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diff --git a/.gitattributes b/.gitattributes new file mode 100644 index 0000000..6833f05 --- /dev/null +++ b/.gitattributes @@ -0,0 +1,3 @@ +* text=auto +*.txt text +*.md text diff --git a/34387-8.txt b/34387-8.txt new file mode 100644 index 0000000..753ed6a --- /dev/null +++ b/34387-8.txt @@ -0,0 +1,9353 @@ +The Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by +Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Historia de Portugal: Tomo I + +Author: Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +Release Date: November 21, 2010 [EBook #34387] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + + + *Notas de transcrição:* + + O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso + em 1908. + + Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido + corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a + leitura do texto, e que por isso não foram assinalados. + + + + + +HISTORIA DE PORTUGAL + +TOMO I + + + + + * * * * * + + + + +J. P. OLIVEIRA MARTINS + +OBRAS COMPLETAS + +I. Historia nacional: + +HISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA, 4.ª ed. (1897), 1 vol., br. 700 rs. +Enc. 900. + +HISTORIA DE PORTUGAL, 7.ª ed. (1908), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800. + +O BRAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS, 4.ª ed. (1888). 1 vol., br. 700 rs. +Enc. 900. + +PORTUGAL CONTEMPORANEO, 4.ª ed. (1907). 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400. + +PORTUGAL NOS MARES, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900. + +CAMÕES, OS LUSIADAS E A RENASCENÇA EM PORTUGAL, (1891). 1 vol., br. 600 +rs. Enc. 800. + +NAVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS PORTUGUESES, (_ed. do Ateneo de +Madrid_, 1892). 1 vol. (não entrou no commercio.) + +A VIDA DE NUN'ALVARES, 2.ª ed. (1894). 1 vol., br. 2$000 rs. Cart. +2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200. + +OS FILHOS DE D. JOÃO I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800. + +O PRINCIPE PERFEITO, (1895), 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas +doiradas, 3$200. + +II. Historia geral: + +ELEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA, 4.ª ed. (1885), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900. + +AS RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. +1$800. + +SYSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS, 3.ª ed. (1895), 1 vol., br. 800 rs. Enc. +1$000. + +QUADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS, 2.ª ed. (1893), 1 vol., br. 800 rs. +Enc. 1$000. + +O REGIME DAS RIQUEZAS, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800. + +HISTORIA DA REPUBLICA ROMANA, 2.ª ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. +2$400. + +O HELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. +1$000. + +TABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA, (1884), 1 vol., br. 1$000 +rs. Encadernado 1$200. + +III. Varia: + +A CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000. + +A REORGANISAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL, opusculo, (1877), br. 150 rs. + +O ARTIGO «BANCO», no _Diccionario Universal Portuguez_, (1877), 1 vol., +br. 500. + +POLITICA E ECONOMIA NACIONAL, (1885), 1 vol., br. 700 rs. + +PROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL, _apresentado á camara dos deputados na +sessão de 1887_, 1 vol., br. 300 rs. + +ELOGIO HISTORICO DE ANSELMO J. BRAAMCAMP, _ed. part._ (1886), 1 vol. +(esgotado). + +THEOPHILO BRAGA E O CANCIONEIRO, _opusculo_, (1869) (esgotado). + +O SOCIALISMO, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado) + +AS ELEIÇÕES, _opusculo_, (1878), br. 200 rs. + +CARTEIRA DE UM JORNALISTA: I. _Portugal em Africa_, (1891), 1 vol., br. +400 rs. + +A INGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE, 2.ª ed., 1 vol., br. 600 +rs. Enc. 800. + +CARTAS PENINSULARES, (1895), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800. + + + + + * * * * * + + HISTORIA + + DE + + PORTUGAL + + POR + + J. P. Oliveira Martins + + Setima edição + + + TOMO PRIMEIRO + + + 1908 + PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA + LIVRARIA EDITORA + _Rua Augusta--44 a 54_ + LISBOA + + + + + * * * * * + + Composto e impresso na typographia + DA + Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA + _Rua Augusta, 44 a 54_ + LISBOA + + + + + +Á + +MEMORIA + +DE + +ALEXANDRE HERCULANO + +mestre e amigo + + + + +ADVERTENCIA + + «Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, + assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros porque se + delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos aos bõos + fezessem cobiça auer pera as semelhentes cousas faseram.» + + _Coronica do Condestabre._ + + +A historia é sobre tudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso +vêr, sáe de todos os eminentes progressos ultimamente realisados no fôro +das sciencias sociaes. