João
+Eduardo veio dizer-lhe, de chapéo na mão:
+
+--Cubra-se bem, não apanhe frio!
+
+--Então continúa a interessar-se por mim? disse ella apertando em redor
+do pescoço as pontas da sua manta de lã.
+
+--O mais possivel, creia.
+
+Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de _zarzuela_.
+Fallava-se muito da contralto, a _Gamacho_. A snr.^a D. Maria da
+Assumpção tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia--que duas
+noites antes estivera costurando, com uma pressa commovida, um vestido
+de cassa todo florido de laços de sêda azul. João Eduardo na
+platéa--emquanto a Gamacho, empastada de pó de arroz sob a sua mantilha
+valenciana, vibrando com uma graça decrepita o leque de lentejoulas,
+garganteava malaguenhas agudas--não se fartou de contemplar, de desejar
+Amelia. Á sahida veio comprimental-a, offerecer-lhe o braço até á rua da
+Misericordia: a S. Joanneira, a snr.^a D. Maria da Assumpção seguiam
+atraz com o tabellião Nunes.
+
+--Então gostou da Gamacho, snr. João Eduardo?
+
+--A fallar-lhe a verdade nem sequer reparei n'ella.
+
+--Então que fez?
+
+--Olhei para si, respondeu elle resolutamente.
+
+Ella parou immediatamente, disse com a voz um pouco alterada:
+
+--Onde vem a mamã?
+
+--Deixe lá a mamã!
+
+E João Eduardo, então, fallando-lhe junto do rosto, disse-lhe «a sua
+grande paixão». Tomou-lhe a mão, repetia todo perturbado:
+
+--Gósto tanto de si! Gósto tanto de si!
+
+Amelia estava nervosa da musica do theatro; a noite quente de verão, com
+a sua vasta scintillação de estrellas, tornava-a toda languida.
+Abandonou a mão, suspirou baixinho.
+
+--Gosta de mim, não é verdade? perguntou elle.
+
+--Sim, respondeu ella--e apertou os dedos de João Eduardo, com paixão.
+
+Mas, como ella pensou, «fôra decerto um fogacho»--porque, dias depois,
+quando conheceu mais João Eduardo, quando pôde fallar livremente com
+elle, reconheceu que «não tinha nenhuma inclinação pelo rapaz».
+Estimava-o, achava-o sympathico, bom moço; poderia ser um bom marido;
+mas sentia dentro em si o coração adormecido.
+
+O escrevente porém começou a ir á rua da Misericordia quasi todas as
+noites. A S. Joanneira estimava-o pelo seu «proposito» e pela sua
+honradez. Mas Amelia ia-se mostrando «fria»: esperava-o á janella pela
+manhã quando elle passava para o cartorio, fazia-lhe olhos dôces á
+noite,--mas só para o não descontentar, para ter na sua existencia
+desoccupada um interessesinho amoroso.
+
+João Eduardo um dia fallou à mãi em casamento:
+
+--Como a Amelia quizer, eu por mim... disse a S. Joanneira.
+
+E Amelia, consultada, respondeu ambiguamente:
+
+--Mais tarde, por ora não me parece, veremos.
+
+Emfim accordou-se tacitamente em esperar, até que elle obtivesse o lugar
+de amanuense do governo civil, rasgadamente promettido pelo doutor
+Godinho--o temido doutor Godinho!
+
+Assim vivera Amelia até à chegada d'Amaro: e, durante a noite, estas
+recordações vinham-lhe por fragmentos, como pedaços de nuvens que o
+vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou já o sol ia
+alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a _Ruça_ na sala de jantar:
+
+--É o senhor parocho que vai sahir com o senhor conego; vão á Sé.
+
+Amelia saltou da cama, correu á janella em camisa, ergueu uma pontinha
+da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo
+meio da rua conversando com o conego, assoava-se ao seu lenço branco,
+muito airoso na sua batina de pano fino.
+
+
+
+
+VI
+
+
+Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em commodidades,
+Amaro sentiu-se feliz. A S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande
+cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o «quarto do
+senhor parocho andava que nem um brinco»! Amelia tinha com elle uma
+familiaridade picante de parenta bonita: «tinham calhado um com outro»,
+como dissera, encantada, D. Maria da Assumpção. Os dias iam assim
+passando para Amaro, faceis, com boa mesa, colchões macios e a
+convivencia meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tilias
+floresceram no jardim do Paço: «quasi milagre»! disse-se: o senhor
+chantre, contemplando-as todas as manhãs da janella do seu quarto, em
+robe-de-chambre, citava versos das _Eclogas_. E depois das longas
+tristezas da casa do tio da Estrella, dos desconsolos do seminario e do
+aspero inverno na Gralheira--aquella vida em Leiria era para Amaro como
+uma casa sêcca e abrigada onde o alegre lume estala e a sôpa cheirosa
+fumega, depois d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.
+
+Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas
+de casimira, meias de lã por baixo das botas de alto cano vermelho. As
+manhãs estavam frias: e àquella hora só algumas devotas, com o mantéo
+escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de
+branco.
+
+Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no
+lagedo, emquanto o sacristão, pachorrento, contava «as novidades do
+dia».
+
+Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava á igreja; e tendo
+dobrado o joelho rapidamente diante do Santissimo Sacramento, subia
+devagar ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam com uma claridade
+pallida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:
+
+--_Introibo ad altare Dei._
+
+--_Ad Deum qui lætificat juventutem meam_, resmungava, n'um latim
+syllabado, o sacristão.
+
+Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma
+devoção enternecida. «Estava agora habituado», dizia. E como não ceava,
+e áquella hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia
+appetite, engorolava depressa, monotonamente, as santas leituras da
+Epístola e dos Evangelhos. Por traz o sacristão, com os braços cruzados,
+passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando
+de revez para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito
+devota, que elle «trazía d'olho» desde a Paschoa. Largas resteas de sol
+cahiam das janellas lateraes. Um vago aroma de junquilhos sêccos
+adocicava o ar.
+
+Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio, limpava o calice com
+o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as
+galhetas, apresentava-as, curvado--e Amaro sentia o cheiro do oleo
+rançoso que lhe reluzia no cabello. N'aquella parte da missa, por um
+antigo habito de emoção mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido:
+com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza,
+a exhortação universal á oração--_Orate, fratres!_ E as velhas
+encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa,
+apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde pendiam grandes rosarios
+negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando
+ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro
+consagrava o vinho, levantava a hostia--_Hoc est enim corpus
+meum!_--elevando alto os braços para o Christo cheio de chagas rôxas
+sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos
+batiam concavamente nos peitos; e no silencio sentiam-se os carros de
+bois rolando, com solavancos, sobre o largo lageado da Sé, à volta do
+mercado.
+
+--_Ite, missa est!_ dizia Amaro emfim.
+
+--_Deo gratias!_ respondia o sacristão respirando alto, com o allivio da
+obrigação finda.
+
+E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus
+dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de
+jantar da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora já Amelia o
+esperava com o cabello cahido sobre o penteador, tendo na pelle fresca
+um bom cheiro de sabão d'amendoas.
+
+
+Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar onde a S.
+Joanneira e Amelia costuravam. «Estava aborrecido em baixo, vinha um
+bocado para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira pequena, ao
+pé da janella, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia
+de luneta na ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava com o
+cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a
+sua risca fina, nitida, um pouco afogada na abundancia do cabello; os
+seus grandes brincos de ouro, em fórma de pingos de cera, oscillavam,
+faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra;
+as olheiras leves côr de _bistre_ esbatiam-se delicadamente sobre a
+pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu
+peito cheio respirava devagar. Ás vezes, cravando a agulha na fazenda,
+espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:
+
+--Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!
+
+Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as coisas interessantes do
+dia: o major despedira a criada; ou havia quem offerecesse dez moedas
+pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a _Ruça_ vinha ao
+armario buscar um prato ou uma colhér: então fallava-se do preço dos
+generos, do que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as lunetas,
+traçava a perna e, balouçando o pé calçado n'uma chinela d'ourelo,
+punha-se a dizer os pratos:
+
+--Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor parocho gostará, foi para
+variar...
+
+Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria
+affinidade de gostos com Amelia.
+
+Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrára
+uma carta; perguntou-lhe pelo _derriço_; ella respondeu, picando
+vivamente o posponto:
+
+--Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...
+
+--Não é tanto assim, acudiu elle.--Mas suspendeu-se, muito vermelho,
+affectando tossir.
+
+Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo pediu-lhe para
+sustentar nas mãos uma meadinha de retroz que ella ia dobar.
+
+--Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S. Joanneira. Ora a tolice!
+Isto, em se lhe dando confiança!...
+
+Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:--elle estava alli para
+o que quizessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem! E as
+duas mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas maneiras do
+senhor parocho, «que até tocavam o coração»! Ás vezes Amelia pousava a
+costura e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se, corria a mão pela
+espinha do _Maltez_ que se arredondava, fazendo um _ron-ron_ de gozo.
+
+--Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada, com os olhos muito
+ternos.
+
+E a voz de Amaro murmurava, perturbada:
+
+--Bichaninho gato! bichaninho gato!
+
+Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio á idiota ou ir palrar
+á cozinha. Elles ficavam sós; não fallavam, mas os seus olhos tinham um
+longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente.
+Então Amelia cantarolava baixo o _Adeus_ ou o _Descrente_: Amaro
+accendia o seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.
+
+--É tão bonito isso! dizia.
+
+Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo depressa; e a espaços,
+erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o posponto, passando-lhe por
+cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.
+
+Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque tudo que era _ella_ ou
+vinha d'_ella_ lhe parecia perfeito: gostava da côr dos seus vestidos,
+do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabellos, e olhava até
+com ternura para as saias brancas que ella punha a seccar á janella do
+seu quarto, enfiadas n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade
+d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto d'ella entreaberta, ia
+resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas d'um
+paraiso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficára
+sobre o bahú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar
+os dentes, todo pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir, andar
+com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras das portas
+estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava
+que era padre: o Sacerdocio, Deus, a Sé, o Peccado ficavam em baixo,
+longe; via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como d'um monte se
+vêem as casas desapparecer no nevoeiro dos valles; e só pensava então na
+doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou
+mordicar-lhe a orelhinha.
+
+Ás vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos, batia o pé:
+
+--Que diabo, é necessario ter juizo! é necessario ser homem!
+
+Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de Amelia fallava em cima,
+o _tic-tic_ das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção cahia
+como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá
+voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cerebro, frementes,
+arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que
+recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava então a
+sua liberdade perdida: como desejaria não a vêr, estar longe de Leiria,
+n'uma aldeia solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia
+de proverbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces
+verdejam e os gallos cacarejam ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o--e
+o encanto recomeçava, mais penetrante.
+
+A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor
+do dia. A S. Joanneira trinchava, emquanto Amaro conversava cuspindo os
+caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha.
+A _Ruça_, cada dia mais etica, servia mal, sempre a tossir: Amelia ás
+vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro
+queria levantar-se logo, attencioso.
+
+--Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho! dizia ella. E
+punha-lhe a mão no hombro, e os seus olhos encontravam-se.
+
+Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estomago,
+sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo
+copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; ás vezes mesmo,
+com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amelia debaixo
+da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia «que muito lhe pezava não ter
+uma irmãzinha assim»!
+
+Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no môlho do guisado; a mãi
+dizia-lhe sempre:
+
+--Embirro que faças isso diante do senhor parocho.
+
+E elle então rindo:
+
+--Pois olhe, também eu gósto. Sympathia! magnetismo!
+
+E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o
+crepusculo crescia, a _Ruça_ trazia o candieiro. O brilho dos copos e
+das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S. Joanneira
+_mamã_; Amelia sorria, d'olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes
+cascas de tangerina. D'ahi a pouco vinha o café; o o padre Amaro ficava
+muito tempo partindo nozes com as costas da faca e quebrando a cinza do
+cigarro na borda do pires.
+
+Áquella hora apparecia sempre o conego Dias; sentiam-no subir
+pesadamente, dizendo da escada:
+
+--Licença para dois!
+
+Era elle e a cadella, a _Trigueira_.
+
+--Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites! dizia assomando á porta.
+
+--Vai a gotinha de café, senhor conego? perguntava logo a S. Joanneira.
+
+Elle sentava-se, exhalando um profundo _uff!_--Vá lá a gotinha do café!
+E batendo no hombro do parocho, olhando para a S. Joanneira:
+
+--Então como vai cá o seu menino?
+
+Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava trazer no bolso o
+_Diario Popular_; Amelia interessava-se pelo romance, a S. Joanneira
+pelas correspondencias amorosas nos annuncios.
+
+--Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella, deliciando-se.
+
+Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos que lhe contára a tia, dos
+fidalgos que conhecera «em casa do senhor conde de Ribamar». Amelia,
+enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa, roendo vagarosamente
+a ponta do palito.
+
+Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à
+cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas
+negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã
+raineta, fazendo debaixo da roupa uma saliencia quasí imperceptivel,
+fixava em todos, com custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.
+
+--É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe Amelia ao ouvido. Vem
+vêr como está.
+
+A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:
+
+--Ah! é o menino!
+
+--É o menino, é, diziam rindo.
+
+E a velha ficava a murmurar, espantada:
+
+--É o menino, é o menino!
+
+--Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo! Deus lhe dê uma boa
+morte!
+
+E voltavam para a sala de jantar onde o conego Dias, todo enterrado na
+velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre,
+dizia logo:
+
+--Ora vá um bocadinho de musica, pequena!
+
+Amelia ia sentar-se ao piano.
+
+--Ó filha, toca o _Adeus_! recommendava a S. Joanneira começando a sua
+meia.
+
+E Amelia, ferindo o teclado:
+
+
+Ai! adeus! acabaram-se os dias
+Que ditoso vivi a teu lado...
+
+
+A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro, soprando o fumo do
+cigarro, sentia-se todo enleado n'um sentimentalismo agradavel.
+
+
+Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se
+então a lêr os _Canticos a Jesus_, traducção do francez publicada pela
+sociedade das _Escravas de Jesus_. É uma obrasinha beata, escripta com
+um lyrismo equivoco, quasi torpe--que dá á oração a linguagem da
+luxuria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes
+d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo
+adoravel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero!
+Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!» E um amor divino, ora
+grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge,
+declama assim em cem paginas inflammadas onde as palavras _gozo_,
+_delicia_, _delírio_, _extase_, voltam a cada momento, com uma
+persistencia hysterica. E depois de monologos phreneticos d'onde se
+exhala um bafo de cio mystico, vêm então imbecilidades de sacristia,
+notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de jejuns, e orações para
+as dôres de parto! Um bispo approvou aquelle livrinho bem impresso; as
+educandas lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem as eloquencias
+do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e
+dá-se ás confessadas: é a cantharida canonica!
+
+Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aquelles periodos sonoros,
+tumidos de desejo; e no silencio, por vezes, sentia em cima ranger o
+leito de Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça ás
+costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vêl-a em collete
+diante do toucador desfazendo as trancas; ou, curvada, desapertando as
+ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios
+muito brancos. Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de
+a possuir.
+
+Começára então a recommendar-lhe a leitura dos _Canticos a Jesus_.
+
+--Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse elle, deixando-lhe o
+livrinho uma noite no cesto da costura.
+
+Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida, com as olheiras até ao
+meio da face. Queixou-se de insomnia, de palpitações.
+
+--E então, gostou dos _Canticos_?
+
+--Muito. Orações lindas! respondeu.
+
+Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste--e
+sem razão, ás vezes, o rosto abrazava-se-lhe de sangue.
+
+
+Os peores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando
+João Eduardo vinha passar as noites «em familia». Até ás nove horas o
+parocho não sahia do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de
+vêr o escrevente embrulhado no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.
+
+--Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor parocho! dizia a S.
+Joanneira.
+
+Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar a sua torrada, com os
+olhos fitos na chavena.
+
+Amelia, na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o parocho a
+mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o
+escrevente calado chupava o cigarro; e havia grandes silencios em que se
+sentia o vento uivar, encanado na rua.
+
+--Olha quem andar agora nas aguas do mar! dizia a S. Joanneira fazendo
+devagar a sua meia.
+
+--Safa!... acrescentava João Eduardo.
+
+As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro: detestava-o
+pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle
+sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.
+
+--Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.
+
+--Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se nas costas da cadeira,
+com um suspirosinho de fadiga.
+
+A S. Joanneira, então, que não gostava de «vêr gente mona», propunha uma
+_bisca de tres_; e o padre Amaro, tomando o seu candieiro de latão,
+descia para o quarto, muito infeliz.
+
+N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a _casmurra_. A intimidade
+do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidia mesmo fallar á S.
+Joanneira, dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a dentro não podia
+ser agradavel a Deus». Depois, mais razoavel, resolvia esquecel-a,
+pensava em sahir da casa, da parochia. Representava-se então Amelia com
+a sua corôa de flôres de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de
+casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus
+lençoes de renda... e todas as provas, as certezas do amor d'ella pelo
+«idiota do escrevente» cravavam-se-lhe no peito como punhaes...
+
+--Pois que casem, e que os leve o diabo!...
+
+Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir
+que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o _frou-frou_ das
+suas saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava com o
+coração aos saltos, immovel e ancioso, os ruidos que ella fazia em cima
+ao despir-se, palrando ainda com a mãi.
+
+
+Um dia Amaro jantára em casa da snr.^a D. Maria da Assumpção; fôra
+depois passear pela estrada de Marrases, e á volta, ao fim da tarde,
+encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no
+patamar, estavam os chinelos de ourelo da _Ruça_.
+
+--Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi á fonte e esqueceu-se de fechar a
+porta.
+
+Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde com a snr.^a D. Joaquina
+Gansoso, n'uma fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joanneira fallára em
+ir á irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu á cozinha a
+accender o seu candieiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da
+manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam
+rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da
+S. Joanneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa;
+surprehendido, afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela porta
+entreaberta espreitou.--Oh Deus de Misericordia! a S. Joanneira, em saia
+branca, atacava o collete; e, sentado á beira da cama, em mangas de
+camisa, o conego Dias resfolegava grosso!
+
+Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e
+foi ao acaso para os lados da Sé. O céo ennevoára-se, leves gotas de
+chuva cahiam.
+
+--E esta! E esta! dizia elle assombrado.
+
+Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira, a pachorrenta S.
+Joanneira! O conego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos
+do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição,
+as dignidades ecclesiasticas! Que faria então um homem novo e forte, que
+sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!...
+Era, pois, verdade o que se cochichava no seminario, o que lhe dizia o
+velho padre Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:--«Todos são
+do mesmo barro!» Todos são do mesmo barro,--sobem em dignidades, entram
+nos cabidos, regem os seminarios, dirigem as consciencias envoltos em
+Deus como n'uma absolvição permanente, e têm no emtanto, n'uma viella,
+uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das attitudes
+devotas e da austeridade do officio, fumando cigarros de estanco e
+palpando uns braços rechonchudos!
+
+Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquella, a S. Joanneira
+e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um
+velho conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem feita,
+desejavel--outr'ora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos
+declives da idade, áquelles amores senis e mal pagos? As duas
+mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da
+concubinagem. Amelia ia sósinha á igreja, ás compras, á fazenda; e com
+aquelles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante!--Resumia,
+filiava certas recordações: um dia que ella lhe estivera mostrando na
+janella da cozinha um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e ella,
+muito córada, puzera-lhe a mão sobre o hombro e os seus olhos reluziam e
+pediam; outra occasião ella roçára-lhe o peito pelo braço! A noite
+cahira, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa,
+cheio de uma só idéa deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da
+rapariga, como o conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa vida
+escandalosa e regalada; emquanto em cima a grossa S. Joanneira
+beijocasse o seu conego cheio de difficuldades asthmaticas,--Amelia
+desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um
+chale sobre os hombros nús... Com que phrenesi a esperaria! E já não
+sentia por ella o mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a idéa
+muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panellinha, dava
+áquelle homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos
+pulinhos pela rua.--Que pechincha de casa!
+
+A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar.
+Subiu.
+
+--Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a
+humidade da nevoa.
+
+Sentada á mesa, costurava com um chale-manta pelos hombros: João
+Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joanneira.
+
+Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe
+de repente, sem saber porque, o duro choque d'uma realidade antipathica:
+e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dansar uma sarabanda na
+imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam--vendo alli Amelia ao pé
+do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido
+afogado, junto do candieiro de familia!
+
+E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado, as paredes com o seu
+papel de ramagens verdes, o armario cheio de louça luzidia da
+Vista-Alegre, o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho piano mal firme
+nos seus tres pés torneados; o paliteiro tão querido de todos--um Cupido
+rechonchudo com um guardachuva aberto erriçado de palitos, e aquella
+tranquilla bisca jogada com os dichotes classicos. Tudo tão decente!
+
+Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joanneira, como
+para descobrir n'ellas as marcas das beijocas do conego: ah! tu, não ha
+duvida, és «uma barregã de clerigo ». Mas Amelia! com aquellas longas
+pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as
+libertinagens da mãi; ou, experiente, estava bem resolvida a
+estabelecer-se solidamente na segurança d'um amor legal!--E Amaro, da
+sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do
+seu rosto, da virgindade do seu passado.
+
+--Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S. Joanneira. E para João
+Eduardo:--Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar?
+
+O escrevente, namorado, distrahia-se.
+
+--É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a cada momento.
+
+Depois elle esquecia-se de _comprar cartas_.
+
+--Ah menino, menino! dizia ella com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo
+essas orelhas!
+
+Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto
+com botões de vidro, que lhe disfarçava a fórma do seio.
+
+E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura, d'aquelle casaco
+amplo escondendo a belleza que mais appetecia n'ella! E nada a esperar!
+Nada d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas, nem a
+brancura d'aquelles peitos! Queria casar--e guardava _tudo_ para o
+outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, d'um
+odio complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu direito d'amar...
+
+--Está incommodado, senhor parocho? perguntou Amelia, vendo-o mexer-se
+bruscamente na cadeira.
+
+--Não, disse elle sêccamente.
+
+--Ah! fez ella com um leve suspiro, picando rapidamente o posponto.
+
+O escrevente, baralhando as cartas, começára a fallar de uma casa que
+queria alugar; a conversa cahiu sobre arranjos domesticos.
+
+--Traze-me luz! gritou Amaro à _Ruça_.
+
+Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a vela sobre a commoda; o
+espelho estava defronte, e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio,
+ridiculo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma colleira, e por
+traz a corôa hedionda. Comparou-se instinctivamente com o outro que
+tinha um bigode, o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de eu
+estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu
+nome, uma casa, a maternidade; elle só poderia dar-lhe sensações
+criminosas, depois os terrores do peccado! Ella sympathisava talvez com
+elle, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar;
+nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma situação
+legitima e duradoura, o respeito das visinhas, a consideração dos
+lojistas, todos os proveitos da honra!
+
+Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua honestidade! A estupida,
+que não percebia que ao pé d'ella, sob uma negra batina, uma paixão
+devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia! Desejou
+que ella fosse como a mãi,--ou peor, toda livre, com vestidos garridos,
+uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma femea
+facil como uma porta aberta ...
+
+--Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada!--pensou,
+recahíndo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em
+mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!
+
+Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso; a chuva cessára; o
+piar das corujas na Misericordia cortava só o silencio.
+
+Enterneceu-se, então, com aquella escuridão, aquella mudez de villa
+adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu sêr, o
+amor que sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo
+devoto: via a sua linda cabeça, d'uma belleza transfigurada e luminosa,
+destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella n'um
+desfallecimento d'adoração, como no culto a Maria e na Saudação
+Angelica; pediu-lhe perdão anciosamente de a ter offendido; disse-lhe
+alto: És uma santa! perdôa!--Foi um momento muito dôce, de renunciamento
+carnal...
+
+E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade que descobria
+subitamente em si, pôz-se a pensar com saudade--que se fosse um homem
+livre seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado, dengueiro, sempre de
+joelhos, todo d'adorações! Como amaria o _seu_ filho, muito
+pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! Á idéa d'aquellas felicidades
+inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas. Amaldiçoou, n'um
+desespero, «a pêga da marqueza que o fizera padre», e o bispo que o
+confirmára!
+
+--Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco desvairado.
+
+Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias
+de Amelia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no
+beiço, de ciume. A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.--Mas
+a sensação d'amor mystico que o penetrára um momento, olhando a noite,
+passára; e deitou-se, com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.
+
+
+
+
+VII
+
+
+Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham ido jantar com o abbade
+da Cortegassa.--Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta
+annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor cozinheiro da
+diocese. Todo o clero das visinhanças conhecia a sua famosa _cabedella
+de caça_. O abbade fazia annos, havia outros convidados--o padre Natario
+e o padre Brito: o padre Natario era uma creaturinha biliosa, sêcca, com
+dois olhos encovados, muito malignos, a pelle picada das bexigas e
+extremamente irritavel. Chamavam-lhe o _Furão_. Era esperto e
+questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma logica de
+ferro; e dizia-se d'elle: _é uma lingua de vibora_! Vivia com duas
+sobrinhas orphãs, declarava-se extremoso por ellas, gabava-lhes sempre a
+virtude, e costumava chamar-lhes as _duas rosas do seu canteiro_. O
+padre Brito era o padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha o
+aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o
+cajado, emborca um almude de vinho, péga alegremente á rabiça do arado,
+serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas séstas quentes de
+junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O
+senhor chantre, sempre correcto nas suas comparações mythologicas,
+chamava-lhe--o _leão de Nemeia_.
+
+A sua cabeça era enorme, de cabello lanigero que lhe descia até ás
+sobrancelhas: a pelle cortida tinha um tom azulado, do esforço da
+navalha de barba; e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos muito
+miudos e muito brancos do uso da brôa.
+
+Quando iam sentar-se á mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando
+muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:
+
+--Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela
+igreja de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma
+missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!
+
+A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade, entrou então com a vasta
+terrina do caldo de gallinha; e o Libaninho, saltitando em roda d'ella,
+começou os seus gracejos:
+
+--Ai, Gertrudinhas! quem tu fazias feliz bem eu sei!
+
+A velha aldeã ria com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a
+massa do seio.
+
+--Olhe que arranjo me apparece agora pela tarde!...
+
+--Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete
+cotovêlos. Então é que é chupal-as!
+
+Os padres gargalharam; e, alegremente, accommodaram-se á mesa.
+
+O jantar fôra todo cozinhado pelo abbade: logo á sopa as exclamações
+começaram:
+
+--Sim, senhor, famoso! D'isto nem no céo! Bella coisa!
+
+O excellente abbade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o
+senhor chantre, «um divino artista»! Lera todos os _Cozinheiros
+completos_, sabia innumeras receitas: era inventivo--e, como elle
+affirmava dando martelladinhas no craneo, «tinha-lhe sahido muito
+petisco d'aquella cachimonia»! Vivia tão absorvido pela sua «arte» que
+lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fieis ajoelhados para
+receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre
+os condimentos do sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua velha
+Gertrudes, de muito bom paladar tambem, com o seu quintal de ricos
+legumes, sentindo uma só ambição na vida--ter um dia a jantar o bispo!
+
+--Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por quem é! mais um bocadinho
+de cabedella, faça favor! Essas côdeasinhas de pão ensopadas no môlho!
+Isso! isso! Que tal, hein?--E com um aspecto modesto:--Não é lá por
+dizer, mas a cabedella hoje sahiu-me boa!
+
+Estava com effeito, como disse o conego Dias, de tentar Santo Antonio no
+deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas
+alargadas, comiam devagar, fallando pouco. Como no dia seguinte era a
+festa da Senhora da Alegria, os sinos na capella, ao lado, repicavam; e
+o bom sol do meio-dia dava tons muito alegres á louça, ás bojudas
+canecas azues com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates,
+ás frescas malgas de azeitonas pretas--emquanto o bom abbade, d'olho
+arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do
+peito do capão recheado.
+
+As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camelias
+vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das
+macieiras um pedaço muito vivo de céo azul-ferrete. Uma nora chiava ao
+longe, lavadeiras batiam a roupa.
+
+Sobre a commoda, entre _in-folios_, na sua peanha um Christo perfilava
+tristemente contra a parede o seu corpo amarello, coberto de chagas
+escarlates: e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de vidro,
+lembravam legendas mais dôces de religião amavel: o bom gigante S.
+Christovão atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz
+saltar o mundo sobre a sua mãosinha como uma pella; o dôce pastor S.
+Joãosinho coberto com uma pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos,
+não com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na
+sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do céo!
+Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o patriarcha S. José
+apoiava-se ao seu cajado onde florescem lirios brancos; o cavallo
+empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre d'um dragão surprehendido; e
+o bom Santo Antonio, á beira d'um regato, sorria, fallando a um tubarão.
+O _tlim-tlim_ dos copos, o ruido das facas animavam a velha sala de
+tecto de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E Libaninho
+devorava, dizendo pilherias:
+
+--Gertrudinhas, flôr do caniço, passa-me as vagens. Não me olhes assim,
+magana, que me fazes revolver os intestinos!
+
+--O diabo é o homem! dizia a velha. Olha p'r'ó que lhe deu! Fallasse-me
+aqui ha trinta annos, seu perdido!
+
+--Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto
+coisas pela espinha acima!
+
+Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam
+vazias: e o padre Brito desabotoára a batina, deixando vêr a sua grossa
+camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fabrica, feita de linha azul,
+era uma cruz sobre um coração.
+
+Um pobre então viera á porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e
+emquanto Gertrudes lhe mettia no alforge metade d'uma brôa, os padres
+fallaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguezias.
+
+--Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abbade. Ó Dias,
+mais este bocadinho da aza?
+
+--Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre
+Natario.--Em muitas fazendas sabia elle que havia falta de jornaleiros,
+e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos
+pelas portas.--Sucia de mariolas! resumiu.
+
+--Deixe lá, padre Natario, deixe lá! disse o abbade. Olhe que ha pobreza
+devéras. Por aqui ha familias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem
+no chão como porcos e não comem senão hervas.
+
+--Então que diabo querias tu que elles comessem? exclamou o conego Dias
+lambendo os dedos depois de ter esburgado a aza do capão. Querias que
+comessem perú? Cada um como quem é!
+
+O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estomago, e
+disse com affecto:
+
+--A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.
+
+--Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso, se houvesse só
+pobresinhos isto era o reininho dos céos!
+
+O padre Amaro considerou com gravidade:
+
+--É bom que haja quem tenha cabedaes para legados pios, edificações de
+capellas...
+
+--A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natario com
+auctoridade.
+
+O conego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:
+
+--Para o esplendor do culto e propagação da fé.
+
+Mas a grande causa da miseria, dizia Natario com uma voz pedante, era a
+grande immoralidade.
+
+--Ah! lá isso não fallemos! exclamou o abbade com desgosto. N'este
+momento ha só aqui na freguezia mais de doze raparigas solteiras
+gravidas! Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, põem-se-me a
+fungar de riso!
+
+--Lá nos meus sitios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da
+azeitona, como ha falta de braços, vieram as _maltas_ trabalhar. Pois
+agora o verás! Que desafôro!--Contou a historia das _maltas_,
+trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam offerecendo os
+braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na miseria.--Era
+necessario andar sempre de cajado em cima d'elles!
+
+--Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o
+peccado que vai pelo mundo! Até se me estão a erriçar os cabellos!
+
+Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor! As mulheres casadas
+tinham perdido todo o escrupulo.
+
+--Peores que cabras, dizia o padre Natario alargando a fivela do
+collete.
+
+E o padre Brito fallou de um caso na freguezia de Amor: raparigas de
+dezeseis e dezoito annos que costumavam reunir-se n'um palheiro--o
+palheiro do Silverio--e passavam lá a noite com um bando de marmanjos!
+
+Então o padre Natario, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta,
+disse, repoltreando-se na cadeira e espaçando as palavras:
+
+--Eu não sei o que se passa lá na tua freguezia, Brito; mas se ha alguma
+coisa o exemplo vem de alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher do
+regedor...
+
+--É mentira! exclamou o Brito fazendo-se todo escarlate.
+
+--Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, reprehendendo-o com bondade.
+
+--É mentira! berrou elle.
+
+--E aqui para nós, meus ricos, disse o conego Dias baixando a voz, com o
+olhinho acceso n'uma malicia confidencial, sempre lhes digo que é uma
+mulher de mão cheia!
+
+--É mentira! clamou o Brito. E fallando de um jacto:--Quem anda a
+espalhar isso é o morgado da Cumiada, porque o regedor não votou com
+elle na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe os
+ossos!--Tinha os olhos injectados, brandia o punho:--Quebro-lhe os
+ossos!
+
+--O caso não é para tanto, homem, considerou Natario.
+
+--Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!
+
+--Ai, socega, leãosinho! disse o Libaninho com ternura. Não te percas,
+filhinho!
+
+Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada, que era então
+opposição e que levava duzentos votos á urna, os padres fallaram de
+eleições e dos seus episodios. Todos alli, a não ser o padre Amaro,
+sabiam, como disse Natario, «cozinhar um deputadosinho». Vieram
+anecdotas; cada um celebrou as suas façanhas.
+
+O padre Natario na ultima eleição tinha arranjado oitenta votos!
+
+--Caspitè! disseram.
+
+--Imaginam vossês como? Com um milagre!
+
+--Com um milagre!? repetiram espantados.
+
+--Sim, senhores.
+
+Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera da eleição
+receberam-se na freguezia cartas vindas do céo e assignadas pela Virgem
+Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do inferno, voto
+para o candidato do governo. De chupeta, hein?
+
+--De mão cheia! disseram todos.
+
+Só Amaro parecia surprehendido.
+
+--Homem! disse o abbade com ingenuidade, d'isso é que eu cá precisava.
+Eu então tenho de andar ahi a estafar-me de porta em porta.--E sorrindo
+bondosamente:--Com o que se faz ainda alguma coisita é com o relaxe da
+congrua!
+
+--E com a confissão, disse o padre Natario. A coisa então vai pelas
+mulheres, mas vai segura! Da confissão tira-se grande partido.
+
+O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:
+
+--Mas emfim a confissão é um acto muito sério, e servir assim para
+eleições...
+
+O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos
+excitados, soltou uma palavra imprudente:
+
+--Pois o senhor toma a confissão a sério?
+
+Houve uma grande surpreza.
+
+--Se tomo a confissão a serio!? gritou o padre Amaro recuando a cadeira,
+com os olhos arregalados.
+
+--Ora essa! exclamaram. Oh, Natario! Oh, menino!
+
+O padre Natario exaltado queria explicar, attenuar:
+
+--Escutem, creaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja
+uma brincadeira! Irra! Eu não sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer é
+que é um meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o
+rebanho para aqui ou para alli... E quando é para o serviço de Deus, é
+uma arma. Ahi está o que é--a absolvição é uma arma!
+
+--Uma arma! exclamaram.
+
+O abbade protestava, dizendo:
+
+-Oh, Natario! oh, filho! isso não!
+
+O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, «tinha já um tal terror que até
+lhe tremiam as pernas»!
+
+Natario irritou-se:
+
+--Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo facto
+de ser padre, porque o bispo lhe impoz tres vezes as mãos e porque lhe
+disse o _accipe_, tem missão directa de Deus,--é Deus mesmo para
+absolver?!
+
+--Decerto! exclamaram, decerto!
+
+E o conego Dias disse, meneando uma garfada de vagens:
+
+--_Quorum remiseris peccata, remittuntur eis._ É a fórmula. A fórmula é
+tudo, menino...
+
+--A confissão é a essencia mesma do sacerdocio, soltou o padre Amaro com
+gestos escolares, fulminando Natario. Leia Santo Ignacio! leia S.
+Thomaz!
+
+--Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando
+Amaro.--Anda-me com elle, amigo parocho! Salta-me no cachaço do impio!
+
+--Oh, senhores! berrou Natario furioso com a contradicção, o que eu
+quero é que me respondam a isto. E voltando-se para Amaro:--O senhor,
+por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão torrado, tomou o
+seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no
+confessionario, ás vezes preoccupado com negocios de familia ou com
+faltas de dinheiro, ou com dôres de cabeça ou com dôres de barriga,
+imagina o senhor que está alli como um Deus para absolver?
+
+O argumento surprehendeu.
+
+O conego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma
+solemnidade comica exclamou:
+
+--_Hereticus est!_ É hereje!
+
+--_Hereticus est!_ tambem eu digo, rosnou o padre Amaro.
+
+Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz dôce.
+
+--Não fallemos n'essas coisas, não fallemos n'essas coisas, disse logo
+prudentemente o abbade. Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a
+garrafinha do Porto!
+
+Natario, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:
+
+--Absolver é exercer a graça. A graça só é attributo de Deus: em nenhum
+auctor encontra que a graça seja transmissivel. Logo...
+
+--Ponho duas objecções... gritou Amaro com o dedo em riste, em attitude
+de polemica.
+
+--Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade afflicto. Deixem a
+sabbatina, que até nem lhes sabe o arrozinho!
+
+Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com
+as precauções classicas:
+
+--Mil oitocentos e quinze! dizia. D'isto não se bebe todos os dias.
+
+Para o saborear, depois de o fazer reluzir á luz na transparencia dos
+copos, repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; começaram as
+_saudes!_ A primeira foi ao abbade, que murmurava:--Muita honra... muita
+honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.
+
+--A sua santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o calix. Ao
+martyr!
+
+Todos beberam commovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hymno de
+Pio IX: o abbade, prudente, fêl-o calar por causa do hortelão que no
+quintal aparava o buxo.
+
+A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario tornára-se terno,
+fallava das suas sobrinhas, «as suas duas rosas», e citava Virgilio,
+molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para traz na
+cadeira, as mãos nos bolsos, olhava machinalmente as arvores do jardim,
+pensando vagamente em Amelia, nas suas fórmas: suspirou mesmo com um
+desejo d'ella--emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer os
+republicanos a _marmeleiro_.
+
+--Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou enthusiasmado o Libaninho.
+
+Mas Natario começára a discutir com o conego historia ecclesiastica: e,
+muito questionador, voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da
+Graça: affirmava que um assassino, um parricida poderia ser
+canonisado--se se tivesse revelado o estado de Graça! Divagava, com
+phrases d'escóla em que se lhe pegava a lingua. Citou santos que tinham
+sido escandalosos; outros que pela sua profissão deviam ter conhecido,
+praticado, amado o vicio. Exclamou com as mãos na cinta:
+
+--Santo Ignacio foi militar!
+
+--Militar!? gritou o Libaninho.--E erguendo-se correndo a Natario,
+lançando-lhe um braço ao pescoço com uma ternura pueril e
+avinhada:--Militar!? E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo
+Ignacio?
+
+Natario repelliu-o:
+
+--Deixa-me, homem! Era sargento de caçadores.
+
+Houve uma enorme risada.
+
+O Libaninho ficára extatico.
+
+--Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos n'um impeto beato. Meu
+rico Santo Ignacio! Bemdito e louvado seja elle por toda a eternidade!
+
+E então o abbade propôz que fossem tomar café para debaixo da parreira.
+
+Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando
+formidavelmente, com risadas espessas; só Amaro tinha a cabeça lucida,
+as pernas firmes--e sentia-se muito terno.
+
+--Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo o ultimo gole de café, o
+que está a calhar é um passeio à fazenda.
+
+--Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se com difficuldade. Vamos lá á
+fazenda do abbade!
+
+Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia
+estava muito azul, d'um sol tepido. A vereda seguia entre vallados
+erriçados de silvas; para além as terras lisas estendiam-se cobertas de
+rastolho; a espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua
+folhagem fina; para o horisonte arredondavam-se collinas cobertas da
+rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio; só ás vezes,
+ao longe, n'um caminho, um carro chiava. E n'aquella serenidade da
+paizagem e da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando um
+pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando e achando a vida
+boa.
+
+O conego Dias e o abbade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de
+Amaro, jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumiada.
+
+--Prudencia, collega Brito, prudencia, dizia Amaro chupando o cigarro.
+
+E o Brito, com passadas de carretão, rosnava:
+
+--Hei de comer-lhe os figados!
+
+O Libaninho atraz, só, cantarolava em falsete:
+
+
+--Passarinho trigueiro,
+Salta cá fóra...
+
+
+Adiante de todos ia o padre Natario: levava a capa no braço, arrastando
+pelo chão; a batina desabotoada por traz deixava vêr o forro immundo do
+collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias pretas de lã cheias
+de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.
+
+E no emtanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:
+
+--Eu só me contentava em agarrar n'um cajado e correr tudo! tudo!--E
+gesticulava com um gesto immenso que abrangia o mundo.
+
+
+--Tem as azas quebradas,
+Não póde agora...
+
+
+gania atraz o Libaninho.
+
+Mas pararam de repente: Natario adiante gritava com uma voz furiosa:
+
+--Seu burro, vossê não vê? Sua bêsta!
+
+Era á volta do atalho. Tropeçára com um velho que conduzia uma ovelha;
+ia cahindo; e ameaçava-o com o punho fechado n'uma raiva avinhada.
+
+--Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.
+
+--Sua bêsta! berrava Natario com os olhos chammejantes. Que o racho!
+
+O homem balbuciava, tinha tirado o chapéo; viam-se os seus cabellos
+brancos; parecia ser um antigo criado de lavoura envelhecido no
+trabalho; era talvez avô--e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se
+com as sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os
+senhores padres joviaes e excitados da vinhaça!
+
+
+Amaro não os quiz acompanhar até á fazenda. Ao fim da aldeia, no
+cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.
+
+--Olhe que é uma legoa á cidade, dizia o abbade. Eu mando-lhe apparelhar
+a egoa, collega.
+
+--Qual historia, abbade, a perninha é rija!--E, traçando alegremente a
+capa, partiu cantarolando o _Adeus_.
+
+Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido d'um muro
+de quinta coberto de musgos e erriçado no alto de luzidios fundos de
+garrafas. Quando Amaro chegou proximo ao portão de carros, baixo e
+pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande
+vacca malhada; Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vacca
+trotou balouçando a papeira--e Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao portão,
+que saudava, dizendo toda risonha:
+
+--Então está-me a espantar o gado, senhor parocho?
+
+--É a menina! Que milagre é este?
+
+Ella fez-se um pouco vermelha:
+
+--Vim á quinta com a D. Maria da Assumpção. Vim dar uma vista d'olhos á
+fazenda.
+
+Ao pé de Amelia uma rapariga acamava couves n'uma canastra.
+
+--Então esta é que é a quinta da D. Maria?
+
+E Amaro deu um passo para dentro do portão.
+
+Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra dôce, estendia-se
+até á casa que se entrevia no fundo, branquejando ao sol.
+
+--É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se tambem por aqui.
+Vá, Joanna, avia-te!
+
+A rapariga pôz a canastra á cabeça, deu as boas tardes, metteu pelo
+caminho de Sobros, batendo muito os quadris.
+
+--Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade... considerava o
+parocho.
+
+--Venha vêr a nossa fazenda! disse Amelia. É uma migalhinha de terra,
+mas para fazer uma idéa. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá
+baixo com a D. Maria, quer?
+
+--Valeu. Vamos lá á D. Maria, disse Amaro.
+
+Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de
+folhas sêccas, e, entre os troncos espaçados, moitas de hortensias
+pendiam abatidas, amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa,
+velha, de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes
+aboboras amadureciam ao sol, e no telhado, todo negro do inverno,
+esvoaçavam pombos. Por traz o laranjal formava uma massa de folhagens
+verde-escuras; uma nora chiava monotonamente.
+
+Um rapazito passou com um balde de lavagem.
+
+--Para onde foi a senhora, João? perguntou Amelia.
+
+--Foi p'r'ó olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada.
+
+O olival era longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não
+se podia ir lá sem tamancos.
+
+--Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar lá a D. Maria, hein?
+Vamos nós vêr a quinta... Por aqui, senhor parocho...
+
+Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam clematites. Amelia abriu
+uma porta verde; e por tres degraus de pedra desconjuntados desceram a
+uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de
+todo o anno; do outro lado, por entre os pilares de pedra que
+sustentavam a latada e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz,
+com tons amarellados, um grande campo de herva; os tectos baixos do
+curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e d'esse lado um
+fumosinho leve e branco perdia-se no ar muito azul.
+
+Amelia a cada momento parava, explicava a quinta:--Alli ia semear-se
+cevada; além havia de vêr o cebolinho, estava muito bonito...
+
+--Ah! a D. Maria da Assumpção traz isto muito bem tratado!
+
+Amaro ouvia-a fallar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado; a sua voz
+n'aquelle silencio dos campos parecia-lhe mais rica, mais dôce; o grande
+ar dava-lhe uma côr mais picante ás faces; o seu olhar rebrilhava. Para
+saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que
+elle entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.
+
+Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido d'um regueiro.
+Amelia riu muito do parocho, que tinha medo de sapos. Elle então
+exagerou os seus sustos. Ó menina Amelia, haveria viboras? E roçava-se
+por ella, afastando-se das hervas altas.
+
+--Vê aquelle vallado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra-se
+pela cancella, vê? Mas veja lá se está cansado! Que o senhor parece-me
+que não é grande caminhador... Ai, um sapo!
+
+Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro. Ella empurrou-o dôcemente, e
+com um riso calido:
+
+--Seu medroso! seu medroso!
+
+Estava toda contente, toda viva. Fallava na _sua fazenda_ com uma
+vaidadesinha satisfeita de entender da lavoura, de ser proprietaria.
+
+--A cancella está fechada, parece, disse Amaro.
+
+--Está? fez ella.--Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava
+fechada! Que pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as
+duas fortes hombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.
+
+--Foi o caseiro que levou a chave!
+
+Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a
+voz:--Antonio! Antonio!
+
+Ninguem respondeu.
+
+--Anda lá para o fundo da quinta! disse ella. Que sécca! Se o senhor
+parocho quizesse, aqui adiante póde-se passar. Ha uma abertura no
+vallado, chamam-lhe o _salto da cabra_. Póde a gente saltar para o outro
+lado.
+
+E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:
+
+--Quando eu era pequena nunca passava pela cancella, saltava sempre por
+alli. E cada trambolhão quando o chão estava resvaladiço com a chuva!
+Era um vivo demonio, aqui onde me vê! Ninguém ha de dizer, senhor
+parocho, hein? Ai! vou-me a fazer velha!--E voltando-se para elle, com
+um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:--Não é verdade? Estou-me a
+fazer velha, hein?
+
+Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois
+do vinho do abbade, amollecia-o: e a figura d'ella, os seus hombros, os
+seus encontros davam-lhe um desejo continuo e intenso.
+
+--Aqui está o _salto da cabra_, disse Amelia parando.
+
+Era uma abertura estreita no vallado: a terra do outro lado, mais baixa,
+estava toda lamacenta. Via-se d'alli a fazenda da S. Joanneira: o campo
+plano estendia-se até um olival, com a herva fina muito estrellada de
+pequenos malmequeres brancos; uma vacca preta, de grandes malhas,
+pastava; e para além viam-se tectos aguçados de casaes onde voavam
+revoadas de pardaes.
+
+--E agora? perguntou Amaro.
+
+--Agora saltar, disse ella rindo.
+
+--Cá vai! exclamou elle.
+
+Traçou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas humidas--e
+immediatamente Amelia, debruçando-se, rindo muito, com grandes acenos de
+mãos:
+
+--E agora adeus, senhor parocho, que eu vou ter com a D. Maria. Ahi fica
+preso na fazenda. Para cima não póde o senhor pular, pela cancella não
+póde o senhor passar! É o senhor parocho que está preso...
+
+--Ó menina Amelia! ó menina Amelia!
+
+Ella cantarolava-lhe, escarnecendo:
+
+
+Fico sósinha á varanda
+Que o meu bem está na prisão!
+
+
+Aquellas maneirinhas excitavam o padre--e com os braços erguidos, a voz
+calida:
+
+--Salte, salte!
+
+Ella então fez voz de mimo:
+
+--Ai, tenho medinho! tenho medinho...
+
+--Salte, menina!
+
+--Lá vai! gritou ella bruscamente.
+
+Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou,
+firmou-se--e, sentindo entre os braços o corpo d'ella, apertou-a
+brutalmente e beijou-a com furor no pescoço.
+
+Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada, com a face em
+braza, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos tremulas, as
+pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe:
+
+--Ameliasinha!
+
+Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do vallado.
+Amaro, com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou á
+cancella, Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com a chave.
+
+Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a
+parreira. Amelia adiante palrava com o caseiro; e atraz Amaro, de cabeça
+baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amelia parou, fazendo-se
+vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:
+
+--Ó Antonio, disse, ensine o portão ao senhor parocho. Muito boas
+tardes, senhor parocho.
+
+E através das terras humidas correu para o fundo da quinta, para os
+lados do olival.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção ainda lá estava, sentada n'uma pedra,
+tagarellando com o tio Patricio; um bando de mulheres, com grandes
+varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.
+
+--Que é isso, tonta? D'onde vens tu a correr, rapariga? Credo, que
+doida!
+
+--Vim a correr, disse **ella** toda vermelha, suffocada.
+
+Sentou-se ao pé da velha; e ficou immovel, com as mãos cahídas no
+regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos, os olhos fixos
+n'uma abstracção. Todo o seu sêr se abysmava n'uma só sensação:
+
+--Gosta de mim! Gosta de mim!
+
+
+Estava ha muito namorada do padre Amaro--e ás vezes, só, no seu quarto,
+desesperava-se por imaginar que elle não percebia nos seus olhos a
+confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela
+manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu
+sêr sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade de passaro.
+Depois via-o um pouco triste. Porquê? Não conhecia o seu passado; e,
+lembrada do frade d'Evora, pensou que elle se fizera padre por um
+desgosto d'amor. Idealisou-o então: suppunha-lhe uma natureza muito
+terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa e pallida se desprendia uma
+fascinação. Desejou tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada
+aos pés d'elle, no confessionario, vendo de perto os seus olhos negros,
+sentindo a sua voz suave fallar do paraiso! Gostava muito da frescura da
+sua boca; fazia-se pallida à idéa de o poder abraçar na sua longa batina
+preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto d'elle, beijava a
+travesseirinha, guardava os cabellos curtos que tinham ficado nos dentes
+do pente. As faces abrazavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.
+
+Se Amaro jantava fóra com o conego Dias estava todo o dia impertinente,
+ralhava com a _Ruça_, ás vezes mesmo dizia mal d'elle, «que era
+casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito». Quando elle
+fallava d'alguma nova confessada, amuava, com um ciume pueril. A sua
+antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia um vago
+amor physico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos
+demorados, o altar, o orgão, o missal, os santos, o céo, porque não os
+distinguia bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias da sua pessoa. Lia o
+seu livro de missa pensando n'elle como no seu Deus particular. E Amaro
+não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ella em cima o
+escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas passadas d'elle,
+abraçando o travesseiro, toda desfallecida de desejos, dando beijos no
+ar, onde se lhe representavam os labios do parocho!
+
+
+A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram para a cidade. Amelia
+adiante, calada, chibatava a sua burrinha, emquanto D. Maria da
+Assumpção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata.
+Ao passar junto á Sé tocou a Ave-Marias. E Amelia, rezando, não podia
+destacar os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas,
+decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em
+que o vira, ao repicar dos sinos, dar a benção dos degraus do altar-mór;
+e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a
+senhora baroneza de Via-Clara e a mulher do governador civil, tão
+orgulhosa, com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob os seus dedos
+erguidos, e achavam decerto tambem bonitos os seus olhos negros! E era
+elle que a tinha apertado nos braços, ao pé do vallado! Sentia ainda no
+pescoço a pressão calida dos seus beiços: uma paixão flammejou como uma
+chamma por todo o seu sêr: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos
+contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma n'uma
+devoção:
+
+--Ó Nossa Senhora das Dôres, minha madrinha, faze que elle goste de mim!
+
+No adro lageado conegos passeavam, conversando. A botica defronte já
+tinha luz, os bocaes reluziam; e por detraz da balança a figura do
+pharmaceutico Carlos, com o seu boné bordado a missanga, movia-se
+magestosamente.
+
+
+
+
+VIII
+
+
+O padre Amaro voltára para casa aterrado.
+
+--E agora? E agora? dizia elle encostado ao canto da janella, sentindo o
+coração encolhido.
+
+Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira! Não podia continuar
+alli, na mesma familiaridade, depois de ter tido «aquelle atrevimento
+com a pequena».
+
+Que ella não ficára muito indignada--apenas atordoada; contivera-a
+talvez o respeito ecclesiastico, a delicadeza para com o hospede, a
+attenção para com o amigo do conego. Mas podia contar á mãi, ao
+escrevente... Que escandalo! E via já o senhor chantre, traçando a perna
+e fitando-o,--que era a sua attitude de reprehensão--dizer-lhe com
+pompa:--«São esses desregramentos que deshonram o sacerdocio. Não se
+comportaria d'outro modo um Satyro no monte Olympo!»--Poderiam
+desterral-o outra vez para alguma freguezia da serra!... Que diria a
+senhora condessa de Ribamar?
+
+E depois, se persistisse em vêl-a na intimidade, ter constantemente
+presentes aquelles olhos negros, o sorriso calido que lhe fazia uma
+covinha no queixo, a curva d'aquelle peito--a sua paixão, crescendo
+surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, tornal-o-hia
+doido, «podia fazer alguma asneira»!
+
+Decidiu-se então a ir fallar ao conego Dias: a sua natureza fraca
+necessitava sempre receber forças d'uma razão, d'uma experiencia alheia:
+costumava consultar ordinariamente o conego que, pelo habito da
+disciplina ecclesiastica, elle julgava mais intelligente por ser seu
+superior na hierarchia; e não perdera, desde o seminario, a sua
+dependencia de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa e uma
+criada para ir viver só, necessitava o auxilio do conego, que conhecia
+Leiria como se a tivesse edificado.
+
+Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de azeite esmorecia com um
+murrão avermelhado. Os tições da brazeira, cobertos d'uma pulverisação
+de cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado n'uma cadeira de
+braços, com o capote pelos hombros, os pés embrulhados n'um cobertor,
+amodorrado no calor do lume, com o Breviario sobre os joelhos,
+dormitava. Na dobra do cobertor, a _Trigueira_ estirada dormitava como
+elle.
+
+Aos passos de Amaro o conego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
+
+--Ia adormecendo, hein!
+
+--É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que
+preguiça é essa?
+
+--Ah! é vossê? disse o conego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de
+casa do abbade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é
+feito?
+
+--Vim por aqui.
+
+--Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella estava de mão cheia!
+Eu carreguei-me um bocado, disse o conego rufando com os dedos na capa
+do Breviario.
+
+Amaro, sentado ao pé d'elle, remexia devagar o brazido:
+
+--Sabe vossê, padre-mestre? disse elle de repente. Ia
+acrescentar:--Aconteceu-me um caso!--Mas reteve-se, murmurou:--Estou
+hoje exquisito; tenho andado ultimamente fóra dos eixos...
+
+-Vossê com effeito anda amarello, disse o conego, considerando-o.
+Purgue-se, homem!
+
+Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
+
+--Sabe? estou com idéa de mudar de casa.
+
+O conego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos somnolentos:
+
+--Mudar de casa! Ora essa! Porquê?
+
+O padre Amaro chegou a cadeira para elle, e fallando baixo:
+
+--Vossê percebe... Tenho estado a pensar, é assim exquisito estar em
+casa de duas mulheres, com uma rapariga...
+
+--Ora, historias! Que me vem vossê contar? Vossê é hospede... Deixe-se
+d'isso, homem! É como quem está na hospedaria.
+
+--Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...
+
+E suspirou; desejava que o conego o interrogasse, facilitasse as
+confidencias.
+
+--Então só hoje é que pensa n'isso, Amaro?!
+
+--É verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto. Tenho minhas razões.--Ia
+a dizer:--Fiz uma tolice,--mas acanhou-se.
+
+O conego olhou para elle um momento:
+
+--Homem, seja franco!
+
+--Sou.
+
+--Vossê acha aquillo caro?
+
+--Não! disse o outro com uma negação impaciente.
+
+--Bem, então é outra coisa...
+
+--É. Vossê que quer?--E n'um tom magano, com que julgou agradar ao
+conego:--A gente tambem gosta do que é bom...
+
+--Bem, bem, disse o conego rindo, percebo. Vossê, como eu sou amigo da
+casa, quer-me dizer por bons modos que tem nojo de tudo aquillo!
+
+--Tolice! disse Amaro erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.
+
+--Oh, homem! exclamou o conego abrindo os braços. Vossê quer sahir da
+casa? Por alguma é! Ora a mim parece-me que melhor...
+
+--É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela
+sala. Mas estou com esta ferrada! Veja vossê se me arranja uma casita
+barata com alguma mobilia... Vossê entende melhor d'essas coisas...
+
+O conego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o
+queixo.
+
+--Uma casita barata... rosnou por fim. Eu verei, eu verei... Talvez.
+
+--Vossê comprehende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao conego. A
+casa da S. Joanneira...
+
+Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e depois de conversarem
+sobre o jantar do abbade, o catarrho da pobre D. Maria da Assumpção, a
+doença de figado que ia minando o engraçado conego Sanches--Amaro sahiu,
+quasi contente agora de se não «ter desabotoado com o padre-mestre».
+
+O conego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquella resolução d'Amaro
+de deixar a casa da S. Joanneira era bem vinda; quando elle o trouxera
+d'hospede para a rua da Misericordia, combinára com a S. Joanneira
+diminuir-lhe a mezada que havia annos lhe dava, regularmente, no dia 30.
+Mas arrependeu-se logo; a S. Joanneira, se não tinha hospede, dormia só
+no primeiro andar: o conego podia então saborear livremente os carinhos
+da sua velhota,--e Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este
+«conchêgosinho». Quando veio o padre Amaro, a S. Joanneira cedeu-lhe o
+quarto e dormia n'uma cama de ferro ao pé da filha: e o conego então
+reconheceu, como elle disse, desconsolado--«que aquelle arranjo tinha
+estragado tudo». Para gozar as doçuras da sésta com a sua S. Joanneira
+era necessario que Amelia jantasse fóra, que a _Ruça_ estivesse na
+fonte, outras combinações importunas; e elle, conego do cabido, na
+egoista velhice, quando precisava ter recato com a sua saude, via-se
+obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e
+hygienicos as difficuldades d'um collegial que ama a senhora professora.
+Ora se Amaro sahisse, a S. Joanneira descia ao seu quarto, no primeiro
+andar; vinham as antigas commodidades, as tranquillas séstas. É verdade
+que tinha de dar a antiga mezada... Daria a mezada!
+
+--Que diabo! ao menos está um homem á sua vontade, resumiu elle.
+
+--Que está para ahi o mano a fallar só? perguntou a snr.^a D. Josepha
+despertando do quebranto em que ia cahindo, ao pé do lume.
+
+--Estava cá a malucar como hei de castigar a carne na quaresma...--disse
+o conego com um riso grosso.
+
+
+A essa hora a _Ruça_ chamava o padre Amaro para o chá: e elle subia
+devagar, com o coração pequenino, receando encontrar a S. Joanneira
+muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amelia--que
+tendo-lhe sentido os passos na escada tomára rapidamente a costura e,
+com a cabeça muito baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço
+que abainhava para o conego.
+
+--Muito boa noite, menina Amelia.
+
+--Muito boa noite, senhor parocho.
+
+Amelia costumava sempre ter um _olá!_ ou um _ora viva!_ muito amavel;
+aquella seccura aterrou-o; disse-lhe logo muito perturbado:
+
+--Menina Amelia, eu peço-lhe que me perdôe... Foi um atrevimento... Eu
+nem soube o que fiz... Mas acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui.
+Até já pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...
+
+Fallava com o rosto baixo--e não via Amelia erguer os olhos para elle,
+surprehendida e toda desconsolada.
+
+N'este momento a S. Joanneira entrou, e logo da porta, abrindo os
+braços:
+
+--Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o senhor padre Natario: grande
+jantar! Conte lá, conte lá!
+
+Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do Libaninho, a discussão
+theologica; depois fallaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter
+atrevido a dizer á S. Joanneira que ia deixar a casa,--o que era,
+coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dia!
+
+Na manhã seguinte o conego foi a casa d'Amaro, pela manhã, antes d'ir ao
+côro. O parocho fazia a barba á janella:
+
+--Ólá, padre-mestre! Que ha de novo?
+
+--Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Ha
+uma casita lá para os meus lados, que é um achado. Era do major Nunes,
+que vai mudado para o 5.
+
+Aquella precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando
+desconsoladamente o fio á navalha:
+
+--Tem mobilia?
+
+--Tem mobilia, tem louças, tem roupas, tem tudo.
+
+--Então...
+
+--Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, vossê tem
+razão. Estive a pensar no caso... É melhor para vossê viver só. De modo
+que vista-se, e vamos vêr a casita.
+
+Amaro, calado, rapava a cara com desespero.
+
+A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito velha, com a madeira
+carunchosa: a mobilia, como disse o conego, «podia passar a veteranos»;
+algumas lithographias desbotadas pendiam lugubremente de grandes prégos
+negros; e o immundo major Nunes deixára os vidros quebrados, os soalhos
+todos escarrados, as paredes riscadas de phosphoros, e até sobre um
+poial da janella duas piugas quasi negras.
+
+Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manhã o conego ajustou-lhe uma
+criada, a snr.^a Maria Vicencia, pessoa muito devota, alta e magra como
+um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o
+conego Dias) era a propria irmã da famosa Dionysia!
+
+A Dionysia fôra outr'ora a _Dama das Camelias_, a Ninon de Lenclos, a
+Manon de Leiria: gozára a honra de ser concubina de dois governadores
+civis e do terrivel morgado da Sertejeira; e as paixões phreneticas que
+inspirára tinham sido para quasi todas as mães de familia de Leiria
+causa de lagrimas e de fanicos. Agora engommava para fóra,
+encarregava-se de empenhar objectos, entendia muito de partos, protegia
+«o rico adulteriosinho» segundo a singular expressão do velho D. Luiz da
+Barrosa cognominado o _infame_, fornecia lavradeirinhas aos senhores
+empregados publicos, sabia toda a historia amorosa do districto. E
+via-se sempre na rua a Dionysia com o seu chale de xadrez traçado, o
+pesado seio tremendo dentro d'um chambre sujo, o passinho discreto e os
+antigos sorrisos--mas a que faltavam já os dois dentes de diante.
+
+O conego logo n'essa tarde deu parte á S. Joanneira da resolução
+d'Amaro. Foi um grande espanto para a excellente senhora! Queixou-se,
+com amargura, da ingratidão do senhor parocho.
+
+O conego tossiu grosso e disse:
+
+--Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo porquê: é
+que este arranjo de quarto em cima, etc., está-me a arrazar a saude.
+
+Deu outras razões de prudencia hygienica e acrescentou, passando-lhe com
+bondade os dedos pelo pescoço:
+
+--E o que é perder a conveniencia, não se afflija a senhora! Eu darei
+p'r'á panella como d'antes; e como a colheita foi boa porei mais meia
+moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca,
+Augustinha, sua bréjeira! E ouça, hoje como-lhe cá as sopas.
+
+Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua roupa. Mas a cada momento
+parava, dava um _ai_ triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama
+fôfa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita
+onde elle lia o Breviario, ouvindo, por cima, cantarolar Amelia.
+
+--Nunca mais! pensava. Nunca mais!
+
+Adeus as boas manhãs passadas ao pé d'ella, vendo-a costurar! Adeus as
+alegres sobremesas, que se prolongavam á luz do candieiro! Adeus os
+chás, ao pé da brazeira, quando o vento uivava fóra e cantavam as frias
+goteiras! Tudo tinha acabado!
+
+A S. Joanneira e o conego appareceram então á porta do quarto. O conego
+resplandecia; e a S. Joanneira disse, muito magoada:
+
+--Já sei, já sei, seu ingrato!
+
+--É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os hombros tristemente.
+Mas ha razões... Eu sinto...
+
+--Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira, não se offenda com o que
+lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho...--E levou o lenço aos
+olhos.
+
+--Tolices! exclamou o conego. Pois então elle não póde vir aqui em
+amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?... O homem
+não vai para o Brazil, senhora!
+
+--Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era
+tel-o de portas a dentro!
+
+Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor...
+Fez-lhe então grandes recommendações sobre a lavadeira, que mandasse
+buscar o que quizesse, louças, lençoes...
+
+--E veja lá não lhe esqueça alguma coisa, senhor parocho!
+
+--Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado...
+
+E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho desesperava-se agora
+contra a resolução que tomára. A pequena evidentemente não tinha aberto
+bico! Para que sahiria então d'aquella casa tão barata, tão confortavel,
+tão amiga? E odiava o conego pelo seu zelo tão precipitado.
+
+O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar a sua pallidez,
+queixava-se de dôres na cabeça. Ao café o conego quiz a sua «dóse de
+musica»; e Amelia, ou machinalmente ou com intenção, disse a canção
+querida:
+
+
+Ai! adeos! acabaram-se os dias
+Que ditoso vivi a teu lado!
+Sôa a hora, o momento fadado,
+É forçoso deixar-te e partir!
+
+
+Então, áquella chorosa melodia repassada das tristezas da separação,
+Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir
+encostar o rosto á vidraça, esconder as duas lagrimas que
+irreprimivelmente lhe saltavam das palpebras. Os dedos d'Amelia
+embrulhavam-se tambem no teclado; até a mesma S. Joanneira disse:
+
+--Oh filha, toca outra coisa, credo!
+
+Mas o conego erguendo-se pesadamente:
+
+--Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou comsigo até a
+rua das Sousas...
+
+Amaro então quiz dizer adeus á idiota; mas, depois d'um forte accesso de
+tosse, a velha dormia, muito fraca.
+
+--Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando a mão á S.
+Joanneira:--Muito obrigado por tudo, minha senhora, acredite...
+
+Calou-se, com um soluço na garganta.
+
+A S. Joanneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.
+
+--Oh, senhora! disse o conego rindo-se, já ha bocado lhe disse, o homem
+não vai p'r'ás Indias!
+
+--A gente é pela amizade que lhes ganha... choramingou a S. Joanneira.
+
+Amaro tentou gracejar. Amelia, muito branca, mordia o beicinho.
+
+Emfim Amaro desceu: e o João Ruço que na sua chegada a Leiria lhe
+trouxera o bahú para a rua da Misericordia, muito bebedo, cantarolando o
+_Bemdito_,--levava-lh'o agora para a rua das Sousas, bebedo tambem, mas
+trauteando o _Rei-chegou_.
+
+
+Quando Amaro, n'essa noite, se viu só n'aquella casa tristonha, sentiu
+uma melancolia tão pungente e um tedio tão negro da vida, que, com a sua
+natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar alli a
+morrer!
+
+Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de
+ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho
+com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatorio, a bacia e
+o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janella;
+tudo alli cheirava a môfo; e fóra, na rua negra, cahia sem cessar a
+chuva triste. Que existencia! E seria sempre assim!...
+
+Desesperou-se então contra Amelia: accusou-a, com o punho fechado, das
+commodidades que perdera, da falta de mobilia, da despeza que ia ter, da
+solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo ao
+seu quarto e dizer-lhe: «Senhor padre Amaro, para que sae de casa? Eu
+não estou zangada!» Porque emfim quem irritára o seu desejo? Ella, com
+as suas maneirinhas ternas, os seus olhinhos adocicados! Mas não,
+deixára-o emmalar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo
+tocar com estrondo a valsa do _Beijo_!
+
+Jurou então não voltar a casa da S. Joanneira. E, a grandes passadas
+pelo quarto, pensara no que havia de fazer para humilhar Amelia. O quê?
+Desprezal-a como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade devota de
+Leiria, ser muito do senhor chantre; afastar da rua da Misericordia o
+conego e as Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se
+afastassem d'ella, com seccura, no altar-mór, á missa do domingo; dar a
+entender que a mãi era uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E
+na Sé, ao sahir da missa, regalar-se de a vêr passar encolhida no seu
+mantelete preto, escorraçada de todos, emquanto elle, á porta, de
+proposito, conversaria com a mulher do senhor governador civil e seria
+galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois prégaria um grande
+sermão, na quaresma, e ella ouviria dizer, na arcada, nas lojas: «Grande
+homem, o padre Amaro!» Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria e, protegido
+pela senhora condessa de Ribamar, subiria nas dignidades ecclesiasticas:
+e o que pensaria ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido e
+interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos
+incensadores, ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado e
+penitente, sob os roucos cantos do orgão? E ella o que seria então? Uma
+magra creatura murcha, embrulhada n'um chale barato! E o snr. João
+Eduardo, o escolhido d'agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal
+pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado
+sobre o seu papel almasso, imperceptivel na terra, adulando alto e
+invejando baixo! E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que sobe
+até ao céo, estaria já muito para cima dos homens, na zona de luz que
+faz a face de Deus-Padre!--E seria par do reino, e os padres da sua
+diocese tremeriam de o vêr franzir a testa!
+
+Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.
+
+Que faria ella áquella hora? pensava. Costurava decerto, na sala de
+jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam--ella roçava-lhe
+talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu pé, o
+bocadinho da meia que vira quando ella saltava as lamas na quinta; e
+essa curiosidade inflammada subia pela curva da perna até ao seio,
+percorrendo bellezas que suspeitava... O que elle gostava d'aquella
+maldita! E era impossivel obtel-a! E todo o homem feio e estupido podia
+ir á rua da Misericordia pedil-a á mãi, vir á Sé dizer-lhe: «Senhor
+parocho, case-me com esta mulher», e beijar, sob a protecção da Igreja e
+do Estado, aquelles braços e aquelle peito! Elle não. Era padre! Fôra
+aquella infernal pêga da marqueza d'Alegros!...
+
+Abominava então todo o mundo secular--por lhe ter perdido para sempre os
+privilegios: e, como o sacerdocio o excluia da participação nos prazeres
+humanos e sociaes, refugiava-se, em compensação, na idéa da
+superioridade espiritual que elle lhe dava sobre os homens. Aquelle
+miseravel escrevente podia casar e possuir a rapariga--mas que era elle
+em comparação d'um parocho a quem Deus conferira o poder supremo de
+distribuir o céo e o inferno?...--E repastava-se d'este sentimento,
+enchendo o espirito d'orgulhos sacerdotaes. Mas vinha-lhe bem depressa a
+desconsoladora idéa que esse dominio só era valido na região abstracta
+das almas; nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes, em plena
+sociedade. Era um Deus dentro da Sé--mas, apenas sahia para o largo, era
+apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a acção
+sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre almas de beatas... E era
+isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do
+poder ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo,
+a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a auctoridade dos
+tempos em que a Igreja era a nação e o parocho dono temporal do rebanho.
+Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico d'abrir ou fechar as
+portas do céo? O que elle queria era o velho direito d'abrir ou fechar a
+porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amelias
+tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da
+antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denuncia e dos terrores que
+inspira o carrasco, e alli n'aquella villa, sob a jurisdicção da sua Sé,
+fazer estremecer, á idéa de castigos torturantes, aquelles que
+aspirassem a realisar felicidades--que lhe eram a elle interdictas: e
+pensando em João Eduardo e em Amelia, lamentava não poder accender as
+fogueiras da Inquisição!--Assim aquelle inoffensivo moço tinha durante
+horas, sob a excitação colerica d'uma paixão contrariada, ambições
+grandiosas de tyrannia catholica:--porque todo o padre, o mais boçal,
+tem um momento em que é penetrado pelo espirito da Igreja ou nos seus
+lances de renunciamento mystico ou nas suas ambições de dominação
+universal: todo o sub-diacono se julga uma hora capaz de ser santo ou de
+ser Papa: não ha seminarista que não tenha, durante um instante,
+aspirado com ternura á caverna no deserto em que S. Jeronymo, olhando o
+céo estrellado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça como um
+abundante rio de leite: e o abbade pansudo que á tardinha, á varanda,
+palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz
+dentro em si os indistinctos restos d'um Torquemada.
+
+
+A vida d'Amaro tornou-se monotona. Março ia muito molhado, muito frio;
+e, depois do serviço na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas
+enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Ás tres horas jantava; e
+nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma
+saudade pungente, do jantarinho na rua da Misericordia, quando Amelia,
+com o seu collar muito branco, lhe passava a sopa de grãos de bico,
+sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicencia servia, têsa e enorme, com
+o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em
+quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruido. Era muito
+suja: as facas tinham o cabo humido da agua gordurosa das lavagens.
+Amaro, desgostoso e indifferente, não se queixava; comia mal, á pressa;
+mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado á mesa, quebrando
+a cinza do cigarro na borda do prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo
+os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala
+desabrigada.
+
+Ás vezes o coadjutor, que nunca o visitára na rua da Misericordia,
+apparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava
+calado, com o seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar
+ao parocho, repetia, invariavelmente:
+
+--Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.
+
+--Está claro... rosnava Amaro.
+
+Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S.
+Joanneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar
+os escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por servilismo, tinha
+sorrisos mudos, repassados de perfidia.
+
+--Alli ha pôdres, hein? dizia o parocho.
+
+O outro encolhia os hombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das
+orelhas, n'uma expressão de malicia; mas não pronunciava um som,
+receando que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o senhor
+conego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, phrases molles: um
+baptisado que havia; o que dissera o conego Campos; um frontal do altar
+que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava Amaro: sentia-se
+muito pouco padre, muito distante da panellinha ecclesiastica: não o
+interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão commentadas
+do senhor chantre, os roubos da Misericordia, as turras da camara
+ecclesiastica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal
+informado, nas palestras ecclesiasticas em que tão femininamente se
+deleitam os padres, e que têm a puerilidade d'uma caturrice e a
+tortuosidade d'uma conspiração.
+
+--O vento está sul? perguntava elle emfim, bocejando.
+
+--Sempre! respondia o coadjutor.
+
+Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guardachuva, e sahia
+com um olhar de revez á Vicencia.
+
+Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava só. Procurava lêr,
+mas os livros enfastiavam-n'o: deshabituado da leitura não comprehendia
+«o sentido». Ia olhar á vidraça: a noite estava tenebrosa, o lagedo
+reluzia vagamente. Quando acabaria aquella vida? Accendia o cigarro, e
+do lavatorio para a janella recomeçava os seus passeios, com as mãos
+atraz das costas. Deitava-se sem rezar ás vezes: e não tinha escrupulos:
+julgava que ter renunciado a Amelia era já uma penitencia, não
+necessitava cansar-se a lêr orações no livro; celebrára o «seu
+sacrificio»--sentia-se vagamente quite com o céo!
+
+E continuava a viver só: o conego nunca vinha á rua das Sousas, «porque,
+dizia, era casa que só o entrar n'ella até se lhe agoniava o estomago».
+E Amaro, cada dia mais amuado, não voltára a casa da S. Joanneira.
+Escandalisára-se muito que ella não lhe tivesse mandado pedir para ir ás
+partidas da sexta-feira; attribuira «a desfeita» á hostilidade d'Amelia;
+e, mesmo para a não vêr, trocára com o padre Silveira a missa do
+meio-dia onde ella costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com
+aquelle novo sacrificio!
+
+
+Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação
+tão forte no coração que ficava como suffocada um momento. Depois os
+botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia os passos
+fôfos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira,
+cerrando os olhos, como na fadiga d'uma desesperança repetida. Esperava
+o padre Amaro; e ás vezes, pelas dez horas, quando já não era possível
+que elle viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe entumecia
+a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:
+
+--Vou-me deitar, estou com umas dôres de cabeça que não paro!
+
+Atirava-se para a cama de bruços, murmurava n'uma agonia:
+
+--Oh Senhora das Dôres, minha madrinha! porque não vem elle, porque não
+vem elle?
+
+Nos primeiros dias, apenas elle se fôra embora, toda a casa lhe pareceu
+deshabitada e lugubre! Quando vira no quarto d'elle os cabides sem a sua
+roupa, a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a
+travesseirinha onde elle dormia, apertou ao peito com delirio a ultima
+toalha a que elle limpára as mãos! Tinha constantemente o seu rosto
+presente, elle entrava sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu
+amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.
+
+Uma tarde, que fôra visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao
+chegar á ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de
+cuia á banda e _garibaldi_ escarlate, que, de punho no ar, já rouca,
+praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e
+lorpa coberta de pennugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os
+hombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:
+
+--Não lhe fez mal, não lhe fez mal...
+
+O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parára a olhar, descontente
+d'aquella «falta d'ordem publica».
+
+--Algum barulho? perguntou-lhe Amelia.
+
+--Olá, menina Amelia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou-lhe um
+rato morto á cara, e a mulher está a fazer aquelle espalhafato. Bebedas!
+
+Mas a rapariga de _garibaldi_ vermelha voltára-se--e Amelia aterrada
+reconheceu a Joanninha Gomes, sua amiga da mestra, que fôra amante do
+padre Abilio! O padre fôra suspenso, deixára-a; ella partira para
+Pombal, depois para o Porto; de miseria em miseria voltára a Leiria, e
+ahi vivia n'alguma viella ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo
+um regimento!--Que exemplo, santo Deus, que exemplo!
+
+E tambem ella gostava d'um padre! Tambem ella, como outr'ora a
+Joanninha, chorava sobre a sua costura quando o senhor padre Amaro não
+vinha! Onde a levava aquella paixão? Á sorte da Joanninha! A ser a
+_amiga do parocho_! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada,
+mais tarde abandonada por elle, com um filho nas entranhas, sem um
+pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa n'um momento um
+céo ennevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha
+varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e morbidas em que ella se ia
+perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro: lembrou-se
+mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo para se refugiar n'um
+dever dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por elle;
+começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...
+
+Mas pouco a pouco a _idéa má_ que, atacada, se encolhera e se fingira
+morta,--principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De
+dia, de noite, costurando e rezando, a idéa do padre Amaro, os seus
+olhos, a sua voz appareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto
+crescente. Que faria elle? porque não vinha? gostava d'outra? Tinha
+ciumes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquella paixão
+ia-a envolvendo como uma atmosphera d'onde não podia sahir, que a seguia
+se ella fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções honestas
+resequiam-se, morriam como debeis florinhas n'aquelle fogo que a
+percorria. Se ás vezes a lembrança de Joanninha ainda voltava,
+repellia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as razões
+insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma
+idéa:--atirar-lhe os braços ao pescoço e beijal-o... oh! beijal-o!
+Depois, se fosse necessario, morrer!
+
+Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o
+«palerma».
+
+--Que massada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, á noite.
+
+Não o supportava com os seus olhos voltados sempre para ella, a sua
+quinzena preta, as suas monotonas conversas sobre o governo civil.
+
+E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lubricos; de
+dia vivia n'uma inquietação de ciumes, com melancolias lugubres, que a
+tornavam, como dizia a mãi, «uma môna, que até enraivece»!
+
+O genio azedava-se-lhe.
+
+--Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãi.
+
+--Não me sinto boa. Estou para ter alguma!
+
+Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite. E emfim uma manhã
+ficou de cama com febre. A mãi, assustada, chamou o doutor Gouvêa. O
+velho pratico, depois de vêr Amelia, veio à sala de jantar sorvendo com
+satisfação a sua pitada.
+
+--Então, senhor doutor? disse a S. Joanneira.
+
+--Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me esta rapariga. Tenho-lh'o
+dito tantas vezes, creatura!
+
+--Mas, senhor doutor...
+
+--Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a por uma vez! repetia elle
+pelas escadas, arrastando um pouco a perna direita que um rheumatismo
+teimoso encolhia.
+
+Amelia emfim melhorou--com grande alegria de João Eduardo, que emquanto
+ella estivera doente vivera n'uma afflicção, lamentando não poder ser
+seu enfermeiro, e derramando ás vezes no cartorio uma lagrima triste
+sobre os papeis sellados do severo Nunes Ferral.
+
+
+No domingo seguinte, á missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para
+o altar, entre as devotas que se arredavam viu de relance Amelia ao pé
+da mãi, com o seu vestido de sêda preta de largos folhos. Cerrou um
+momento os olhos; e mal podia sustentar o calix com as mãos tremulas.
+
+Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o
+missal, se persignou e se voltou para a igreja dizendo _Dominus
+vobiscum_--a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia «que o
+senhor parocho estava tão amarello, que devia ter alguma dôr». Amelia
+não respondeu, curvada sobre o livro, com todo o sangue nas faces. E
+durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada
+n'um extase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a
+hostia, a sua cabeça bem feita curvando-se na adoração ritual; uma
+doçura corria-lhe na pelle quando a voz d'elle, apressada, dizia mais
+alto algum latim: e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a
+direita estendida, disse para a igreja o _Benedicat vos_, ella, com os
+olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se
+elle fosse o proprio Deus a cuja benção as cabeças se curvavam ao
+comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus
+varapaus pasmavam para os dourados do sacrario.
+
+Á sahida da missa começára a chover; e Amelia e a mãi, á porta com
+outras senhoras, esperavam uma «aberta».
+
+--Ólá! por aqui!? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.
+
+--Estamos á espera que passe a chuva, senhor parocho, disse a S.
+Joanneira voltando-se. E immediatamente, muito reprehensiva:--E porque
+não tem apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos nós?
+Credo, até dá que fallar...
+
+--Muito occupado, muito occupado... balbuciou o parocho.
+
+--Mas um bocadinho á noite. Olhe, póde crêr, tem-me causado desgosto...
+E todos têm reparado. Não, lá isso, senhor parocho, tem sido ingratidão!
+
+Amaro disse, córando:
+
+--Pois acabou-se. Hoje á noite lá appareço, e estão as pazes feitas ...
+
+Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para
+todos os pontos o céo carregado, como assustada do temporal.