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a +critica a melhor bussola da intelligencia: por isso a historia exige +sobretudo observação directa das fontes primordiaes, pintura verdadeira +dos sentimentos, descripção fiel dos acontecimentos, e, ao lado d'isto, +a frieza impassivel do critico, para coordenar, comparar, de um modo +impessoal ou objectivo, o systema dos sentimentos geradores e dos actos +positivos. + +O desenvolvimento do criterio racional e o predominio crescente dos +processos proprios das sciencias, baniram os modelos antigos e fizeram +da historia um genero novo. Nem os discursos moraes ou litterarios +_sobre_ a historia, á maneira do XVII seculo, nem o doutrinarismo secco +do XVIII que sobre factos e instituições mal conhecidos construia +systemas geraes chimericos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, +de considerar a historia unicamente nos seus phenomenos exteriores, +averiguando eruditamente as epochas e as condições dos successos, +merecem, a nosso vêr, imitação. + +Todos estes systemas, porém, ensaios successivos para determinar o +genero de um modo definitivo, teem um lado de verdade aproveitavel. Os +modelos classicos fizeram sentir o caracter moral da historia; os +modelos abstractos, a necessidade de comprehender os phenomenos n'um +systema de leis geraes; os modelos eruditos, finalmente, a condição +imprescriptivel de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos +elementos que compõem o _meio_ externo ou phisico das sociedades.[1] + +Nada d'isto, porém, é ainda realmente a historia, embora todas essas +condições sejam indispensaveis para a sua comprehensão. O intimo e +essencial consiste no systema das instituições e no systema das idéas +collectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos +são para o individuo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos +costumes o dos caracteres, na pintura animada dos logares e accessorios +que formam o scenario do theatro historico. + +Estes dois aspectos são egualmente essenciaes; porque a coexistencia +independente dos motivos collectivos e naturaes, e dos actos +individuaes, é um facto incontestavel na vida das sociedades. + +Na _Historia da civilização iberica_ tratámos de estudar o systema de +instituições e de idéas da sociedade peninsular, para expôr a sua vida +collectiva, organica e moral. Tomámos ahi a sociedade como um individuo, +e procurámos retratal-o phisica e moralmente. Agora o nosso proposito é +diverso. Tratando da historia particular portugueza, somos levados a +encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciaes da historia +geral. A sociedade portugueza, como molecula que é do organismo social +iberico, peninsular, ou hespanhol--estas tres expressões teem aqui um +alcance equivalente--obedeceu, nos seus movimentos collectivos, ao +systema de causas e condições proprias da historia geral da peninsula +hispanica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo +pelo qual as leis geraes se realisavam simultaneamente nas duas nações +hespanholas: duas, porque a historia assim constituiu politicamente a +Peninsula. + +Metade da historia portugueza está, portanto, escripta na _Historia da +civilisação iberica_: a metade que trata da vida da sociedade, como um +ser organico. Comprehender-se-ha, pois, que nos abstenhamos agora de +repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse +livro; indicando, quando fôr necessario, o logar onde poderá encontrar a +explicação das causas geraes a que no texto se tem de alludir. + +Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que ha de particular +na historia portugueza; resta fazer viver os seus homens, e representar +de um modo real a scena em que se agitam: tal é o programma d'este +livro, cujas difficuldades de execução excedem em muito as do anterior. +N'esse, bastavam o conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como +foram as cousas, outro para nos indicar o principio e o systema da +civilisação. Agora carece-se do faro especial da intuição historica, e +d'um estylo que traduza a animação propria das cousas vivas. Toda a +longanimidade do leitor será pois necessaria para desculpar as +imperfeições da obra. + +É mistér indicar ainda outro assumpto e prevenir uma impressão, natural +em quem ler successivamente as duas obras. A _Historia de Portugal_ +consiste n'uma serie de quadros, em que, na maxima parte das vezes, os +caracteres dos homens, os seus actos, os motivos immediatos que os +determinam e as condições e modo porque se realisam, merecem antes a +nossa reprovação do que o nosso applauso. Crimes brutaes, paixões vis, +abjecções e miserias, compõem, por via de regra, a existencia humana; e +por isso mais de um moralista tem condemnado o estudo da historia como +pernicioso para a educação.--Por outro lado, a _Historia da civilisação +iberica_ respira um enthusiasmo optimista que, ao primeiro exame, +pareceria contradictorio com o pessimo e mesquinho caracter que as +acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este +antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e asiaticas uma +obra heroica, e agora veremos que montanha de ignominias foi o imperio +portuguez no Oriente. + +Esta contradicção, real para o criterio abstracto, não existe, porém, +para o criterio historico. Toda a boa philosophia nos diz que o homem +real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo +inconscientemente, e que todas as acções dos homens, maculadas de +defeitos e vicios, obedecem a um systema de leis, idealmente sublimes. É +esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adagio: Deus escreve +direito por linhas tortas. + +Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo +cabal, vêr-se-ha como na historia de uma civilisação os caracteres +particulares das acções dos homens, fundindo-se no systema geral de +principios e leis que os determinam, perdem individualidade, e não valem +senão como elementos componentes de um todo superior: que sejam +humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos cumpre attender ao +destino que os determina, e a moral é um criterio incompetente para a +esphera ou categoria collectiva de que se trata. + +Na esphera dos movimentos de instituições e idéas, na categoria da vida +social, as