+
+Amaro então offereceu-lhe o seu guardachuva. E emquanto a S. Joanneira o
+abria, apanhando com cuidado o vestido de sêda, Amelia disse ao parocho:
+
+--Até á noite, sim?--E mais baixo, olhando em redor, com medo:--Oh, vá!
+Tenho estado tão triste! tenho estado como doida! Vá, peço-lh'o eu!
+
+Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr de batina pelas
+ruas. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e alli ficou saturado
+de felicidade, como um pardal muito farto n'um raio de sol muito quente:
+recordava o rosto d'Amelia, a redondeza dos seus hombros, a belleza dos
+encontros, as palavras que lhe dissera:--_Tenho estado como doida!_ A
+certeza de que «a rapariga gostava d'elle» entrou-lhe então na alma com
+a violencia de uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos do
+seu sêr com um murmurio melodioso de felicidades agitadas. E passeava
+pelo quarto com passadas de covado, estendendo os braços, desejando a
+posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte
+do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal
+expresso que só o sustentasse a elle! Mal pôde jantar. Com que
+impaciencia desejava a noite! A tarde clareára; a cada momento tirava o
+seu «cebolão» de prata, indo olhar á janella, com irritação, a claridade
+do dia que se arrastava devagar no horisonte. Engraxou elle mesmo os
+seus sapatos, lustrou o cabello de banha. E antes de sahir rezou
+cuidadosamente o seu Breviario--porque, em presença d'aquelle amor
+adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos
+escandalisados o viessem perturbar: e não queria, com desleixos de
+devoção, _dar-lhes razão de queixa_.
+
+Ao entrar na rua d'Amelia o coração bateu-lhe tão forte que teve de
+parar, suffocado; e pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha
+Misericordia, que ha tantas semanas não ouvia.
+
+Que admiração quando elle appareceu na sala de jantar!
+
+--Ditosos olhos que o vêem! Pensavamos que tinha morrido! Grande
+milagre!...
+
+Estava a snr.^a D. Maria da Assumpção, as Gansosos. Arredaram as
+cadeiras com enthusiasmo para lhe dar logar, admiral-o.
+
+--Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!
+
+O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O snr.
+Arthur Couceiro improvisou-lhe um _fadinho_ á viola:
+
+
+Ora já cá temos o senhor parocho
+Nos chás da S. Joanneira.
+Isto já parece outra coisa,
+Volta a bella cavaqueira!
+
+
+Houve palmas. E a S. Joanneira, toda banhada de riso:
+
+--Ai, tem sido uma ingratidão d'elle!
+
+--Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o conego. Uma casmurrice, digo
+eu!
+
+Amelia não fallava, com as faces abrazadas, os olhos humidos pasmados
+para o padre Amaro--a quem tinham dado a poltrona do conego, e que se
+repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas
+pilherias com que contava os desleixos da Vicencia.
+
+João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho album.
+
+
+
+
+IX
+
+
+Assim recomeçou a intimidade de Amaro na rua da Misericordia. Jantava
+cedo, depois lia o seu Breviario; e apenas na igreja batiam as sete
+horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando
+rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos molles
+apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal avistava a janella da sala de
+jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da
+campainha sentia ás vezes um susto indefinido d'achar a mãi já
+desconfiada ou Amelia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre
+com o pé direito.
+
+Encontrava já as Gansosos, a D. Josepha Dias; e o conego, que jantava
+agora muito com a S. Joanneira, e que áquella hora, estirado na
+poltrona, findava a sua somneca, dizia-lhe bocejando:
+
+--Ora viva o menino bonito!
+
+Amaro ia sentar-se ao pé d'Amelia que costurava á mesa; o olhar
+penetrante que se trocavam era todos os dias como o mutuo juramento mudo
+que o seu amor crescera desde a vespera; e ás vezes mesmo, debaixo da
+mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a «cavaqueira». Eram
+sempre os mesmos interessesinhos, as questões que iam na Misericordia, o
+que dissera o senhor chantre, o conego Campos que despedira a criada, o
+que se rosnava da mulher do Novaes...
+
+--Mais amor do proximo! resmungava o conego mexendo-se na poltrona. E
+com um arrôto curto tornava a cerrar as palpebras.
+
+Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amelia
+immediatamente abria a mesinha para a partida de _manilha_: os parceiros
+eram a Gansoso, D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava mal, Amelia,
+que era _mestra_, sentava-se por detraz d'elle para o «guiar». Logo ás
+primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para
+Amelia, tão perto que confundiam os seus halitos.
+
+--Esta? perguntava, indicando a carta com o olho languido.
+
+--Não! não! espere, deixe vêr, dizia ella, vermelha.
+
+O seu braço roçava o hombro do parocho: Amaro sentia o cheiro da agua de
+colonia que ella usava com exagero.
+
+Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode,
+contemplava-a com paixão; Amelia, para se desembaraçar d'aquelles dois
+olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim «que até era
+indecente, diante do parocho que era de ceremonia, estar assim a cocal-a
+toda a noite».
+
+Ás vezes mesmo dizia-lhe, rindo:
+
+--Ó snr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, senão têmol-a aqui
+têmol-a a dormir.
+
+E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joanneira, que, de lunetas na
+ponta do nariz, fazia somnolentamente a sua meia.
+
+Depois do chá Amelia sentava-se ao piano. Causava então enthusiasmo em
+Leiria uma velha canção mexicana, a _Chiquita_. Amaro achava-a _de
+appetite_; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos, apenas
+Amelia começava com muita languidez tropical:
+
+
+Quando sali de la Habana
+Valga-me Dios!...
+
+
+Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe, quando Amelia, com os dedos
+frouxos no teclado, o busto deitado para traz, rolando os olhos ternos,
+em movimentos dôces de cabeça, dizia toda voluptuosa, syllabando o
+hespanhol:
+
+
+Si á tua ventana llega
+Una paloma,
+Trata-la com cariño,
+Que es mi persona.
+
+
+E como a achava graciosa, creoula, quando ella gorgeava:
+
+
+Ay chiquita que si,
+Ay chiquita que no-o-o-o!
+
+
+Mas as velhas reclamavam-o para continuar a _manilha_, e elle ia
+sentar-se, cantarolando as ultimas notas, com o cigarro ao canto da
+boca, os olhos humidos de felicidade.
+
+Ás sextas-feiras era a grande partida. A snr.^a D. Maria da Assumpção
+apparecia sempre com o seu bello vestido de sêda preta: e como era rica
+e tinha parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor logar ao pé
+da mesa--que ella ia occupar, meneando pretenciosamente os quadris, com
+_ruge-ruges_ de sêda. Antes do chá a S. Joanneira levava-a sempre ao seu
+quarto, onde guardava para ella uma garrafa de geropiga velha: e alli as
+duas amigas tagarellavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas.
+Depois Arthur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tisico, cantava o
+_fado_ novo que compuzera, chamado o _Fado da Confissão_; eram quadras
+feitas para regalar aquella piedosa reunião de saias e de batinas:
+
+
+Na capellinha do amor,
+No fundo da sacristia,
+Ao senhor padre Cupido
+Confessei-me n'outro dia...
+
+
+Vinha depois a confissão de peccadinhos dôces, um acto de contrição de
+amor, uma penitencia terna:
+
+
+Seis beijinhos de manhã,
+De tarde um abraço só...
+E p'ra acalmar dôces chammas
+Jejuar a pão de ló.
+
+
+Aquella composição galante e devota fôra muito apreciada na sociedade
+ecclesiastica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e
+perguntára, referindo-se ao poeta:
+
+--Quem é o habil Anacreonte?
+
+E informado que era o escrevente da administração, fallou d'elle com
+tanto apreço á esposa do senhor governador civil, que Arthur obteve a
+gratificação de oito mil reis, que havia annos implorava.
+
+Áquellas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua ultima pilheria era
+furtar beijos á snr.^a D. Maria da Assumpção; a velha escandalisava-se
+muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez um olhar
+guloso. Depois o Libaninho desapparecia um momento, e entrava com uma
+saia d'Amelia vestida, uma touca da S. Joanneira, fingindo uma chamma
+lubrica por João Eduardo--que, entre as risadas agudas das velhas,
+recuava, muito escarlate. Brito e Natario vinham ás vezes: formava-se
+então um grande _quino_. Amaro e Amelia ficavam sempre juntos; e toda a
+noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente
+entorpecidos no mesmo desejo intenso.
+
+Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira mais apaixonado por Amelia.
+Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe
+dava aquelle amor--uns certos olhares d'ella, o arfar desejoso do seu
+peito, os contactos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se
+depressa, porque gostava de pensar n'ella, ás escuras, atabafado nos
+cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas
+successivas que ella lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e
+outra flôr, até que ficava como embriagado d'orgulho: era a rapariga
+mais bonita da cidade! e escolhera-o a elle, a elle padre, o eterno
+excluido dos sonhos femininos, o sêr melancollico e neutro que ronda
+como um sêr suspeito á beira do sentimento! Á sua paixão misturava-se
+então um reconhecimento por ella; e com as palpebras cerradas murmurava:
+
+--Tão boa, coitadinha, tão boa!
+
+
+Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciencias, Quanto tinha
+estado, durante tres horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a
+voluptuosidade que se exhalava de todos os seus movimentos,--ficava tão
+carregado de desejos que necessitava conter-se «para não fazer um
+disparate alli mesmo na sala, ao pé da mãi». Mas depois, em casa, só,
+torcia os braços de desespero: queria-a alli de repente, offerecendo-se
+ao seu desejo: fazia então combinações--escrever-lhe-hia, arranjariam
+uma casita discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma
+quinta! Mas todos aquelles meios lhe pareciam incompletos e perigosos,
+ao recordar o olho finorio da irmã do conego, as Gansosos tão
+mexeriqueiras! E diante d'aquellas difficuldades que se erguiam como as
+muralhas successivas d'uma cidadella, voltavam as antigas lamentações:
+não ser livre! não poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a á
+mãi, possuil-a sem peccado, commodamente! Porque o tinham feito padre?
+Fôra «a velha pêga» da marqueza de Alegros! Elle não abdicára
+voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido para o
+sacerdocio como um boi para o curral!
+
+Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas accusações mais
+longe, contra o Celibato e a Igreja: porque prohibia ella aos seus
+sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que
+até têm os animaes? Quem imagina que desde que um velho bispo
+diz--_serás casto_--a um homem novo e forte, o seu sangue vai
+subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina--_accedo_--dita a
+tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para
+sempre a rebellião formidavel do corpo? E quem inventou isso? Um
+concilio de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus claustros, da
+paz das suas escólas, mirrados como pergaminhos, inuteis como eunucos!
+Que sabiam elles da Natureza e das suas tentações? Que viessem alli
+duas, tres horas para o pé da Ameliasinha, e veriam, sob a sua capa de
+santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se illude e se
+evita, menos o amor! E se elle é fatal, porque impediram então que o
+padre o sinta, o realise com pureza e com dignidade? É melhor talvez que
+o vá procurar pelas viellas obscenas!--Porque a carne é fraca!
+
+A carne! Punha-se então a pensar nos tres inimigos da alma--Mundo, Diabo
+e Carne. E appareciam á sua imaginação em tres figuras vivas: uma mulher
+muito formosa; uma figura negra d'olho de braza e pé de cabra; e o
+_mundo_, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavallos, palacetes)--de
+que lhe parecia uma personificação sufficiente o senhor conde de
+Ribamar! Mas que mal tinham elles feito á sua alma? O diabo nunca o
+vira; a mulher formosa amava-o e era a unica consolação da sua
+existencia; e do mundo, do senhor conde, só recebera protecção,
+benevolencia, tocantes apertos de mão... E como poderia elle evitar as
+influencias da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos
+d'outr'ora, para os areaes do deserto e para a companhia das feras! Mas
+não lhe diziam os seus mestres no seminario que elle pertencia a uma
+Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção d'um serviço
+santo.--Não comprehendia, não comprehendia!
+
+Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A
+Biblia está cheia de nupcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus
+vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabeça
+coberta de faxas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro
+branco; os levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus;
+abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que
+leva os bem esposados; e as arcas de sandalo onde vão os thesouros do
+dote rangem, amarradas com cordas de purpura, sobre o dorso dos camêlos!
+Os martyres no circo casam-se n'um beijo, sob o bafo dos leões, ás
+acclamações da plebe! Jesus mesmo não vivêra sempre na sua santidade
+inhumana; era frio e abstracto nas ruas de Jerusalem, nos mercados do
+Bairro de David; mas lá tinha o seu logar de ternura e de abandono em
+Bethania, sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli, emquanto os magros
+nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram á parte, elle olha
+defronte os tectos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o
+disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os
+arvoredos de Gethesemani--e pousa a mão sobre os cabellos louros de
+Martha, que ama e fia a seus pés!
+
+O seu amor era pois uma infracção canonica, não um peccado da alma:
+podia desagradar ao senhor chantre, não a Deus: seria legitimo n'um
+sacerdocio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante:
+mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossivel que
+transportar a velha Sé para cima do monte do Castello.
+
+Encolhia então os hombros, escarnecendo toda aquella vaga argumentação
+interior. «Philosophia e palhada»! Estava doido pela rapariga,--era o
+positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma...
+E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o Papa faria o
+mesmo!
+
+Eram ás vezes tres horas da manhã, e ainda passeava no quarto, fallando
+só.
+
+
+Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela rua das Sousas,
+tinha visto na janella do parocho uma luz amortecida! Porque ultimamente
+João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomára o habito
+triste de andar até tarde pelas ruas.
+
+O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebêra a sympathia de
+Amelia pelo parocho. Mas conhecendo a sua educação e os habitos devotos
+da casa, attribuia aquellas attenções quasi humildes com Amaro ao
+respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilegios de
+confessor.
+
+Instinctivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fôra inimigo de
+padres! achava-os um «perigo para a civilisação e para a liberdade»;
+suppunha-os intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando sempre
+para restabelecer «as trevas da meia idade»; odiava a confissão que
+julgava uma arma terrivel contra a paz do lar; e tinha uma religião
+vaga--hostil ao culto, ás rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo
+Jesus poetico, revolucionario, amigo dos pobres, e «pelo sublime
+espirito de Deus que enche todo o Universo»! Só desde que amava Amelia é
+que ouvia missa, para agradar á S. Joanneira.
+
+E desejaria sobretudo apressar o casamento para tirar Amelia d'aquella
+sociedade de beatas e padres, receando ter mais tarde uma mulher que
+tremesse do inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se
+confessasse aos padres «que arrancam ás confessadas os segredos
+d'alcova»!
+
+Quando Amaro voltára a frequentar a rua da Misericordia, ficou
+contrariado. «Cá temos outra vez o marmanjo»! pensou. Mas que desgosto,
+quando reparou que Amelia tratava agora o parocho com uma familiaridade
+mais terna, que a presença d'elle lhe dava visivelmente uma animação
+singular, «e que havia uma especie de namoro»! Como ella se fazia
+vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com uma admiração babosa!
+Como arranjava sempre a ficar ao pé d'elle nas partidas de _quino_!
+
+Uma manhã, mais inquieto, veio á rua da Misericordia,--e emquanto a S.
+Joanneira tagarellava na cozinha, disse bruscamente a Amelia:
+
+--Menina Amelia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas
+maneiras com que trata o senhor padre Amaro.
+
+Ella ergueu os olhos muito espantados:
+
+--Que maneiras?! Ora essa! então como quer que o trate? É um amigo da
+casa, esteve aqui d'hospede...
+
+--Pois sim, pois sim...
+
+--Ah! mas socegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar ao pé
+do homem.
+
+João Eduardo, tranquillisado, raciocinou--que «não havia nada». Aquelles
+modos eram excessos de beaterio. Enthusiasmo pela padraria!
+
+Amelia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre
+considerára o escrevente um pouco tapado--e se elle percebêra, que
+fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do conego que era cortida em
+malicia! Por isso mal sentia Amaro na escada, d'ahi por diante, tomava
+uma attitude distrahida, muito artificial: mas, ai! apenas elle lhe
+fallava com a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos negros
+que lhe faziam correr estremeções nos nervos,--como uma ligeira camada
+de neve que se derrete a um sol muito forte a sua attitude fria
+desapparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão continua de paixão.
+Ás vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava
+alli; e ficava toda surprehendida quando ouvia a um canto da sala a sua
+voz melancolica.
+
+Ella sentia de resto que as amigas da mãi envolviam a sua «inclinação»
+pelo parocho n'uma approvação muda e affavel. Elle era, como dizia o
+conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas
+exhalava-se uma admiração por elle que fazia ao desenvolvimento da
+paixão d'Amelia uma atmosphera favoravel. D. Maria da Assumpção
+dizia-lhe ás vezes ao ouvido:
+
+--Olha para elle! É d'inspirar fervor. É a honra do clero. Não ha
+outro!...
+
+E todas ellas achavam João Eduardo «um presta-p'ra-nada»! Amelia então
+já não disfarçava a sua indifferença por elle: as chinelas que lhe
+andava a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto do trabalho, e já
+não vinha á janella vel-o passar para o cartorio.
+
+A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo--na alma,
+que, como elle dizia, lhe andava mais negra que a noite.
+
+--A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido. E á dôr da sua
+felicidade destruida juntava-se a afflicção pela honra d'ella ameaçada.
+
+Uma tarde, tendo-a visto sahir da Sé, esperou-a adiante da botica, e
+muito decidido:
+
+--Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto não póde continuar assim...
+Eu não posso... A menina traz namoro com o parocho!
+
+Ella mordeu o beiço, toda branca:
+
+--O senhor está a insultar-me!--E queria seguir, indignada.
+
+Elle reteve-a pela manga do casabeque:
+
+--Ouça, menina Amelia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe...
+Tenho andado, que até se me parte o coração!--E perdeu a voz, de
+commovido.
+
+--Não tem razão... Não tem razão... balbuciava ella.
+
+--Jure-me então que não ha nada com o padre!
+
+--Pela minha salvação!... _Não ha nada!_... Mas tambem lhe digo, se
+torna a fallar em tal, ou a insultar-me, conto tudo á mamã, e o senhor
+escusa de nos voltar a casa.
+
+--Oh, menina Amelia...
+
+--Não podemos continuar aqui a fallar... Está alli já a D. Michaela a
+cocar...
+
+Era uma velha, que levantára a cortina de cassa n'uma janella baixa, e
+espreitava com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda resequida
+encostada sôfregamente á vidraça. Separaram-se então--e a velha
+desconsolada deixou cahir a cortina.
+
+Amelia n'essa noite--emquanto as senhoras discutiam com algazarra os
+missionarios que então prégavam na Barrosa--disse baixo a Amaro, picando
+vivamente a costura:
+
+--Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão
+chegado... Já houve quem reparasse.
+
+Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assumpção; e,
+apesar da recommendação d'Amelia, os seus olhos não se despregavam
+d'ella, n'uma interrogação muda e anciosa, já assustado que as
+desconfianças da mãi ou a malicia das velhas «andassem armando
+escandalo». Depois do chá, no rumor das cadeiras que se accommodavam ao
+_quino_, perguntou-lhe rapidamente:
+
+--Quem reparou?
+
+--Ninguem. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.
+
+Desde então cessaram as olhadellas dôces, os logares chegadinhos á mesa,
+os segredos; e sentiam um gozo picante em affectar maneiras frias, tendo
+a certeza vaidosa da paixão que os inflammava. Era para Amelia
+delicioso--emquanto o padre Amaro afastado tagarellava com as
+senhoras--adorar a sua presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos
+castamente applicados ás chinelas do João Eduardo que muito astutamente
+recomeçára a bordar.
+
+Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o
+parocho installado alli todas as noites, com a face próspera, a perna
+traçada, gozando a veneração das velhas. «A Ameliasinha, sim, agora
+portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...»: mas elle sabia que o
+parocho a desejava, a «cocava»; e apesar do juramento d'ella _pela sua
+salvação,_ da certeza _que não havia nada_--temia que ella fosse
+lentamente penetrada por aquella admiração caturra das velhas, para quem
+o senhor parocho _era um anjo_: só se contentaria em arrancar Amelia (já
+empregado no governo civil) áquella casa beata: mas essa felicidade
+tardava a chegar--e sahia todas as noites da rua da Misericordia mais
+apaixonado, com a vida estragada de ciumes, odiando os padres, sem
+coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até
+tarde; ás vezes voltava ainda vêr as janellas fechadas da casa d'ella;
+ia depois á alameda ao pé do rio, mas o frio ramalhar das arvores sobre
+a agua negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um
+momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que
+bocejava encostado ao _reste_. Um cheiro de mau petroleo suffocava.
+Sahia; e dirigia-se, devagar, á redacção da _Voz do Districto_.
+
+
+
+
+X
+
+
+O redactor da _Voz do Districto_, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu
+parente. Chamavam-lhe geralmente o _Rachitico_, por ter uma forte
+corcunda no hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente
+sujo; e a sua carita de femea, amarellada, d'olhos depravados, revelava
+vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a
+sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: «Se vossê não fosse
+um rachitico, quebrava-lhe os ossos»--que, vendo na sua corcunda uma
+protecção sufficiente, ganhára um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o
+tornava mais suspeito aos burguezes sérios: attribuia-se a sua voz rouca
+e acre «a fartar-lhe as campainhas»: e os seus dedos queimados
+terminavam em unhas muito compridas--porque tocava guitarra.
+
+A _Voz do Districto_ fôra creada por alguns homens, a quem chamavam em
+Leiria o _grupo da Maia_, particularmente hostis ao senhor governador
+civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do _grupo_, tinha
+encontrado em Agostinho, como elle dizia, o _homem que se precisa_: o
+que o _grupo_ precisava era um patife com orthographia, sem escrupulos,
+que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calumnias, as allusões
+que elles traziam informemente á redacção, em apontamentos. Agostinho
+era um estylista de vilezas. Davam-lhe quinze mil reis por mez e casa de
+habitação na redacção--um terceiro andar desmantelado n'uma viella ao pé
+da Praça.
+
+Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a _Correspondencia_ de
+Lisboa; e o bacharel Prudencio escrevia o folhetim litterario sob o
+titulo de _Palestras Leirienses_: era um moço muito honrado, a quem o
+snr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que
+se sujeitava a sentar-se todos os sabbados fraternalmente á mesma banca,
+a revêr as provas da sua prosa--prosa tão florida de imagens, que se
+murmurava na cidade, ao lêl-a: «_Que opulencia! Que opulencia, Jesus!_»
+
+João Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho era «um trastesito»; não
+se atreveria a passear com elle de dia nas ruas; mas gostava de ir para
+a redacção, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho fallar de
+Lisboa, do tempo que lá vivêra empregado na redacção de dois jornaes, no
+theatro da rua dos Condes, n'uma casa de penhores, e em outras
+instituições. Estas visitas eram _segredos_!
+
+Áquella hora da noite a sala da typographia no primeiro andar estava
+fechada (o jornal tirava-se aos sabbados); e João Eduardo encontrava em
+cima Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de pelles cujos colchetes
+de prata tinham sido empenhados--ruminando, curvado, á luz d'um medonho
+candieiro de petroleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o
+jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto d'uma caverna. João
+Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a
+velha guitarra de Agostinho repenicava o _fado corrido_. O jornalista no
+emtanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: «a
+coisa não lhe sahia catita»: e como nem o _fadinho_ o inspirava,
+erguia-se, ia a um armario engulir um copinho de genebra que gargarejava
+nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, accendia o
+cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:
+
+
+Ora foi o fado tyranno
+Que me levou á má vida,
+
+
+E a guitarra: dir-lin, din, din, dir-lin, din, don.
+
+
+Na vida do negro fado
+Ai! Que me traz assim perdida...
+
+
+Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por
+dizer, com odio:
+
+--Que possilga de terra esta!
+
+Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu
+quartilho na taberna do tio João, á Mouraria, com a Anna alfaiata ou com
+o Bigodinho--ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o
+olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra
+dizendo a morte da Sophia!
+
+Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João
+Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se--porque essas
+«producções», sendo ultimamente sempre «desandas ao clero»,
+correspondiam ás suas preoccupações.
+
+Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericordia, o
+doutor Godinho se tornára muito hostil ao cabido e «á padraria». Sempre
+detestára padres; tinha uma má doença de figado, e como a Igreja o fazia
+pensar no cemiterio, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da
+mortalha. E Agostinho, que tinha um profundo deposito de fel a derramar,
+instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrínas: mas, com o
+seu fraco litterario, cobria o vituperio de tão espessas camadas de
+rhetorica que, como dizia o conego Dias, «aquillo era ladrar, não era
+morder»!
+
+Uma d'essas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo enthusiasmado
+com um artigo que compuzera de tarde, e que lhe «sahira cheio de piadas
+á Victor Hugo»!
+
+--Tu verás! Coisa de sensação!
+
+Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor
+Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, «_esse tão
+respeitavel chefe de familia_» e a sua eloquencia no tribunal que
+«_arrancára tantos desventurados ao cutelo da lei_», o artigo, tomando
+um tom roncante, apostrophava Christo:--«Quem te diria a ti (bradava
+Agostinho), ó immortal Crucificado! quem te diria, quando no alto do
+Golgotha expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, á tua
+sombra, seria expulso d'um estabelecimento de caridade o doutor
+Godinho,--a alma mais pura, o talento mais robusto...»--E as virtudes do
+doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solemnes e sublimadas,
+arrastando caudas de adjectivos nobres.
+
+Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho,
+Agostinho dirigia-se directamente a Roma:--«É no seculo XIX que vindes
+atirar á face de Leiria liberal os dictames do _Syllabus_! Pois bem.
+Quereis a guerra? Tel-a-heis!»
+
+--Hein, João?! dizia. Está forte! Está philosophico!
+
+E retomando a leitura:--«Quereis a guerra? Tel-a-heis! Levantaremos bem
+alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, comprehendei-o bem! e
+arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades
+publicas, gritaremos á face de Leiria, á face da Europa: Filhos do
+seculo XIX! ás armas! Ás armas pelo progresso!»
+
+--Hein? Está de os enterrar!
+
+João Eduardo, que ficára um momento calado, disse então, levantando as
+suas expressões em harmonia com a prosa sonora de Agostinho:
+
+--O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!
+
+Uma phrase tão litteraria surprehendeu o jornalista: fitou João Eduardo,
+disse:
+
+--Porque não escreves tu alguma coisa, tambem?
+
+O escrevente respondeu, sorrindo:
+
+--E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu
+tocava-lhes os pôdres. Eu é que os conheço!...
+
+Agostinho instou logo com elle para que escrevesse a _desanda_.
+
+--Vem a calhar, menino!
+
+O doutor Godinho ainda na vespera lhe recommendára:--«Em tudo que
+cheirar a padre, para baixo! Havendo escandalo, conta-se! não havendo,
+inventa-se!»
+
+E Agostinho acrescentou, com benevolencia:
+
+--E não te dê cuidado o estylo, que eu cá o florearei!
+
+--Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.
+
+Mas d'ahi por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:
+
+--E o artigo, homem? Traze-me o artigo.
+
+Tinha avidez d'elle, porque sabendo como João Eduardo vivia na
+intimidade da «panellinha canonica da S. Joanneira» suppunha-o no
+segredo de infamias especiaes.
+
+João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber...?
+
+--Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da
+redacção. Quem diabo vai saber?
+
+Succedeu na noite seguinte que João Eduardo surprehendeu o padre Amaro
+resvalando sorrateiramente um segredinho a Amelia--e ao outro dia
+appareceu de tarde na redacção com a pallidez d'uma noite velada,
+trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escriptas n'uma letra
+de cartorio. Era o artigo, e intitulava-se: _Os modernos
+phariseus!_--Depois de algumas considerações, cheias de flôres, sobre
+Jesus e o Golgotha, o artigo de João Eduardo era, sob allusões tão
+diaphanas como teias d'aranha, um vingativo ataque ao conego Dias, ao
+padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!... Todos tinham a sua
+_dóse_, como exclamou cheio de jubilo o Agostinho.
+
+--E quando sae? perguntou João Eduardo.
+
+O Agostinho esfregou as mãos, reflectiu, disse:
+
+--É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes proprios! Mas
+descansa, eu arranjarei.
+
+Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho--que o achou «uma
+catilinaria atroz». Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um
+arrufo: elle reconhecia em geral a necessidade da religião entre as
+massas; sua esposa, a bella D. Candida, era além d'isso d'inclinações
+devotas, e começava a dizer que aquella guerra do jornal ao clero lhe
+causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho não queria provocar odios
+desnecessarios entre os padres, prevendo que o seu amor da paz
+domestica, os interesses da ordem e o seu dever de christão o forçariam
+bem cedo a uma reconciliação,--«muito contra as suas opiniões, mas...»
+
+Disse por isso a Agostinho sêccamente:
+
+--Isto não póde ir como artigo da redacção, deve apparecer como
+communicado. Cumpra estas ordens.
+
+E Agostinho declarou ao escrevente--que a coisa publicava-se como um
+_Communicado_, assignado: _Um liberal_. Sómente João Eduardo terminava o
+artigo exclamando:--_Álerta, mães de familia!_ O Agostinho suggeriu que
+este final _álerta_ podia dar logar á réplica jocosa--_Álerta está!_ E
+depois de largas combinações decidiram-se por este fecho:--_Cuidado,
+sotainas negras!_
+
+No domingo seguinte appareceu o communicado assignado: _Um liberal_.
+
+
+Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, á volta da Sé,
+estivera occupado em compôr laboriosamente uma carta a Amelia.
+Impaciente, como elle dizia, «com aquellas relações que não andavam nem
+desandavam, que era olhar e apertos de mão e d'alli não
+passava»--tinha-lhe dado uma noite, á mesa do quino, um bilhetinho onde
+escrevera com boa letra, a tinta azul:--_Desejo encontral-a só, porque
+tenho muito que lhe fallar. Onde póde ser sem inconveniente? Deus
+proteja o nosso affecto._ Ella não respondera:--E Amaro despeitado,
+descontente tambem por não a ter visto n'essa manhã á missa das nove,
+resolveu «pôr tudo a claro n'uma carta de sentimento»: e preparava os
+periodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela
+casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre
+o _Diccionario de synonymos_.
+
+
+«Ameliasinha do meu coração: (escrevia elle) Não posso atinar com as
+razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em
+casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha
+de lhe fallar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na innocencia
+d'esta alma que tanto lhe quer e que não medita o peccado.
+
+«Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente affecto, e pela sua
+parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os pharoes da
+minha vida, e como a estrella do navegante) que tambem tu, minha
+Ameliasinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro
+dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros numeros, e que todos
+fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me a mão por baixo da mesa com
+tanta ternura, que até me pareceu que o céo se abria e que eu sentia os
+anjos entoarem o Hossana! Porque não respondeste pois? Se pensas que o
+nosso affecto póde ser desagradavel aos nossos anjos da guarda, então te
+direi que maior peccado commettes trazendo-me n'esta incerteza e
+tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti,
+e nem me deixa elevar a minha alma no divino sacrificio. Se eu visse que
+este mutuo affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh minha bem
+amada filha, façamos o sacrificio a Jesus, para lhe pagar parte do
+sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e
+vejo n'ella a brancura dos lirios. E o teu amor tambem é puro como a tua
+alma, que um dia se unirá á minha, entre os córos celestes, na
+bemaventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliasinha,
+que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde
+pois, e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no
+Morenal, pela tarde. Pois eu anceio por te exprimir todo o fogo que me
+abraza, bem como fallar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão
+a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos extases
+d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a offerta do
+coração do teu amante e pai espiritual
+
+
+ «_Amaro_».
+
+
+Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ella bem dobrada
+no bolso da batina foi á rua da Misericordia. Logo da escada sentiu em
+cima a voz aguda de Natario, discutindo.
+
+--Quem está por cá?--perguntou á _Ruça_, que alumiava, encolhida no seu
+chale.
+
+--As senhoras todas. Está o senhor padre Brito.
+
+--Ólá! Bella sociedade!
+
+Galgou os degraus, e á porta da sala, com o seu capote ainda pelos
+hombros, tirando alto o chapéo:
+
+--Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.
+
+Natario, immediatamente, plantou-se diante d'elle e exclamou:
+
+--Então que lhe parece?
+
+--O quê? perguntou Amaro. E reparando no silencio, nos olhos cravados
+n'elle:--O que é? Alguma coisa de novo?
+
+--Pois não leu, senhor parocho!? exclamaram. Não leu o _Districto_!?
+
+Era papel em que elle não puzera os olhos, disse. Então as senhoras
+indignadas romperam:
+
+--Ai! é um desafôro!
+
+--Ai! é um escandalo, senhor parocho!
+
+Natario, com as mãos enterradas nas algibeiras, contemplava o parocho
+com um sorrisinho sarcastico, soltando d'entre os dentes:
+
+--Não leu! Não leu! Então que fez?
+
+Amaro reparava, já aterrado, na pallidez d'Amelia, nos seus olhos muito
+vermelhos. E emfim o conego erguendo-se pesadamente:
+
+--Amigo parocho, dão-nos uma desanda!...
+
+--Ora essa! exclamou Amaro.
+
+--Têsa!
+
+O senhor conego, que trouxera o jornal, devia ler alto--lembraram.
+
+--Leia, Dias, leia, acudiu Natario. Leia, para saborearmos!
+
+A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego Dias accommodou-se á
+mesa, desdobrou o jornal, pôz os oculos cuidadosamente, e, com o lenço
+do rapé nos joelhos, começou a leitura do _Communicado_ na sua voz
+pachorrenta.
+
+O principio não interessava: eram periodos enternecidos em que o
+_liberal_ exprobrava aos phariseus a crucifixão de Jesus:--«Por que o
+matasteis? (exclamava elle). Respondei!» E os phariseus
+respondiam:--«Matamol-o porque elle era a liberdade, a emancipação, a
+aurora de uma nova era», etc. O _liberal_ então esboçava, a largos
+traços, a noite do Calvario:--«Eil-o pendente da cruz, traspassado de
+lanças, a sua tunica jogada aos dados, a plebe infrene», etc. E,
+voltando a dirigir-se aos phariseus infelizes, o _liberal_ gritava-lhes
+com ironia:--«Contemplai a vossa bella obra!» Depois, por uma gradação
+habil, o _liberal_ descia de Jerusalem a Leiria:--«Mas pensam os
+leitores que os phariseus morreram? Como se enganam! Vivem!
+conhecemol-os nós; Leiria está cheia d'elles, e vamos apresental-os aos
+leitores...»
+
+--Agora é que ellas começam, disse o conego olhando para todos em redor,
+por cima dos oculos.
+
+Com effeito «ellas começavam»; era, n'uma fórma brutal, uma galeria de
+photographias ecclesiasticas: a primeira era a do padre Brito:--«Vêde-o,
+(exclamava o _liberal_) grosso como um touro, montado na sua egua
+castanha...»
+
+--Até a côr da egua! murmurou com uma indignação piedosa a snr.^a D.
+Maria da Assumpção.
+
+«...Estupido como um melão, sem sequer saber latim...»
+
+O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate,
+mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.
+
+«...Especie de caceteiro», continuava o conego que lia aquellas phrases
+crueis com uma tranquillidade dôce, «desabrido de maneiras, mas que não
+desgosta de se dar á ternura, e, segundo dizem os bem informados,
+escolheu para Dulcinêa a propria e legitima esposa do seu regedor...»
+
+O padre Brito não se dominou:
+
+--Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recahindo
+pesadamente na cadeira.
+
+--Escute, homem! disse Natario.
+
+--Qual escute! O que é, é que o racho!
+
+Mas se elle não sabia quem era o _liberal_!
+
+--Qual _liberal_! Quem eu racho é o doutor Godinho. O doutor Godinho é
+que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!
+
+A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas á côxa.
+
+Lembraram-lhe o dever christão de perdoar as injurias. A S. Joanneira
+com unção citou a bofetada que Jesus Christo supportou. Devia imitar
+Christo.
+
+--Qual Christo, qual cabaça! gritou Brito apopletico.
+
+Aquella impiedade creou um terror.
+
+--Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou a irmã do conego recuando a
+cadeira.
+
+O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:
+
+--Nossa Senhora das Dôres, que até póde cahir um raio!
+
+E, vendo mesmo Amelia indignada, o padre Amaro disse gravemente:
+
+--Brito, realmente vossê excedeu-se.
+
+--Pois se estão a puxar por mim!...
+
+--Homem, ninguem puxou por vossê, disse severamente Amaro. E com um tom
+pedagogo:--Apenas lhe lembrarei, como devo, que em taes casos, quando se
+diz a _blasphemia má_, o reverendo padre Scomelli recommenda confissão
+geral e dois dias de recolhimento a pão e agua.
+
+O padre Brito resmungava.
+
+--Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu uma grande falta, mas
+saberá pedir perdão a Deus, e a misericordia de Deus é infinita!
+
+Houve uma pausa commovida em que se ouviu a snr.^a D. Maria da Assumpção
+murmurar «que ficára sem pinga de sangue»; e o conego, que durante a
+catastrophe pousára os oculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou
+serenamente a leitura:
+
+«...Conheceis um outro com cara de furão?...»
+
+Olhares de lado fixaram o padre Natario.
+
+«...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, não hesita; se puder
+prejudicar-vos, folga: as suas intrigas trazem o cabido n'uma confusão
+porque é a vibora mais damninha da diocese, mas com tudo isso muito dado
+á jardinagem, porque cultiva com cuidado _duas rosas do seu canteiro_.»
+
+--Homem, essa! exclamou Amaro.
+
+--É para que vossê veja, disse Natario erguendo-se lívido. Que lhe
+parece? Vossê sabe que eu, quando fallo das minhas sobrinhas, costumo
+dizer _as duas rosas do meu canteiro_. É um gracejo. Pois senhores, até
+vem com isto!--E com um sorriso macilento, de fel:--mas ámanhã hei de
+saber quem é! Ólaré! Eu hei de saber quem é!
+
+--Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite ao desprezo, disse a S.
+Joanneira pacificadora.
+
+--Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se com uma ironia
+rancorosa--obrigado! Cá recebi!
+
+Mas a voz imperturbavel do conego retomára a leitura. Agora era o
+retrato d'elle, traçado com odio:
+
+«...Conego bojudo e glutão, antigo caceteiro do senhor D. Miguel, que
+foi expulso da freguezia de Ourem, outr'ora mestre de Moral n'um
+seminario e hoje mestre de immoralidade em Leiria...»
+
+--Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.
+
+O conego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:
+
+--Vossê pensa que me dá isto cuidado? disse elle. Boa! Tenho que comer e
+que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!
+
+--Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho
+de brio!
+
+--Ora, mana! replicou o conego Dias com um azedume de raiva concentrada.
+Ora, mana! ninguem lhe pede a sua opinião!
+
+--Nem preciso que m'a peçam! gritou ella impertigando-se. Sei-a dar
+muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!
+
+--Então! então!... disseram em roda, acalmando-a.
+
+--Menos lingua, mana, menos lingua! disse o conego fechando os seus
+oculos. Olhe não lhe cáiam os dentes postiços!
+
+--Seu malcriado!
+
+Ia fallar, mas suffocou-se; e começou subitamente a soltar _ais_.
+
+Recearam logo que lhe désse o _flato_: a S. Joanneira e a D. Joaquina
+Gansoso levaram-na para o quarto, em baixo, amparando-a, com palavras
+brandas:
+
+--Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escandalo! Nossa Senhora te
+valha!
+
+Amelia mandava buscar agua de flôr de laranja.
+
+--Deixe-a lá, rosnou o conego, deixe-a lá! Aquillo passa-lhe. São
+calores!
+
+Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a
+snr.^a D. Maria da Assumpção e a Gansoso surda, que iam tambem «socegar
+a D. Josepha, coitadita»! Os padres agora estavam sós; e o conego
+voltando-se para Amaro:--Ouça vossê, que é a sua vez--disse retomando o
+jornal.
+
+--E verá que dóse! disse Natario.
+
+O conego escarrou, aproximou mais o candieiro, e declamou:
+
+«...Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, parochos por
+influencias de condes da capital, vivendo na intimidade das familias de
+bem onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se da influencia do
+seu sagrado ministerio para lançar na alma da innocente a semente de
+chammas criminosas!»
+
+--Pouca vergonha! murmurou Amaro livido.
+
+«...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar a impolluta virgem?
+Queres arrastal-a aos lodaçaes do vicio? Que vens fazer aqui ao seio
+d'esta respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua prêsa como o
+milhafre em torno da innocente pomba? Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe
+seductoras phrases, para a desviares do caminho da honra; condemnas á
+desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira offerecer sua mão
+trabalhadora; e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de lagrimas. E
+tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos de tua criminosa
+lascivia!...»
+
+--Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.
+
+«...Mas acautela-te, presbytero perverso!» E a voz do conego tinha tons
+cavos ao soltar aquellas apostrophes. «Já o archanjo levanta a espada da
+justiça. E sobre ti, e teus cumplices, já a opinião da illustrada Leiria
+fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para
+vos marcar na fronte o estigma da infamia. Tremei, sectarios do
+_Syllabus_! Cuidado, sotainas negras!»
+
+--D'escacha! fez o conego suado, dobrando a _Voz do Districto_.
+
+O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de duas lagrimas de raiva:
+passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:
+
+--Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto
+é a calumnia das calumnias.
+
+--Uma calumnia infame... rosnaram.
+
+-E a mim o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos á
+auctoridade!
+
+--É o que eu tinha dito, acudiu Natario, é necessario fallar ao
+secretario geral...
+
+--Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Auctoridade! O que é, é
+rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...
+
+O conego, que meditava coçando o queixo, disse então:
+
+--E vossê, Natario, é que deve ir ao secretario geral. Vossê tem lingua,
+tem logica.
+
+--Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se, vou. E hei de lh'as
+cantar, á auctoridade!
+
+Amaro ficára junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o
+Libaninho murmurava:
+
+--Ai, filhos, eu não é nada commigo, mas só de ouvir todo esse aranzel,
+até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...
+
+Mas sentiram a voz da snr.^a Joaquina Gansoso subindo a escada; e o
+conego immediatamente com uma voz prudente:
+
+--Collegas, o melhor, diante das senhoras, é não se fallar mais n'isto.
+Bem basta o que basta.
+
+D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que
+estava com uma forte dôr de cabeça, e despediu-se das senhoras.
+
+--E sem tomar chá? acudiu a S. Joanneira.
+
+--Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se no seu capote, não me
+estou a sentir bem. Boas noites... E vossê, Natario, appareça ámanhã
+pela Sé á uma hora.
+
+Apertou a mão de Amelia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e
+molle,--e sahiu com os hombros vergados.
+
+A S. Joanneira notou, desconsolada:
+
+--O senhor parocho ia muito pallido...
+
+O conego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:
+
+--Se ia pallido, ámanhã estará córado. E agora quero dizer uma coisa:
+esse aranzel do jornal é a calumnia das calumnias! Eu não sei quem o
+escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infamias. É
+pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e
+como já se tagarellou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá.
+E o que lá vai, lá vai, não se falla mais na questão.
+
+As faces em roda continuavam contristadas.--E então o conego
+acrescentou:
+
+--Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguem, não ha
+necessidade de estar aqui com cara de pezames. E tu, pequena, senta-te
+ao instrumento e repenica-me essa _Chiquita_!
+
+
+O secretario geral, o snr. Gouvêa Ledesma, antigo jornalista, e, em
+annos mais expansivos, auctor do livro sentimental _Devaneios de um
+sonhador_, estava então dirigindo o districto na ausencia do governador
+civil.
+
+Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representára de galan
+no theatro academico, em Coimbra, com muito applauso; e tomára a esse
+tempo o habito de passear á tarde na Sophia, com o ar fatal com que no
+palco arrepellava os cabellos, ou levava, nos transes d'amor, o lenço
+aos olhos. Depois em Lisboa arruinára um pequeno patrimonio com o amor
+de Lolas e de Carmens, ceias no Matta, muita calça no Xafredo e
+perniciosas convivencias litterarias: aos trinta annos estava pobre,
+saturado de mercurio e auctor de vinte folhetins romanticos na
+_Civilisação_: mas tornára-se tão popular, que era conhecido nos
+lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso--era o _Bibi_. Julgando
+então que conhecia a fundo a existencia, deixou crescer as suiças,
+começou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou na carreira
+administrativa; chamava agora á republica que tanto exaltára em Coimbra
+_uma absurda chimera_; e Bibi era um pilar das instituições.
+
+Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia ás senhoras, nas
+_soirées_ do deputado Novaes,--«que estava cansado da vida». Rosnava-se
+que a esposa do bom Novaes andava doida por elle: e em verdade Bibi
+escrevêra a um amigo da capital:--«emquanto a conquistas, pouco por ora;
+tenho apenas no papo a Novaesitos».
+
+Levantava-se tarde; e n'essa manhã, de robe-de-chambre á mesa do almoço,
+partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração
+apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o criado,--um gallego que
+trouxera de Lisboa--veio dizer que «estava alli um cura».
+
+--Um cura? Que entre para aqui!--E murmurou para sua satisfação
+pessoal:--O Estado não deve fazer esperar a Igreja.
+
+Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natario que entrava, muito
+composto, na sua longa batina de lustrina.
+
+--Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena de chá, senhor cura? Soberba
+manhã, hein? Estava justamente pensando em v. s.^a--isto é, estava
+pensando no clero em geral... Acabava de lêr as peregrinações que se
+estão fazendo a Nossa Senhora do Lourdes... Grande exemplo! Milhares de
+pessoas da melhor roda... É realmente consolador vêr renascer a fé...
+Ainda hontem eu disse em casa do Novaes: «no fim de tudo a fé é a mola
+real da sociedade». Tome uma chavena de chá... Ah! é um grande
+balsamo!...
+
+--Não, obrigado, almocei já.
+
+--Mas não! Quando digo um grande balsamo refiro-me á fé, não ao chá! Ah!
+ah! É boa, não?
+
+E prolongou a sua risadinha com complacencia. Queria agradar a Natario,
+pelo principio que repetia muito, com um sorriso astuto--«que quem está
+mettido na politica deve ter por si a padraria».
+
+--E depois, acrescentou, como eu dizia hontem em casa do Novaes, que
+vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola;
+pois com a affluencia dos devotos está uma cidade... Grandes hoteis,
+_boulevards_, bellas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento
+economico, correndo parelhas com o renascimento religioso.
+
+E deu com satisfação um puxãosinho grave ao collarinho.
+
+--Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.^a a respeito d'um communicado na
+_Voz do Districto_.
+
+--Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente, li! Uma famosa
+verrina... Mas litterariamente, como estylo e como imagens, que miseria!
+
+--E que tenciona v. exc.^a fazer, senhor secretario geral?
+
+O snr. Gouvéa Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou
+pasmado:
+
+--Eu!?
+
+Natario disse, distillando as palavras:
+
+--A auctoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e
+implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha v. exc.^a em vista, eu
+não venho aqui em nome do clero...
+
+E acrescentou com a mão sobre o peito:
+
+--Sou apenas um pobre padre sem influencia... Venho, como particular,
+perguntar ao senhor secretario geral se se póde permittir que caracteres
+respeitaveis da Igreja diocesana sejam assim diffamados...
+
+--É certamente lamentavel que um jornal...
+
+Natario interrompeu, impertigando o busto com indignação:
+
+--Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretario geral!
+
+--Suspenso!? Por quem é, senhor cura! Mas v. s.^a decerto não quer que
+eu volte aos tempos dos corregedores-móres! Suspender o jornal! Mas a
+liberdade de imprensa é um principio sagrado! Nem as leis de imprensa o
+permittem... Mesmo querelar pelo ministerio publico porque um periodico
+diz duas ou tres pilherias sobre o cabido, impossivel! Tínhamos de
+querelar de toda imprensa de Portugal, com excepção da _Nação_ e do _Bem
+Publico!_ Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta annos de
+progresso, a propria idéa governamental? Mas nós não somos os Cabraes,
+meu caro senhor! Nós queremos luz, muitissima luz! Justamente o que nós
+queremos é luz!
+
+Natario tossiu devagarinho, disse:
+
+--Perfeitamente. Mas então quando, pelas eleições, a auctoridade nos
+vier pedir o nosso auxilio, nós, vendo que não encontramos n'ella
+protecção, diremos simplesmente: _Non possumus_!
+
+--E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os
+senhores abbades, nós vamos trahir a civilisação?
+
+E o antigo _Bibi_, tomando uma grande attitude, soltou esta phrase:
+
+--Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãi!
+
+--Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é opposição, observou
+então Natario; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as
+manobras...
+
+O secretario geral teve um sorriso:
+
+--Meu caro senhor cura, v. s.^a não está no segredo da politica. Entre o
+doutor Godinho e o governo civil não ha inimizade, ha apenas um
+arrufo... O doutor Godinho é uma intelligencia... Vai reconhecendo que o
+_grupo da Maia_ não produz nada... O doutor Godinho aprecia a politica
+do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho.
+
+E, rebuçando-se todo n'um mysterio d'Estado, acrescentou:
+
+--Coisas d'alta política, meu caro senhor.
+
+Natario ergueu-se:
+
+--De modo que...
+
+--_Impossibilis est_, disse o secretario. De resto acredite, senhor
+cura, que como particular revolto-me contra o _Communicado_; mas como
+auctoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e
+póde dizel-o a todo o clero diocesano, a Igreja catholica não tem um
+filho mais fervente que eu, Gouvêa Ledesma... Quero porém uma religião
+liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia... Foram sempre as
+minhas idéas; préguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no
+gremio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a
+poesia do christianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Sómente
+lamento que elle não arvore a bandeira da civilisação!--E o antigo Bibi,
+contente da sua phrase, repetia:--Sim, lamento que elle não arvore a
+bandeira da civilisação... O _Syllabus_ é impossivel n'este seculo de
+electricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar
+d'um jornal porque elle diz duas ou tres pilherias sobre o sacerdocio,
+nem nos convém, por altas razões de política, escandalisar o doutor
+Godinho. Aqui tem o meu pensamento.
+
+--Senhor secretario geral... disse Natario curvando-se.
+
+--Um criado de v. s.^a Sinto que não tome uma chavena de chá... E como
+vai o nosso chantre?
+
+--S. exc.^a n'estes ultimos dias, segundo creio, tem tornado a soffrer
+de tonturas.
+
+--Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista... Tenha cuidado com
+o degrau!...
+
+Natario correu á Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera.
+Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atraz das costas: tinha
+as olheiras batidas e a face envelhecida.
+
+--Então? disse elle, indo rapidamente ao encontro de Natario.
+
+--Nada!
+
+Amaro mordeu o beiço: e emquanto Natario lhe contava, excitado, a
+conversação com o secretario geral, «e como argumentára com elle, e como
+o homem tagarellára, tagarellára»,--a face do parocho cobria-se d'uma
+sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do
+guardasol, a herva que crescia nas fendas do terraço.
+
+--Um patarata! resumiu o padre Natario com um grande gesto. Pela
+auctoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre
+mim e o _liberal_, padre Amaro! Eu hei de saber quem é, padre Amaro! E
+quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...
+
+
+No emtanto João Eduardo desde o domingo triumphava: o artigo fizera
+escandalo: tinham-se vendido oitenta numeros avulsos do jornal, e o
+Agostinho affirmára-lhe que na botica da Praça a opinião era «que o
+_liberal_ conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça»!
+
+--És um genio, rapaz! disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me
+outro!
+
+João Eduardo gozava prodigiosamente «d'aquelle fallatorio que ia pela
+cidade».
+
+Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse
+escandalisar a S. Joanneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem
+alto--_fui eu, eu é que o escrevi!_--E já ruminava outro, mais terrivel,
+que se deveria intitular: _O diabo feito ermita_, ou _O sacerdocio de
+Leiria perante o seculo XIX_!
+
+O doutor Godinho encontrára-o na Praça, e parára com condescendencia,
+para lhe dizer:
+
+--A coisa tem feito barulho. Vossê é o diabo! E a piada ao padre Brito é
+bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do
+regedor...
+
+--V. exc.^a não sabia?
+
+--Não sabia, e saboreei. Vossê é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho
+que publicasse a coisa como um communicado. Vossê comprehende... Eu não
+me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem
+seus escrupulos... Emfim é mulher, e é conveniente que as mulheres
+tenham religião... Mas no meu fôro interior saboreei... Sobretudo a
+piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição
+passada... Ah! e outra coisa, o seu negocio arranja-se. Lá para o mez
+que vem tem vossê o seu emprego no governo civil.
+
+--Oh, snr. doutor... v. exc.^a...
+
+--Qual historia! vossê é um benemerito!
+
+João Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria. O snr. Nunes Ferral
+sahira: o escrevente aparou devagar uma penna, começou a cópia d'uma
+procuração--e de repente, agarrando o chapéo, correu á rua da
+Misericordia.
+
+A S. Joanneira costurava só á janella; Amelia fôra ao Morenal; e João
+Eduardo, logo da porta:
+
+--Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o
+mez que vem tenho o meu emprego...
+
+A S. Joanneira tirou a luneta, deixou cahir as mãos no regaço:
+
+--Que me diz?...
+
+--É verdade, é verdade...
+
+E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de jubilo.
+
+--Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliasinha estiver
+d'accordo...
+
+--Ai, João Eduardo! fez a S. Joanneira com um grande suspiro, que me
+tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho
+dormido!...
+
+João Eduardo presentiu que ella ia fallar do _Communicado_. Foi pôr o
+chapéo n'uma cadeira ao canto; e voltando á janella, com as mãos nos
+bolsos:
+
+--Então porquê, porquê?
+
+--Aquella pouca vergonha no _Districto!_ Que diz vossê? Aquella
+calumnia! Ai! tenho-me feito velha!
+
+João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciume, só para
+«enterrar» o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e
+vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no branco dos olhos,
+sentia-se _quasi arrependido_. Disse ambíguamente:
+
+--Eu li, é o diabo...
+
+Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira para servir a sua paixão,
+acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé d'ella:
+
+--Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta, mas... olhe que a
+Ameliasinha tratava o parocho com muita familiaridade... E pelas
+Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo,
+ia-se rosnando... Eu bem sei que ella, coitada, não via o mal, mas... a
+D. Augusta sabe o que é Leiria. Que linguas, hein!
+
+A S. Joanneira então declarou que lhe ia fallar como a um filho: o
+artigo affligira-a, sobretudo por causa d'elle, João Eduardo. Porque
+emfim elle podia acreditar tambem, desfazer o casamento, e que desgosto!
+E ella podia dizer-lhe, como mulher de bem, como mãi, que não havia
+entre a pequena e o senhor parocho nada, nada, nada! Era a rapariga que
+tinha aquelle genio communicativo! E o parocho tinha boas palavras,
+sempre muito delicado... Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro
+tinha maneiras que tocavam o coração...
+
+--Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.
+
+A S. Joanneira então poz a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e
+fitando-o:
+
+--E olhe, não sei se me fica mal dizer-lh'o, mas a rapariga quer-lhe
+devéras, João Eduardo.
+
+O coração do escrevente teve uma palpitação commovida.
+
+--E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ella... E lá
+do artigo que me importa a mim!
+
+Então a S. Joanneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma
+alegria para ella! Ella sempre o dissera, como rapaz de bem, não havia
+outro na cidade de Leiria!
+
+--Vossê sabe, quero-lhe como filho!
+
+O escrevente enterneceu-se:
+
+--Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo...
+
+E erguendo-se, com uma solemnidade engraçada:
+
+--Snr.^a D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...
+
+Ella riu-se--e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa,
+filialmente.
+
+--E falle á noite á Ameliasinha, disse ao sahir. Eu venho ámanhã, e
+felicidade não ha de faltar...
+
+--Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a S. Joanneira retomando a sua
+costura, com um suspiro de muito allivio.
+
+Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal, a S. Joanneira, que estava
+pondo a mesa, disse-lhe:
+
+--Esteve ahi o João Eduardo...
+
+--Ah!...
+
+--Ahi esteve a fallar, coitado...
+
+Amelia, calada, dobrava a sua manta de lã.
+
+--Ahi esteve a queixar-se... continuou a mãi.
+
+--Mas de quê? perguntou ella muito vermelha.
+
+--Ora de quê! Que se fallava muito na cidade do artigo do _Districto_;
+que se perguntava a quem alludia o periodico com as _donzellas
+inexperientes_, e que a resposta era: «Quem ha de ser? a Amelia da S.
+Joanneira, da rua da Misericordia!» O pobre João diz que tem andado tão
+desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a fallar-te... Emfim...
+
+--Mas que hei de eu fazer, minha mãi? exclamou Amelia com os olhos
+subitamente cheios de lagrimas áquellas palavras que cahiam sobre os
+seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.
+
+--Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que quizeres, filha. Eu bem
+sei que são calumnias! Mas tu sabes o que são linguas do mundo... O que
+te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periodico. Que era isso
+que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o somno... Mas não, diz que não
+lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por
+que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda
+essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por elle, bem
+sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...
+
+--Vai ter o emprego!?
+
+--Pois foi o que elle me veio dizer tambem... Esteve com o doutor
+Godinho, diz que lá para o fim do mez está empregado... Emfim tu fazes o
+que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te
+d'um momento para o outro...
+
+Amelia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os
+pardaes--menos desassocegados, n'aquelle instante, que os seus
+pensamentos.
+
+
+Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a _donzella inexperiente_ a
+que alludia o _Communicado_ era ella, Amelia, e torturava-a o vexame de
+vêr assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ella pensava,
+mordendo o beiço n'uma raiva muda, com os olhos afogados de lagrimas),
+aquillo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com
+risinhos perversos:--«Então a Ameliasita da S. Joanneira mettida com o
+parocho, hein?» Decerto o senhor chantre, tão severo em «coisas de
+mulheres,» reprehenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns
+apertos de mão, ahi estava a sua reputação estragada, estragado o seu
+amor!
+
+Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas
+risinhos a escarnecel-a; no aceno que lhe fez da porta da botica o
+respeitavel Carlos julgou vêr uma seccura reprehensível; á volta
+encontrára o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéo, e
+ao entrar em casa julgava-se desacreditada--esquecendo que o bom Marques
+era tão curto da vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.
+
+--Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as
+mãos apertadas na cabeça. O seu cerebro de devota apenas lhe fornecia
+soluções devotas--entrar n'um recolhimento, fazer uma promessa a Nossa
+Senhora das Dôres «para que a livrasse d'aquelle apuro», ir confessar-se
+ao padre Silverio... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé
+da mãi com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde
+pequena fôra sempre bem infeliz!
+
+A mãi não lhe fallára claramente sobre o _Communicado_; tivera apenas
+palavras ambíguas:
+
+--É uma pouca vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a
+sua consciencia socegada, o mais historias...
+
+Mas Amelia via-lhe bem o desgosto--na face envelhecida, nos tristes
+silencios, nos suspiros repentinos quando fazia meia á janella com a
+luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia «grande
+fallatorio na cidade», de que a mãi, coitada, estava informada pelas
+Gansosos e pela D. Josepha Dias--cuja boca produzia o mexerico mais
+naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!
+
+E então o seu amor pelo parocho, que até ahi, n'aquella reunião de saias
+e batinas da rua da Misericordia se lhe afigurára natural, agora,
+julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a
+respeitar--os Guedes, os Marques, os Vazes,--apparecia-lhe já
+monstruoso: assim as côres d'um retrato pintado á luz d'azeite, e que á
+luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes
+cae em cima a luz do sol. E quasi estimava que o padre Amaro não tivesse
+voltado á rua da Misericordia.
+
+No emtanto, com que anciedade esperava todas as noites o seu toque de
+campainha! Mas elle não vinha; e aquella ausencia, que a sua razão
+julgava prudente, dava ao seu coração o desespero d'uma traição. Na
+quarta-feira á noite não se conteve, disse, córando sobre a sua costura:
+
+--Que será feito do senhor parocho?
+
+O conego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se,
+rosnou:
+
+--Mais que fazer... E escusam de esperar por elle tão cedo!...
+
+E Amelia, que ficára branca como a cal, teve immediatamente a certeza
+que o parocho, aterrado com o escandalo do jornal, aconselhado pelos
+padres timoratos zelosos «do bom nome do clero»--tratava de se descartar
+d'ella! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãi, escondeu o seu
+desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurkas tão
+estrondosas--que o conego, tornando a mexer-se na poltrona, grunhiu:
+
+--Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!
+
+Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo parocho
+flammejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal
+uma allusão n'um jornal o picára, ficára a tremer na sua batina,
+apavorado, não se atrevendo sequer a visital-a--sem se lembrar que
+tambem ella se via diminuida na sua reputação, sem ser satisfeita no seu
+amor! E fôra elle que a tentára com as suas palavrinhas dôces, as suas
+denguices! Infame!... Desejava violentamente apertal-o ao coração--e
+esbofeteal-o. Teve a idéa insensata de ir ao outro dia à rua das Sousas
+atirar-se-lhe aos braços, installar-se-lhe no quarto, fazer um escandalo
+que o obrigasse a fugir da diocese... Porque não? Eram novos, eram
+robustos, poderiam viver longe, n'outra cidade--e a sua imaginação
+começou a repastar-se logo hystericamente nas perspectivas deliciosas
+d'essa existencia, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos!
+Através da sua intensa excitação, aquelle plano parecia-lhe muito
+pratico, muito facil: fugiriam para o Algarve; lá, elle deixaria crescer
+o cabello (que mais bonito seria então!) e ninguem saberia que era um
+padre; poderia ensinar latim, ella coseria para fóra; e viveriam n'uma
+casinha--onde o que mais a attrahia era o leito com as duas
+travesseirinhas chegadas... E a unica difficuldade que via em todo este
+plano radiante era fazer sahir de casa, às escondidas da mãi, o bahú com
+a sua roupa!--Mas quando acordou, essas resoluções morbidas, á luz clara
+do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquillo lhe parecia agora tão
+impraticavel, e elle tão separado d'ella, como se entre a rua da
+Misericordia e a rua das Sousas se erguessem inaccessivelmente todas as
+montanhas da terra. Ai, o senhor parocho abandonára-a, era certo! Não
+queria perder os lucros da sua parochia nem a estima dos seus
+superiores!... Pobre d'ella! Considerou-se então para sempre infeliz e
+desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso o desejo de se
+vingar do padre Amaro.
+
+Foi então que reflectiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a
+publicação do _Communicado_ não apparecera na rua da Misericordia.
+Tambem me volta as costas--pensou com amargura. Mas que lhe importava!
+No meio da afflicção que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do
+amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem
+prazer, era uma contrariedade imperceptivel: uma infelicidade viera que
+lhe arrebatava bruscamente todas as affeições--a que lhe enchia a alma e
+a que apenas lhe acariciava a vaidadesinha: e irritava-a, sim, não
+sentir já o amor do escrevente collado a suas saias, com a docilidade
+d'um cão--mas todas as suas lagrimas eram para o senhor parocho, «que já
+não queria saber d'ella»! Só lamentava a deserção de João Eduardo,
+porque perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer o padre
+Amaro...
+
+
+Por isso n'essa tarde á janella, calada, olhando no telhado defronte
+voarem os pardaes--depois de saber que João Eduardo, certo do emprego,
+viera fallar emfim á mãi,--pensava com satisfação no desespero do
+parocho ao vêr publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as
+palavras muito praticas da S. Joanneira trabalhavam-lhe silenciosamente
+n'alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 reis mensaes; casando,
+reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãi morresse,
+com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com
+decencia, ir mesmo no verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito
+comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador
+civil.
+
+--Que lhe parece, minha mãi?--perguntou bruscamente. Estava decidida
+pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava
+ser persuadida e forçada.
+
+--Eu ia pelo seguro, filha--foi a resposta da S. Joanneira.
+
+--É sempre o melhor--murmurou Amelia entrando no quarto. E sentou-se
+muito triste aos pés da cama, porque a melancolia que lhe dava o
+crepusculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade «dos seus bons
+tempos com o senhor parocho».
+
+N'essa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S.
+Joanneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito
+somnolenta, a cada momento cabeceava com a meia cahida no regaço. Amelia
+então pousava a costura, e com o cotovêlo sobre a mesa, fazendo girar o
+_abat-jour_ verde do candieiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo
+era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido tão estimado na
+pequena burguezia--não era feio e tinha um emprego; decerto o
+offerecimento da sua mão, apesar das infamias do jornal, não lhe
+parecia, como a mãi dissera, «um rasgo de mão cheia»; mas a sua
+dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia
+dois annos que o pobre João gostava d'ella... Começou então
+laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle lhe agradava--o seu ar sério,
+os seus dentes muito brancos, a sua roupa aceada.
+
+Fóra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças,
+dava-lhe appetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o
+pequerrucho a dormir no berço--porque seria um rapaz, chamar-se-hia
+Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro!... Depois
+de casada, decerto, tornaria a encontrar o senhor padre Amaro... E então
+uma idéa atravessou todo o seu sêr, fêl-a erguer bruscamente, ir por
+instincto procurar a escuridão da janella para occultar a vermelhidão do
+rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéa
+implacavelmente apoderára-se d'ella como um braço muito forte que a
+suffocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o
+despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da_sua alma, rompeu,
+inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome
+d'Amaro: desejou avidamente os seus beijos--oh! adorava-o! E tudo tinha
+acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre d'ella!... Então á
+janella, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.
+
+Ao chá a S. Joanneira disse-lhe, de repente:
+
+-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser já... Era começar o enxoval,
+e se fosse possivel casar-te para o fim do mez.
+
+Ella não respondeu--mas a sua imaginação alvoroçou-se áquellas palavras.
+Casada d'ahi a um mez, ella! Apesar de João Eduardo lhe ser
+indifferente, a idéa d'aquelle rapaz, novo e apaixonado, que ia viver
+com ella, dormir com ella, deu uma perturbação a todo o seu sêr.
+
+E quando a mãi ia descer ao quarto disse-lhe:
+
+--Que lhe parece, minha mãi? Eu está-me a custar entrar em explicações
+com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...
+
+--Tambem acho, filha, escreve-lhe... A _Ruça_ leva a carta pela manhã...
+Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.
+
+Amelia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta.
+Dizia:
+
+
+ «Snr. João Eduardo,
+
+«A mamã cá me pôz ao facto da conversação que teve comsigo. E se a sua
+affeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou
+pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus
+sentimentos. E a respeito d'enxoval e papeis, ámanhã se fallará, pois
+que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que
+tudo seja para nossa felicidade, como espero ha de ser, com a ajuda de
+Deus. A mamã recommenda-se e eu sou
+
+ a que muito lhe quer,
+
+ _«Amelia Caminha»_.
+
+
+Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante
+d'ella deram-lhe o desejo d'escrever ao padre Amaro. Mas o quê?
+Confessar-lhe o seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma tinta, com
+que aceitava por marido o _outro_?... Accusal-o da sua cobardia, mostrar
+o seu desgosto--era humilhar-se! E, apesar de não ter motivo para lhe
+escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras _«Meu
+adorado Amaro...»_ Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar
+a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silencio, para sempre!...
+Separarem-se porquê?--pensou. Depois de casada podia bem vêr o senhor
+padre Amaro. E a mesma idéa voltava, subtilmente, mas n'uma fórma tão
+honesta agora, que a não repellia: decerto, o senhor padre Amaro podia
+ser o seu confessor; era em toda a christandade a pessoa que melhor
+guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciencia; haveria então
+entre elles uma troca deliciosa e constante de confidencias, de dôces
+admoestações; todos os sabbados iria receber ao confessionario, na luz
+dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e
+aquillo seria casto, muito picante, e para gloria de Deus.
+
+Sentiu-se quasi satisfeita com a impressão, que não definia bem, d'uma
+existencia em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma
+gozaria os encantos d'uma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por
+fim... E d'ahi a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na _sua_
+casa, com o _seu_ marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas,
+no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor
+parocho.
+
+Ao outro dia a _Ruça_ levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as
+duas senhoras, costurando á janella, fallaram do casamento. Amelia não
+se queria separar da mãi, e, como a casa tinha accommodações, os noivos
+viveriam no primeiro andar, e a S. Joanneira dormiria no quarto em cima;
+decerto o senhor conego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua
+de mel para a fazenda da D. Maria. E Amelia áquellas perspectivas
+felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãi que, de luneta na
+ponta do nariz, a admirava babosa.
+
+Ás Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo no seu quarto a rezar a
+sua corôa, e deixou Amelia só «para se entender com o rapaz».--D'ahi a
+pouco, com effeito, João Eduardo bateu á campainha. Vinha muito nervoso,
+de luvas pretas, enfrascado em agua de colonia. Quando chegou á porta da
+sala de jantar não havia luz, e a bonita fórma d'Amelia destacava de pé,
+junto á claridade da vidraça. Elle pôz o chale-manta a um canto como
+costumava, e vindo para ella que ficára immovel, disse-lhe, esfregando
+muito as mãos:
+
+--Lá recebi a cartinha, menina Amelia...
+
+--Eu mandei-a pela _Ruça_ logo pela manhã para o pilhar em casa, disse
+ella immediatamente com as faces a arder.
+
+--Eu ia para o cartorio, até já ia na escada... Haviam de ser nove
+horas...
+
+--Haviam de ser... disse ella.
+
+Calaram-se, muito perturbados. Elle então tomou-lhe delicadamente os
+pulsos, e baixo:
+
+--Então sempre quer?
+
+--Quero, murmurou Amelia.
+
+--E o mais depressa possivel, hein?
+
+--Pois sim...
+
+Elle suspirou, muito feliz.
+
+--Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem! dizia. E
+as suas mãos, com pressões ternas, iam-se apoderando dos braços d'ella,
+dos pulsos aos cotovêlos.
+
+--A mamã diz que podemos viver juntos, disse ella, esforçando-se por
+fallar tranquillamente.
+
+--Está claro, e eu vou mandar fazer lençoes, acudiu elle, todo alterado.
+
+Attrahiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os labios; ella teve um
+soluçosinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda
+languida.
+
+--Oh, filha! murmurava o escrevente.
+
+Mas os sapatos da mãi rangeram na escada, e Amelia foi vivamente para o
+aparador accender o candieiro.
+
+A S. Joanneira parou á porta; e para dar a sua primeira approvação
+maternal, disse, com bonhomia:
+
+--Então vossês estão aqui ás escuras, filhos?
+
+
+Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro o casamento d'Amelia,
+uma manhã, na Sé. Fallou no «a proposito do enlace», e acrescentou:
+
+--Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a
+pobre velha...
+
+--Está claro, está claro...--murmurou Amaro que se fizera muito branco.
+
+O conego pigarreou grosso, e ajuntou:
+
+--E vossê agora appareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria
+do jornal isso pertence á historia... O que lá vai, lá vai!
+
+--Está claro, está claro...--rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa,
+sahiu da igreja.
+
+Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. Á
+esquina da viella das Sousas quasi esbarrou com Natario, que o agarrou
+logo pela manga, para lhe soprar ao ouvido:
+
+--Ainda não sei nada!
+
+--De quê?
+
+--Do _liberal_, do _Communicado_. Mas trabalho, trabalho!
+
+Amaro, que anciava por desabafar, disse logo:
+
+--Então ouviu a novidade? O casamento d'Amelia... Que lhe parece?
+
+--Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego...
+Foi o doutor Godinho... É outro que tal!... Veja vossê esta corja: o
+doutor Godinho no jornal ás bulhas com o governo civil, e o governo
+civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho... Vá lá
+entendel-os! Isto é um paiz de biltres!
+
+--Diz que grande alegrão na casa da S. Joanneira!--disse o parocho, com
+um azedume negro.
+
+--Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo
+para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o _liberal_ e
+escachal-o! Não posso vêr esta gente que leva a chicotada, coça-se, e
+curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as!--E, com uma contracção de
+rancor que lhe curvou os dedos em garra e lhe encolheu o peito magro.
+disse por entre os dentes cerrados:--Eu, quando odeio, odeio bem!
+
+Esteve um momento calado, gozando o sabôr do seu fel.
+
+--Vossê se fôr á rua da Misericordia dê lá os parabens a essa
+gente...--E acrescentou com os olhinhos em Amaro:--O palerma do
+escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!
+
+--Até á vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.
+
+Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera o _Communicado_, o
+padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preoccupára com
+as consequências--«consequencias fataes, santo Deus!»--que lhe podia
+trazer o escandalo. Hein! se pela cidade se espalhasse que era elle o
+_padre ajanotado_ que o _liberal_ apostrophava! Viveu dois dias
+aterrado, tremendo de vêr apparecer o padre Saldanha, com a sua cara
+ameninada e voz melliflua, a dizer-lhe «que sua excellencia o senhor
+chantre reclamava a sua presença»! Passava já o tempo preparando
+explicações, respostas habeis, lisonjas a sua excellencia.--Mas quando
+viu que, apesar da violencia do artigo, sua excellencia parecia disposto
+«a fazer a vista grossa», occupou-se então, mais tranquillo, dos
+interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o
+astucioso; e decidiu não voltar algum tempo á rua da Misericordia.
+
+--Deixar passar o aguaceiro, pensou.
+
+Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o artigo estivesse
+esquecido, appareceria de novo em casa da S. Joanneira: deixaria vêr bem
+á rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as
+conversasinhas baixas, os logarzinhos chegados ao quino; depois, pela D.
+Maria da Assumpção, pela D. Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse o
+padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam então entender-se, no
+segredo do confessionario: combinariam uma conducta discreta, encontros
+cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquelle amor assim
+conduzido, com prudenciasinha, não teria o perigo de apparecer uma manhã
+annunciado no periodico! E regosijava-se já da habilidade d'esta
+combinação, quando lhe vinha o grande choque--casava-se a rapariga!
+
+Depois dos primeiros desesperos, desabafados em patadas no soalho e
+blasphemias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz
+serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquella paixão?
+Ao escandalo. E assim, casada ella, cada um entrava no seu destino
+legitimo e sensato--ella na sua familia, elle na sua parochia. Depois,
+quando se encontrassem, um comprimento amavel; e elle poderia passear a
+cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos ápartes da Arcada, das
+insinuações da gazeta, das severidades de sua excellencia e das
+picadinhas da consciencia! E a sua vida seria feliz.--Não, por Deus! a
+sua vida não poderia ser feliz sem ella! Tirado á sua existencia aquelle
+interesse das visitas à rua da Misericordia, os apertosinhos de mão, a
+esperança de delicias melhores--que lhe restava a elle? Vegetar, como um
+dos tortolhos nos cantos humidos do adro da Sé! E ella, ella que o
+entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as
+costas mal lhe apparecia outro, bom para marido, com 25$000 reis por
+mez! Todos aquelles suspiros, aquellas mudanças de côr--chalaça! Mangára
+com o senhor parocho!...
+
+O que a odiava!--menos que o outro porém, o outro que triumphava porque
+era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode,
+um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação
+rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a
+da igreja triumphantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E
+a estas idéas dava patadas furiosas no soalho--que assustavam a Vicencia
+na cozinha.
+
+Depois procurava socegar, retomar a direcção das suas faculdades,
+applical-as todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava
+então o antigo desespero de não viver no tempo da inquisição, e com uma
+denuncia de irreligião ou de feiticeria, mandal-os ambos para um
+carcere. Ah! n'esse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores
+liberaes, tinha de vêr aquelle miseravel escrevente a seis vintens por
+dia apoderar-se-lhe da rapariga--e elle, sacerdote instruido, que podia
+ser bispo, que podia ser Papa, tinha de vergar os hombros e ruminar
+solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum
+valor--malditos fossem elles! Quereria vêl-os cheios de filhos, sem pão
+na prateleira, com o ultimo cobertor empenhado, resequidos de fome,
+injuriando-se,--e elle a rir-se, elle a regalar-se!...
+
+
+Na segunda-feira não se conteve, foi á rua da Misericordia. A S.
+Joanneira estava em baixo na saleta com o conego Dias. E apenas viu
+Amaro:
+
+--Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava a fallar em v. s.^a! Já
+estranhava não o vermos, agora que ha alegria em casa.
+
+--Já sei, já sei, murmurou Amaro pallido.
+
+--Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente. Deus os faça
+felizes e lhes dê poucos filhos, que a carne está cara.
+
+Amaro sorriu--escutando em cima o piano.
+
+Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa dos _Dois Mundos_; e João
+Eduardo, muito chegado a ella, voltava as folhas da musica.
+
+--Quem entrou, _Ruça_? gritou ella sentindo os passos da rapariga nas
+escadas.
+
+--O senhor padre Amaro.
+
+Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto--e o coração batia-lhe tão forte,
+que ficou um momento com os dedos immoveis sobre o teclado.
+
+--Não se precisava cá do senhor padre Amaro, rosnou João Eduardo por
+entre dentes.
+
+Amelia mordeu o beiço. Teve odio ao escrevente: n'um instante
+repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua figura de pé junto d'ella:
+pensou com deleite como depois de casada (já que tinha de casar) se
+confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia
+n'aquelle momento escrupulos; e quasi desejava que o escrevente lhe
+visse no rosto a paixão que a revolvia.
+
+--Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem
+me deixa os braços livres para tocar!
+
+Terminou bruscamente a valsa dos _Dois Mundos_, começou a cantar o
+_Adeus_:
+
+
+Ai! adeus! acabaram-se os dias
+Que ditosa vivi a teu lado!
+
+
+A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente,--dirigindo o canto,
+através do soalho, ao coração do parocho, em baixo.
+
+E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé,
+devorava todos os tons da voz d'ella--emquanto a S. Joanneira
+tagarellava, contando as peças de algodão que comprára para lençoes, os
+arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem
+juntos...
+
+--Uma felicidade por ahi além, interrompeu o conego erguendo-se
+pesadamente. E vamos lá para cima, que isto de noivos não se querem
+sós...
+
+--Ah, lá n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me n'elle, que é homem
+de bem ás direitas.
+
+Amaro, ao subir a escada, tremia--e, mal entrou na sala, o rosto
+d'Amelia, alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como
+se as vesperas do noivado a tivessem embellezado e a separação lh'a
+tornasse mais appetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro
+ao escrevente, disse baixo, sem os olhar:
+
+--Os meus parabens... Os meus parabens...
+
+Voltou as costas, e foi conversar com o conego que se enterrára na sua
+poltrona queixando-se d'enfastiamento e reclamando o chá.
+
+Amelia ficára como abstracta, correndo inconscientemente os dedos pelo
+teclado. Aquelle modo do padre Amaro confirmava a sua idéa: queria a
+todo o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia «como se nada tivesse
+havido», o villão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor
+chantre, do jornal, da Arcada, de tudo,--sacudia-a da sua imaginação, do
+seu coração, da sua vida, como se sacode um insecto que tem peçonha!...
+Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o
+escrevente; roçava-se-lhe pelo hombro, rendida, com risinhos,
+segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos;
+depois ella beliscou-o, elle deu um gritinho exagerado.--E a S.
+Joanneira contemplava-os babosa, emquanto o conego dormitava já, e o
+padre Amaro, abandonado a um canto como outr'ora o escrevente, ia
+folheando o velho album.
+
+Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os todos: passos
+rapidos galgaram a escada, pararam em baixo na saleta: e a _Ruça_
+appareceu dizendo «que era o senhor padre Natario, que não desejava
+subir, e queria dar uma palavra ao senhor conego».
+
+--Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego, arrancando-se com custo
+ao fundo confortavel da poltrona.
+
+Amelia fechou logo o piano--e a S. Joanneira pousando a meia foi em
+bicos de pés escutar ao alto da escada: fóra ventava forte, e para os
+lados da Praça afastava-se o toque de retreta.
+
+Emfim a voz do conego chamou, de baixo, da porta da saleta:
+
+--Ó Amaro!
+
+--Padre-Mestre?
+
+--Venha cá, homem. E diga á senhora que póde vir tambem.
+
+A S. Joanneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre
+Natario emfim descobrira o _liberal_!
+
+A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e
+na parede, n'um velho painel muito escuro--que ultimamente o conego dera
+á S. Joanneira--destacava uma face livida de monge e um osso frontal de
+caveira.
+
+O conego Dias accommodára-se ao canto do canapé, sorvendo
+reflectidamente a pitada; e Natario, que se agitava pela sala, exclamou
+logo:
+
+--Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quiz subir
+porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para
+nós. Estava a começar a dizer ao collega Dias... Tive lá em casa o padre
+Saldanha. Temol-as boas!
+
+O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já
+inquieto, perguntou:
+
+--Coisa que nos toca?
+
+Natario começou com solemnidade erguendo alto o braço:
+
+--_Primo_: o collega Brito mudado da freguezia d'Amor para ao pé
+d'Alcobaça, para a serra, para o inferno...
+
+--Que me diz!? exclamou a S. Joanneira.
+
+--Obras do _liberal_, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe
+tempo a meditar o _Communicado_ do _Districto_, mas por fim sahiu-se! O
+pobre Brito lá vai esfogueteado!...
+
+--Sempre é o que se dizia da mulher do regedor... murmurou a boa
+senhora.
+
+--Ólá! interrompeu severamente o conego. Então, senhora, então! Isto
+aqui não é casa de murmuração!... Siga com o seu recado, collega
+Natario.
+
+--_Secundo_, continuou Natario: é o que eu ia dizer ao collega Dias... O
+senhor chantre, em vista do _Communicado_ e d'outros ataques da
+imprensa, está decidido a «reformar os costumes do clero diocesano»,
+palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam summamente os
+conciliabulos de ecclesiasticos e de senhoras... Que quer saber o que é
+isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Emfim,
+palavras textuaes de sua excellencia--_está decidido a limpar as
+cavalhariças d'Augias_!...--o que quer dizer em bom portuguez, minha
+senhora, que vai andar tudo n'uma roda-viva.