acções dos homens são sempre absolutamente excellentes; +porque a supremacia da sociedade sobre o individuo consiste no facto da +existencia de uma consciencia superior da Idéa, no organismo que se diz +sociedade. Os poetas épicos, seres privilegiados cuja voz não é propria, +senão collectiva, são os orgãos vivos da consciencia de uma civilisação: +assim Camões sente e exprime a grandeza historica do imperio das Indias, +que na propria opinião particular do poeta são uma Babylonia, um poço de +ignominias. + +Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e +rapido, resta-nos dizer que na segunda metade da historia, na que trata +dos individuos e dos episodios, na que pinta os costumes e os +pensamentos, o criterio é outro: por isso affirmámos que a historia é +uma lição moral. Nos vicios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na +perversidade e na nobreza dos individuos que foram, ha um exemplo +excellente. Na sabedoria ou na loucura dos actos politicos e +administrativos passados ha um meio de prevenir e encaminhar a direcção +dos actos futuros. A historia é, n'esse sentido, a grande mestra da vida. + +Se os vicios, os erros, o crime e a loucura predominam sobre as +virtudes, os acertos, a nobreza e a sabedoria dos homens, como sem +duvida predominam, iremos por isso condemnar a historia por perniciosa? +Não, decerto. Apresentar crua e realmente a verdade é o melhor modo de +educar, se reconhecemos no homem uma fibra intima de aspirações ideaes e +justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si +proprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a principal condição da +virtude. + + [1] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, + pp. VI-XXII. + + * * * * * + + +HISTORIA DE PORTUGAL + + * * * * * + + + + +LIVRO PRIMEIRO + +Descripção de Portugal + + «Onde a terra se acaba e o mar começa.» + CAMÕES, _Lusiadas_, III, 20 + + * * * * * + + + + +I + +Os lusitanos + + +«O povo desde o qual os historiadores têem tecido a genealogia +portugueza está achado: é o dos lusitanos. Na opinião d'esses +escriptores, atravez de todas as phases politicas e sociaes da Hespanha, +durante mais de tres mil annos, aquella raça de celtas soube sempre, +como Anteu, erguer-se viva e forte: reproduzir-se, immortal na sua +essencia; e nós os portuguezes do seculo XIX temos a honra de ser os +seus legitimos herdeiros e representantes.» + +Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[2] os +seus predecessores, historiographos nacionaes, e, segurando com valor a +férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar n'uma tradição +que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só +desde o fim do XV seculo o nome de _lusitani_ começa a substituir o do +_portugalenses_, nos livros; mas essa innovação, perpetuando-se entre os +eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quasi popular. + +Que valor merece a innovação? Nenhum; e por varios motivos. «Tudo falta: +a conveniencia de limites territoriaes, a identidade da raça, a filiação +da lingua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos +barbaros e nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sabio +historiador, não nos parece a nós--perdoe-se-nos o atrevimento--que o +sejam. Outro tanto succede com todas as nações, ou quasi todas, desde +que procuramos estabelecer a arvore genealogica, indo aos arcanos de um +passado ignoto reconhecer a phisionomia dos mortos de muitos seculos e +determinar d'entre elles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo +exigir conveniencia de limites territoriaes, ou por outra, identidade de +fronteiras, entre a localisação de uma tribu primitiva, e a de uma nação +moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam, +pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigencia. Se ha ou não identidade +de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, +negal-o é proceder dogmatica e não scientificamente. + +Allega-se que são indecisas as noções de Strabão com respeito ás +fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que +Augusto deu á provincia da Lusitania.[3] O geographo antigo, ora parece +incluir os callaicos nos lusitanos, entendendo as fronteiras d'estes +ultimos até á costa do norte da Peninsula; ora os separa, dando-lhes o +Douro como divisoria. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda +versão. As fronteiras orientaes extendiam-se, quer para o geographo, +quer, depois, para a administração romana, muito além da raia +portugueza, incluindo Salamanca, e subindo quasi até proximo de Toledo. +D'alli para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do +Guadiana, os lusitanos de Strabão e a Lusitania de Augusto tinham como +limite este rio, quasi desde as suas fontes, e até á sua foz, na costa +do nosso Algarve. + +Se ligassemos, pois, um valor positivo ás resenhas dos antigos +geographos, e um alcance social-historico á identidade das fronteiras +primitivas e actuaes, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores +motivos achar na etimologia dos antigos o fundamento da sua vida +moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da +Lusitania sobre a Gallecia) retráia-se a fronteira de leste ao Douro +(conquista da Tarraconense sobre a Lusitania) e teremos feito coincidir +os antigos com as actuaes limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no +decurso da sua vida historica deixou de conquistar e de ser conquistado? +qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou d'outro, sobre ou +para os visinhos? + +Se a maneira porque, a partir do seculo XV ou XVI, os historiographos +nacionaes filiam o Portugal moderno na antiga Lusitania justifica as +fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o +processo por elle seguido para negar a doutrina, seja conveniente, nem +até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja +de commum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e d'alli +affirmar-se no espirito popular, a tradição nacional germanica, a +italiana e até a romania: que valor tem o facto da tradição lusitana ter +estado obliterada por seculos, para só resurgir n'uma epocha +relativamente proxima e de um modo erudito? Se os portuguezes da +Edade-media não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus +avós, italos, romanos ou teutonicos, os piemonteses, os vallacos, ou os +prussianos até ao XVIII seculo? Acaso, tambem, ser-lhes-ha mais possivel +do que a nós estabelecer uma transição natural e uma historia +ininterrupta desde as primeiras edades até ás modernas? Não, decerto. Se +a erudição podesse demonstrar a unidade da raça iberica, então os +lusitanos baixariam á condição de uma variedade sem autonomia; facto é, +porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de +lusitanos em particular, e por isso as fabulas dos velhos antiquarios +não merecem a attenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho +para atacar este problema? Á falta de monumentos escriptos, nada poderá +valer-nos? Entre a fabula ingenua dos antiquarios e as exigencias seccas +e formaes dos eruditos modernos, não estará outra via? Affigura-se-nos +que sim.[4] + +Todos reconhecem hoje a indestructivel tenacidade das populações +primitivas. Raizes profundas que nenhuma charrua destroe apesar de +revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas +e troncos pelo tropear dos cavallos de guerra, depois de queimados e +reduzidos a cinzas pelos incendios das invasões: embora se lancem novas +sementes á terra e nasçam vegetações novas, essas raizes profundas +tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal +convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, +lento, mas invencivel as plantas intrusas. + +A permanencia dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje +indiscutivel, permitte fazer--consinta-se-nos a expressão--a historia ao +inverso: julgar de hoje para hontem, inferir do actual para o passado. A +questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois n'estes termos: ha uma +originalidade collectiva no povo portuguez, em frente dos demais povos +da Peninsula? Crêmos que a ha circumscripta porém a traços secundarios. +Crêmos que as diversas populações da Hespanha, individualisadas sim, +formam, comtudo, no seu conjuncto, um corpo ethnologico dotado de +caracteres geraes communs a todas. A unidade da historia peninsular, +apesar do dualismo politico dos tempos modernos, é a prova mais patente +d'esta opinião.[5] + +Esse dualismo, porém, leva-nos tambem a crêr que entre as diversas +tribus ibericas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais +individualmente caracterisadas. Não esquecemos, decerto, a influencia +posterior dos successos da historia particular portugueza: mas elles, +por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que cousas +identicas se representam ao nosso espirito nacional. Ha no genio +portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a +terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo lusitano uma +nobreza que differe da furia dos nossos visinhos; ha nas nossas letras e +no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, ironica ou meiga, +que em vão se buscaria na historia da civilisação castelhana, violenta +sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas +alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade, +mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a +entestar com as féras. Tragica e ardente sempre, a historia hespanhola +differe da portugueza que é mais propriamente epica; e as differenças da +historia traduzem as dessimilhanças do caracter. + +Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primaria +d'este phenomeno? Decerto não. Ou sombras impenetraveis o encobrem, ou a +escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendal-o. Como +hypothese--e do nosso atrevimento será escusa a nossa modestia--somos +levados a crêr que a individualidade do caracter dos lusitanos (quer +n'elles incluamos os callaicos, quer não) provém de uma dose maior de +sangue celtico ou celta (questionou-se outr'ora sobre isto) que gira em +nossas veias, de mistura com o nosso sangue iberico. Os nomes proprios +de logares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscripções +latinas da Lusitania e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal, +provam a preponderancia de um elemento celtico. As vagas indicações dos +antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e dão-nol-os na +costa Occidental da Peninsula. Vale porém mais do que isso a analogia +evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos +gallegos, e aquella phisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas +da França e da Irlanda teem determinado a estes ultimos.[6] +Tentámos ha pouco esboçar a nossa phisionomia differencial: escusado é +tornar agora ao assumpto. Se a idéa de uma filiação dos lusitanos foi +expressa de um modo ridiculo pelos antiquarios classicos, a idéa de uma +filiação celtica ou celta teve já a mesma sorte quando, quasi em nossos +dias, houve quem pretendesse filiar directamente o portuguez na lingua +dos bardos. Paz do esquecimento a todas as chimeras! + + [2] V. o seu retrato no _Portugal Contemporaneo_ (2.