+
+Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado no meio da saleta com
+as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:
+
+--Que lhes parece esta á ultima hora, hein?
+
+O conego ergueu-se pachorrentamente:
+
+--Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha de escapar alguem... E
+a senhora não se fique ahi com essa cara de _Mater-dolorosa_, e mande
+servir o chá, que é o importante.
+
+--Eu lá disse ao padre Saldanha...--começou Natario perorando.
+
+Mas o conego interrompeu-o com força:
+
+--O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós ás torradinhas, e lá em
+cima, diante dos rapazes, caluda.
+
+O chá foi silencioso. O conego, a cada bocado de torrada, respirava
+affrontado, franzia muito o sobr'olho; a S. Joanneira, depois de fallar
+da D. Maria da Assumpção que estava mal do catarrho, ficou toda murcha,
+com a testa sobre o punho; Natario, a grandes passadas, fazia uma
+ventania na sala com as abas do casacão.
+
+--E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando subitamente diante
+d'Amelia e do escrevente; que tomavam o chá sobre o piano.
+
+--Um dia cedo, respondeu ella sorrindo.
+
+Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu _cebolão_:
+
+--São horas de me ir chegando á rua das Sousas, minhas senhoras, disse
+com uma voz desalentada.
+
+Mas a S. Joanneira não consentiu. Credo, estavam todos mônos como se
+estivessem de pêzames!... Que fizessem um quino para espairecer...--O
+conego porém, sahindo do seu torpor, disse com severidade:
+
+--Está a senhora muito enganada, ninguem está môno. Não ha razões senão
+para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?
+
+João Eduardo mexeu-se, sorriu:
+
+--Eu cá por mim, senhor conego, não tenho razão senão para estar feliz.
+
+--Pois está claro, disse o conego. E agora Deus lhes dê boas noites a
+todos, que eu vou _quinar_ para valle de lençoes. E o Amaro tambem.
+
+Amaro foi apertar silenciosamente a mão d'Amelia,--e os tres padres
+desceram calados.
+
+Na saleta a vela ainda ardia com um murrão. O conego entrou a buscar o
+seu guardachuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a
+porta, disse-lhes baixo:
+
+--Eu, collegas, não quiz assustar ha pouco a pobre senhora, mas essas
+coisas do chantre, esses fallatorios... É o diabo!
+
+--É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natario, abafando a voz.
+
+--É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.
+
+Estavam de pé no meio da saleta. Fóra o vento uivava: a luz da vela
+agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o
+osso frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a _Chiquita_.
+
+Amaro recordava outras noites felizes em que elle, triumphante e sem
+cuidados, fazia rir as senhoras,--e Amelia, gorgeando _Ai chiquita que
+si_, revirava-lhe olhares rendidos...
+
+--Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho que comer e beber, não me
+importa... Mas é necessario manter a honra da classe!
+
+--E não carece duvida, acrescentou Natario, que se ha outro artigo e
+mais fallatorios, estala com certeza o raio...
+
+--Olha o pobre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!...
+
+Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do
+escrevente.
+
+Amaro rosnou com rancor:
+
+--Grande galhofa, lá em cima!...
+
+Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natario
+d'uma chuva miudinha.
+
+--Olha que noite! exclamou furioso.
+
+Só o conego tinha guardachuva; e abrindo-o devagar:
+
+--Pois meninos, não ha que vêr, estamos em calças pardas...
+
+Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do piano, nos
+acompanhamentos da _Chiquita_. O conego soprava, agarrando fortemente o
+guardachuva contra o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava os
+dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça cahida, n'um
+abatimento de derrota; e emquanto os tres padres, assim agachados sob o
+guardachuva do conego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por
+traz a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!
+
+
+
+
+XII
+
+
+D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o
+padre Natario e o doutor Godinho conversando em harmonia, á porta da
+loja de ferragens do Guedes. O recebedor,--que era escutado com
+deferencia em questões de politica estrangeira--observou-os com attenção
+através da porta vidrada da pharmacia, e declarou com um tom profundo
+«que não se admiraria mais se visse Victor Manoel e Pio IX passearem de
+braço dado»!
+
+O cirurgião da camara porém não estranhava aquelle «commercio
+d'amizade».--Segundo elle o ultimo artigo da _Voz do Districto_,
+evidentemente escripto pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo,
+cheio de logica, atulhado d'erudição!) mostrava que a gente da Maia se
+queria ir aproximando da gente da Misericordia. O doutor Godinho (na
+expressão do cirurgião da camara) fazia tagatés ao governo civil e ao
+clero diocesano: a ultima phrase do artigo era significativa--«não
+seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente
+a sua divina missão!»
+
+A verdade era (como observou um individuo obeso, o amigo Pimenta) que,
+se não havia ainda paz, já havia negociações--porque na vespera elle
+vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre
+Natario sahindo de manhã muito cedo da redacção da _Voz do Districto_!
+
+--Oh, amigo Pimenta, essa é fabricada!
+
+O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu um puxão grave ao cós das
+calças, e ia indignar-se--quando o recebedor acudiu:
+
+--Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu n'outro dia vi
+o patife do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natario. E que o
+Natario traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gósto d'observar as
+pessoas... Pois senhores, o Natario, que nunca apparecia aqui na Arcada,
+agora vejo-o sempre ahi com o nariz pelas lojas... Depois a grande
+amizade com o padre Silverio... Hão de reparar que são ambos certos ahi
+na Praça ás Ave-Marias... E é negocio com a gente do doutor Godinho... O
+padre Silverio é o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam
+com as outras!
+
+Era muito commentada, com effeito, a nova amizade do padre Natario com o
+padre Silverio. Havia cinco annos tinha occorrido na sacristia da Sé,
+entre os dois ecclesiasticos, uma questão escandalosa: Natario correra
+até de guardachuva erguido para o padre Silverio, quando o bom conego
+Sarmento, banhado em lagrimas, o reteve pela batina, gritando:--«Oh,
+collega, que é a perdição da religião»! Desde então Natario e Silverio
+não fallavam--com desgosto de Silverio, um bonacheirão, d'uma obesidade
+hydropica, que, segundo diziam as suas confessadas, «era todo affeição e
+perdão». Mas Natario, sêcco e pequeno, tinha tenacidade no rancor.
+Quando o snr. chantre Valladares começou a governar o bispado,
+chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloquencia a necessidade «de
+manter a paz na Igreja», de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e
+Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave para os braços do padre
+Silverio--que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do
+estomago, murmurando todo commovido:
+
+--Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
+
+Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o
+papelão, as dobras que tomava, conservou com o padre Silverio um tom
+amuado: na Sé ou na rua, resvalando junto d'elle com um geito brusco do
+pescoço, rosnava apenas: _Senhor padre Silverio, ás ordens!_
+
+Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natario fizera
+repentinamente uma visita ao padre Silverio--sob pretexto que «o pilhàra
+alli uma pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante».
+
+--E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dôr
+d'ouvidos, que uma das minhas sobrinhas, coitada, está como doida,
+collega!
+
+O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda n'essa manhã vira as duas
+sobrinhas de Natario sãs e satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a
+escrever a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos estudos de
+medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:
+
+--Ora que alegria, collega, vêl-o aqui de novo n'esta sua casa!
+
+A reconciliação foi tão publica--que o cunhado do senhor barão de
+Via-Clara, bacharel de grandes dotes poeticos, lhe dedicou uma
+d'aquellas satyras que elle intitulava _Ferrões_, que iam manuscriptas
+de casa em casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamára a
+composição, tendo presente decerto a figura dos dois sacerdotes: _Famosa
+reconciliação do Macaco e da Baleia!_ Era com effeito frequente, agora,
+vêr a pequena figura de Natario gesticulando e saltitando ao lado do
+vulto enorme e pachorrento do padre Silverio.
+
+Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no largo
+da Sé) gozaram muito, observando da sacada os dois padres que passeavam
+no terraço, ao tepido sol de maio. O senhor administrador,--que passáva
+as horas da repartição namorando com um binoculo, por traz da vidraça do
+seu gabinete, a esposa do Telles alfaiate--começára subitamente a dar
+gargalhadas á janella: o escrivão Borges correu logo, de penna na mão, á
+varanda, a vêr de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar,
+chamou á pressa o Arthur Couceiro que estava copiando, para estudar á
+guitarra, uma canção da _Grinalda_: o amanuense Pires, severo e digno,
+aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de sêda, com
+horror ás correntes d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam os
+dois padres, que tinham parado á esquina da igreja. Natario parecia
+excitado: procurava decerto persuadir, abalar o padre Silverio; e em
+bicos de pés, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente as mãos
+muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o
+ao comprido do terraço lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto
+largo e desolado, como attestando a perdição possivel d'elle, da Sé ao
+lado, da cidade, do universo em redor; o bom Silverio, com os olhos
+muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas Natario
+exaltava-se: dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo
+ao vasto estomago de Silverio, batia patadas furiosas nas lages polidas;
+e de repente, de braços pendentes, mostrava-se acabrunhado. Então o bom
+Silverio fallou um momento com a mão espalmada sobre o peito;
+immediatamente, a face biliosa de Natario illuminou-se; pulou, bateu no
+hombro do collega palmadinhas de muito jubilo,--e os dois sacerdotes
+entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.
+
+--Que patuscos! disse o escrivão Borges, que detestava sotainas.
+
+--Aquillo tudo é a respeito do jornal, disse Arthur Couceiro, vindo
+retomar o seu trabalho lyrico. O Natario não socega emquanto não souber
+quem escreveu o _Communicado_; disse-o elle em casa da S. Joanneira... E
+a coisa pelo Silverio vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.
+
+--Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o
+officio que compunha, remettendo para Alcobaça um preso--que ao fundo da
+saleta, entre dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e
+embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.
+
+
+D'ahi a dias tinha havido na Sé o Officio de corpo presente pelo rico
+proprietario Moraes, que morrera d'um aneurisma, e a quem sua esposa (em
+penitencia decerto dos desgostos que lhe dera com a sua affeição
+desordenada por tenentes d'infanteria) estava fazendo, como se disse,
+«exequias de pessoa real».--Amaro desvestira-se, e na sacristia, á luz
+d'um velho candieiro de latão, escrevia assentos atrazados, quando a
+porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natario disse:
+
+--Ó Amaro, vossê está ahi?
+
+--Que temos?
+
+O padre Natario fechou a porta, e atirando os braços para o ar:
+
+--Grande novidade, é o escrevente!
+
+--Que escrevente?
+
+--O João Eduardo! É elle! É o _liberal_! Foi elle que escreveu o
+_Communicado_!
+
+--Que me diz vossê!?--fez Amaro attonito.
+
+--Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto pela letra d'elle. O
+que se chama _vêr_! Cinco tiras de papel!
+
+Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natario.
+
+--Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de
+papel! E quer escrever outro! O senhor João Eduardo! O nosso rico amigo
+senhor João Eduardo!
+
+--Vossê está certo d'isso?
+
+--Se estou certo!... Estou a dizer-lhe que vi, homem!
+
+--E como soube vossê, Natario?
+
+Natario dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos hombros, arrastando as
+palavras:
+
+--Ah, collega, lá isso... Os _comos_ e os _porquês_... Vossê
+comprehende... _Sigillus magnus_!
+
+E com uma voz aguda de triumpho, a largos passos pela sacristia:
+
+--Mas ainda isto não é nada! O senhor Eduardo que nós viamos alli na
+casa da S. Joanneira, tão bom mocinho, é um patife antigo! É o intimo do
+Agostinho, o bandido da _Voz do Districto_! Está mettido na redacção até
+altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser
+atheu... Ha seis annos que se não confessa... Chama-nos a _canalha
+canonica_... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!
+
+Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente, com as mãos
+tremulas, papeis no gavetão da escrivaninha.
+
+--E agora?... perguntou.
+
+--Agora? exclamou Natario. Agora é esmagal-o!
+
+Amaro fechou o gavetão, e muito nervoso, passando o lenço pelos labios
+seccos:
+
+--Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com
+um homem d'esses... Um perdido!
+
+Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silencio, o velho
+relogio da sacristia punha o seu _tic-tac_ plangente. Natario tirou da
+algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em
+Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:
+
+--Desmanchar-lhe o casamentosinho, hein?
+
+--Vossê acha? perguntou sôffregamente Amaro.
+
+--Caro collega, é uma questão de consciencia... Para mim era uma questão
+de dever! Não se póde deixar casar a pobre pequena com um bréjeiro, um
+pedreiro-livre, um atheu...
+
+--Com effeito! com effeito! murmurava Amaro.
+
+--Vem a calhar, hein? fez Natario; e sorveu com gozo a pitada.
+
+Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar a igreja; vinha
+perguntar se suas senhorias se demoravam.
+
+--Um instante, snr. Domingos.
+
+E, emquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do
+pateo, os dois padres muito chegados fallavam baixo.
+
+--Vossê vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario. Não, escute, é melhor
+que lhe falle o Dias; o Dias é que deve fallar á S. Joanneira. Vamos
+pelo seguro. Vossê falle á pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha
+fóra de casa!--E ao ouvido de Amaro:--Diga á rapariga que elle vive ahi
+de casa e pucarinho com uma desavergonhada!
+
+--Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!
+
+--Ha de ser. Elle é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a
+pequena...
+
+E foram descendo a igreja atraz do sacristão, que fazia tilintar o seu
+mólho de chaves, pigarreando grosso.
+
+Nas capellas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao
+centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso murrão, estava a eça,
+com o largo pano de velludilho cobrindo o caixão do Moraes, recahindo em
+pregas franjadas; á cabeceira tinha uma larga corôa de perpetuas; e aos
+pés pendia, d'um grande laço de fita escarlate, o seu habito de
+cavalleiro de Christo.
+
+O padre Natario então parou; e tomando o braço d'Amaro com satisfação:
+
+--E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...
+
+--O quê?
+
+--Cortar-lhe os víveres!
+
+--Cortar-lhe os víveres!?
+
+--O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro
+amanuense, hein? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes
+Ferral que é dos meus, homem de boas idéas, vai pôl-o fóra do
+cartorio... E que escreva então _Communicados_!
+
+Amaro teve horror áquella intriga rancorosa:
+
+--Deus me perdôe, Natario, mas isso é perder o rapaz...
+
+--Emquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o
+largo, padre Amaro, não o largo!
+
+--Oh, Natario! oh, collega! Isso é de pouca caridade... Isso não é de
+christão... E então aqui que Deus está a ouvil-o...
+
+--Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é
+a resmungar Padre-nossos. Para impíos não ha caridade! A inquisição
+atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacal-os pela fome. Tudo é
+permittido a quem serve uma causa santa... Que se não mettesse commigo!
+
+Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o caixão do morto, e
+apontando com o guarda-chuva:
+
+--Quem está alli?
+
+--O Moraes, disse Amaro.
+
+--O gordo, picado das bexigas?
+
+--Sim.
+
+--Boa bêsta!
+
+E depois d'um silencio:
+
+--Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei por isso, occupado cá na
+minha campanha... E a viuva fica rica. É generosa, é presenteadora...
+Quem a confessa é o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas de
+Leiria, aquelle elephante!
+
+Sahíram. A botica do Carlos estava fechada, o céo muito escuro.
+
+No largo, Natario parou:
+
+--Resumindo: o Dias falla á S. Joanneira, e vossê falla á pequena. Eu
+por mim me entenderei com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral.
+Encarreguem-se vossês do casamento, que eu me encarrego do emprego!--E
+batendo no hombro do parocho jovialmente:--É o que se póde dizer
+atacal-o pelo coração e pelo estomago! E adeusinho, que as pequenas
+estão á espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um
+defluxo!... É fraquita, aquella rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu
+em a vendo murcha até perco logo o somno. Que quer vossê? Quando se tem
+bom coração...--Até ámanhã, Amaro.
+
+--Até ámanhã, Natario.
+
+E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé.
+
+
+Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo, mas muito decidido, muito
+feliz: tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos
+graves pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade
+estimada:
+
+--É do meu dever! É do meu dever!
+
+Como christão, como parocho, como amigo da S. Joanneira o _seu dever_
+era procurar Amelia, e, com simplicidade, sem paixão interessada,
+contar-lhe que fôra João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o
+_Communicado_.
+
+Foi elle! Diffamou os íntimos da casa, sacerdotes de sciencia e de
+posição; desacreditou-a a ella; passa as noites em deboche na possilga
+do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; ha
+seis annos que se não confessa! Como diz o collega Natario, é uma fera!
+Pobre menina! Não, não podia casar com um homem que lhe impediria a
+_vida perfeita_, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria
+rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direcção salutar, e, como
+diz o santo padre Chrysostomo, «amadureceria a sua alma para o inferno»!
+Elle não era seu pai, nem seu tutor; mas era parocho, era pastor:--e se
+a não subtrahisse áquelle destino heretico pelos seus conselhos graves,
+pela influencia da mãi e das amigas,--seria como aquelle que tem a
+guarda d'um rebanho n'uma herdade, e abre indignamente a cancella ao
+lobo! Não, a Ameliasinha não havia de casar com o _atheu_!
+
+E o seu coração então batia forte sob a effusão d'aquella esperança.
+Não, o outro não a possuiria! Quando viesse a apoderar-se legalmente
+d'aquella cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella
+Ameliasinha,--elle, parocho, lá estava para lhe dizer alto: _Para traz,
+seu canalha! isto aqui é de Deus!_
+
+E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena á salvação! Agora o
+_Communicado_ estava esquecido, o senhor chantre tranquillisado: d'ahi a
+dias poderia voltar sem susto á rua da Misericordia, recomeçar os
+deliciosos serões--apoderar-se de novo d'aquella alma, formal-a para o
+paraiso...
+
+E aquillo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus
+motivos (e dizia-o alto, para se convencer melhor) eram muito rectos,
+muito puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar ao inferno:
+elle não a queria para si, queria-a para Deus!... _Casualmente_, sim, os
+seus interesses de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote.
+Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria igualmente à rua da
+Misericordia, em serviço do céo, desmascarar o snr. João Eduardo,
+diffamador e atheu!
+
+E, socegado por esta argumentação, deitou-se tranquillamente.
+
+Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido com ella: e ia-a
+levando por uma estrada que conduzia ao céo! O diabo perseguia-o; elle
+via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos
+os delicados seios das nuvens. E elle escondia Amelia no seu capote de
+padre, devorando-a por baixo de beijos! Mas a estrada do céo não
+findava.--«Onde é a porta do paraiso?» perguntava elle a anjos de
+cabelleiras d'ouro que passavam, n'um dôce rumor de azas, levando almas
+nos braços. E todos lhe respondiam:--«Na rua da Misericordia, na rua da
+Misericordia numero nove!» Amaro sentia-se perdido: um vasto ether côr
+de leite, penetravel e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o, e elle
+procurava debalde uma taboleta de hospedaria! Por vezes resvalava junto
+d'elle um globo reluzente d'onde sahia o rumor d'uma creação; ou um
+esquadrão d'archanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto espadas
+de fogo, galopavam n'um rhythmo nobre...
+
+Amelia tinha fome, tinha frio. «Paciencia, paciencia, meu amor!»
+dizia-lhe elle. Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que
+tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?» perguntou-lhe
+Amaro, com Amelia conchegada ao peito. A figura disse:--«Eu fui um
+confessor, e sou um santo: os seculos passam, e immutavelmente,
+sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um extase igual!
+Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação
+sacode o meu sêr para sempre immaculado; e immobilisado na
+bemaventurança, sinto a monotonia do céo pesar-me como uma capa de
+bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes
+da terra--ou bracejar, sob as variedades da dôr, nas chammas do
+purgatorio!»
+
+Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em peccar!»--Mas Amelia desfallecia
+fatigada. «Durmamos, meu amor!» E, deitados, viam estrellas fluctuando
+n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Então nuvens
+começaram a dispôr-se em torno d'elles, em pregas de cortinados, dando
+um perfume de _sachets_; Amaro pousou a sua mão sobre o peito d'Amelia:
+um enleio muito dôce enervava-os: enlaçaram-se, os seus labios
+pegavam-se humidos e quentes:--«Oh, Ameliasinha!» murmurava
+elle.--«Amo-te, Amaro, amo-te!» suspirava ella.--Mas de repente as
+nuvens afastaram-se como os cortinados d'um leito; e Amaro viu diante o
+diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca
+n'uma risada muda. Com elle estava outro personagem: era velho como a
+substancia; nos anneis dos seus cabellos vegetavam florestas; a sua
+pupilla tinha a vastidão azul d'um oceano; e nos dedos abertos, com que
+cofiava a barba infindavel, caminhavam, como em estradas, filas de raças
+humanas.--«Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe o diabo retorcendo a
+cauda.--E por traz Amaro via agglomerarem-se legiões de santos e de
+santas. Reconheceu S. Sebastião com as suas settas cravadas; Santa
+Cecilia trazendo na mão o seu orgão; por entre elles sentia balarem os
+rebanhos de S. João; e no meio erguia-se o bom gigante S. Christovão
+apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia
+desenlaçar de Amelia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam
+sobrenaturalmente collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella
+levantadas descobriam os seus joelhos brancos.--«Aqui estão os dois
+sujeitos», dizia o diabo ao velho personagem, «e repare o meu prezado
+amigo, porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena tem bonitas
+pernas!» Santos vetustos alçaram-se sôfregamente em bicos de pés,
+estendendo pescoços onde se viam cicatrizes de martyrios: e as onze mil
+virgens bateram o vôo como pombas espavoridas! Então o personagem,
+esfregando as mãos d'onde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico
+inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor parocho,
+vai-se á rua da Misericordia, arruina-se a felicidade do snr. João
+Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliasinha á mamã, e vem-se
+saciar concupiscencias reprimidas a um cantinho da Eternidade? Eu estou
+velho--está rouca esta voz que outr'ora tão sabiamente discursava pelos
+valles. Mas pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar, seu
+protector, apesar de ser um pilar da Igreja e uma columna da Ordem?
+Pharaó era um grande rei--e eu afoguei-o, e os seus principes captivos,
+os seus thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas dos seus
+escravos! Eu cá sou assim! E se os senhores ecclesiasticos continuarem a
+escandalisar Leiria--eu ainda sei queimar uma cidade como um papel
+inutil, e ainda me resta agua para diluvios!» E voltando-se para dois
+anjos armados de espadas e lanças, o personagem bradou: «Chumbem uma
+grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abysmo numero sete!» E o diabo
+gania: «Ahi estão as consequencias, senhor padre Amaro!» Elle sentiu-se
+arrebatado de sobre o seio d'Amelia por mãos de braza; e ia luctar,
+bradar contra o juiz que o julgava--quando um sol prodigioso que vinha
+nascendo do Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro, com um grito,
+reconheceu o Padre Eterno!
+
+Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava pela janella.
+
+
+N'essa noite João Eduardo, indo da Praça para casa da S. Joanneira,
+ficou assombrado, ao vêr apparecer á outra boca da rua, do lado da Sé, o
+Santissimo em procissão.
+
+E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantéo pela
+cabeça, as tochas faziam destacar opas de paninho escarlate; sob o
+pallio os dourados da estola do parocho reluziam; uma campainha tocava
+adiante, ás vidraças appareciam luzes;--e na noite escura o sino da Sé
+repicava, sem descontinuar.
+
+João Eduardo correu aterrado--e soube logo que era a extrema-unção á
+entrevada.
+
+Tinham posto na escada um candieiro de petroleo sobre uma cadeira. Os
+serventes encostaram á parede da rua os varaes do pallio, e o parocho
+entrou. João Eduardo, muito nervoso, subiu tambem: ia pensando que a
+morte da entrevada, o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a
+presença do parocho e a influencia que elle adquiria n'aquelle momento;
+e foi quasi quezilado que perguntou á _Ruça_ na saleta:
+
+--Então como foi isto?
+
+--Foi a pobre de Christo que esta tarde começou a esmorecer, o senhor
+doutor veio, diz que estava a acabar, e a senhora mandou pelos
+sacramentos.
+
+João Eduardo, então, julgou delicado ir assistir «á ceremonia».
+
+O quarto da velha era junto á cozinha, e tinha n'aquelle momento uma
+solemnidade lugubre.
+
+Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco
+bolinhas de algodão entre duas velas de cera. A cabeça da entrevada,
+toda branca, a sua face côr de cera mal se distinguiam do linho do
+travesseiro; tinha os olhos estupidamente dilatados; e ia apanhando
+incessantemente com um gesto lento a dobra do lençol bordado.
+
+A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas á beira da cama: a snr.^a D.
+Maria da Assumpção (que casualmente entrára, ao voltar da fazenda)
+ficára á porta do quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares,
+murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo, sem ruido, dobrou o joelho junto
+d'ella.
+
+O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada, exhortava-a a que
+se abandonasse á Misericordia divina; mas, vendo que ella não
+comprehendia, ajoelhou, recitou rapidamente o _Misereatur_; e no
+silencio, a sua voz erguendo-se nas syllabas latinas mais agudas, dava
+uma sensação de enterro que enternecia, fazia soluçar as duas senhoras.
+Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando as
+expressões penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as
+mãos--que ha dez annos só se moviam para chegar a escarradeira, e as
+plantas dos pés que ha dez annos só se applicavam a buscar o calor da
+botija. E depois de queimar as bolinhas de algodão humidas de oleo,
+ajoelhou-se, ficou immovel, com os olhos postos no Breviario.
+
+João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do
+piano: agora decerto, durante quatro ou cinco semanas. Amelia não
+tornaria a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no dôce
+progresso do seu amor aquella brusca interrupção da morte e dos seus
+ceremoniaes.
+
+A snr.^a D. Maria entrou então, toda transtornada d'aquella scena--e
+seguida d'Amelia que trazia os olhos muito vermelhos.
+
+--Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que
+quero que me faça um favor, que é acompanhar-me a casa... Estou toda a
+tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus seja dito, não posso
+ver gente na agonia... Que ella, coitadinha, vai-se como um
+passarinho... E peccados não os tem... Olhe, vamos pela Praça que é mais
+perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso ficar... É que
+me dava a dôr... Ai, que desgosto!... Que para ella até é melhor... Pois
+olhem, sinto-me a desfallecer...
+
+Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a baixo, ao quarto da S.
+Joanneira, a reconfortal-a caridosamente com um calix de geropiga.
+
+--Ameliasinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessario para
+alguma coisa...
+
+--Não, obrigada. Ella está por instantes, coitadinha.
+
+--Não te esqueças, filha, recommendou descendo a snr.^a D. Maria da
+Assumpção, põe-lhe as duas velas bentas á cabeceira... Allivia muito na
+agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas, em
+cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!
+
+Á porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço
+de João Eduardo, collou-se toda a elle com terror--um pouco tambem, com
+o accesso de ternura que lhe dava sempre a geropiga.
+
+
+Amaro promettera voltar mais tarde, para «as acompanhar, como amigo,
+n'aquelle transe». E o conego (que chegára, quando a procissão com o
+pallio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado d'esta delicadeza
+do senhor parocho, declarou logo que visto que o collega Amaro vinha
+fazer a noitada, elle ia descansar o corpo porque, Deus bem o sabia,
+aquellas commoções arrazavam-lhe a saude.
+
+--E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma e me visse nos
+mesmos assados...
+
+--Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira, nem diga isso!...--E
+começou a choramingar, muito abalada.
+
+--Pois então boas noites, disse o conego, e nada de affligir. Olhe, a
+pobre creatura, alegria não a tinha: e como não tem peccados não lhe
+importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado, senhora, é
+uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...
+
+Tambem a S. Joanneira não se sentia bem. O choque, logo depois de
+jantar, dera-lhe ameaças de enxaqueca:--e quando Amaro voltou, ás onze,
+Amelia que fôra abrir a porta, disse-lhe, ao subir á sala de jantar:
+
+--O senhor parocho desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada...
+Estava que nem via... Deitou-se, pôz agua sedativa e adormeceu...
+
+--Ah! Deixal-a dormir!
+
+Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede;
+dos seus beiços abertos sahia um gemido muito debil e continuo. Sobre a
+mesa agora, uma grossa vela benta, de murrão negro, erguia uma luz
+triste; e ao canto, transida de medo, a _Ruça_, segundo as
+recommendações da S. Joanneira, ia rezando a corôa.
+
+--O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz
+que ha de gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...
+
+--Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.
+
+Voltaram á sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fóra ventava
+forte. Havia muitas semanas que não se encontravam assim sós. Muito
+embaraçado, Amaro aproximou-se da janella: Amelia encostou-se ao
+aparador.
+
+--Vamos ter uma noite d'agua, disse o parocho.
+
+--E está frio, disse ella, encolhendo-se no chale. Eu tenho estado
+passada de medo...
+
+--Nunca viu morrer ninguem?
+
+--Nunca.
+
+Calaram-se--elle immovel ao pé da janella, ella encostada ao aparador,
+de olhos baixos.
+
+--Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe
+ia dando a presença d'ella áquella hora da noite.
+
+--Na cozinha está a brazeira accêsa, disse Amelia. É melhor irmos para
+lá.
+
+--É melhor.
+
+Foram. Amelia levou o candieiro de latão: e Amaro, indo remexer com as
+tenazes o brazido vermelho, disse:
+
+--Ha que tempo que eu não entro aqui na cozinha!... Ainda tem os vasos
+com os raminhos fóra da janella?
+
+--Ainda, e um craveiro...
+
+Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da brazeira.--Amelia,
+inclinada para o lume, sentia os olhos do padre Amaro devora-la
+silenciosamente. Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer;
+não ousava mover-se, erguer as palpebras, com medo que lhe rompessem as
+lagrimas; mas anciava pelas suas palavras, ou amargas ou dôces...
+
+Ellas vieram emfim, muito graves.
+
+--Menina Amelia, disse, eu não esperava poder assim fallar-lhe a sós.
+Mas as coisas arranjaram-se... É decerto a vontade de Nosso Senhor! E
+depois, como as suas maneiras mudaram tanto...
+
+Ella voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho tremulo:
+
+--Mas bem sabe porquê! exclamou quasi chorando.
+
+--Sei. Se não fosse aquelle infame _Communicado_, e as calumnias... nada
+se tinha passado, e a nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É
+justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.
+
+Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito suave, muito
+tranquillo:
+
+--Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos da casa eram
+insultados? em que eu era arrastado pela rua da amargura? em que a
+menina mesma, a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein? Sabe quem o
+escreveu?
+
+--Quem? perguntou Amelia toda surprehendida.
+
+--O snr. João Eduardo! disse o parocho muito tranquillamente, cruzando
+os braços diante d'ella.
+
+--Não póde ser!
+
+Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer
+sentar; e a sua voz continuou paciente e suave:
+
+--Ouça. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube hontem tudo. O Natario
+viu o original escripto pela letra d'elle. Foi elle que descobriu. Por
+meios dignos decerto... e porque era a vontade de Deus que a verdade
+apparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem.--Então,
+baixo, contou-lhe o que sabia de João Eduardo, por Natario; as suas
+noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os padres, a sua
+irreligião...
+
+--Pergunte-lhe se elle se confessa ha seis annos, e peça-lhe os bilhetes
+da confissão!
+
+Ella murmurava, com as mãos cahidas no regaço:
+
+--Jesus... Jesus!...
+
+--Eu então entendi que como intimo da casa, como parocho, como christão,
+como seu amigo, menina Amelia... porque acredite que lhe quero... emfim,
+entendi que era o meu dever avisal-a! Se eu fosse seu irmão, dizia-lhe
+simplesmente: «Amelia, esse homem fóra de casa!» Não o sou,
+infelizmente. Mas venho, com dedicação d'alma, dizer-lhe: «O homem com
+quem quer casar surprehendeu a sua boa fé e de sua mamã; vem aqui, sim
+senhor, com apparencias de bom moço, e no fundo é...»
+
+Ergueu-se, como ferido d'uma indignação irreprimivel:
+
+--Menina Amelia, é o homem que escreveu esse _Communicado!_ que fez ir o
+pobre Brito para a serra de Alcobaça! que me chamou a mim _seductor!_
+que chamou devasso ao senhor conego Dias! _Devasso!_ Que lançou veneno
+nas relações de sua mamã com o conego! e que a accusou á menina, em bom
+portuguez, de se deixar seduzir! Diga, quer casar com esse homem?
+
+Ella não respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lagrimas mudas
+sobre as faces.
+
+Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao pé d'ella, com a
+voz abrandada, gestos muito amigos:
+
+--Mas supponhamos que não era elle o auctor do _Communicado_, que não
+tinha insultado em letra redonda a sua mamã, o senhor conego, os seus
+amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse
+com elle! Ou teria de condescender com as opiniões do homem, abandonar
+as suas devoções, romper com os amigos de sua mãi, não pôr os pés na
+igreja, dar escandalo a toda a gente honesta, ou teria de se pôr em
+opposição com elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma questão!
+Por jejuar á sexta-feira, por ir á exposição do Santíssimo, por cumprir
+o domingo... Se se quizesse confessar, que desavenças! Um horror! E
+sujeitar-se a ouvil-o escarnecer os mysterios da fé! Ainda me lembro, na
+primeira noite que aqui passei, com que desacato elle fallou da santa da
+Arregassa!... E ainda me lembro uma noite que o padre Natario aqui
+fallava dos soffrimentos do nosso santo padre Pio IX, que seria preso,
+se os liberaes entrassem em Roma... Como elle tinha risinhos de
+escarneo, como disse que eram exagerações!... Como se não fosse
+perfeitamente certo que por vontade dos liberaes veriamos o chefe da
+Igreja, o vigario de Christo, dormir n'um calabouço em cima d'umas
+poucas de palhas! São as opiniões d'elle, que elle apregôa por toda a
+parte! O padre Natario diz que elle e o Agostinho estavam no café ao pé
+do Terreiro a dizer que o baptismo era um abuso, porque cada um devia
+escolher a religião que quizesse, e não ser forçado, de pequeno, a ser
+christão! Hein, que lhe parece? Como seu amigo lh'o digo... Para bem de
+sua alma antes a queria vêr morta do que ligada a esse homem! Case com
+elle, e perde para sempre a graça de Deus!
+
+Amelia levou as mãos ás fontes, e deixando-se cahir para as costas da
+cadeira, murmurou, muito desgraçada:
+
+--Oh, meu Deus, meu Deus!
+
+Amaro então sentou-se ao pé d'ella, tocando-lhe quasi o vestido com o
+joelho, pondo na voz uma bondade paternal:
+
+--E depois, minha filha, pensa que um homem assim póde ter bom coração,
+apreciar a sua virtude, querer-lhe como um marido christão? Quem não tem
+religião não tem moral. Quem não crê não ama, diz um dos nossos santos
+padres. Depois de lhe passar o fogacho da paixão, começaria a ser duro
+comsigo, mal humorado, voltaria a frequentar o Agostinho e as mulheres
+da vida, e maltrata-la-hia talvez... E que susto constante para si! Quem
+não respeita a religião não tem escrupulos: mente, rouba, calumnia...
+Veja o _Communicado_. Vir aqui apertar a mão ao senhor conego, e ir para
+o jornal chamar-lhe devasso! Que remorsos não sentiria a menina, mais
+tarde, á hora da morte! É muito bom emquanto se tem saude e se é nova;
+mas quando chegasse a sua ultima hora, quando se achasse, como aquella
+pobre creatura que está alli, nos ultimos arrancos, que terror não
+sentiria de ter de apparecer diante de Jesus Christo, depois de ter
+vivido em peccado ao lado d'esse homem! Quem sabe se elle não recusaria
+que lhe dessem a extrema-unção! Morrer sem sacramentos, morrer como um
+animal!...
+
+--Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor parocho! exclamou Amelia
+rompendo n'um chôro nervoso.
+
+--Não chore, disse elle tomando-lhe suavemente a mão entre as suas,
+muito tremulas. Escute, abra-se commigo... Vá, esteja socegada, tudo se
+remedeia. Não ha banhos publicados... Diga-lhe que não quer casar, que
+sabe tudo, que o odeia...
+
+Esfregava, apertava devagarinho a mão d'Amelia. E subitamente, com voz
+d'um ardor brusco:
+
+--Não se importa com elle, não é verdade?
+
+Ella respondeu muito baixo, com a cabeça cahida sobre o peito:
+
+--Não.
+
+--Então, ahi tem! fez excitado. E diga-me, gosta d'outro?
+
+Ella não respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados
+para o lume.
+
+--Gosta? diga, diga!
+
+Passou-lhe o braço sobre o hombro, attrahindo-a dôcemente. Ella tinha as
+mãos abandonadas no regaço; sem se mover voltou devagar para elle os
+olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas, e entreabriu devagar os
+labios, pallida, toda desfallecida. Elle estendeu os beiços a tremer--e
+ficaram immoveis, collados n'um só beijo, muito longo, profundo, os
+dentes contra os dentes.
+
+--Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, n'um terror, a voz da
+_Ruça_, dentro.
+
+Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto da entrevada. Amelia estava
+tão tremula, que precisou encostar-se á porta da cozinha um momento, com
+as pernas vergadas, a mão sobre o coração. Recuperou-se, desceu a
+acordar a mãe.
+
+Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quasi
+sobre o leito, rezava: as duas senhoras rojaram-se no chão; uma
+respiração accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha; e á medida
+que o arquejo se tornava mais rouco, o parocho precipitava as suas
+orações. Subitamente o som agonisante cessou: ergueram-se: a velha
+estava immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e baços. Expirára.
+
+O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a sala;--e ahi a S.
+Joanneira, curada, pelo choque, da sua enxaqueca, desabafou, em accessos
+de chôro, recordando o tempo em que a pobre mana era nova, e que bonita
+era! e que bom casamento estivera para fazer com o morgado da
+Vigareira!...
+
+--E o genio mais dado, senhor parocho! Uma santa! E quando a Amelia
+nasceu, e que eu estive tão mal, que não se tirou de ao pé de mim, noite
+e dia!... E alegre, não havia outra... Ai, Deus da minha alma, Deus da
+minha alma!
+
+Amelia, encostada á vidraça na sombra da janella, olhava entorpecida a
+noite negra.
+
+Bateram então á campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era João Eduardo,
+que ao vêr o parocho áquella hora na casa,--ficou petrificado, junto da
+porta aberta; emfim balbuciou:
+
+--Eu vinha saber se havia novidade...
+
+--A pobre senhora expirou agora mesmo...
+
+--Ah!
+
+Os dois homens olharam-se um instante fixamente.
+
+--Se eu sou preciso para alguma coisa... disse João Eduardo.
+
+--Não, obrigado. As senhoras vão-se deitar.
+
+João Eduardo fez-se pallido da coléra que lhe davam aquelles modos de
+dono da casa. Esteve ainda um momento, hesitando--mas vendo o parocho
+abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:
+
+--Bem, boa noite, disse.
+
+--Boa noite.
+
+O padre Amaro subiu:--e depois de deixar as duas senhoras no quarto da
+S. Joanneira (porque, cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou
+ao quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa, accommodou-se n'uma
+cadeira, e começou a lêr o Breviario.
+
+Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o parocho, sentindo o
+somno entorpecel-o, veio á sala de jantar; reconfortou-se com um calix
+de vinho do Porto que achára no aparador; e saboreava regaladamente o
+cigarro, quando ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por
+baixo das janellas. Como a noite estava escura não pôde distinguir «o
+passeante».--Era João Eduardo que rondava a casa, furioso.
+
+
+
+
+XIII
+
+
+Ao outro dia cedo, a snr.^a D. Josepha Dias que entrára, havia pouco, da
+missa, ficou muito surprehendida, ouvindo a criada que lavava as escadas
+dizer de baixo:
+
+--Está aqui o senhor padre Amaro, snr.^a D. Josepha!
+
+O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa do conego; e D. Josepha
+gritou logo lisonjeada e já curiosa:
+
+--Que suba para aqui, não é de ceremonia! É como de familia. Que suba!
+
+Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa ladrilhos de
+marmelada, com um vestido de hareje preto esgaçado na ilharga e arqueado
+em redor dos tornozelos por uma _crinoline_ d'um só arco; trazia n'essa
+manhã oculos azues; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos
+chinelos d'ourêlo, e preparando, por debaixo do lenço preto repuxado
+sobre a testa, um ar agradavel para o senhor parocho.
+
+--Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho, e já cá tenho a
+primeira missinha. Fui hoje á capella de Nossa Senhora do Rosario...
+Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje, senhor
+parocho! Sente-se. Ahi não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre
+entrevada lá se foi... Conte lá, senhor parocho...
+
+O parocho teve de descrever a agonia da entrevada, a dôr da S.
+Joanneira; como depois de morta a face da velha parecera remoçar; o que
+as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...
+
+--Aqui para nós, D. Josepha, é um grande allivio para a S.
+Joanneira...--E de repente, puxando-se para a beira da cadeira,
+assentando as mãos nos joelhos:--E que me diz á do senhor João Eduardo?
+Já sabe? Foi elle que escreveu o artigo!
+
+A velha exclamou, levando as mãos á cabeça:
+
+--Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho! Nem me falle n'isso, que até
+tenho estado doente!
+
+--Ah, já sabe?
+
+--E mais que sei, senhor parocho! O senhor padre Natario, devo-lhe esse
+favor, esteve aqui hontem e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma
+perdida!
+
+--E sabe que é o intimo do Agostinho, que são bebedeiras na redacção até
+de madrugada, que vai para o bilhar do Terreiro achincalhar a
+religião...
+
+--Ai, por quem é, senhor parocho, nem me diga, nem me diga! Que hontem,
+quando o senhor padre Natario esteve ahi, até tive escrupulos d'ouvir
+tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor padre Natario, logo
+que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor
+parocho, a mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o
+disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôz em vidas
+alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria o
+jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que aquillo era para enganar a S.
+Joanneira e a pequena. Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu
+em graça! Nunca, senhor parocho!--E de repente, com os olhinhos luzidios
+d'uma alegria perversa:--E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?
+
+O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:
+
+--Elle, minha senhora, seria notorio que uma rapariga de bons principios
+fosse casar com um pedreiro-livre, que não se confessa ha seis annos!
+
+--Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É necessario dizer tudo á
+rapariga...
+
+O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé
+d'ella:
+
+--Pois foi justamente para isso que eu a vim procurar, minha senhora. Eu
+hontem já fallei com a pequena... Mas comprehende, no meio d'aquelle
+desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir
+muito. Emfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos,
+expuz-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o
+que pude, minha senhora, como amigo e como parocho. E como era o meu
+dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como
+christã e como senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.
+
+--E ella?
+
+O padre Amaro fez uma visagem descontente:
+
+--Não disse que _sim_ nem que _não_. Pôz-se a fazer biquinho, a
+choramingar. É verdade que estava muito alterada com a morte em casa.
+Que a rapariga não morre por elle, isso é claro; mas quer casar, tem
+medo que a mãi morra, que se veja só... Emfim sabe o que são raparigas!
+Que as minhas palavras fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada,
+etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora fallar-lhe. A
+senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou
+certo que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrança...
+Tudo isto são considerações...
+
+--Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou a velha; hei de
+lh'as cantar!...
+
+--A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem
+a confesse! Ella confessa-se ao padre Silverio; mas, sem querer dizer
+mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita
+virtude; mas o que se chama _geito_ não tem. Para elle a confissão é a
+_desobriga_. Pergunta doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos da
+lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta,
+nem mata, nem deseja a mulher do seu proximo! A confissão assim não lhe
+aproveita: o que ella precisa é um confessor _têso_, que lhe diga--_para
+alli!_ e sem réplica. A rapariga é um espirito fraco; como a maior parte
+das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor
+que a governe com uma vara de ferro, a quem ella obedeça, a quem conte
+tudo, de quem tenha medo... É como deve ser um confessor.
+
+--O senhor parocho é que lhe servia...
+
+Amaro sorriu modestamente:
+
+--Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem; sou amigo da mãi, acho
+que ella é boa rapariga e digna da graça de Deus. Que eu, sempre que
+converso com ella, todos os conselhos que posso, em tudo, dou-lh'os...
+Mas a senhora comprehende, ha coisas em que se não póde estar a fallar
+na sala, com gente á volta... Só se está á vontade no confessionario. E
+é o que me falta, são as occasiões de lhe fallar só. Mas emfim eu não
+posso ir dizer-lhe: «a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu
+n'isso sou muito escrupuloso...
+
+--Mas digo-lh'o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh'o eu!...
+
+--Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia áquella alma!
+Porque se a rapariga me entrega a direcção da sua alma, então podemos
+dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a no caminho da
+graça... E quando lhe vai fallar, D. Josepha?
+
+D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava decidida a fallar-lhe
+essa mesma noite.
+
+--Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de pezames... O escrevente
+naturalmente está lá...
+
+--Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar
+a noite debaixo das mesmas telhas com o hereje?
+
+--Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado da familia... Além
+d'isso, D. Josepha, a senhora, a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas
+da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude.
+Arriscamo-nos a perder-lhe todos os fructos. E é um acto de humildade,
+que agrada muito a Deus, o misturar-nos ás vezes com os maus; é como
+quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um trabalhador
+d'enxada... É como se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude, mas
+comparado com o que devia ser para entrar na gloria, quem sabe se não
+sou tão peccador como tu!...» E esta humilhação da alma é a melhor
+offerta que podemos fazer a Jesus.
+
+D. Josepha escutava-o, babosa; e n'uma admiração:
+
+--Ai, senhor parocho, que até dá virtude ouvil-o!
+
+Amaro curvou-se:
+
+--Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me justas palavras... Pois
+minha senhora, eu não quero massar mais. Ficamos entendidos. A senhora
+falla á pequena ámanhã; e se, como é de crêr, ella consentir em escutar
+os meus conselhos, traz-m'a á Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe
+têso, D. Josepha!
+
+--Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então não quer provar da minha
+marmelada?
+
+--Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho em que cravou os dentes com
+dignidade.
+
+--É dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor que a das Gangosinhos...
+
+--Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que diz o nosso conego d'este
+caso do escrevente?
+
+--O mano?...
+
+N'este momento a campainha em baixo repicou com furor.
+
+--Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem zangado!
+
+Vinha, com effeito, da fazenda--furioso com o caseiro, o regedor, o
+governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de
+cebolinho; e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo com gozo o nome
+do Inimigo.
+
+--Credo, mano, que até lhe fica mal!--exclamou D. Josepha tomada
+d'escrupulos.
+
+--Ora mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo _co'os
+diabos!_ e repito _co'os diabos_! Mas eu lá disse ao caseiro, que se
+sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo!
+
+--Ha uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.
+
+--Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou o conego. Um cebolinho que
+dava saude só olhar para elle! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu
+chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!--acrescentou
+convictamente; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho d'um conego,
+parecia-lhe um acto tão negro d'impiedade como se tivessem sido furtados
+os vasos santos da Sé.
+
+--Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josepha.
+
+--Qual falta de religião! replicou o conego exasperado. Falta de cabos
+de policia, é o que é!--E voltando-se para Amaro:--Hoje é o enterro da
+velha, hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta
+lavada e os sapatos de fivela!
+
+O padre Amaro então, retomado pela sua preoccupação:
+
+--Estavamos cá a fallar do caso do João Eduardo: o _Communicado_!
+
+--Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego. Vejam essa, tambem!
+Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha!--E ficou de braços
+cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de
+monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudencia contra
+as reputações, os principios da Igreja, a honra das familias e o
+cebolinho do clero.
+
+Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas recommendações a D.
+Josepha, que o acompanhára ao patamar:
+
+--Então hoje, noite de pezames, não se faz nada. Ámanhã falla á
+rapariga, e lá para o fim da semana leva-m'a á Sé. Bem. E convença a
+rapariga, D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que Deus tem os
+olhos em si. Falle-lhe têso, falle-lhe têso!... E o nosso conego que se
+entenda com a S. Joanneira.
+
+--Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha, e, quer ella queira
+quer não, hei de pôl-a no caminho da salvação...
+
+--Amen, disse o padre Amaro.
+
+N'essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez nada». Eram os pezames na
+rua da Misericordia. Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente
+por uma só vela com um _abat-jour_ verde-escuro. A S. Joanneira e
+Amelia, de luto, occupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor,
+nas fileiras de cadeiras apoiadas á parede, as amigas, cobertas de negro
+pesado, conservavam-se funebremente immoveis, de faces contristadas,
+n'um torpôr mudo: ás vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na
+sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou Arthur Couceiro, ia em
+bicos de pés espevitar o murrão da véla: a snr.^a D. Maria da Assumpção
+expectorava o seu catarrho com um som choroso: e no silencio ouviam
+tamancos bater o lagedo da rua, ou os quartos d'hora no relogio da
+Misericordia.
+
+A intervallos a _Ruça_, toda de negro, entrava com o taboleiro de dôces
+e copos de chasada; levantava-se então o _abat-jour_; e as velhas, que
+já iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo
+os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.
+
+João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que
+dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o
+olhar d'Amelia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no
+regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro
+e o conego Dias vieram ás nove horas: o parocho com passos graves foi
+dizer á S. Joanneira:
+
+--Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua
+excellentissima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus
+Christo.
+
+Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras,
+os dois ecclesiasticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no
+meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram assim reconhecidos
+pessoas de familia; a snr.^a D. Maria da Assumpção notou baixinho a D.
+Joaquina Gansoso:
+
+--Ai, até dá gosto vêl-os assim todos quatro!
+
+E até ás dez horas a noite de pezames continuou soturna e somnolenta,
+perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava
+constipado, e que--na opinião da snr.^a D. Josepha Dias que o disse a
+todos, depois--«tossia só para fazer troça e para achincalhar o respeito
+aos mortos».
+
+
+D'ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a snr.^a D. Josepha Dias e
+Amelia entraram na Sé--depois de terem fallado no terraço á Amparo,
+mulher do boticario, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não
+ser coisa de cuidado, «viera á cautela fazer uma promessa».
+
+O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz parda. Amelia, pallida
+sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora
+das Dôres, deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o rosto
+sobre o livro de missa. A snr.^a D. Josepha Dias, com passos fôfos,
+depois de se ter prostrado diante da capella do Santíssimo e do
+altar-mór, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro
+lá passeava, com os hombros vergados, as mãos atraz das costas:
+
+--Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha a sua face muito
+barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.
+
+--Está alli, disse a velha baixinho, n'uma expressão de triumpho. Fui eu
+mesmo buscal-a! Ai, fallei-lhe têso, senhor parocho, não lh'as poupei!
+Agora é comsigo!
+
+--Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre, apertando-lhe as mãos
+ambas com força. Deus ha de lh'o levar em conta.
+
+Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos
+papeis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu á igreja.
+Amelia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel contra o
+pilar branco.
+
+--Pst, fez-lhe D. Josepha.
+
+Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as
+mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.
+
+--Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha. Vou á Amparo da
+botica, e venho depois por ella... Ora vai, filha, vai, Deus t'alumie
+essa alma!
+
+E sahiu, com mesuras a todos os altares.
+
+O Carlos da botica--que era inquilino do conego e um pouco ronceiro na
+renda--desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josepha appareceu á
+porta, e conduziu-a logo acima, á sala de cortinas de cassa, onde a
+Amparo costurava á janella.
+
+--Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus
+afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um
+bocadinho.
+
+--Então, se me dá licença... E como vai o nosso conego?
+
+--Não tornou a ter a dôr. Mas tem soffrido de tonturas.
+
+--Começos da primavera, disse o Carlos que retomára o seu ar magestoso,
+de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu
+me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas, soffremos
+sempre d'isto que se póde chamar o renascimento da seiva... Ha uma
+abundancia d'humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canaes
+proprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo,
+sob a fórma de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares bem
+incommodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por
+assim dizer, d'um cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se
+me dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use a magnesia de James!
+
+D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo. Mas não passou da
+porta do quarto, recommendando á pequena, que arregalava uns olhos de
+febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse das suas oraçõesinhas
+de manhã e á noite». Aconselhou á Amparo alguns remedios, que eram
+milagrosos no sarampo; mas se a promessa fôra feita com fé, a menina
+podia-se considerar curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se
+não ter casado! Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e com as
+quezilias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa d'uma mulher
+se descuidar das suas praticas e metter a alma no inferno...
+
+--Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco!
+Ás vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me
+a chorar só commigo...
+
+Tinham voltado para junto da janella, e gozaram muito, espreitando o
+senhor administrador do concelho, que, por traz da vidraça da
+repartição, namorava de binoculo a do Telles alfaiate.--Aí, era um
+escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades assim! O secretario
+geral em um desafôro com a Novaes... Que se podia esperar de homens sem
+religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha, estava
+predestinada a parecer como Gomorrha pelo fogo do céo?--A Amparo cosia
+com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante d'aquella indignação
+piedosa, dos desejos culpados que a roiam de vêr o Passeio Publico e de
+ouvir os cantores em S. Carlos.
+
+Mas bem depressa a snr.^a D. Josepha começou a fallar do escrevente. A
+Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar
+prolixamente, «tim-tim por tim-tim», a historia do _Communicado_, o
+desgosto na rua da Misericordia, e a campanha de Natario para descobrir
+o _liberal_. Alargou-se principalmente sobre o caracter de João Eduardo,
+a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de christã
+aniquilar o atheu, deu mesmo a entender que alguns roubos, ultimamente
+commettidos em Leiria, eram «obra de João Eduardo».
+
+A Amparo declarou-se «banzada». O casamento então, com a Ameliasinha...
+
+--Isso pertence á historia, declarou com jubilo D. Josepha Dias. Vão
+pôl-o fóra de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir
+parar ao banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia do mano e do
+senhor padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia!
+
+--Mas a pequena gostava d'elle, ao que parece.
+
+D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma rapariga de juízo, de
+muita virtude! Apenas conheceu os desafôros, foi a primeira a dizer que
+não, e que não! Ai! detestava-o...--E D. Josepha, baixando a voz em
+confidencia, contou «que era positivo que elle vivia com uma desgraçada
+para os lados do quartel».
+
+--Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E aquillo é homem que da
+sua boca nunca sae senão a verdade pura... Foi muito delicado commigo,
+devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo dizer a casa, pedir-me
+conselhos... Emfim, muito attencioso.
+
+Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento
+(que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer
+companhia ás senhoras.
+
+--Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D. Josepha, o caso do
+_Communicado_ e do João Eduardo?
+
+O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia
+entre um artigo tão indigno e esse mancebo que lhe parecia honesto?
+
+--Honesto!? ganiu a snr.^a D. Josepha Dias. Foi elle que o escreveu,
+snr. Carlos!
+
+E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza, D. Josepha, enthusiasmada,
+repetiu a historia da «maroteira».
+
+--Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece?
+
+O pharmaceutico deu a sua opinião, n'uma voz vagarosa, sobrecarregada da
+auctoridade d'um vasto entendimento:
+
+--N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão commigo, é uma
+vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o _Communicado_:
+a religião é a base da sociedade, e minal-a é, por assim dizer, querer
+aluir o edificio... É uma desgraça que haja na cidade d'esses sectarios
+do materialismo e da republica, que, como é sabido, querem destruir tudo
+o que existe: proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a
+promiscuidade de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a
+sciencia é a sciencia). Querem ter o direito de entrar em minha casa,
+levar-me as pratas e o suor do meu rosto; não admittem que haja
+auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada
+hostia...
+
+D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito arripiada.
+
+--E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem sou liberal... Que,
+francamente o digo, eu não sou fanatico... Nem pelo facto d'um homem
+pertencer ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre
+embirrei com o parocho Migueis... Era uma giboia! Desculpe-me a senhora,
+mas era uma giboia. Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas já lá
+vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente
+para não haver lei das rolhas... Disse-lh'o na cara: «V. s.^a é uma
+giboia!» Mas, emfim, quando um homem veste uma batina deve ser
+respeitado... E o _Communicado_, repito, é um vergonha para Leiria... E
+tambem lhe digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve haver
+consideração!... Eu sou homem pacifico, aqui a Amparosinho conhece-me
+bem; pois se eu tivesse d'aviar uma receita para um republicano
+declarado, não tinha duvida, em logar de lhe dar uma d'essas composições
+beneficas que são o orgulho de nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse
+d'acido prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido prussico...
+mas se estivesse no banco dos jurados havia de lhe fazer cahir em cima
+todo o peso da lei!
+
+E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande
+gesto em redor, como se esperasse os applausos d'um conselho de
+districto ou d'uma municipalidade em sessão.
+
+Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josepha embrulhou-se á
+pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia
+d'estar farta d'esperar.
+
+O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que
+remettia ao seu senhorio):
+
+--Repita ao nosso conego quaes são as minhas opiniões... Que n'essa
+questão do _Communicado_ e d'ataques ao clero, estou d'alma e coração
+com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a
+embrulhar.
+
+Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava ainda no
+confessionario. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a
+face, abysmou-se n'uma devoção á Senhora do Rosario. A igreja ficou
+n'uma immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha, voltando-se para
+o confessionario, espreitou por entre os dedos; Amelia conservava-se
+immovel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido
+negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu na sua reza. Uma chuva
+fina fustigava agora os vidros d'uma janella ao lado. Emfim houve no
+confessionario um rangido da madeira, um frou-frou de vestidos nas
+lages,--e D. Josepha, voltando-se, viu de pé diante d'ella Amelia com a
+face escarlate e o olhar reluzindo muito.
+
+--Está ha muito tempo á espera, madrinha!
+
+--Um bocadinho. Estás promptinha, hein?
+
+Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram da Sé. Ainda cahia
+uma chuva fina; mas o snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com
+officios para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia
+debaixo do seu guardachuva.
+
+
+
+
+XIV
+
+
+João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para a rua da Misericordia,
+levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para
+Amelia escolher, quando á porta encontrou a _Ruça_ que ia puxar a
+campainha.
+
+--Que é, _Ruça_?
+
+--As senhoras foram passar a noite fóra de casa, e aqui está esta carta
+que manda a menina.
+
+João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar
+pasmado a _Ruça_, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do
+candieiro, defronte, abriu a carta:
+
+
+ «Snr. João Eduardo.
+
+
+«O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão
+que era v. s.^a uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz; mas como
+se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do _Districto_, e
+calumniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes
+não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje
+considerar tudo acabado entre nós, pois não ha banhos publicados nem
+despezas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja
+bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua.
+O que tudo lhe communico por ordem da mamã, e sou
+
+
+ «criada de v. s.^a
+
+ «_Amelia Caminha_».
+
+
+João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a
+claridade do candieiro, immovel como uma pedra, com o seu rolo de papeis
+pintados debaixo do braço. Machinalmente voltou a casa. As mãos
+tremiam-lhe tanto, que mal podia accender o candieiro. De pé, junto da
+mesa, releu a carta. Depois ficou alli, fatigando a vista contra a
+chamma da torcida, com uma sensação arrefecedora de Immobilidade e de
+Silencio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse
+emmudecido e parado. Pensou onde teriam _ellas_ ido passar a noite.
+Lembranças de serões felizes na rua da Misericordia atravessaram-lhe
+devagar na memoria: Amelia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o
+cabello muito preto e o collar muito branco o seu pescoço tinha uma
+pallidez que a luz amaciava... Então a idéa de que a perdera para sempre
+varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as
+mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas
+relampejavam-lhe um momento no espirito, esvaiam-se. Queria
+escrever-lhe! tiral-a por justiça! ir para o Brazil! saber quem
+descobrira que elle era o auctor do artigo!--E como isto era o mais
+practicavel áquella hora, correu á redacção da _Voz do Districto_.
+
+Agostinho, estirado no canapé, com a véla ao pé sobre uma cadeira,
+saboreava os jornaes de Lisboa. A face decomposta de João Eduardo
+assustou-o.
+
+--Que é?
+
+--É que me perdeste, maroto!
+
+E d'um só fôlego accusou furiosamente o corcunda de o ter trahido.
+
+Agostinho erguera-se devagar, procurando imperturbavel a bolsa do tabaco
+na algibeira da jaqueta.
+
+--Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra d'honra
+que não disse a ninguem do _Communicado_. É verdade que ninguem me
+perguntou...
+
+--Mas quem foi, então? gritou o escrevente.
+
+Agostinho enterrou a cabeça nos hombros.
+
+--Eu o que sei é que os padres andavam n'uma azafama para saber quem
+era. O Natario esteve ahi uma manhã, por causa do annuncio de uma viuva
+que recorre á caridade publica, mas do _Communicado_ não se disse nem
+palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com elle! Mas então
+fizeram-te alguma?
+
+--Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.
+
+Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e sahiu arremessando a
+porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, attrahido pela
+obscuridade, á estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intoleravel
+palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de
+ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por
+vezes a idéa da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então
+imaginava vêr toda a paizagem oscillar e o chão da estrada
+afigurava-se-lhe molle como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam
+onze horas; e achou-se na rua da Misericordia, com o olhar cravado para
+a janella da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto
+d'Amelia alumiou-se tambem; ella ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um
+desejo furioso da sua belleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para
+casa: uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade
+indefinida, profunda, foi-o amollecendo, e chorou muito tempo,
+enternecendo-se mais com o som dos seus proprios soluços,--até que ficou
+adormecido, de bruços, n'uma massa inerte.
+
+
+Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia para a Praça,
+quando ao pé do Arco João Eduardo lhe sahiu d'emboscada.
+
+--Quero-lhe fallar, menina Amelia.
+
+Ella recuou assustada, disse a tremer:
+
+--Não tem que me fallar...
+
+Mas elle plantára-se diante d'ella, muito decidido, com os olhos
+vermelhos como carvões:
+
+--Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi
+uma desgraça; mas a menina tinha-me ralado de ciumes... Mas o que a
+menina diz de maus costumes é uma calumnia. Eu sempre fui um homem de
+bem...
+
+--O senhor padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...
+
+Ao nome do parocho, João Eduardo fez-se livido de raiva:
+
+--Ah! é o senhor padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos! Ouça...
+
+--Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada, tão alto, que um
+sujeito gordo de chale-manta parou olhando.
+
+João Eduardo recuou, tirando o chapéo; e ella, immediatamente,
+refugiou-se na loja do Fernandes.
+
+
+Então, n'um desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na vespera,
+por entre os seus-accessos de chôro, sentindo-se tão abandonado, se
+lembrára do doutor Godinho. Fôra outr'ora seu escrevente; e como por
+pedido d'elle entrára no cartorio do Nunes Ferral, e por sua influencia
+ia ser accommodado no governo civil, julgava-o uma Providencia prodiga e
+inesgotavel! Demais, desde que escrevera o _Communicado_ considerava-se
+da redacção da _Voz do Districto_, do grupo da Maia; agora, que era
+atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se á forte protecção
+do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reacção, o «Cavour de
+Leiria», como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor
+dos _Ferrões_.--E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarello, ao pé
+do Terreiro onde o doutor vivia, ia n'um alvoroço d'esperanças, contente
+com se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas d'aquelle
+colosso.
+
+O doutor Godinho descera já ao escriptorio, e repoltreado na sua
+poltrona abbacial de prégos amarellos, com os olhos no tecto de carvalho
+escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com magestade
+os «bons dias» de João Eduardo.
+
+--Então que temos, amigo?
+
+As altas estantes d'in-folios graves, as resmas d'autos, o apparatoso
+painel representando o marquez de Pombal, de pé n'um terraço sobre o
+Tejo, expulsando com o dedo a esquadra ingleza--acanharam como sempre
+João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha alli para que sua
+excellencia lhe désse remedio n'uma desgraça que lhe succedia.
+
+--Desordens, bordoada?
+
+--Não, senhor, negocios de familia.
+
+Contou então, prolixamente, a sua historia desde a publicação do
+_Communicado_: leu muito commovido, a carta d'Amelia; descreveu a scena
+ao pé do Arco... Alli estava agora, escorraçado da rua da Misericordia
+por obras do senhor parocho! E parecia-lhe a elle, apesar de não ser
+formado em Coimbra, que contra um padre que se introduzia n'uma familia,
+desinquietava uma menina simples, a levava por intrigas a romper com o
+noivo e ficava de portas a dentro senhor d'ella--devia haver leis!
+
+--Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!
+
+O doutor Godinho parecia contrariado.
+
+--Leis!? exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer vossê que
+haja? Quer querelar do parocho?... Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o
+relogio? insultou-o pela imprensa? Não. Então?...
+
+--Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem
+de maus costumes, senhor doutor! Calumniou-me!
+
+--Tem testemunhas?
+
+--Não, senhor.
+
+--Então?
+
+E o doutor Godinho, assentando os cotovêlos sobre a banca, declarou que
+como advogado não tinha nada a fazer. Os tribunaes não tomavam
+conhecimento d'essas questões, d'esses dramas moraes por assim dizer,
+que se passavam nas alcovas domesticas... Como homem, como particular,
+como Alipio de Vasconcellos Godinho tambem não podia intervir porque não
+conhecia o senhor padre Amaro, nem essas senhoras da rua da
+Misericordia... Lamentava o facto, porque emfim fôra novo, sentira a
+poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses
+transes do coração... E ahi está tudo o que elle podia fazer--lamentar!
+Tambem para que tinha elle dado a sua affeição a uma beata?...
+
+João Eduardo interrompeu-o:
+
+--A culpa não é d'ella, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a
+desencaminhar! A culpa é d'essa canalha do cabido!
+
+O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o snr. João
+Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que
+o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia que não fosse a
+d'um habil director espiritual... E recommendava ao snr. João Eduardo,
+com a auctoridade que lhe davam os annos e a sua posição no paiz, que
+não fosse espalhar, por despeito, accusações que só serviam para
+destruir o prestigio do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem
+constituida!--Sem elle, tudo seria anarchia e orgia!
+
+E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava n'essa manhã com «o dom
+da palavra».
+
+Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto á
+banca, impacientava-o; e disse com seccura, puxando para diante de si um
+volume d'autos:
+
+--Emfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar
+remedio.
+
+João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:
+
+--Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim...
+Porque emfim eu fui uma victima... Tudo isto vem de se saber que eu
+escrevi o _Communicado_. E tinha-se combinado que havia de ser segredo.
+O Agostinho não o disse, só o senhor doutor o sabia...
+
+O doutor pulou de indignação na sua cadeira abbacial:
+
+--Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o
+disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque n'uma
+familia bem constituida não deve haver segredos entre esposo e esposa.
+Ella perguntou-me, disse-lh'o... Mas supponhamos que fui eu que o
+espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o _Communicado_ era uma calumnia, e
+então sou eu que devo accusal-o de ter polluido um jornal honrado com um
+acervo de diffamaçães; ou era verdade, e então que homem é o senhor que
+se envergonha das verdades que solta, e que não se atreve a manter á luz
+do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?
+
+Duas lagrimas ennevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante
+d'aquella expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma
+argumentação tão logica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:
+
+--Bem, não nos zanguemos, disse. Não se falla mais era pontos d'honra...
+O que póde acreditar é que lamento o seu desgosto.
+
+Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal. Que não succumbisse; havia
+mais meninas em Leiria e meninas de bons principios que não viviam sob a
+direcção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que
+elle, doutor Godinho--e era elle!--tambem tivera em moço desgostos do
+coração. Que evitasse o dominio das paixões que lhe seria prejudicial na
+carreira publica. E que se o não fizesse por seu interesse proprio, o
+fizesse ao menos em attenção a elle, doutor Godinho!
+
+João Eduardo sahiu do escriptorio, indignado, julgando-se «trahido» pelo
+doutor.
+
+--Isto succede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre diabo, não dou
+votos nas eleições, não vou ás _soirées_ do Novaes, não subscrevo para o
+club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de reis!...
+
+Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e
+da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escriptorio, e
+entreabrindo a porta:
+
+--Vossa excellencia ao menos agora dá licença que eu desabafe no
+jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar n'essa canalha...
+
+Esta audacia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com
+severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços:
+
+--O snr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem-me
+pedir que transforme um jornal d'idéas n'um jornal de diffamações!? Vá,
+não se prenda! Peça-me que insulte os principios da religião, que
+achincalhe o Redemptor, que repita as babuseiras de Renan, que ataque as
+leis fundamentaes do Estado, que injurie o rei, que vitupere a
+instituição da familia! O senhor está ebrio!
+
+--Oh, senhor doutor!
+
+--O senhor está ebrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai
+por um declive! É por esse caminho que se chega a perder o respeito da
+auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que
+se vai ao crime! Escusa d'arregalar os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu!
+Tenho a experiencia de vinte annos de fôro. Homem, detenha-se! refreie
+essas paixões! Safa! Que idade tem o senhor?
+
+--Vinte e seis annos.
+
+--Pois não ha desculpa para um homem de vinte e seis annos ter essas
+idéas subversivas. Adeus, feche a porta. E escute: escusa de pensar em
+mandar outro _Communicado_ para outro qualquer jornal. Não lh'o
+consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer
+espalhafato... Escusa de negar, estou-lh'o a lêr nos olhos. Pois não
+lh'o consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má acção social!
+
+Tomou uma grande attitude na poltrona, repetiu com força:
+
+--Uma pessima acção social! Aonde nos querem os senhores levar com os
+seus materialismos, os seus atheismos?! Quando tiverem dado cabo da
+religião de nossos paes, que têm os senhores para a substituir?! Que
+têm?! Mostre lá!
+
+A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha alli, para a
+mostrar, uma religião que substituisse a de nossos paes) fez triumphar o
+doutor.
+
+--Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavriado! Mas emquanto eu
+fôr vivo, pelo menos em Leiria, ha de ser respeitada a Fé e o principio
+da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão de
+erguer cabeça. Em Leiria estou eu álerta, e juro que lhes hei de ser
+funesto!
+
+João Eduardo recebia d'hombros vergados estas ameaças, sem as
+comprehender. Como podia o seu _Communicado_ e as intrigas da rua da
+Misericordia produzirem assim catastrophes sociaes e revoluções
+religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade
+do doutor, o emprego no governo civil... Quiz abrandal-o:
+
+--Oh, senhor doutor, mas vossa excellencia bem vê...
+
+O doutor interrompeu-o com um grande gesto:
+
+--Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando
+por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham.
+Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!
+
+João Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor
+Godinho, aquelle colosso, repellia-o com palavras tremendas! E que podia
+elle, pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro que tinha por
+si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o Papa, classe solidaria e
+compacta que lhe apparecia como uma medonha cidadella de bronze
+erguendo-se até ao céo?! Eram elles que tinham causado a resolução
+d'Amelia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de
+parochos, conegos e beatas. Se elle pudesse arrancal-a áquella
+influencia, ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha que lhe
+bordava chinelas, e que vinha toda córada vêl-o passar á janella! As
+suspeitas que outr'ora tivera tinham-se desvanecido n'aquelles serões
+felizes, depois de decidido o casamento, quando ella, costurando junto
+do candieiro, fallava da mobilia que havia de comprar e dos arranjos da
+sua casinha. Ella amava-o, decerto... Mas quê! tinham-lhe dito que elle
+era o auctor do _Communicado_, que era hereje, que tinha costumes
+devassos; o parocho, na sua voz pedante, ameaçára-a com o inferno; o
+conego, furioso, e todo poderoso na rua da Misericordia porque dava para
+a panella, fallára têso--e a pobre menina, assustada, dominada, com
+aquelle bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao
+ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa fé, que elle
+era uma fera! E áquella hora, emquanto elle alli andava pelas ruas,
+escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da rua da
+Misericordia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da
+rapariga, de perna traçada, palrava d'alto! Canalha! E não haver leis
+que o vingassem! e não poder sequer «fazer escandalo», agora que a _Voz
+do Districto_ se lhe tornava inaccessivel!
+
+Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o parocho aos murros, com a
+força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos
+tremendos n'um jornal que revelassem as intrigas da rua da Misericordia,
+amotinassem a opinião, cahissem sobre o padre como catastrophes, o
+forçassem a elle, ao conego e aos outros a desapparecerem corridos da
+casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a Ameliasinha, livre
+d'aquelles galfarros, correria logo aos seus braços, com lagrimas de
+reconciliação...
+
+Procurava assim á força convencer-se que «a culpa não era d'ella»;
+recordava os mezes de felicidade antes da chegada do parocho; arranjava
+explicações naturaes para aquellas maneirinhas ternas que ella outr'ora
+tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciumes
+desesperados:--era o desejo, coitada, de ser agradavel ao hospede, ao
+amigo do senhor conego, de o reter para vantagem da mãi e da casa! E
+além d'isso, como ella andava contente depois de resolvido o casamento!
+A sua indignação contra o _Communicado_, estava certo, não era natural
+d'ella--vinha-lhe soprada pelo parocho e pelas beatas. E achava uma
+consolação n'esta idéa que não era repellido como namorado, como
+marido--mas que era uma victima das intrigas do torpe padre Amaro, que
+lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto accumulava-lhe na
+alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava
+anciosamente uma vingança, atirando a imaginação aqui e além--mas
+vinha-lhe sempre a mesma idéa, o artigo de jornal, a verrina, a
+imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se
+tivesse por si um «figurão»!
+
+Um homem do campo, amarello como uma cidra, que ia caminhando devagar,
+com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor
+Gouvêa.
+
+--Na primeira rua, á esquerda, o portão verde ao pé do lampeão, disse
+João Eduardo.
+
+E uma esperança immensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouvêa
+é que o podia salvar! O doutor era seu amigo: tratava-o por _tu_ desde
+que o curára havia tres annos da pneumonia; approvava muito o seu
+casamento com Amelia; havia ainda semanas perguntára-lhe ao pé da
+Praça:--«Então, quando se faz essa rapariga feliz?» E que respeitado,
+que temido na rua da Misericordia! Era medico de todas as amigas da casa
+que, apesar de se escandalisarem com a sua irreligião, dependiam
+humildemente da sua sciencia para os achaques, os flatos, os xaropes.
+Além d'isso, o doutor Gouvêa, inimigo decidido da «padraria», decerto se
+ia indignar com aquella intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando
+na rua da Misericordia atraz do doutor Gouvêa, que reprehendia a S.
+Joanneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas,--e a sua
+felicidade recomeçava, inabalavel agora!
+
+--O senhor doutor está? perguntou elle quasi alegre, á criada que no
+pateo estendia a roupa ao sol.
+
+--Está na consulta, snr. Joãosinho, faça favor d'entrar.
+
+Em dias de mercado os doentes do campo affluiam sempre. Mas áquella
+hora--quando os visinhos das freguezias se reunem nas tabernas--havia só
+um velho, uma mulher com uma criança ao collo e o homem do braço ao
+peito, esperando n'uma saleta baixa com bancos, dois manjaricões na
+janella e uma grande gravura da Coroação da Rainha Victoria. Apesar do
+sol claro que entrava do pateo, e de uma fresca folhagem de tilia que
+roçava o peitoril da janella, a saleta dava tristeza, como se as
+paredes, os bancos, os mesmos manjaricões estivessem saturados da
+melancolia das doenças que alli tinham passado. João Eduardo entrou e
+sentou-se a um canto.
+
+Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado
+tanto: era de uma freguezia distante, deixára no mercado a irmã, e havia
+uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a
+criança rabujava, ella sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho
+arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canella
+envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que
+tornavam mais lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora
+enervava, amollecia o escrevente; sentia perder gradualmente o animo de
+occupar o doutor Gouvêa; preparava laboriosamente a sua historia, mas
+ella parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar. Vinha-lhe
+então um desalento, que as faces insipidas dos doentes tornavam ainda
+mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só
+de miserias, de sentimentos trahidos, de afflicções, de doenças!
+Erguia-se; e com as mãos atraz das costas ia olhar desconsoladamente a
+Coroação da Rainha Victoria.
+
+De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas
+senhoras ainda lá estariam. Lá estavam; e através do batente de baeta
+verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes
+pachorrentas palrarem.
+
+--Em cahindo aqui é dia perdido! rosnava o velho.
+
+Tambem elle deixára a cavalgadura á porta do Fumaça, e a rapariga na
+praça... E o que teria a esperar na botica, depois! Com tres legoas
+ainda a fazer para voltar á freguezia!... Ser doente é bom, mas para
+quem é rico e tem vagares!
+
+A idéa da doença, da solidão que ella traz, faziam agora parecer a João
+Eduardo mais amarga a perda de Amelia. Se adoecesse teria de ir para o
+hospital. O malvado do padre tirára-lhe tudo--mulher, felicidade,
+confortos de familia, dôces companhias da vida!
+
+Emfim sentiram no corredor as duas senhoras que sahiam. A mulher com a
+criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando-se
+logo do banco junto da porta, disse com satisfação:
+
+--Agora cá o patrão!
+
+--Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.
+
+--Não senhor, é só receber a receita.
+
+E immediatamente contou a historia da sua chaga: fôra uma trave que lhe
+cahira em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhára-se; e agora
+alli estava, manco e cortidinho de dôres.
+
+--E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou elle.
+
+--Eu não estou doente, disse o escrevente. São negocios com o senhor
+doutor.
+
+Os dois homens olharam-n'o com inveja.
+
+Emfim foi a vez do velho, depois a do homem amarello de braço ao peito.
+João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito
+difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protecção ao doutor. Com que
+direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dôres do peito ou
+desarranjos de estomago, e depois, incidentalmente, contar os seus
+infortunios...
+
+Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante d'elle, com a sua longa
+barba grisalha que lhe cahia sobre a quinzena de velludo preto, o largo
+chapéo desabado na cabeça, calçando as luvas de fio d'Escocia.
+
+--Ólá! és tu, rapaz! Ha novidade na rua da Misericordia?
+
+João Eduardo córou.
+
+--Não senhor, senhor doutor, queria-lhe fallar em particular.
+
+Seguiu-o ao gabinete--o conhecido gabinete do doutor Gouvêa, que com o
+seu cahos de livros, o seu tom poeirento, uma panoplia de flechas
+selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação d'uma
+«cella d'alchimista».
+
+O doutor puxou o seu _cebolão_.
+
+--Um quarto para as duas. Sê breve.
+
+A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão
+complicada.
+
+--Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não ha nada mais
+difficil que ser claro e breve; é necessario ter genio. Que é?
+
+João Eduardo então tartamudeou a sua historia, insistindo sobretudo na
+perfidia do padre, exagerando a innocencia de Amelia...
+
+O doutor escutava-o, cofiando a barba.
+
+--Vejo o que é. Tu e o padre, disse elle, quereis ambos a rapariga. Como
+elle é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a elle. É lei natural:
+o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e a prêsa
+pertencem-lhe.
+
+Aquillo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse com a voz perturbada:
+
+--Vossa excellencia está a caçoar, senhor doutor, mas a mim
+retalha-se-me o coração!
+
+--Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a philosophar, não estou a
+caçoar... Mas emfim, que queres tu que eu te faça?
+
+Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem, com mais pompa!
+
+--Eu tenho a certeza que se vossa excellencia lhe fallasse...
+
+O doutor sorriu:
+
+--Eu posso receitar á rapariga _este ou aquelle xarope_, mas não lhe
+posso impôr _este ou aquelle homem_! Queres que lhe vá dizer: «A menina
+ha de preferir aqui o snr. João Eduardo?» Queres que vá dizer ao padre,
+um maganão que eu nunca vi: «O senhor faz favor de não seduzir esta
+menina?»
+
+--Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de
+maus costumes, um patife...
+
+--Não, não te calumniaram. Sob o ponto de vista do padre e d'aquellas
+senhoras que jogam á noite o quino na rua da Misericordia tu és um
+patife: um christão que nos periodicos vitupera abbades, conegos, curas,
+personagens tão importantes para se communicar com Deus e para se salvar
+a alma, é um patife. Não te calumniaram, amigo!
+
+--Mas, senhor doutor...
+
+--Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediencia ás
+instrucções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa
+catholica. É o que te digo. Toda a vida do bom catholico, os seus
+pensamentos, as suas idéas, os seus sentimentos, as suas palavras, o
+emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de familia e
+de visinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuario e os seus
+divertimentos--tudo isto é regulado pela auctoridade ecclesiastica
+(abbade, bispo ou conego), approvado ou censurado pelo confessor,
+aconselhado e ordenado pelo _director da consciencia_. O bom catholico,
+como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem
+arbitrio, nem sentir proprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente
+por ella. O seu unico trabalho n'este mundo, que é ao mesmo tempo o seu
+unico direito e o seu unico dever, é aceitar esta direcção; aceital-a
+sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ella contraria as suas
+idéas, deve pensar que as suas idéas são falsas; se ella fere as suas
+affeições, deve pensar que as suas affeições são culpadas. Dado isto, se
+o padre disse á pequena que não devia nem casar, nem sequer fallar
+comtigo, a creatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa catholica, uma
+devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que
+escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.
+
+João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas phrases, a que a face
+placida, a bella barba grisalha do doutor davam uma auctoridade maior.
+Parecia-lhe agora quasi impossivel recuperar Amelia, se ella pertencia
+assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas
+emfim, porque era elle considerado um marido prejudicial?
+
+--Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem de maus costumes, senhor
+doutor. Mas eu porto-me bem; eu não faço senão trabalhar; eu não
+frequento tabernas nem troças; eu não bebo, eu não jógo; as minhas
+noites passo-as na rua da Misericordia, ou em casa a fazer serão para o
+cartorio...
+
+--Meu rapaz, tu pódes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a
+religião de nossos paes, todas as virtudes que não são catholicas são
+inuteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo,
+verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não
+contam. Se tu fôres um modelo de bondade mas não fôres á missa, não
+jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor
+cura--és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja
+alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impeccavel, têm sido julgados
+verdadeiros canalhas porque não foram baptisados antes de ter sido
+perfeitos. Has de ter ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado
+Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes.
+Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das
+virtudes d'esses homens estava cheio o inferno... Isto prova que a moral
+catholica é differente da moral natural e da moral social... Mas são
+coisas que tu comprehendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo
+a doutrina catholica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as
+ruas da cidade; e o meu visinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas
+e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez annos, é
+entre o clero um homem excellente porque cumpre os seus deveres de
+devoto e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo, estas coisas são
+assim. E parece que são boas, porque ha milhares de pessoas respeitaveis
+que as consideram boas, o Estado mantem-as, gasta até um dinheirão para
+as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as--e eu, que estou aqui a
+fallar, pago todos os annos um quartinho para que ellas continuem a ser
+assim. Tu naturalmente pagas menos...
+
+--Pago sete vintens, senhor doutor.
+
+--Mas emfim vaes ás festas, ouves musica, sermão, desforras-te dos teus
+sete vintens. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéa
+de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja--da Igreja que em vida
+me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um
+inferno de primeira classe. Emfim, parece-me que temos cavaqueando
+bastante... Que queres mais?
+
+João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor,
+parecia-lhe, mais que nunca, que se um homem de palavras tão sabias, de
+tantas idéas, se interessasse por elle, toda a intriga seria facilmente
+desfeita e a sua felicidade, o seu logar na rua da Misericordia
+recobrados para sempre.
+
+--Então vossa excellencia não póde fazer nada por mim? disse muito
+desconsolado.
+
+--Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia. Tens outra pneumonia a
+curar? Não? Então...
+
+João Eduardo suspirou:
+
+--Sou uma victima, senhor doutor!
+
+--Fazes mal. Não deve haver victimas, quando não seja senão para impedir
+que haja tyrannos--disse o doutor, pondo o seu largo chapéo desabado.
+
+--Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao
+doutor com uma sofreguidão d'afogado, no fim de tudo o que o patife do
+parocho quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ella fosse
+um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um impio ou não! O
+que elle quer é a rapariga!
+
+O doutor encolheu os hombros.
+
+--É natural, coitado--disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres
+tu? Elle tem para as mulheres, como homem, paixões e orgãos; como
+confessor, a importancia d'um Deus. É evidente que ha de utilisar essa
+importancia para satisfazer essas paixões; e que ha de cobrir essa
+satisfação natural com as apparencias e com os pretextos do serviço
+divino... É natural.
+
+João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que
+o trouxera alli, disse, furioso, vergastando o ar com o chapéo:
+
+--Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a vêr varrida
+da face da terra, senhor doutor!
+
+--Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutal-o ainda,
+e parando á porta do quarto. Ouve lá. Tu crês em Deus? no Deus do céo,
+no Deus que lá está no alto do céo, e que é lá de cima o principio de
+toda a justiça e de toda a verdade?
+
+João Eduardo, surprehendido, disse:
+
+--Eu creio, sim senhor.
+
+--E no peccado original?
+
+--Tambem...
+
+--Na vida futura, na redempção, etc?
+
+--Fui educado n'essas crenças...
+
+--Então para que queres varrer os padres da face da terra? Deves pelo
+contrario ainda achar que são poucos. És um liberal racionalista nos
+limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do céo, que nos
+dirige lá de cima, e no peccado original, e na vida futura, precisas
+d'uma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral
+revelada de Deus, que te ajudem a purificar da macula original e te
+preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas dos padres. E parece-me
+mesmo uma terrivel falta de logica que os desacredites pela imprensa...
+
+João Eduardo, attonito, balbuciou:
+
+--Mas vossa excellencia, senhor doutor... Desculpe-me vossa excellencia,
+mas...
+
+--Dize, homem. Eu quê?
+
+--Vossa excellencia não precisa dos padres n'este mundo...
+
+--Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso
+do Deus do céo. Isto quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro
+em mim, isto é, o principio que dirige as minhas acções e os meus
+juizos. Vulgo Consciencia... Talvez não comprehendas bem... O facto é
+que estou aqui a expôr doutrinas subversivas... E realmente são tres
+horas...
+
+E mostrou-lhe o _cebolão_.
+
+Á porta do pateo, João Eduardo disse-lhe ainda:
+
+--Vossa excellencia então desculpe, senhor doutor...
+
+--Não ha de quê... Manda a rua da Misericordia ao diabo!
+
+João Eduardo interrompeu com calor:
+
+--Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá
+por dentro!...
+
+--Ah! fez o doutor, é uma bella e grande coisa a paixão! O amor é uma
+das grandes forças da civilisação. Bem dirigida levanta um mundo e
+bastava para nos fazer a revolução moral...--E mudando de tom:--Mas
+escuta. Olha que isso ás vezes não é paixão, não está no coração... O
+coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decencia,
+para designar outro orgão. É precisamente esse orgão o unico que está
+interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E
+n'esses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!
+
+
+
+
+XV
+
+
+João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado,
+todo cansado da noite desesperada que passára, d'aquella manhã cheia de
+passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouvêa.
+
+--Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É aguentar.
+
+Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, d'esperança e de
+cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, n'um sitio isolado, longe
+de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante mezes. Mas como
+já passava das tres horas, apressava-se para o cartorio do Nunes. Teria
+talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a
+sua!
+
+Dobrára a esquina no Terreiro, quando ao pé da casa de pasto do Osorio
+se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra
+muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço sobre as
+suas feições extremamente pallidas.
+
+--Ólé! Que é feito, João Eduardo?
+
+Era um Gustavo, typographo da _Voz do Districto_, que havia dois mezes
+fôra para Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era «rapaz de cabeça e
+instruidote, mas d'idéas do diabo». Escrevia ás vezes artigos de
+Politica Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas e retumbantes,
+amaldiçoando Napoleão III, o czar e os oppressores do povo, chorando a
+escravidão da Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre elle
+e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos
+exhalavam o seu odio ao clero e a sua admiração por Jesus Christo. A
+revolução d'Hespanha enthusiasmára-o tanto que aspirára a pertencer á
+Internacional; e o desejo de viver n'um centro operario, onde houvesse
+associações, discursos e fraternidade, levára-o a Lisboa. Encontrára lá
+bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãi, velha e
+doente, e como era mais economico viverem juntos, voltára a Leiria. O
+_Districto_, além d'isso, na perspectiva d'eleições, prosperava a ponto
+de augmentar o salario aos tres typographos.
+
+--De modo que lá estou outra vez com o rachitico...
+
+Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia.
+Não havia d'acabar o mundo, que diabo, por elle faltar um dia ao
+cartorio!
+
+João Eduardo então lembrou-se que desde a vespera não tinha comido. Era
+talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão prompto a
+desanimar... Decidiu-se logo--contente, depois das emoções e das fadigas
+da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante d'um prato cheio, na
+intimidade com um camarada d'odios iguaes aos seus. Demais, os repellões
+que soffrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de sympathia; e foi
+com calor que disse:
+
+--Homem, valeu! Caes-me do céo! Este mundo é uma choldra. Se não fosse
+por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar
+por cá!
+
+Este modo, tão novo no João Eduardo, no _Pâcatinho_, espantou Gustavo.
+
+--Porquê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hein?
+perguntou-lhe.
+
+--Não. Um bocado de _spleen_.
+
+--Isso de _spleen_ é d'inglez! Oh menino, havias de vêr o Taborda no
+_Amor londrino_!... Deixa lá o _spleen_. É deitar lastro para dentro e
+carregar no liquido!
+
+Travou-lhe do braço, metteu-o pela porta da taberna.
+
+--Viva o tio Osorio! Saude e fraternidade!
+
+O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem obeso e contente da
+vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos hombros, os braços nús
+muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa e finoria,
+felicitou logo Gustavo de o vêr de novo em Leiria. Achava-o mais
+magrito... Havia de ser das más aguas de Lisboa e do muito _pau
+campeche_ nos vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?
+
+Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéo para a nuca,
+apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o enthusiasmára em Lisboa:
+
+--Tio Osorio, sirva-nos figado de rei, com rim grelhado de padre!
+
+O tio Osorio, prompto á réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha
+sobre o zinco do contador:
+
+--Não temos cá d'isso, snr. Gustavo. Isso é petisco da capital.
+
+--Então estão vossês muito atrazados! Em Lisboa era todos os dias o meu
+almoço... Bem, acabou-se, dê-nos duas iscas com batatas... E bem
+saltadinho, isso!
+
+--Hão de ser servidos como amigos.
+
+Accommodaram-se á «mesa dos envergonhados», entre dois tabiques de pinho
+fechados por uma cortina de chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo,
+«moço instruido e de pouca troça», veio elle mesmo trazer a garrafa do
+tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:
+
+--Então que ha de novo pela capital, snr. Gustavo? Como vai por lá
+aquillo?
+
+O typographo deu immediatamente seriedade ao rosto; passou a mão pelos
+cabellos, e deixou cahir algumas phrases enigmaticas:
+
+--Tremidito... Muito pouca vergonha em politica... A classe operaria
+começa a mexer-se... Falta d'união, por ora... Está-se á espera de vêr
+como as coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas! Tudo
+depende d'Hespanha ...
+
+Mas o tio Osorio, que juntára alguns vintens e comprára uma fazenda,
+tinha horror a tumultos... O que se queria no paiz era paz... Sobretudo
+o que lhe desagradava era contar-se com hespanhoes... De Hespanha,
+deviam os cavalheiros sabel-o, «nem bom vento nem bom casamento»!
+
+--Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar d'atirar
+abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não ha
+portuguezes nem hespanhoes, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio
+Osorio!
+
+--Pois então é beber-lhe á saude, e beber-lhe rijo, que isso é que faz
+andar o negocio, disse o tio Osorio tranquillamente, rolando a sua
+obesidade para fóra do cubiculo.
+
+--Elephante! rosnou o typographo, chocado com aquella indifferença pela
+Fraternidade dos Povos. Que se podia esperar, de resto, d'um
+proprietario e d'um agente d'eleições?
+
+Trauteou a _Marselheza_, enchendo os copos d'alto, e quiz saber o que
+tinha feito o amigo João Eduardo... Já se não ia pelo _Districto_? O
+rachitico dissera-lhe que não havia despegal-o da rua da Misericordia...
+
+--E quando é esse casamento, por fim?
+
+João Eduardo córou, disse vagamente:
+
+--Nada decidido... Tem havido difficuldades.--E acrescentou com um
+sorriso desconsolado:--Temos tido arrufos.
+
+--Pieguices! soltou o typographo, com um movimento d'hombros, que
+exprimia um desdem de revolucionario pelas frivolidades do sentimento.
+
+--Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é
+que dão desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...
+
+Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.
+
+Mas o typographo achava todas essas historias de mulheres ridiculas. O
+tempo não estava para amores... O homem do povo, o operario que se
+agarrava a uma saia para não despegar, era um inutil... era um vendido!
+Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao
+povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopolios,
+trabalhar para a republica! Não se queria lamuria, queria-se acção,
+queria-se a força!--E carregava furiosamente no _r_ da palavra--a
+forrrça!--agitando os seus pulsos magrissimos de tisico sobre o grande
+prato d'iscas que o moço trouxera.
+
+João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o typographo,
+doido pela Julia padeira, apparecia sempre com os olhos vermelhos como
+carvões, e atroava a typographia com suspiros medonhos. A cada _ai_ os
+camaradas, troçando, davam uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo,
+Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pateo...
+
+--Olha quem falla! disse por fim. És como os outros... Estás ahi a
+palrar, e quando te chega és como os outros.
+
+O typographo então--que, desde que em Lisboa frequentára um Club
+democratico d'Alcantara e ajudára a redigir um manifesto aos irmãos
+cigarreiros em _grève_, se considerava exclusivamente votado ao serviço
+do Proletariado e da Republica--escandalisou-se. Elle? Elle como os
+outros? Perder o seu tempo com saias?...
+
+--Está vossa senhoria muito enganado!--E recolheu-se a um silencio
+chocado, partindo com furor a sua isca.
+
+João Eduardo receou tel-o offendido.
+
+--Ó Gustavo, sejamos razoaveis: um homem póde ter os seus principios,
+trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma
+família.
+
+--Nunca! exclamou o typographo exaltado. O homem que casa está perdido!
+D'ahi por diante é ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um
+momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando elles
+berram com os dentes... É um inutil! é um vendido! As mulheres não
+entendem nada de politica. Têm medo que o homem se metta em barulhos,
+tenha turras com a policia... Está um patriota atado de pés e mãos! E
+quando ha um segredo a guardar? O homem casado não póde guardar um
+segredo!... E ahi está ás vezes uma revolução compremettida... Sêbo
+p'r'á familia! Outra de azeitonas, tio Osorio!
+
+A pansa do tio Osorio appareceu entre os tabiques.
+
+--Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram
+os da _Maia_ no conselho de districto?
+
+Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de perna estirada, e
+interpellando-o d'alto:
+
+--O tio Osorio é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de
+mudar as suas opiniões politicas para fazer a vontade á sua patrôa?
+
+O tio Osorio acariciou o cachaço e disse com um tom finorio:
+
+--Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós...
+E em politica, como em negocio, quem fôr com o que ellas dizem vai pelo
+seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai em
+vinte annos e não me tenho achado mal.
+
+Gustavo pulou no banco:
+
+--Vossê é um vendido! gritou.
+
+O tio Osorio, acostumado áquella expressão querida do typographo, não se
+escandilisou; gracejou até, com o seu amor ás boas réplicas:
+
+--Vendido não direi, mas vendedor p'r'ó que quizer... Pois é o que lhe
+digo, snr. Gustavo. O senhor casará, e depois m'as contará.
+
+--O que lhe hei de contar, é quando houver uma revolução, entrar-lhe por
+aqui d'espingarda ao hombro, e mettel-o em conselho de guerra, seu
+capitalista!
+
+--Pois emquanto isso não chega é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio
+Osorio retirando-se com pachorra.
+
+--Hippopotamo! resmungou o typographo.
+
+E, como adorava discussões, recomeçou logo--sustentando que o homem,
+embeiçado por uma saia, não tem firmeza nas suas convicções politicas...
+
+João Eduardo sorria tristemente, n'uma negação muda, pensando comsigo
+que, apesar da sua paixão por Amelia, não se tinha confessado nos dois
+ultimos annos!
+
+--Tenho provas! berrava Gustavo.
+
+Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz
+domestica, se sujeitava a jejuar ás sextas-feiras, e a palmilhar aos
+domingos o caminho da capella de ripanço debaixo do braço...
+
+--E é o que te ha de succeder!... Tu tens idéas menos más a respeito de
+religião, mas ainda te hei de vêr d'opa vermelha e cirio na mão na
+procissão do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo não custam nada
+quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas pratical-os em
+familia, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te
+ha de succeder, se é que te não vai succedendo já: has de atirar as tuas
+convicções liberaes para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao
+confessor da casa!
+
+João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua
+felicidade, quando tinha Amelia certa, aquella accusação (que o
+typographo fazia só para questionar, para palrar) tel-o-hia
+escandalisado. Mas hoje! Justamente quando elle perdera Amelia por ter
+dito d'alto, n'um jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava
+alli, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exactamente
+pelas suas opiniões liberaes!...
+
+--Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.
+
+O typographo galhofou:
+
+--Homem, não me constou ainda que fosses um _martyr da liberdade_!
+
+--Por quem és não me apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito
+chocado. Tu não sabes o que se tem passado. Se soubesses não me dizias
+isso...
+
+Contou-lhe então a historia do _Communicado_--calando todavia que o
+escrevera n'um fogo de ciumes, e apresentando-o como uma pura affirmação
+de principios... E que notasse esta circumstancia, ia então casar com
+uma rapariga devota, n'uma casa que era mais frequentada por padres que
+a sacristia da Sé...
+
+--E assignaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.
+
+--O doutor Godinho não quiz, disse o escrevente córando um pouco.
+
+--E déste-lhes uma desanda, hein?
+
+--A todos, de rachar!
+
+O typographo, enthusiasmado, berrou por «outra de tinto»!
+
+Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saude a João Eduardo.
+
+--Caramba, quero vêr isso! Quero mandal-o á rapaziada em Lisboa!... E
+que effeito fez?
+
+--Um escandalo mestre.
+
+--E os padrecas?
+
+--Em braza!
+
+--Mas como souberam que eras tu?
+
+João Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava
+da mulher do Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fôra metter no
+bico do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio da rua das
+Therezas...
+
+--Um gordo, que parece hydropico?
+
+--Sim.
+
+--Que bêsta! rugiu o typographo com rancor.
+
+Olhava agora João Eduardo com respeito, aquelle João Eduardo que se lhe
+revelava inesperadamente um paladino do livre-pensamento.
+
+--Bebe, amigo, bebe!--dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com affecto, como
+se aquelle esforço heroico de liberalismo necessitasse ainda, depois de
+tantos dias, reconfortos excepcionaes.
+
+E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da rua da Misericordia?
+
+Tanto interesse commoveu João Eduardo: e d'um fôlego fez a sua
+confidencia. Mostrou-lhe mesmo a carta d'Amelia que ella decerto,
+coitada, fôra levada a escrever n'um terror do inferno, sob a pressão
+dos padres furiosos...
+
+--E aqui tens a victima que eu sou, Gustavo!
+
+Era-o com effeito; e o typographo considerava-o com uma admiração
+crescente. Já não era o _Pacatinho_, o escrevente do Nunes, o chichisbéo
+da rua da Misericordia--era uma _victima das perseguições religiosas_.
+Era a primeira que o typographo via; e, apesar de não lhe apparecer na
+attitude tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de
+fogueira ou fugindo com a familia espavorida a soldados que galopam da
+sombra do ultimo plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente
+aquella honra social. Que _chic_ que lhe daria a elle entre a rapaziada
+d'Alcantara! Famosa pechincha, ser uma _victima da reacção_ sem perder o
+conforto das iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!--Mas
+sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem d'um
+liberal, intrigarem-no, tiraram-lhe a noiva!--Oh, que canalha!... E
+esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e á Familia, trovejou d'alto
+contra o clero, que é quem sempre destroe essa instituição social,
+perfeita, d'origem divina!
+
+--Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessario arrasal-os!
+
+Uma vingança? João Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?
+
+--Qual? Contar tudo no _Districto_, n'um artigo tremendo!
+
+João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: d'alli por diante
+o _Districto_ estava fechado aos senhores livre-pensadores!
+
+--Cavalgadura! rugiu o typographo.
+
+Mas tinha uma idéa, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte
+paginas, o que se chama no Brazil uma _mofina_, mas n'um estylo floreado
+(elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero com um desabamento
+de verdades mortaes!
+
+João Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella sympathia activa de
+Gustavo, vendo n'elle um irmão, soltou as ultimas confidencias, as mais
+dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre Amaro
+pela pequena, e era para se apoderar d'ella que o escorraçava a elle...
+O inimigo, o malvado, o carrasco--era o parocho!
+
+O typographo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era
+para elle trivial, nas locaes que compunha) succedido a um amigo seu que
+estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe monstruoso,
+alguma coisa semelhante aos furores de Tiberio na velhice, violando, em
+banhos perfumados, as carnes delicadas de mancebos patricios.
+
+Não queria acreditar. João Eduardo accumulou as provas. E então Gustavo,
+que tinha molhado vastamente de tinta as iscas de figado, ergueu os
+punhos fechados, e com a face entumecida, dente rilhado, berrou em
+rouco:
+
+--Abaixo a religião!
+
+Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em réplica:
+
+--Viva Pio Nono!
+
+Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido. Mas João Eduardo
+socegou-o. E o typographo, sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo
+do copo.
+
+Então, com os cotovêlos sobre a mesa, a garrafa entre elles, conversaram
+baixo, de rosto a rosto, sobre o plano do folheto. A coisa era facil:
+escrevel-o-hiam ambos. João Eduardo queria-o em fórma de romance,
+d'enredo negro, dando ao personagem do parocho os vicios e as
+perversidades de Caligula e d'Hellogabalo. O typographo porém queria um
+livro philosophico, de estylo e de principios, que **demolisse** d'uma
+vez para sempre o Ultramontanismo! Elle mesmo se encarregava de imprimir
+a obra aos serões, _gratis_, já se sabe.--Mas appareceu-lhes então,
+bruscamente, uma difficuldade.
+
+--O papel? Como se ha de arranjar o papel?
+
+Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum os tinha--nem um amigo
+que, por dedicação aos principios, lh'os adiantasse.
+
+--Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o
+typographo.
+
+João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente
+pensando no Nunes e na sua indignação de devoto, de membro da junta de
+parochia, d'amigo do chantre, apenas lêsse o pamphleto! E se soubesse
+que era o seu escrevente que o compuzera, com as pennas do cartorio, no
+papel almaço do cartorio... Via-o já rôxo de cólera, alçando sobre o
+bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e gritando na voz de
+grillo:--«Fóra d'aqui, pedreiro-livre, fóra d'aqui!»
+
+--Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher
+nem pão!
+
+Isto fez lembrar tambem a Gustavo a cólera provavel do doutor Godinho,
+dono da typographia. O doutor Godinho, que depois da reconciliação com a
+gente da rua da Misericordia, retomára publicamente a sua consideravel
+posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...
+
+--É o diabo, póde-nos sahir caro, disse elle.
+
+--É impossivel! disse o escrevente.
+
+Então praguejaram de raiva. Perder uma occasião d'aquellas para pôr a
+calva á mostra ao clero!
+
+O plano do folheto, como uma columna tombada que parece maior,
+afigurava-se-lhes, agora que estava derrubado, d'uma altura, d'uma
+importancia colossal. Não era já a demolição local d'um parocho
+scelerado, era a ruina, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos
+jesuitas, do poder temporal, de outras coisas funestas...--Maldição! se
+não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil
+reis do papel...
+
+Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro e dependencia do
+patrão, que até para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a
+sociedade.
+
+--Positivamente é necessario uma revolução! affirmou o typographo. É
+necessario arrasar tudo, tudo!--E o seu largo gesto sobre a mesa
+indicava, n'um formidavel nivelamento social, uma demolição de igrejas,
+palacios, bancos, quarteis e predios de Godinhos!--Outra do tinto, tio
+Osorio!...
+
+Mas o tio Osorio não apparecia. Gustavo martellou a mesa a toda a força
+com o cabo da faca. E emfim, furioso, sahiu fóra ao contador «para
+arrebentar a pansa áquelle vendido que fazia assim esperar um cidadão».
+
+Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de
+Via-Clara, que, em vesperas d'eleições, vinha pelas casas de pasto
+apertar a mão aos compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o
+barão, com a sua luneta d'ouro, os botins de verniz sobre o sólo terreo,
+tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das emanações das borras
+de vinho.
+
+Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubiculo.
+
+--Está com o barão, disse n'uma surdina respeitosa.
+
+Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o
+typographo exhortou-o a não esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de
+casar com uma beata...
+
+--Não me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu João Eduardo com um
+repellão no prato.
+
+--Não te afflijas, prometteu o typographo com solemnidade, que a
+vingança não vem longe!
+
+Fez-lhe então, baixo, a confidencia «das coisas que se preparavam em
+Lisboa». Tinham-lhe afiançado que havia um club republicano a que até
+pertenciam figurões--o que era para elle uma garantia superior de
+triumpho. Além d'isso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Elle mesmo--e
+murmurava quasi contra a face de João Eduardo, estirado sobre a
+mesa--fôra fallado para pertencer a uma secção da Internacional, que
+devia organisar um hespanhol de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se
+disfarçava por causa da policia; e a coisa falhára porque o _Comité_
+tinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuia um
+talho, que promettera cem mil reis... O exercito, além d'isso, estava na
+coisa: tinha visto n'uma reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham
+dito que era major, e que tinha cara de major...--De modo que, com todos
+estes elementos, a opinião d'elle Gustavo, era que dentro de mezes,
+governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam
+pelos ares!
+
+--E então somos nós os reisinhos, menino! Godinho, Nunes, toda a cambada
+ferramol-a na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao
+Godinho... Padres, derreamol-os á pancada! E o povo respira, emfim!
+
+--Mas d'aqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que
+quando a revolução viesse já seria tarde para recuperar a Ameliasinha...
+
+O tio Osorio então appareceu com a garrafa.
+
+--Ora até que emfim, «seu fidalgo»! disse o typographo a trasbordar de
+sarcasmo.
+
+--Não se pertence á classe, mas é-se tratado por ella com consideração,
+replicou logo o tio Osorio, a quem a satisfação fazia parecer mais
+pansudo.
+
+--Por causa de meia duzia de votos!
+
+--Dezoito na freguezia, e esperanças de dezenove. E que se ha de servir
+mais aos cavalheiros? Nada mais? Pois é pena. Então é beber-lhe, é
+beber-lhe!
+
+E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia,
+aspirarem a uma Revolução que lhes permittisse--a um rehaver a menina
+Amelia, a outro espancar o patrão Godinho.
+
+Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim do cubiculo. O tio Osorio,
+que se interessava por elles por serem rapazes d'instrucção, notou logo,
+examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu _Popular_, que
+«vinham tocaditos». João Eduardo, sobretudo, de chapéo carregado e beiço
+trombudo: «pessoa de mau vinho», pensou o tio Osorio, que o conhecia
+pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre, depois dos seus tres litros,
+resplandecia de jubilo. Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e
+gingando para o balcão, batendo d'alto com as suas duas placas:
+
+--Encafua mais essas na burra, Osorio pipa!
+
+--O que é pena é que sejam só duas, snr. Gustavo.
+
+--Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para
+encher a pansa dos Philistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste
+de contas quem ha de ter a honra de te furar esse bandulho ha de ser cá
+o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João,
+quem é o Bibi?
+
+João Eduardo não o escutava: muito carrancudo, olhava com desconfiança
+um borracho, que na mesa do fundo, diante do seu litro vazio, com o
+queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes, embasbacára,
+maravilhado, para os dois amigos.
+
+O typographo puxou-o para o balcão:
+
+--Dize aqui ao tio Osorio quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe p'ra
+isto, tio Osorio! Rapaz de talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas
+pennadas dá cabo do ultramontanismo! É cá dos meus! Tambem entre nós é
+p'r'á vida e p'r'á morte. Deixa lá a conta, Osorio barrigudo, ouve o que
+te digo! Este é dos bons... E se elle aqui voltar e quizer dois litros a
+credito, é dar-lh'os... Cá o Bibi responde por tudo.
+
+--Temos pois, começou o tio Osorio, iscas a dois, salada a dois...
+
+Mas o borracho arrancára-se com esforço ao seu banco: de cachimbo
+espetado, arrotando forte, veio plantar-se diante do typographo, e,
+tremeleando nas pernas, estendeu-lhe a mão aberta.
+
+Gustavo considerou-o d'alto, com nojo:
+
+--Que quer vossê? Aposto que foi vossê que berrou ha pouco «Viva Pio
+Nono»? Seu vendido... Tire p'ra lá a pata!
+
+O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando contra João Eduardo,
+offereceu-lhe a mão espalmada.
+
+--Arrede p'ra lá, seu animal! disse-lhe o escrevente desabrido.
+
+--Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava o borracho.
+
+E não se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um
+halito fetido.
+
+João Eduardo, furioso, atirou-o de repellão contra o contador.
+
+--Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo severamente o tio Osorio.
+Brutalidades, não!
+
+--Que se não mettesse commigo, rosnou o escrevente. E a vossê faço-lhe o
+mesmo...
+
+--Quem não tem decencia vai p'r'á rua, disse muito grave o tio Osorio.
+
+--Quem vai p'r'á rua, quem vai p'r'á rua? rugiu o escrevente,
+empinando-se, de punho fechado. Repita lá isso d'ir p'r'á rua! Com quem
+está vossê a fallar?
+
+O tio Osorio não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando
+os seus enormes braços que lhe faziam o estabelecimento respeitado.
+
+Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os dois, e declarou que era
+necessario ser-se cavalheiro! Questões e más palavras, não! Podia-se
+chalacear e troçar os amigos, mas como cavalheiros! E alli só havia
+cavalheiros!
+
+Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava muito resentido.
+
+--Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes gestos, isso não é d'um
+homem illustrado!
+
+Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho
+desordeiro, não havia pandega, nem sociedade, nem fraternidade!
+
+Voltou ao tio Osorio, fallando-lhe sobre o hombro, excitado:
+
+--Eu respondo por elle, Osorio! É um cavalheiro! Mas tem tido desgostos,
+e não está acostumado a um litro de mais. É o que é! Mas é dos bons...
+Vossê desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por elle...
+
+Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osorio. O
+taberneiro declarou com emphase que não quizera insultar o cavalheiro.
+Os _shake-hands_ então succederam-se com vehemencia. Para consolidar a
+reconciliação, o typographo pagou tres «canas brancas». João Eduardo,
+por brio, offereceu tambem um «giro» de cognac. E com os copos em fila
+sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de
+cavalheiros--emquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para
+cima da mesa, a cabeça sobre os punhos e o nariz sobre o litro, se
+babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.
+
+--D'isto é que eu gósto! dizia o typographo a quem a aguardente
+augmentára a ternura. Harmonia! Cá o meu fraco é a harmonia! Harmonia
+entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era vêr uma
+grande mesa, e toda a humanidade sentada n'um banquete, e fogo preso, e
+chalaça, e decidirem-se as questões sociaes! E o dia não vem longe em
+que vossê o ha de vêr, tio Osorio!... Em Lisboa as coisas vão-se
+preparando p'ra isso. E o tio Osorio é que ha de fornecer o vinho...
+Hein, que negociosinho! Diga que não sou amigo!
+
+--Obrigado, snr. Gustavo, obrigado...
+
+--Isto aqui entre nós, hein, que somos todos cavalheiros! E cá
+este--abraçava João Eduardo--é como se fosse irmão! Entre nós é p'r'á
+vida e p'r'á morte! E é mandar a tristeza ao diabo, rapaz! Toca a
+escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...
+
+--O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente, que, depois das
+«saudes» com cana, parecia mais sombrio.
+
+Dois soldados entraram então na taberna--e Gustavo julgou que eram horas
+d'ir para a typographia. Senão, não se haviam de separar todo o dia, não
+se haviam de separar toda a vida!... Mas o trabalho é dever, o trabalho
+é virtude!
+
+Sahiram, emfim, depois de mais _shake-hands_ com o tio Osorio. Á porta,
+Gustavo jurou ainda ao escrevente uma lealdade d'irmão; obrigou-o a
+aceitar a sua bolsa de tabaco; e desappareceu á esquina da rua, de
+chapéo para a nuca, trauteando o _Hymno do trabalho_.
+
+
+João Eduardo, só, abalou logo para a rua da Misericordia. Ao chegar á
+porta da S. Joanneira, apagou com cuidado o cigarro na sola do sapato, e
+deu um puxão tremendo ao cordão da campainha.
+
+A _Ruça_ veio, correndo.
+
+--A Ameliasinha? Quero-lhe fallar!
+
+--As senhoras sahiram, disse a _Ruça_ espantada do modo do snr.
+Joãosinho.
+
+--Mente, sua bebeda! berrou o escrevente.
+
+A rapariga, aterrada, fechou a porta d'estalo.
+
+João Eduardo foi-se encostar á parede defronte, e ficou alli, de braços
+cruzados, observando a casa: as janellas estavam fechadas, as cortinas
+de cassa corridas: dois lenços de rapé do conego seccavam em baixo na
+varanda.
+
+Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com
+furor a campainha. Ninguem appareceu: então, indignado, partiu para os
+lados da Sé.
+
+Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando
+em redor com o sobr'olho carregado: mas o largo parecia deserto; á porta
+da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau, guardava pela
+arreata um burro carregado de herva; aqui e além, gallinhas iam picando
+o chão vorazmente; o portão da igreja estava fechado; e apenas se ouvia
+o ruido de martelladas n'uma casa ao pé em que havia obras.
+
+E João Eduardo ia seguir para os lados da Alameda--quando appareceram no
+terraço da igreja, da banda da sacristia, o padre Silverio e o padre
+Amaro, conversando, devagar.
+
+Batia então um quarto na torre, e o padre Silverio parou a acertar o seu
+_cebolão_. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janella da
+administração, de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do
+senhor administrador de binoculo cravado para a casa do Telles alfaiate.
+E desceram emfim a escadaria da Sé, rindo d'hombro a hombro, divertidos
+com aquella paixão que escandalisava Leiria.
+
+Foi então que o parocho viu João Eduardo que estacára no meio do largo.
+Parou para voltar á Sé decerto, evitar o encontro; mas viu o portão
+fechado, e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio que tirava
+tranquillamente a sua caixa de rapé,--quando João Eduardo,
+arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a força um murro ao
+hombro d'Amaro.
+
+O parocho, aturdido, ergueu frouxamente o guardachuva.
+
+--Acudam! berrou logo o padre Silverio, recuando de braços no ar.
+Acudam!
+
+Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o
+escrevente pela gola:
+
+--Está preso! rugia. Está preso!
+
+--Acudam, acudam! berrava Silverio a distancia.
+
+Janellas no largo abriam-se á pressa. A Amparo da botica, em saia
+branca, appareceu á varanda, espavorida; o Carlos precipitára-se do
+laboratorio em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada,
+bracejava, com o binoculo na mão.
+
+Emfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave,
+de mangas de lustrina enfiadas: e com o cabo de policia levou logo para
+a administração o escrevente, que não resistia, todo pallido...
+
+O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor parocho para a botica;
+fez preparar, com estrepito, flôr de laranja e ether; gritou pela
+esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o hombro de sua
+senhoria: haveria intumecencia?
+
+--Obrigado, não é nada, dizia o parocho muito branco. Não é nada. Foi um
+raspão. Basta-me uma gota d'agua...
+
+Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho do Porto; e correu acima a
+buscar-lh'o, tropeçando nos pequenos que se lhe penduravam das saias,
+dando ais, explicando pela escada á criada que tinham querido matar o
+senhor parocho!
+
+Á porta da botica juntára-se gente, que embascava para dentro; um dos
+carpinteiros que trabalhavam nas obras affirmava que «fôra uma facada»;
+e uma velha por traz debatia-se, de pescoço esticado, para vêr o
+_sangue_. Emfim, a pedido do parocho, que receava escandalo, o Carlos
+veio magestosamente declarar que não queria motim à porta! O senhor
+parocho estava melhor. Fôra apenas um sôco, um raspão de mão... Elle
+respondia por sua senhoria.
+
+E, como o burro ao lado começára a ornear, o pharmaceutico voltando-se
+indignado para o rapazito que o segurava pela arreata:
+
+--E tu não tens vergonha, no meio d'um desgosto d'estes, um desgosto
+para toda a cidade, de ficar aqui com esse animal, que não faz senão
+zurrar! Para longe, insolente, para longe!
+
+Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para
+evitar a «curiosidade da populaça». E a boa Amparo appareceu logo com
+dois calices do Porto, um para o senhor parocho, outro para o senhor
+padre Silverio que se deixára cahir a um canto do canapé, apavorado
+ainda, extenuado d'emoção.
+
+--Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois de ter chupado a
+ultima gota de _porto_, e é a primeira vez que me vejo n'um barulho!
+
+O padre Amaro, mais socegado agora, affectando bravura, chasqueou o
+padre Silverio:
+
+--Vossê tomou o caso muito ao tragico, collega... E lá ser a primeira,
+vamos lá... Todos sabem que o collega esteve pegado com o Natario...
+
+--Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era entre sacerdotes, amigo!
+
+Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo outro calix ao senhor
+parocho, quiz saber «os particulares, todos os particulares...»
+
+--Não ha particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o collega...
+Vinhamos cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava
+desprevenido, deu-me um raspão no hombro.
+
+--Mas porquê? porquê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, n'um
+assombro.
+
+O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, elle dissera, diante
+da Amparosinho e de D. Josepha, a irmã do respeitavel conego Dias, que
+estas idéas de materialismo e atheismo estavam levando a mocidade aos
+mais perniciosos excessos... E mal sabia elle então que estava
+prophetisando!
+
+--Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os
+deveres de christão (assim nol-o affirmou D. Josepha), associa-se com
+bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas
+senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos
+periodicos ataques abjectos contra a **religião**... E emfim, possuido
+de uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo da cathedral, sobre
+um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta
+assassinal-o! Ora, pergunto eu, o que ha no fundo de tudo isto? Odio,
+puro odio á religião de nossos paes!
+
+--**Infelizmente** assim é, suspirou o padre Silverio.
+
+Mas a Amparo, indifferente ás causas philosophicas do delicto, ardia na
+curiosidade de saber o que se passaria na administração, o que diria o
+escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se logo
+a ir averiguar.
+
+De resto, disse elle, era o seu dever, como homem de sciencia,
+esclarecer a justiça sobre as consequencias que **podia ter** trazido um
+murro, a força de braço, na região delicada da clavicula... (ainda que,
+louvado Deus, não havia fractura, nem inchaço), e sobretudo queria
+revelar á auctoridade, para que ella tomasse as suas providencias, que
+aquella tentativa d'espancamento não provinha de vingança pessoal. Que
+podia ter feito o senhor parocho da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha
+d'uma vasta conspiração d'atheus e republicanos contra o sacerdocio de
+Christo!
+
+--Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.
+
+--E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do
+concelho!
+
+Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de
+chinelas e quinzena de laboratorio: mas Amparo alcançou-o no corredor:
+
+--Oh, filho! a sobrecasaca, põe a sobrecasaca ao menos, que o
+administrador é de ceremonia!
+
+Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o Carlos, com a imaginação
+trabalhando viva (aquella desgraçada imaginação que, como elle dizia,
+até ás vezes lhe dava dôres de cabeça), ia preparando o seu depoimento,
+que faria ruido na cidade. Fallaria de pé. Na saleta da administração
+seria um apparato judicial: á sua mesa, o senhor administrador, grave
+como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses, activos sobre o
+seu papel sellado; e o réo, defronte, na attitude tradicional dos
+criminosos politicos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta
+desafiando a morte. Elle, Carlos, então, entraria e diria: _Senhor
+administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindicta
+social_!
+
+--Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro, que é tudo resultado
+d'uma conspiração do racionalismo. Pódes estar certa, Amparosinho, é uma
+conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido d'esforço, as
+presilhas dos botins de cano.
+
+--E repara se elle falla da pequena, da S. Joanneira...
+
+--Hei de tomar notas. Mas não se trata da S. Joanneira. Isto é um
+processo politico!
+
+Atravessou o largo magestosamente, certo que os visinhos, pelas portas,
+murmuravam: _Lá vai o Carlos depôr_... Ia depôr, sim, mas não sobre o
+murro no hombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o
+que estava por traz do murro--uma conspiração contra a Ordem, a Igreja,
+a Carta e a Propriedade! É o que elle provaria d'alto ao senhor
+administrador. Este murro, excellentissimo senhor, é o primeiro excesso
+d'uma grande revolução social!
+
+E empurrando o batente de baeta que dava accesso para a administração do
+concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o
+vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o apparato judicial
+que elle concebera. O réo lá estava, sim, pobre João Eduardo, mas
+sentado á beira do banco, com as orelhas em braza, olhando estupidamente
+o soalho. Arthur Couceiro, embaraçado com a presença d'aquelle intimo
+dos serões da S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o não olhar
+fixára o nariz sobre o immenso copiador d'officios, onde desdobrára o
+_Popular_ da vespera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas
+e muito sérias, embebia-se na ponta da penna de pato que aparava sobre a
+unha. O escrivão Domingos, esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis
+rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; era tempo
+de trazer a sua idéa... E o Carlos então adiantando-se:
+
+--Meus senhores! O senhor administrador?
+
+Justamente a voz de sua excellencia chamou de dentro do seu gabinete:
+
+--Ó snr. Domingos?
+
+O escrivão perfilou-se, puxando os oculos para a testa.
+
+--Senhor administrador!
+
+--O senhor tem phosphoros?
+
+O Domingos procurou anciosamente pela algibeira, na gaveta, entre os
+papeis...
+
+--Algum dos senhores tem phosphoros?
+
+Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa... Não, não havia phosphoros.
+
+--Ó snr. Carlos, o senhor tem phosphoros?
+
+--Não tenho, snr. Domingos. Sinto.
+
+O senhor administrador appareceu então, ageitando as suas lunetas de
+**tartaruga**:
+
+--Ninguem tem phosphoros, hein? É extraordinario que não haja aqui nunca
+phosphoros! Uma repartição d'estas sem um phosphoro... Que fazem os
+senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez meia duzia de caixas!
+
+Os empregados olhavam-se consternados d'essa falta flagrante no material
+do serviço administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presença e
+da attenção de sua excellencia:
+
+--Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e
+espontaneo, por assim dizer...
+
+--Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu a auctoridade. O parocho e
+o outro ainda estão lá na botica?
+
+--O senhor parocho e o senhor padre Silverio ficaram com minha esposa a
+repousar da commoção que...
+
+--Tem a bondade de lhes ir dizer que são cá precisos...
+
+--Eu estou á disposição da lei.
+
+--Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir
+embora! Vejam que massada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição
+fecha-se ás tres!
+
+E sua excellencia, rodando sobre os tacões, foi debruçar-se á sacada do
+seu gabinete--áquella sacada d'onde elle diariamente, das onze ás tres,
+retorcendo o bigode louro e entesando o plastron azul, depravava a
+mulher do Telles.
+
+O Carlos abria já o batente verde, quando um _pst_ do Domingos o deteve.
+
+--Ó amigo Carlos--e o sorrisinho do escrivão tinha uma supplicação
+tocante--desculpe, hein? Mas... Traz-me de lá uma caixita de phosphoros?
+
+N'este momento à porta apparecia o padre Amaro; e por traz a massa
+enorme do Silverio.
+
+--Eu desejava fallar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.
+
+Todos os empregados se ergueram; João Eduardo tambem, branco como a cal
+do muro. O parocho, com as suas passadas subtis d'ecclesiastico,
+atravessou a repartição, seguido do bom Silverio que ao passar diante do
+escrevente descreveu d'esguelha um semi-circulo cauteloso, com terror ao
+réo; o senhor administrador acudira a receber suas senhorias; e a porta
+do gabinete fechou-se discretamente.
+
+--Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos
+collegas.
+
+O Carlos sentára-se descontente. Viera alli para esclarecer a
+auctoridade sobre os perigos sociaes que ameaçavam Leiria, o Districto e
+a Sociedade, para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo elle,
+era um processo politico--e alli estava calado, esquecido, no mesmo
+banco ao lado do réo! Nem lhe tinham offerecido uma cadeira! Seria
+realmente intoleravel que as coisas se arranjassem entre o parocho e o
+administrador sem o consultarem a elle! Elle, o unico que percebera
+n'aquelle murro dado no hombro do padre--não o punho do escrevente, mas
+a mão do Racionalismo! Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe um
+erro funesto na administração do Estado. Positivamente o administrador
+não tinha a capacidade necessaria para salvar Leiria dos perigos da
+revolução! Bem se dizia na Arcada--era uma bambocha!
+
+A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador
+reluziram.
+
+--Ó snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar? disse sua excellencia.
+
+O escrivão apressou-se com importancia; e a porta cerrou-se de novo,
+confidencialmente. Ah! aquella porta, fechada diante d'elle, deixando-o
+de fóra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires, com o Arthur,
+entre as intelligencias subalternas, elle que promettera á Amparosinho
+fallar d'alto ao administrador! E quem era ouvido, e quem era chamado? O
+Domingos, um animal notorio, que começava _satisfação_ com um _c_
+cedilhado! Que se podia de resto esperar d'uma auctoridade que passava
+as manhãs de binoculo a deshonrar uma familia? Pobre Telles, seu
+visinho, seu amigo!... Não, realmente devia fallar ao Telles!
+
+Mas a sua indignação cresceu quando viu o Arthur Couceiro, um empregado
+da repartição, na ausencia do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha,
+vir familiarmente junto do réo, dizer-lhe com melancolia:
+
+--Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja-se,
+verás!
+
+João tinha encolhido tristemente os hombros. Havia meia hora que alli
+estava, sentado á beira d'aquelle banco, sem se mexer, sem despregar os
+olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de idéas, como se
+lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osorio e
+no largo da Sé lhe accendia na alma fogachos de cólera, lhe retesava os
+pulsos n'um desejo de desordem, parecia subitamente eliminado do seu
+organismo. Sentia-se agora tão inoffensivo como quando no cartorio
+aparava cautelosamente a sua penna de pato. Um grande cansaço
+entorpecia-o; e alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo o
+seu sêr, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S.
+Francisco, dormir n'uma palhoça, comer da Misericordia... Não tornaria a
+passear na Alameda, não veria mais Amelia... A casita em que vivia seria
+alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho,
+ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugenia, a visinha, o
+recolhesse...
+
+O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua excellencia, e fechando
+vivamente a porta sobre si, em triumpho:
+
+--Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se tudo!
+
+E para João Eduardo:
+
+--Seu felizão! Parabens! parabens!
+
+O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo administrativo desde o
+tempo dos Cabraes! E ia retirar-se enojado (como no quadro classico o
+Stoico que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor administrador
+abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.
+
+Sua excellencia deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade,
+distillando as palavras, com as lunetas cravadas no réo:
+
+--O senhor padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade,
+veio-me expôr... Emfim, veio-me supplicar que não désse mais andamento a
+este negocio... Sua senhoria com razão não quer vêr o seu nome arrastado
+nos tribunaes. Além d'isso, como sua senhoria disse muito bem, a
+religião, de que elle é... de que elle é, posso dizel-o, a honra e o
+modêlo, impõe-lhe o perdão da offensa... Sua senhoria reconhece que o
+ataque foi brutal, mas frustrado... Além d'isso parece que o senhor
+estava bebedo...
+
+Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquillo
+pareceu-lhe n'esse momento peor que a prisão.
+
+--Emfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei
+devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se
+porta. A auctoridade não o perde d'olho... Bem, póde ir com Deus!
+
+E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou immovel,
+como parvo.
+
+--Posso ir, hein? balbuciou.
+
+--P'r'á China, p'ra onde quizer! _Liberus, libera, liberum!_ exclamou o
+Domingos que, interiormente detestando padres, jubilava com aquelle
+final.
+
+João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo
+Carlos; duas lagrimas bailavam-lhe nas palpebras; de repente agarrou o
+chapéo e abalou.
+
+--Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente
+as mãos.
+
+Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, á pressa. É que era
+tarde! O Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha
+de vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica. E no vão da
+janella, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.
+
+Emfim os dois padres sahiram acompanhados até á porta pelo senhor
+administrador, que, terminados os deveres publicos, reapparecia homem de
+sociedade.--Então porque não tinha o amigo Silverio vindo a casa da
+baroneza de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levára
+dois codilhos. Tinha dito blasphemias medonhas!... Criado de suas
+senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse harmonisado. Cuidado com o
+degrau... Ás ordens de suas senhorias...
+
+Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do
+Domingos, e retomando alguma solemnidade:
+
+--A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta
+já os ataques que ha contra o clero nos jornaes... A coisa podia fazer
+barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciumes do padre, que
+queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa...
+Quanto mais que, segundo o parocho me provou, toda a influencia que elle
+tem exercido na rua da Misericordia ou onde diabo é, tem tido por fim
+livrar a rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se vê, é um
+bebedo e uma fera!
+
+O Carlos roia-se. Todas aquellas explicações eram dadas ao Domingos! A
+elle, nada! Alli ficava, esquecido no vão da janella!
+
+Mas não! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete, chamou-o
+mysteriosamente com o dedo.
+
+Emfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a
+auctoridade.
+
+--Eu estava para passar pela botica--disse-lhe o administrador baixo e
+sem transição, dando-lhe um papel dobrado--para que me mandasse isto a
+casa, hoje. É uma receita do doutor Gouvêa... Mas já que o amigo aqui
+está...
+
+--Eu tinha vindo para me pôr á disposição da vindicta...
+
+--Isso está acabado! interrompeu vivamente sua excellencia. Não se
+esqueça, mande-me isso antes das seis. É para tomar ainda esta noite.
+Adeus. Não se esqueça!
+
+--Não faltarei, disse sêccamente o Carlos.
+
+Ao entrar na botica, a sua cólera flammejava. Ou elle não se chamava
+Carlos, ou havia de mandar uma correspondencia tremenda ao _Popular_!...
+Mas a Amparo, que lhe espreitára a volta da varanda, correu,
+atirando-lhe as perguntas:
+
+--Então? Que se passou? O rapaz foi p'r'á rua? Que disse elle? Como foi?
+
+O Carlos fixava-a, com as pupillas chammejantes.
+
+--Não foi culpa minha, mas triumphou o materialismo! Elles o pagarão!
+
+--Mas tu que disseste?
+
+Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar
+a citação do seu depoimento--o Carlos, tendo de resalvar a dignidade de
+esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:
+
+--Dei a minha opinião, com firmeza!
+
+--E elle que disse, o administrador?
+
+Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotára na
+mão. A indignação emmudeceu-o--vendo que era aquelle todo o resultado da
+sua grande entrevista com a auctoridade!
+
+--Que é? perguntou sôfregamente a Amparo.
+
+O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom
+renome da auctoridade, o Carlos exclamou:
+
+--É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Ahi tem a
+receita, snr. Augusto.
+
+A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia, conhecia os beneficios
+do mercurio, fez-se tão escarlate como as fitas flammejantes que lhe
+enfeitavam a cuia.
+
+
+Toda essa tarde se fallou com excitação pela cidade «da tentativa
+d'assassinato de que estivera para ser victima o senhor parocho».
+Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os
+cavalheiros da opposição sobretudo, que viram na debilidade d'aquelle
+funccionario uma prova incontestavel de que o governo ia, com os seus
+desperdicios e as suas corrupções, levando o paiz a um abysmo!
+
+Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que
+mansidão! O senhor chantre mandou-o chamar á noitinha, recebeu-o
+paternalmente com um «viva o meu cordeiro paschal»! E depois de escutar
+a historia do insulto, a generosa intervenção...
+
+--Filho, exclamou, isso é alliar a mocidade de Telemacho á prudencia de
+Mentor! Padre Amaro, vossê era digno de ser sacerdote de Minerva na
+cidade de Salento!
+
+Quando Amaro entrou á noite em casa da S. Joanneira--foi como a
+apparição d'um santo escapo ás feras do Circo ou á plebe de Diocleciano!
+Amelia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as mãos, muito
+tempo, toda tremula, com os olhos humidos. Deram-lhe, como nos grandes
+dias, a poltrona verde do conego. A snr.^a D. Maria da Assumpção quiz
+mesmo que se lhe puzesse uma almofada para elle apoiar o hombro dorido.
+Depois teve de contar miudamente toda a scena, desde o momento em que,
+conversando com o collega Silverio (que se portára muito bem), avistára
+o escrevente no meio do largo, de bengalão alçado e ar de matamouros...
+
+Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente apparecia-lhes
+peor que Longuinhos e que Pilatos. Que malvado! O senhor parocho devia-o
+ter calcado aos pés! Ah! era d'um santo, ter perdoado!
+
+--Fiz o que me inspirou o coração, disse elle baixando os olhos.
+Lembrei-me das palavras de Nosso Senhor Jesus Christo: elle manda
+offerecer a face esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face
+direita...
+
+O conego, a isto, escarrou grosso e observou:
+
+--Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão á face direita... Emfim,
+são ordens de Nosso Senhor Jesus Christo, offereço a face esquerda. São
+ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdote,
+oh, senhoras, desanco o patife!
+
+--E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou do canto uma vozinha
+expirante e desconhecida.
+
+Acontecimento extraordinario! Era a snr.^a D. Anna Gansoso que fallára
+depois de dez longos annos de taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor
+que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim, sob um impulso de
+sympathia pelo senhor parocho, uma vibração humana!--Todas as senhoras
+lhe sorriram, agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:
+
+--Quasi nada, snr.^a D. Anna, quasi nada, minha senhora... Que elle deu
+de rijo! Mas eu sou de boa carnadura.
+
+--Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias, furiosa á idéa do punho do
+escrevente descarregado sobre aquelle hombro santo. Que monstro! Eu
+queria-o vêr com uma grilheta a trabalhar na estrada! Que eu é que o
+conhecia! A mim nunca elle me enganou... Sempre lhe achei cara
+d'assassino!
+
+--Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S.
+Joanneira.
+
+Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilegio! Era
+uma fera, era uma fera!
+
+E a exultação foi grande quando Arthur Couceiro, apparecendo, deu logo
+da porta a novidade, a ultima: o Nunes mandára chamar o João Eduardo e
+dissera-lhe (palavras textuaes): «Eu, bandidos e malfeitores não os
+quero no meu cartorio. Rua!»
+
+A S. Joanneira então commoveu-se:
+
+--Pobre rapaz, fica sem ter que comer...
+
+--Que beba! que beba! gritou a snr.^a D. Maria da Assumpção.
+
+Todos riram. Só Amelia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito
+pallida, aterrada áquella idéa que João Eduardo teria talvez fome...
+
+--Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joanneira. É até coisa
+que me vai tirar o somno... Pensar que o rapaz ha de querer um bocado de
+pão e não ha de ter... Credo! Não, isso não! E o senhor padre Amaro
+desculpe...
+
+Mas Amaro tambem não desejava que o rapaz cahisse em miseria! Não era
+homem de rancor, elle! E se o escrevente viesse á sua porta com
+necessidade, duas ou tres placas (não era rico, não podia mais), mas
+tres ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as de coração.
+
+Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo! Olhavam-n'o, babosas, com
+as mãos vagamente postas. A sua presença, como a d'um S. Vicente de
+Paulo, exhalando caridade, dava á sala uma suavidade de capella: e a
+snr.^a D. Maria da Assumpção suspirou de gozo devoto.
+
+Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor,
+rompeu em triumpho:
+
+--Então já sabem? O **patife**, o assassino, escorraçado de toda a parte
+como um cão! O Nunes expulsou-o do cartorio. O doutor Godinho disse-me
+agora que no governo civil não punha elle os pés. Enterrado, demolido! É
+um allivio p'r'á gente de bem!
+
+--E ao senhor padre Natario se deve! exclamou D. Josepha Dias.
+
+Todos o reconheciam. Fôra elle, com a sua habilidade, a sua labia, que
+descobrira a perfidia de João Eduardo, salvára a Ameliasinha, Leiria, a
+Sociedade.
+
+--E em tudo o que pretender, o maroto, ha de me encontrar pela frente.
+Emquanto elle estiver em Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minhas
+senhoras?... «Eu é que o esmago!» Pois ahi o têm esmagado!
+
+A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente,
+no repouso merecido de uma victoria difficil. E voltando-se para Amelia:
+
+--E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe
+posso dizer!
+
+Então os louvores--que já lhe tinham repetido prolixamente desde que
+ella rompera com a fera--recomeçaram, mais vivos:
+
+--Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua vida!
+
+--É a graça de Deus que te tocou!
+
+--Estás em graça, filha!
+
+--Emfim é Santa Amelia, disse o conego erguendo-se, enfastiado
+d'aquellas glorificações. Pois parece-me que temos fallado bastante do
+patife... Mande agora a senhora vir o chá, hein?
+
+Amelia permanecia calada, cosendo á pressa; erguia ás vezes rapidamente
+para Amaro um olhar desassocegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças
+de Natario; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome,
+foragido, dormindo pelas portas dos casaes... E emquanto as senhoras se
+accommodavam, palrando, á mesa do chá, ella pôde dizer baixo a Amaro:
+
+--Não posso socegar com a idéa que o rapaz soffra necessidades... Eu bem
+sei que é um malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me
+toda a alegria.
+
+O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior
+á injuria, n'um alto espirito de caridade christã:
+
+--Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguem
+morre de fome em Portugal. É novo, tem saude, não é tolo, ha de se
+arranjar... Não pense n'isso... Aquillo é palavriado do padre Natario...
+O rapaz naturalmente sae de Leiria, não tornamos a ouvir fallar
+d'elle... E em toda a parte ha de ganhar a vida... Eu por mim
+perdoei-lhe, e Deus ha de tomar isso em conta.
+
+Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com um olhar amante,
+tranquillisaram-na inteiramente. A clemencia, a caridade do senhor
+parocho pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e
+de monges piedosos.
+
+Depois do chá, ao quino, ficou junto d'elle. Uma alegria plena e suave
+penetrava-a deliciosamente. Tudo o que até ahi a importunára e a
+assustára, João Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera emfim da
+sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se--e o senhor parocho alli
+estava, todo d'ella, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os
+seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento em que todos faziam um
+alarido indignado contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quinára e
+brandia o cartão triumphante, foram as mãos que se encontraram, se
+acariciaram; um pequeno suspiro simultaneo, perdido na gralhada das
+velhas, ergueu o peito d'ambos; e até ao fim da noite foram marcando os
+seus cartões, muito calados, com as faces accêsas, sob a pressão brutal
+do mesmo desejo.
+
+Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia aproximou-se do piano para
+correr uma escala, e Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:
+
+--Oh, filhinha, que te quero tanto! E não podermos estar sós...
+
+Ella ia responder--quando a voz de Natario, que se embrulhava no seu
+capote ao pé do aparador, exclamou, muito severa:
+
+--Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro?
+
+Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella indignação, a olhar o
+largo volume encadernado que Natario indicava com a ponta do
+guardachuva, como um objecto abominavel. D. Maria da Assumpção
+aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando que seria alguma d'essas
+novellas, tão famosas, em que se passam coisas immoraes. E Amelia
+chegando-se tambem, disse, admirada de tal reprovação:
+
+--Mas é o _Panorama_... É um volume do _Panorama_...
+
+--Que é o _Panorama_ vejo eu, disse Natario com seccura. Mas tambem vejo
+isto.--Abriu o volume na primeira pagina branca, e leu
+alto:--«_Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me
+de recreio nos meus ocios_.» Não comprehendem, hein? Pois é muito
+simples... Parece incrivel que as senhoras não saibam que esse homem,
+desde que poz as mãos n'um sacerdote, está _ipso facto_ excommungado, e
+excommungados todos os objectos que lhe pertencem!
+
+Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se do aparador onde jazia
+aberto o _Panorama_ fatal, arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo,
+áquella idéa da Excommunhão que se lhes representava como um desabamento
+de catastrophes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus
+Vingador: e alli ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado, em torno de
+Natario, que, de capotão pelos hombros e braços cruzados, gozava o
+effeito da sua revelação.
+
+Então a S. Joanneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:
+
+--O senhor padre Natario está a fallar sério?
+
+Natario indignou-se:
+
+--Se estou a fallar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar
+sobre um caso d'excommunhão, minha senhora? Pergunte ahi ao senhor
+conego se eu estou a gracejar!
+
+Todos os olhos se voltaram para o conego, essa inesgotavel fonte de
+saber ecclesiastico.
+
+Elle então, tomando logo o ar pedagogico que lhe voltava dos seus
+antigos habitos do seminario sempre que se tratava de doutrina, declarou
+que o collega Natario tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo
+que é um sacerdote, está _ipso facto_ excommungado. É doutrina assente.
+É o que se chama a excommunhão latente; não necessita a declaração do
+pontifice ou do bispo, nem o ceremonial, para ser valida, e para que
+todos os fieis considerem o offensor como excommungado. Devem-no tratar
+portanto como tal... Evital-o a elle, e ao que lhe pertence... E este
+caso de pôr mãos sacrilegas n'um sacerdote era tão especial, continuava
+o conego n'um tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando os
+casos de excommunhão tacita, conserva-a todavia para o que maltrata um
+sacerdote...--Citou ainda mais bullas, as Constituições de Innocencio IX
+e de Alexandre VII, a Constituição Apostolica, outras legislações
+temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras.
+
+--Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se
+fazer d'isso espalhafato...
+
+D. Josepha Dias acudiu logo:
+
+--Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por
+cima das mesas coisas excommungadas.
+
+--É destruir! exclamou D. Maria da Assumpção. É queimar! é queimar!
+
+D. Joaquina Gansoso arrastára Amelia para o vão da janella,
+perguntando-lhe se tinha outros objectos pertencentes ao homem. Amelia,
+atarantada, confessou que tinha algures, não sabia onde, um lenço, uma
+luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.
+
+--É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.
+
+A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas n'um furor
+santo. D. Josepha Dias, D. Maria da Assumpção fallavam com gozo do
+_fogo_, enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial de
+exterminação devota. Amelia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas
+gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, á caça dos
+«objectos excommungados». E a S. Joanneira assistia, attonita e
+assustada, áquelle alarido d'auto-de-fé que atravessava bruscamente a
+sua sala pacata, refugiada ao pé do conego, que depois de ter rosnado
+algumas palavras sobre «a Inquisição em casas particulares», se
+enterrára commodamente na poltrona.
+
+--É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente o respeito á
+batina, dizia Natario baixo a Amaro.
+
+O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente d'aquellas
+cóleras beatas que eram como a affirmação ruidosa do amor que lhe tinham
+as senhoras.
+
+Mas D. Josepha impacientava-se. Agarrára já o _Panorama_ com as pontas
+do chale, para evitar o contagio, e gritava para dentro, para o quarto,
+onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:
+
+--Então appareceu?
+
+--Cá está, cá está!
+
+Era a Gansoso que entrava triumphante com a cigarreira, a velha luva e o
+lenço de algodão.
+
+E as senhoras, em alarido, arremetteram para a cozinha. A mesma S.
+Joanneira as seguiu, como boa dona de casa, para fiscalisar a fogueira.
+
+Os tres padres então, sós, olharam-se--e riram.
+
+--As mulheres têm o diabo no corpo, disse o conego philosophicamente.
+
+--Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natario fazendo-se
+sério. Eu rio porque a coisa, assim vista, parece patusca. Mas o
+sentimento é bom. Prova a verdadeira devoção ao sacerdocio, horror á
+impiedade... Emfim o sentimento é excellente.
+
+--O sentimento é excellente, confirmou Amaro, tambem sério.
+
+O conego ergueu-se:
+
+--E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lh'o
+digo a brincar, que a mana tem figados para isso... É um Torquemada de
+saias...
+
+--Está na verdade, está na verdade, affirmou Natario.
+
+--Eu não resisto a ir vêr a execução! exclamou o conego. Eu quero vêr
+com os meus olhos!
+
+E os tres padres então foram até á porta da cozinha. As senhoras lá
+estavam, em pé diante da lareira, batidas da luz violenta da fogueira
+que fazia destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que já se
+tinham coberto. A _Ruça_, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado
+com o facão a encardernação do _Panorama_; e as folhas retorcidas e
+negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas linguas do
+fogo claro. Só a luva de pellica não se consumia. Debalde com as tenazes
+a punham no vivo da chamma: tisnava, reduzida a um caroço engorolado;
+mas não ardia. E a sua resistencia aterrava as senhoras.
+
+--É que é a da mão direita com que commetteu o desacato! dizia furiosa
+D. Maria da Assumpção.
+
+--Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe! aconselhava da porta o conego muito
+divertido.
+
+--O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josepha.
+
+--Oh, mana! a senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se
+queima um impio? A pretenção não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!
+
+Então, confiadas na sciencia do senhor conego, a Gansoso e D. Maria da
+Assumpção, acocoradas, bufaram tambem. As outras olhavam, n'um sorriso
+mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella exterminação grata a
+Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na gloria
+da sua antiga funcção de purificador dos peccados.--E por fim sobre as
+achas em braza, nada restou do _Panorama_, do lenço e da luva do impio.
+
+A essa hora João Eduardo, o impio, no seu quarto, sentado aos pés da
+cama, soluçava, com a face banhada em lagrimas, pensando em Amelia, nos
+bons serões da rua da Misericordia, na cidade para onde iria, na roupa
+que empenharia, e perguntando em vão a si mesmo porque o tratavam assim,
+elle que era tão trabalhador, que não queria mal a ninguem, e que a
+adorava tanto, a ella?
+
+
+
+
+XVI
+
+
+No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joanneira e Amelia
+atravessaram a Praça para ir buscar D. Maria da Assumpção, que em dias
+de mercado e de «populacho» nunca sahia só, receosa que lhe roubassem as
+joias ou lhe insultassem a castidade.
+
+N'essa manhã, com effeito, a affluencia das freguezias enchia a Praça:
+os homens em grupo, atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados,
+de jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhões
+e de corações d'ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros
+azafamavam-se por traz dos balcões alastrados de lençaria e de chitas;
+nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os saccos
+de farinha, os montões de louça, os cestos de brôa, ia um regatear sem
+fim; havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos
+redondos e transbordam os mólhos de rosarios; velhas faziam pregão por
+traz dos seus taboleiros de cavacas; e os pobres, afreguezados á cidade,
+choramingavam Padre-nossos pelas esquinas.
+
+Já senhoras passavam para a missa, todas em sêdas, de rostinho sisudo; e
+a Arcada estava cheia de cavalheiros, têsos nos seus fatos de casimira
+nova, fumando caro, gozando o domingo.
+
+Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo
+alto d'um grupo: _Ai, que me leva o coração!_ E as duas senhoras,
+apressando-se, dobravam para a rua do Correio, quando lhes appareceu o
+Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde «o
+desacato do largo da Sé», e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que
+desgosto aquelle! O malvado do escrevente! Elle tinha tido tanto que
+fazer, que só n'essa manhã é que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os
+sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; elle
+quiz-lhe vêr o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura...
+E se ellas vissem, que carnadura tão delicada, que pelle tão branca...
+Uma pellinha d'archanjo!
+
+--Mas querem vossês saber, filhas? Encontrei-o n'uma grande afflicção!
+
+As duas senhoras assustaram-se. Porquê, Libaninho?
+
+A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava, tinha ido n'essa
+madrugada para o hospital com um febrão...
+
+--E alli está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vossês! Para
+hoje bem, que vai jantar com o nosso conego (tambem lá estive, ai, que
+santo!), mas ámanhã, mas depois? Que elle já tem em casa a irmã da
+Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas, a Dionysia! Foi o que eu lhe
+disse: a Dionysia póde ser uma santa, mas que reputação!... É que não ha
+peor em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a
+certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!
+
+As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia (mulher que não cumpria
+os preceitos, que representára em theatros de curiosos) não convinha ao
+senhor parocho...
+
+--Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu lá
+lh'o disse, lá lhe fiz a proposta. É ferrar-se outra vez em tua casa.
+Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa,
+que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Elle não disse que _não_
+nem que _sim_. Mas olha que se lhe podia lêr na cara que está a morrer
+por isso... Tu é que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!
+
+Amelia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de sêda da India. E a
+S. Joanneira disse ambiguamente:
+
+--Fallar-lhe não... Eu n'essas coisas sou muito delicada... Bem
+comprehendes...
+
+--Era como teres um santo de portas a dentro, filha! disse com calor o
+Libaninho. Lembra-te d'isso! E era um gosto para todos... Tenho a
+certeza que até Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora adeus,
+pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a
+cahir.
+
+As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assumpção.
+Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade
+tão inesperada, tão grave, do senhor parocho voltar para a rua da
+Misericordia! Foi só quando pararam que a S. Joanneira disse, ao puxar à
+campainha:
+
+--Ai, o senhor parocho realmente não póde ter a Dionysia de portas a
+dentro...
+
+--Credo, até causa horror!
+
+Foi tambem a expressão da snr.^a D. Maria da Assumpção quando lhe
+contaram, em cima, a doença da Vicencia e a installação da Dionysia:
+causava horror!
+
+--Que eu não a conheço, disse a excellente senhora. E tenho até vontade
+de a conhecer. Que me dizem que é dos pés à cabeça uma crosta de
+peccado!
+
+A S. Joanneira então fallou da «proposta do Libaninho». D. Maria da
+Assumpção declarou logo com ardor que era uma inspiração de Nosso
+Senhor. Que nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da
+Misericordia! Até parece que mal elle se fôra embora, Deus retirára a
+sua graça da casa... Não houvera senão desgostos--o _Communicado_, a dôr
+de estomago do conego, a morte da entrevadinha, aquelle desgraçado
+casamento (que estivera por um _triz_, que horror!), o escandalo do
+largo da Sé... A casa tinha parecido enguiçada!... E era até peccado
+deixar viver o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da Vicencia,
+que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!
+
+--Em parte nenhuma póde estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que
+necessita, de portas a dentro... E para ti é uma honra, é estar em
+graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o hospedava
+era eu! Que aqui é que elle estava bem... Que salinha para elle, hein?
+
+Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.
+
+A sala com effeito era toda ella uma immensa armazenagem de santaria e
+de _bric-à-brac_ devoto: sobre as duas commodas de pau preto com
+fechaduras de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas, as Nossas
+Senhoras vestidas de sêda azul, os Meninos Jesus frizados com o
+ventresinho gordo e a mão abençoadora, os Santo Antonios no seu burel,
+os S. Sebastiões bem fréchados, os S. Josés barbudos. Havia santos
+exoticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça--S.
+Paschoal Baylão, S. Didacio, S. Chrisolo, S. Gorislano... Depois eram os
+bentinhos, os rosarios de metal e de caroços d'azeitonas, contas de
+côres, rendas amarellas d'antigas alvas, corações de vidro escarlate,
+almofadinhas com J. M. entrelaçados a missanga, ramos bentos, palmas de
+martyres, cartuchinhos d'incenso. As paredes desappareciam forradas de
+estampas de Virgens de todas as devoções,--equilibradas sobre o orbe,
+enrodilhadas aos pés da cruz, trespassadas d'espadas. Corações d'onde
+gotejava sangue, corações d'onde sahia uma fogueira, corações d'onde
+dardejavam raios: orações encaixilhadas para as festas particularmente
+amadas--o _Casamento de Nossa Senhora_, a _Invenção da Santa Cruz_, os
+_Estigmas de S. Francisco_, sobretudo o _Parto da Santa Virgem_, a mais
+devota, que vem pelas quatro temporas. Sobre as mesas lamparinas
+accêsas, para serem collocadas sem demora aos santos especiaes, quando a
+boa senhora tivesse a sua sciatica, ou que o catarrho se assanhasse, ou
+lhe viessem as caimbras. Ella mesma, só ella, arrumava, espanejava,
+lustrava toda aquella santa população celeste, aquelle arsenal beato,
+que era apenas sufficiente para a salvação da sua alma e o allivio dos
+seus achaques. O seu grande cuidado era a collocação dos santos;
+alterava-a constantemente, porque ás vezes, por exemplo, sentia que
+Santo Eleuterio não gostava d'estar ao pé de S. Justino, e ia então
+pendural-o a distancia, n'uma companhia mais sympathica ao santo. E
+distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe
+explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e não tendo por S. José de
+segunda classe o respeito que sentia por S. José de primeira classe.
+Aquella riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos curiosos, e
+fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a vinha visitar, abrangendo a
+sala n'um olhar langoroso:--Ai, filha, é o reininho dos céos!
+
+--Não é verdade, continuava a excellente senhora radiante, que elle aqui
+é que estava bem, o santinho do parocho? É como ter o céo debaixo da
+mão!
+
+As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a sua casa arranjada com
+devoção, ella que era rica...
+
+--Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil reis. Sem
+contar o que está no relicario...
+
+Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim! Tinha lá uma
+lascasinha da verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Corôa,
+um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume,
+entre as devotas, que coisas tão preciosas, d'origem divina, deviam
+estar no sacrario da Sé. D. Maria da Assumpção, temendo que o senhor
+chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, só o mostrava ás intimas,
+mysteriosamente. E o santo sacerdote, que lh'o obtivera, fizera-a jurar
+sobre o Evangelho de não revelar a procedencia «para evitar
+fallatorios».
+
+A S. Joanneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.
+
+--Que reliquia, que reliquia! murmurava.
+
+E D. Maria da Assumpção muito baixo:
+
+--Não ha melhor. Trinta mil reis me custou... Mas dava sessenta, mas
+dava cem! mas dava tudo!--E babando-se toda, diante do trapinho
+precioso:--O cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino, o seu
+cueirinho...
+
+Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicario no gavetão.
+
+Mas o meio dia ia bater--e as tres senhoras apressaram-se para a Sé,
+para pilhar logar no altar-mór.
+
+Já no largo encontraram D. Josepha Dias, que se precipitava para a
+igreja, sôfrega da missa, com o mantelete descahido sobre o hombro e uma
+pluma do chapéo a despregar-se. Tinha estado toda a manhã n'um phrenesi
+com a criada! Fôra necessario fazer ella todos os preparos para o
+jantar... Ai, tinha medo que nem a missinha lhe dêsse virtude, de
+nervosa que estava...
+
+--Que temos lá o senhor parocho hoje... Vossês sabem que adoeceu a
+criada... Ah, já me esquecia, o mano quer que tu lá vás jantar tambem,
+Amelia. Diz que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...
+
+Amelia riu d'alegria.
+
+--E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, á noitinha... Credo, vesti-me
+tanto á pressa, que até parece que me está a cahir o saiote!
+
+Quando as quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma
+missa cantada ao Santissimo. E apesar de contrario ao rigor do ritual,
+por um costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto na
+liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a
+Eucharistia, musica de rebeca, violoncello e flauta. O altar, muito
+ornado, com as reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva;
+docel, frontal, paramentos dos missaes eram brancos, com relevos d'ouro
+desmaiado; nos vasos erguiam-se ramos pyramidaes de flôres e folhagens
+brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como velarios, punham dos
+dois lados do tabernaculo a brancura de duas vastas azas desdobradas,
+lembrando a Pomba Espiritual; e os vinte castiçaes erguiam as suas
+chammas amarellas em throno até ao sacrario aberto, que mostrava d'alto,
+engastada n'um rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e baça. Por
+toda a igreja apinhada corria uma susurração lenta; aqui e além um
+catarrho expectorava, uma criança choramigava; o ar adensava-se já dos
+halitos juntos e d'um cheiro d'incenso; e do côro, onde as figuras dos
+musicos se moviam por traz dos braços dos rebecões e das estantes, vinha
+a cada momento um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim. As
+quatro amigas tinham-se apenas accommodado junto do altar-mór, quando os
+dois acolythos, um têso como um pinheiro, o outro gordalhufo e
+enxovalhado, entraram do lado da sacristia, sustentando alto e direito
+nas mãos os dois castiçaes consagrados; atraz o Pimenta vesgo, com uma
+sobrepelliz muito vasta para elle, lançando os seus sapatões em passadas
+pomposas, trazia o incensador de prata; depois successivamente, durante
+o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os
+dois diaconos; e emfim, paramentado de branco, d'olhos baixos e mãos
+postas, com aquelle recolhimento humilde que pede o ritual e que exprime
+a mansidão de Jesus marchando ao Calvario, entrou o padre Amaro--ainda
+vermelho da questão furiosa que tivera na sacristia, antes de se
+revestir, por causa da lavagem das alvas.
+
+E o côro immediatamente atacou o _Introito_.
+
+
+Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada para o parocho--que era,
+como dizia o conego, «um grande artista para missas cantadas»; todo o
+cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade, que
+cavalheirismo nas saudações ceremoniosas aos diaconos! Como se prostrava
+bem diante do altar, aniquilado e escravisado, sentindo-se cinza,
+sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado da sua
+côrte e da sua familia celeste! Mas era sobretudo admiravel nas bençãos;
+passava devagar as mãos sobre o altar como para apanhar, recolher a
+graça que alli cahia do Christo presente, e atirava-a depois com um
+gesto largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços
+brancos de cabeça, até ao fundo onde os homens do campo muito apertados,
+de varapau na mão, pasmavam para a scintillação do sacrario! Era então
+que Amelia o amava mais, pensando que aquellas mãos abençoadoras lh'as
+apertava ella com paixão por baixo da mesa do quino: aquella voz, com
+que elle lhe chamava _filhinha_, recitava agora as orações ineffaveis, e
+parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a mais que os
+graves do orgão! Imaginava com orgulho que todas as senhoras decerto o
+admiravam tambem; mas só tinha ciumes, um ciume de devota que sente os
+encantos do céo, quando elle ficava diante do altar, na posição extatica
+que manda o ritual, tão immovel como se a sua alma se tivesse remontado
+longe, para as alturas, para o Eterno e para o Insensivel. Preferia-o,
+por o sentir mais humano e mais accessivel, quando, durante o _Kirie_ ou
+a leitura da Epistola, elle se sentava com os diaconos no banco de
+damasco vermelho; ella queria então attrahir-lhe um olhar; mas o senhor
+parocho permanecia de olhos baixos n'uma compostura modesta.
+
+Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada n'um sorriso,
+admirava-lhe o perfil, a cabeça bem feita, os paramentos dourados--e
+lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da rua da
+Misericordia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passára desde
+essa noite! Recordava o Morenal, o salto do vallado, a scena da morte da
+titi, aquelle beijo ao pé da lareira... Ai, como acabaria tudo aquillo?
+Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe á idéa o que o
+Libaninho n'essa manhã dissera: «o senhor parocho tinha uma pellesinha
+tão branca como um archanjo...» Devia-a ter decerto muito delicada,
+muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma
+tentadora visitação do demonio,--e para a repellir arregalava os olhos
+para o sacrario e para o throno que o padre Amaro, cercado dos diaconos,
+incensava em semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores,
+emquanto o côro berrava o _Offertorio_... Depois elle mesmo, de pé, no
+segundo degrau do altar, de mãos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo
+fazia ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero; um
+perfume d'incenso derramava-se, como uma annunciação celeste;
+ennevoava-se o sacrario sob os rolos alvos de fumo; e o parocho
+apparecia a Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh, adorava-o
+então!
+
+A igreja tremia ao clamor do orgão em pleno; de bocas abertas, os
+coristas solfejavam a toda a força; em cima, alçando-se entre os braços
+dos rebecões, o mestre da capella, no fogo da execução, brandia
+desesperadamente a sua batuta feita d'um rolo de canto-chão.
+
+
+Amelia sahiu da igreja muito fatigada, muito pallida.
+
+Ao jantar, em casa do conego, a snr.^a D. Josepha censurou-a
+repetidamente de «não dar palavra».
+
+Não fallava, mas debaixo da mesa o seu pésinho não cessava de roçar,
+pisar o do padre Amaro. Como escurecera cedo tinham accendido as velas;
+o conego abrira uma garrafa, não do seu famoso _duque_ de 1815, mas do
+«1847», para acompanhar a travessa d'aletria, que enchia o centro da
+mesa, com as iniciaes do parocho desenhadas a canella; era, como
+explicára o conego, «uma galanteria da mana ao convidado». Amaro fizera
+logo uma saude com o 1847 «á digna dona da casa». Ella resplandecia,
+medonha no seu vestido de bareje verde. O que sentia é que o jantar
+fosse tão mau... Que aquella Gertrudes estáva-se a fazer uma
+desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!
+
+--Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o parocho.
+
+--São favores do senhor parocho. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais
+uma colhérzinha d'aletria, senhor parocho.
+
+--Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.
+
+--Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o conego.
+
+Elle mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um _ah_ de satisfação, e
+repoltreando-se:
+
+--Boa gota! Assim póde-se viver!
+
+Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de
+flanella e o guardanapo atado ao pescoço.
+
+--Boa gota! repetiu, d'este não provou hoje vossê nas galhetas...
+
+--Credo, mano! exclamou D. Josepha com a boca cheia de fios d'aletria,
+muito escandalisada da irreverencia.
+
+O conego encolheu os hombros com desprezo.
+
+--O credo é p'r'á missa! Esta pretenção de se metter sempre em questões
+que não percebe! Pois fique sabendo que é d'uma grande importancia a
+questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessario que o vinho
+seja bom...
+
+--Concorre para a dignidade do santo sacrificio, disse o parocho muito
+sério, fazendo uma caricia de joelho a Amelia.
+
+--E não é só isso, disse o conego tomando logo o tom pedagogo. É que o
+vinho, quando não é bom e tem ingredientes, deixa um deposito nas
+galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas
+ganham um cheiro pessimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que
+o sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Christo,
+não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora ahi tem a senhora!
+
+E deu um forte chupão ao calix. Mas estava fallador n'essa noite, e
+depois d'arrotar devagar, interpellou de novo D. Josepha, assombrada de
+tanta sciencia.
+
+--E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora: o vinho, no divino
+sacrificio, deve ser branco ou tinto?
+
+D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o
+sangue de Nosso Senhor.
+
+--Emende a menina, mugiu o conego de dedo em riste para Amelia.
+
+Ella recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia...
+
+--Emende o senhor parocho!
+
+Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...
+
+--E porquê?
+
+Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.
+
+--E porque? continuava o conego, pedante e roncão.
+
+Não sabia.
+
+--Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando pela primeira vez consagrou,
+fel-o com vinho branco. E a razão é muito simples: é porque na Judéa
+n'esse tempo, como é notorio, não se fabricava vinho tinto... Repita-me
+a senhora a aletria, faça favor.
+
+Então, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro
+queixou-se do Bento sacristão. N'essa manhã antes de se
+paramentar--justamente quando entrára o senhor conego na
+sacristia--acabava de lhe dar uma desanda a respeito das alvas. Em
+primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia que vivia amancebada com um
+carpinteiro, em grande escandalo, e que era indigna de tocar os
+paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as tão
+enxovalhadas que era um desacato usal-as no divino sacrificio...
+
+--Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as a mim, acudiu D.
+Josepha. Dou-as á minha lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz
+a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as passava
+a ferro, e até se podia benzer o ferro...
+
+Mas o conego (que positivamente estava n'aquella noite d'uma loquacidade
+copiosa) interrompeu-a, e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o
+profundamente:
+
+--Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer,
+amigo e collega, que commetteu hoje um erro de palmatoria.
+
+Amaro pareceu inquieto.
+
+--Que erro, padre-mestre?