ª ed.) II, + pp. 283 a 327. + + [3] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 11-15 e + _Taboas de chronol._, pp. 256-7. + + [4] V. ácerca dos lusitanos. _As raças humanas_, I, pp. 198-201, + e 209-11, _nota_. + + [5] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. XXXIV-XLIV. + + [6] V. _As raças humanas_, liv. II, p. 4. + + * * * * * + + + + +II + +Fundamentos da nacionalidade + + +Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da +independencia politica? + +Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento mais +distante, circumstancias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram +com que no nosso tempo se substituisse, ao principio do equilibrio +internacional, o principio das nacionalidades, na organisação dos corpos +politicos independentes da Europa.[7] + +Invasora como todas as doutrinas, e além d'isso habilmente explorada +pelos estadistas, a das nacionalidades tentou--se não tenta +ainda--predominar absoluta no triplo conjuncto de causas naturaes que de +facto determinaram sempre, e sempre determinarão, a existencia das +nações: a geographia, a raça, e as necessidades de ponderação: uma vez +que a Europa é de facto uma amphictyonia. Sobre estes tres elementos +naturaes, ou antes coarctado por elles, o egoismo das nações e a ambição +dos imperantes talharam no mappa a delimitação das fronteiras. Por +escasso que seja o conhecimento da historia, ninguem ignora que de todos +tres o que mais impunemente tem sido e é atacado pela vontade dos +homens, é o primeiro. A rebeldia dos dois segundos traduz-se de um modo +mais immediato e efficaz nas guerras de equilibrio e nas guerras +commerciaes ou estrategicas. Guerras, propria e exclusivamente de raça, +são raras, se é que alguma houve; e os povos opprimidos por extranhos, +quando teem o sentimento como que religioso da communidade de origem, +extinguem-se, ou em revoltas estereis, ou emigrando. O equilibrio, o +commercio, a estrategia, porém, muitas vezes aproveitam o sentimento da +raça, fomentando-o, para dar com elle ás guerras a sancção que n'outros +tempos se achava, de um modo analogo, nas crenças propriamente religiosas. + +Até hoje todas as successivas tentativas para descobrir a nossa _raça_ +teem falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal mosarabes, teem +passado: ficam os portuguezes, cuja _raça_, se tal nome convém empregar, +foi formada por sete seculos de historia. D'essa historia nasceu a idéa +de uma patria, idéa culminante que exprime a cohesão acabada de um corpo +social[8] e que, mais ou menos consciente, constitue como +que a alma das nações, independentemente da maior ou menor homogeneidade +das suas origens ethnicas. O patriotismo tanto póde, com effeito, provir +das tradições de uma descendencia commum, como das consequencias da vida +historica. Não ha duvida, porém, que, se assenta sobre a affinidade +ethnogenica, resiste mais ao imperio extranho do que quando provém +apenas de uma communidade de historia. No dia em que a independencia +politica se perde, obliteram-se mais rapidamente os caracteres +autonomicos, embora durante a lucta valham menos os elementos de força +provenientes da homogeneidade ethnogenica. Assim tantas nações perderam +na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem vestigios vivos da sua +antiga independencia; ao passo que as individualidades ethnicas +apparecem ainda hoje distinctas no seio de nações politicamente +unificadas desde largos seculos: taes são o paiz basco, a Galliza e o +Aragão, na Hespanha: a Irlanda e a Escocia, de raça celtica, na +Inglaterra; a Provença, ou a Bretanha, em França: e, na Russia, a +Finlandia que é scandinava, ou as provincias balticas que são +germanicas.[9] + +O patriotismo portuguez não é pois argumento a favor nem contra o +problema da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou. +O jornalismo e a politica podem explorar rhetoricamente todas as cousas, +confundindo-as; mas á sciencia impassivel e soberana fica mal deixar-se +arrastar por motivos inferiores. O patriotismo é excellente, no seu +logar. Negar que durante os tres seculos da dynastia de Aviz a nação +portugueza viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento +arraigado da sua cohesão, seria um absurdo. Essa cohesão que fôra ganha +nas luctas e campanhas da primeira dynastia, perde-se no XVI seculo, por +causa das consequencias do imperio oriental e da educação dos jesuitas. +Portugal acaba; os _Lusiadas_ são um epitaphio. + +Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que +precederam a formação da monarchia portugueza. N'essa epocha, o Mondego +divide em duas metades o territorio nacional e as differenças typicas da +população deviam ser então ainda mais acentuadas do que o são hoje. Na +metade do sul o typo vae confundir-se com os limitrophes de além da +fronteira do reino: e na metade do norte, diz um nosso illustre +escriptor[10], «a Galliza, que tem comnosco de commum a +lingua, que é uma continuação natural da zona geographica portugueza, +podia muito melhor formar com Portugal uma nação, do que Portugal com +Castella». A Galliza, cuja lingua se tornou litteraria sob o nome de +portuguez[11], vem com effeito até ao Mondego: o mosteiro +de Lorvão dá-se em antigos documentos como situado _in finibus Galleciæ_. + +O fallecido Soromenho (_Or. da ling. port._) dizia que «entre a lingua +usada na provincia de Entre-Douro-e-Minho e a que mais tarde apparece +nas terras do Cima-Côa e na Estremadura ha uma differença bastante +sensivel. Póde sem receio dizer-se que, á similhança do que succedia +além dos Pyreneus, em Portugal havia tambem uma _langue d'oc_ e uma +_langue d'oil_, a lingua do Norte e a lingua do Sul... O Mondego é a +lingua divisoria... ainda um seculo depois de D. Diniz ter abandonado o +latim como lingua official». Esta differença coincide singularmente com +as differenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no +caracter das populações do Norte e do Sul do nosso paiz. E a +uniformidade posterior da lingua explica-se natural e comesinhamente +pelo facto de sete seculos de unidade nacional. «A importancia que o +portuguez adquiriu repentinamente, diz o sr. Ad. Coelho (_A lingua +portugueza_), _resultou da introducção da cultura poetica na côrte +portugueza_». É conhecido o papel da politica no sentido do unificar as +linguas do uma nação; abundam os exemplos de linguas substituidas, e nem +sempre a lingua denuncia a stirpe[12]. Os normandos perderam em França o +seu idioma scandinavo, os burgundios o os lombardos, na França e na +Italia, os seus idiomas germanicos; á maneira dos oseos e umbrios[13] +que tinham trocado pelo latim as suas linguas. + +Não se pretenda por fórma alguma dizer, comtudo, que ao sul do Mondego +houvesse uma lingua diversa: diga-se, porém, que o argumento da _unidade +actual_ da lingua, depois de sete seculos de vida nacional, não tem +valor. Todos vêem ainda hoje como é rara a população no sul, menos +densos portanto os laços collectivos: e todos sabem como essas regiões, +sujeitas por seculos a guerras exterminadoras habitadas por mosarabes, +invadidas por berberes, taladas pelo fanatismo almoravide[14] passaram +para sob o imperio da monarchia nascida na Galliza portugueza. Como não +receberiam a lingua do vencedor? Não podia haver lucta entre duas +linguas romanicas, porque a arabisação do sul fôra completa: podel-a-hia +haver entre o arabe e o portuguez, quando a população captiva passava á +condição de escrava? quando as novas terras conquistadas eram povoadas +por colonias frankas, ou pelos cavalleiros hyerosalemitanos? + +Por taes motivos parece evidente a ausencia de uma causa ethnogenica no +facto da formação da monarchia portugueza, cujas razões de existir são +comesinhas, praticamente comprehensiveis, sem theorias subtis. A lingua +vale decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a +fala? Não se acham por esse mundo homens de uma mesma raça falando +idiomas diversos, e populações de um mesmo idioma, pertencendo a raças +differentes?[15] Ora quem trilhou Portugal e a Hespanha visinha observou +decerto--ou não tem olhos para vêr--uma affinidade incontestavel do +aspecto e do caracter, um parentesco evidente, entre as populações dos +dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados da raia +secca de leste. Se esses homens não falassem, ninguem distinguiria duas +nações. E por outro lado, confundiu já alguem um algarvio, ou um +alemtejano puro, com um puro minhoto? A historia commum funde, não +scinde; e quando vêmos, depois de sete seculos, differenças tão +marcadas, a observação dos homens leva-nos a crêr que com effeito em +Portugal faltou uma unidade de raça, sobrando pelo contrario uma vontade +energica e uma capacidade notavel nos seus principes e barões. Com um +retalho da Galliza, outro retalho de Leão, outro da Hespanha meridional +sarracena, esses principes compozeram para si um Estado.[16] + + * * * * * + +A raça é de facto o mais tenue dos laços proprios para garantir a +cohesão independente de um povo. E além d'isso a doutrina--se +admittissemos a identidade d'ella e do facto--exigiria que á expressão +de raça se ligassem sempre certos caracteres correspondentes á vastidão +necessaria, á eminencia sempre crescente das funcções organicas, e á +originalidade activa, das nações modernas. Mal de nós, pois, se ao facto +de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros quaesquer, formos +pedir argumentos para defender a nossa independencia nacional; porque +esse facto não augmentará, nem a nossa força, nem as nossas razões: +porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da +monarchia leoneza. + +Não nos levantámos contra ella como lusitanos opprimidos: nós nem +tinhamos a menor idéa de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra +cousa. A população do condado portucalense, ibera, cruzada de celtas, +romanisada, submettida ao governo dos godos, depois aos arabes, e +finalmente ao monarcha leonez, não podia ter decerto um sentimento de +cohesão collectiva ou nacional, incompativel com o estado da sua +cultura, com a tradição, e com a situação social e politica: é isso o +que todos os documentos historicos nos revelam. «Portugal, diz o snr. +Herculano, nascido no XII seculo em um angulo da Galliza, dilatando-se +pelo territorio do Al-Gharb sarraceno, e buscando até augmentar a sua +população com as colonias trazidas de além dos Pyreneus, é uma nação +inteiramente moderna.» É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha +raizes antigas. Não confundamos esta questão com a da independencia, e +teremos, cremos nós, pisado o verdadeiro e solido terreno da historia. + +A causa da separação de Portugal do corpo da monarchia leoneza não é +obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de +independencia do governador do condado, que o tinha do rei suzerano: é o +afastamento d'esta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade +de pulverisação da soberania, que a alliança d'esta idéa com a de +propriedade, e a ignorancia de meios administrativos capazes de manter a +ordem em terrenos dilatados, tornam inevitavel na Edade-media.