+
+--Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente, já com os
+diaconos ao lado, quando fez a cortezia á imagem da sacristia, em logar
+de fazer a cortezia profunda, fez só a meia cortezia.
+
+--Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica.
+_Facta reverentia cruci_, feita a reverencia á cruz: isto é, a
+reverencia simples, abaixar ligeiramente a cabeça...
+
+E, para **exemplificar**, fez uma cortezia a D. Josepha que lhe sorriu
+toda, torcendo-se.
+
+--Nego! exclamou formidavelmente o conego que em sua casa, á sua mesa,
+punha d'alto as suas opiniões. E nego com os meus auctores. Elles ahi
+vão!--E deixou-lhe cahir em cima, como penedos d'autoridade, os nomes
+venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavonio.
+
+Amaro afastára a cadeira, puzera-se em attitude de controversia,
+contente de poder, diante d'Amelia, «enterrar» o conego, mestre de
+theologia moral e um colosso de liturgia pratica.
+
+--Sustento, exclamou, sustento com Castaldus...
+
+--Alto, ladrão, bramiu o conego, Castaldus é meu!
+
+--Castaldus é meu, padre-mestre!
+
+E encarniçaram-se, puxando cada um para si o veneravel Castaldus e a
+auctoridade da sua facundia. D. Josepha pulava de gozo na cadeira,
+murmurando para Amelia com a cara franzida de riso:
+
+--Ai, que gostinho vêl-os! Ai, que santos!
+
+Amaro continuava, com o gesto alto:
+
+--E além d'isso tenho por mim o bom-senso, padre-mestre. _Primò_, a
+rubrica, como expuz. _Secundò_, o sacerdote, tendo na sacristia o
+barrete na **cabeça**, não deve fazer cortezia inteira, porque lhe póde
+cahir o barrete e temos desacato maior. _Tertiò_, seguir-se-hia um
+absurdo, porque então a cortezia antes da missa á cruz da sacristia
+seria maior que a que se faz depois da missa á cruz do altar!
+
+--Mas a cortezia á cruz do altar... bradou o conego.
+
+--É meia cortezia. Leia a rubrica: _Caput inclinat_. Leia Gavantus, leia
+Garriffaldi. E nem podia deixar de ser assim! Sabe porquê? Porque depois
+da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma vez que tem dentro
+em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto é
+meu!
+
+E de pé, esfregou vivamente as mãos, triumphando.
+
+O conego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi
+atordoado. E depois d'um momento:
+
+--Vossê não deixa de ter razão... Eu foi para o ouvir... Faz-me honra cá
+o discipulo, acrescentou piscando o olho a Amelia. Pois é beber, é
+beber! E depois salta o cafésinho bem quente, mana Josepha!
+
+Mas um forte repique á campainha sobresaltou-os.
+
+--É a S. Joanneira, disse D. Josepha.
+
+A Gertrudes entrou com um chale e uma manta de lã:
+
+--Aqui está isto que vem de casa da menina Amelia. A senhora manda
+muitos recados, que não póde vir, que se achou incommodada.
+
+--Então com quem hei de eu ir? disse logo Amelia, inquieta.
+
+O conego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na
+mão:
+
+--Em ultimo caso com este seu criado. E essa virtudesinha podia ir
+socegada...
+
+--Tem coisas, mano! gritou a velha.
+
+--Deixe lá, mana. O que passa pela boca d'um santo, santo fica.
+
+O parocho approvou ruidosamente:
+
+--Tem muita razão o senhor conego Dias! O que passa pela pela boca d'um
+santo, santo fica! Para que viva!
+
+--Á sua!
+
+E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controversia.
+
+Mas Amelia ficára assustada.
+
+--Jesus, que terá a mamã! Que será?
+
+--Ora o que ha de ser! preguiça! disse-lhe o parocho, rindo.
+
+--Não te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te eu levar, vamos todos
+levar-te...
+
+--Vai a menina em charola, rosnou o conego descascando a sua pêra.
+
+Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a
+mão pelo estomago:
+
+--Pois olhem, disse, não me estou tambem a sentir bem...
+
+--Que é? que é?
+
+--Um ameaçosito da dôr. Passou, não vale nada.
+
+D. Josepha, já assustada, não queria que elle comesse a pêra. Que a
+ultima vez que lhe dera fôra por causa da fructa...
+
+Mas elle, obstinado, cravou os dentes na pêra.
+
+--Passou, passou, rosnava.
+
+--Foi sympathia com a mamã, disse o parocho baixo a Amelia.
+
+De repente o conego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:
+
+--Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai!
+morro!
+
+Alvoroçaram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o pelo braço até ao
+quarto, gritando á criada que fosse buscar o doutor. Amelia correu á
+cozinha a aquecer uma flanella para lhe pôr no estomago. Mas não
+apparecia flanella. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, á
+procura do seu chale para sahir.
+
+--Vá sem chale, sua estupida! gritou-lhe Amaro.
+
+A rapariga abalou. Dentro o conego dava urros.
+
+Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josepha de
+joelhos diante da commoda gemia orações a uma grande lithographia de
+Nossa Senhora das Dôres; e o pobre padre-mestre, estirado de barriga
+sobre a cama, rilhava o travesseiro.
+
+--Mas, minha senhora, disse o parocho severamente, não se trata agora de
+rezar. É necessario fazer-lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?
+
+--Ai, senhor parocho, não ha nada, não ha nada, choramingou a velha. É
+uma dôr que vem e vai n'um momento. Não dá tempo p'ra nada! Um chá de
+tilia allivia-o ás vezes... Mas por desgraça hoje nem tilia tenho! Ai,
+Jesus!
+
+Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a pouco voltava esbaforido
+com a Dionysia, que vinha offerecer a sua actividade e a sua
+experiencia.
+
+Mas o senhor conego, felizmente, sentira-se de repente alliviado!
+
+--Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha. Rica tilia! É de
+muita caridade. Elle agora naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe
+sempre depois da dôr... Eu vou para ao pé d'elle, desculpem-me... Esta
+foi peor que as outras... São estas fructas mald...--Reteve a
+blasphemia, aterrada.--São as fructas de Nosso Senhor. É a sua divina
+vontade... Desculpem-me, sim?
+
+Amelia e o parocho ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo
+do desejo de se tocar, de se beijar, mas as portas estavam abertas; e
+sentiam no quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse
+então alto:
+
+--Pobre padre-mestre! É uma dôr terrivel.
+
+--Dá-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A mamã já andava com o
+presentimento. Ainda me tinha dito antes d'hontem: é o tempo da dôr do
+senhor conego, estou com mais cuidado...
+
+O parocho suspirou, e baixinho:
+
+--Eu é que não tenho quem pense nas minhas dôres...
+
+Amelia pousou n'elle longamente os seus bellos olhos humedecidos de
+ternura:
+
+--Não diga isso...
+
+As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D.
+Josepha appareceu, encolhida no seu chale. O mano tinha adormecido. E
+ella estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aquelles abalos
+arrazavam-lhe a saude! Accendera duas velas a S. Joaquim e fizera uma
+promessa a Nossa Senhora da Saude. Era a segunda aquelle anno, por causa
+da dôr do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...
+
+--Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o
+padre Amaro.
+
+O alto relogio d'armario bateu então cavamente oito horas. Amelia fallou
+outra vez no cuidado em que estava pela mamã... Demais a mais ia-se a
+fazer tão tarde...
+
+--E é que quando eu sahi estava a choviscar, disse Amaro.
+
+Amelia correu á janella, inquieta. O lagedo defronte, debaixo do
+candieiro, reluzia muito molhado. O céo estava tenebroso.
+
+--Jesus, vamos ter uma noite d'agua!
+
+D. Josepha estava afflicta com o contratempo; mas a Amelia bem via, ella
+agora não podia despegar de casa; a Gertrudes fôra ao doutor;
+naturalmente não o encontrára, andava a procural-o de casa em casa, quem
+sabe quando viria...
+
+O parocho então lembrou que a Dionysia (que viera com elle e esperava na
+cozinha) podia ir acompanhar a snr.^a D. Amelia. Eram dois passos, não
+havia ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas até á esquina da
+Praça... Mas deviam apressar-se, que ia cahir agua!
+
+D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para Amelia. Recommendou-lhe
+muito que contasse á mamã o que tinha succedido. Mas que não se
+affligisse ella, que o mano estava melhor...
+
+--E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada, dize-lhe que se fez tudo o
+que se pôde, mas que a dôr não deu tempo para nada!
+
+--Sim, lá direi. Boa noite.
+
+Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia então quiz esperar. Mas
+o parocho, apressado, puxou-a pelo braço:
+
+--Não vale nada, não vale nada!
+
+Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guardachuva, com a
+Dionysia ao lado, muito calada, de chale pela cabeça. Todas as janellas
+estavam apagadas; no silencio as goteiras cantavam d'enxurrão.
+
+--Jesus, que noite! disse Amelia. Vai-se-me a perder o vestido.
+
+Estavam então na rua das Sousas.
+
+--É que agora cae a cantaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o
+melhor é entrar no pateo de minha casa e esperar um bocado...
+
+--Não, não! acudiu Amelia.
+
+--Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É
+um instante, é um aguaceiro. Para aquelle lado, vê, está a alliviar. Vai
+passar... É uma tolice... A mamã, se a visse apparecer debaixo d'uma
+carga d'agua, zangava-se, e com razão!
+
+--Não, não!
+
+Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, e empurrando Amelia de leve:
+
+--É um instante, vai passar, entre...
+
+E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando as cordas d'agua que
+reluziam á luz do candieiro defronte. Amelia estava toda atarantada. A
+negrura do pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe delicioso
+estar assim n'aquella escuridão, ao pé d'elle, ignorada de todos...
+Insensivelmente attrahida, roçava-se-lhe pelo hombro; e recuava logo,
+inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o sentir tão junto
+das saias. Percebia por traz, sem a vêr, a escada que levava ao quarto
+d'elle; e tinha um desejo immenso de lhe ir vêr acima os seus moveis, os
+seus arranjos... A presença da Dionysia, encolhida contra a porta e
+muito calada, embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para
+ella, receando que desapparecesse, se sumisse na negrura do pateo ou da
+noite...
+
+Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos,
+arripiado.
+
+--Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages estão regeladas...
+Realmente era melhor esperar em cima na sala de jantar...
+
+--Não, não! disse ella.
+
+--Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionysia, accenda luz
+em cima.
+
+A matrona immediatamente galgou os degraus.
+
+Elle então, muito baixo, tomando o braço d'Amelia:
+
+--Porque não? Que pensas tu? É uma pieguice. É emquanto não passa o
+aguaceiro. Dize...
+
+Ella não respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mão sobre
+o hombro, sobre o peito, apertando-lh'o, acariciando a sêda. Toda ella
+estremeceu. E foi-o emfim seguindo pela escada, como tonta, com as
+orelhas a arder, tropeçando a cada degrau na roda do vestido.
+
+--Entra p'r'áhi, é o quarto, disse-lhe elle ao ouvido.
+
+Correu á cozinha. Dionysia accendia a vela.
+
+--Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina
+Amelia. É um caso muito sério... Volta d'aqui a meia hora.
+Toma.--Metteu-lhe tres placas na mão.
+
+A Dionysia descalçou os sapatos, desceu em pontas de pés e fechou-se na
+loja do carvão.
+
+Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia lá estava, immovel, toda
+pallida. O parocho fechou a porta--e foi para ella, calado, com os
+dentes cerrados, soprando como um touro.
+
+
+Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia desceu logo, muito
+embrulhada na manta: ao abrirem a porta do pateo passavam na rua dois
+borrachos galrando: Amelia recuou rapidamente para o escuro. Mas
+Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo a rua deserta:
+
+--Está a barra livre, minha rica menina...
+
+Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a rua da
+Misericordia. Já não chovia; havia estrellas; e uma frialdade sêcca
+annunciava o norte e o bom tempo.
+
+
+
+
+XVII
+
+
+Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha á cabeceira que ia
+chegando a hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o
+velho paletot que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa outra
+manhã em Feirão em que acordára aterrado por ter na vespera, pela
+primeira vez depois de padre, peccado brutalmente sobre a palha da
+estrebaria da residencia com a Joanna Vaqueira. E não se atrevera a
+dizer missa com aquelle crime na alma, que o abafava com um peso de
+penedo. Considerára-se contaminado, immundo, maduro para o inferno,
+segundo todos os santos padres e o seraphico concilio de Trento. Tres
+vezes chegára á porta da igreja, tres vezes recuára assombrado. Tinha a
+certeza de que, se ousasse tocar na Eucharistia com aquellas mãos com
+que repanhára os saiotes da Vaqueira, a capella se aluiría sobre elle,
+ou ficaria paralysado vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada alta,
+a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montára a cavallo e trotára
+duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir á Gralheira confessar-se
+ao bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de innocencia, de
+exagerações piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos
+em redor á realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e monsenhores
+não peccavam sobre a palha da estrebaria, não--era em alcovas commodas,
+com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluiam, e S. Miguel Vingador não
+abandonava por tão pouco os confortos do céo!
+
+Não era isso o que o inquietava--o que o inquietava era a Dionysia, que
+elle ouvia na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a
+pedir-lhe agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella matrona
+introduzida, installada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua
+discrição, era o seu _officio_; e algumas meias libras manteriam a sua
+fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquella velha
+concubina de auctoridades civis e militares, que rolára a sua massa de
+gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas
+fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam sob a batina de parocho.
+Preferiria que fosse o Silverio ou Natario que o tivesse visto na
+vespera, todo inflammado: era entre sacerdotes, ao menos!... E o que o
+incommodava era a idéa de ser observado por aquelles olhinhos cynicos,
+que não se impressionavam nem com a austeridade das batinas nem com a
+respeitabilidade dos uniformes, porque sabiam que por baixo estava
+igualmente a mesma miseria bestial da carne...
+
+--Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.
+
+Nós de dedos bateram discretamente à porta do quarto.
+
+--Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a
+mesa, como absorvido, abysmado nos seus papeis.
+
+A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre o lavatorio, tossiu, e
+fallando sobre as costas d'Amaro:
+
+--Ó senhor parocho, olhe que isto assim não tem geito. Hontem iam vendo
+sahir daqui a pequena. É muito sério, menino... Para bem de todos é
+necessario segredo!
+
+Não, não a podia impôr! A mulher estabelecia-se, à força, na sua
+confidencia. Aquellas palavras mesmo, murmuradas com medo das paredes,
+revelando uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem d'uma
+cumplicidade tão experiente.
+
+Voltou-se na cadeira, muito vermelho.
+
+--Iam vendo, hein?
+
+--Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.
+
+--É verdade.
+
+--E na sua posição, senhor parocho, na posição da pequena!... Tudo se
+deve fazer pelo calado... Nem os moveis do quarto devem saber! Em coisas
+que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse de morte!
+
+Amaro então decidiu-se bruscamente a aceitar a _protecção_ da Dionysia.
+
+Rebuscou n'um canto da gaveta, metteu-lhe meia libra na mão.
+
+--Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ella.
+
+--Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou elle recostado na
+cadeira, esperando os conselhos da matrona.
+
+Ella disse muito naturalmente, sem affectação de mysterio ou de malicia:
+
+--A mim parece-me que para vêr a pequena não ha como a casa do sineiro!
+
+--A casa do sineiro!?
+
+Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente disposição do
+sitio. Um dos quartos ao pé da sacristia, como elle sabia, dava para um
+pateo onde se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois bem,
+justamente do outro lado eram as trazeiras da casa do sineiro... A porta
+da cozinha do tio Esguelhas abria para o pateo: era sahir da sacristia,
+atravessal-o, e o senhor parocho estava no ninho!
+
+--E ella?
+
+--Ella entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que dá para o
+adro. Não passa viva alma, é um ermo. E se alguem visse, nada mais
+natural, era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro... Isto, já
+se vê, é ainda pelo alto, que o plano póde-se aperfeiçoar...
+
+--Sim, comprehendo, é um esboço, disse Amaro que passeava pelo quarto
+reflectindo.
+
+--Eu conheço bem o sitio, senhor parocho, e creia o que lhe digo: para
+um senhor ecclesiastico que tem o seu arranjinho, não ha melhor que a
+casa do sineiro!
+
+Amaro parou diante d'ella, rindo, familiarisando-se:
+
+--Ó tia Dionysia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que vossê
+aconselha a casa do sineiro, hein?
+
+Ella então negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio
+Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo aquella idéa de noite, a malucar na cama.
+Pela manhã cedo fôra examinar o sitio, e reconhecera que estava a
+calhar.
+
+Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta; e voltando-se ainda,
+com um ultimo conselho:
+
+--Tudo está em que vossa senhoria se entenda bem com o sineiro.
+
+
+Era isso agora o que preoccupava o padre Amaro.
+
+O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por
+um _macambusio_. Tinha uma perna cortada e usava muleta: e alguns
+sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus protegidos,
+sustentavam mesmo que aquelle defeito o tornava, segundo a Regra,
+improprio para o serviço da Igreja. Mas o antigo parocho José Migueis,
+em obediencia ao senhor bispo, conservára-o na Sé, argumentando que o
+trambolhão desastroso que motivára a amputação fôra na torre, n'uma
+occasião de festa, collaborando no culto: _ergo_ estava claramente
+indicada a intenção de Nosso Senhor em não prescindir do tio Esguelhas.
+E quando Amaro tomára conta da parochia, o côxo valera-se da influencia
+da S. Joanneira e d'Amelia para conservar, como elle dizia, a _corda do
+sino_. Era além d'isso (e fôra a opinião da rua da Misericordia) uma
+obra de caridade. O tio Esguelhas, viuvo, tinha uma filha de quinze
+annos paralytica, desde pequena, das pernas. «O diabo embirrou com as
+pernas da familia», costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta
+desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga
+(cujo nome era Antonia, e que o pai chamava Tótó) o torturava com
+perrices, phrenesis, caprichos abominaveis. O doutor Gouvêa declarára-a
+_hysterica_: mas era uma certeza, para as pessoas de bons principios,
+que a Tótó estava _possuida do Demonio_. Houvera mesmo o plano de a
+exorcismar: o senhor vigario geral, porém, sempre assustado com a
+imprensa, hesitára em conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito
+apenas, sem resultado, as aspersões simples de agua benta. De resto não
+se sabia a natureza do _endemoninhamento_ da paralytica: a snr.^a D.
+Maria da Assumpção ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a
+Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava
+com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela
+rapariga, respondia sêccamente:
+
+--Lá está.
+
+Os intervallos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no
+casebre. Só atravessava o largo para ir á botica por algum remedio, ou
+comprar bolos á confeitaria da Thereza. Todo o dia aquelle recanto da
+Sé, o pateo, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietarias, a
+casa ao fundo com a sua janella de portada negra n'uma parede
+lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma sombra humida: e os meninos
+do côro, que ás vezes se arriscavam a ir pé-ante-pé, pelo pateo,
+espreitar o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado á lareira,
+com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.
+
+Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor parocho.
+E Amaro, n'essa manhã, ao revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo
+a muleta, ia já ruminando a sua historia--porque não podia pedir ao tio
+Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, d'algum modo, que o
+desejava para um serviço religioso... E que serviço, a não ser preparar,
+em segredo e longe das opposições mundanas, alguma alma terna para o
+convento e para a santidade?
+
+Ao vêl-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns «bons dias» amaveis.
+Achou-lhe uma bella cara de saude! Tambem não admirava--porque, segundo
+todos os santos padres, a frequentação dos sinos, pela virtude
+particular que lhes communica a consagração, dão uma alegria e um
+bem-estar especiaes. Contou então com bonhomia ao tio Esguelhas e aos
+dois sacristães que, quando era pequeno, em casa da senhora marqueza
+d'Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...
+
+Riram muito, extasiando-se com a pilheria de sua senhoria.
+
+--Não se riam, é verdade. E não me ficava mal... N'outros tempos eram
+clerigos d'ordens menores que tocavam os sinos. Os nossos santos padres
+consideram-n'os um dos meios mais efficazes da piedade. Lá disse a glosa
+pondo o verso na bôca do sino:
+
+
+_Laudo Deum, populum voco, congrego clerum.
+Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro..._
+
+
+O que quer dizer, como sabem: _Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o
+clero, choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas_.
+
+Citava a glosa com respeito, já revestido d'amicto e alva, no meio da
+sacristia; e o tio Esguelhas impertigava-se sobre a sua muleta áquellas
+palavras que lhe davam uma auctoridade e uma importancia imprevista.
+
+O sacristão tinha-se aproximado com a casula rôxa. Mas Amaro não
+terminára a glorificação dos sinos;--explicou ainda a sua grande virtude
+em dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns sabios
+presumpçosos), não só porque communicam ao ar a unção que recebem da
+benção, mas porque dispersam os demonios que erram entre os vendavaes e
+os trovões. O santo concilio de Milão recommenda que se toquem os sinos
+sempre que haja tormenta...
+
+--Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude
+pelo sineiro, aconselho-lhe que n'esses casos é melhor não se arriscar.
+Sempre é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio
+Mathias.
+
+E recebeu sobre os hombros a casula, murmurando com muita compostura:
+
+-_Domine, quis dixisti jugum meum_... Aperte mais os cordões por traz,
+tio Mathias. _Suave est, et onus meum leve_...
+
+Fez uma cortezia á imagem e entrou na igreja, na attitude da rubrica,
+d'olhos baixos e corpo direito; emquanto o Mathias, depois de ter tambem
+saudado com um raspão de pé o Christo da sacristia, se apressava com as
+galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.
+
+Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no _Offertorio_ e ao
+_Orate fratres_, o padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolencia
+que o ritual permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse por
+sua intenção particular;--e o tio Esguelhas, com a sua muleta pousada ao
+lado, abysmava-se então n'uma devoção mais respeitosa. Mesmo ao
+_Benedicat_, depois de ter começado a benção voltado para o altar para
+recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia, terminou-a, virando-se
+devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a elle só
+as Graças e Dons de Nosso Senhor!
+
+--E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, vá-me
+esperar ao pateo que temos que conversar.
+
+Não tardou a vir ter com elle, com uma face grave que impressionou o
+sineiro.
+
+--Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho fallar-lhe d'um caso
+sério... Verdadeiramente pedir-lhe um favor...
+
+--Oh, senhor parocho!
+
+Não, não era um favor... Porque, quando se tratava do serviço de Deus,
+todos tinham o dever de concorrer na proporção das suas forças...
+Tratava-se d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim, para lhe
+provar a confiança que tinha n'elle, ia-lhe dizer o nome...
+
+--É a Ameliasinha da S. Joanneira!
+
+--Que me diz, senhor parocho?!
+
+--Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o dedo de Deus! É extraordinario...
+
+Contou-lhe então uma historia diffusa que ia forjando laboriosamente,
+segundo as sensações que imaginava vêr na face pasmada do sineiro. A
+rapariga desgostára-se da vida, com as desavenças que tivera com o
+noivo. Mas a mãi, que estava velha, que a necessitava para o governo da
+casa, não queria consentir, suppondo que era uma velleidade... Mas não,
+era vocação... Elle sabia-o... Infelizmente, quando havia opposição, a
+conducta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornaes
+impios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influencias do
+clero... As auctoridades, mais impias que os jornaes, punham
+obstaculos... Havia leis terriveis... Se soubessem que elle andava a
+instruir a menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que queria o
+tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do tempo! Ora, elle necessitava
+ter com a pequena muitas e muitas conferencias: para a experimentar,
+para conhecer as suas disposições, vêr bem se é para a Solidão que ella
+tem geito, ou para a Penitencia, ou para o serviço dos enfermos, ou para
+a Adoração Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a por dentro e
+por fóra.
+
+--Mas onde? exclamou, abrindo os braços como na desolação d'um santo
+dever contrariado. Onde? Em casa da mãi não póde ser, já andam
+desconfiados. Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua. Em minha
+casa, já vê, menina nova...
+
+--Está claro.
+
+--De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que vossê m'o ha de
+agradecer... pensei na sua casa...
+
+--Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está
+tudo ás ordens!
+
+--Bem vê, é no interesse d'aquella alma, é um regosijo para Nosso
+Senhor...
+
+--E p'ra mim, senhor parocho, e p'ra mim!
+
+O que o tio Esguelhas receava é que a casa não fosse decente e não
+tivesse as commodidades...
+
+--Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento de todos os confortos
+humanos. Comtanto que haja duas cadeiras e uma mesa para pôr o livro da
+oração...
+
+De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como sitio retirado e casa
+socegada estava a preceito. Ficavam alli, elle e a menina, como os
+monges no deserto. Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle sahia a
+dar o seu giro. Na cozinha não poderiam accommodar-se, porque o quartito
+da pobre Tótó era ao pé... Mas tinham o quarto d'elle, em cima.
+
+O padre Amaro bateu com a mão na testa. Não se lembrára da paralytica!
+
+--Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas! exclamou.
+
+Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava agora todo interessado
+n'aquella conquista d'uma noiva para Nosso Senhor; queria por força que
+o seu telhado abrigasse a santa preparação da alma da menina... Talvez
+lhe attrahisse a elle a piedade de Deus! Mostrou com calor as vantagens,
+as facilidades da casa. A Tótó não embaraçava. Não se mexia da cama. O
+senhor parocho entrava pela cozinha do lado da sacristia, a menina vinha
+pela porta da rua: subiam, fechavam-se no quarto...
+
+--E ella que faz, a Tótó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.
+
+Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e
+apaixonava-se por ellas a ponto de ter febre; outros dias passava-os
+n'um silencio medonho com os olhos cravados na parede. Mas ás vezes
+estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!
+
+--Devia-se entreter, devia lêr, disse o padre Amaro para mostrar
+interesse.
+
+O sineiro suspirou. Não sabia lêr, a pequena, nunca quizera aprender.
+Era o que elle lhe dizia--se pudesses lêr já te não pesava tanto a vida!
+Mas então? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre Amaro devia ter
+a caridade de a persuadir, quando viesse a casa...
+
+Mas o parocho não o escutava, todo abysmado n'uma idéa que lhe alumiára
+a face d'um sorriso. Achára subitamente a explicação natural a dar á S.
+Joanneira e ás amigas das visitas d'Amelia a casa do sineiro: era a
+ensinar a lêr a paralytica! A educal-a! A abrir-lhe a alma ás bellezas
+dos livros santos, da historia dos martyres e da oração!...
+
+--Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mãos de jubilo.
+É em sua casa que se ha de fazer da rapariga uma santa. E d'isto--e a
+sua voz deu um grave profundo--um segredo inviolavel!
+
+--Oh, senhor parocho! fez o sineiro, quasi offendido.
+
+--Conto comsigo! disse Amaro.
+
+Veio logo á sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a
+Amelia, em que lhe explicava detalhadamente «o arranjinho que fizera
+para gozarem novas e divinas felicidades». Prevenia-a que o pretexto
+para ella vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da
+paralytica: elle mesmo o proporia á noite em casa da mamã. «Que n'isto,
+dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus que se alumiasse com
+uma boa instrucção religiosa as trevas d'aquella alma. E matamos assim,
+querido anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!»
+
+Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente á mesa do almoço, com
+um contentamento pleno de si, da vida e das dôces facilidades que n'ella
+encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo, solidão da carne, tudo
+o que o consumira mezes e mezes, além na rua da Misericordia e alli na
+rua das Sousas, passára. Estava emfim installado á larga na felicidade!
+E recordava, abysmado n'um gozo mudo, com o garfo esquecido na mão, toda
+aquella meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os
+mentalmente um a um, saturando-se da deliciosa certeza da posse--como o
+lavrador que percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos
+invejaram muitos annos. Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume,
+os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço!
+Tambem elle agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda, que o
+adorava, que usava boas roupas brancas, e trazia no peito um cheirinho
+d'agua de colonia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o seu
+grande argumento: é que o comportamento do padre, logo que não dê
+escandalo entre os fieis, em nada prejudica a efficacia, a utilidade, a
+grandeza da religião. Todos os theologos ensinam que a ordem dos
+sacerdotes foi instituida para administrar os sacramentos; o essencial é
+que os homens recebam a santidade interior e sobrenatural que os
+sacramentos contêm; e comtanto que elles sejam dispensados segundo as
+formulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou
+peccador? O sacramento communica a mesma virtude. Não é pelos meritos do
+sacerdote que elles operam, mas pelos meritos de Jesus Christo. O que é
+baptisado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica
+igualmente bem lavado da macula original, ou bem preparado para a vida
+eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico
+concilio de Trento. Os fieis nada perdem, na sua alma e na sua salvação,
+com a indignidade do parocho. E se o parocho se arrepende á hora
+extrema, tambem se lhe não fecham as portas do céo. Logo em definitiva
+tudo acaba bem, e em paz geral...--E o padre Amaro, raciocinando assim,
+sorvia com prazer o seu café.
+
+A Dionysia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor
+parocho fallára ao tio Esguelhas...
+
+--Fallei por alto, disse elle ambiguamente. Não ha nada decidido... Roma
+não se construiu n'um dia.
+
+--Ah! fez ella.
+
+E recolheu-se á cozinha, pensando que o senhor parocho mentia como um
+hereje. Tambem, não se importava... Nunca gostára de arranjos com os
+senhores ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...
+
+E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu á escada a dizer-lhe--que emfim,
+ella tinha a olhar pela sua casa, e quando o senhor parocho tivesse
+arranjado criada...
+
+--A snr.^a D. Josepha Dias anda-me a tratar d'isso, Dionysia. Espero ter
+alguem ámanhã. Mas vossê appareça... Agora que somos amigos...
+
+--Quando o senhor parocho quizer é chamar-me da janella para o quintal,
+disse ella do alto da escada. Para tudo que precisar. De tudo sei um
+bocadinho, até de desarranjos e de partos... E n'este ponto posso até
+dizer...
+
+Mas o padre não a escutava: atirára com a porta de repellão, fugindo,
+indignado d'aquella utilidade torpe assim brutalmente offerecida.
+
+
+Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S. Joanneira da filha do
+sineiro.
+
+Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa noite, emquanto na sala se
+galrava alto, aproximára-se do piano, onde Amelia, com os dedos
+preguiçosos, corria escalas, e abaixando-se para accender o cigarro á
+vela, murmurára:
+
+--Leu?
+
+--Optimo!
+
+Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava
+contando uma catastrophe que lêra n'um jornal, succedida em Inglaterra:
+uma mina de carvão que desabára, sepultando cento e vinte trabalhadores.
+As velhas arripiavam-se horrorisadas. A Gansoso então, gozando o
+effeito, accumulou loquazmente os detalhes: a gente que estava fóra
+esforçára-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes em baixo os
+gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...
+
+--Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se na sua poltrona,
+gozando o calor da sala e a segurança dos tectos.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção declarou que todas essas minas, essas
+machinas estrangeiras lhe causavam medo. Vira uma fabrica ao pé
+d'Alcobaça, e parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso
+Senhor não as via com bons olhos...
+
+--É como os caminhos de ferro, disse D. Josepha. Tenho a certeza que
+foram inspirados pelo demonio! Não o digo a rir. Mas vejam aquelles
+uivos, aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!
+
+O padre Amaro galhofou,--assegurando á snr.^a D. Josepha que eram
+ricamente commodos para andar depressa! Mas, tornando-se logo sério,
+acrescentou:
+
+--Em todo o caso é incontestavel, que ha n'essas invenções da sciencia
+moderna muito do demonio. E é por isso que a nossa santa Igreja as
+abençôa, primeiro com orações e depois com agua benta. Hão de saber que
+é o costume. Com agua benta para lhes fazer o exorcismo, expulsar o
+espirito inimigo: e com orações para as resgatar do peccado original que
+não só existe no homem, mas nas coisas que elle construe. É por isso que
+se benzem e se purificam as locomotivas... Para que o demonio não se
+possa servir d'ellas para seu uso.
+
+D. Maria da Assumpção quiz immediatamente uma explicação. Como era a
+maneira usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?
+
+O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas
+maneiras, mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que
+morressem passageiros, e como essas almas não estavam preparadas pela
+Extrema-Unção, o demonio alli mesmo, zás, apoderava-se d'ellas!
+
+--É de velhaco! rosnou o conego, com uma admiração secreta por aquella
+manha tão habil do Inimigo.
+
+Mas D. Maria da Assumpção abanou-se langorosamente, com o rosto banhado
+n'um sorriso de beatitude:
+
+--Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a nós é que não nos
+succedia isso... Que não nos pilhava desprevenidas!
+
+Era verdade; e todas gozaram um momento aquella certeza deliciosa de
+estarem preparadas, de poderem lograr a malicia do Tentador!
+
+O padre Amaro então tossiu como para preparar as vias, e apoiando as
+duas mãos sobre a mesa, n'um tom de pratica:
+
+--É necessario muita vigilancia para conservar de longe o demonio. Ainda
+hoje eu estava a pensar n'isso (foi mesmo a minha meditação) a respeito
+de um caso bem triste que tenho lá ao pé da Sé... É a filhita do
+sineiro.
+
+As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, n'uma
+curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a historia picante
+d'alguma façanha de Satanaz. E o parocho continuou com uma voz a que o
+silencio em redor dava solemnidade:
+
+--Alli está aquella rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não
+sabe lêr, não tem devoções habituaes, não tem o costume da meditação; é
+por consequencia, para empregar a expressão de S. Clemente--_uma alma
+sem defeza_. O que succede? Que o demonio, que ronda constantemente e
+não perde dentada, estabelece-se alli como em sua casa! Por isso, como
+me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são phrenesis, desesperos, furores
+sem razão... Emfim o pobre homem tem a vida estragada.
+
+--E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assumpção,
+indignada d'aquella impudencia de Satanaz, **installando-se** n'um
+corpo, n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava dos
+contrafortes da Sé.
+
+Amaro acudiu:
+
+--Tem a D. Maria razão. O escandalo é enorme. Mas então? Se a rapariga
+não sabe lêr! Se não sabe uma oração, se não tem quem a instrua, quem
+lhe leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o segredo
+de frustrar o Inimigo!...
+
+Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de hombros vergados,
+n'uma mágoa de pastor a quem uma força desproporcional arrebata uma
+ovelha amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com effeito, uma
+piedade que o invadia, uma compaixão verdadeira por aquella pobre
+creatura, a quem a falta de consolações devia tornar mais intensa a
+agonia da immobilidade...
+
+As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle caso triste d'abandono
+d'alma,--sobretudo pela dôr que elle parecia trazer ao senhor parocho.
+
+A snr.^a D. Maria da Assumpção, que percorria em imaginação o abundante
+arsenal da devoção, lembrára logo que se lhe puzessem alguns santos á
+cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o
+silencio das amigas exprimiu bem a insufficiencia d'aquella galeria
+devota.
+
+--As senhoras dir-me-hão talvez, disse o padre Amaro sentando-se de
+novo, que se trata apenas da filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma
+alma como as nossas!
+
+--Todos têm direito á graça do Senhor, disse o conego gravemente, n'um
+sentimento d'imparcialidade, admittindo a igualdade das classes logo que
+não se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos do céo.
+
+--P'ra Deus não ha pobre nem rico, suspirou a S. Joanneira. Antes pobre,
+que dos pobres é o reino do céo!
+
+--Não, antes rico, acudiu o conego, estendendo a mão para deter aquella
+falsa interpretação da lei divina. Que o céo tambem é para os ricos. A
+senhora não comprehende o preceito. _Beati pauperes_, bemditos os
+pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não
+desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que
+têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não
+serem bemditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que préga
+que os trabalhadores e as clases baixas devem viver melhor do que vivem,
+vai d'encontro á expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não
+merece senão chicote, como excommungados que são! Ouf!
+
+E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O padre Amaro, esse,
+permanecia calado, com o cotovêlo sobre a mesa, esfregando devagar a
+testa. Ia lançar a sua idéa, como vinda d'uma inspiração divina, propôr
+que fosse Amelia levar uma educação devota á triste paralytica... E
+hesitava supersticiosamente diante do seu motivo todo carnal, todo de
+concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora, exageradamente,
+abysmada n'uma treva d'agonia. Sentia toda a caridade que haveria em
+consolal-a, entretel-a, fazer-lhe os dias menos amargos... Esta acção
+redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita n'um
+puro espirito de fraternidade christã! Vinha-lhe uma compaixão
+sentimental de bom rapaz por aquelle miseravel corpo pregado n'uma cama,
+sem nunca vêr o sol nem a rua... E alli estava embaraçado, n'aquella
+piedade que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido quasi
+de ter fallado ás senhoras da Tótó...
+
+Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéa:
+
+--Ó senhor padre Amaro, se se lhe mandasse aquelle livro com pinturas de
+vidas dos santos? Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me alma...
+Não és tu que o tens, Amelia?
+
+--Não, disse ella, sem erguer os olhos da costura.
+
+Amaro então olhou-a. Tinha-a quasi esquecido. Estava agora do outro lado
+da mesa, abainhando um esfregão: a risca muita fina desapparecia na
+abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro ao lado punha um
+traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a
+pelle da face, d'um trigueiro calido, que uma tinta rosada aquecia; o
+vestido justo, que se franzia n'uma prega sobre o hombro, elevava-se
+amplamente sobre a fórma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo da
+respiração igual... Era aquella a belleza que mais appetecia n'ella;
+imaginava-os d'uma côr de neve, redondos e cheios; tivera-a nos braços,
+sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham **encontrado** só a
+sêda fria... Mas na casa do sineiro seriam d'elle, sem obstaculo, sem
+vestidos, á disposição dos seus labios. Por Deus! e nada impedia que ao
+mesmo tempo consolassem a alma da Tótó! Não hesitou mais. E erguendo a
+voz, no meio do palratorio das velhas que discutiam agora a desapparição
+da _Vida dos Santos_:
+
+--Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale á rapariga... Sabem
+a idéa que me veio? Era um de nós, o que estiver menos occupado,
+levar-lhe a palavra de Deus e educar aquella alma!--E acrescentou,
+sorrindo:--E a fallar a verdade, a pessoa mais desoccupada aqui de todos
+nós é a menina Amelia...
+
+Então foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda
+n'uma revelação. Os olhos de todas accenderam-se n'uma excitação devota,
+á idéa d'aquella missão de caridade, que partia alli d'ellas, da rua da
+Misericordia... Extasiavam-se, no ante-gosto guloso dos elogios do
+senhor chantre e do cabido! Cada uma dava o seu conselho, n'uma
+assiduidade de participar da santa obra, de partilharem as recompensas
+que o céo certamente prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com
+calor que invejava Amelia; e chocou-se muito vendo-a de repente rir.
+
+--Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com o orgulho
+da boa acção... Olha que assim não t'aproveita!
+
+Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso, deitada para as costas
+da cadeira, suffocando-se para se conter.
+
+Os olhinhos de D. Joaquina chammejavam.
+
+--É indecente, é indecente! gritava.
+
+Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhos que fôra
+uma idéa extravagante que tivera, que era nervoso...
+
+--Ai, disse D. Maria da Assumpção, ella tem razão em s'orgulhar. Que é
+uma honra p'r'á casa! Em se sabendo...
+
+O parocho interrompeu com severidade:
+
+--Mas não se deve saber, snr.^a D. Maria da Assumpção! De que serve, aos
+olhos do Senhor, uma boa obra de que se tire alarde e vangloria?
+
+D. Maria vergou os hombros, humilhando-se á reprehensão. E Amaro, com
+gravidade:
+
+--Isto não deve sahir d'aqui. É entre Deus e nós. Queremos salvar uma
+alma, consolar uma enferma, e não ter elogios nos periodicos. Pois não é
+assim, padre-mestre?
+
+O conego ergueu-se pesadamente:
+
+--Vossê esta noite tem fallado com a lingua de ouro de S. Chrysostomo.
+Eu estou edificado; e não se me dava agora de vêr apparecer as torradas.
+
+Foi então, emquanto a _Ruça_ não trazia o chá, que se decidiu que
+Amelia, todas as semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoção,
+**iria em** segredo, para que a acção fosse mais valiosa aos olhos de
+Deus, passar uma hora à cabeceira da paralytica, lêr-lhe a _Vida dos
+Santos_, ensinar-lhe rezas e insufflar-lhe a virtude.
+
+--Emfim, resumiu a snr.^a D. Maria da Assumpção voltando-se para Amelia,
+não te digo senão uma coisa: abichaste!
+
+A _Ruça_ entrou com o taboleiro, no meio dos risos que provocára a
+«tolice de D. Maria», como disse Amelia, que se fizera escarlate.--E foi
+assim que ella e o padre Amaro se puderam vêr livremente, para gloria do
+Senhor e humilhação do Inimigo.
+
+
+Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as
+suas visitas caridosas á paralytica perfizessem ao fim do mez o numero
+symbolico de sete, que devia corresponder, na idéa das devotas, ás _Sete
+lições de Maria_. Na vespera o padre Amaro tinha prevenido o tio
+Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de ter
+varrido toda a casa e preparado o quarto para a pratica do senhor
+parocho. Amelia n'esses dias erguia-se cedo: tinha sempre alguma saia
+branca a engommar, algum laçarote a compôr; a mãi estranhava-lhe
+aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua de colonia de que ella se
+inundava; mas Amelia explicava que «era para inspirar á Tótó idéas de
+aceio e de frescura». E depois de vestida sentava-se, esperando as onze
+horas, muito séria, respondendo distrahidamente ás conversas da mãi, com
+uma côr nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relogio: emfim a
+velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ella, depois d'uma
+olhadella ao espelho, sahia, dando uma beijoca á mamã.
+
+Ia sempre receosa, n'uma inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs
+pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e
+se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os
+gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a
+assustava era o largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando
+por traz da janella, exercia uma vigilancia incessante. Fazia-se então
+pequenina no seu mantelete, e abaixando o guardasol sobre o rosto,
+entrava emfim na Sé, sempre com o pé direito.
+
+Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida n'uma luz fusca,
+amedrontava-a: parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das
+cruzes, uma reprehensão ao seu peccado; imaginava que os olhos de vidro
+das imagens, as pupillas pintadas dos paineis se fixavam n'ella, com uma
+insistencia cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança
+do prazer. Ás vezes mesmo, atravessada d'uma superstição, para dissipar
+o descontentamento dos santos, promettia dar-se n'essa manhã toda á
+Tótó, occupar-se caridosamente só d'ella, e não se deixar tocar sequer
+no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro
+o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tótó, postar-se
+à janella da cozinha, vigiando a porta massiça da sacristia de que ella
+conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.
+
+Elle apparecia, emfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado
+as andorinhas; ouviam-n'as chilrear, n'aquelle silencio melancolico,
+esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos logares
+humidos cobriam os cantos d'uma verdura escura. Amaro, ás vezes muito
+galante, ia procurar uma florzinha. Amelia impacientava-se, rufava na
+vidraça da cozinha. Elle apressava-se; ficavam um momento á porta,
+apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim
+vêr a Tótó--e dar-lhe os bolos que o parocho lhe trazia no bolso da
+batina.
+
+A cama da Tótó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de
+tisica quasi não fazia saliencia enterrado na cova da enxerga, sob os
+cobertores enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses dias
+tinha vestido um chambre branco, os cabellos reluziam-lhe d'oleo; porque
+ultimamente, desde as visitas d'Amaro, viera-lhe «uma birra de parecer
+alguem», como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer
+separar d'um espelho e d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e
+obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que
+agora desprezava.
+
+Amelia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se
+estudára o A B C, obrigando-a a dizer aqui e além o nome d'uma letra.
+Depois queria que ella repetisse sem a errar a oração que lhe andava
+ensinando;--emquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos
+nos bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da paralytica
+que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e
+com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto
+trigueiro tão chupado que se lhe via a saliencia das maxillas. Não
+sentia agora nem compaixão nem caridade pela Tótó; detestava aquella
+demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem pesavam
+aquelles momentos em que, para não escandalisar muito Nosso Senhor, se
+resignava a fallar à paralytica. A Tótó parecia odial-a; respondia-lhe
+muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio rancoroso,
+voltada para a parede; um dia despedaçára o alphabeto; e encolhia-se
+toda encruada se Amelia lhe queria compor o chale sobre os hombros ou
+conchegar-lhe a roupa...
+
+Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a Amelia; ella punha logo
+diante da Tótó o livro com estampas da _Vida dos Santos_.
+
+--Vá, ficas agora a vêr as figuras... Olha, este é S. Matheus, esta
+Santa Virginia... Adeus, eu vou lá a cima com o senhor parocho rezarmos
+para que Deus te dê saude e te deixe ir passear... Não estragues o
+livro, que é peccado.
+
+E subiam a escada, emquanto a paralytica, estendendo o pescoço
+sôfregamente, os seguia, escutando o ranger dos degraus, com olhos
+chammejantes que lagrimas de raiva ennevoavam. O quarto, em cima, era
+muito baixo, sem forro, com um tecto de vigas negras sobre que
+assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a candeia que puzera sobre
+a parede um penacho negro do fumo. E Amaro ria sempre dos preparativos
+que fizera o tio Esguelhas--a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma
+caneca d'agua, e duas cadeiras dispostas ao lado...
+
+--É p'r'á nossa conferencia, para te ensinar os deveres de freira, dizia
+elle, galhofando.
+
+--Ensina, então! murmurava ella de braços abertos, pondo-se diante do
+padre, com um sorriso calido onde brilhava um branquinho dos dentes,
+n'um abandono que se offerecia.
+
+Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabellos; às vezes
+mordia-lhe a orelha; ella dava um gritinho; e ficavam então muito
+quedos, escutando, com medo da paralytica em baixo. O parocho depois
+fechava as portadas da janella e a porta muito perra que tinha
+d'empurrar com o joelho. Amelia ia-se despindo devagar; e com as saias
+cahidas aos pés ficava um momento immovel, como uma fórma branca na
+escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte.
+Ella então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava
+um suspirosinho triste.
+
+Amelia só podia demorar-se até ao meio dia. O padre Amaro por isso
+pendurava o seu _cebolão_ no prego da candeia. Mas quando não ouviam as
+badaladas da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar d'um gallo
+visinho.
+
+--Devo ir, filho, murmurava toda cansada.
+
+--Deixa lá... Estás sempre com a pressa...
+
+Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassidão dôce, muito chegados um
+ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e além
+fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as suas passadas fofas,
+vadiar, fazendo bolir alguma telha solta; ou um passaro, pousando,
+chilreava e ouviam-lhe o fremito das azas.
+
+--Ai, são horas, dizia Amelia.
+
+O padre queria detel-a; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.
+
+--Lambão! murmurava ella. Deixa-me!
+
+Vestia-se á pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janella, vinha
+ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficára estatelado sobre o leito; e
+ia emfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralytica sentir em
+baixo, saber que tinha acabado a conferencia.
+
+Amaro não findava ainda de a beijocar: ella então, para acabar,
+fugia-lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava
+em duas passadas a cozinha sem olhar para a Tótó, e entrava na
+sacristia.
+
+Amelia, essa, antes de sahir, vinha vêr a paralytica, saber se gostára
+das estampas. Encontrava-a ás vezes com a cabeça debaixo dos cobertores,
+que entalava e prendia com as mãos para se **esconder**; outras vezes,
+sentada na cama, examinava Amelia com olhos em que se accendia uma
+curiosidade viciosa; chegava o rosto para ella, com as narinas dilatadas
+que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta, córando tambem;
+queixava-se então de ser tarde, recolhia a _Vida dos Santos_,--e sahia,
+amaldiçoando aquella creatura tão maliciosa na sua mudez.
+
+
+Ao passar no largo, áquella hora, via sempre a Amparo á janella.
+Ultimamente mesmo julgára prudente contar-lhe em segredo a sua caridade
+com a Tótó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e debruçando-se toda na
+varanda:
+
+--Então como vai a Tótó?
+
+--Lá vai.
+
+--Já lê?
+
+--Já soletra.
+
+--E a oração a Nossa Senhora?
+
+--Já a diz.
+
+--Ai, que devoção a tua, filha!
+
+Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava tambem no
+segredo, deixava o balcão para vir á porta admirar Amelia.
+
+--Vem da sua grande missão de caridade, hein? dizia, d'olho arregalado,
+balanceando-se na ponta das chinelas.
+
+--Estive um bocado com a pequena, a entretel-a...
+
+--Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa
+menina, recados á mamã.
+
+Voltava-se então para dentro, para o praticante:
+
+--Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de passar o seu tempo, como as
+outras, em namoros, faz-se anjo da guarda! Passa a flôr dos annos com
+uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o materialismo, e essas
+porcarias são capazes d'inspirar acções d'este jaez... Só a religião,
+meu caro senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada de philosophos
+vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a philosophia, mas
+quando ella, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou
+homem de sciencia e admiro um Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor
+estas palavras) se a philosophia se afasta da religião... (grave bem
+estas palavras) dentro de dez annos, snr. Augusto, está a philosophia
+enterrada!
+
+E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos lentos, de mãos atraz
+das costas, ruminando o fim da philosophia.
+
+
+
+
+XVIII
+
+
+Foi aquelle o periodo mais feliz da vida de Amaro.
+
+«Ando na graça de Deus», pensava elle ás vezes á noite, ao despir-se,
+quando por um habito ecclesiastico, fazendo o exame dos seus dias, via
+que elles se seguiam faceis, tão confortaveis, tão regularmente gozados.
+Não houvera, nos ultimos dois mezes, nem attritos nem difficuldades no
+serviço da parochia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava
+d'um humor de santo. D. Josepha Dias arranjára-lhe muito barata uma
+cozinheira excellente, e que se chamava Escolastica. Na rua da
+Misericordia tinha a sua côrte admiradora e devota; cada semana, uma ou
+duas vezes, vinha áquella hora deliciosa e celeste na casa do tio
+Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que
+já no Morenal começavam a abrir as rosas.
+
+Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguem da
+sacristia suspeitava os seus _rendez-vous_ com Amelia. Aquellas visitas
+á Tótó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe «as devoções da
+pequena»; e não a interrogavam com particularidades, pelo principio
+beato que as devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só ás
+vezes alguma das senhoras perguntava a Amelia--como ia a doente; ella
+assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos á lei
+de Deus; então, muito discretamente, fallavam de coisas differentes.
+Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando a Tótó
+soubesse bem o seu catecismo e pela efficacia da oração se tivesse
+tornado boa, admirar em romaria a obra santa de Amelia e a humilhação do
+Inimigo.
+
+Amelia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propuzera
+um dia a Amaro, como muito habil--dizer ás amigas que o senhor parocho
+ás vezes vinha assistir á pratica piedosa que ella fazia á Tótó...
+
+--Assim, se alguem te surprehendesse a entrar para a casa do tio
+Esguelhas, já não havia suspeitas.
+
+--Não me parece necessario, disse elle. Deus está comnosco, filha, é
+claro. Não queiramos intrometter-nos nos seus planos. Elle vê mais longe
+que nós...
+
+Ella concordou logo--como em tudo que sahia dos seus labios. Desde a
+primeira manhã, na casa do tio Esguelhas, ella abandonára-se-lhe
+absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não
+havia na sua pelle um cabellinho, não corria no seu cerebro uma idéa a
+mais pequenina, que não pertencesse ao senhor parocho. Aquella possessão
+de todo o seu sêr não a invadira gradualmente; fôra completa, no momento
+que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia que os
+beijos d'elle lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma
+dependencia inerte da sua pessoa. E não lh'o occultava; gozava em se
+humilhar, offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda escrava;
+queria que elle pensasse por ella e vivesse por ella; descarregára-se
+n'elle, com satisfação, d'aquelle fardo da responsabilidade que sempre
+lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe formados do cerebro
+do parocho, tão naturalmente como se sahisse do coração d'elle o sangue
+que lhe corria nas veias. «O senhor parocho queria ou o senhor parocho
+dizia» era para ella uma razão toda sufficiente e toda poderosa. Vivia
+com os olhos n'elle, n'uma obediencia animal: tinha só a curvar-se
+quando elle fallava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.
+
+Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ella desforrava-o de todo
+um passado de dependencias--a casa do tio, o seminario, a sala branca do
+senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre era uma curvatura
+humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á
+camara ecclesiastica, aos canones, á Regra que nem lhe permittia ter uma
+vontade propria nas suas relações com o sacristão. E agora, emfim, tinha
+alli aos seus pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo sobre
+quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão,
+louvando, adorando e incensando Deus,--era elle tambem agora o Deus
+d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ella ao
+menos, era bello, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra
+como os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois de ter
+estado um momento pensativa:
+
+--Tu podias chegar a Papa!
+
+--D'esta massa se fazem, respondeu elle com seriedade.
+
+Ella acreditava-o--com um receio, todavia, que as altas dignidades o
+afastassem d'ella, o levassem para longe de Leiria. Aquella paixão, em
+que estava abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e obtusa a tudo
+o que não respeitava ao senhor parocho ou ao seu amor. Amaro de resto
+não lhe consentia interesses, curiosidades alheias á sua pessoa.
+Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias. Para que se havia de
+fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ella
+fallára, com algum appetite, d'um baile que iam dar os Vias-Claras,
+offendeu-se como d'uma traição. Fez-lhe em casa do tio Esguelhas
+accusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de
+Satanaz!...
+
+--Mas mato-te! Percebes? Mato-te!--exclamou, agarrando-lhe os pulsos,
+fulminando-a com o olhar accêso.
+
+Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se ao seu imperio,
+perder-lhe a adoração muda e absoluta. Pensava ás vezes que ella se
+fatigaria, com o tempo, d'um homem que não lhe satisfazia as vaidades e
+os gostos de mulher, sempre mettido na sua batina negra, com a cara
+rapada e a corôa aberta. Imaginava que as gravatas de côres, os bigodes
+bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme de lanceiros exercem
+sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d'algum
+official do destacamento, d'algum cavalheiro da cidade, eram ciumes
+desabridos...
+
+--Góstas d'elle? Hein? É pelos trapos, pelo bigode?...
+
+--Gósto d'elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!
+
+Mas escusava de fallar da creatura, então! Era ter curiosidade, pôr o
+pensamento n'outro! D'essas faltas de vigilancia sobre a alma e a
+vontade é que se aproveitava o demonio!...
+
+Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular--que a poderia
+attrahir, arrastar para fóra da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com
+pretextos complicados, toda a communicação com a cidade. Convenceu mesmo
+a mãi que a não deixasse ir só á Arcada e ás lojas. E não cessava de lhe
+representar os homens como monstros d'impiedade, cobertos de peccados
+como d'uma crosta, estupidos e falsos, votados ao inferno! Contava-lhe
+horrores de quasi todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe
+aterrada, mas curiosa:
+
+--Como sabes tu?
+
+--Não te posso dizer, respondia com uma reticencia, indicando que lhe
+fechava os labios o segredo da comfissão.
+
+E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos com a glorificação do
+sacerdocio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos
+compendios, fazendo-lhe o elogio das funcções, da superioridade do
+padre. No Egypto, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei
+se era sacerdote! Na Persia, na Ethiopia, um simples padre tinha o
+privilegio de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde havia uma
+auctoridade igual á sua? Nem mesmo na côrte do céo. O padre era superior
+aos anjos e aos seraphins--porque a elles não fôra dado como ao padre o
+poder maravilhoso de perdoar os peccados! Mesmo a Virgem Maria, tinha
+ella um poder maior que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito
+devido à magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer com S. Bernardino
+de Sena: «o sacerdote excede-te, ó mãi amada!»--porque, se a Virgem
+tinha incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma vez, e o padre,
+no santo sacrificio da missa, incarnava Deus todos os dias! E isto não
+era argucia d'elle, todos os santos padres o admittiam...
+
+--Hein, que te parece?
+
+--Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida de voluptuosidade.
+
+Então deslumbrava-a com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao
+padre «o Deus da terra»; o eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o
+padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus». E Santo Ambrosio
+que escreveu: «entre a dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior
+differença que a que existe entre o chumbo e o ouro»!
+
+--E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te
+parece?
+
+Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar,
+possuir n'elle o «ouro de Santo Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo
+o que na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que excede em graça
+os archanjos!
+
+Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou
+mais que a influencia da sua voz--que a faziam crêr na promessa que elle
+lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ella o
+interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam
+tomal-a pela mão para a acompanhar e desfazer todas as duvidas que
+pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que na sua sepultura, como
+succedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam
+espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade
+não se estraga nos abraços santos d'um padre...
+
+Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova perfumada de rosas brancas,
+ficava toda pensativa, n'um antegosto de felicidades mysticas, com
+suspirinhos de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.
+
+Amaro galhofava.
+
+--A fallar da morte, com essas carnesinhas...
+
+Engordára com effeito. Estava agora d'uma belleza ampla e toda igual.
+Perdera aquella expressão inquieta que lhe punha nos labios uma seccura
+e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e
+humido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa
+uma apparencia madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a
+cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar longamente com um
+sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a
+agulha, o panno que ella costurava, toda a sua pessoa... Estava revendo
+o quarto do sineiro, o catre, o senhor parocho em mangas de camisa.
+
+Passava os seus dias esperando as oito horas, em que elle apparecia
+regularmente com o conego. Mas os serões agora pezavam-lhe. Elle
+recommendára-lhe muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de
+obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d'elle ao chá, e de nem
+mesmo lhe offerecer bolos. Odiava então a presença das velhas, a
+gralhada das vozes, as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel
+no mundo, excepto estar só com elle... Mas depois, em casa do sineiro,
+que desforra! Aquelle rosto todo alterado, aquellas suffocações de
+delirio, aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da morte,
+assustavam ás vezes o padre. Erguia-se no cotovêlo, inquieto:
+
+--Estás incommodada?
+
+Ella abria os olhos espantados, como resurgindo de muito longe; e era
+realmente bella, cruzando os braços nús sobre o peito descoberto,
+dizendo lentamente com a cabeça que não...
+
+
+
+
+XIX
+
+
+Uma circumstancia inesperada veio estragar aquellas manhãs da casa do
+sineiro. Foi a extravagancia da Tótó. Como disse o padre Amaro, «a
+rapariga sahia-lhes um monstro»!
+
+Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida. Apenas ella se aproximava
+da cama, atirava a cabeça para debaixo dos cobertores, torcendo-se com
+phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia, impressionada com a
+idéa de que o diabo que habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella
+trazia da igreja nos vestidos, impregnados d'incenso e salpicados d'agua
+benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...
+
+Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas,
+a sua ingratidão demoniaca para com a menina Amelia que vinha
+entretel-a, ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralytica
+rompeu n'um chôro hysterico; depois, de repente, ficou immovel, hirta,
+esbugalhando os olhos em alvo, com uma escuma branca na bôca. Foi um
+grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua; Amaro, por prudencia, recitou
+os exorcismos... E Amelia desde então resolveu «deixar a fera em paz».
+Não tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem orações a Sant'Anna.
+
+Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a um instante. Não passavam
+da porta da alcova, perguntando-lhe d'alto «como ia». Nunca respondia. E
+elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos selvagens e
+brilhantes, que os devoravam, indo d'um a outro, percorrendo-lhes o
+corpo, fixando-se com uma faiscação metallica nos vestidos d'Amelia e na
+batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por baixo, n'uma
+curiosidade avida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe
+arreganhava os beiços lividos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa,
+que os incommodava sobretudo. Amaro, que não acreditava muito em
+possessos e endemoninhados, via alli os symptomas de _loucura furiosa_.
+Os sustos d'Amelia augmentaram.--Felizmente que as pernas inertes
+cravavam a Tótó alli na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar
+no quarto e mordêl-os n'um accesso!
+
+Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, «depois
+d'aquelle espectaculo»; e decidiu então, d'ahi por diante, subir para o
+quarto sem fallar á Tótó.
+
+Foi peor. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Tótó
+debruçava-se para fóra do leito, agarrada ás bordas da enxerga, n'um
+esforço ancioso para a seguir, para a vêr, com a face toda descomposta
+do desespero da sua immobilidade. E Amelia ao entrar no quarto sentia
+vir de baixo uma risadinha sêcca, ou um _ui!_ prolongado e uivado que a
+gelava...
+
+Andava agora aterrada: viera-lhe a idéa que Deus estabelecera alli, ao
+lado do seu amor com o parocho, um demonio implacavel para a escarnecer
+e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe que o nosso santo
+padre Pio IX, ultimamente, declarára peccado crêr em _pessoas
+possessas_...
+
+--Mas para que ha rezas, então, e exorcismos?
+
+--Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Emfim a
+sciencia é a sciencia...
+
+Ella presentia que Amaro a enganava--e a Tótó estragava a sua
+felicidade. Emfim Amaro achou o meio de escaparem «á maldita rapariga»:
+era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a cozinha
+para subir a escada, e a posição da cama da Tótó, na alcova, não lhe
+permittia vêl-os, quando elles cautelosamente passassem pé ante pé. Era
+facil, de resto, porque á hora do _rendez-vous_, entre as onze e o meio
+dia, nos dias de semana, a sacristia estava deserta.
+
+Mas succedia que, quando elles entravam em pontas de pés e mordendo a
+respiração, os seus passos, por mais subtis, faziam ranger os velhos
+degraus da escada. E então a voz da Tótó sahia da alcova, uma voz rouca
+e aspera, berrando:
+
+--Passa fóra cão! passa fóra cão!
+
+Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralytica. Amelia
+tremia, toda branca.
+
+E a creatura uivava de dentro:
+
+--Lá vão os cães! lá vão os cães!
+
+Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquella
+voz d'um desolamento lugubre, que lhes parecia vir dos infernos,
+chegava-lhes ainda, perseguia-os:
+
+--Estão a pegar-se os cães! estão a pegar-se os cães!
+
+Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de terror. Jurava não voltar
+áquella casa maldita...
+
+--Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos
+de vêr então? Queres que nos deitemos nos bancos da sacristia?
+
+--Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amelia, apertando as
+mãos.
+
+--Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto...
+Emfim, que queres que lhe faça?
+
+Ella não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia de
+_rendez-vous_, começava a tremer á idéa d'aquella voz que lhe atroava
+sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a
+despertando lentamente do adormecimento de todo o sêr, era que cahira
+nos braços do parocho. Interrogava-se agora: não andaria commettendo um
+peccado irremissivel? As affirmações de Amaro, assegurando-lhe o perdão
+do Senhor, já não a tranquillisavam. Ella bem via, quando a Tótó uivava,
+uma pallidez cobrir o rosto do parocho, como correr-lhe no corpo um
+calefrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava--porque deixava
+assim o demonio atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e o
+escarneo?
+
+Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa
+Senhora das Dôres, pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que
+era aquella perseguição da Tótó, e se era sua intenção divina mandar-lhe
+assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a
+sentia como outr'ora descer do céo ás suas orações, entrar-lhe na alma
+aquella tranquillidade suave como uma onda de leite que era uma
+visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada
+da graça. Promettia então não voltar a casa do sineiro;--mas quando o
+dia chegava, á idéa d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos que lhe levavam
+a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a
+tentação; vestia-se, jurando que era a ultima vez; e ao toque das onze
+partia, com as orelhas a arder, o coração tremendo da voz da Tótó que ia
+ouvir, as entranhas abrazando-se no desejo do homem que a ia atirar para
+cima da enxerga.
+
+Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
+
+Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á
+auctoridade sagrada da sua batina. Elle então, vendo-a chegar tão
+pallida e tão transtornada, galhofava para a tranquillisar. Não, era uma
+tolice, se iam agora estragar o regalosinho d'aquellas manhãs, porque
+havia uma doida na casa! Promettera-lhe de resto procurar outro sitio
+para se vêrem: e mesmo com o fim de a distrahir, aproveitando a solidão
+da sacristia, mostrava-lhe ás vezes os paramentos, os calices, as
+vestimentas, procurando interessal-a por um frontal novo ou por uma
+antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela familiaridade com que
+tocava nas reliquias, que era ainda o senhor parocho e não perdera o seu
+credito no céo.
+
+Foi assim que uma manhã lhe fez vêr uma capa de Nossa Senhora, que havia
+dias chegára de presente d'uma devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a
+muito. Era de setim azul, representando um firmamento, com estrellas
+bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flammejava um coração d'ouro
+cercado de rosas d'ouro. Amaro desdobrára-a, fazendo scintillar junto da
+janella os bordados espessos.
+
+--Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a hontem na
+imagem... Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez...--E
+olhando Amelia, n'uma comparação da sua alta estatura com a figura
+atarracada da imagem da Senhora:--A ti é que te havia de ficar bem.
+Deixa vêr...
+
+Ella recuou:
+
+--Não, credo, que peccado!
+
+--Tolice! disse elle adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro
+de setim branco, d'uma alvura de nuvem matutina. Não está benzida... É
+como se viesse da modista.
+
+--Não, não, dizia ella frouxamente, com os olhos já luzidios de desejo.
+
+Elle então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que elle o que era
+peccado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que se deve
+aos vestuarios dos santos?
+
+--Ora não seja tola. Deixe vêr.
+
+Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata
+lavrada. E afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto,
+assustada e immovel, com um sorriso cálido de gozo devoto.
+
+--Oh filhinha, que linda que ficas!
+
+Ella então, movendo-se com uma cautela solemne, chegou-se ao espelho da
+sacristia--um antigo espelho de reflexo esverdeado com um caixilho negro
+de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento,
+n'aquella sêda azul celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo
+das estrellas, com uma magnificencia sideral. Sentia-lhe o peso rico. A
+santidade que o manto adquirira no contacto com os hombros da imagem
+penetrava-a d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais dôce que o ar da
+terra envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a caricia do ether do
+paraiso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no céo...
+
+Amaro babava-se para ella:
+
+--Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora!
+
+Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto
+como Nossa Senhora... Mas com o seu rosto trigueiro, de labios rubros,
+alumiado por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o
+altar, com cantos ao orgão e um culto susurrando em redor, faria
+palpitar bem forte o coração dos fieis...
+
+Amaro então chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe os braços sobre o
+seio, apertou-a toda--e estendendo os labios por sobre os d'ella,
+deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia cerravam-se, a
+cabeça inclinava-se-lhe para traz, pesada de desejo. Os beiços do padre
+não se desprendiam, avidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração d'ella
+apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfalleceu sobre
+o hombro do padre, descórada e morta de gozo.
+
+Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as palpebras como
+acordada de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:
+
+--Oh Amaro, que horror, que peccado!...
+
+--Tolice! disse elle.
+
+Mas ella desprendia-se do manto, toda afflicta:
+
+--Tira-m'o, tira-m'o! gritava, como se a sêda a queimasse.
+
+Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com
+coisas sagradas...
+
+--Mas não está benzida... Não tem duvida...
+
+Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, collocou-o
+no gavetão, sem uma palavra. Amelia olhava-o petrificada: e só os seus
+labios pallidos se moviam n'uma oração.
+
+Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas d'irem a casa do
+sineiro--recuou, como diante do demonio que a chamasse.
+
+--Hoje não! exclamou, implorando-o.
+
+Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ella bem
+sabia que não era peccado, quando as coisas não estavam benzidas... Era
+ser muito pobre d'espirito... Que demonio, só meia hora, ou um quarto
+d'hora!
+
+Ella, sem responder, ia-se aproximando da porta.
+
+--Então não queres?
+
+Ella voltou-se, e com uns olhos supplicantes:
+
+--Hoje não!
+
+Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou rapidamente a igreja, de
+cabeça baixa e olhos nas lages, como se passasse entre as ameaças
+cruzadas dos santos indignados.
+
+
+No dia seguinte de manhã, a S. Joanneira, que estava na sala de jantar,
+sentindo o senhor conego subir soprando forte, veio encontral-o á escada
+e fechou-se com elle na saleta.
+
+Queria contar-lhe a afflicção que tivera de madrugada. A Amelia acordára
+de repente aos gritos, que Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no
+pescoço! que suffocava! que a Tótó a queimava por detraz! e que as
+labaredas do inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Emfim um
+horror!... Viera encontral-a em camisa a correr pelo quarto, como doida.
+D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque de nervos. Toda a casa
+estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a
+manhã apenas tocára n'uma colher de caldo.
+
+--Pesadêlos, disse o conego. Indigestão!
+
+--Ai, senhor conego, não! exclamou a S. Joanneira, que parecia
+acabrunhada, sentada diante d'elle na borda d'uma cadeira. É outra
+coisa: são aquellas desgraçadas visitas á filha do sineiro!
+
+E então desabafou, com a effusão labial de quem abre os diques a um
+descontentamento accumulado. Nunca quizera dizer nada, porque emfim
+reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquillo
+começára, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de
+todo. Ora alegrias sem razão, ora umas trombas de dar melancolia aos
+moveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir as
+janellas... Ás vezes tinha até medo de lhe vêr o olhar tão exquisito:
+quando vinha de casa do sineiro era sempre branca como a cal, a cahir de
+fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Emfim, dizia-se que a Tótó
+tinha o demonio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido
+(Deus lhe falle n'alma), costumava dizer que n'este mundo as duas coisas
+que se pegavam mais ás mulheres eram tisicas e demonio no corpo.
+Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do
+sineiro, sem estar certa que aquillo nem lhe prejudicava a saude nem lhe
+prejudicava a alma. Emfim, queria que uma pessoa de juizo,
+d'experiencia, fosse examinar a Tótó...
+
+--N'uma palavra, disse o conego que escutára d'olhos cerrados aquella
+verbosidade repassada de lamuria, o que a senhora quer é que eu vá vêr a
+paralytica e saber á justa o que se passa...
+
+--Era um allivio p'ra mim, riquinho!
+
+Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade de matrona,
+reservava para a intimidade das séstas, enterneceu o conego. Fez uma
+caricia ao pescoço gordo da sua velhota, prometteu com bondade ir
+estudar o caso...
+
+--Ámanhã, que a Tótó está só, lembrou logo a S. Joanneira.
+
+Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente. Podia assim vêr
+como as duas se davam, se havia influencia do espirito maligno...
+
+--Que isto que eu faço é d'agradecer... É por ser p'ra quem é... Que bem
+me bastam os meus achaques, sem me occupar dos negocios de Satanaz.
+
+A S. Joanneira recompensou-o com uma beijoca sonora.
+
+--Ah, sereias, sereias!... murmurou o conego philosophicamente.
+
+No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus
+habitos, toda uma manhã desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo
+d'exercitar a sua sagacidade; além d'isso odiava o espectaculo de
+doenças e de todas as circumstancias humanas relacionadas com a morte.
+Mas, emfim, fiel á sua promessa, d'ahi a dias, na manhã em que fôra
+prevenido que Amelia ia á Tótó, arrastou-se contrariado para a botica do
+Carlos; e installou-se, com um olho no _Popular_ e outro na porta, á
+espera que a rapariga **atravessasse** para a Sé. O amigo Carlos estava
+ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares sentado á escrivaninha,
+de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fóra, o sol já
+quente dos fins de abril fazia rebrilhar o lageado do largo; não passava
+ninguem; e só quebravam o silencio as martelladas nas obras do doutor
+Pereira. Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado longo
+tempo, com o _Popular_ cahido nos joelhos, o medonho sacrificio que
+fazia pela sua velhota, ia cerrando as palpebras, já tomado da
+quebreira, n'aquelle repouso calado do meio dia proximo--quando entrou
+na botica um ecclesiastico.
+
+--Oh, abbade Ferrão, vossê pela cidade! exclamou o conego Dias
+despertando do seu quebranto.
+
+--De fugida, collega, de fugida, disse o outro collocando
+cuidadadosamente sobre uma cadeira dois grossos volumes que trazia,
+amarrados n'um barbante.
+
+Depois voltou-se e tirou com respeito o seu chapéo ao praticante.
+
+Tinha o cabello todo branco; devia passar já dos sessenta annos; mas era
+robusto, uma alegria bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha
+dentes magnificos a que uma saude de granito conservava o esmalte; o que
+o desfigurava era um nariz enorme.
+
+Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava alli de visita ou
+infelizmente por motivo de doença.
+
+--Não, estou aqui á espera... Uma embaixada de truz, amigo Ferrão!
+
+--Ah, fez o velho discretamente.--E emquanto tirava com methodo d'uma
+carteira atulhada de papeis a receita para o praticante, deu ao conego
+noticias da freguezia. Era lá, nos Poyaes, que o conego tinha a fazenda,
+a Ricoça. O abbade Ferrão passára de manhã diante da casa e ficára
+surprehendido vendo que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo Dias
+tinha algumas idéas d'ir lá passar o verão?
+
+Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma
+vergonha, mandára-lhe dar uma mão d'oca. Emfim era necessario alguma
+apparencia, sobretudo n'uma casa que estava á beira da estrada, onde
+passava todos os dias o morgadelho dos Poyaes, um parlapatão que
+imaginava que só elle tinha um palacete decente em dez leguas á roda...
+Só para metter ferro áquelle atheu! Pois não lhe parecia, amigo Ferrão?
+
+O abbade estava justamente lamentando comsigo aquelle sentimento de
+vaidade n'um sacerdote; mas, por caridade christã, para não contrariar o
+collega, apressou-se a dizer:
+
+--Está claro, está claro. A limpeza é a alegria das coisas...
+
+O conego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi á
+porta affirmar-se se era Amelia. Não era. E voltando, retomado agora da
+sua preoccupação, vendo que o praticante fôra dentro ao laboratorio,
+disse ao ouvido do Ferrão:
+
+--Uma embaixada da fortuna! Vou vêr uma endemoninhada!
+
+--Ah, fez o abbade, todo sério á idéa d'aquella responsabilidade.
+
+--Quer vossê vir commigo, abbade? É aqui perto...
+
+O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar ao senhor vigario geral,
+fôra depois ao Silverio para lhe pedir aquelles dois volumes, vinha alli
+aviar uma receita para um velho da freguezia, e tinha d'estar de volta
+aos Poyaes ao toque das duas horas.
+
+O conego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...
+
+O abbade então confessou ao caro collega que eram coisas que não gostava
+d'examinar. Aproximava-se sempre d'ellas com um espirito rebelde á
+crença, com desconfianças e suspeitas que lhe diminuiam a
+imparcialidade.
+
+--Mas emfim ha prodigios! disse o conego.--Apesar das suas proprias
+duvidas, não gostava d'aquella hesitação do abbade, a proposito d'um
+phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias, estava interessado.
+Repetiu com seccura:--Tenho alguma experiencia, e sei que ha prodigios.
+
+--Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade. Negar que Deus ou a
+Rainha do céo possa apparecer a uma creatura é contra a doutrina da
+Igreja... Negar que o demonio possa habitar o corpo de um homem, seria
+estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e á
+familia de Sara. Está claro, ha prodigios. Mas que rarissimos que são,
+conego Dias!
+
+Calou-se um momento olhando o conego, que tapava o nariz com rapé em
+silencio--e continuou mais baixo, com o olho brilhante e fino:
+
+--E depois não tem o collega notado que é uma coisa que só succede ás
+mulheres? É só a ellas, cuja **malicia** é tão grande que o proprio
+Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso, tão
+contradictorio que os medicos não as comprehendem. É só a ellas que
+succedem prodigios!... O collega já ouviu de ter apparecido a nossa
+Santa Virgem a um respeitavel tabellião? Já ouviu d'um digno juiz de
+direito possuido do espirito maligno? Não. Isto faz reflectir... E eu
+concluo que é malicia n'ellas, illusão, imaginação, doença, etc... Não
+lhe parece? A minha regra n'esses casos é vêr tudo isso d'alto e com
+muita indifferença.
+
+Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guardasol,
+fazendo para o largo:
+
+--Pst, pst! Eh lá!
+
+Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada d'aquelle encontro que a
+ia ainda retardar mais. E já o senhor parocho devia estar desesperado...
+
+--De modo que, disse o conego á porta abrindo o seu guardasol, vossê,
+abbade, era lhe cheirando a prodigio...
+
+--Suspeito logo escandalo.
+
+O conego contemplou-o um momento, com respeito:
+
+--Vossê, Ferrão, é capaz de dar quinaus a Salomão em prudencia!
+
+--Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade, offendido com aquella
+injustiça feita á incomparavel sabedoria de Salomão.
+
+--Ao proprio Salomão! affirmou ainda o conego da rua.
+
+Tinha preparado uma historia habil para justificar a sua visita á
+paralytica; mas durante a sua conversação com o abbade ella
+escapára-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatorios da
+memoria; e foi sem transição que disse simplesmente a Amelia:
+
+--Vamos lá, tambem quero ir vêr essa Tótó!
+
+Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente, já lá
+estava! Mas sua madrinha Nossa Senhora das Dôres, que ella invocou logo
+n'aquella afflicção, não a deixou enleada no embaraço.--E o conego, que
+caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido ouvindo-lhe dizer com um
+risinho:
+
+--Viva, hoje é o dia das visitas á Tótó! O senhor parocho disse-me que
+tambem talvez hoje apparecesse por lá... Talvez lá esteja até.
+
+--Ah! O amigo parocho tambem? Está bom, está bom. Faremos uma consulta á
+Tótó!
+
+Amelia então, contente da sua malicia, tagarellou sobre a Tótó. O senhor
+conego ia vêr... Era uma creatura incomprehensivel... Ultimamente, ella
+não tinha querido contar em casa, mas a Tótó tomára-lhe birra... E dizia
+coisas, tinha um modo de fallar de cães e d'animaes, d'arripiar!... Ai,
+era um encargo que já lhe pesava... Que a rapariga não lhe escutava as
+lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma fera!
+
+--O cheiro é desagradavel! rosnou o conego entrando.
+
+Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tel-a arranjado. O pai,
+esse, um desleixado tambem...
+
+--É aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta da alcova--que agora, em
+obediencia ás ordens do senhor parocho, o tio Esguelhas deixava sempre
+fechada.
+
+Encontraram a Tótó meio erguida sobre a cama, com a face accêsa n'uma
+curiosidade, áquella voz do conego que não conhecia.
+
+--Ora viva lá a snr.^a Tótó! disse elle da porta, sem se aproximar.
+
+--Vá, comprimenta o senhor conego, disse Amelia, começando logo, com uma
+caridade desacostumada, a compôr a roupa da cama, a arrumar a alcova.
+Dize-lhe como estás... Não te faças amuada!
+
+Mas a Tótó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha á
+cabeceira, examinando muito aquelle sacerdote tão gordo, tão grisalho,
+tão differente do senhor parocho... E os seus olhos, mais brilhantes
+todos os dias á medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de
+costume, do homem para Amelia, n'uma anciedade de perceber porque o
+trazia ella alli, aquelle velho obeso, e se ia tambem subir com elle
+para o quarto.
+
+Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse, e alli, diante do
+cónego, a Tótó, tomada do seu phrenesi, rompesse aos gritos, tratando-os
+de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadella foi à cozinha vigiar o
+pateo. Faria um signal da janella, apenas Amaro apparecesse.
+
+E o conego, só na alcova da Tótó, preparando-se para começar as suas
+observações, ia perguntar-lhe quantas eram as pessoas da Santissima
+Trindade,--quando ella, adiantando a face, lhe disse n'uma voz subtil
+como um sôpro:
+
+--E o outro?
+
+O conego não comprehendeu. Que fallasse alto! Que era?
+
+--O outro, o que vem com ella!
+
+O conego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:
+
+--Que outro?
+
+--O bonito. O que vai com ella p'ró quarto. O que a belisca...
+
+Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo, repousada, com os
+olhos cerrados e respirando regaladamente, como n'um allivio repentino
+de todo o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado d'assombro,
+permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para ascultar a
+Tótó. Ergueu-se por fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu
+d'espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta entre os dedos, os
+olhos muito vermelhos cravados na colcha da Tótó.
+
+--Então, senhor conego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou
+Amelia.
+
+Elle respondeu, sem a olhar:
+
+--Sim senhor, muito bem... Vai bem... É exquisita... Pois é andar, é
+andar... Adeus...
+
+Sahiu, resmungando que tinha negocios,--e voltou immediatamente á
+botica.
+
+--Um copo d'agua! exclamou, cahindo em cheio sobre a cadeira.
+
+O Carlos, que voltára, apressou-se, offerecendo flôr de laranja,
+perguntando se sua excellencia estava incommodado...
+
+--Cansadote, disse.
+
+Tomou o _Popular_ de sobre a mesa, e alli ficou, sem se mexer, abysmado
+nas columnas do periodico. O Carlos tentou fallar da politica do paiz,
+depois dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios que
+ameaçavam a Sociedade, depois da deficiencia da administração do
+concelho de que era agora um adversario feroz... Debalde. Sua
+excellencia grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos, emfim,
+recolheu-se a um silencio chocado, comparando, n'um desdem interior que
+lhe vincava de sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna
+d'aquelle sacerdote à palavra inspirada d'um Lacordaire e d'um Malhão!
+Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal erguia a sua
+cabeça d'hydra...
+
+Batia uma hora na torre quando o conego, que vigiava a Praça pelo canto
+do olho, vendo passar Amelia, arremessou o jornal, sahiu da botica sem
+dizer uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para casa do tio
+Esguelhas. A Tótó estremeceu de medo ao vêr de novo aquella figura
+bojuda apparecer á porta da alcova. Mas o conego riu-se para ella,
+chamou-lhe Tótósinha, prometteu-lhe um pinto para bolos; e mesmo
+sentou-se aos pés da cama com um _ah!_ regalado, dizendo:
+
+--Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita
+doente, hein? Coitadita! Deixa que te has de curar... Hei de pedir a
+Deus... Fica por minha conta.
+
+Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além,
+inquieta, na perturbação que lhe dava aquelle homem a sós com ella tão
+perto que lhe sentia o halito forte.
+
+--Então, ouve cá, disse elle chegando-se mais para ella, fazendo ranger
+o catre com o seu peso. Ouve cá, quem é o outro? Quem é que vem com a
+Amelia?
+
+Ella respondeu logo, atirando as palavras d'um fôlego:
+
+--É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem p'r'ó quarto, fecham-se por
+dentro, são como cães!
+
+Os olhos do conego injectaram-se para fóra das orbitas:
+
+--Mas quem é elle, como se chama? O teu pai que te disse?
+
+--É o outro, é o parocho, o Amaro! fez ella impaciente.
+
+--E vão p'r'ó quarto, hein? lá p'ra cima? E tu que ouves, tu que ouves?
+Dize tudo, pequena, dize tudo!
+
+A paralytica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua
+voz de tisica,--como ambos entravam, e a vinham vêr, e se roçavam um
+pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam lá uma hora
+fechados...
+
+Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que lhe punha uma chamma nos
+olhos mortiços, queria saber os detalhes torpes:
+
+--E ouve lá, Tótósinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?
+
+Ella respondeu com a cabeça affirmativamente, toda pallida, os dentes
+cerrados.
+
+--E olha, Tótósinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, dize,
+que te dou dois pintos.
+
+Ella não descerrava os labios; e a sua face transtornada parecia ao
+conego selvagem.
+
+--Tu embirras com ella, não é verdade?
+
+Ella fez que sim n'uma affirmação feroz de cabeça.
+
+--E vistel-os beliscarem-se?
+
+--São como cães! soltou ella por entre os dentes.
+
+O conego então endireitou-se, bufou outra vez com o seu grande sôpro
+d'encalmado, e coçou vivamente a corôa.
+
+--Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. Não te
+constipes...
+
+Sahiu; e ao fechar com força a porta exclamou alto:
+
+--Isto é a infamia das infamias! Eu mato-o! eu perco-me!
+
+Esteve um momento considerando e partiu para a rua das Sousas, de
+guardasol em riste, apressando a sua obesidade, com a face apopletica de
+furor. No largo da Sé, porém, parou a reflectir ainda; e rodando sobre
+os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um habito de
+quarenta annos, não dobrou o joelho ao Santissimo. E arremessou-se para
+a sacristia--justamente quando o padre Amaro sahia, calçando
+cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para agradar á
+Ameliasinha.
+
+O aspecto descomposto do conego assombrou-o.
+
+--Que é isso, padre-mestre?
+
+--O que é? exclamou o conego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a
+sua infamia! é a sua infamia!...
+
+E emmudeceu, suffocado de cólera.
+
+Amaro, que se fizera muito pallido, balbuciou:
+
+--Que está vossê a dizer, padre-mestre?
+
+O conego tomára fôlego:
+
+--Não ha padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é
+uma canalhice mestra!
+
+O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente d'um gracejo:
+
+--Que rapariga!? O senhor está a brincar...
+
+Sorriu mesmo, affectando segurança; e os seus beiços brancos tremiam.
+
+--Homem, eu vi! berrou o conego.
+
+O parocho, subitamente aterrado, recuou:
+
+--Viu!?
+
+Imaginára n'um relance uma traição, o conego escondido n'um recanto da
+casa do tio Esguelhas...
+
+--Não vi, mas é como se visse!--continuou o conego n'um tom tremendo.
+Sei tudo. Venho de lá. Disse-m'o a Tótó. Fecham-se no quarto horas e
+horas! Até se ouve em baixo ranger a cama! É uma ignominia !
+
+O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a
+um canto, uma resistencia de desespero.
+
+--Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?
+
+O conego pulou.
+
+--O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor ainda me falla n'esse tom!?
+O que tenho é que vou d'aqui immediatamente dar parte de tudo ao senhor
+vigario geral!
+
+O padre Amaro, livido, foi para elle com o punho fechado:
+
+--Ah, seu maroto!
+
+--Que é lá? que é lá? exclamou o conego de guardasol erguido. Vossê
+quer-me pôr as mãos?
+
+O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os
+olhos cerrados; e depois de um momento, fallando com uma serenidade
+forçada:
+
+--Ouça lá, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na
+cama com a S. Joanneira...
+
+--Mente! mugiu o conego.
+
+--Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa...
+O senhor estava em mangas de camisa, ella tinha-se erguido, estava a
+apertar o collete. Até o senhor me perguntou «_quem está ahi?_» Vi, como
+estou a vêl-o agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que
+o senhor vive ha dez annos amigado com a S. Joanneira, á face de todo o
+clero! Ora ahi tem!
+
+O conego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora,
+áquellas palavras, como um boi atordoado. Só pôde dizer d'ahi a pouco,
+muito murcho:
+
+--Que traste que vossê me sae!
+
+O padre Amaro então, quasi tranquillo, certo do silencio do conego,
+disse com bonhomia:
+
+--Traste porquê? Diga-me lá! Traste porquê? Temos ambos culpas no
+cartorio, eis ahi está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a
+Tótó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com
+coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escóla e para o
+sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquillo, os outros fazem o
+que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se á velha, eu que sou
+novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que
+manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que
+temos é fazer costas!
+
+O conego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda d'aquellas
+verdades. Tinha-se deixado cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta
+cólera inutil; e erguendo os olhos para Amaro:
+
+--Mas vossê, homem, no começo da carreira!
+
+--E vossê, padre-mestre, no fim da carreira!
+
+Então riram ambos. Immediatamente cada um declarou retirar as palavras
+offensivas que tinha dito; e apertaram-se gravemente a mão. Depois
+conversaram.
+
+O conego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena de casa. Se
+fosse com outra... até estimava! Mas a Ameliasinha!... Se a pobre mãi
+viesse a saber estourava de desgosto.
+
+--Mas a mãi escusa de saber! exclamou Amaro. Isto é entre nós,
+padre-mestre! Isto é segredo de morte! Nem a mãi sabe de nada, nem eu
+mesmo digo á pequena o que se passou hoje entre nós. As coisas ficam
+como estavam, e o mundo continua a rolar... Mas vossê, padre-mestre,
+tenha cuidado!... Nem uma palavra á S. Joanneira... Que não haja agora
+traição!
+
+O conego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra d'honra
+de cavalheiro e de sacerdote que aquelle segredo ficava para sempre
+sepultado no seu coração.
+
+Então apertaram ainda uma outra vez affectuosamente a mão.
+
+Mas a torre gemeu as tres badaladas. Era a hora de jantar do conego.
+
+E ao sahir, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho
+d'entendedor:
+
+--Pois seu velhaco, tem dedo!
+
+--Que quer vossê? Que diabo... Começa-se por brincadeira...
+
+--Homem! disse o conego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor
+d'este mundo.
+
+--É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor
+d'este mundo.
+
+
+Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade d'alma. Até ahi
+incommodava-o, por vezes, a idéa de que correspondera ingratamente á
+confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado na rua da
+Misericordia. Mas a tacita approvação do conego viera tirar-lhe, como
+elle dizia, aquelle espinho da consciencia. Porque emfim, o chefe de
+familia, o cavalheiro respeitavel, o cabeça--era o conego. A S.
+Joanneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo, às vezes agora, em
+tom de galhofa, tratava o Dias de _seu caro sogro_.
+
+Outra circumstancia viera alegral-o: a Tótó adoecera de repente: o dia
+seguinte ao da visita do conego, passára-o soltando golfadas de sangue:
+o doutor Cardoso, chamado á pressa, fallára de tisica galopante, questão
+de semanas, caso decidido...
+
+--É d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que é trás... trás...--Era a
+sua maneira de pintar a morte, que, quando tem pressa, conclue o seu
+trabalho com uma fouçada aqui, outra além.
+
+As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora tranquillas. Amelia e o
+parocho já não entravam em pontas de pés, tentando esgueirar-se para o
+prazer, despercebidos da Tótó. Batiam com as portas, palravam forte,
+certos que a Tótó estava bem prostrada de febre, sob os lençoes humidos
+dos suores constantes. Mas Amelia, por escrupulo, não deixava de rezar
+todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras da Tótó. Ás vezes mesmo
+ao despir-se, no quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um
+rostinho triste:
+
+--Ai, filho! até me parece peccado, nós aqui a gozarmos, e a pobre
+pequena lá em baixo a luctar com a morte...
+
+Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles de fazer, se era a
+vontade de Deus?...
+
+E Amelia, resignando-se á vontade de Deus em tudo, ia deixando cahir as
+sáias.
+
+Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que impacientavam o padre
+Amaro. Em certos dias apparecia muito murcha; trazia sempre algum sonho
+lugubre a contar, que a torturára toda a noite, e em que ella pretendia
+descobrir avisos de desgraças...
+
+Perguntava-lhe ás vezes:
+
+--Se eu morresse, tinhas muita pena?
+
+Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham apenas uma hora para
+se verem, e haviam d'estar a estragal-a com lamurias?
+
+--É que não imaginas, dizia ella, trago o coração negro como a noite.
+
+Com effeito as amigas da mãi estranhavam-na. Ás vezes durante serões
+inteiros não descerrava os labios, pendida sobre a sua costura, picando
+mollemente a agulha; ou então, muito cansada mesmo para trabalhar,
+ficava junto da mesa fazendo girar devagar o _abat-jour_ verde do
+candieiro, com o olhar vazio e a alma muito longe.
+
+--Ó rapariga, deixa esse _abat-jour_ em paz! diziam-lhe as senhoras
+nervosas.
+
+Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a
+sáia branca que havia semanas andava abainhando. A mãi, vendo-a sempre
+tão pallida, pensára em chamar o doutor Gouveia.
+
+--Não é nada, minha mãi, é nervoso, passa...
+
+O que provava a todos que era nervoso eram os sustos subitos que a
+tomavam--a ponto de dar um grilo, quasi desmaiar, se de repente uma
+porta batia. Certas noites mesmo, exigia que a mãi viesse dormir ao pé
+d'ella, com medo de pesadêlos e de visões.
+
+--É o que diz sempre o senhor doutor Gouveia, observava a mãi ao conego,
+é uma rapariga que necessita casar...
+
+O conego pigarreava grosso.
+
+--Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais,
+ao que parece...
+
+Era com effeito a idéa do conego, que a rapariga (como elle dizia só
+comsigo) «andava-se a arrasar de felicidade». Nos dias em que sabia que
+ella fôra vêr a Tótó, não se fartava de a estudar, cocando-a do fundo da
+poltrona com um olho pesado e lubrico. Prodigalisava-lhe agora as
+familiaridades paternaes. Nunca a encontrava na escada sem a deter, com
+coceguinhas aqui e alli, palmadinhas na face muito prolongadas. Queria-a
+em casa repetidas vezes pela manhã; e emquanto Amelia palrava com D.
+Josepha, o conego não cessava de rondar em torno d'ella, arrastando as
+chinelas com um ar de velho gallo. E eram entre Amelia e a mãi conversas
+sem fim sobre esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria um
+bom dote.
+
+--Seu maganão, tem dedo!--dizia sempre o conego quando estava só com
+Amaro, arregalando os olhos redondos. Aquillo é um bocado de rei!
+
+Amaro entufava-se:
+
+--Não é mau bocado, padre-mestre, é um bom bocado.
+
+Era este um dos **grandes** gozos d'Amaro--ouvir gabar aos collegas a
+belleza d'Amelia, que era chamada entre o clero «a flôr das devotas».
+Todos lhe invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito com ella
+em que se ajanotasse nos domingos, á missa; zangára-se mesmo ultimamente
+de a vêr quasi sempre entrouxada n'um vestido de merino escuro, que lhe
+dava um ar de velha penitente.
+
+Mas Amelia, agora, já não tinha aquella necessidade amorosa de contentar
+em tudo o senhor parocho. Acordára quasi inteiramente d'aquelle
+adormecimento estupido d'alma e do corpo, em que a lançára o primeiro
+abraço de Amaro. Vinha-lhe apparecendo distinctamente a consciencia
+pungente da sua culpa. N'aquelles negrumes d'um espirito beato e
+escravo, fazia-se um amanhecimento de razão.--O que era ella no fim? A
+concubina do senhor parocho. E esta idéa, posta assim descarnadamente,
+parecia-lhe terrivel. Não que lamentasse a sua virgindade, a sua honra,
+o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda por elle, pelos delirios
+que elle lhe dava. Mas havia alguma coisa peor a temer que as
+reprovações do mundo: eram as vinganças de Nosso Senhor. Era da perda
+possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou de mais medonho ainda,
+d'algum castigo de Deus, não das punições transcendentes que acabrunham
+a alma além da tumba, mas dos tormentos que vêm durante a vida, que a
+feririam na sua saude, no seu bem-estar e no seu corpo. Eram vagos medos
+de doenças, de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de fome--de
+todas essas penalidades de que ella suppunha prodigo o Deus do seu
+catecismo. Como em pequena, nos dias em que se esquecia de pagar á
+Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia que ella a fizesse
+cahir na escada ou levar palmatoadas na mestra, arrefecia de medo agora,
+á idéa de que Deus, em castigo d'ella se deitar na cama com um padre,
+lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a reduzisse a pedir esmola
+pelas viellas. Estas idéas não a deixavam, desde o dia em que na
+sacristia peccára de concupiscencia dentro do manto de Nossa Senhora.
+Tinha a certeza que a Santa Virgem a odiava, e que não cessava de
+reclamar contra ella; debalde procurava abrandal-a, com um fluxo
+incessante de orações humilhadas; sentia bem Nossa Senhora, inaccessivel
+e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe
+sorrira; nunca mais aquellas mãos se tinham aberto para receber com
+agrado as suas orações, como ramos congratulatorios. Era um silencio
+sêcco, uma hostilidade gelada de divindade offendida. Ella conhecia o
+credito que Nossa Senhora tem nos concilios do céo; desde pequena lh'o
+tinham ensinado; tudo o que ella deseja o obtem, como uma recompensa
+devida aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe á sua direita,
+o Deus-Padre falla-lhe á esquerda... E comprehendia bem que para ella
+não havia esperança--e que alguma coisa medonha se preparava lá era
+cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia sobre o corpo e sobre a alma,
+esmagando-a com um desabamento de catastrophe. Que seria?
+
+Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quasi
+tanto a sua cólera como a de Deus. Que seria d'ella, se tivesse contra
+si Nossa Senhora e o senhor parocho? Além d'isso, amava-o. Nos seus
+braços, todo o terror do céo, a mesma idéa do céo desapparecia;
+refugiada alli, contra o seu peito, não tinha medo das iras divinas: o
+desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe uma
+coragem colerica; era com um brutal desafio ao céo que se enroscava
+furiosamente ao seu corpo.--Os terrores vinham depois, só no seu quarto.
+Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas d'envelhecimento ao
+canto dos labios seccos e ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga
+que irritava o padre Amaro.
+
+--Mas que tens tu, que parece te espremeram o succo? perguntava-lhe elle
+quando aos primeiros beijos a sentia toda fria, toda inerte.
+
+--Passei mal a noite... Nervoso.
+
+--Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.
+
+Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora
+todos os dias. Se tinha dito a missa com fervor? Se tinha lido o
+Breviario? Se tinha feito a oração mental?...
+
+--Sabes tu que mais? disse elle furioso. Sêbo! E esta! Tu pensas que eu
+sou ainda seminarista, e que tu és o padre examinador, que verifica se
+cumpri a Regra? Ora a tolice!
+
+--É que é necessario estar bem com Deus, murmurava ella.
+
+Era com effeito a sua preoccupação, agora, que Amaro _fosse um bom
+padre_. Contava, para se salvar e para se livrar da cólera de Nossa
+Senhora, com a influencia do parocho na côrte de Deus: e temia que elle
+por negligencia de devoção a perdesse, e que, diminuindo o seu fervor,
+diminuissem os seus meritos aos olhos do Senhor. Queria-o conservar
+santo e favorito do céo, para colher os proveitos da sua protecção
+mystica.
+
+Amaro chamava a isto «caturrices de freira velha». Detestava-as, por as
+achar frivolas--e porque tomavam um tempo precioso, n'aquellas manhãs da
+casa do sineiro...
+
+--Nós não viemos aqui para lamurias, dizia elle, muito sêccamente. Fecha
+a porta, se queres.
+
+Ella obedecia,--e então aos primeiros beijos na penumbra da janella
+cerrada, elle reconhecia emfim a sua Amelia, a Amelia dos primeiros
+dias, o delicioso corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos de
+paixão.
+
+E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo e tyrannico, que
+aquellas horas escassas não satisfaziam. Ah! positivamente, como mulher
+não havia outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa,
+mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices, sim, mas era não as tomar a
+sério, e gozar emquanto era novo!
+
+E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e doçuras--como
+uma d'estas salas onde tudo é acolchoado, não ha moveis duros nem
+angulos, e o corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade molle
+d'uma almofada.
+
+Decerto, o melhor eram as suas manhãs em casa do tio Esguelhas. Mas
+tinha outros regalos. Comia bem: fumava caro n'uma boquilha d'espuma:
+toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprára alguma mobilia: e
+não tinha, como outr'ora, embaraços de dinheiro, porque a snr.^a D.
+Maria da Assumpção, a sua melhor confessada, lá estava com a bolsa
+prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma pechincha: uma noite em casa
+da S. Joanneira, a excellente senhora, a proposito d'uma familia
+d'inglezes que vira passar n'um _char-á-banc_ para ir visitar a Batalha,
+exprimira a opinião que os inglezes eram herejes.
+
+--São baptisados como nós, observára D. Joaquina Gansoso.
+
+--Pois sim, filha, mas é um baptismo para rir. Não é o nosso rico
+baptismo, não lhes vale.
+
+O conego então, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a
+snr.^a D. Maria dissera uma blasphemia. O santo concilio de Trento, no
+seu canon IV, sessão VII, lá determinára «que aquelle que disser que o
+baptismo dado aos herejes, em nome do Padre, do Filho e do Espirito, não
+é o verdadeiro baptismo, seja excommungado!» E a D. Maria, segundo o
+santo concilio, estava desde esse momento excommungada!...
+
+A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lançar-se aos pés
+d'Amaro, que em penitencia da sua injuria feita ao canon IV, sessão VII
+do santo concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de intenção
+pelas almas do purgatorio--que D. Maria lhe estava pagando a cinco
+tostões cada uma.
+
+Assim, elle podia ás vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de
+satisfação mysteriosa e um embrulhosinho na mão. Era algum presente para
+Amelia, um lenço de sêda, uma gravatinha de côres, um par de luvas. Ella
+extasiava-se com aquellas provas da affeição do senhor parocho; e era
+então no quarto escuro um delirio d'amor, emquanto em baixo a tisica,
+sobre a Tótó, ia fazendo «trás... trás...»
+
+
+
+
+XX
+
+
+--O senhor conego? Quero-lhe fallar. Depressa!
+
+A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio, e correu acima
+contar a D. Josepha que o senhor parocho viera procurar o senhor conego,
+e com uma cara tão transtornada que decerto tinha succedido alguma
+desgraça!
+
+Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio, fechou-a de repellão,
+e sem mesmo dar os bons dias ao collega, exclamou:
+
+--A rapariga está gravida!
+
+O conego, que estava escrevendo, cahiu como uma massa fulminada para as
+costas da cadeira:
+
+--Que me diz vossê!?
+
+--Gravida!
+
+E no silencio que se fez o soalho gemia sob os passeios furiosos do
+parocho da janella para a estante.
+
+--Está vossê certo d'isso? perguntou emfim o conego com pavor.
+
+--Certissimo! A mulher já ha dias andava desconfiada. Já não fazia senão
+chorar... Mas agora é certo... As mulheres conhecem, não se enganam. Ha
+todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?
+
+--Olha que espiga! ponderou o conego atordoado.
+
+--Imagine vossê o escandalo! A mãi, a visinhança... E se suspeitam de
+mim?... Estou perdido... Eu não quero saber, eu fujo!
+
+O conego coçava estupidamente o cachaço, com o beiço cahido como uma
+tromba. Representavam-se-lhe já os gritos em casa, a noite do parto, a
+S. Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade extincta
+para sempre...
+
+--Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado. Que pensa vossê?
+Veja se tem alguma idéa... Eu não sei, eu estou idiota, estou de todo!
+
+--Ahi estão as consequencias, meu caro collega.
+
+--Vá p'r'ó inferno, homem! Não se trata de moral... Está claro que foi
+uma asneira... Adeus, está feita!
+
+--Mas então que quer vossê? disse o conego. Não quer decerto que se dê
+uma droga á rapariga, que a arrase...
+
+Amaro encolheu os hombros, impaciente com aquella idéa insensata. O
+padre-mestre, positivamente, estava divagando...
+
+--Mas então que quer vossê? repetia o conego n'um tom cavo, arrancando
+as palavras do abysmo do thorax.
+
+--Que quero!? quero que não haja escandalo! Que hei de eu querer?
+
+--De quantos mezes está ella?
+
+--De quantos mezes? Está d'agora, está d'um mez...
+
+--Então é casal-a! exclamou o conego com explosão. Então é casal-a com o
+escrevente!
+
+O padre Amaro deu um pulo:
+
+--C'os diabos, tem vossê razão! É de mestre!
+
+O conego affirmou gravemente com a cabeça que era «de mestre».
+
+--Casal-a já! Emquanto é tempo! _Pater est quem nuptiæ demonstrant_...
+Quem é marido é que é pai.
+
+Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos azues, a touca negra de D.
+Josepha. Não se pudera conter em cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi
+agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas e collára o ouvido á
+fechadura do escriptorio; mas o grosso reposteiro de baetão estava
+cerrado por dentro, um ruido de lenha que se descarregava na rua abafava
+as vozes. A boa senhora então decidiu-se a entrar, «a dar os bons dias
+ao senhor parocho».
+
+Mas debalde, por detraz dos vidros defumados, os seus olhinhos agudos
+esquadrinharam anciosamente o carão espesso do mano e a face pallida
+d'Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como duas janellas
+fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente do rheumatico do senhor
+chantre, da notícia que corria sobre o casamento do senhor secretario
+geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou que tinha n'esse dia uma
+famosa orelheira para o jantar--e a snr.^a D. Josepha, roendo-se, viu-o
+abalar depois de ter dito já por detraz do reposteiro ao conego:
+
+--Então até á noite em casa da S. Joanneira, padre-mestre, hein?
+
+--Até á noite.
+
+E o conego, muito grave, continuou a escrever. D. Josepha então não se
+conteve; e depois de arrastar um momento as chinelas em torno da banca
+do mano:
+
+--Ha novidade?
+
+--Grande novidade, mana! disse-lhe o conego, sacudindo os bicos da
+penna. Morreu o senhor D. João VI!
+
+--Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapatões, cruelmente perseguida
+por uma risadinha do mano.
+
+Foi á noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira, emquanto Amelia em
+cima, com a morte n'alma, martellava a _Valsa dos dois mundos_, que os
+dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro nos dentes, por
+debaixo do tenebroso painel onde a vaga mão do cenobita se estendia em
+garra sobre a caveira, cochicharam o seu plano:--antes de tudo era
+**necessario** achar João Eduardo, que desapparecera de Leiria; a
+Dionysia, mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para
+descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois, immediatamente,
+porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia... Só quatro palavras
+simples: que soubera que elle fôra victima d'uma intriga; que nunca
+perdera nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma reparação; e
+que **viesse** vêl-a... Se o rapaz hesitasse agora, o que não era
+provavel (o conego affirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperança do
+emprego no governo civil, facil d'obter pelo Godinho, inteiramente
+governado pela mulher, que era uma escravasinha do padre Silverio...
+
+--Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta o escrevente, que
+dirá elle a esta revolução?
+
+--Homem, exclamou o conego com uma grande palmada na côxa, que me tinha
+esquecido! Pois vossê não sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...
+
+Amaro não sabia.
+
+--Quebrou uma perna! Cahiu da egoa!
+
+--Quando?
+
+--Esta manhã. Eu soube-o agora à noitinha. Eu sempre lh'o disse: homem,
+esse animal ferra-lhe alguma! Pois senhores, ferrou-lh'a. E têsa! Tem
+p'ra pêras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras lá em cima
+sabem nada.
+
+Foi uma desolação, em cima, quando souberam. Amelia fechou o piano.
+Todos lembraram logo remedios que se lhe devia mandar, foi uma gralhada
+de offerecimentos--ligaduras, fios, um unguento das freiras d'Alcobaça,
+meia garrafinha d'um licôr dos monges do deserto d'ao pé de Cordova...
+Era necessario tambem assegurar a intervenção do céo: e cada uma se
+promptificou a usar do seu valimento com os santos da sua intimidade: D.
+Maria da Assumpção, que ultimamente praticava com Santo Eleuterio,
+offereceu a sua influencia; D. Josepha Dias encarregava-se d'interessar
+Nossa Senhora da Visitação; D. Joaquina Gansoso afiançou S. Joaquim...
+
+--E lá a menina? perguntou o conego a Amelia.
+
+--Eu?...
+
+E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua alma, pensando que ella,
+com os seus peccados e os seus delírios, perdera a util amizade de Nossa
+Senhora das Dôres.--E não poder ella tambem concorrer com a sua
+influencia no céo para restabelecer a perna de Natario, foi uma das
+amarguras maiores, talvez a punição mais viva que sentira desde que
+amava o padre Amaro.
+
+
+Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro participou a Amelia o
+plano do padre-mestre. Preparou-a, revelando-lhe primeiro que o conego
+sabia tudo...
+
+--Sabe tudo em segredo de confissão, acrescentou para a socegar. Além
+d'isso elle e tua mãi têm culpas em cartorio... Tudo fica em familia...
+
+Depois tomou-lhe a mão, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se já
+das lagrimas afflictas que ella ia chorar:
+
+--E agora escuta, filha. Não te afflijas com o que te vou dizer, mas é
+necessario, é a nossa salvação...
+
+Ás primeiras palavras, porém, do casamento com o escrevente, Amelia
+indignou-se com espalhafato.
+
+--Nunca, antes morrer!
+
+O quê? Elle punha-a n'aquelle estado e agora queria descartar-se d'ella
+e passal-a a outro? Era ella porventura um trapo que se usa e que se
+atira a um pobre? Depois de ter posto fóra de casa o homem, havia de
+humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe nos braços?... Ah, não! Tambem ella
+tinha o seu brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era no
+Brazil!
+
+Enterneceu-se então. Ah, elle já não a amava, estava farto d'ella! Ah,
+que desgraçada, que desgraçada que era!--Atirou-se de bruços para a cama
+e rompeu n'um chôro estridente.
+
+--Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado,
+sacudindo-a pelo braço.
+
+--Não me importa! Que ouçam! P'r'á rua vou eu gritar que estou n'este
+estado, que foi o senhor padre Amaro, e que me quer agora deixar!...
+
+Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo furioso de lhe bater. Mas
+conteve-se; e com uma voz que tremia sob a sua serenidade:
+
+--Tu estás fóra de ti, filha... Dize lá, posso eu casar comtigo? Não!
+Bem, então que queres? Se se percebe que estás assim, se tens o filho em
+casa, vê o escandalo!... Por ti, estás perdida, perdida p'ra sempre! E
+eu, se se souber, que me succede? Perdido tambem, suspenso, mettido em
+processo talvez... De que queres tu que eu viva? Queres que morra de
+fome?
+
+Enterneceu-se tambem áquella idéa das privações e das miserias do padre
+interdicto.--Ah, era ella, era ella que o não amava, e que depois d'elle
+ter sido tão carinhoso e tão delicado, lhe queria pagar com o escandalo
+e com a desgraça...
+
+--Não, não! exclamou Amelia em soluços, lançando-se-lhe ao pescoço.
+
+E ficaram abraçados, tremendo no mesmo **enternecimento**,--ella
+molhando de pranto o hombro do parocho, elle mordendo o beiço com os
+olhos todos turvos d'agua.
+
+Desprendeu-se brandamente, emfim, e limpando as lagrimas:
+
+--Não, filha, é uma desgraça que nos succede, mas tem de ser. Se tu
+soffres, imagina eu! Vêr-te casada, a viver com outro... Nem fallemos
+n'isso... Mas então, é a fatalidade, é Deus que a manda!
+
+Ella ficára aniquilada, á beira do leito, tomada ainda de grandes
+soluços. Tinha chegado emfim o castigo, a vingança de Nossa Senhora, que
+ella sentia preparar-se ha tempos no fundo dos céos, como uma tormenta
+complicada. Ahi estava, agora, peor que os fogos do Purgatorio! Tinha de
+se separar de Amaro que imaginava amar mais, e ir viver com o outro, com
+o excommungado! Como poderia ella nunca reentrar na graça de Deus,
+depois de ter dormido e vivido com um homem que os canones, o Papa, toda
+a terra, todo céo consideravam maldito?... E devia ser esse seu marido,
+talvez o pai d'outros filhos... Ah, Nossa Senhora vingava-se de mais!
+
+--E como posso eu casar com elle, Amaro, se o homem está excommungado?!
+
+Amaro então apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando os argumentos.
+Era necessario não exagerar... O rapaz, verdadeiramente, excommungado
+não estava... Natario e o conego tinham interpretado mal os canones e as
+bullas... Bater n'um sacerdote que não estava revestido não era motivo
+d'excommunhão _ipso facto_, segundo certos auctores... Elle, Amaro, era
+d'essa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe a excommunhão.
+
+--Tu comprehendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como
+sabes, _nós atamos e desatamos_. O moço foi excommungado?... Bem,
+levantamos-lhe a excommunhão... Fica tão limpo como d'antes. Não, isso
+não te dê cuidado.
+
+--Mas de que havemos de viver, se elle perdeu o emprego?
+
+--Tu não me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lh'o o
+padre-mestre. Está tudo combinadinho, filha!
+
+Ella não respondeu, muito quebrada e muito triste, com duas lagrimas
+persistentes ao comprido das faces.
+
+--Dize cá, tua mãi não desconfia de nada?
+
+--Não, por ora não se percebe, respondeu ella com um grande ai.
+
+Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando para sahir; elle
+de cabeça baixa, trilhando lugubremente o soalho do quarto, pensando nas
+boas manhãs d'outr'ora, quando só havia alli beijos e risadinhas
+abafadas; tudo mudára agora, até o tempo que estava todo nublado, um dia
+de fim de verão, ameaçando chuva.
+
+--Percebe-se que estive a chorar? perguntou ella, compondo ao espelho o
+cabello.
+
+--Não. Vaes-te?
+
+--A mamã está á minha espera...
+
+Deram um beijo triste, e ella sahiu.
+
+
+No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na pista de João Eduardo. A
+sua actividade desenvolvera-se, sobretudo, mal soubera que o conego
+Dias, o ricaço, estava interessado na «pesquiza». E todos os dias, á
+noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo portão d'Amaro a dar-lhe as
+novidades: já sabia que o escrevente estivera ao principio em Alcobaça
+com um primo boticario; depois fôra para Lisboa; ahi, com uma carta de
+recommendação do doutor Gouvêa, empregára-se no cartorio d'um
+procurador; mas o procurador, passados dias, por uma fatalidade, morrera
+de apoplexia; e desde então o rasto de João Eduardo perdia-se no vago,
+no cahos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada
+e os passos: era o typographo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo,
+depois d'uma questão com o Agostinho, deixára o _Districto_ e
+desapparecera. Ninguem sabia para onde fôra; por desgraça, a mãi do
+typographo não a podia informar--porque morrera tambem.
+
+--Oh, senhores! dizia o conego quando o padre Amaro lhe ia levar estes
+fios d'informação. Oh, senhores! mas então n'essa historia toda a gente
+morre! Isso é uma hecatombe!
+
+--Vossê graceja, padre-mestre, mas é sério. Olhe que um homem em Lisboa
+é agulha em palheiro. É uma fatalidade!
+
+Então, afflicto já, vendo passar os dias, escreveu á tia, pedindo-lhe
+que esquadrinhasse por toda a Lisboa, a vêr se por lá apparecera «um tal
+João Eduardo Barbosa...» Recebeu uma carta da tia em garatujas de tres
+paginas, queixando-se do Joãosinho, do seu Joãosinho, que lhe fizera a
+vida um inferno, embebedando-se com genebra a ponto que não lhe paravam
+hospedes em casa. Mas estava agora mais tranquilla: o pobre Joãosinho
+havia dias jurára-lhe pela alma da mamã que d'ahi por diante não beberia
+senão gazosa. Emquanto ao tal João Eduardo perguntára na visinhança e ao
+snr. Palma do ministerio das obras publicas, que conhecia toda a gente,
+mas nada averiguára. Havia, sim, um Joaquim Eduardo que tinha uma loja
+de quinquilherias no bairro... E se fosse o negocio com elle bem ia, que
+era um homem de bem...
+
+--Lérias! lérias! interrompeu o conego impaciente.
+
+Resolveu-se elle então a escrever. E instado pelo padre Amaro (que não
+cessava de lhe representar o que a S. Joanneira e elle mesmo, conego
+Dias, soffreria com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu amigo da
+capital as despezas necessarias para empregar a policia. A resposta
+demorou-se, mas veio emfim, promettedora e magnifica! O habil policia
+Mendes descobrira João Eduardo! Somente não lhe sabia ainda a morada,
+avistára-o apenas n'um café; mas em dois ou tres dias o amigo Mendes
+promettia informações precisas.
+
+O desespero dos dois sacerdotes, porém, foi grande quando, d'ahi a dias,
+o amigo do conego escreveu que o indivíduo, que o habil policia Mendes
+tomára por João Eduardo, n'um café da Baixa, sobre signaes incompletos,
+era um moço de Santo Thyrso que estava na capital a fazer concurso para
+delegado... E havia tres libras e dezesete tostões de despeza.
+
+--Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando para Amaro furioso. E no
+fim de contas foi o senhor que gozou, que se refocillou, e sou eu que
+estou aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e a fazer
+desembolsos d'esta ordem!
+
+Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os hombros á injuria.
+
+Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A Dionysia lá andava no
+faro!
+
+
+Amelia recebia estas noticias com desconsolação. Depois das primeiras
+lagrimas, a irremediavel necessidade impuzera-se-lhe, muito forte. Por
+fim que lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle seu
+desgraçado corpo de cinta fina e quadris estreitos, não poderia esconder
+o seu estado. E que faria então? Fugir de casa, ir como a filha do tio
+Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos
+inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que fôra a amiga do padre Abilio,
+levar pela cara os ratos mortos que lhe atiravam os soldados? Não.
+Então, tinha de casar...
+
+Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete mezes (era tão frequente!),
+legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu
+filho teria um papá, receberia uma educação, não seria um engeitado...
+
+Desde que o senhor parocho lhe affirmára, em juramento, que o escrevente
+_não estava realmente excommungado_, que com algumas orações se lhe
+levantaria a excommunhão, os seus escrupulos devotos esmoreciam como
+brazas que se apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ella só
+podia descobrir a incitação do ciume e do amor: fôra n'um despeito de
+namorado que escrevera o _Communicado_, fôra n'um furor de paixão
+trahida que espancára o senhor parocho... Ah! não lhe perdoava esta
+brutalidade! Mas que castigado fôra! Sem emprego, sem casa, sem mulher,
+tão perdido na miseria anonyma de Lisboa que nem a policia o achava! E
+tudo por ella. Pobre rapaz! No fim não era feio... Fallavam da sua
+impiedade; mas vira-o sempre muito attento á missa, rezava todas as
+noites uma oração especial a S. João que ella lhe dera impressa n'um
+cartão bordado...
+
+Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada...
+Porque não seria feliz, por fim? Elle não era rapaz de botequins, nem de
+vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impôr os seus gostos e as
+suas devoções. E seria agradavel sahir aos domingos de manhã para a
+missa, arranjada, de marido ao lado, comprimentada de todos, podendo, á
+face da cidade, passear o seu filho muito vistoso na sua touca de rendas
+e na sua grande capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos que
+désse ao pequerrucho e pelos confortos de que cercasse o homem, o céo e
+Nossa Senhora se não abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter
+outra vez no céo aquella amiga, a sua querida Nossa Senhora, amavel e
+confidente, sempre prompta a curar-lhe as dôres, a livral-a de
+infortunios, occupada a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!
+
+Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura; pensava assim, mesmo
+no caminho para casa do sineiro; e depois de ter estado um momento com a
+Tótó, muito quieta agora, extenuada da febre lenta, quando subia ao
+quarto, a primeira pergunta a Amaro era:
+
+--Então, ha alguma novidade?
+
+Elle franzia a testa, rosnava:
+
+--A Dionysia lá anda... Porquê, tens muita pressa?
+
+--Tenho muita pressa, tenho, respondia ella muito séria, que a vergonha
+é para mim.
+
+Elle calava-se; e havia tanto odio como amor nos beijos que lhe
+dava--áquella mulher que se resignava assim tão facilmente a ir dormir
+com outro!
+
+
+Tinha ciumes d'ella--que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira
+conformar-se áquelle casamento odioso! Agora, que ella já não chorava,
+começava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas; e secretamente
+desesperava-se d'ella não preferir a vergonha com elle á rehabilitação
+com o outro. Não lhe custaria tanto se ella continuasse a barafustar, a
+fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova séria de amor, em que
+a sua vaidade se banharia deliciosamente; mas aquella aceitação do
+escrevente agora, sem repugnancia e sem gestos d'horror, indignava-o
+como uma traição. Viera a suspeitar que a ella no fundo não lhe
+_desagradava a mudança_. João Eduardo por fim era um homem; tinha a
+força dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello bigode. Ella
+teria nos braços d'elle o mesmo delirio que tinha nos seus... Se o
+escrevente fosse um velho consumido de rheumatismo, ella não mostraria a
+mesma resignação. Então, por vingança do padre, para «lhe desmanchar o
+arranjo», desejava que João Eduardo não apparecesse: e muitas vezes,
+quando a Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe com um mau
+sorriso:
+
+--Não se canse. O homem não apparece. Deixe lá... Não vale a pena ganhar
+dôr de peito...
+
+Mas a Dionysia tinha o peito forte--e uma noite veio, triumphante,
+dizer-lhe que estava na pista do homem! Vira emfim o Gustavo, o
+typographo, entrar para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia
+ia-lhe fallar, e havia de se saber tudo...
+
+Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle casamento, por que anciára
+no primeiro momento de terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a
+catastrophe da sua vida.
+
+Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem que elle expulsára, que elle
+supprimira, alli lhe vinha, por uma d'estas peripecias malignas em que a
+Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idéa que
+elle ia tel-a nos braços, que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe
+dava a elle, que balbuciaria _oh, João!_--como agora murmurava _oh,
+Amaro!_--enfurecia-o. E não podia evitar o casamento; todos o queriam,
+ella, o conego, até a Dionysia com o seu zêlo venal!
+
+De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixões fortes
+d'um corpo são? Tinha de dizer adeus á rapariga,--vêl-a partir de braço
+dado com o _outro_, com o marido, irem ambos para casa brincar com o
+filho, um filho que era seu! E elle assistiria á destruição da sua
+alegria de braços cruzados, esforçando-se por sorrir, voltaria a viver
+só, eternamente só, e a relêr o Breviario!... Ah! se fosse no tempo em
+que se supprimia um homem com uma denuncia d'heresia!... Que o mundo
+recuasse duzentos annos, e o snr. João Eduardo havia de saber o que
+custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amelia...
+
+E esta idéa absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se
+tão fortemente da sua imaginação que toda a noite a sonhou--n'um sonho
+vivido, que muitas vezes depois contou rindo ás senhoras. Era uma rua
+estreita batida d'um sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma
+populaça apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados retorciam o
+bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas,
+accêsos n'um furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé
+movia-se devagar, n'um vasto ruido, sob o tremendo dobre a finados de
+todos os sinos visinhos. Adiante os flagellantes semi-nus, de capuz
+branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o _Miserere_, com as
+costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia João Eduardo, idiota de
+terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos côr
+de fogo, tendo ao peito um rotulo em que estava escripto--POR HEREJE;
+por traz um medonho servente do Santo Officio espicaçava furiosamente o
+jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos
+ouvidos os conselhos do arrependimento. E elle, Amaro, caminhava ao lado
+cantando o _Requiem_, de Breviario aberto n'uma mão, com a outra
+abençoando as velhas, as amigas da rua da Misericordia que se agachavam
+para lhe beijar a alva. Ás vezes voltava-se para gozar aquella pompa
+lugubre, e via então a longa fila da confraria dos Nobres: aqui era um
+personagem pansudo e apopletico, além uma face de mystico com um bigode
+feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava uma tocha accêsa, e na
+outra mão sustentava o chapéo cuja pluma negra varria o chão. Os
+capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota contorcia as
+faces esfomeadas do populacho; e o prestito ondeava nas tortuosidades da
+rua, entre o clamor do canto-chão, os gritos dos fanaticos, o dobrar
+aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um terror que enchia toda
+a cidade,--aproximando-se da platafórma de tijolo onde já fumegavam as
+pilhas de lenha.
+
+E o seu desengano foi grande, depois d'aquella gloria ecclesiastica do
+sonho, quando a criada o veio acordar cedo com agua quente para a barba.
+
+Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. João Eduardo, e
+escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se com Amelia ás onze horas; e foi a
+primeira coisa que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau modo:
+
+--O homem appareceu... Pelo menos appareceu o amigo intimo, o
+typographo, que sabe onde a bêsta pára...
+
+Amelia, que estava n'um dia de desalento e terror, exclamou:
+
+--Ainda bem, que se acaba este tormento!
+
+Amaro teve um risinho repassado de fel:
+
+--Então agrada-te, hein?
+
+--Se te parece, n'este susto em que ando...
+
+Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia. Susto! Não estava má
+hypocrisia! Susto de quê? Com uma mãi que era uma babosa, que lhe
+consentia tudo... O que era, era que queria casar... Queria outro! Não
+lhe agradava aquelle divertimento pela manhã, de fugida... Queria a
+coisa commodamente, em casa. Imaginava a menina que o illudia a elle, um
+homem de trinta annos e quatro annos de experiencia de confissão? Via
+bem através d'ella... Era como as outras, queria mudar d'homem.
+
+Ella não respondia, muito pallida. E Amaro, furioso com o seu silencio:
+
+--Calas-te, está claro... Que has de tu dizer? Se é a verdade pura!...
+Depois dos meus sacrificios... Depois do que tenho soffrido por ti...
+Apparece-te o outro, larga para o outro!
+
+Ella ergueu-se, e batendo o pé, desesperada:
+
+--Foste tu que quizeste, Amaro!
+
+--Pudera! Se imaginas que me havia de perder por tua causa! Está claro
+que quiz!...--E olhando-a d'alto, fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma
+muito recta:--Mas nem vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de ir
+para o homem!... És uma desavergonhada, é o que é...
+
+Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para
+sahir.
+
+Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo braço:
+
+--P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. És uma desavergonhada... Estou-te a
+dizer. Estás morta por dormir com o outro...
+
+--Pois acabou-se, estou! disse ella.
+
+Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.
+
+--Não me mates! gritou ella. É o teu filho!
+
+Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: áquella palavra, áquella
+idéa do seu filho, uma piedade, um amor desesperado revolveu todo o seu
+sêr: e arremessando-se sobre ella, n'um abraço que a esmagava, como
+querendo sepultal-a no peito, absorvel-a toda só para si, atirando-lhe
+beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos cabellos:
+
+--Perdôa, murmurava, perdôa, minha Ameliasinha! Perdôa, que estou doido!
+
+Ella soluçava, n'um pranto nervoso;--e toda a manhã foi no quarto do
+sineiro um delirio d'amor a que aquelle sentimento da maternidade,
+ligando-os como um sacramento, dava uma ternura maior, um renascimento
+incessante de desejo, que os lançava cada vez mais ávidos nos braços um
+do outro.
+
+Esqueceram as horas; e Amelia só se decidiu a saltar do leito quando
+ouviram em baixo na cozinha a muleta do tio Esguelhas.
+
+Emquanto ella se arranjava á pressa diante do bocado d'espelho que
+ornava a parede, Amaro diante d'ella contemplava-a com melancolia,
+vendo-a a passar o pente nos cabellos--nos cabellos que elle dentro em
+breve não tornaria a vêr pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe
+enternecido:
+
+--Estão a acabar os nossos bons dias, Amelia. És tu que queres... Has de
+te lembrar algumas vezes d'estas boas manhãs...
+
+--Não digas isso! fez ella com os olhos arrazados d'agua.
+
+E atirando-se-lhe de repente ao pescoço, com a antiga paixão dos tempos
+felizes, murmurou-lhe:
+
+--Hei de ser sempre a mesma para ti... Mesmo depois de casada.
+
+Amaro agarrou-lhe as mãos sôfregamente:
+
+--Juras?
+
+--Juro.
+
+--Pela hostia sagrada?
+
+--Juro pela hostia sagrada, juro por Nossa Senhora!
+
+--Sempre que tenhas occasião?
+
+--Sempre!
+
+--Oh, Ameliasinha! oh, filha! não te trocava por uma rainha!
+
+Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella ao leito, ouvia-a em
+baixo fallar tranquillamente com o tio Esguelhas; e dizia comsigo que
+era uma grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que havia de fazer
+andar n'uma roda viva o pateta do escrevente.
+
+
+Aquelle «pacto», como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre elles
+tão irrevogavel que já lhe discutiam tranquillamente os detalhes. O
+casamento com o escrevente consideravam-no como uma d'estas necessidades
+que a sociedade impõe e que suffoca as almas independentes, mas a que a
+natureza se subtrae pela menor fenda, como um gaz irreductivel. Diante
+de Nosso Senhor, o verdadeiro marido d'Amelia era o senhor parocho; era
+o marido da alma, para quem seriam guardados os melhores beijos, a
+obediencia intima, a vontade; o outro teria quando muito o _cadaver_...
+Já ás vezes mesmo tramavam o plano habil das correspondencias secretas,
+dos logares occultos de _rendez-vous_...
+
+Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da
+paixão. Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar
+«tudo branco como a neve», os seus transes tinham desapparecido, o mesmo
+terror da vingança do céo calmára-se. Depois, a bofetada que lhe dera
+Amaro fôra como a chicotada que esperta um cavallo que preguiça e se
+atraza: e a sua paixão, sacudindo-se e relinchando forte, ia-a de novo
+levando no impeto d'uma carreira fogosa.
+
+Amaro, esse regosijava-se. Ainda ás vezes, decerto, a idéa d'aquelle
+homem, de dia e de noite com ella, importunava-o... Mas, no fundo, que
+compensações! Todos os perigos desappareciam magicamente, e as sensações
+requintavam. Findavam para elle aquellas atrozes responsabilidades da
+seducção, e ficava-lhe a mulher mais appetitosa.
+
+Instava agora com a Dionysia para que acabasse emfim aquella fastidiosa
+campanha. Mas a boa mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela
+multiplicidade d'esforços, não podia descobrir o typographo--aquelle
+famoso Gustavo que possuia, como os anões de romance de cavallaria, o
+segredo da torre maravilhosa onde vive o principe encantado.
+
+--Oh, senhor! dizia o conego, isso até já cheira mal! Ha quasi dois
+mezes á busca d'um patife!... Homem, escreventes não faltam. Arranje-se
+outro!
+
+Mas emfim, uma noite em que elle entrára a descansar em casa do parocho,
+a Dionysia appareceu; e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde
+os dois padres tomavam o seu café:
+
+--Até que emfim!
+
+--Então, Dionysia?
+
+A mulher, porém, não se apressou: sentou-se mesmo, com licença dos
+senhores, porque vinha derreada... Não, o senhor conego não imaginava os
+passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo lembrava-lhe a
+historia, que lhe contavam em pequena, d'um veado que estava sempre á
+vista e que os caçadores a galope nunca alcançavam. Uma perseguição
+assim!... Mas, finalmente apanhára-o... E tocadito, por signal.
+
+--Acabe, mulher! berrou o conego.
+
+--Pois aqui está, disse ella. Nada!
+
+Os dois sacerdotes olharam-na mystificados.
+
+--Nada quê, creatura?
+
+--Nada. O homem foi p'r'ó Brazil!
+
+O Gustavo recebera de João Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe
+dava a morada, para o lado do Poço do Borratem, annunciava-lhe a
+resolução de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que mudára de casa,
+sem lhe indicar a nova _adresse_, e declarava que pelo proximo paquete
+embarcava para o Rio; não dizia nem com que dinheiro, nem com que
+esperanças. Tudo era vago e mysterioso. Desde então, havia um mez, o
+rapaz não tornára a escrever, d'onde o typographo concluia que ia a essa
+hora nos altos mares...--«Mas havemos de vingal-o!» tinha elle dito a
+Dionysia.
+
+O conego remexia pausadamente o seu café, embatocado.
+
+--E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito branco.
+
+--Acho-a boa.
+
+--Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda! disse surdamente
+Amaro.
+
+--Amen, respondeu gravemente o conego.
+
+
+
+
+XXI
+
+
+Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A sua honra, a paz da sua
+vida, tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do
+mar, a caminho para o Brazil!
+
+Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o parocho, banhada em
+lagrimas, perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.
+
+Amaro, succumbido, sem idéa, ia para o padre-mestre.
+
+--Fez-se tudo o que se pôde, dizia o conego desolado. É aguentar. Não se
+mettesse n'ellas!
+
+E Amaro voltava para Amelia com consolações muito murchas:
+
+--Tudo se ha de arranjar, é esperar em Deus!
+
+Era bom o momento para contar com Deus, quando Elle, indignado, a
+acabrunhava de miserias! E aquella indecisão, n'um homem e n'um padre,
+que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperavam-na; a sua
+ternura por elle sumia-se como a agua que a areia absorve; e ficava um
+sentimento confuso em que sob o desejo persistente já transluzia o odio.
+
+Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro
+não se queixava; aquellas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram
+sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de soluços;
+e aquillo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem
+de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.
+
+No fundo accusava-a de exagerar os seus embaraços, de lhe communicar um
+terror desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, não faria
+semelhante espalhafato... Mas quê, uma beata hysterica, toda nervos,
+toda medo, toda exaltação!... Ah, não havia duvida, fôra «uma famosa
+asneira»!
+
+Tambem Amelia pensava que fôra «uma asneira». E não ter nunca imaginado
+que aquillo lhe poderia succeder! Qual! Como mulher, correra para o
+amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,--e agora que sentia nas
+entranhas o filho, eram as lagrimas e os espantos e as queixas! A sua
+vida era lugubre: de dia tinha de se conter diante da mãi, applicar-se á
+sua costura, conversar, affectar felicidade... Era de noite que a
+imaginação desencadeada a torturava com uma incessante phantasmagoria de
+castigos, d'este e do outro mundo, miserias, abandonos, desprezo da
+gente honrada e chammas do purgatorio...
+
+Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão áquella
+anciedade que se ia tornando um habito morbido do seu espirito. Uma
+noite a criada do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer que a
+snr.^a D. Josepha estava á morte.
+
+Na vespera a excellente senhora sentira-se doente com uma pontada no
+lado, mas insistira em ir á Senhora da Incarnação rezar a sua corôa;
+voltou transida, com uma dôr maior e uma ponta de febre; e n'essa tarde,
+quando o doutor Gouvêa foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia
+aguda.
+
+A S. Joaneira correu logo a installar-se lá como enfermeira. E então,
+durante semanas, na tranquilla casa do conego, foi um alvoroço de
+dedicações afflictas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas
+a fazer promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em
+permanencia, sahindo e entrando no quarto da doente com passos de
+phantasmas, accendendo aqui e além lamparinas ás imagens, torturando o
+doutor Gouvêa com perguntas piegas. Á noite na sala, com o candieiro a
+meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lugubres; e ao chá,
+entre cada mastigadella de torrada, havia suspiros, lagrimas
+furtivamente limpadas...
+
+O conego lá estava a um canto, aniquilado, succumbido com aquella brusca
+apparição da doença e do seu scenario melancolico--as garrafadas de
+botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do medico, as faces
+compungidas que vem saber se ha melhoras, o halito febril espalhado em
+toda a casa, o timbre funerario que toma o relogio de parede no
+abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam dias no logar em
+que cahiram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva eterna...
+De resto, um pezar sincero prostrava-o; havia cincoenta annos que vivia
+com a mana e era animado por ella; o longo habito tornára-lh'a cara; e
+as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa
+faziam como uma parte mesma de seu sêr... Além d'isso, quem sabe se a
+morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o não levaria
+tambem!...
+
+Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao menos ninguem pensava,
+ninguem reparava n'ella; nem a sua face triste e os vestigios de
+lagrimas pareceriam estranhos, n'aquelle perigo em que estava a
+madrinha. Demais os serviços de enfermeira occupavam-n'a: como era a
+mais forte e a mais nova, agora que a S. Joaneira estava estafada de
+vigilias, era ella que passava as longas noites á beira de D. Josepha: e
+não havia então desvelos que não tivesse, para abrandar Nossa Senhora e
+o céo com aquella caridade pela doente, para merecer igual piedade
+quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada n'um leito...
+Vinha-lhe agora, sob a impressão funebre que se exhalava da casa, o
+presentimento repetido que morreria de parto; ás vezes só, embrulhada no
+seu chale aos pés da doente, ouvindo-lhe o gemer monotono, enternecia-se
+sobre a sua propria morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos
+de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma, da sua mocidade e dos seus
+amores... Ia então ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina
+bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o papel claro da parede
+a sua sombra disforme que se quebrava no tecto; e alli ficava rezando,
+pedindo a Nossa Senhora que não lhe recusasse o paraiso... Mas a velha
+mexia-se com um ai doloroso; ia então aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe
+baixo. Vinha depois á sala vêr no relogio se era o momento do remedio; e
+estremecia ás vezes, sentindo vir do quarto proximo um pio de flautim ou
+um som rouco de trombone; era o conego a resonar.
+
+Emfim, uma manhã, o doutor Gouvêa declarou D. Josepha livre de perigo.
+Foi um vivo regosijo para as senhoras--certa, cada uma, que aquillo era
+devido á intervenção particular do seu santo devoto. E d'ahi a duas
+semanas houve uma festa na casa, quando D. Josepha, pela primeira vez,
+amparada nos braços de todas as amigas, deu dois passos tremulos no
+quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a doença! Aquella vozinha
+irritada, em que as palavras eram despedidas como settas envenenadas,
+assemelhava-se agora apenas a um som expirante, quando, n'um esforço
+ancioso da vontade, pedia a escarradeira ou o xarope. Aquelle olhar
+sempre álerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo
+das orbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E
+o seu corpo, tão têso outr'ora, d'uma seccura de ramo de sarmento, agora
+ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia
+um trapo tambem.
+
+Mas emfim o doutor Gouvêa, apesar d'annunciar uma convalescença longa e
+delicada, dissera rindo ao conego, diante das amigas (depois de ter
+visto D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar
+á janella), que com muita cautela, tonicos, e as orações de todas
+aquellas boas senhoras--a mana estava ainda para amores...
+
+--Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas orações não lhe hão de
+faltar...
+
+--E eu não lhe hei de faltar com os tonicos, disse o doutor. De modo
+que, o que resta é congratularmo-nos.
+
+Aquella jovialidade do doutor era para todos como a certeza da saude
+proxima.
+
+E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se o fim d'agosto, fallou de
+alugar casa na Vieira, como costumava um anno sim outro não, para ir
+tomar os seus banhos de mar. O anno passado não fôra. Este era o anno de
+praia...
+
+--E a mana lá, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar, é que acaba de
+ganhar forças e carnes...
+
+Mas o doutor Gouvêa desapprovou a jornada. O ar muito picante e muito
+rico do mar não convinha á fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem
+para a quinta da Ricoça, nos Poyaes, logar abrigado e muito temperado.
+
+Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou as lamurias. O
+quê! ir enterrar-se todo o verão, o melhor tempo do anno, na Ricoça! E
+os seus banhos, meu Deus, os seus banhos?
+
+--Veja o senhor,--dizia elle a Amaro, uma noite no escriptorio,--veja o
+que eu tenho sofrido... Durante a doença, que desarranjo, que desordem
+na casa! Chá fôra d'horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive, que
+me emmagreceram... E agora, quando eu pensava poder ir refazer-me para a
+praia, não senhor, vai p'r'á Ricoça, dispensa os teus banhos... Isto é o
+que eu chamo sofrer! E no fim de tudo não fui eu que estive doente. Mas
+sou eu que as aguento... Perder dois annos a fio os meus banhos!...
+
+Amaro, então, deu de repente uma punhada na mesa, e exclamou:
+
+--Homem, veio-me uma boa idéa!
+
+O conego olhou-o com duvida, como se não achasse possivel a uma
+intelligencia humana descobrir o fim dos seus males.
+
+--Quando digo uma boa idéa, padre-mestre, devia dizer uma idéa sublime!
+
+--Acabe, creatura...
+
+--Escute. O senhor vai p'r'á Vieira, e a S. Joanneira, está claro, vai
+tambem. Naturalmente alugam casa um ao pé do outro, como ella me disse
+que tinham feito ha dois annos...
+
+--Adiante...
+
+--Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira. Agora, a senhora sua mana
+parte p'r'á Ricoça.
+
+--E então a creatura ha de ir só?
+
+--Não! exclamou Amaro em triumpho. Vai com a Amelia! A Amelia vai-lhe
+servir de enfermeira! Vão ambas sós! e lá na Ricoça, n'aquelle buraco
+onde não vai viva alma, n'aquelle casarão onde póde uma pessoa viver sem
+que ninguem em roda suspeite, lá é que a rapariga tem o filho! Hein, que
+lhe parece?
+
+O conego erguera-se com os olhos redondos d'admiração.
+
+--Homem, famosa idéa!
+
+--É que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joanneira,
+longe, não sabe o que se passa. Sua mana goza os ares... A Amelia tem um
+sitio escondido p'r'á coisa... Á Ricoça ninguem a vai vêr... A D. Maria
+tambem vai p'r'á Vieira. As Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom
+successo ahi pelos principios de novembro... Da Vieira, e isso fica por
+sua conta, não volta ninguem dos nossos até principios de dezembro... E
+quando nos reunirmos de novo está a rapariga limpa e fresca.
+
+--Pois senhores, por ser a primeira idéa que vossê tem n'estes dois
+ultimos annos, é uma grande idéa!
+
+--Obrigado, padre-mestre.
+
+Mas havia uma difficuldade feia: era o ir á D. Josepha, á rigorista D.
+Josepha, tão implacavel ás fraquezas do sentimento, á D. Josepha que
+pedia para as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas--as
+letras marcadas na testa com ferro em braza, os açoutes nas praças
+publicas, os _in pace_ tenebrosos--ir á D. Josepha e pedir-lhe para ser
+cumplice d'um parto!
+
+--A mana vai dar urros! disse o conego.
+
+--Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouçando
+a perna, muito certo do seu prestigio devoto. Nós veremos... Hei de lhe
+eu fallar... E quando lhe tiver contado umas lérias... Quando lhe tiver
+representado que é para ella um caso de consciencia encobrir a
+pequena... Quando lhe lembrar que nas vesperas da morte é que se deve
+fazer alguma boa acção, para não se apresentar á porta do paraiso com as
+mãos vazias... Nós veremos!
+
+--Talvez, talvez, disse o conego. A occasião é boa, porque a pobre mana
+está fraquita do juizo e leva-se como uma criança.
+
+Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mãos:
+
+--Pois é mãos á obra! É mãos á obra!
+
+--E é necessario não perder tempo, porque o escandalo estala. Olhe que
+esta manhã, lá em casa, a besta do Libaninho pôz-se a gracejar com a
+rapariga, a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...
+
+--Oh, que patife! rugiu o parocho.
+
+Não, não seria por mal. Mas que a rapariga tem engrossado, é facto...
+Com esta atarantação da doença ninguem tem tido olhos para nada... Mas
+agora póde-se reparar... É sério, amigo, é sério!
+
+
+Por isso, logo na manhã seguinte, Amaro foi, segundo a expressão do
+conego, «dar a grande abordagem á mana».
+
+Antes, porém, explicou em baixo no escriptorio ao padre-mestre o seu
+plano: primeiro, ia dizer a D. Josepha que o conego estava na inteira
+ignorancia do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia, não
+em segredo de confissão (n'esse caso não o poderia revelar) mas pelas
+confidencias secretas dos dois--de Amelia e do homem casado que a
+seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque emfim era necessario provar
+á velha que havia a impossibilidade d'uma reparação legitima...
+
+O conego coçava a cabeça descontente:
+
+--Isso não vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe bem que não iam
+homens casados á rua da Misericordia.
+
+--E o Arthur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrupulo.
+
+O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur, sem dentes, cheio de
+filhos, com os seus olhos de carneiro triste, accusado de perder
+virgens!... Não, essa era boa!
+
+--Não péga, parocho amigo, não péga! Outra, outra...
+
+Mas então subitamente partiu dos labios d'ambos o mesmo nome,--o
+Fernandes, o Fernandes da loja de panos! Bello homem, que Amelia
+admirava muito! Sempre que sahia ia-lhe á loja: tinha mesmo havido
+indignação na rua da Misericordia, havia dois annos, com a ousadia do
+Fernandes que acompanhára Amelia pela estrada de Marrazes até ao
+Morenal!
+
+Já se sabe, não se dizia explicitamente á mana,--mas dava-se-lhe a
+entender que fôra o Fernandes.
+
+E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do
+escriptorio. Esteve lá meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o
+conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem as solas d'Amaro,
+ora a tosse cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo
+escriptorio, da estante para a janella, com as mãos atraz das costas e a
+caixa de rapé nos dedos, ia considerando quantos incommodos, quantas
+despezas lhe traria ainda aquelle «divertimento do senhor parocho»!
+Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis mezes... Depois o
+medico, a parteira que era elle naturalmente que havia de pagar...
+Depois algum enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao
+pequeno?... Na cidade, a Roda fôra supprimida; em Ourem, como os
+recursos da Misericordia eram escassos e a affluencia dos engeitados
+escandalosa, tinham posto um homem ao pé da sineta da Roda, para
+interrogar e pôr embaraços; havia indagações de paternidade,
+restituições de crianças; e a auctoridade, finoria, combatia o excesso
+dos engeitamentos com o terror dos vexames...
+
+Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo um erriçamento de
+difficuldades para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a
+digestão...--Mas o excellente conego, no fundo, não se indignava; sempre
+tivera uma affeição de velho mestre pelo parocho; para a Amelia sempre o
+inclinára um fraco meio paternal, meio lubrico; e mesmo já sentia pelo
+«pequeno» uma vaga condescendencia d'avô.
+
+A porta abriu-se, e o parocho appareceu triumphante.
+
+--Tudo ás mil maravilhas, padre-mestre! Que lhe dizia eu?
+
+--Consentiu?
+
+--Em tudo. Não foi sem difficuldade... Ia-se abespinhando. Fallei-lhe do
+homem casado... Que a rapariga estava com a cabeça perdida, queria-se
+matar... Que se ella não consentisse em encobrir a coisa era responsavel
+por uma desgraça... Lembre-se a senhora que está com os pés p'r'á cova,
+que Deus póde chamal-a d'um momento a outro, e que se tiver na
+consciencia este peso, não ha padre que lhe dê a absolvição!...
+Lembre-se que morre p'r'áhi como um cão!...
+
+--Emfim, disse o conego approvando, fallou-lhe com prudencia...
+
+--Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar á S. Joanneira, e de a
+levar p'r'á Vieira quanto antes...
+
+--Outra coisa, amigo, interrompeu o conego. Tem vossê pensado no destino
+que se ha de dar ao fructo?
+
+O parocho coçou desconsoladamente a cabeça:
+
+--Ah, padre-mestre... Isso é outra difficuldade... Tem-me apoquentado
+muito... Naturalmente dal-o a criar a alguma mulher, longe, lá p'ra
+Alcobaça ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre, era que a criança
+nascesse morta!
+
+--Era um anjinho mais... rosnou o conego sorvendo a sua pitada.
+
+
+Logo n'essa noite elle fallou á S. Joanneira da ida para a Vieira, em
+baixo na saleta onde ella estava arranjando pires de marmelada que
+andavam a seccar para a convalescença de D. Josepha. Começou por dizer
+que lhe alugára a casa do Ferreiro...
+
+--Mas isso é um nicho! exclamou ella logo. Onde hei de eu metter a
+pequena?
+
+--Ora ahi é que está. É que justamente a Amelia d'esta vez não vai á
+Vieira.
+
+--Não vai!?
+
+Foi só então que o conego lhe explicou que a mana não podia ir só para a
+Ricoça, e que elle tinha pensado em mandar com ella Amelia... Era uma
+idéa que lhe viera n'essa manhã.
+
+--Eu não posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe...
+A pobre de Christo não ha de estar para lá só, com uma criada.
+Portanto...
+
+A S. Joanneira teve um silenciosinho desconsolado:
+
+--Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem
+deixar a pequena... Se eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.
+
+--Qual ia! A senhora vem p'r'á Vieira. Eu tambem não hei de estar lá
+só... Sua ingrata, sua ingrata!...--E tomando um tom muito sério:--A
+senhora veja bem. A Josepha está com os pés p'r'á cova. Ella sabe que o
+que eu tenho para mim chega. Ella tem affeição á pequena, sempre é
+madrinha; se a vir agora a tratal-a na doença, a estar alli só com ella
+uns mezes, fica pelo beiço. Olhe que a mana ainda vale um par de mil
+cruzados. A pequena póde apanhar um bom dote. Não lhe digo mais nada...
+
+E a S. Joanneira concordou logo--uma vez que era vontade do senhor
+conego.
+
+Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amelia «o grande plano», a
+scena com a velha: que ella se promptificára logo, coitadinha, já cheia
+de caridade, desejando até ajudar para o enxoval do pequeno...
+
+--N'ella pódes ter confiança, é uma santa... De modo que está tudo
+salvo, filha. É estar mettida quatro ou cinco mezes na Ricoça.
+
+Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a estação da Vieira, o
+divertimento dos banhos!... Ir enterrar-se todo um verão n'aquelle
+sinistro casarão da Ricoça! A unica vez que lá fôra, já ao fim da tarde,
+ficára estarrecida de medo. Tudo tão escuro, d'um echo tão concavo...
+Tinha a certeza que ia lá morrer, n'aquelle degredo.
+
+--Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de me ter inspirado esta
+idéa de salvação. Demais tens a D. Josepha, tens a Gertrudes, o pomar
+para passear... E eu vou-te lá vêr todos os dias. Até has de gostar,
+verás.
+
+--Emfim que lhe hei de eu fazer? É aguentar. E com duas grossas lagrimas
+nas palpebras, amaldiçoava intimamente aquella paixão que só amarguras
+lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forçava
+a ella a ir fechar-se na solidão da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os
+cães uivar na quinta...--E a mamã, que diria a mamã?
+
+--Que ha de dizer? A D. Josepha não póde ir p'r'á quinta só, sem uma
+enfermeira de confiança! Não te dê cuidado. O padre-mestre está lá em
+baixo a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que já aqui estou só ha
+bocado comtigo, e n'estes ultimos dias é necessario ter cautelinha...
+
+Desceu. Justamente o conego subia, e encontraram-se na escada.
+
+--Então? perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.
+
+--Tudo arranjado. E por lá?
+
+--Idem.
+
+E no escuro da escada os dois padres apertaram-se silenciosamente a mão.
+
+
+D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos, Amelia partiu com D.
+Josepha para a Ricoça n'um _char-à-banc_.
+
+Tinham arranjado, com almofadas, um recanto commodo para a
+convalescente. O conego acompanhava-a, furioso com aquelle incommodo. E
+a Gertrudes ia em cima na almofada, á sombra da montanha que faziam
+sobre o tope do carro os bahús de couro, os cestos, as latas, as
+trouxas, os saccos de chita, o açafate onde miava o gato, e um fardo
+amarrado com cordas contendo os paineis dos santos mais queridos de D.
+Josepha.
+
+Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joanneira para a Vieira,
+de noite, por causa da calma. A rua da Misericordia estava atravancada
+com o carro de bois, que conduzia as louças, os enxergões, o trem de
+cozinha; e no mesmo _char-à-banc_ que fôra á Cortegassa, ia agora a S.
+Joanneira e a _Ruça_ que levava tambem no regaço um açafate com o gato.
+
+O conego fôra na vespera, só Amaro assistia á partida da S. Joanneira. E
+depois de toda uma azafama, de galgarem cem vezes de baixo a cima as
+escadas por um cestinho que esquecera ou um embrulho que desapparecia,
+quando a _Ruça_ emfim fechou a porta á chave, a S. Joanneira, já no
+estribo do _char-à-banc_, rompeu a chorar.
+
+--Então, minha senhora, então! disse Amaro.
+
+--Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa...
+Parece que a não torno a vêr. Appareça pela Ricoça, faça-me essa esmola.
+Veja se ella está contente...
+
+--Vá descansada, minha senhora.
+
+--Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por tudo... Ai os favores que
+lhe devo!
+
+--Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê noticias! Recados ao
+padre-mestre. Adeus, minha senhora! adeus, Ruça...
+
+O _char-à-banc_ partiu. E pelo mesmo caminho por onde elle ia rolando,
+Amaro foi andando devagar até á estrada da Figueira. Eram então nove
+horas, nascera já o luar d'uma noite calida e serena de agosto. Uma
+tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem calada. Aqui e além uma
+fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do
+arvoredo. Ao pé da ponte, parou a olhar melancolicamente o rio que
+corria sobre a areia com uma susurração monotona; nos logares em que as
+arvores se debruçavam, havia escuridões cerradas; e adiante uma
+claridade tremia sobre a agua, como um tecido de filigrana faiscante.
+Alli esteve, n'aquelle silencio que o calmava, fumando cigarros e
+atirando as pontas para o rio, embebido n'uma tristeza vaga. Depois,
+ouvindo as onze, veio voltando para a cidade, passou pela rua da
+Misericordia n'um enternecimento de recordações: a casa, com as janellas
+fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para sempre; os
+vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos da janella...
+Quantas vezes Amelia e elle se tinham encostado áquella varanda! Havia
+então um craveiro fresco, e conversando, ella cortava uma folha,
+trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha acabado agora!--E na Misericordia,
+ao lado, o piar das corujas no silencio dava-lhe uma sensação de ruina,
+de solidão e de fim eterno.
+
+Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrazados d'agua.
+
+A criada veio logo á escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, n'uma
+afflicção, viera procural-o duas vezes, haviam de ser nove horas. A Tótó
+estava a morrer, e só queria receber os sacramentos da mão do senhor
+parocho.
+
+Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa em voltar assim n'essa
+noite, para um fim tão triste, ao meio das recordações felizes da sua
+paixão, foi, para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquella
+morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e como completando a subita
+dispersão de quanto até ahi o interessára ou estivera misturado á sua
+vida.
+
+A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escuridão da entrada
+topou com duas mulheres que sahiam suspirando. Foi logo direito á alcova
+da paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam
+sobre uma mesa; um lençol branco cobria o corpo da Tótó; e o padre
+Silverio, que fôra decerto chamado por estar de semana, lia o Breviario,
+com o lenço nos joelhos, os seus grandes oculos na ponta do nariz.
+Ergueu-se apenas viu Amaro:
+
+--Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o por toda a
+parte... A pobre de Christo queria-o a vossê... Eu, quando me foram
+buscar, ia fazer a partida a casa do Novaes. É a partida do sabbado...
+Que scena! Morreu na impenitencia, como era dos livros. Quando me viu, e
+que vossê não vinha, que espectaculo! Até tive medo que me cuspisse no
+crucifixo...
+
+Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lençol, mas deixou-o
+logo recahir sobre a face da morta. Depois subiu acima ao quarto onde o
+sineiro, estirado sobre a cama, voltado para a parede, soluçava
+desesperadamente; estava com elle outra mulher, que se conservava a um
+canto, muda e immovel, com os olhos no chão, no vago aborrecimento que
+lhe dava aquelle pesado dever de visinha. Amaro tocou no hombro do
+sineiro, fallou-lhe:
+
+--É necessario resignação, tio Esguelhas... São decretos do Senhor...
+Para ella é até uma felicidade.
+
+O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho, por entre o véo das
+lagrimas que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mão, quiz beijar-lh'a.
+Amaro recuou:
+
+--Então, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso, ha de lhe
+levar em conta a sua dôr...
+
+Elle não o escutava, sacudido d'um pranto convulsivo,--emquanto a
+mulher, muito tranquillamente, limpava ora um ora outro canto do olho.
+
+Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio d'aquelle serviço
+excepcional, tomou o seu logar ao pé da vela, com o Breviario na mão.
+
+Alli ficou até tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe que o tio
+Esguelhas tinha pegado a dormir; e ella promettia voltar com a
+amortalhadeira, mal rompesse a manhã.
+
+Toda a casa então ficou n'aquelle silencio, que a visinhança do vasto
+edificio da Sé fazia parecer mais soturno; só ás vezes um mocho piava
+debilmente nos contrafortes, ou o grosso bordão batia os quartos. E
+Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas preso alli por uma força
+superior da consciencia sobresaltada, ia precipitando as orações... Ás
+vezes o livro cahia-lhe sobre os joelhos; e então, immovel, sentindo por
+detraz a presença d'aquelle cadaver coberto do lençol, recordava, n'um
+contraste amargo, outras horas em que o sol banhava o pateo, as
+andorinhas esvoaçavam, e elle e Amelia subiam rindo para aquelle quarto
+onde agora, sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluços
+mal acalmados...
+
+
+
+
+XXII
+
+
+O conego Dias recommendára muito a Amaro que ao menos nas primeiras
+semanas, para evitar as suspeitas da mana e da criada, não fosse á
+Ricoça. E a vida d'Amaro tornou-se então mais triste, mais vazia que
+outr'ora, quando pela primeira vez deixando a casa da S. Joanneira viera
+para a rua das Sousas. Todos os seus conhecidos estavam fóra de Leiria:
+D. Maria da Assumpção na Vieira; as Gansosinhos ao pé d'Alcobaça com a
+tia, a famosa tia que havia dez annos estava para morrer e para lhes
+deixar uma grande herdade. Depois do serviço da Sé, as horas, todo o
+longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. Não estaria mais separado
+de toda a communicação humana, se como Santo Antonio vivesse nos areaes
+do deserto libyco. Só o coadjutor que, coisa singular, nunca lhe
+apparecia nos tempos felizes, voltára agora, como o companheiro fatidico
+das horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana, ao fim do
+jantar, mais magro, mais chupado, mais soturno, com o seu eterno
+guardachuva na mão. Amaro odiava-o; ás vezes, para o impôr, fingia-se
+todo occúpado n'uma leitura; ou precipitando-se para a mesa, mal lhe
+sentia nos degraus as passadas lentas:
+
+--Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.
+
+Mas o homem installava-se, com o odioso guardachuva entre os joelhos:
+
+--Não se prenda, senhor parocho, não se prenda.
+
+E Amaro, torturado por aquella figura lugubre que não se mexia na
+cadeira, atirava a penna, furioso, agarrava o chapéo:
+
+--Não estou hoje p'r'á coisa, vou espairecer.
+
+E á primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.
+
+Ás vezes, farto de solidão, ia visitar o Silverio. Mas a felicidade
+pachorrenta d'aquelle sêr obeso, occupado em colleccionar receitas de
+medicina caseira e em observar as perturbações phantasticas da sua
+digestão; os seus constantes louvores do doutor Godinho, dos pequenos e
+da senhora; as chalaças obsoletas que elle repetia havia quarenta annos
+e a innocente hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam Amaro.
+Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga era a felicidade por fim:
+porque não havia de elle ser tambem um bom padre caturra, com uma
+pequenina mania tyrannica, parasita regalado d'uma familia respeitavel,
+tendo um d'estes sangues tranquillos que giram sob camadas de gordura,
+sem perigo de transbordar e de causar desgraças, como um riacho que
+corre por debaixo d'uma montanha?...
+
+Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura, mal tratada ao
+principio, o retinha ainda na cama com o apparelho na perna. Mas ahi,
+enjoava-o o aspecto do quarto--impregnado d'um cheiro d'arnica e de
+suor, com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e
+esquadrões de garrafas sobre a commoda entre fileiras de santos.
+Natario, mal o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras dos
+medicos! A sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atrazo
+em que estava a medicina n'este maldito paiz!... E ia salpicando o
+soalho negro de expectorações e de pontas de cigarro. Desde que estava
+doente, a saude dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma
+offensa pessoal.
+
+--E vossê sempre rijo, hein? Pudera!--murmurava com rancor.
+
+E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o
+alarve do abbade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete
+da manhã! Animaes!
+
+Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do conego,
+da Vieira, as melhoras da D. Josepha...
+
+Mas Natario não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a
+convivencia e a amizade; interessavam-n'o só os seus inimigos, com quem
+tinha ligações d'odio. Queria saber do escrevente, se já tinha estourado
+de fome...
+
+--Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir aqui n'esta maldita
+cama!...
+
+As sobrinhas appareciam então--duas creaturinhas sardentas, d'olhos
+muito pisados. O seu grande desgosto era que o titi não mandasse vir a
+_benzedeira_ pôr-lhe _virtude_ na perna: era o que tinha curado o
+morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...
+
+Natario, na presença das _duas rosas do seu canteiro_, calmava-se.
+
+--Coitaditas, não é por falta de cuidados d'ellas que eu ainda não
+arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
+
+E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo, voltavam-se para o
+lado limpando os olhos aos lenços.
+
+Amaro sahia d'alli, mais enfastiado.
+
+Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas
+apenas se afastava do movimento da cidade, a sua tristeza tornava-se
+mais intensa, concordando com aquella paizagem de collinas tristes e
+arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe como essa mesma estrada
+monotona e longa, sem um incidente que a alegrasse, estirando-se
+desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo. Ás vezes, ao
+voltar, entrava no cemiterio, ia passeando entre os renques de
+cyprestes, sentindo áquella hora do fim da tarde a emanação adocicada
+das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se á grade dourada do
+jazigo da familia Gouvêa, contemplando os emblemas em relevo, um chapéo
+armado e um espadim, seguindo as negras letras da famosa ode que lhe
+adorna a lapida:
+
+
+Caminhante, detem-te a contemplar
+ Estes restos mortaes;
+E, se sentires a mágoa a transbordar,
+ Detem teus ais.
+Que Julio Cabral da Silva Maldonado
+ Mendonça de Gouvêa,
+Moço fidalgo, bacharel formado,
+ Filho da illustre Cêa,
+Ex-administrador d'este concelho,
+ Commendador de Christo,
+Foi de virtudes singular espelho,
+ Caminhante, crê n'isto.
+
+
+Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua esposa, que agora, rica e
+quarentona, vivia em concubinagem com o bello capitão Trigueiros, fizera
+gravar uma piedosa quadra:
+
+
+Entre os anjos espera, ó esposo,
+A metade do teu coração
+Que no mundo ficou, tão sózinha,
+Toda entregue ao dever da oração!...
+
+
+Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao muro, via um homem
+ajoelhado ao pé d'uma cruz negra, que um chorão assombreava, ao lado da
+valla dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta no chão, rezando
+sobre a sepultura da Tótó. Ia fallar-lhe, e mesmo, n'uma igualdade que
+aquelle logar justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro,
+conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de que servia á
+desgraçada rapariga a vida para a passar estirada n'uma cama?
+
+--Sempre era viver, senhor parocho... E eu, veja agora isto, sósinho de
+dia e de noite!
+
+--Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia melancolicamente
+Amaro.
+
+O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.^a D. Josepha, pela
+menina Amelia...
+
+--Lá está na quinta.
+
+--Coitadita, não está má estopada...
+
+--Cruzes da vida, tio Esguelhas.
+
+E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros
+cheios do negrejamento das cruzes e da brancura das lapidas novas.
+Amaro, ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo tinha
+aspergido e consagrado: onde estariam aquellas almas que elle
+recommendára a Deus em latim, distrahido, engorolando á pressa as
+orações para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da cidade; elle
+conhecia de vista as pessoas da familia; vira-as então lavadas em
+lagrimas, e agora passeavam em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao
+balcão das lojas...
+
+Voltava para casa mais triste,--e a sua longa noite começava,
+infindavel. Tentava lêr; mas ao fim das dez primeiras linhas bocejava de
+tedio e de fadiga. Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas tomava
+chá; e depois era um passear sem fim pelo quarto, fumando maços de
+cigarros, parando á janella a olhar a negrura da noite, lendo aqui e
+além uma noticia ou um annuncio do _Popular_ e recomeçando a passear com
+bocejos tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.
+
+Para entreter estas noites melancolicas, e por um excesso de
+sensibilidade ociosa, tentára fazer versos, pondo o seu amor e a
+historia dos dias felizes nas formulas conhecidas da saudade lyrica:
+
+
+Lembras-te d'esse tempo da delicias,
+Ó anjo feiticeiro, Amelia amada,
+Quando tudo eram risos e ventura
+E a vida nos corria socegada?
+
+Lembras-te d'essa noite de poesia
+Em que a lua brilhava pelos céos,
+E nós unindo as almas, ó Amelia,
+Erguemos nossa prece para Deus?...
+
+
+Mas a despeito de todos os esforços nunca passára d'estas duas
+quadras--apesar de as ter produzido com uma facilidade
+promettedora--como se o seu sêr contivesse apenas estas duas gottas
+isoladas de poesia, e, soltas ellas á primeira pressão, nada mais
+restasse senão a sêcca prosa do temperamento carnal.
+
+E esta existencia varia relaxára-lhe tão subtilmente todo o machinismo
+da vontade e da acção, que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a
+fastidiosa concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso como o peso
+d'um fardo injusto. Preferia ainda os tedios da ociosidade aos tedios da
+occupação. A não serem os deveres estrictos que elle não podia desleixar
+sem escandalo e sem censura--desembaraçára-se, pouco a pouco, de todas
+as praticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas
+regulares ao Santissimo, nem as meditações espirituaes, nem o rosario á
+Virgem, nem a leitura á noite do Breviario, nem o exame de
+consciencia--todas estas obras da devoção, estes meios secretos de
+santificação progressiva substituia-os pelos infindaveis passeios pelo
+quarto, do lavatorio á janella, e por maços de cigarros fumados até ao
+negro dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o
+serviço da parochia feito com surdas revoltas de impaciencia; tornára-se
+consummadamente o _Indignus sacerdos_ dos ritualistas; e tinha na sua
+ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que
+os theologos attribuem ao _mau padre_.
+
+Só lhe restava através da sua sentimentalidade um appetite tremendo. E
+como a cozinheira era excellente, e a snr.^a D. Maria da Assumpção,
+antes da sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento de cento
+e cincoenta missas a cruzado--banqueteava-se, tratando-se a gallinha e a
+geleia, regando-se d'um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre lhe
+escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas, de perna esticada,
+fumando sobre o café, e lamentando não ter á mão a sua Ameliasita...
+
+--Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita! pensava, espreguiçando-se
+com tedio e com langor.
+
+
+A pobre Ameliasita, na Ricoça, amaldiçoava a sua vida.
+
+Logo durante a jornada no _char-à-banc_ D. Josepha lhe fizera
+tacitamente sentir que d'ella não tinha a esperar nem a antiga amizade,
+nem o perdão do escandalo... E assim foi, quando se installaram. A velha
+tornou-se intratavel: era todo um modo cruel de abandonar o _tu_, de a
+tratar por _menina_; uma recusa rispida se Amelia lhe queria arranjar a
+almofada ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo quando ella
+lhe passava o serão no quarto, costurando; e a todo o momento allusões
+suspiradas ao triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos seus
+dias...
+
+Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe que a madrinha
+seria toda caridade, toda cumplicidade; entregava-a por fim a uma
+semelhante ferocidade de velha virgem devota!...
+
+Quando se viu n'aquelle casarão da Ricoça, n'um quarto regelado, pintado
+a côr de canario, lugubremente mobilado com uma cama de docel e duas
+cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça, enterrada no
+travessseiro--torturada por um cão que debaixo das janellas, estranhando
+sem duvida as luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.
+
+Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros. Era talvez boa gente com
+quem podia distrahir-se. Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um
+cypreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito puxado
+para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha
+uma tristeza de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda peor,
+semelhante a um ourango-tango, com duas orelhas enormes muito despegadas
+do craneo, uma saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas, um
+corpo desengonçado de tisico, de peito mettido para dentro. Abalou bem
+depressa, foi vêr o pomar: andava maltratado; as ruasitas estavam
+invadidas por um hervaçal humido; e a sombra das arvores muito juntas,
+n'um terreno baixo, cercado d'altos muros, dava uma sensação doentia.
+
+Era ainda preferivel passar os seus dias mettida no casarão; dias
+infindaveis em que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso d'um
+desfilar funerario.
+
+O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas recebia a impressão
+triste da paizagem que se estendia defronte, uma ondulação monotona de
+terras estereis com alguma magra arvore aqui e além, um ar abafado em
+que parecia errar constantemente a exhalação de paues proximos e de
+baixas humidas, e a que nem o sol de setembro dissipava o tom
+sezonatico.
+
+Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha, accommodal-a no canapé;
+depois vinha costurar para ao pé d'ella--como outr'ora na rua da
+Misericordia para ao pé da mãi; mas agora em logar das boas
+«cavaqueiras» tinha só o silencio intratavel da velha e a sua ronqueira
+incessante. Pensára em fazer vir o seu piano da cidade; mas, apenas em
+tal fallou, a velha exclamou com azedume:
+
+--A menina está doida... Não tenho saude para tocatas! Ora o
+desproposito!
+
+A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava
+ao pé da velha, ou na cozinha, desapparecia; era justamente d'aquella
+freguezia, e passava o seu tempo pelos casaes, palrando com as antigas
+visinhas.
+
+A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rozario, ficava
+junto á janella olhando estupidamente as gradações da luz poente; todos
+os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silencio
+parecia descer, pousar sobre a terra; depois uma primeira estrellinha
+tremeluzia e brilhava; e diante d'ella era então só uma massa inerte de
+sombra muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um momento uma delgada
+tira côr de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz
+ou contorno de objecto em redor que o prendesse, ia muito saudoso para
+longe, para a Vieira; áquella hora a mãi e as amigas recolhiam do
+passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos
+palheiros começam a apparecer as luzes; é a hora do chá, dos quinos
+alegres, quando os rapazes da cidade vão em rancho pelas casas amigas,
+com uma viola e uma flauta, improvisando _soirées_. E ella alli, só!...
+
+Era então necessario deitar a velha, rezar com ella e com a Gertrudes o
+terço. Accendiam depois o candieiro de latão, pondo-lhe diante uma velha
+chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o serão, no
+silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava
+agachada a um canto.
+
+Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, n'um medo constante
+de ladrões; e então começava para Amelia a hora dos terrores
+supersticiosos. Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura d'aquellas
+antigas salas deshabitadas e em redor o tenebroso silencio dos campos.
+Ouvia ruidos inexplicaveis: era o soalho do corredor que estalava, sob
+passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava como
+sob um halito invisivel; ou a distancia, para os lados da cozinha, o
+baque surdo d'um corpo. Accumulava então as orações, encolhida debaixo
+da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadêlo continuavam-lhe os
+terrores da vigilia. Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia,
+gemendo, por traz da alta barra da cama:--_Amelia, prepara-te, o teu fim
+chegou!_ Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi
+refugiar-se na cama da Gertrudes.
+
+Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou quando ella ia adormecer:
+_Amelia, lembra-te dos teus peccados! Prepara-te, Amelia!_ Deu um grito,
+desmaiou. Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára, correu
+áquelle ai agudo que cortára o silencio do casarão. Achou-a estirada ao
+través do leito, com os cabellos soltos da rede rojando no chão, as mãos
+geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do caseiro, e até de
+madrugada foi uma azafama para a chamar á vida. Desde esse dia a
+Gertrudes dormia ao pé d'ella--e a voz não tornou a ameaçal-a por traz
+da barra.
+
+Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa da morte e o pavor do
+inferno. Por esse tempo, um vendedor ambulante d'estampas passou pela
+Ricoça; e a snr.^a D. Josepha comprou-lhe duas lithographias--a _Morte
+do Justo_ e a _Morte do Peccador_.
+
+--Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse
+ella.
+
+Amelia não duvidou ao principio que a velha, que contava morrer no mesmo
+apparato de gloria com que expirava o _Justo_ da estampa, lhe quizera
+mostrar a ella, a _peccadora_, a scena pavorosa que a esperava. Odiou-a
+por aquella «picardia». Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar á
+compra da estampa outra explicação: era Nossa Senhora que alli mandára o
+vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo na lithographia da _Morte
+do Peccador_ o espectaculo da sua agonia: e estava então certa que tudo
+seria assim, traço por traço--o seu anjo da guarda fugindo aos soluços;
+Deus-Padre desviando o rosto d'ella com repugnancia; o esqueleto da
+morte rindo ás gargalhadas; e demonios de côres rutilantes, com todo um
+arsenal de torturas, apoderando-se d'ella, uns pelas pernas, outros
+pelos cabellos, arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna
+chammejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna
+Dôr... E ella podia vêr ainda, no fundo dos céos, a grande balança--com
+um dos pratos muito alto onde as suas orações não pesavam mais que uma
+penna de canario, e o outro prato cahido, de cordas retesadas,
+sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
+
+Cahiu então n'uma melancolia hysterica que a envelhecia; passava os dias
+suja e desarranjada, não querendo dar cuidado ao seu corpo peccador;
+todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe
+custavam, como se as julgasse inuteis; e tinha atirado para o fundo
+d'uma arca o enxoval que andava a costurar para o filho--porque o
+odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e que
+era a causa da sua perdição. Odiava-o--mas menos que o outro, o parocho
+que lh'o fizera, o padre malvado que a tentára, a estragára, a atirára
+ás chammas do inferno! Que desespero quando pensava n'elle! Estava em
+Leiria socegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez--e
+ella alli sósinha, com o ventre condemnado e enfartado do peccado que
+elle lá depuzera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!
+
+Decerto esta excitação a teria matado--se não fosse o abbade Ferrão que
+começára então a vir vêr muito regularmente a irmã do amigo conego.
+
+Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua da Misericordia;
+dizia-se lá que o Ferrão tinha «idéas exquisitas»: mas não era possivel
+recusar-lhe nem a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia
+muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se succedido na
+diocese, e elle alli ficára esquecido n'aquella freguezia pobre, de
+congrua atrazada, n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo
+vigario geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe
+todavia, liberal de palavriado:
+
+--Vossê é um dos bons theologos do reino. Vossê está predestinado por
+Deus para um bispado. Vossê ainda apanha a mitra. Vossê ha de ficar na
+historia da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!
+
+--Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom! Mas era necessario que eu
+tivesse o arrojo d'um Affonso d'Albuquerque ou d'um D. João de Castro,
+para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
+
+E alli ficára, entre gente pobre, n'uma aldeia de terra escassa, vivendo
+de dois pedaços de pão e uma chavena de leite, com uma batina limpa onde
+os remendos faziam um mappa, precipitando-se a uma meia legua por um
+temporal desfeito se um parochiano tinha uma dôr de dentes, passando uma
+hora a consolar uma velha a quem tinha morrido uma cabra... E sempre de
+bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma
+necessidade do seu visinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem
+fazia botes de cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma
+rapariga bonita, o que era raro na freguezia, e exclamar: «Linda moça,
+Deus a abençôe!»
+
+E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão celebre, que lhe
+chamavam «a donzella».
+
+De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas d'estação aos
+pés do Santissimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as
+menores praticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia
+com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, d'onde a sua alma
+sahia mais agil, como d'um banho fortificante; preparando-se para o
+somno com um d'estes longos e piedosos exames de consciencia, tão uteis,
+que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarcho e
+Seneca, e que são a correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos,
+o aperfeiçoamento meticuloso da virtude activa, emprehendido com um
+fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha
+vago, abysmava-se n'um cahos de livros.
+
+Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de caçar! Cohibia-se,
+porque a caça tira muito tempo, e é sanguinario matar uma pobre ave que
+anda azafamada pelos campos nos seus negocios domesticos. Mas nas claras
+manhãs d'inverno, quando ainda ha orvalho nas giestas, se via passar um
+homem d'espingarda ao hombro, o passo vivo, seguido do seu
+perdigueiro--iam-se-lhe os olhos n'elle... Ás vezes porém, a tentação
+vencia: agarrava furtivamente a espingarda, assobiava á _Janota_, e com
+as abas do casacão ao vento, lá ia o theologo illustre, o espelho de
+piedade, através de campos e valles... E d'ahi a pouco--pum... pum! Uma
+codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a
+espingarda debaixo do braço, os dois passaros na algibeira, cosendo-se
+com os muros, rezando o seu rosario á Virgem, e respondendo aos _bons
+dias_ da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.
+
+O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto «gêbo» e do seu grande nariz,
+agradou a Amelia, logo desde a primeira visita á Ricoça; e a sua
+sympathia cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com pouco
+alvoroço, apesar do respeito que o mano conego tinha pela sciencia do
+abbade.
+
+A velha, com effeito depois de ter estado só com elle n'uma pratica
+d'horas, condemnára-o com uma unica palavra, na sua auctoridade de velha
+devota experiente:
+
+--É relaxado!
+
+Não se tinham realmente comprehendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos
+annos n'aquella parochia de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de
+mães a filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso Senhor, Nossa
+Senhora e S. Vicente, patrono da freguezia, tendo pouca experiencia de
+confissão, encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada de
+devota de cidade, d'um beaterio caturra e atormentado; e ao ouvir
+aquella extraordinaria lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
+
+--É estranho, é estranho...
+
+Percebera bem ao principio que tinha diante de si uma d'essas
+degenerações morbidas do sentimento religioso, que a theologia chama
+_Doença dos escrupulos_--e de que na sua generalidade estão affectadas
+hoje todas as almas catholicas; mas depois, a certas revelações da
+velha, receou estar realmente em presença d'uma maniaca perigosa; e
+instinctivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos
+doidos, recuou a cadeira.
+
+Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em que chegára á Ricoça
+(contava ella), ao começar o rosario a Nossa Senhora, lembrára-lhe de
+repente que lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era tão
+efficaz nas dôres das pernas... Trinta e oito vezes de seguida
+recomeçára o rosario, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre
+ella e Nossa Senhora!... Então desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E
+immediatamente sentira dôres vivas nas pernas, e tivera como uma voz de
+dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe
+alfinetes nas pernas...
+
+O abbade pulou:
+
+--Oh, minha senhora!...
+
+--Ai, não é tudo, senhor abbade!
+
+Havia outro peccado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir
+a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na bôca,
+tinha de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera pensando
+que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia d'embrulhada para o estomago
+e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?
+
+O abbade, d'olhar esgazeado, limpava o suor da testa.
+
+Mas isto não era o peor: o grave era, que na noite antecedente estava
+toda socegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier--e de
+repente, nem ella soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco
+Xavier nú em pêllo!
+
+O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim, vendo-a a olhar anciosa
+para elle, á espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:
+
+--E ha muito que sente esses terrores, essas duvidas...?
+
+--Sempre, senhor abbade, sempre!
+
+--E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas
+inquietações?
+
+--Todas as pessoas que conheço, duzias d'amigas, todo o mundo... O
+Inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...
+
+--E que remedio dava a essas anciedades d'alma...?
+
+--Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade, o senhor parocho, o snr.
+Silverio, o snr. Guedes, todos, todos nos tiravam sempre d'embaraços...
+E com uma habilidade, com uma virtude...
+
+O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que
+por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim
+voluntariamente o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo o mundo dos
+fieis n'um terror abjecto do céo, representando Deus e os seus santos
+como uma côrte que não é menos corrompida nem melhor que a de Caligula e
+dos seus libertos.
+
+Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de devota, povoado de
+phantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as
+suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror d'offender
+a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai
+indulgente e amigo... Que é por amor que é necessario servil-o, não por
+medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes,
+o nome de Deus a cahir no estomago, eram perturbações da razão doente.
+Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regimen para ganhar forças. Que
+não se cansasse em orações exageradas...
+
+--E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se e despedindo-se,
+continuaremos a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
+
+--Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha sêccamente.
+
+E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os
+pés, D. Josepha exclamou, toda indignada, quasi choramingando:
+
+--Ai, não presta p'ra nada, não presta p'ra nada!... Não me percebeu...
+É um tapado... É um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n'um
+sacerdote do Senhor...
+
+Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade os peccados medonhos que
+continuava a commetter; e quando elle, por dever, quiz recomeçar a
+educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se
+confessava com o senhor padre Gusmão, não sabia se seria delicado
+receber d'outro a direcção moral...
+
+O abbade fez-se vermelho, respondeu:
+
+--Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza
+n'essas coisas...
+
+Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe
+da saude, de ter fallado do tempo, da estação, das doenças que iam,
+d'alguma festa na igreja,--apressava-se em se despedir e ir para o
+terraço conversar com Amelia.
+
+Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por ella; para Amelia, as
+visitas do abbade eram uma distracção, n'aquella solidão da Ricoça; e
+assim se iam familiarisando, a ponto que nos dias em que elle
+regularmente vinha, Amelia punha um mantelete e ia pelo caminho dos
+Poyaes esperal-o até junto á casa do ferrador. As conversas do abbade,
+fallador incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos da
+rua da Misericordia,--como o espectaculo d'um largo valle com arvores,
+plantações, aguas, pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos
+habituados ás quatro paredes caiadas d'uma trapeira da cidade. Tinha com
+effeito uma d'estas conversações semelhantes aos _jornaes semanaes de
+recreio_, o Thesouro das familias ou as Leituras para serões, em que de
+ha tudo--doutrina moral, historias de viagens, anecdotas dos grandes
+homens, dissertações sobre a lavoura, citação d'uma boa chalaça, traços
+sublimes da vida d'um santo, um verso aqui e além, e até receitas, como
+uma muito util que deu a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem.
+Só era monotono quando fallava da sua familia parochiana, dos
+casamentos, baptisados, doenças, questões, ou quando começava as suas
+historias de caça.
+
+--Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego das Tristes, quando
+uma revoada de perdizes...
+
+Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da _Janota_,
+pontarias fabulosas contadas em mimica, com imitações de vozes de
+passaros, e _pum, pum_ de fusilaria. Ou então eram descripções das
+caçadas selvagens que elle lêra com gula--a caça ao tigre do Nepal, ao
+leão d'Argelia e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a
+imaginação da rapariga para longe, para os paizes exoticos onde a herva
+é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em braza, e entre
+cada ramagem reluzem os olhos d'uma fera... E depois, a proposito de
+tigres e de malaios, lembrava-lhe uma historia curiosa de S. Francisco
+Xavier, e eil-o lançado, o terrivel palrador, na descripção dos feitos
+da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas do cerco de Diu!
+
+Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que o abbade, tendo começado por
+enumerar as vantagens que o conego tiraria de transformar o pomar em
+terra de lavoura, acabára por contar perigos e valores dos missionarios
+da India e do Japão--que Amelia, então em toda a intensidade dos seus
+terrores nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e dos
+sobresaltos que lhe davam.
+
+--Oh, que vergonha! disse o abbade rindo; uma senhora da sua idade ter
+medo de papões...
+
+Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor abbade, contou-lhe
+as vozes que ouvia de noite por detraz da barra da cama.
+
+O abbade pôz-se sério:
+
+--Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar...
+Decerto tem havido prodigios no mundo, mas Deus não se põe assim a
+fallar a qualquer, por detraz das barras das camas, nem permitte ao
+demonio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus peccados são
+grandes, não vêm de detraz da cama, vêm-lhe de si mesmas, da sua
+consciencia... E póde então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e cem
+Gertrudes, e todo o batalhão de infanteria, que as ha de continuar a
+ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessario é
+calmar a consciencia que reclama penitencia e purificação...
+
+Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia sentára-se fatigada
+n'um dos bancos de pedra que alli havia, e ficára a olhar a quinta ao
+longe, os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a eira, e a
+distancia os campos que se succediam planos e avivados do tom humido que
+lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora a tarde estava d'uma placidez
+clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava
+de vivos côr de rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras tão sensatas
+do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado que lhe pesava na
+alma como um penedo se tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da
+penitencia. E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso igual á quietação
+dos campos que se estendiam diante d'ella.
+
+Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou d'ahi a um momento com
+um trinado tão vibrante, tão alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
+
+--É um rouxinol...
+
+--Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o abbade. É um melro... Ahi
+está um que não tem medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que
+enthusiasmo, o maganão!
+
+Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio de melro feliz, que
+dera de repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
+
+E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um passaro contente,
+subitamente, sem razão, n'um d'estes abalos nervosos que vem às mulheres
+hystericas, rompeu a chorar.
+
+--Então, que é isso, que é isso? fez o abbade muito surprehendido.
+
+Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e d'amigo, calmando-a.
+
+--Que infeliz que sou!... murmurou ella aos soluços.
+
+Elle então muito paternal:
+
+--Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem as afflicções, as
+inquietações, uma alma christã tem sempre a consolação á mão... Não ha
+peccado que Deus não perdôe, nem dôr que não calme, lembre-se d'isso...
+O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que a suffoca,
+que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, socegal-a, é procurar-me...
+
+--Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar na protecção
+d'aquelle santo homem.
+
+--Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho horas para consolar... A
+igreja está sempre aberta, Deus está sempre presente...
+
+Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amelia foi á
+residencia; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno
+confessionario de pinho--que o bom abbade por suas mãos pintára d'azul
+escuro, com extraordinarias cabecinhas d'anjos que em logar d'orelhas
+tinham azas, uma obra d'alta arte de que elle fallava com uma secreta
+vaidade.
+
+
+
+
+XXIII
+
+
+O padre Amaro acabára de jantar, e fumava, com os olhos no tecto, para
+não vêr o carão chupado do coadjutor que havia meia hora alli estava,
+immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que cahia no
+silencio da sala como os quartos melancolicos que dá de noite um relogio
+de cathedral.
+
+--O senhor parocho já não é assignante da _Nação_?
+
+--Não senhor, leio o _Popular_.
+
+O coadjutor recahiu no silencio, começando logo a colligir
+laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a emfim, com
+lentidão:
+
+--Não se tornou a saber d'aquelle infame que escreveu o _Communicado_?
+
+--Não senhor, foi para o Brazil.
+
+A criada entrou, n'este momento, dizendo que «estava alli uma pessoa que
+queria fallar ao senhor parocho». Era a sua maneira d'annunciar a
+presença de Dionysia na cozinha.
+
+Havia semanas que ella não apparecia--e Amaro, curioso, sahiu logo da
+sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.
+
+--Grande novidade, senhor parocho! E vim a correr, que é sério. Está cá
+o João Eduardo!
+
+--Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente a fallar d'elle! É
+extraordinario! Olha que coincidencia...
+
+--É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo.
+O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.
+
+--Que Morgadinho?
+
+--O Morgadinho dos Poyaes... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem á
+noite, isso não sei. O que sei é que voltou... E janota, fato novo... Eu
+entendi que devia avisar, porque póde estar certo que elle, mais dia
+menos dia, dá pela Ameliasinha lá na Ricoça... É no caminho p'ra casa do
+Morgado... Que lhe parece?...
+
+--Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que apparece.
+Então por fim não foi para o Brazil?
+
+--Pelos modos, não... Que a sombra d'elle não era, era elle mesmo em
+carne e osso... A sahir da loja do Fernandes por signal, e todo
+peralta... Sempre é bom avisar a rapariga, senhor parocho, que se não vá
+ella plantar de janella...
+
+Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava--e d'ahi a um quarto
+d'hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.
+
+
+Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarello, pintado de
+novo, o largo terraço lateral em linha com o muro do pomar, ornado
+d'espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia emfim,
+depois de tão longas semanas, vêr a sua Ameliasinha! E já se alvoroçava
+á idéa das exclamações apaixonadas com que ella lhe cahiria nos braços.
+
+Ao rez do chão eram as cavallariças, do tempo da familia morgada que
+outr'ora alli habitára, agora abandonadas ás ratazanas e aos tortulhos,
+recebendo a luz por estreitas janellas gradeadas que quasi desappareciam
+sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um immenso pateo escuro,
+onde havia longos annos se acastellava a um canto toda uma montanha de
+pipas vazias; e o lance d'escadaria nobre, que levava aos aposentos, era
+á direita, flanqueado de dois leõesinhos de pedra, benignos e
+somnolentos.
+
+Amaro subiu até um sotão de tecto de carvalho apainelado, sem mobilia,
+com a metade do soalho coberta de feijão sêcco.
+
+E, embaraçado, bateu as palmas.
+
+Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante, toda despenteada e em
+saia branca; deu um gritinho, bateu com a porta--e o parocho sentiu-a
+fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio do
+salão, com o seu guardasol debaixo do braço, pensando na boa
+familiaridade com que entrava na rua da Misericordia--que até pareciam
+as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se
+d'alegria.
+
+Ia bater as palmas outra vez, já quesilado, quando a Gertrudes
+**appareceu**.
+
+--Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho! Ora até que emfim! Minha
+senhora, é o senhor parocho!--gritava, na alegria de vêr emfim uma
+visita querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro da Ricoça.
+
+Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao fundo da casa, um quarto
+enorme, onde, n'um pequeno canapé perdido a um canto, a velha passava os
+dias encolhida no seu chale, com os pés embrulhados n'um cobertor.
+
+--Oh, D. Josepha! Como está? Como está?
+
+Ella não pôde responder, tomada d'um accesso de tosse que lhe dera a
+commoção da visita.
+
+--Como vê, senhor parocho, murmurou emfim muito fraca. Para aqui vou,
+arrastando esta velhice. E vossa senhoria? Porque não tem apparecido?
+
+Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da Sé. E comprehendia
+agora, ao vêr aquella face amarella e cavada, com uma medonha touca de
+rendas negras, que tristes horas Amelia alli devia passar. Perguntou por
+ella; avistára-a de longe, mas ella deitára a fugir...
+
+--É que não estava decente para apparecer, disse a velha. Hoje foi dia
+de barrela.
+
+Amaro quiz então saber em que se entretinham, como passavam os dias
+n'aquella solidão...
+
+--Eu para aqui estou. A pequena para ahi anda.
+
+Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma fadiga e a sua ronqueira
+crescia.
+
+--Então não se tem dado bem com a mudança, minha senhora?
+
+Ella disse que não, n'um movimento de cabeça.
+
+--Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes que ficára de pé, ao
+lado do canapé, gozando a presença do senhor parocho.--Deixe fallar... É
+que a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os dias, dá o seu
+passeinho até á sala, come a sua azita de frango... Temol-a aqui,
+temol-a arribada... É o que diz o senhor abbade Ferrão, a saude foge a
+toda a brida e para voltar vem a passo...
+
+A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate, com o seu antigo
+robe-de-chambre de merino rôxo, o cabello arranjado á pressa.
+
+--Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de
+balburdia...
+
+Elle apertou-lhe a mão gravemente: e ficaram calados, como se estivessem
+separados pela distancia d'um deserto. Ella não tirava os olhos do chão,
+enrolando com a mão tremula uma ponta da manta de lã que trazia solta
+pelos hombros. Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com
+uma ruga de velhice aos cantos da bôca. Para romper aquelle silencio
+estranho, perguntou-lhe tambem se se dava bem...
+
+--Para aqui vou indo... É um pouco triste isto. É como diz o senhor
+abbade Ferrão, é muito grande para a gente se sentir em familia.
+
+--Ninguem veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar
+as palpebras, com uma voz sêcca que perdera toda a fadiga.
+
+Amelia baixou a cabeça, fazendo-se pallida.
+
+Amaro então, comprehendendo n'um relance que a velha torturava Amelia,
+disse com muita severidade:
+
+--É verdade, não foi para se divertirem... Mas tambem não foi para se
+entristecerem de proposito... Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos
+outros a vida negra, é uma falta horrivel de caridade; não ha peccado
+peor aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal
+pratica...
+
+A velha rompeu a choramingar, muito excitada:
+
+--Ai, o que Deus me guardou para os ultimos annos da vida...
+
+Gertrudes amimou-a. Então, senhora, que até lhe fazia peor estar a
+affligir-se assim... Ora o disparate! Tudo se havia de remediar com a
+ajuda de Deus. Saude não havia de faltar, nem alegria...
+
+Amelia chegára-se á janella, decerto para esconder tambem as lagrimas
+que lhe saltavam dos olhos. E o parocho, consternado com a scena,
+começou a dizer que D. Josepha não estava supportando com a verdadeira
+resignação d'uma christã aquelles dias de doença... Nada escandalisava
+mais Nosso Senhor que vêr as creaturas revoltarem-se contra as dôres ou
+os encargos que elle mandava... Era insultar a justiça dos seus
+decretos...
+
+--Tem razão, senhor parocho, tem razão, murmurou a velha muito contrita.
+Eu ás vezes nem sei o que digo... São coisas da doença.
+
+--Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e tratar de vêr tudo côr de
+rosa. É o sentimento que Deus mais aprecia. Eu comprehendo que é duro,
+estar para aqui enterrada...
+
+--É o que diz o senhor abbade Ferrão, acudiu Amelia voltando da janella,
+a madrinha estranha... Assim arrancada aos habitos de tantos annos...
+
+Notando então a citação repetida das palavras do abbade Ferrão, Amaro
+perguntou se elle costumava vir vêl-as...
+
+--Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia. Vem quasi todos os
+dias.
+
+--É um santo! exclamou a Gertrudes.
+
+--Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente d'um enthusiasmo tão
+vivo. Pessoa de muita virtude...
+
+--De muita virtude, suspirou a velha. Mas...--Calou-se, não ousando
+decerto exprimir as suas reservas de devota.--E exclamou n'uma
+supplica:--Ai, o senhor parocho é que devia vir por aqui, ajudar-me a
+levar esta cruz da doença...
+
+--Hei de vir, minha senhora, hei de vir. É bom para a distrahir, para
+lhe dar as noticias... E a proposito, tive hontem carta do nosso conego.
+
+Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da carta. O padre-mestre já
+tinha quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passára
+doente com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes
+passeatas a vêr recolher as rêdes. A S. Joanneira, boa, mas fallando
+sempre na filha...
+
+--Pobre mamã... choramingou Amelia.
+
+Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua
+ronqueira. Foi Amelia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo senhor
+padre Natario, pelo senhor padre Silverio...
+
+Ia escurecendo já: a Gertrudes fôra preparar o candieiro. Amaro emfim
+ergueu-se:
+
+--Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei de apparecer
+de vez em quando. E nada d'affligir... Agasalho, boa dieta, e a
+misericordia de Deus não a ha de abandonar...
+
+--Não nos falte, senhor parocho, não nos falte!...
+
+Amelia estendera-lhe a mão, para se despedir alli no quarto; mas Amaro
+gracejando:
+
+--Se não lhe causa incommodo, menina Amelia, sempre é bom vir mostrar-me
+o caminho, que eu perco-me n'este casarão.
+
+Sahiram ambos. E apenas no salão, a que as tres largas vidraças davam
+ainda uma claridade:
+
+--A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.
+
+--Que mereço eu mais? respondeu ella baixando os olhos.
+
+--Desavergonhada, eu lh'as cantarei!... Minha Ameliasinha, se soubesses
+o que me tem custado...
+
+E fallando, ia abraçal-a pelo pescoço.
+
+Mas ella recuou, toda perturbada.
+
+--Que é isso? fez Amaro assombrado.
+
+--O quê?
+
+--Esse modo! Tu não me queres dar um beijo, Amelia? Tu estás doida?
+
+Ella ergueu as mãos para elle, n'uma supplicação anciosa, fallando toda
+tremula:
+
+--Não, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que
+peccamos... Quero morrer na graça de Deus... Que nunca mais se falle em
+semelhante coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se... Agora o que quero
+é o socego de minha alma...
+
+--Tu estás tola! Quem te metteu isso na cabeça? Ouve cá...
+
+Foi para ella outra vez, com os braços abertos.
+
+--Não me toque, pelo amor de Deus,--e vivamente recuou até á porta.
+
+Elle olhou-a um momento, n'uma cólera muda.
+
+--Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero prevenil-a que
+o João Eduardo voltou, que passa aqui todos os dias, e que é bom não se
+pôr de janella.
+
+--Que me importa a mim o João Eduardo e os outros e tudo o que
+passou?...
+
+Elle acudiu, trasbordando d'um sarcasmo amargo:
+
+--Está claro, agora o grande homem é o senhor abbade Ferrão!
+
+--Devo-lhe muito, é o que sei...
+
+A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro accêso. E Amaro, sem
+se despedir d'Amelia, abalou, de guardachuva em riste, rilhando os
+dentes de raiva.
+
+
+Mas a longa caminhada até á cidade calmou-o. Aquillo na rapariga por fim
+era apenas um accesso de virtude e d'escrupulos! Vira-se alli só
+n'aquelle casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos palavrões
+do moralista Ferrão, longe d'elle, e tinha-lhe vindo aquella reacção de
+devota com os seus terrores do outro-mundo e appetites de innocencia...
+Chalaça! Se elle começasse a ir á Ricoça, n'uma semana reganhava todo o
+seu dominio... Ah, conhecia-a bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o
+olho... Estava logo rendida.
+
+Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro
+dia á uma hora marchou para a Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.
+
+A velha ficou toda contente ao vêl-o. É que lhe dava saude a presença do
+senhor parocho! E se não fosse a distancia havia de lhe pedir a esmola
+de vir todas as manhãs. Até depois d'aquella visitinha rezava com mais
+fervor...
+
+Amaro sorria, distrahido, com os olhos cravados na porta.
+
+--E a menina Amelia? perguntou por fim.
+
+--Sahiu... Isso agora todas as manhãs é a passeata, disse a velha com
+azedume. Vai á residencia, é tôda do abbade...
+
+--Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova devoção, hein?... é pessoa
+de muitos meritos, o abbade.
+
+--Ai, não presta, não presta! exclamou D. Josepha. Não me percebe. Tem
+idéas muito exquisitas. Não dá virtude...
+
+--Homem de livros... disse Amaro.
+
+Mas a velha erguera-se sobre o cotovêlo, e baixando a voz, com o magro
+carão accêso em odio:
+
+--E aqui p'ra nós, a Amelia tem-se portado muito mal! Nunca lh'o hei de
+perdoar... Confessou-se ao abbade... É uma indelicadeza, sendo a
+confessada do senhor parocho, não tendo recebido de vossa senhoria senão
+favores... É uma ingrata, é uma traiçoeira!...
+
+Amaro fizera-se pallido.
+
+--Que me diz a senhora?
+
+--A verdade! Que ella não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, é uma
+perdida! Depois do favor que lhe estamos a fazer...
+
+Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessario não
+exagerar... Não havia ingratidão. Era uma questão de fé. Se a rapariga
+pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir com
+elle... O que todos queriam é que ella salvasse a sua alma... Que fosse
+pela direcção de fulano ou sicrano, isso não importava... E nas mãos do
+abbade estava bem.
+
+E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:
+
+--E então agora, todas as manhãs vai à residencia?
+
+--Quasi todas... Que ella não ha de tardar, vai depois d'almoço, volta
+sempre a esta hora... Ai, tem-me causado isto um desgosto!...
+
+Amaro deu um passeiosinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mão á
+velha:
+
+--Pois minha senhora, eu não me posso demorar, que vim de fugida... Até
+um dia cedo.
+
+E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade que ficasse para
+jantar---desceu os degraus como uma pedra que rola, metteu furioso pelo
+caminho da residencia, ainda com o seu ramo na mão.
+
+Esperava encontrar Amelia na estrada; e não tardou em a avistar quasi ao
+pé da casa do ferreiro, agachada ao pé do vallado, apanhando
+sentimentalmente florinhas silvestres.
+
+--Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto d'ella.
+
+Ella ergueu-se, com um gritinho.
+
+--Que fazes tu aqui!? repetiu.
+
+Áquelle _tu_, e áquella voz colerica, ella poz rapidamente um dedo na
+bôca, assustada. O senhor abbade estava dentro da casa com o ferreiro...
+
+--Ouve lá, disse Amaro com os olhos chammejantes, agarrando-lhe o
+braço--tu confessaste-te ao abbade?...
+
+--P'ra que quer saber? Confessei... Não é vergonha nenhuma...
+
+--Mas confessaste _tudo, tudo_? perguntou elle com os dentes cerrados de
+raiva.
+
+Ella perturbou-se, e tratando-o ainda por _tu_:
+
+--Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior peccado
+n'este mundo, esconder alguma coisa ao confessor!
+
+--Bebeda! rugiu Amaro.
+
+Os seus olhos devoravam-na. E, através da nevoa de cólera que lhe enchia
+o cerebro e lhe fazia latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita,
+com umas redondezas em todo o corpo que ardia por abraçar, com uns
+labios vermelhos avivados pelo largo ar do campo que elle queria morder
+até ao sangue.
+
+--Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal do desejo. Ouve...
+Acabou-se, não me importa. Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas has
+de ser a mesma para mim!
+
+--Não, não! disse ella com força, desprendendo-se, prompta a fugir para
+casa do ferreiro.
+
+--Tu m'as pagarás, maldita!--rosnou o padre por entre dentes, voltando
+as costas, descendo o caminho com passadas de desesperado.
+
+E não abrandou o passo até á cidade, levado de um impulso d'indignação
+que, sob aquella dôce paz d'um meio d'outono, lhe suggeria planos de
+vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mão. Mas
+ahi, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua
+impotencia. Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ella
+estava gravida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava amigada com
+o abbade Ferrão? Era absurdo: um velho de quasi setenta annos, d'uma
+fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa... Mas
+perdel-a, não tornar a ter nos braços aquelle corpo de neve, não ouvir
+mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para
+alguma coisa de melhor que o céo... Isso não!
+
+E era possivel que ella, em seis ou sete semanas, tivesse assim
+esquecido tudo? N'aquellas longas noites na Ricoça, só na cama, não lhe
+viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto:
+elle sabia-o da experiencia de tantas confessadas que lhe tinham
+revelado afflictas a tentação muda e teimosa que não deixa a carne que
+uma vez peccou...
+
+Não: devia perseguil-a, e por todos os modos soprar-lhe aquelle desejo
+que agora ardia n'elle mais alto e mais ruidoso.
+
+Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis paginas, absurda, cheia
+d'implorações apaixonadas, de argucias mysticas, de pontos d'exclamação
+e de ameaças de suicidio...
+
+Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta veio só á noite,
+por um rapazito da quinta. Com que sofreguidão rasgou o sobrescripto!
+Eram apenas estas palavras: «Peço-lhe que me deixe em paz com os meus
+peccados.»
+
+Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amelia
+achava-se no quarto de D. Josepha, quando elle appareceu. Fez-se muito
+pallida; mas os seus olhos não deixaram a costura--durante a meia hora
+que elle alli ficou, ora n'um silencio sombrio acabrunhado para o fundo
+da poltrona, ora respondendo distrahidamente á tagarellice da velha,
+muito falladora essa manhã.
+
+E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se
+rapidamente no quarto: só vinha, se a velha mandava a Gertrudes
+dizer-lhe «que estava alli o senhor o parocho que a queria vêr». Ia
+então, estendia-lhe a mão, que elle achava sempre a escaldar--e tomando
+a sua eterna costura, junto da janella, ia picando o posponto com uma
+taciturnidade que desesperava o padre.
+
+Tinha-lhe escripto outra carta. Ella não respondera.
+
+Então jurava não voltar á Ricoça, desprezal-a,--mas depois de ter
+passado a noite, rolando-se pela cama sem poder dormir, com a mesma
+visão da nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro, lá partia de
+manhã para a Ricoça, córando quando o apontador das obras na estrada,
+que o via passar todos os dias, lhe tirava o seu boné d'oleado.
+
+N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casarão, dera com o abbade
+Ferrão que á porta abria o seu guardachuva.
+
+--Olá, por aqui, senhor abbade! disse elle.
+
+O abbade respondeu naturalmente:
+
+--Em vossa senhoria é que não ha que estranhar, que vem por aqui todos
+os dias...
+
+Amaro não se conteve; e tremendo de cólera:
+
+--E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho ou não? A casa é sua?
+
+Aquella brutalidade tão injustificavel offendeu o abbade:
+
+--Pois era melhor para todos que não viesse...
+
+--E porque, senhor abbade? e porque?--gritou Amaro, perdido.
+
+Então o bom homem estremeceu. Commettera, alli, a culpa mais grave do
+sacerdote catholico: o que sabia d'Amaro, dos seus amores, era em
+segredo de confissão; e era trahir o mysterio do sacramento, mostrar que
+desapprovava aquella insistencia no peccado. Tirou muito baixo o seu
+chapéo e disse humildemente:
+
+--Tem vossa senhoria razão. Peço perdão do que disse, sem reflectir.
+Muito boas tardes, senhor parocho.
+
+--Muito boas tardes, senhor abbade.
+
+Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia
+forte agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amelia, em
+que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o
+d'accusações--sobretudo de lhe trahir indirectamente o segredo da
+confissão. Como das outras, d'esta carta não veio resposta da Ricoça.
+
+Então Amaro começou a acreditar que tanta resistencia não podia vir só
+do arrependimento e do terror do inferno... «Alli ha homem», pensou. E
+devorado d'um ciume negro principiou a rondar de noite a Ricoça; mas não
+viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma occasião,
+porém, ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que
+desce dos Poyaes uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos _Dois
+mundos_, e um ponto brilhante de charuto accêso adiantar-se na
+escuridão. Assustado, refugiou-se n'um casebre que desmantelava em
+ruinas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando,
+viu então um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta claro, parado,
+contemplando as janellas da Ricoça. Um furor de ciume apossou-se d'elle,
+e ia saltar e atacar o homem--quando o viu seguir tranquillamente ao
+comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:
+
+
+Ouves ao longe retumbar na serra
+O som do bronze que nos causa horror...
+
+
+Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo.
+Mas teve a certeza que se um homem fallava de noite a Amelia ou entrava
+na quinta--não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser
+descoberto, não tornou a rondar o casarão.
+
+
+Era com effeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia
+ou de noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que
+_ella_ habitava. Porque apesar de tantas desillusões, Amelia permanecera
+para o pobre rapaz a _ella_, a bem amada, a coisa mais preciosa da
+terra. Nem em Ourem, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errára,
+nem em Lisboa onde chegára como vem á praia uma quilha de barco
+naufragado, deixára um momento de a ter presente na alma e de se
+enternecer com as saudades d'ella. Durante esses dias tão amargos de
+Lisboa, os peores da sua vida, em que fôra fiel de feitos d'um cartorio
+obscuro, perdido n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastidão d'uma
+Roma ou d'uma Babylonia e em que sentia o duro egoismo das multidões
+azafamadas, esforçava-se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe
+dava como a doçura d'uma companhia. Achava-se menos isolado, tendo
+sempre no espirito aquella imagem com quem travava dialogos imaginados,
+nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do Sodré, accusando-a das
+tristezas que o envelheciam.
+
+E esta paixão, sendo para elle como a indefinida justificação das suas
+miserias, tornava-o aos seus proprios olhos interessante. Era «um martyr
+de amor»; isto consolava-o, como o consolára nas suas primeiras
+desesperações considerar-se «uma victima das perseguições religiosas».
+Não era um pobre diabo banal a quem o acaso, a preguiça, a falta
+d'amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas
+privações da dependencia: era um homem de grande coração, a quem uma
+catastrophe em parte amorosa e em parte politica, um drama domestico e
+social, forçára assim, depois de luctas heroicas, a viajar d'um a outro
+cartorio com um sacco de lustrina cheio d'autos. O destino tornára-o
+igual a tantos heroes que lera nas novellas sentimentaes... E o seu
+paletot coçado, os seus jantares a quatro vintens, os dias em que não
+tinha dinheiro para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia e á
+perseguição d'uma classe poderosa, dando assim, por um instincto muito
+humano, uma origem grandiosa ás suas miserias triviaes... Quando via
+passar os que elle chamava os _felizes_--individuos batendo tipoia,
+rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo braço, gente bem
+atabafada que se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgraçado
+pensando que tambem elle possuia um grande luxo interior que era aquelle
+amor infeliz. E quando emfim por um acaso obteve a certeza d'um emprego
+no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua aventura banal
+d'emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares,
+exilado do seu paiz por uma tyrannia combinada de padres e auctoridades
+e por ter amado uma mulher!
+
+Quem lhe diria então, ao emmalar o seu fato no bahú de lata, que d'ahi a
+semanas estaria outra vez a meia legua d'esses padres e d'essas
+auctoridades, contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! Fôra aquelle
+singular Morgadinho de Poyaes,--que não era nem Morgadinho nem de
+Poyaes, e apenas um ricaço excentrico de ao pé d'Alcobaça que comprára
+aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e que com a posse da
+terra recebia do povo da freguezia a honra do titulo: fôra esse santo
+cavalheiro que o livrára dos enjôos no paquete e dos acasos da
+emigração. Encontrára-o casualmente no cartorio onde elle ainda
+trabalhava nas vesperas da viagem. O Morgadinho, cliente do velho Nunes,
+conhecia-lhe a historia, a façanha do _Communicado_, o escandalo no
+largo da Sé; e já de ha muito concebera por elle uma sympathia ardente.
+
+O Morgadinho tinha com effeito por padres um odio maniaco, a ponto de
+não lêr no jornal a noticia d'um crime, sem decidir (ainda mesmo quando
+o culpado estava já sentenciado) que «no fundo devia d'haver na historia
+um sotaina». Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe
+dera sua primeira mulher, devota celebre d'Alcobaça. Apenas viu João
+Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima, teve immediatamente a idéa
+de o trazer para Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a
+educação das primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto
+estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava de resto João
+Eduardo um impio; e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar os
+rapazitos n'um «atheismo desbragado». João Eduardo aceitou, com as
+lagrimas nos olhos: era um salario magnifico que lhe vinha, uma posição,
+uma familia, uma rehabilitação estrondosa...
+
+--Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o que faz por mim!...
+
+--É p'ra meu gosto proprio!... É p'ra arreliar a canalha! E partimos
+ámanhã!
+
+Em Chão de Maçãs, apenas desceu do wagon, exclamou logo para o chefe da
+estação que não conhecia João Eduardo, nem a sua historia:
+
+--Cá o trago, cá o trago em triumpho! Vem p'ra quebrar a cara a toda a
+padraria... E se houver custas a pagar, sou eu que as pago!
+
+O chefe da estação não estranhou--porque o Morgadinho passava no
+districto por maluco.
+
+Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua chegada, que João Eduardo
+soube que Amelia e D. Josepha estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abbade
+Ferrão, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava, e que recebia em
+casa, não como padre, mas como cavalheiro.
+
+--Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferrão, costumava elle dizer, mas
+como padre abomino-o!
+
+E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquella ferocidade d'impio
+obtuso, havia um santo coração, um pai-de-pobres na freguezia...
+
+O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios, questionador
+incansavel; ás vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre historia,
+botanica, systemas de caça... Quando o abbade, no fogo da controversia,
+punha d'alto alguma opinião contraria:
+
+--O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava,
+empinando-se, o Morgado.
+
+--Como cavalheiro, senhor Morgado.
+
+--Então aceito a objecção. É sensata. Mas se fosse como padre,
+quebrava-lhe os ossos.
+
+Ás vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe João Eduardo, batendo
+d'alto no hombro do rapaz, n'uma caricia de amador, como um cavallo
+favorito:
+
+--Veja-me isto! Já ia dando cabo d'um. E ainda ha de matar dois ou
+tres... E se o prenderem hei de eu livral-o da forca!
+
+--Isso não é difficil, senhor Morgado, dizia o abbade tomando
+tranquillamente a sua pitada. Que já não ha forcas em Portugal...
+
+Então era uma indignação do Morgado. Não havia forcas? E porque não?
+Porque tinhamos um governo livre e um rei constitucional! Que se se
+seguisse a vontade dos padres, havia uma forca em cada praça e uma
+fogueira em cada esquina!
+
+--Diga-me uma coisa, snr. Ferrão, o senhor vem defender aqui em minha
+casa a inquisição?
+
+--Oh, senhor Morgado, eu nem sequer fallei da inquisição...
+
+--Não fallou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma
+faca no estomago!
+
+E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as
+abas prodigiosas do seu robe-de-chambre amarello.
+
+--No fundo um anjo, diria o abbade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa
+mesmo a um padre, se o soubesse em necessidade... E vossê aqui está bem,
+João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...
+
+Tinha tomado affeição a João Eduardo, o abbade Ferrão: e sabendo por
+Amelia a famosa legenda do _Communicado_ quizera, segundo a sua
+expressão querida, «folhear o homem aqui e além». Conversára com elle
+tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residencia onde João
+Eduardo se ia fornecer de livros; e sob o «exterminador de padres», como
+dizia o Morgado, encontrára um pobre moço sensivel, com uma religião
+sentimental, ambições de paz domestica, e prezando muito o trabalho.
+Então viera-lhe uma idéa que, sobretudo por lhe ter acudido um dia que
+sahia das suas devoções ao Santissimo, lhe pareceu descida de cima, da
+vontade do Senhor: era o casal-o com Amelia. Não seria difficil levar
+aquelle coração fraco e terno a perdoar o erro d'ella; e a pobre
+rapariga, depois de tantos transes, extincta aquella paixão que lhe
+entrára na alma como um sôpro do Demonio, levando-lhe a vontade, a paz e
+o pudor d'empurrão para o abysmo, encontraria na companhia de João
+Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave
+d'interior, refugio dôce e purificação do passado. Não fallou nem a um,
+nem a outro, n'esta idéa que o enternecia. Não era o momento agora, que
+ella trazia nas entranhas o filho do _outro_. Mas ia preparando com amor
+aquelle resultado,--sobretudo quando estava com Amelia, contando-lhe as
+suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que elle
+tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo na
+educação dos Morgaditos.
+
+--É um bom rapaz, dizia. Homem de familia... D'estes a quem uma mulher
+póde realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse
+ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...
+
+Amelia não respondia, córando.
+
+Já não podia objectar áquelles elogios persuasivos a antiga, a grande
+objecção--o _Communicado_, a impiedade! O abbade Ferrão destruira-lh'a
+um dia, com uma palavra:
+
+--Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu contra os
+sacerdotes, escreveu contra os phariseus!
+
+E para attenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera
+havia muitos annos, acrescentou:
+
+--Emfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com
+lagrimas, e com fome.
+
+E isto enternecia Amelia.
+
+
+Fôra tambem por esse tempo que o doutor Gouvéa começára a vir á Ricoça,
+porque D. Josepha tinha peorado com os dias mais frios do outono.
+Amelia, ao principio, á hora da visita, fechava-se no seu quarto,
+tremendo á idéa de vêr o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouvêa,
+o medico da casa, aquelle homem d'uma severidade legendaria. Mas emfim
+fôra necessario apparecer no quarto da velha, para receber as suas
+instrucções de enfermeira sobre as horas dos remedios e as dietas. E um
+dia que acompanhára o doutor até á porta, ficou gelada, vendo-o parar,
+voltar-se para ella cofiando a sua grande barba branca que lhe cahia
+sobre o jaquetão de velludo, e dizer-lhe sorrindo:
+
+--Eu bem tinha dito a tua mãi que te casasse!
+
+Duas lagrimas saltaram-lhe dos olhos.
+
+--Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A
+natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula
+administrativa...
+
+Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as duas lagrimas muito
+redondinhas a correrem-lhe devagar pela face. Elle bateu-lhe com os
+dedos no queixo, muito paternal:
+
+--Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me. Acho que te tornaste
+util á ordem geral das coisas. Vamos ao que importa...
+
+Deu-lhe então conselhos sobre a hygiene que devia ter.
+
+--E quando chegar a occasião, se te vires atrapalhada, manda-me
+chamar...
+
+Ia descer; Amelia deteve-o, e com uma supplicação assustada:
+
+--Mas o senhor doutor não vai dizer nada na cidade...
+
+O doutor Gouvéa parou:
+
+--Então não é estupida?... Está bom, tambem t'o perdôo. Está na logica
+do teu temperamento. Não, não digo nada, rapariga. Mas p'ra que diabo,
+então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz
+como o outro, e já não tinhas de pedir segredo... Emfim, isso para mim é
+um detalhe secundario... O essencial é o que te disse... Manda-me
+chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais d'isso que
+Santa Brigida ou lá quem é. Que tu és forte, e has de dar um bom mocetão
+ao Estado.
+
+Todas estas palavras que em parte não comprehendera bem, mas em que
+sentia uma vaga justificação e uma bondade d'avô indulgente, sobretudo
+aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que as barbas grisalhas
+do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar d'infallibilidade,
+reconfortaram-na, augmentaram a serenidade que havia semanas gozava,
+desde a sua confissão desesperada na capella dos Poyaes.
+
+Ah, fôra decerto Nossa Senhora, compadecida emfim dos seus tormentos,
+que lhe mandára do céo aquella inspiração de se ir entregar toda dorida
+aos cuidados do abbade Ferrão! Parecia-lhe que deixára lá, no seu
+confessionario azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra
+farrapagem de remorso que lhe abafava a alma. A cada uma das suas
+consolações tão persuasivas sentira desapparecer o negrume que lhe
+tapava o céo: agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não
+desviava o rosto indignado. É que era tão differente aquella maneira de
+confessar do abbade! Os seus modos não eram os do representante rigido
+d'um Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino e de
+maternal que passava na alma como uma caricia; em logar de lhe erguer
+diante dos olhos o sinistro scenario das chammas do Inferno,
+mostrára-lhe um vasto céo misericordioso com as portas largamente
+abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão faceis e tão
+dôces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tental-os.
+Deus apparecia, n'aquella suave interpretação da outra vida, como um bom
+bisavô risonho; Nossa Senhora era uma irmã de caridade; os santos,
+camaradas hospitaleiros! Era uma religião amavel, toda banhada de graça,
+em que uma lagrima pura basta para remir uma existencia de peccado. Que
+differente da soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada e
+tremula! Tão differente--como aquella pequena capella d'aldeia da vasta
+massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de
+covados separavam da vida humana e natural: tudo era escuridão,
+melancolia, penitencia, faces severas d'imagens; nada do que faz a
+alegria do mundo alli entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o
+ar largo dos prados, nem os risos dos labios vivos; alguma flôr que
+havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não
+deixar passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que
+havia vinha dos lampadarios funebres. E alli, na capellita dos Poyaes,
+que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas
+penetrava a aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos brincando
+faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um
+pomar; pardaes atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestaes das
+cruzes; ás vezes um boi grave mettia o focinho pela porta com a antiga
+familiaridade do curral de Belem, ou uma ovelha tresmalhada vinha
+regosijar-se de vêr um da sua raça, o Cordeiro Paschal, dormir
+regaladamente ao fundo do altar com a santa cruz entre as patas.
+
+Além d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera, «não queria
+impossiveis». Sabia bem que ella não podia arrancar n'um momento aquelle
+amor culpado, que ganhára raizes até ás profundezas do seu sêr. Queria
+apenas que quando a assaltasse a idéa de Amaro se abrigasse logo na idéa
+de Jesus. Com a força colossal de Satanaz, que tem o poder d'um
+Hercules, uma pobre rapariga não póde luctar braço a braço: póde sómente
+refugiar-se na oração quando o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e
+espumar em torno d'esse asylo impenetravel. Elle mesmo cada dia a ia
+ajudando n'aquella repurificação da alma, com uma solicitude de
+enfermeiro: fôra elle que lhe marcára, como um ensaiador n'um theatro, a
+attitude que devia ter na primeira visita de Amaro á Ricoça; era elle
+que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial, se
+a via vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se a noite fôra
+agitada das lembranças calidas dos prazeres passados, era durante toda a
+manhã uma boa palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava
+familiarmente que o céo lhe daria alegrias maiores que o quarto
+enxovalhado do sineiro. Chegára, com uma subtileza de theologo, a
+demonstrar-lhe que no amor do parocho não havia senão brutalidade e
+furor bestial; que, dôce como era o amor do homem, o amor do padre só
+podia ser uma explosão momentanea do desejo comprimido; quando tinham
+começado as cartas do parocho, analysára-lh'as phrase a phrase,
+revelando-lhe o que ellas continham de hypocrisia, de egoismo, de
+rhetorica, e de desejo torpe...
+
+Ia-a assim lentamente desgostando do parocho. Mas não a desgostava do
+amor legitimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ella era
+toda de carne e de desejos, e que lançal-a violentamente no mysticismo
+seria apenas torcer-lhe um momento o instincto natural e não crear-lhe
+uma paz duradoura. Não tentava arrancal-a bruscamente á realidade
+humana; elle não a queria para freira; só desejava que aquella força
+amante que sentia n'ella servisse á alegria d'um esposo e á util
+harmonia d'uma familia, e não se gastasse erradamente em concubinagens
+casuaes... No fundo, o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma de
+sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os
+interesses egoistas do amor individual, e se désse, como irmã da
+caridade, como enfermeira d'um recolhimento, ao amor mais largo de toda
+a humanidade. Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito bonita e muito
+fraca; não seria prudente assustal-a com sacrificios tão altos; era toda
+mulher--toda mulher devia ficar; limitar-lhe a acção era estragar-lhe a
+utilidade. Christo não lhe bastava com os seus membros ídeaes pregados
+na cruz: era-lhe necessario um homem como todos, de bigode e chapéo
+alto. Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob a legitimação
+sacramental...
+
+Assim a ia curando d'aquella paixão morbida com uma direcção de todos os
+dias, uma d'estas persistencias de missionario que só dá a fé sincera,
+pondo a subtileza d'um casuista ao serviço da moralidade d'um
+philosopho, paternal e habil--uma cura maravilhosa de que o bom abbade
+em segredo tirava alguma vaidade.
+
+E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu que emfim a paixão por
+Amaro já não era na alma d'ella um sentimento vivo; mas estava morto,
+embalsamado, arrumado no fundo da sua memoria como n'um jazigo,
+escondido já sob a delicada florescencia d'uma virtude nova. Assim
+julgava pelo menos o bom Ferrão--vendo-a agora alludir ao passado com o
+olhar tranquillo, sem aquelles rubores que outr'ora lhe escaldavam a
+face ao simples nome de Amaro.
+
+Ella, com effeito, já não pensava no senhor parocho com a commoção
+d'outr'ora: o terror do peccado, a influencia penetrante do abbade,
+aquella brusca separação do meio devoto em que o seu amor se
+desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade maior, sem sustos
+nocturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrêra para que o
+fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo a alguma braza que
+rebrilhava surdamente. O parocho estivera ao principio na sua alma com o
+prestigio d'um idolo coberto d'oiro; mas tantas vezes, desde a sua
+gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento
+hysterico, aquelle idolo, que todo o dourado lhe ficára nas mãos, e a
+fórma trivial e escura que apparecia por baixo já não a deslumbrava; viu
+por isso o abbade derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar.
+Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa
+do sineiro; mas o que a tentava ainda era o prazer e não o parocho.
+
+E com a sua natureza de boa rapariga tinha um reconhecimento sincero
+pelo abbade. Como dissera a Amaro n'aquella tarde, «devia-lhe tudo». Era
+o que sentia agora tambem pelo doutor Gouvêa, que vinha regularmente vêr
+a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás
+que o céo lhe mandava--um que lhe promettia a saude, outro a graça.
+
+Refugiada n'aquellas duas protecções, gozou uma paz adoravel nas ultimas
+semanas de outubro. Os dias iam muito serenos e muito tepidos. Era bom
+estar no terraço, pelas tardes, n'aquella serenidade outonal dos campos.
+O doutor Gouvêa ás vezes encontrava-se com o abbade Ferrão; ambos se
+estimavam; depois da visita á velha, iam para o terraço, e começavam
+logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.
+
+Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo os seus dois amigos
+ao pé, aquelles dois colossos de sciencia e de santidade, abandonava-se
+ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as arvores já
+empallideciam. Pensava no futuro; elle apparecia-lhe agora facil e
+seguro; era forte, e o parto, com a presença do doutor, seria apenas uma
+hora de dôres; depois, livre d'aquella complicação, voltaria para a
+cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das
+conversas constantes do abbade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na
+imaginação. Porque não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e
+perdoasse!... Elle nunca lhe repugnára como homem, e seria um casamento
+esplendido agora que elle tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que João
+Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos
+Poyaes, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma
+campainha, servida por um escudeiro de libré... Ficava muito tempo
+immovel, banhada na doçura d'esta perspectiva, emquanto o abbade e o
+doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da
+Consciencia, e monotonamente a agua das regas murmurava no pomar.
+
+Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de não vêr apparecer o
+senhor parocho, mandára expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua
+senhoria a esmola d'uma visita. O homem voltára com a espantosa noticia
+de que o senhor parocho partira para a Vieira, e não viria senão d'ahi a
+duas semanas. A velha choramingou de desgosto. E Amelia, n'essa noite,
+no seu quarto, não pôde adormecer--na irritação que lhe dava aquella
+idéa do senhor parocho a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella
+decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de serão em
+serão...
+
+
+Com a primeira semana de novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia
+agora mais lugubre n'aquelles dias curtos, banhados d'agua, sob um céo
+de tempestade. O abbade Ferrão, tolhido de rheumatismo, já não apparecia
+na quinta. O doutor Gouvêa, depois da visita de meia hora, abalava no
+seu velho _cabriolet_. A unica distracção de Amelia era estar á janella
+por dentro dos vidros: tres vezes vira passar João Eduardo na estrada;
+mas elle ao avistal-a baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o
+guardachuva.
+
+A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia ser a parteira, apesar do
+doutor Gouvêa ter aconselhado a Michaela, matrona d'uma experiencia de
+trinta annos. Mas Amelia «não queria mais gente no segredo», e além
+d'isso Dionysia trazia-lhe as noticias d'Amaro, que ella sabia pela
+cozinheira. O senhor parocho tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia
+demorar até dezembro. Aquelle «procedimento infame» indignava-a: não
+duvidava que o parocho queria estar longe quando chegassem os transes,
+os perigos do parto. Além d'isso era decidido d'ha muito que a criança
+havia de ser entregue a uma ama de ao pé de Ourem, que a criaria na
+aldeia: e agora o tempo chegava, e a ama não estava fallada, e o senhor
+parocho apanhava conchinhas á beira-mar!...
+
+--É indecente, Dionysia, exclamava Amelia furiosa.
+
+--Ah! não me parece bem, não. Que eu podia fallar á ama... Mas bem vê,
+são coisas muito sérias... O senhor parocho é que se encarregou de
+tudo...
+
+--É infame!
+
+Além d'isso ella descuidára-se do enxoval--e alli estava na vespera de
+ter a criança, sem um trapo para a cobrir, sem dinheiro para lh'o
+comprar! A Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas peças de enxoval,
+que uma mulher que ella tivera em casa lhe deixára empenhadas. Mas
+Amelia recusára-se a que o seu filho usasse cueiros alheios,
+trazendo-lhe talvez um contagio de doença ou uma sorte infeliz.
+
+E por orgulho não queria escrever a Amaro.
+
+Além d'isso as impertinencias da velha tornavam-se odiosas. A pobre D.
+Josepha, privada dos auxilios devotos d'um padre, um verdadeiro padre
+(não um abbade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas
+as audacias de Satanaz: a visão singular que tivera de S. Francisco
+Xavier nú, repetia-se agora com uma insistencia pavorosa a respeito de
+todos os santos: era toda uma côrte do céo, arrojando tunicas e habitos,
+e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pêllo: e a velha estava
+morrendo da perseguição d'estes espectaculos dispostos pelo demonio.
+Reclamára o padre Silverio, mas parecia que um rheumatismo geral tolhia
+todo o clero diocesano: desde o principio do inverno o Silverio estava
+tambem de cama. O abbade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio--mas
+para lhe communicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau à
+biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que
+recahia sobre Amelia n'uma chuva de impertinencias.
+
+E a boa senhora estava pensando sériamente em mandar a Amor pelo padre
+Brito--quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor
+parocho appareceu!
+
+Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e
+botins de verniz. E palrando longamente ácerca da Vieira, dos conhecidos
+que estavam, da pesca que fizera, dos soberbos quinos fazia passar
+n'aquelle triste quarto de doente velha todo um sopro vivificante da
+vida divertida á beira-mar. D. Josepha tinha duas lagrimas nas palpebras
+do gozo de vêr o senhor parocho, de o ouvir.
+
+--E a mamã passa bem, disse elle a Amelia. Já tem os seus trinta banhos.
+Ganhou outro dia quinze tostões a uma batotinha que se arranjou... E por
+cá que têm feito?
+
+Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de
+chuva! Uma falta de amizades! Ai! ella estava alli a perder a sua alma
+n'aquella quinta fatal...
+
+--Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna, dei-me tão bem que
+estou com idéas de voltar para a semana.
+
+Amelia, sem se conter, exclamou:
+
+--Ora essa! outra vez!
+
+--Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der uma licença d'um mez, vou
+lá passal-o... Fazem-me uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e
+tomo um par de banhos... Estava farto de Leiria, e d'aquelle
+aborrecimento...
+
+A velha parecia desolada. O quê, voltar! Deixal-as alli a estarrecer de
+tristeza!
+
+Elle galhofou:
+
+--Ora, as senhoras não precisam cá de mim. Estão bem acompanhadas...
+
+--Eu não sei, disse a velha com azedume, se os _outros_--e accentuou com
+rancor a palavra--se os _outros_ não precisam do senhor parocho... Eu é
+que não estou _bem acompanhada_, estou aqui a perder a minha alma... Que
+as companhias que ahi vêm não dão honra nem proveito.
+
+Mas Amelia acudiu para contrariar a velha:
+
+--E de mais a mais o senhor abbade Ferrão tem estado doente... Está com
+rheumatismo. Sem elle a casa parece uma prisão.
+
+D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre Amaro, erguendo-se para
+sahir, lamentou o bom abbade:
+
+--Coitado! Santo homem... Hei de ir vêl-o em tendo vagar. Pois ámanhã cá
+appareço, D. Josepha, e havemos de pôr essa alma em paz... Não se
+incommode, snr.^a D. Amelia, eu sei agora o caminho.
+
+Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra.
+Amaro calçava as suas luvas novas de pellica preta. E no alto da escada,
+muito ceremoniosamente, tirando o chapéo:
+
+--Minha senhora...
+
+E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito tranquillo--como se ella
+lhe fosse mais indifferente que os dois leões de pedra, que em baixo
+dormiam com o focinho nas patas.
+
+Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama, de raiva e de
+humilhação. O infame! E nem uma palavra sobre o filho, sobre a ama,
+sobre o enxoval! Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado
+por aquella prenhez que elle lhe dera! Nem uma queixa irritada por todos
+os desprezos que ella lhe mostrára!... Nada! Calçava as luvas, com o
+chapéo ao lado. Que indigno!
+
+Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no
+quarto com a velha.
+
+Amelia, impaciente, rondava no salão com os olhos como carvões. Elle
+appareceu emfim, como na vespera, calçando as suas luvas com um ar
+prospero.
+
+--Então já? disse ella n'uma voz que tremia.
+
+-Já, sim, minha senhora. Estive n'uma praticasinha com a D. Josepha.
+
+Tirou o chapéo, comprimentando muito profundamente:
+
+--Minha senhora...
+
+Amelia, livida, murmurou:
+
+--Infame!
+
+Elle olhou-a, como assombrado:
+
+--Minha senhora...--repetiu.
+
+E, como na vespera, desceu vagarosamente a larga escadaria de pedra.
+
+O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o ao vigario geral. Depois
+passou a noite escrevendo-lhe uma carta--tres paginas de accusações e de
+lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia, mandada verbalmente
+pelo Joãosito da quinta, foi «que talvez apparecesse por lá na
+quinta-feira».
+
+Teve outra noite de lagrimas--emquanto na rua das Sousas o padre Amaro
+esfregava as mãos, no regosijo do seu «famoso estratagema». E todavia
+não o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido na Vieira, onde
+fôra para desabafar com o padre-mestre e espalhar a mágoa nos ares da
+praia; fôra lá que elle o aprendera, o «famoso estratagema», n'uma
+_soirée_, ouvindo dissertar sobre o amor o brilhante Pinheiro, premiado
+em direito e gloria d'Alcobaça.
+
+--Eu n'isso, minhas senhoras--dizia o Pinheiro, passando a mão pela
+cabelleira de poeta, ao semi-círculo de damas que pendiam dos seus
+labios d'ouro--eu n'isso sou da opinião de Lamartine (era alternadamente
+da opinião de Lamartine ou de Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher é
+igual á sombra; se correis atraz d'_ella_, foge-vos; se fugis d'_ella_,
+corre atraz de vós!
+
+Houve um _muito bem_, exclamado com convicção: mas uma senhora de
+grandes proporções, mãi de quatro deliciosos anjos todos Marias (como
+dizia o Pinheiro), quiz explicações, porque nunca tinha visto fugir uma
+sombra.
+
+O Pinheiro deu-as, scientificamente:
+
+--É muito facil d'observar, snr.^a D. Catharina. Colloque-se vossa
+excellencia na praia, quando o sol começa a declinar, com as costas para
+o astro. Se vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a sombra,
+ella vai-lhe adiante, fugindo...
+
+--Physica recreativa, muito interessante! murmurou o escrivão de direito
+ao ouvido d'Amaro.
+
+Mas o parocho não o escutava; bailava-lhe já na imaginação «o famoso
+estratagema». Ah! mal voltasse a Leiria, havia de tratar Amelia como uma
+sombra e fugir-lhe para ser seguido...--E o resultado delicioso alli
+estava--tres paginas de paixão, com manchas de lagrimas no papel.
+
+Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia esperava-o no terraço,
+d'onde estivera desde manhã vigiando a estrada com um binoculo de
+theatro. Correu a abrir-lhe o portãosinho verde no muro do pomar.
+
+--Então, por aqui! disse-lhe o parocho, subindo atraz d'ella ao terraço.
+
+--É verdade, como estou sósinha...
+
+--Sósinha?
+
+--A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi á cidade... Tenho estado
+toda a manhã aqui ao sol.
+
+Amaro ía penetrando pela casa, sem responder; diante d'uma porta aberta
+parou, vendo um grande leito de docel, e em redor cadeiras de couro de
+convento.
+
+--É o seu quarto aqui, hein?
+
+--É.
+
+Elle entrou familiarmente, com o chapéo na cabeça.
+
+--Muito melhor que o da rua da Misericordia. E boas vistas... São as
+terras do Morgado, além...
+
+Amelia cerrára a porta, e indo direita a elle, com os olhos
+chammejantes:
+
+--Porque não respondeste á minha carta?
+
+Elle riu:
+
+--É boa! E porque não respondeste tu ás minhas? Quem começou? Foste tu.
+Dizes que não queres peccar mais. Tambem eu não quero peccar mais.
+Acabou-se...
+
+--Mas não é isso! exclamou ella pallida d'indignação. É que ha a pensar
+na criança, na ama, no enxoval... Não é abandonar-me p'r'áqui!...
+
+Elle poz-se sério, e com um tom resentido:
+
+--Peço perdão... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso ha de ficar
+arranjado antes de voltar p'r'á Vieira...
+
+--Tu não voltas p'r'á Vieira!
+
+--Quem é que diz isso?
+
+--Eu, que não quero que vás!
+
+Puzera-lhe fortemente as mãos nos hombros, retendo-o, apoderando-se
+d'elle: e alli mesmo, sem reparar na porta apenas cerrada,
+abandonou-se-lhe como outr'ora.
+
+
+D'ahi a dois dias o abbade Ferrão appareceu restabelecido do seu ataque
+de rheumatismo. Contou a Amelia a bondade do Morgado, que chegára a
+mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata com agua quente, uma
+gallinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a
+caridade melhor; todas as suas horas vagas as passava ao pé da cama,
+lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com elle até á uma hora da
+noite n'um zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!
+
+E de repente, tomando as mãos ambas d'Amelia, exclamou:
+
+--Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que
+arranje que elle perdôe. e esqueça... E que se faça este casamento, se
+faça esta felicidade?
+
+Ella balbuciou espantada, toda escarlate:
+
+--Assim de repente... Não sei... Hei de pensar...
+
+--Pense. E Deus a alumie! disse o velho com fervor.
+
+Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que
+Amelia lhe dera a chave. Infelizmente tinham esquecido a matilha do
+caseiro. E apenas Amaro pôz o pé dentro do pomar, rompeu pelo silencio
+da noite escura um tão desabrido ladrar de cães--que o senhor parocho
+abalou pela estrada, batendo o queixo de terror.
+
+
+
+
+XXIV
+
+
+Amaro n'essa manhã mandou á pressa chamar a Dionysia, apenas recebeu o
+seu correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando elle
+á volta da missa acabava d'almoçar.
+
+Amaro queria saber _ao certo e immediatamente_ para quando estava a
+_coisa_...
+
+--O bom successo da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Porquê, ha
+novidade?
+
+Havia; e o parocho leu-lhe então em confidencia uma carta que tinha ao
+lado.
+
+Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo «que a S. Joanneira tinha
+já trinta banhos e queria voltar! Eu, (acrescentava), perco quasi todas
+as semanas tres, quatro banhos, de proposito para os espaçar e dar
+tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cincoenta não
+vai. Ora já tenho quarenta, veja lá vossê. Demais por aqui começa a
+fazer frio devéras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois dizer
+pela volta do correio em que estado estão as coisas.» E n'um
+_post-scriptum_ dizia: «Tem vossê pensado que destino se ha de dar ao
+_fructo_?»
+
+--Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionysia.
+
+E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego, que a Dionysia devia
+levar ao correio: «A coisa póde estar prompta d'aqui a vinte dias.
+Suspenda por todo o modo a volta da mãi! Isso de modo nenhum! Diga-lhe
+que a pequena não escreve nem vai, porque a excellentissima mana passa
+sempre adoentada.»
+
+E traçando a perna:
+
+--E agora, Dionysia, como diz o nosso conego, que destino se ha de dar
+ao _fructo_?
+
+A matrona arregalou os olhos de surpreza:
+
+--Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado tudo... Que se ia dar a
+criança a criar fóra da terra...
+
+--Está claro, está claro, interrompeu o parocho com impaciencia. Se a
+criança nascer viva é evidente que se ha de dar a criar, e que ha de ser
+fóra da terra... Mas ahi é que está! Quem ha de ser a ama? É isso que eu
+quero que vossê me arranje. Vai sendo tempo...
+
+A Dionysia pareceu muito embaraçada. Nunca gostára de inculcar amas.
+Ella conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de
+confiança; mas infelizmente entrára no hospital, doente... Sabia d'outra
+tambem, até tivera negocios com ella. Era uma Joanna Carreira. Mas não
+convinha porque vivia justamente nos Poyaes, ao pé da Ricoça.
+
+--Qual não convém! exclamou o parocho. Que tem que viva na Ricoça?... Em
+a rapariga convalescendo as senhoras vêm p'r'á cidade, e não se falla
+mais na Ricoça.
+
+Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambem
+sabia d'outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distancia...
+Criava em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!
+
+--Mulher fraca, doente?
+
+A Dionysia chegou-se ao parocho, e baixando a voz:
+
+--Ai, menino, eu não gosto d'accusar ninguem. Mas, está provado, é uma
+tecedeira d'anjos!
+
+--Uma quê?
+
+--_Uma tecedeira d'anjos!_
+
+--O que é isso? Que significa isso? perguntou o parocho.
+
+A Dionysia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam
+crianças a criar em casa. E sem excepção as crianças morriam... Como
+tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e as criancinhas iam
+para o céo... D'ahi é que vinha o nome.
+
+--Então as crianças morrem sempre?
+
+--Sem falhar.
+
+O parocho passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.
+
+--Diga lá tudo, Dionysia. As mulheres matam-n'as?
+
+Então a excellente matrona declarou que não queria accusar ninguem! Ella
+não fôra espreitar. Não sabia o que se passava nas casas alheias. Mas as
+crianças morriam todas...
+
+--Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher d'essas?
+
+A Dionysia sorriu, apiedada d'aquella innocencia d'homem.
+
+--Entregam, sim senhor, ás duzias!
+
+Houve um silencio. O parocho continuava o seu passeio do lavatorio para
+a janella, de cabeça baixa.
+
+--Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de
+repente. Perde as soldadas...
+
+--É que se lhe paga um anno de criação adiantado, senhor parocho. A dez
+tostões ao mez, ou quartinho, segundo as posses...
+
+O parocho agora, encostado á janella, rufava devagar nos vidros.
+
+--Mas que fazem as auctoridades, Dionysia?
+
+A boa Dionysia encolheu silenciosamente os hombros.
+
+O parocho então sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:
+
+--Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer é fallar á tal ama que
+vive ao pé da Ricoça, á Joanna Carreira. Eu arranjarei isso...
+
+A Dionysia fallou ainda das peças d'enxoval que já tinha comprado por
+conta do parocho, d'um berço muito barato em segunda mão que vira no Zé
+Carpinteiro--e ia sahir com a carta para o correio, quando o parocho
+erguendo-se e galhofando:
+
+--Ó tia Dionysia, essa coisa da _tecedeira d'anjos_ é uma historia,
+hein?
+
+Então a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho sabia que ella não
+era mulher d'intrigas. Conhecia a tecedeira d'anjos ha mais d'oito
+annos, de lhe fallar e de a vêr na cidade quasi todas as semanas. Ainda
+no sabbado passado a vira sahir da taberna do Grego... O senhor parocho
+já tinha ido á Barrosa?
+
+Esperou a resposta do parocho, e continuou:
+
+--Pois bem, sabe o começo da freguezia. Ha um muro cahido. Depois é um
+caminho que desce. Ao fundo d'esse corregosito encontra um poço
+atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem um alpendre. É lá que
+ella vive... Chama-se Carlota... Isto é p'ra lhe mostrar que sei,
+amiguinho!
+
+O parocho ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando
+o chão de pontas de cigarros. Alli estava agora diante d'aquelle
+episodio fatal que até ahi fôra apenas um cuidado distante--dispôr do
+filho!
+
+Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãi,
+naturalmente, havia de querer ir a todo o momento vêl-o, a ama poderia
+fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia, o _filho do
+parocho_... Algum invejoso, que lhe cubiçasse a parochia, poderia
+denuncial-o ao senhor vigario geral. Escandalo, sermão, devassa: e, se
+não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado para longe,
+para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o _fructo_ nascesse
+morto! Que solução natural e perpetua! E para a criança, uma felicidade!
+Que destino podia elle ter n'este duro mundo? Era o _engeitado_, era o
+_filho do padre_. Elle era pobre, a mãi pobre... O rapaz cresceria na
+miseria, vadiando, apanhando o estrume das bestas, ramelloso e tosco...
+De necessidade em necessidade iria conhecendo todas as fórmas do inferno
+humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna,
+a cadeia por fim. Uma enxerga na vida, a valla na morte... E se
+morresse--era um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...
+
+E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem
+posto, _tecedeira d'anjos_... Com razão, quem prepara uma criança para a
+vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as
+lagrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandal-a direita para a
+eternidade bemaventurada! Olha elle! Que vida a sua, n'esses trinta
+annos atraz! Uma infancia melancolica, com aquella pêga da marqueza
+d'Alegros; depois a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro; e
+d'ahi as clausuras do seminario, a neve constante de Feirão, e alli em
+Leiria tantos transes, tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o
+craneo ao nascer, estava agora com duas azas brancas, cantando nos córos
+eternos.
+
+Mas emfim não havia que philosophar: era partir para Poyaes e fallar á
+ama, á snr.^a Joanna Carreira.
+
+Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe
+porém de repente a idéa, a curiosidade de ir á Barrosa vêr a
+_tecedeira_... Não lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura da
+mulher, os aspectos sinistros do sitio... Demais como parocho, como
+auctoridade ecclesiastica, devia observar aquelle peccado organisado
+n'um recanto d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denuncial-o ao
+senhor vigario geral ou ao secretario do governo civil...
+
+Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquella tarde suave e
+lustrosa fazia-lhe bem um passeio a cavallo. Não hesitou, então; foi
+alugar uma egoa á estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco, d'espora no pé
+esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.
+
+Ao chegar ao corrego, de que lhe fallára a Dionysia, apeou, foi andando
+com a egoa pela arreata. A tarde estava admiravel; muito alto no azul,
+uma grande ave fazia semi-circulos vagarosos.
+
+Encontrou emfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde passaros
+ainda chilreavam; adiante n'um terreno plano, muito isolada, lá estava a
+casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe na unica janella do
+lado, accendendo-a n'um resplendor d'ouro e braza; e, muito delgado,
+elevava-se da chaminé um fumo claro no ar sereno.
+
+Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos
+pinheiros baixos, a capellinha da Barrosa punha a alvura alegre da sua
+parede muito caiada.
+
+Amaro ia imaginando então a figura da _tecedeira_; sem saber porque,
+suppunha-a muito alta, com um carão trigueiro onde dois olhos de bruxa
+refulgiam.
+
+Defronte da casa prendeu a egoa á cancella, e olhou pela porta aberta:
+era uma cozinha terrea, de grande lareira, com sahida para o pateo
+estradado de matto onde dois bacorinhos foçavam. Na prateleira da
+chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes cassarolas
+de cobre, d'um lustro de casa rica. N'um velho armario meio aberto
+branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma claridade
+parecia sahir do aceio e do arranjo das coisas.
+
+Amaro então bateu forte as palmas. Uma rôla pulou assustada, dentro da
+sua gaiola de vime pendurada da parede. Depois chamou alto:
+
+--Senhora Carlota!
+
+Immediatamente do lado do pateo uma mulher appareceu, com um crivo na
+mão. E Amaro, surprehendido, viu uma agradavel creatura de quasi
+quarenta annos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no
+pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram
+os d'Amelia ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joanneira.
+
+Assombrado, balbuciou:
+
+--Creio que me enganei... Aqui é que mora a senhora Carlota?
+
+Não se enganára, era ella; mas com a idéa que a figura medonha «que
+tecia os anjos» devia estar algures, agachada n'um vão tenebroso da
+casa, perguntou ainda:
+
+--Vossemecê vive aqui só?
+
+A mulher olhou-o desconfiada:
+
+--Não senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...
+
+Justamente o marido sahia do pateo,--medonho, esse, quasi anão, com a
+cabeça embrulhada n'um lenço e muito enterrada nos hombros, a face d'uma
+amarellidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo annelavam-se os pêllos
+raros d'uma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas,
+vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos d'insomnia e de
+bebedeira.
+
+--Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito
+collado á saia da mulher.
+
+Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma historia que ia
+forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom successo.
+O marido não pudéra vir fallar-lhes porque estava doente... Queriam uma
+ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...
+
+--Não, fóra de casa, não. Cá em casa--disse o anão que não se despegava
+das saias da mulher, mirando o parocho de lado com o seu medonho olho
+injectado.
+
+Ah, então tinham-n'o informado mal... Sentia; mas o que o parente queria
+era uma ama para casa.
+
+Veio dirigindo-se para a egoa, devagar; parou, e abotoando o casacão:
+
+--Mas em casa recebem crianças para criação?...--perguntou ainda.
+
+--Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.
+
+Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se,
+rondando em torno da cavalgadura:
+
+--É necessario trazer-lh'a cá, já se sabe.
+
+O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficára á porta da
+cozinha.
+
+--Tambem se lhe vai buscar, disse.
+
+Amaro batia palmadas no pescoço da egoa.
+
+--Mas sendo a coisa de noite, agora com este frio, é matar a criança...
+
+Então os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram que não lhe fazia
+mal. Havendo, já se sabe, carinho e agasalho...
+
+Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas tardes, e trotou pelo
+corrego.
+
+
+Amelia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava
+n'aquellas horas, que se avisinhavam, em que devia sentir chegarem as
+dôres. Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha tonturas,
+perversões de gosto--que o doutor Gouvêa observava, franzindo a testa
+descontente. As noites eram más, n'uma turbação de pesadêlos. Já não
+eram as allucinações religiosas: isso cessára n'uma subita aplacação de
+todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma
+santa canonisada. Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe
+representava de modos monstruosos: ora era um sêr medonho que lhe
+saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra
+infindavel que lhe sahia de dentro, durante horas, como uma fita de
+leguas, enrolando-se no quarto em roscas successivas que ganhavam a
+altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas que a deixavam
+prostrada.
+
+Mas anciava por ter a criança. Estremecia á idéa de vêr um dia
+inesperadamente a mãi apparecer na Ricoça. Ella escrevera-lhe,
+queixando-se do senhor conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que
+já reinavam, da solidão que se ia fazendo na praia. Além d'isso D. Maria
+da Assumpção voltára; felizmente, uma noite providencialmente gelada
+dera-lhe durante a jornada uma inflammação dos bronchios--e estava de
+cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouvêa. O Libaninho, esse,
+tambem viera á Ricoça; e sahira lastimando-se de não ter visto a
+Amelinha «que tinha n'esse dia enxaqueca».
+
+--Se isto se demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia
+ella, choramigando, a Amaro.
+
+--Paciencia, filha. Não se póde forçar a natureza...
+
+--O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella, o que tu me tens feito
+soffrer!
+
+Elle calava-se resignado--muito bom, muito terno agora com ella. Vinha-a
+vêr quasi todas as manhãs, porque não queria pelas tardes encontrar o
+abbade Ferrão.
+
+Tranquillisára-a a respeito da ama, dizendo-lhe que fallára á mulher da
+Ricoça inculcada pela Dionysia. Era uma escolha rica a snr.^a Joanna
+Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e dentes
+de marfim...
+
+--Fica-me tão longe para vir vêr depois a criança...--suspirava ella.
+
+Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos de mãi. Desesperava-se
+em não poder ella mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o
+rapaz--porque havia de ser um rapaz!--se chamasse Carlos. Scismava-o já
+homem, e official de cavallaria. Enternecia-se com a esperança de o vêr
+gatinhar...
+
+--Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a vergonha!...
+
+--Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.
+
+Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idéa de elle
+ser um engeitadinho!
+
+Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario «que lhe inspirára
+Nossa Senhora»: ella casaria já com João Eduardo, mas o rapaz devia por
+uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que o anjinho não fosse um
+engeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos
+do abbade, n'uma supplicação loquaz. Que convencesse João Eduardo, que
+désse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos pés d'elle, do senhor
+abbade, que era o seu pai e o seu protector.
+
+--Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse é tambem o meu desejo, como
+lhe disse. E ha de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho,
+atarantado d'aquella excitação.
+
+Depois, d'ahi a dias, foi outra exaltação; descobrira de repente, uma
+manhã, que não devia trahir Amaro, «porque era o papá do seu Carlinhos».
+E disse-o ao abbade; fez córar os sessenta annos do bom velho, palrando
+muito convencidamente dos seus deveres d'esposa para com o parocho.
+
+O abbade, que ignorava as visitas do parocho todas as manhãs,
+assombrou-se.
+
+--Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que
+vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.
+
+--Mas é o pai do meu filho, senhor abbade, disse ella, olhando-o muito
+séria.
+
+Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe
+cada meia hora que era o «papá do seu Carlinhos».
+
+--Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente. Obrigado. Não me gabo
+da honra...
+
+Ella chorava, então, aninhada no sofá. Era necessaria toda uma
+complicação de caricias para a calmar. Fazia-o sentar n'um banquinho
+junto d'ella; tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe
+devagarinho a corôa; queria que se tirasse a photographia ao Carlinhos
+para a trazerem ambos n'uma medalha ao pescoço; e se ella morresse, elle
+havia de levar o Carlinhos á sepultura, ajoelhal-o, pôr-lhe as
+mãosinhas, fazel-o rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada,
+tapando o rosto com as mãos:
+
+--Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!
+
+--Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.
+
+Ah, aquellas manhãs na Ricoça! Eram para elle como uma penalidade
+injusta. Ao entrar tinha de ir á velha escutar-lhe as lamurias. Depois,
+era aquella hora com Amelia, que o torturava com as pieguices d'um
+sentimentalismo hysterico,--estirada no sofá, grossa como um tonel, com
+a face entumecida, os olhos papudos...
+
+N'uma d'essas manhãs, Amelia, que se queixava de caimbras, quiz dar um
+passeio pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu
+velho robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo no caminho, passos
+de cavallos: chegaram á janella--mas Amaro recuou vivamente, deixando
+Amelia que embasbacára com a face contra a vidraça. Na estrada,
+galhardamente montado n'uma egoa baia, passava João Eduardo de paletot
+branco e chapéo alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um
+poney, outro acorreado n'um burro; e atraz, a distancia, n'um passo de
+respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de cano e esporões
+enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas
+grotescas, e no chapéo a roseta escarlate. Ella ficára assombrada,
+seguindo-os até que as costas do lacaio desappareceram à esquina da
+casa. Sem uma palavra, veio sentar-se no sofá. Amaro, que continuava
+passeando pelo quarto, teve então um risinho sarcastico:
+
+--O idiota, de lacaio á retaguarda!
+
+Ella não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, sahiu atirando
+com a porta, foi para o quarto de D. Josepha contar-lhe a cavalgada, e
+vituperar o Morgado.
+
+--Um excommungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as
+mãos apertadas na cabeça. Que vergonha, senhor parocho, que vergonha
+para a nobreza d'estes reinos!
+
+Desde esse dia Amelia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor
+parocho não vinha. Quem esperava agora com impaciencia era o senhor
+abbade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o n'uma cadeira
+junto ao canapé: e depois de rodeios demorados d'ave que tenteia a
+presa, cahia sobre a pergunta fatal--se tinha visto o senhor João
+Eduardo?
+
+Queria saber o que elle dissera, se fallára n'ella, se a avistára á
+janella. Torturava-o com curiosidades sobre a casa do Morgado, a mobilia
+da sala, o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de farda servia
+á mesa...
+
+E o bom abbade respondia com paciencia--contente de a vêr esquecida do
+parocho, occupada de João Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle
+casamento se faria: ella evitava, de resto, pronunciar sequer o nome
+d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu ao abbade que lhe perguntava se o
+senhor parocho voltára á Ricoça:
+
+--Ai, vem pela manhã vêr a madrinha... Mas eu não lhe appareço, que nem
+estou decente...
+
+Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o agora á janella, muito
+arranjada da cinta para cima que era o que se podia vêr da
+estrada--enxovalhada das saias para baixo. Estava esperando João
+Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em quando, com effeito,
+o gozo de os vêr passar, n'aquelle passo bem lançado de cavallos de
+preço, sobretudo o da egoa baia de João Eduardo, que elle defronte da
+Ricoça fazia sempre ladear, de chicote atravessado e perna á Marialva,
+como lhe ensinára o Morgado. Mas era o lacaio, sobretudo, que a
+encantava: e com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso, até que
+á volta da estrada via desapparecer o pobre velho, de dorso corcovado,
+com a gola da farda até á nuca e as pernas bamboleantes.
+
+E para João Eduardo que delicia aquelles passeios com os Morgaditos, na
+egoa baia! Nunca deixava de ir á cidade: fazia-lhe bater o coração o som
+das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da Amparo da botica,
+diante do cartorio do Nunes que tinha a sua banca ao pé da janella,
+diante da Arcada, diante do senhor administrador que lá estava na
+varanda de binoculo para a Telles--e o seu desgosto era não poder entrar
+com a egoa, os Morgaditos e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho
+que era no interior da casa.
+
+Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes, que voltando ás
+duas horas da Barrosa, ao chegar ao Poço das Bentas e ao subir para o
+caminho de carros, viu de repente o senhor padre Amaro que descia
+montado n'um garrano. Immediatamente João Eduardo fez caracolar a egoa.
+O caminho era tão estreito, que apesar de se chegarem às sebes quasi
+roçaram os joelhos--e João Eduardo pôde então, do alto da sua egoa de
+cincoenta moedas, agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar com um
+olhar o padre Amaro que se encolhia muito pallido, com a barba por
+fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o garrano ronceiro. No alto
+do caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sella, e viu o
+parocho que apeava á porta do casebre isolado onde ha pouco, ao passar,
+os Morgaditos tinham rido «do anão».
+
+--Quem vive alli? perguntou João Eduardo ao lacaio.
+
+--Uma Carlota... Má gente, snr. Joãosinho!
+
+Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre, poz a passo a egoa baia.
+Mas não viu por traz dos vidros a costumada face pallida sob o lenço
+escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas; e ao portão,
+desatrellado com os varões em terra, o _cabriolet_ do doutor Gouvêa.
+
+
+É que tinha chegado emfim o dia! N'essa manhã viera da Ricoça um moço da
+quinta com um bilhete de Amelia quasi inintelligivel--_Dionysia
+depressa, a coisa chegou!_ Trazia ordem tambem de ir chamar o senhor
+doutor Gouvêa. Amaro foi elle mesmo avisar a Dionysia.
+
+Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria D. Josepha, lhe
+inculcára uma ama--que elle já ajustára, grande mulher, rija como um
+castanheiro. E agora combinaram rapidamente que n'essa noite Amaro se
+postaria com a ama á portinha do pomar, e Dionysia viria dar-lhe a
+criança bem atabafada.
+
+--Ás nove da noite, Dionysia. E não nos faça esperar!--recommendou-lhe
+ainda Amaro vendo-a abalar n'um espalhafato.
+
+Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquella
+difficuldade que elle sentia como uma coisa viva fixal-o e
+interrogal-o:--Que havia de fazer á criança? Tinha ainda tempo d'ir aos
+Poyaes ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionysia conhecia; ou podia
+montar a cavallo e ir á Barrosa fallar á Carlota... E alli estava,
+diante d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia. Queria serenar,
+discutir aquelle caso como se fosse um ponto de theologia, pesando-lhe
+os _prós_ e os _contras_: mas tinha temerariamente diante de si, em
+logar de dois argumentos, duas visões:--a criança a crescer e a viver
+nos Poyaes, ou a criança esganada pela Carlota a um canto da estrada da
+Barrosa...--E, passeando pelo quarto, suava d'angustia, quando no
+patamar a voz inesperada do Libaninho gritou:
+
+--Abre, parochosinho, que sei que estás em casa!
+
+Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mão, offerecer-lhe uma
+cadeira. Mas o Libaninho felizmente não se podia demorar. Passára na
+rua, e subira a saber se o amigo parocho tinha noticias d'aquellas
+santinhas da Ricoça.
+
+--Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a
+prazentear.
+
+--Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado mais occupado!... Estou de
+serviço no quartel... Não te rias, parochosinho, que estou lá fazendo
+muita virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes das chagas de
+Christo...
+
+--Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papeis da
+mesa, passeava, n'uma inquietação d'animal preso.
+
+--Não é para as minhas forças, parocho, que se eu pudesse!... Olha,
+agora vou eu levar a um sargento uns bentinhos... Foram benzidos pelo
+Saldanhinha, vão cheios de virtude. Hontem dei outros iguaes a um
+anspeçada, perfeito rapaz, um amor de rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por
+baixo da camisola... Perfeito rapaz!...
+
+--Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro
+abrindo a janella, abafando d'impaciencia.
+
+--Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava o regimento. Pois
+adeus, parochosinho. Estás amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei
+o que isso é.
+
+Ia a sahir, mas á porta, parando:
+
+--Ai, dize cá, parochosinho, dize cá: tu ouviste alguma coisa?
+
+--De quê?
+
+--Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que o nosso chantre declarára
+(palavras do Saldanhinha) que lhe constava que ia na cidade um escandalo
+com um senhor ecclesiastico... Mas não disse _quem_ nem o _quê_... O
+Saldanha quil-o sondar, mas o chantre diz que recebera só uma denuncia
+vaga, sem nome... Tenho estado a pensar: quem será?
+
+--Pataratas do Saldanha...
+
+--Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem folga são os impios...
+Quando fôres pela Ricoça dá recados áquellas santinhas...
+
+E pulou pelos degraus a ir levar «a virtude» ao batalhão.
+
+Amaro ficára aterrado. Era elle decerto, eram os seus amores com Amelia
+que já iam chegando ao vigario geral em denuncias tortuosas! E alli
+vinha agora aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar como uma
+prova viva!... Parecia-lhe extraordinario, quasi sobrenatural, ter o
+Libaninho, que em dois annos não lhe viera a casa duas vezes, ter o
+Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando elle estava alli
+n'uma batalha com a consciencia. Era como a Providencia, que sob a fórma
+grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe: «Não
+deixes viver quem te póde trazer o escandalo! Olha que já se suspeita de
+ti!»
+
+Era decerto Deus apiedado que não queria que houvesse na terra mais um
+engeitado, mais um miseravel,--e que _reclamava o seu anjo_!...
+
+Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e d'ahi a cavallo para a
+casa de Carlota.
+
+Demorou-se lá até ás quatro horas.
+
+De volta a casa atirou o chapéo para cima da cama, e sentiu emfim um
+allivio de todo o seu sêr. Estava acabado! Lá fallára á Carlota e ao
+anão; lá lhe pagára um anno adiantado; agora era esperar pela noite!...
+
+Mas na solidão do quarto toda a sorte de imaginações morbidas o
+assaltavam: via a Carlota a esganar a criancinha rôxa; via os cabos de
+policia mais tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da administração
+redigindo sobre um joelho o auto de corpo de delicto, e elle, de batina,
+arrastado para a cadeia de S. Francisco, em ferros, ao lado do anão!
+Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar á Barrosa desfazer o
+ajuste. Mas uma inercia retinha-o. Depois, nada o forçava á noite a
+entregar a criança á Carlota... Podia leval-a bem agasalhada á Joanna
+Carreira, a boa ama dos Poyaes...
+
+Para escapar áquellas idéas que lhe faziam sob o craneo um ruido de
+tormenta, sahiu, foi vêr Natario que já se erguia--e que lhe gritou
+immediatamente do fundo da poltrona:
+
+--Então vossê viu, Amaro! O idiota, de lacaio atraz!
+
+João Eduardo passára-lhe na rua, na egoa baia, com os Morgadinhos; e
+Natario desde então rugia de impaciencia de estár alli amarrado á
+cadeira e não poder recomeçar a campanha, expulsal-o por uma boa intriga
+da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa e o lacaio.
+
+--Mas não as perde, em Deus me dando pernas...
+
+--Deixe lá o homem, Natario, disse Amaro.
+
+Deixal-o! quando tinha uma idéa prodigiosa--que era provar ao Morgado,
+com documentos, que o João Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao
+amigo Amaro?
+
+Era engraçado, com effeito. O homem não deixava de o merecer, só pela
+maneira como olhava para a gente de bem, do alto da egoa...--E Amaro
+fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro, de manhã, no caminho de
+carros da Barrosa.
+
+--Está claro! exclamou Natario. Para que somos nós sacerdotes de
+Christo? Para exaltar os humildes e derrubar os soberbos.
+
+D'alli Amaro foi vêr D. Maria da Assumpção--que já se erguera
+tambem--que lhe fez a historia da sua bronchite e a enumeração dos
+ultimos peccados: o peor era que, para se distrahir um bocado na
+convalescença, recostava-se por traz da vidraça, e um carpinteiro que
+mórava defronte embasbacava para ella; e por influencia do maligno, não
+tinha forças para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos
+maus...
+
+--Mas vossa senhoria não está com attenção, senhor parocho.
+
+--Ora essa, minha senhora!
+
+E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos--porque a salvação d'aquella
+velha alma idiota era para elle um emprego melhor que a mesma parochia.
+
+Já escurecia quando entrou em casa. A Escolastica queixou-se da demora
+que lhe esturrára o jantar. Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho e
+uma garfada d'arroz, que enguliu de pé, olhando com terror pela janella
+a noite que impassivelmente cahia.
+
+Entrava no quarto a vêr se os candieiros já estavam accêsos, quando o
+coadjutor appareceu. Vinha fallar-lhe sobre o baptisado do filho do
+Guedes, que estava marcado para o dia seguinte ás nove horas.
+
+--Trago luz?--disse de dentro a criada sentindo a visita.
+
+--Não! gritou logo Amaro.
+
+Temia que o coadjutor visse a alteração que sentia nas faces, ou que se
+installasse para toda a noite.
+
+--Diz que vem na _Nação_ d'antes d'hontem um artigo muito bom, observou
+o coadjutor, grave.
+
+--Ah! fez Amaro.
+
+Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio para a janella; parava ás
+vezes a rufar nos vidros; já se tinham accendido os candieiros.
+
+Então o coadjutor, chocado com aquella treva do quarto e aquelle passear
+de fera n'uma jaula, ergueu-se, e com dignidade:
+
+--Estou a incommodar talvez...
+
+--Não!
+
+E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu guardachuva entre os
+joelhos.
+
+--Agora anoitece mais cedo, disse.
+
+--Anoitece...
+
+Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que
+se ia encostar: e o homem sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado
+do menino do seu amigo Guedes.
+
+Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a noite estava tenebrosa e
+quente, annunciando chuva. Ia agora tomado d'uma esperança que lhe fazia
+bater o coração: era que a criança nascesse morta! E era bem possivel. A
+S. Joanneira em nova tivera duas crianças mortas; a anciedade em que
+vivera Amelia devia ter perturbado a gestação. E se ella morresse
+tambem? Então a esta idéa, que nunca lhe acudira, invadiu-o bruscamente
+uma piedade, uma ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto, e
+que agora, por obra d'elle, gritava dilacerada de dôres. E todavia, se
+ambos morressem, ella e a criança, era o seu peccado e o seu erro que
+cahiam para sempre nos escuros abysmos da eternidade... Elle ficava,
+como antes da sua vinda a Leiria, um homem tranquillo, occupado da sua
+igreja, d'uma vida limpa e lavada como uma pagina branca!
+
+Parou junto ao casebre em ruinas á beira da estrada, onde devia estar a
+pessoa que da Barrosa vinha buscar a criança: não se tinha decidido se
+seria o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar o anão, para lhe
+levar o filho, com aquelles olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para
+dentro, para as trevas do casebre:
+
+--Olá!
+
+Foi um allivio quando a clara voz da Carlota disse da negrura:
+
+--Cá está!
+
+--Bem, é esperar, snr.^a Carlota.
+
+Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada a temer, se o filho
+partisse aninhado contra aquelle robusto seio de quarentona fecunda, tão
+fresca e tão lavada.
+
+Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento
+mais denso de sombra n'aquella lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda
+de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No ar muito pesado nenhuma
+folhagem ramalhava. E a Dionysia não apparecia.
+
+Aquella demora torturava-o. Podia passar gente e vél-o rondar na
+estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se no casebre em ruinas ao pé de
+Carlota. Foi andando ao comprido do muro do pomar, voltou,--e viu então
+na porta envidraçada do terraço uma claridade de luz apparecer.
+
+Correu para a portinha verde do pomar que quasi immediatamente se abriu;
+e a Dionysia, sem uma palavra, poz-lhe nos braços um embrulho.
+
+--Morta? perguntou elle.
+
+--Qual! Vivo! Um rapagão!
+
+E fechou a porta devagarinho, quando os cães, farejando rumor, começavam
+a ladrar.
+
+Então o contacto do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um
+vendaval todas as idéas d'Amaro. O quê! ir dal-o áquella mulher, á
+tecedeira d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado, ou em casa
+o arremessaria á latrina? Ah! não, era o seu filho!
+
+Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr aos Poyaes e acordar a
+outra ama... A Dionysia não tinha leite... Não o podia levar para a
+cidade... Oh! que desejo furioso de bater áquella porta da quinta,
+precipitar-se para o quarto d'Amelia, metter-lhe o pequerruchinho na
+cama, muito agasalhado, e todos tres ficarem alli como no conchego d'um
+céo! Mas quê, era padre! Maldita fosse a religião que assim o esmagava!
+
+De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu então para o
+casebre--quasi esbarrou com a Carlota, que se apoderou logo da criança.
+
+--Ahi está, disse elle. Mas ouça lá. Isto agora é sério. Agora é outra
+coisa. Olhe que o não quero morto... É para o tratar. O que se passou
+não vale... É para o criar! é para viver. Vossê tem a sua fortuna...
+Trate d'elle!...
+
+--Não tem duvida, não tem duvida, dizia a mulher apressada.
+
+--Escute... A criança não vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.
+
+--Vai bem, senhor, vai bem.
+
+--Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Ha de levar o capote! Não
+quero que morra de frio!
+
+Atirou-lh'o aos hombros com força, traçando-lh'o sobre o peito,
+agasalhando a criança;--e a mulher já enfastiada metteu rapidamente pela
+estrada.
+
+Amaro ficou alli plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na
+negrura. Então todos os seus nervos, depois d'aquelle choque, se
+relaxaram n'uma fraqueza de mulher sensivel--e rompeu a chorar.
+
+Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia na mesma escuridão,
+n'aquelle silencio que o aterrava. Depois, triste e fatigado, veio
+voltando para a cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.
+
+
+A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor Gouvêa ceava
+tranquillamente o frango assado que lhe preparára a Gertrudes, para
+depois das canceiras do dia. O abbade Ferrão, sentado junto da mesa,
+assistia-lhe á ceia; viera munido dos sacramentos para o caso de haver
+perigo. Mas o doutor estava satisfeito; durante as oito horas de dôres a
+rapariga mostrára-se corajosa; o parto fôra feliz, de resto, e sahira um
+rapagão que fazia muita honra ao papá.
+
+O bom abbade Ferrão baixava castamente os olhos áquelles detalhes, no
+seu pudor de sacerdote.
+
+--E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu
+introduzi a criança no mundo, os senhores (e quando digo os senhores,
+quero dizer a Igreja) apoderam-se d'elle e não o largam até á morte. Por
+outro lado, ainda que menos sôfregamente, o Estado não o perde de
+vista... E ahi começa o desgraçado a sua jornada do berço á sepultura,
+entre um padre e um cabo de policia!
+
+O abbade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a
+controversia.
+
+--A Igreja, continuava o doutor com serenidade, começa, quando a pobre
+creatura ainda nem tem sequer a consciencia da vida, por lhe impôr uma
+religião...
+
+O abbade interrompeu, meio sério, meio rindo:
+
+--Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua alma, devo
+advertil-o que o sagrado Concilio de Trento, canon decimo terceiro,
+commina a pena d'excommunhão contra todo o que disser que o baptismo é
+nullo, por ser imposto sem a aceitação da razão.
+
+--Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do
+Concilio de Trento para commigo e outros collegas...
+
+--Era uma assembléa respeitavel! acudiu o abbade já escandalisado.
+
+--Sublime, abbade. Uma assembléa sublime. O Concilio de Trento e a
+Convenção foram as duas mais prodigiosas assembléas d'homens que a terra
+tem presenciado...
+
+O abbade fez uma visagem de repugnacia áquelle cotejo irreverente entre
+os santos auctores da doutrina e os assassinos do bom rei Luiz XVI.
+
+Mas o doutor proseguiu:
+
+--Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum tempo emquanto ella faz
+a sua dentição e tem o seu ataque de lombrigas...
+
+--Vá, vá, doutor! murmurava o abbade, escutando-o pacientemente, de
+olhos cerrados--como significando «anda, anda, enterra bem essa alma no
+abysmo de fogo e pez»!
+
+--Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros symptomas de razão,
+continuava o doutor, quando se torna necessario que elle tenha, para o
+distinguir dos animaes, uma noção de si mesmo e do universo, então
+entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente,
+que um gaiato de seis annos que não sabe ainda o _b-a-bá_ tem uma
+sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes academias combinadas de
+Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como
+se fez o universo e os seus systemas planetarios; como appareceu na
+terra a creação; como se succederam as raças; como passaram as
+revoluções geologicas do globo; como se formaram as linguas; como se
+inventou a escripta... Sabe tudo: possue completa e immutavel a regra
+para dirigir todas as acções e formar todos os juizos; tem mesmo a
+certeza de todos os mysterios; ainda que seja myope como uma toupeira vê
+o que se passa na profundidade dos céos e no interior do globo; conhece,
+como se não tivesse feito senão assistir a esse espectaculo, o que lhe
+ha de succeder depois de morrer... Não ha problema que não decida... E
+quando a Igreja tem feito d'este marmanjo uma tal maravilha de saber,
+manda-o então aprender a lêr... O que eu pergunto é: para que?
+
+A indignação tinha emmudecido o abbade.
+
+--Diga lá abbade, para que os mandam os senhores ensinar a lêr? Toda a
+sciencia universal, o _res scibilis_, está no Catecismo: é metter-lh'o
+na memoria, e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia de tudo...
+Sabe tanto como Deus... De facto, é Deus mesmo.
+
+O abbade pulou.
+
+--Isso não é discutir, exclamou, isso não é discutir!... Isso são
+chalaças á Voltaire! Essas coisas devem-se tratar mais d'alto...
+
+--Como chalaças, abbade? Tome um exemplo: a formação das linguas. Como
+se formaram? Foi Deus, que descontente com a Torre de Babel...
+
+Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia. Havia pouco o
+doutor tinha-lhe dado uma desanda no quarto d'Amelia; e agora a matrona
+fallava-lhe sempre encolhida de terror.
+
+--Senhor doutor, disse ella no silencio que se fez, a menina acordou e
+diz que quer o filho.
+
+--E então? A criança levaram-n'a, não?
+
+--A criança levaram-n'a... disse a Dionysia.
+
+--Bem, acabou-se...
+
+Dionysia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.
+
+--Ouça lá, diga-lhe que a criança vem ámanhã... Que ámanhã sem falta que
+lh'a trazem. Minta. Minta como um cão; aqui o senhor abbade dá
+licença... Que durma, que socegue.
+
+A Dionysia retirou-se. Mas a controversia não recomeçou: diante
+d'aquella mãi que acordava depois da fadiga do parto e reclamava o seu
+filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre, os dois
+velhos esqueceram a Torre de Babel e a formação das linguas. O abbade
+sobretudo parecia commovido. Mas o doutor não tardou, sem piedade, a
+lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da situação do padre na
+sociedade...
+
+O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada, sem responder, como
+ignorando que houvesse um padre n'aquella historia infeliz.
+
+O doutor então, seguindo a sua idéa, discursou contra a preparação e
+educação ecclesiastica.
+
+--Ahi tem o abbade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo:
+resistencia ás mais justas solicitações da natureza, e resistencia aos
+mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é crear um monstro
+que ha de passar a sua desgraçada existencia n'uma batalha desesperada
+contra os dois factos irresistiveis do universo--a força da Materia e a
+força da Razão!
+
+--Que está o senhor a dizer? exclamou assombrado o abbade.
+
+--Estou a dizer a verdade. Era que consiste a educação d'um sacerdote?
+_Primò_: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para
+a suppressão violenta dos sentimentos mais naturaes. _Secundò_: em
+evitar todo o conhecimento e toda a idéa que seja capaz d'abalar a fé
+catholica; isto é, a suppressão forçada do espirito d'indagação e
+d'exame, portanto de toda a sciencia real e humana...
+
+O abbade erguera-se, ferido d'uma piedosa indignação:
+
+--Pois o senhor nega á Igreja a sciencia?
+
+--Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente o doutor, Jesus, os
+seus primeiros discipulos, o illustre S. Paulo representaram em
+parabolas, em epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as producções
+do espirito humano eram inuteis, pueris, e sobretudo perniciosas...
+
+O abbade passeava pela sala, indo contra um e outro movel como um boi
+espicaçado, apertando as mãos na cabeça na desolação d'aquellas
+blasphemias; não se conteve, gritou:
+
+--O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor, peço-lhe humildemente
+perdão... O senhor faz-me cahir em peccado mortal... Mas isso não é
+discutir... Isso é fallar com a leviandade d'um jornalista...
+
+Lançou-se então com calor n'uma dissertação sobre a sabedoria da Igreja,
+os seus altos estudos gregos e latinos, toda uma philosophia creada
+pelos santos padres...
+
+--Leia S. Basilio! exclamou. Lá verá o que elle diz dos estudos dos
+auctores profanos, que são a melhor preparação para os estudos sagrados!
+Leia a _Historia dos mosteiros na meia idade_! Era lá que estava a
+sciencia, a philosophia...
+
+--Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia! Por philosophia meia
+duzia de concepções d'um espirito mythologico, em que o mysticismo é
+posto em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia! Sciencia de
+commentadores, sciencia de grammaticos... Mas vieram outros tempos,
+nasceram sciencias novas que os antigos tinham ignorado, a que o ensino
+ecclesiastico não offerecia nem base nem methodo, estabeleceu-se logo o
+antagonismo entre ellas e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos,
+a Igreja ainda tentou supprimil-as pela perseguição, a masmorra, o fogo!
+Escusa de se torcer, abbade... O fogo, sim, o fogo e a masmorra. Mas
+agora não o póde fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim... E no
+emtanto continúa a dar nos seus seminarios e nas suas escólas o ensino
+do passado, o ensino anterior a essas sciencias, ignorando-as, e
+desprezando-as, refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar as mãos
+na cabeça... Estranha ao espirito moderno, hostil nos seus principios e
+nos seus methodos ao desenvolvimento espontaneo dos conhecimentos
+humanos... O senhor não é capaz de negar isto! Veja o _Syllabus_ no seu
+canon terceiro excommungando a Razão... No seu canon decimo terceiro...
+
+A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionysia:
+
+--A pequena está a choramingar, diz que quer a criança.
+
+--Mau, mau! disse o doutor.
+
+E depois d'um momento:
+
+--Que tal aspecto tem ella? Está córada? Está inquieta?
+
+--Não senhor, está bem. Só a choramingar, a fallar no pequeno... Diz que
+o quer hoje por força...
+
+--Converse com ella, distraia-a... Veja se ella adormece...
+
+A Dionysia retirou-se; e o abbade logo com cuidado:
+
+--Ó doutor, suppõe que lhe possa fazer mal o affligir-se?
+
+--Póde-lhe fazer mal, abbade, póde--disse o doutor que rebuscava na sua
+pharmacia portatil. Mas eu vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a
+Igreja hoje é uma intrusa, abbade!
+
+O abbade tornou a levar as mãos á cabeça.
+
+--Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja em Portugal. É grato
+observar-lhe o estado de decadencia...
+
+Pintou-lh'o a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja
+fôra a Nação; hoje era uma minoria tolerada e protegida pelo Estado.
+Dominára nos tribunaes, nos conselhos da corôa, na fazenda, na armada,
+fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que
+todo o clero do reino. Fôra a sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia
+era algum latim macarronico. Fôra rica, tinha possuido no campo
+districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu
+triste pão diario do ministro da justiça, e pedia esmola á porta das
+capellas. Recrutára-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e
+hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar
+aos engeitados da Misericordia. Fôra a depositaria da tradição nacional,
+do ideal collectivo da patria; e hoje, sem communicação com o pensamento
+nacional (se é que o ha) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma,
+recebendo de lá a lei e o espirito...
+
+--Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar!--disse o
+abbade, erguendo-se escarlate.
+
+Mas a Dionysia tinha de novo apparecido á porta.
+
+--Que temos mais?
+
+--A menina está-se a queixar d'um peso na cabeça. Diz que sente faíscas
+diante dos olhos...
+
+O doutor então immediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionysia. O
+abbade, só, passeava pela sala ruminando toda uma argumentação erriçada
+de textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia fazer desabar sobre
+o doutor Gouvêa. Mas, meia hora passou, a luz do candieiro ia
+esmorecendo, e o doutor não voltou.
+
+
+Então aquelle silencio da casa, onde só o som dos seus passos sobre o
+soalho da sala punha uma nota viva, começou a impressionar o velho.
+Abriu a porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia era muito
+afastado, ao fim da casa, ao pé do terraço; não vinha de lá nem rumor
+nem luz. Recomeçou o seu passeio solitario na sala, n'uma tristeza
+indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir vêr tambem a doente; mas
+o seu caracter, o pudor sacerdotal não lhe permittiam aproximar-se
+sequer d'uma mulher no leito, em trabalho de parto, a não ser que o
+perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais funebre,
+passou. Então, em pontas de pés, córando na escuridão d'aquella audacia,
+foi até ao meio do corredor: agora, aterrado, sentia no quarto d'Amelia
+um ruido confuso e surdo de pés movendo-se vivamente no soalho, como
+n'uma lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu á sala, e abrindo o
+seu Breviario começou a rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem
+rapidamente, n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia bater. Depois o
+arrastar no soalho d'uma bacia de latão. E emfim o doutor appareceu.
+
+A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha sem gravata, com o
+collarinho espedaçado; os botões do collete tinham saltado; e os punhos
+da camisa, voltados para traz, estavam todos manchados de sangue.
+
+--Alguma coisa, doutor?
+
+O doutor não respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo,
+com a face animada d'um calor de batalha. Ia já sahir com o estojo, mas
+lembrando-lhe a pergunta anciosa do abbade:
+
+--Tem convulsões, disse.
+
+O abbade então deteve-o á porta, e muito grave, muito digno:
+
+--Doutor, se ha perigo, peço-lhe que se lembre... É uma alma christã em
+agonia, e eu estou aqui.
+
+--Certamente, certamente...
+
+O abbade tornou a ficar só, esperando. Tudo dormia na Ricoça, D.
+Josepha, os caseiros, a quinta, os campos em redor. Na sala, um relogio
+de parede, enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca do sol e
+em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau d'uma coruja
+pensativa, um movel de castello antigo, bateu a meia noite, depois uma
+hora. O abbade a cada momento ia até ao meio do corredor: era o mesmo
+rumor de pés n'uma lucta; outras vezes um silencio tenebroso. Voltava
+então para o seu Breviario. Meditava n'aquella pobre rapariga que, além
+no quarto, estava talvez no momento que ia decidir da sua eternidade:
+não tinha ao pé nem a mãi, nem as amigas: na memoria apavorada devia
+passar-lhe a visão do peccado: diante dos olhos turvos apparecia-lhe a
+face triste do Senhor offendido: as dôres contorciam o seu corpo
+miseravel: e na escuridão em que ia penetrando, sentia já o halito
+ardente da aproximação de Satanaz. Temeroso fim do tempo e da
+carne!--Então rezava fervorosamente por ella.
+
+Mas depois pensava no outro que fôra uma metade do seu peccado, e que
+agora na cidade, estirado na cama, resonava tranquillamente. E rezava
+então tambem por elle.
+
+Tinha sobre o Breviario um pequeno **crucifixo**. E contemplava-o com
+amor, abysmava-se enternecido na certeza da sua força, contra a qual era
+bem pouca a sciencia do doutor e todas as vaidades da razão!
+Philosophias, idéas, glorias profanas, gerações e imperios passam: são
+como os suspiros ephemeros do esforço humano: só ella permanece e
+permanecerá, a cruz--esperança dos homens, confiança dos desesperados,
+amparo dos frageis, asylo dos vencidos, força maior da humanidade: _crux
+triumphus adversus demonios, crux oppugnatorum murus_...
+
+Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante d'aquella tremenda
+batalha que estava dando lá dentro á morte; vinha buscar outro frasco;
+mas abriu a janella, sem uma palavra, para respirar um momento uma
+golfada d'ar fresco.
+
+--Como vai ella? perguntou o abbade.
+
+--Mal, disse o doutor sahindo.
+
+O abbade, então, ajoelhou, balbuciou a oração de S. Fulgencio:
+
+--Senhor, dá-lhe primeiro a paciencia, dá-lhe depois a misericordia...
+
+E alli ficou, com a face nas mãos, apoiado á beira da mesa.
+
+A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça. Era a Dionysia, que
+suspirava, recolhendo todos os guardanapos que encontrava nas gavetas do
+aparador.
+
+--Então, senhora, então? perguntou-lhe o abbade.
+
+--Ai, senhor abbade, está perdidinha... Depois das convulsões que foram
+d'arripiar, cahiu n'aquelle somno, que é o somno da morte...
+
+E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solidão, disse
+muito excitada:
+
+--Eu não quiz dizer nada... Que o senhor doutor tem um genio!... Mas
+sangrar a rapariga n'aquelle estado é querer matal-a... Que ella tinha
+perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se sangra ninguem em
+semelhante momento. Nunca, nunca!
+
+--O senhor doutor é homem de muita sciencia...
+
+--Póde ter a sciencia que quizer... Eu tambem não sou nenhuma tola...
+Tenho vinte annos d'experiencia... Nunca me morreu nenhuma nas mãos,
+senhor abbade... Sangrar em convulsões! Até causa horror!...
+
+Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a creaturinha. Até lhe
+quizera administrar chloroformio...
+
+Mas a voz do doutor Gouvêa berrou por ella do fundo do corredor--e a
+matrona abalou, com o seu mólho de guardanapos.
+
+O medonho relogio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas,
+depois as tres... O abbade, agora, cedia a espaços a uma fadiga de
+velho, cerrando um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente: ia
+respirar o ar pesado da noite, olhar aquella treva de toda a aldeia; e
+voltava a sentar-se, a murmurar, com a cabeça baixa, as mãos postas
+sobre o Breviario:
+
+--Senhor, volta os teus olhos misericordiosos para aquelle leito
+d'agonia...
+
+Foi então Gertrudes que appareceu commovida. O senhor doutor mandára-a a
+baixo acordar o moço para pôr a egoa ao _cabriolet_.
+
+--Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia tão bem, e de repente isto...
+Que foi por lhe tirarem o filho... Eu não sei quem é o pai, mas o que
+sei é que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...
+
+O abbade não respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.
+
+O doutor então entrou com o seu estojo na mão:
+
+--Se quizer, abbade, póde ir, disse.
+
+Mas o abbade não se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a
+bailar-lhe nos labios entreabertos, e retendo-a por timidez: emfim, não
+se conteve, e n'um tom de medo:
+
+--Fez-se tudo, não ha remedio, doutor?
+
+--Não.
+
+--É que nós, doutor, não devemos aproximar-nos d'uma mulher em parto
+illegitimo senão n'um caso extremo...
+
+--Está n'um caso extremo, senhor abbade, disse o doutor, vestindo já o
+seu grande casacão.
+
+O abbade então recolheu o Breviario, a cruz--mas antes de sahir,
+julgando do seu dever de sacerdote pôr diante do medico racionalista a
+certeza da eternidade mystica que se desprende do momento da morte,
+murmurou ainda:
+
+--É n'este instante que se sente o terror de Deus, o vão do orgulho
+humano...
+
+O doutor não respondeu, occupado a afivelar o seu estojo.
+
+O abbade sahiu--mas, já no meio do corredor, voltou ainda, e fallando
+com inquietação:
+
+--O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos soccorros da
+religião, os moribundos voltarem a si de repente, por uma graça
+especial... A presença do medico então póde ser util...
+
+--Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo
+involuntariamente de vêr a presença da Medicina reclamada para auxiliar
+a efficacia da Graça.
+
+Desceu, a vêr se estava prompto o _cabriolet_.
+
+Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e a Gertrudes, de rojos ao
+lado da cama, rezavam. O leito, todo o quarto estava revolvido como um
+campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se. Amelia estava
+immovel, com os braços hirtos, as mãos crispadas d'uma côr de purpura
+escura--e a mesma côr mais arroxeada cobria-lhe a face rigida.
+
+E debruçado sobre ella, com o crucifixo na mão, o abbade dizia ainda,
+n'uma voz d'angustia:
+
+--_Jesu, Jesu, Jesu!_ Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericordia
+divina! Arrepende-te no seio do Senhor! _Jesu, Jesu, Jesu!_
+
+Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o _Miserere_. O doutor
+que ficára á porta retirou-se devagarinho, atravessou em bicos de pés o
+corredor, e desceu á rua, onde o moço segurava a egoa atrellada.
+
+--Vamos ter agua, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de somno.
+
+O doutor Gouvêa ergueu a gola do paletot, accommodou o seu estojo no
+assento--e d'ahi a um momento o _cabriolet_ rodava surdamente pela
+estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da noite
+com o clarão vermelho das suas duas lanternas.
+
+
+
+
+XXV
+
+
+Ao outro dia desde as sete da manhã, o padre Amaro esperava a Dionysia
+em casa, postado á janella, com os olhos cravados na esquina da rua, sem
+reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionysia não
+apparecia: e elle teve de partir para a Sé, amargurado e doente, a
+baptisar o filho do Guedes.
+
+Foi uma pesada tortura para elle vêr aquella gente alegre que punha na
+gravidade da Sé, mais sombria por esse escuro dia de dezembro, todo um
+rumor mal contido de regosijo domestico e de festa paterna; o papá
+Guedes resplandecente de casaca e gravata branca, o padrinho
+compenetrado com uma grande camelia ao peito, as senhoras de gala, e
+sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com pompa um montão de
+rendas engommadas e de laçarotes azues onde mal se percebiam duas
+bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento bem longe
+na Ricoça e na Barrosa, foi engorolando á pressa as ceremonias: soprando
+em cruz sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio que já
+habitava aquellas carninhas tenras; impondo-lhe o sal sobre a bôca para
+que elle se desgostasse para sempre do sabor amargo do peccado e tomasse
+gosto a nutrir-se só da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas
+e nas narinas, para que elle não escutasse jámais as solicitações da
+carne e jámais respirasse os perfumes da terra. E em roda, com tochas na
+mão, os padrinhos, os convidados, na fadiga que davam tantos latins
+rosnados á pressa, só se occupavam do pequeno, n'um receio que elle não
+respondesse com algum desacato impudente ás tremendas exhortações que
+lhe fazia a Igreja sua Mãi.
+
+Amaro, então, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do
+pequerrucho que elle, alli em plena Sé, renunciasse para sempre a
+Satanaz, ás suas pompas e ás suas obras. O sacristão Mathias, que dava
+em latim as respostas rituaes, renunciou por elle--emquanto o pobre
+pequerrucho abria a boquinha a procurar o bico da mama. Emfim o parocho
+dirigiu-se á pia baptismal seguido de toda a familia, das velhas devotas
+que se tinham juntado, de gaiatos que esperavam uma distribuição de
+patacos. Mas foi toda uma atrapalhação para fazer as unções: a parteira
+commovida não atinava a desapertar os laçarotes do chambre, para pôr a
+nú os hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz ajudal-a: mas
+deixou escorregar a tocha, alastrou de cera derretida o vestido d'uma
+senhora, uma visinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.
+
+--Franciscus, credis?--perguntava Amaro.
+
+O Mathias apressou-se a affirmar, em nome de Francisco:
+
+--Credo.
+
+--Franciscus, vis baptisari?
+
+O Mathias:
+
+--Volo.
+
+Então a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda como um melão
+tenro: a criança agora perneava n'uma perrice.
+
+--Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris... et Filiis... et
+Espiritus Sancti...
+
+Emfim, acabára! Amaro correu á sacristia a desvestir-se--emquanto a
+parteira grave, o papá Guedes, as senhoras enternecidas, as velhas
+devotas e os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados sob os
+guardachuvas, chapinhando a lama, lá iam levando em triumpho Francisco,
+o novo christão.
+
+Amaro galgou os degraus de casa com o presentimento que ia encontrar a
+Dionysia.
+
+Lá estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada,
+enxovalhada da lucta da noite e da lama da estrada: e apenas o viu
+começou a choramingar.
+
+--Que é, Dionysia?
+
+Ella rompeu em soluços, sem responder.
+
+--Morta! exclamou Amaro.
+
+--Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou emfim a matrona.
+
+Amaro tombou para os pés da cama como morto tambem.
+
+A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a face d'agua, de vinagre.
+Elle recuperou-se um pouco, muito pallido: afastou-as com a mão, sem
+fallar; e atirou-se de bruços para sobre o travesseiro, n'um chôro
+desesperado,--emquanto as duas mulheres consternadas iam recolhendo á
+cozinha.
+
+--Parece que tinha muita amizade á menina, começou a Escolastica,
+fallando baixo como na casa d'um moribundo.
+
+--Costume d'ir por lá. Foi hospede tanto tempo... Ai, eram como
+irmãos...--disse a Dionysia, ainda chorosa.
+
+Fallaram então de doenças de coração--porque a Dionysia contára á
+Escolastica que a pobre menina tinha morrido d'um aneurisma rebentado. A
+Escolastica tambem soffria do coração; mas n'ella eram flatos, dos maus
+tratos que lhe dera o marido... Ah, tinha sido bem infeliz tambem!
+
+--Vossemecê toma uma gotinha de café, snr.^a Dionysia?
+
+--Olhe, a fallar a verdade, snr.^a Escolastica, tomava uma gotinha de
+geropiga...
+
+A Escolastica correu á taberna ao fim da rua, trouxe a geropiga n'um
+copo de quartilho debaixo do avental: e ambas á mesa, uma molhando sopas
+no café, outra escorropichando o copo, concordavam, com suspiros, que
+n'este mundo tudo eram sustos e lagrimas.
+
+Deram onze horas: e a Escolastica pensava em levar um caldo ao senhor
+parocho, quando elle chamou de dentro. Estava de chapéo alto, com o
+casaco abotoado, os olhos vermelhos como carvões...
+
+--Escolastica, vá a correr ao Cruz que me mande um cavallo... Mas
+depressa.
+
+Chamou então a Dionysia: e sentado ao pé d'ella, quasi contra os joelhos
+da mulher, com a face rigida e livida como um marmore, escutou em
+silencio a historia da noite--as convulsões de repente, tão fortes que
+ella, a Gertrudes e o senhor doutor mal a podiam segurar! o sangue, as
+prostrações em que cahia! depois a anciedade da asphyxia que a fazia tão
+rôxa como a tunica d'uma imagem...
+
+Mas o moço do Cruz chegára com o cavallo. Amaro tirou d'uma gaveta,
+d'entre roupa branca, um pequeno crucifixo, deu-o á Dionysia que ia
+voltar á Ricoça para ajudar a amortalhar a menina.
+
+--Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-m'o ella dado...
+
+Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa despediu a galope. Não
+chovia, agora; e entre as nuvens pardas algum raio fraco do sol de
+dezembro fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.
+
+Quando chegou ao pé do poço entulhado, d'onde se avistava a casa de
+Carlota, teve de parar, para deixar passar um longo rebanho d'ovelhas
+que tomava o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra ao hombro e a
+borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar de repente Feirão, toda a vida
+passada, que lhe voltava por fragmentos bruscos--aquellas paizagens
+afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna rindo estupidamente
+dependurada da corda do sino; as suas ceias de cabrito assado na
+Gralheira, com o abbade, defronte da chaminé, onde a lenha verde
+estalava; os longos dias em que se desesperava na tristeza da
+residencia, vendo fóra sem cessar cahir a neve... E veio-lhe um desejo
+ancioso d'essas solidões da serra, d'essa existencia de lobo, longe dos
+homens e das cidades, sepultado lá com a sua paixão.
+
+A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de roda chamar, atirando a
+voz por cima do telhado dos curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar
+os gallos. Ninguem respondeu. Seguiu então pelo caminho da aldeia,
+levando a egoa pela arreata; parou na taberna, onde uma mulher obesa
+fazia meia sentada á porta. Dentro, no escuro da baiuca, dois homens com
+os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas n'uma bisca renhida; e um
+rapazola d'uma amarellidão de sezões, com um lenço amarrado na cabeça,
+olhava-lhes o jogo tristemente.
+
+A mulher tinha justamente visto passar a snr.^a Carlota, que até parára
+a comprar um quartilho de azeite. Devia estar em casa da Michaela, ao
+adro. Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu de traz da
+sombra das pipas.
+
+--Corre, vai á Michaela, dize à snr.^a Carlota que está aqui um senhor
+da cidade.
+
+Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado n'uma pedra, com o
+seu cavallo pela redea. Mas aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi
+pôr o ouvido á fechadura, na esperança d'ouvir um chôro, uma rabuje de
+criança. Dentro pesava um silencio de caverna abandonada. Mas
+tranquillisava-o a idéa que a Carlota teria levado a criança comsigo,
+para Michaela. Devia realmente ter perguntando á mulher na taberna, se a
+Carlota trazia uma criança ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a
+sua janella em cima que tinha uma cortininha de cassa, um luxo tão raro
+n'aquellas freguezias pobres; recordava a boa ordem, o escarolado da
+louça da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambem um berço
+aceado...
+
+Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera alli, na mesa da
+cozinha, quatro libras em ouro, preço adiantado d'um anno de criação, e
+dissera cruelmente ao anão--«conto comsigo»! Pobre pequerruchinho!...
+Mas a Carlota comprehendera bem, á noite na Ricoça, que elle agora
+queria-o vivo, o seu filho, e creado com mimo!... Todavia não o deixaria
+alli, não, sob o olho raiado de sangue do anão... Leval-o-hia essa noite
+á Joanna Carreira dos Poyaes...
+
+Que as sinistras historias da Dionysia, a _tecedeira d'anjos_, eram uma
+legenda insensata. A criança estava muito regalada em casa de Michaela,
+chupando aquelle bom peito de quarentona sã... E vinha-lhe então o mesmo
+desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se em Feirão, levar comsigo a
+Escolastica, educar lá a criança como sobrinho, revivendo n'elle
+largamente todas as emoções d'aquelle romance de dois annos; e alli
+passaria n'uma paz triste, na saudade de Amelia, até ir como o seu
+antecessor, o abbade Gustavo que tambem creára um sobrinho em Feirão,
+repousar para sempre no pequeno cemiterio, de verão sob as flôres
+silvestres, de inverno sob a neve branca.
+
+Então a Carlota appareceu; e ficou attonita ao reconhecer Amaro, sem
+passar da cancella, com a testa franzida, a sua bella face muito grave.
+
+--A criança? exclamou Amaro.
+
+Depois d'um momento, ella respondeu, sem perturbação:
+
+--Nem me falle n'isso, que me tem dado um desgosto... Hontem mesmo, duas
+horas depois de ter chegado... O pobre anjinho começa a fazer-se rôxo, e
+alli me morreu debaixo dos olhos...
+
+--Mente! gritou Amaro. Quero vêr.
+
+--Entre, senhor, se quer vêr.
+
+--Mas que lhe disse eu hontem, mulher?
+
+--Que quer, senhor? Morreu. Veja...
+
+Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem cólera nem receio. Amaro
+entreviu n'um relance, ao pé da chaminé, um berço coberto com um saiote
+escarlate.
+
+Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima do cavallo. Mas a
+mulher, muito loquaz subitamente, rompeu a dizer que tinha ido
+justamente à aldeia para encommendar um caixãosinho decente... Como vira
+que era filho de pessoa de bem, não o quisera enterrar embrulhado n'um
+trapo. Mas emfim, como o senhor alli estava, parecia-lhe razoavel que
+désse algum dinheiro para a despeza... Uns dois mil reis que fossem.
+
+Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal de a esganar; por
+fim, metteu-lhe o dinheiro na mão. E ia trotando no carreiro, quando a
+sentiu ainda correndo, gritando _pst! pst!_ A Carlota queria-lhe
+restituir o capote que elle emprestára na vespera: tinha feito muito bom
+serviço, que a criança chegára quente como um rojãosinho...
+Infelizmente...
+
+Amaro já a não escutava, esporeando furiosamente a ilharga da
+cavalgadura.
+
+Na cidade, depois de apear à porta do Cruz, não entrou em casa. Foi
+direito ao paço do bispo. Tinha agora uma idéa só: era deixar aquella
+cidade maldita, não vêr mais as faces das devotas, nem a fachada odiosa
+da Sé...
+
+Foi só ao subir a larga escadaria de pedra do paço, que lhe lembrou com
+inquietação o que o Libaninho dissera na vespera da indignação do senhor
+vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade do padre
+Saldanha, o confidente do paço, que o introduziu logo na livraria de sua
+excellencia, tranquillisou-o. O senhor vigario geral foi muito amavel.
+Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...
+
+--É que tenho um grande desgosto, senhor vigario geral. Minha irmã está
+a morrer em Lisboa. E venho pedir a vossa excellencia licença para lá
+ir, por uns dias...
+
+O senhor vigario geral consternou-se com bondade.
+
+--Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros forçados da barca de
+Charonte.
+
+
+Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat
+Et ferruginea subvectat corpora cymba.
+
+
+Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... Não me esquecerei de a recommendar
+nas minhas orações...
+
+E muito methodico, sua excellencia tomou uma nota a lapis.
+
+Amaro, ao sahir do paço, foi direito á Sé. Fechou-se na sacristia, a
+essa hora deserta: e depois de pensar muito tempo com a cabeça entre os
+punhos, escreveu ao conego Dias:
+
+«Meu caro padre-mestre.--Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A
+infeliz morreu. Eu não posso, bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui
+ficasse, estalava-me o coração. Sua excellentissima irmã lá estará
+tratando do enterro... Eu, como comprehende, não posso. Muito lhe
+agradeço tudo... Até um dia, se Deus quizer que nos tornemos a vêr. Por
+mim conto ir para longe, para alguma pobre parochia de pastores, acabar
+meus dias nas lagrimas, na meditação e na penitencia. Console como puder
+a desgraça da mãi. Nunca me esquecerei do que lhe devo, emquanto tiver
+um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça.--Seu amigo
+do C.--_Amaro Vieira_.»
+
+«P. S. A criança morreu tambem, já se enterrou.»
+
+
+Fechou a carta com uma obreia preta; e depois d'arranjar os seus papeis,
+foi abrir o grande portão chapeado de ferro, olhar um momento o pateo, o
+barracão, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras chuvas já davam
+áquelle recanto da Sé o seu ar lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar,
+sob o silencio triste dos altos contrafortes, espreitou á vidraça da
+cozinha do tio Esguelhas: elle lá estava, sentado á chaminé, com o
+cachimbo na bôca, cuspilhando tristemente para as cinzas. Amaro bateu de
+leve nos vidros--e quando o sineiro abriu a porta, aquelle interior
+conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tótó, a escada
+que ia para o quarto, agitaram o parocho de tantas recordações e de
+saudades tão bruscas, que não pôde fallar um momento, com a garganta
+tomada de soluços.
+
+--Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou por fim. Vou a Lisboa,
+tenho minha irmã a morrer...
+
+E acrescentou com os beiços tremulos d'um chôro que ia romper:
+
+--Todas as desgraças vêm juntas. Sabe, a pobre Ameliasinha lá morreu de
+repente...
+
+O sineiro emmudeceu, assombrado.
+
+--Adeus, tio Esguelhas. Dê cá a mão, tio Esguelhas. Adeus...
+
+--Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho com os olhos arrazados
+d'agua.
+
+Amaro fugiu para casa, contendo-se para não soluçar alto pelas ruas.
+Disse logo á Escolastica que ia partir n'essa noite para Lisboa. O tio
+Cruz devia mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a Chão de
+Maçãs.
+
+--Eu não tenho senão o dinheiro que é necessario para a jornada. Mas o
+que ahi me fica em lençoes e toalhas é para vossê...
+
+A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho, quiz beijar-lhe a
+mão por tanta generosidade: offereceu-se para fazer a mala...
+
+--Eu mesmo a arranjo, Escolastica, não se incommode.
+
+Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando, foi logo
+recolher, examinar as poucas roupas que estavam pelos armarios. Mas
+Amaro d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma harpa e uma
+rebeca, em desafinação, tocavam a valsa dos _Dois mundos_.
+
+--Dê um tostão a esses homens, disse o padre furioso. E diga-lhe que vão
+p'r'ó inferno... Que está aqui gente doente!
+
+E até ás cinco horas a Escolastica não tornou a sentir rumor no quarto.
+
+Quando o moço do Cruz veio com o cavallo, pensando que o senhor parocho
+adormecera, ella foi-lhe bater devagarinho á porta do quarto,
+choramingando já da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de capote
+aos hombros; no meio do quarto prompta e acorreada a mala de lona que
+devia ir á garupa da egoa. Deu-lhe um maço de cartas para ir entregar
+n'essa noite à snr.^a D. Maria da Assumpção, ao padre Silverio e a
+Natario: e ia descer, entre os prantos da mulher, quando sentiu na
+escada um ruido conhecido de muleta, e o tio Esguelhas appareceu muito
+commovido.
+
+--Entre, tio Esguelhas, entre.
+
+O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um momento:
+
+--Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me esquecido de todo, com
+os desgostos que tenho passado. Já ha tempo que achei no quarto isto, e
+pensei que...
+
+E metteu na mão de Amaro um brinco d'ouro. Elle reconheceu-o logo: era
+d'Amelia. Muito tempo ella o procurára debalde; soltára-se decerto
+n'alguma manhã d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro então,
+suffocado, abraçou o tio Esguelhas.
+
+--Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por cá de mim. Dê lembranças ao
+Mathias, tio Esguelhas...
+
+O moço afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu, deixando a
+Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar ambos á porta.
+
+Mas depois de ter passado os açudes, ao pé d'uma volta da estrada, teve
+de apear para compôr o estribo: e ia montar, quando appareceram dobrando
+o muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor administrador do
+concelho, muito amigos agora, e que vinham, depois do passeio,
+recolhendo para a cidade. Pararam logo a fallar ao senhor
+parocho--admirando-se de o vêr alli, de maleta na garupa, com ares de
+jornada...
+
+--É verdade, disse, vou para Lisboa!
+
+O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe a
+felicidade.--Mas quando o parocho fallou da irmã moribunda,
+affligiram-se com polidez; e o senhor administrador disse:
+
+--Deve estar muito sentido, comprehendo... De mais a mais essa outra
+desgraça na casa d'aquellas senhoras suas amigas... A pobre Ameliasinha,
+morta assim de repente...
+
+O antigo Bibi exclamou:
+
+--O quê? A Ameliasinha, aquella bonita que morava na rua da
+Misericordia? Morreu?
+
+O doutor Godinho tambem o ignorava, e pareceu consternado.
+
+O senhor administrador soubera-o pela sua criada, que o ouvira da
+Dionysia. Dizia-se que fôra um aneurisma.
+
+--Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe se afflijo as suas
+crenças respeitaveis, que são as minhas de resto... Mas Deus commetteu
+um verdadeiro crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da cidade! Que
+olhos, senhores! E depois com aquelle picantesinho da virtude...
+
+Então, n'um tom de pezames, todos lamentaram aquelle golpe que devia ter
+affectado tanto o senhor parocho.
+
+Elle disse muito grave:
+
+--Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com as suas boas qualidades,
+devia fazer, sem duvida, uma esposa modêlo... Senti-o muito.
+
+Apertou silenciosamente as mãos em redor--e emquanto os cavalheiros
+recolhiam á cidade, o padre Amaro foi trotando pela estrada, que já
+escurecia, para a estação de Chão de Maçãs.
+
+
+Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia sahiu da Ricoça. Era
+uma manhã aspera: o céo e os campos estavam afogados n'uma nevoa
+pardacenta; e cahia, muito miuda, uma chuva regelada. Era longe da
+quinta a capella dos Poyaes. O menino do côro adiante, de cruz alçada,
+apressava-se, chapinhando a lama a grandes pernadas; o abbade Ferrão,
+d'estola negra, abrigava-se, murmurando o _Exultabunt Domino_, sob o
+guardachuva que sustentava ao lado o sacristão com o hyssope; quatro
+trabalhadores da quinta, abaixando a cabeça contra a chuva obliqua,
+levavam n'uma padiola o esquife que tinha dentro o caixão de chumbo; e,
+sob o vasto guardachuva do caseiro, a Gertrudes de mantéo pela cabeça ia
+desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o valle triste dos Poyaes
+cavava-se, todo pardo na neblina, n'um grande silencio; e a voz enorme
+do vigario, mugindo o _Miserere_, rolava pela quebrada humida onde
+murmuravam os riachos muito cheios.
+
+Mas ás primeiras casas da aldeia os moços do caixão pararam derreados; e
+então um homem, que estava esperando debaixo d'uma arvore sob o seu
+guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro. Era João
+Eduardo, de luvas pretas, carregado de luto, com as olheiras cavadas em
+dois sulcos negros, grossas lagrimas a correrem-lhe nas faces. E
+immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se dois criados de
+farda, com as calças muito arregaçadas e tochas na mão--dois lacaios que
+mandára o Morgado, para honrar o enterro d'uma d'essas senhoras da
+Ricoça, amigas do abbade.
+
+Então, vendo estas duas librés que vinham afidalgar o prestito, o menino
+do côro rompeu logo, erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, já sem
+fadiga, impertigaram-se ás varas da padiola: o sacristão bramiu um
+_Requiem_ tremendo. E pelas lamas do íngreme caminho da aldeia foi
+subindo o enterro, emquanto às portas as mulheres se ficavam
+persignando, olhando as sobrepellizes brancas e o caixão de galões
+d'ouro, que se iam afastando seguidos do grupo de guardachuvas abertos,
+sob a chuva triste.
+
+A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras: o sino dobrava: e o
+enterro sumiu-se para o interior da igreja escura, ao canto do
+_Subvenite sancti_ que o sacristão entoou em ronco.--Mas os dois criados
+de farda não entraram porque o senhor Morgado assim o tinha ordenado.
+
+Ficaram á porta, sob o guardachuva, escutando, batendo os pés regelados.
+Dentro seguia o cantochão; depois era um ciciar d'orações que se
+amortecia: e de repente latins funebres lançados pela voz grossa do
+vigario.
+
+Então os dois homens, enfastiados, desceram do adro, entraram um momento
+na taberna do tio Seraphim. Dois moços de gado da quinta do Morgado, que
+bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se logo vendo apparecer os
+dois criados de farda.
+
+--Á vontade, rapazes, é sentar e beber, disse o velho baixito que
+acompanhava João Eduardo a cavallo. Nós lá estamos, na massada do
+enterro... Boas tardes, snr. Seraphim.
+
+Apertaram a mão ao Seraphim, que lhes mediu duas aguardentes--e
+informou-se se a defunta era a noiva do snr. Joãosinho. Tinham-lhe dito
+que morrera d'uma veia rebentada.
+
+O baixito riu:
+
+--Qual veia rebentada! Não lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe
+rebentou foi um rapagão pelo ventre...
+
+--Obra do snr. Joãosinho? perguntou o Seraphim, arregalando o olho
+bréjeiro.
+
+--Não me parece, disse o outro com importancia. O snr. Joãosinho estava
+em Lisboa... Obra d'algum cavalheiro da cidade... Sabe vossemecê de quem
+eu desconfio, snr. Seraphim?...
+
+Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o
+sahimento já ia ao pé do cemiterio, e que não faltavam senão «aquelles
+senhores»! Os lacaios abalaram logo, e alcançaram o enterro quando ia
+passando a pequena grade do cemiterio, ao ultimo versiculo do
+_Miserere_. João Eduardo agora levava uma vela na mão, ia logo atraz do
+caixão d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados de lagrimas
+fitos no velludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino na capella
+dobrava desoladamente. A chuva cahia mais miuda. E todos calados, no
+silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela terra molle,
+iam-se dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a
+cova d'Amelia, negra e profunda entre a relva humida. O menino do côro
+cravou no chão a haste da cruz prateada, e o abbade Ferrão,
+adiantando-se até á beira do buraco escuro, murmurou o _Deus cujus
+miseratione_... Então João Eduardo, muito pallido, vacillou de repente,
+e o guardachuva cahiu-lhe das mãos; um dos criados de farda correu,
+segurou-o pela cinta; queriam-no levar, arrancal-o d'ao pé da cova; mas
+elle resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados, segurando-se
+desesperadamente á manga do criado, vendo o coveiro e os dois moços
+amarrarem as cordas no caixão, fazerem-no resvalar devagar entre a terra
+esfarellada que rolava, com um ranger de taboas mal pregadas.
+
+--_Requiem aeternam donna ei, Domine!_
+
+--_Et lux perpetua luceat ei_, mugiu o sacristão.
+
+O caixão bateu no fundo com uma pancada surda: o abbade espalhou em cima
+uma pouca de terra em fórma de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope
+sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:
+
+--_Requiescat in pace_.
+
+--_Amen_, responderam a voz cava do sacristão e a voz aguda do menino do
+côro.
+
+--_Amen_, disseram todos n'um murmurio, que ciciou, se perdeu entre os
+cyprestes, as hervas, os tumulos e as nevoas frias d'aquelle triste dia
+de dezembro.
+
+
+
+
+XXVI
+
+
+Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havaneza, ao
+Chiado, em Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos
+que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam o pescoço,
+por entre a massa dos chapeus, para a grade do balcão, onde n'uma
+taboleta suspensa se collavam os telegrammas da _Agencia Havas_;
+sujeitos de faces espantadas sahiam consternados, exclamando logo para
+algum amigo mais pacato que os esperára fóra:
+
+--Tudo perdido! Tudo a arder!
+
+Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão,
+questionava-se forte; e pelo passeio, no largo do Loreto, defronte ao pé
+do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquelle dia já quente
+do começo de verão, toda uma gralhada de vozes impressionadas onde as
+palavras--_Communistas! Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime!
+Internacional!_ voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o
+ruido das tipoias e os pregões dos garotos gritando _supplementos_.
+
+Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas annunciando os episodios
+successivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris: telegrammas
+despedidos de Versailles n'um terror dizendo os palacios que ardiam, as
+ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa nos pateos dos quarteis e
+entre os mausoleus dos cemiterios; a vingança que ia saciar-se até á
+escuridão dos esgotos; a fatal demencia que desvairava as fardas e as
+blusas; e a resistencia que tinha o furor de uma agonia com os methodos
+d'uma sciencia, e fazia saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela
+dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convulsão, um fim de mundo--que
+vinte, trinta palavras de repente mostravam, n'um relance, a um clarão
+de fogueira.
+
+O Chiado lamentava com indignação aquella ruina de Paris. Recordavam-se
+com exclamações os edificios ardidos, o Hotel de Ville, «tão bonito», a
+rua Royale, «aquella riqueza». Havia individuos tão furiosos com o
+incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade sua: os que tinham
+estado em Paris um ou dois mezes abriam-se em invectivas, arrogando-se
+uma participação de parisiense na riqueza da cidade, escandalisados por
+a insurreição não ter respeitado monumentos em que elles tinham posto os
+seus olhos.
+
+--Vejam vossês! exclamava um sujeito gordo. O palacio da Legião d'Honra
+destruido! Ainda não ha um mez que eu lá estive com minha mulher... Que
+infamia! Que patifaria!
+
+Mas espalhára-se que o ministerio recebera outro telegramma mais
+desolador: toda a linha do _boulevard_ da Bastilha á Magdalena ardia, e
+ainda a praça da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos até ao Arco
+do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado, n'uma demencia, todo
+aquelle systema de restaurantes, cafés-concertos, bailes publicos, casas
+de jogo e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o largo do Loreto
+até ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chammas
+aniquilado aquella centralisação tão commoda da patuscada! Oh que
+infamia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em Paris? Onde se
+encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a vêr aquelle
+desfilar prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e seccos
+d'inverno, quando as victorias das cocottes resplandeciam ao pé dos
+phaetons dos agentes da Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as
+bibliothecas e os museus: mas a saudade era sincera pela destruição dos
+cafés e pelo incendio dos lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da
+França!
+
+N'um grupo ao pé da Casa Havaneza os questionadores politicavam:
+pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo, se começava a
+citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas
+rompiam contra Proudhon. A maior parte imaginava que era elle que tinha
+incendiado. Mas o poeta estimado das _Flôres e Ais_ acudiu dizendo «que,
+à parte as asneiras que Proudhon dizia, era ainda assim um estylista
+bastante ameno». Então o jogador França berrou:
+
+--Qual estylo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os
+ossos!
+
+E rachava. Depois do cognac o França era uma fera.
+
+Alguns moços porém, a quem o elemento dramatico da catastrophe revolvia
+o instincto romantico, applaudiam a heroicidade da Communa--Vermorel
+abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas que o trespassavam
+gritando: Viva a humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de
+santo, dictando do seu leito d'agonia as violencias da resistencia...
+
+--São grandes homens! exclamava um rapaz exaltado.
+
+Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pallidas, vendo
+já as suas casas na Baixa a escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza
+presa de chammas socialistas. Então era em todos os grupos um furor
+d'auctoridade e repressão: era necessario que a sociedade, atacada pela
+Internacional, se refugiasse na força dos seus principios conservadores
+e religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes com tendas de
+capellistas fallavam da «canalha» com o desdem imponente d'um La
+Tremouille ou d'um Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a
+vingança. Vadios pareciam furiosos «contra o operario que quer viver
+como principe». Fallava-se com devoção na propriedade, no capital!
+
+D'outro lado eram moços verbosos, localistas excitados que declamavam
+contra o velho mundo, a velha idéa, ameaçando-os d'alto, propondo-se a
+derruil-os em artigos tremendos.
+
+E assim uma burguezia entorpecida esperava deter, com alguns policias,
+uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de litteratura, decidia
+destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos. Mas ninguem se
+mostrava mais exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do
+degrau da Casa Havaneza brandia a bengala, aconselhando á França a
+restauração dos Bourbons.
+
+Então um homem vestido de preto, que sahira do estanco e atravessava por
+entre os grupos, parou, sentindo uma voz espantada que exclamava ao
+lado:
+
+--Ó padre Amaro! ó maganão!
+
+Voltou-se: era o conego Dias. Abraçaram-se com vehemencia, e para
+conversarem mais tranquillamente foram andando até ao largo de Camões, e
+alli pararam, junto á estatua:
+
+--Então vossê quando chegou, padre-mestre?
+
+Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira
+por causa d'uma servidão na quinta, tinha appellado para a Relação, e
+vinha seguir de perto a questão na capital.
+
+--E vossê, Amaro? Na ultima carta dizia-me que tinha vontade de sahir de
+Santo Thyrso.
+
+Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas vagára Villa-Franca, e
+elle, para estar mais perto da capital, viera fallar com o senhor conde
+de Ribamar, o seu conde, que lá andava obtendo a transferencia.
+Devia-lhe tudo, sobretudo á senhora condessa!
+
+--E de Leiria? A S. Joanneira, vai melhor?
+
+--Não, coitada... Vossê sabe, ao principio tivemos um susto dos
+diabos... Pensavamos que lhe ia succeder como á Amelia. Mas não, era
+hydropesia... E alli o que ha é anasarca...
+
+--Coitada, santa senhora! E o Natario?
+
+--Avelhado. Tem tido seus desgostos. Muita lingua.
+
+--E diga lá, padre-mestre, o Libaninho?
+
+--Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o conego rindo.
+
+O padre Amaro riu tambem: e durante um momento os dois sacerdotes
+pararam, apertando as ilhargas.
+
+--Pois é verdade, disse emfim o conego. A coisa tinha sido realmente
+escandalosa... Porque emfim, repare o amigo que o pilharam com o
+sargento, de tal modo que não havia a duvidar... E ás dez horas da
+noite, na alameda! Já é imprudencia... Mas emfim a coisa esqueceu, e
+quando o Mathias morreu, lá lhe demos o logar de sacristão, que é bem
+boa posta... Muito melhor que o que elle tinha no cartorio... E ha de
+cumprir com zelo!
+
+--Ha de cumprir com zelo, concordou muito sério o padre Amaro. E a
+proposito, a D. Maria da Assumpção?
+
+--Homem, rosnam-se coisas... Criado novo... Um carpinteiro que morava
+defronte... O rapaz anda no trinque.
+
+--Palavra?
+
+--No trinque. Charuto, relogio, luva! Tem pilheria, hein?
+
+--É divino!
+
+--As Gansosos na mesma, continuou o conego. Têm agora a sua criada, a
+Escolastica.
+
+--E da besta do João Eduardo?
+
+--Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está ainda nos Poyaes. O Morgado está mal
+do figado. E o João Eduardo diz que está tisico... que eu não sei, nunca
+mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferrão.
+
+--Como vai elle, o Ferrão?
+
+--Bem. Sabe quem eu vi ha dias? A Dionysia.
+
+--E então?
+
+O conego disse uma palavra baixo ao ouvido do padre Amaro.
+
+--Deveras, padre-mestre?
+
+--Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Luiz da
+Barrosa é que lhe deu o dinheiro para montar o estabelecimento. Pois
+aqui estão as novidades. E vossê está mais forte, homem! Fez-lhe bem a
+mudança...
+
+E pondo-se diante, galhofando:
+
+--Ó Amaro, e vossê a escrever-me que queria retirar-se para a serra, ir
+para um convento, passar a vida em penitencia...
+
+O padre Amaro encolheu os hombros:
+
+--Que quer vossê, padre-mestre?... N'aquelles primeiros momentos... Olhe
+que me custou! Mas tudo passa...
+
+--Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma pausa:--Ah! Mas Leiria já
+não é Leiria!
+
+Passearam então um momento em silencio, n'uma recordação que lhes vinha
+do passado, os quinos divertidos da S. Joanneira, as palestras ao chá,
+as passeatas ao Morenal, o _Adeus_ e o _Descrido_ cantados pelo Arthur
+Couceiro e acompanhados pela pobre Amelia, que agora lá dormia, no
+cemiterio dos Poyaes, sob as flôres silvestres...
+
+--E que me diz vossê a estas coisas de França, Amaro? exclamou de
+repente o conego.
+
+--Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma sucia de padres
+fuzilados!... Que brincadeira!
+
+--Má brincadeira, rosnou o conego.
+
+E o padre Amaro:
+
+--E cá pelo nosso canto parece que começam tambem essas idéas...
+
+O conego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de
+maçons, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de
+tudo o que é respeitavel--o clero, a instrucção religiosa, a familia, o
+exercito e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros
+desencadeados! Eram necessarias as antigas repressões, a masmorra e a
+forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.
+
+--Ahi ó que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem
+senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo
+sacerdocio...
+
+--Calumniam-nos infamamente, disse n'um tom profundo o conego.
+
+Então junto d'elles passaram duas senhoras, uma já de cabellos brancos,
+o ar muito nobre; a outra, uma creaturinha delgada e pallida, d'olheiras
+batidas, os cotovêlos agudos collados a uma cinta d'esterilidade,
+_pouff_ enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
+
+--Caspitè! disse o conego baixo, tocando o cotovêlo do collega. Hein,
+seu padre Amaro?... Aquillo é que vossê queria confessar.
+
+--Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o parocho rindo, já as não
+confesso senão casadas!
+
+O conego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o
+seu ar ponderoso de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente o
+chapéo a um cavalheiro de bigode grisalho e oculos d'ouro, que entrava
+na praça, do lado do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o
+guardasol debaixo do braço.
+
+Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com bonhomia para os dois
+sacerdotes; e Amaro, descoberto e perfilado, apresentou «o seu amigo, o
+senhor conego Dias, da Sé de Leiria». Conversaram um momento da estação,
+que já ia quente. Depois o padre Amaro fallou dos ultimos telegrammas.
+
+--Que diz vossa excellencia a estas coisas de França, senhor conde?
+
+O estadista agitou as mãos, n'uma desolação que lhe assombreava a face:
+
+--Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem me falle n'isso... Vêr
+meia duzia de bandidos destruir Paris... O meu Paris!... Creiam vossas
+senhorias que tenho estado doente.
+
+Os dois sacerdotes, com uma expressão consternada, uniram-se á dôr do
+estadista.
+
+E então o conego:
+
+--E qual pensa vossa excellencia que será o resultado?
+
+O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras que sabiam devagar,
+sobrecarregadas do peso das idéas, disse:
+
+--O resultado?... Não é difficil prevel-o. Quando se tem alguma
+experiencia da Historia e da Politica, o resultado de tudo isto vê-se
+distinctamente. Tão distinctamente como os vejo a vossas senhorias.
+
+Os dois sacerdotes pendiam dos labios propheticos do homem de governo.
+
+--Suffocada a insurreição--continuou o senhor conde olhando a direito
+diante de si com o dedo no ar, como seguindo, apontando os futuros
+historicos que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro,
+penetrava--suffocada a insurreição, dentro de tres mezes temos de novo o
+imperio... Se vossas senhorias tivessem visto como eu uma recepção nas
+Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio, haviam de dizer,
+como eu, que a França é profundamente imperialista e só imperialista...
+Temos pois Napoleão III: ou talvez elle abdique, e a imperatriz tome a
+regencia na menoridade do principe imperial... Eu aconselharia antes, e
+já o fiz saber, que era esta talvez a solução mais prudente. Como
+consequencia immediata temos o Papa em Roma outra vez senhor do poder
+temporal... Eu, a fallar a verdade, e já o fiz saber, não approvo uma
+restauração papal. Mas eu não lhes estou aqui a dizer o que approvo, ou
+o que reprovo. Felizmente não sou o dono da Europa... Seria um encargo
+superior á minha idade e ás minhas enfermidades. Estou a dizer o que a
+minha experiencia da Politica e da Historia me aponta como certo...
+Dizia eu...? Ah! a imperatriz no throno de França, Pio Nono no throno de
+Roma, ahi temos a democracia esmagada entre estas duas forças sublimes,
+e creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa e os
+elementos de que se compõe a sociedade moderna, creiam que depois d'este
+exemplo da Communa não se torna a ouvir fallar de republica, nem de
+questão social, nem de povo, n'estes cem annos mais chegados!...
+
+--Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o conego.
+
+Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma praça de Lisboa, em
+conversação intima com um estadista illustre, perguntou ainda, pondo nas
+palavras uma anciedade de conservador assustado:
+
+--E crê vossa excellencia que essas idéas de republica, de materialismo,
+se possam espalhar entre nós?
+
+O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quasi junto
+das grades que cercam a estatua de Luiz de Camões:
+
+--Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É
+possivel que haja ahi um ou dois esturrados que se queixem, digam
+tolices sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um marasmo, e
+que vamos cahindo no embrutecimento, e que isto assim não póde durar dez
+annos. etc. etc. Babuseiras!...
+
+Tinha-se encostado quasi ás grades da estatua, e tomando uma attitude de
+confiança:
+
+--A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que
+vou a dizer não é para lisonjear a vossas senhorias: mas emquanto n'este
+paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas senhorias, Portugal ha
+de manter com dignidade o seu logar na Europa! Porque a fé, meus
+senhores, é a base da ordem!
+
+--Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram com força os dois
+sacerdotes.
+
+--Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que
+prosperidade!
+
+E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do Loreto, que áquella hora,
+n'um fim de tarde serena concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias
+rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto,
+com os movimentos derreados, a pallidez chlorotica d'uma degeneração de
+raça; n'alguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome historico,
+com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça
+gente estirava-se n'um torpôr de vadiagem; um carro de bois, aos
+solavancos sobre as suas altas rodas, era como o symbolo de agriculturas
+atrazadas de seculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum
+burguez enfastiado lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas; nas
+faces enfezadas de operarios havia como a personificação das industrias
+moribundas... E todo este mundo decrepito se movia lentamente, sob um
+céo lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a
+batota publica, e rapazitos de voz plangente offerecendo o _Jornal das
+pequenas novidades_: e iam, n'um vagar madraço, entre o largo onde se
+erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das
+casarias da praça onde brilhavam tres taboletas de casas de penhores,
+negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo
+d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro de prostituição e de
+crime.
+
+--Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade,
+este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que sejamos a
+inveja da Europa!
+
+E o homem d'estado, os dois homens de religião, todos tres em linha,
+junto ás grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza
+gloriosa da grandeza do seu paiz,--alli ao pé d'aquelle pedestal, sob o
+frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos
+hombros de cavalleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme,
+cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da antiga patria--patria
+para sempre passada, memoria quasi perdida!
+
+Outubro 1878--Outubro 1879.
+
+
+
+
+Lista de erros corrigidos
+
+Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:
+
+
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ | | Original | Correcção |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+ |#pág. 81| ?uz | luz |
+ |#pág. 88| arcepispo | arcebispo |
+ |#pág. 95| branços | braços |
+ |#pág. 152| elle | ella |
+ |#pág. 344| demolissse | demolisse |
+ |#pág. 357| religão | religião |
+ |#pág. 357| Infelimente | Infelizmente |
+ |#pág. 357| podia ter ter | podia ter |
+ |#pág. 360| tataruga | tartaruga |
+ |#pág. 372| patite | patife |
+ |#pág. 396| exemplicar | exemplificar |
+ |#pág. 397| cebeça | cabeça |
+ |#pág. 425| installado-se | installando-se |
+ |#pág. 428| encondo | encontrado |
+ |#pág. 430| iria em em | iria em |
+ |#pág. 436| enconder | esconder |
+ |#pág. 460| atravessassse | atravessasse |
+ |#pág. 463| malacia | malicia |
+ |#pág. 478| grades | grandes |
+ |#pág. 489| necesario | necessario |
+ |#pág. 489| viessa | viesse |
+ |#pág. 492| entercimento | enternecimento |
+ |#pág. 558| appareeeu | appareceu |
+ |#pág. 634| cruxifico | crucifixo |
+ +----------+---------------------+----------------------+
+
+
+O original não tem capítulo XI, no entanto, a numeração das páginas não
+apresenta quebra na narração. Optámos por não corrigir a numeração dos
+capítulos.
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of O crime do padre Amaro, by
+José Maria Eça de Queirós
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***
+
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+
+Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
+electronic works in formats readable by the widest variety of computers
+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
+keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
+
+
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