[17] +Portugal separava-se, da mesma fórma que o reino da Navarra +se dividira em tres, e pelos mesmos motivos. Portugal defende a +separação: o monarcha suzerano impugna-a. Debate-se mais de uma vez a +questão com as armas: não porque se chocassem os sentimentos nacionaes, +mas porque os principes defendiam o que era, ou julgavam ser, +propriedade sua. Estas primeiras guerras portuguezas não depõem decerto +de um modo particular em favor da independencia, porque eram a lei de +toda a Hespanha, a lei de toda a Europa--podemos dizer assim. É um +preconceito fazer do conde D. Henrique o fundador consciente da +independencia de uma nação, quando o conde apenas cuidava da +independencia pessoal e propria. O sentimento de independencia nacional, +a idéa de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e não +os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se +póde dizer que só data da dynastia de Aviz, depois do dia memoravel de +Aljubarrota.[18] + +No XII e XIII seculos Portugal é um certo territorio, propriedade de um +certo principe: d'onde vem? quem é? pouco importa. O conde D. Henrique +era francez. Assim, a epocha da primeira dynastia desmente por todos os +lados, e de todas as fórmas, a idéa de uma raça, possuindo, de um modo +mais ou menos definido, a consciencia da sua existencia collectiva. + +É essa consciencia que dá porém o caracter eminente á segunda dynastia, +ou de Aviz, em cujas mãos Portugal desempenha um papel bem similhante ao +dos phenicios da Antiguidade.[19] Como aos phenicios succedeu aos +portugueses: no momento em que a razão de ser da sua acção na +civilisação da Europa desappareceu, a nação definhou, sumiu-se, perdendo +tudo até perder a independencia. + +É verdade que a nossa independencia restaura-se em 1640. Mas como, de +que modo? Atrever-se-ha alguem a dizer que é uma resurreição? Não será a +historia da Restauração a nova historia de um paiz, que, destruida a +obra do imperio ultramarino, surge, no XVI seculo, como no nosso +appareceu a Belgica, filho das necessidades do equilibrio europeu? Não +vivemos desde 1641 sob o protectorado da Inglaterra? Não chegámos a ser +positivamente uma feitoria britannica? E ainda no decurso d'esta +historia o Brazil veiu, enchendo-nos de oiro, prestar-nos um ponto do +apoio extra-europeu, e como que restaurar o antigo caracter do Portugal +manuelino, capital europêa de um imperio ultramarino, á maneira da +Hollanda. E que melhor prova póde haver da nossa desorganização do que a +duração ephemera da obra do marquez de Pombal--o estadista que concebeu +a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um momento a fazer +d'elle outra vez uma nação independente? que melhor prova do que a +reacção victoriosa de D. Maria I? + +A perda do Brazil, reduzindo o reino á miseria, veiu mostrar a +fragilidade do nosso edificio politico. Os inglezes tiveram de nos +tutelar para manter, como lhes convinha, a dynastia de Bragança; e +passada, vencida a crise, appareceu com o liberalismo a impotencia +manifesta de restaurar a vida historica de uma nação imperial ou +colonial.[20] + +Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que ha sensato, o patriotismo +com as questões e problemas scientificos das origens naturaes ethnicas. +Tambem a Suissa, alleman, italiana, franceza, odiou o austriaco, á +maneira por que nós _odiamos Castella_. Basta a historia, basta o +interesse, para dar homogeneidade social e politica a um povo; e basta +essa homogeneidade para crear um patriotismo. Ora o patriotismo das +raças assim formadas exprime-se na acção, e não em miragens enganadoras +de um passado que a historia acaba. Na sua lingua, nas suas tradições, +no seu caracter, o celta da Irlanda encontra sempre um ponto de apoio +vivo e positivo. Quereis uma prova da differença? Os pontos de apoio que +nós buscamos são mortos ou negativos: morto o imperio maritimo e +colonial, a India, e toda a historia que terminou com os _Lusiadas_ em +1580: negativo, o _odio a Castella_, que nem nos opprime, nem nos odeia. + + * * * * * + +Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece +na sua formação ás ordens da geographia: os barões audazes, ávidos e +turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de theorias e systemas. Vão +até onde vae a ponta da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve, +com tanto que alarguem o seu dominio. + +Por isso as fronteiras de Portugal oscillam durante os primeiros dois +seculos á mercê dos azares das guerras, com Leão e Castella de um lado, +com os sarracenos do outro; e Portugal vem a ser formado com dois +fragmentos: do reino leonez, um, dos émirados sarracenos, outro. + +Quando Fernando-Magno de Castella, descendo do oriente, conquistou a +moderna Beira aos musulmanos,[21] a Galliza encontrou em +Coimbra e na linha de defeza do Mondego uma fronteira que a punha ao +abrigo de futuras correrias, até ou além do valle do Douro. Pelo meiado +do XI seculo a expressão geographica de Galliza ia, pois, até ao +Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituidas pelo rei +n'um governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a +leste, uma linha passada por Lamego, Vizeu e Cêa, e que, descendo de +novo á costa, acompanhava os pendores setentrionaes da serra da +Estrella. Condado de Galliza ao norte, de Coimbra ao sul do Douro, +sarracenos ao sul do Mondego: eis ahi a condição do territorio do +moderno Portugal na segunda metade do XI seculo. + +Já, porém, n'esta epocha, uma expressão a que não correspondia valor +politico, militar ou administrativo, apparece a designar o territorio de +entre o Douro e o Minho e a moderna provincia de Traz-os-Montes: a essa +parte do condado da Galliza chama-se já Portucale. + +Nos ultimos annos do XI seculo correrias felizes deram ao celebre +Affonso VI a posse de Santarem, Lisboa e Cintra, alargando as fronteiras +christans até á linha do Tejo. Os nossos territorios de entre Mondego e +Tejo foram creados em condado ou governo, e confiados á guarda de +Gonçalo Mendes da Maia, o nomeado _lidador_: e os tres governos que +tinham por limites successivos o Douro, o Mondego e o Tejo, constituiram +em favor do genro de Affonso VI, Raymundo de Borgonha, uma especie de +vice-reino. Breve foi, porém, a duração d'este periodo; porque logo em +1097, depois do desbarato do conde borguinhão e da perda da fronteira do +Tejo, Affonso VI effectua uma nova divisão do territorio, dando +autonomia politica á expressão geographica de Portucale ou Portugal, e +annexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense, por +tal fórma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galliza, e os +seus dominios recuavam assim de golpe desde o Tejo até ao Minho. Esse +primo era o conde D. Henrique, tambem genro do poderoso Affonso VI. + +Na primeira metade do XII seculo, o conde e a viuva sua herdeira levam +as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para norte, por +entre Minho e Bivey, até Tuy e Orense. As guerras civis dos Estados da +Peninsula davam e tiravam assim, constantemente, territorios e +povoações. A fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus +actuaes limites de além-Douro; mas o governo de Affonso Henriques, o +primeiro que ousou quebrar de todo os laços tenues da vassallagem a +Leão, viu alargar-se do lado opposto a raia até á linha do Sado, desde +que, no meiado do XII seculo, Lisboa, Santarem, Cintra, Almada e +Palmella cairam definitivamente em seu poder, accrescentando novas +terras ás do primitivo condado portucalense. + +As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da +accessão de Sancho I ao throno, as mesmas de hoje: margem esquerda do +Minho, por Melgaço a Lindoso, d'ahi a Bragança por Miranda, entestar com +o Douro no ponto em que agora se extremam Portugal e a Hespanha. A +fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Diniz se +demarcou por onde hoje passa: no fim do XII seculo a raia seguia desde a +foz do Coa, rio acima, até á confluencia do Pinhel, e, acompanhando-o, +passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. D'ahi +ao Tejo, então e agora, a fronteira é a mesma. + +Ao sul do Tejo é difficil, senão impossivel, determinar +chronologicamente as fronteiras portuguesas. A nacionalidade do dominio +nas cidades do Alemtejo permittiria traçar geographicamente a linha da +fronteira com uma aproximação conveniente, tanto mais que os territorios +de entre as cidades, devastados e ermos, eram posse de quem no momento +os pisava armado. Mas as successivas correrias de lado a lado, a tomada, +logo a queda; depois a reconquista de uma mesma cidade, ás vezes n'um +periodo de mezes, tornam impossivel demarcar a fronteira antes da epocha +em que definitivamente uma certa região passa para o dominio portuguez, +para d'elle não mais saír. Assim, a tomada de Evora em 1166 dá á linha +do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra as +fortalezas sarracenas de Jerumenha, Elvas e Badajoz. Por ahi a raia +portugueza iria até Marvão, acaso até Arronches. + +Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal. + +No primeiro quartel do XIII seculo, Alcacer do Sal, base estrategica da +linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de leste, +cáem em poder dos portuguezes; e á determinação final da nossa raia +alemtejana vem juntar-se, até ao meiado do seculo, a conquista do +Algarve, completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal. + +No ferir das guerras da conquista não são os musulmanos que põem um +freio á ambição pessoal dos principes, porque a sorte do imperio do +Islam estava lançada, e para a consummar concorriam todos os Estados +christãos da Peninsula. Será porventura a raça que delimita as +fronteiras da nova nação? Ocioso é já responder. Será a geographia? Não +parece; desde que vêmos a raia cortar de lado a lado as planicies do +Alemtejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair perpendicularmente sobre +as cumiadas das montanhas em vez de lhes seguir a orientação. Qual dos +tres elementos nos resta? O equilibrio. O equilibrio é com effeito o +elemento ponderador: á ambição dos principes de Portugal oppõe-se a +resistencia dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um +dos antagonistas não tem força bastante para submetter o adversario, o +outro tem de usar com prudencia de um poder limitado. Quando tenta +passar além do Minho, ou adquirir para si Badajoz, a reacção mostra-lhe +até onde póde ir a acção dos meios de que dispõe. Do equilibrio ou +ponderação das duas forças antagonicas nasce a determinação geographica +do Portugal moderno, para o qual só no extremo norte e no extremo sul, +sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em admittir uma fronteira +natural. + +Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expôr claramente o +nosso pensamento. Ha ou não ha uma nacionalidade portugueza? Questão +absurda, assim formulada. Evidentemente ha, se nacionalidade quer dizer +nação. Se por nacionalidade se entende, porém, um corpo de população +ethnogenicamente homogeneo, localisado n'uma região naturalmente +delimitada, insistimos em dizer que tal cousa se não dá comnosco. Se por +nacionalidade se entende, finalmente, essa unidade social que a historia +imprime em povos submettidos ao regime de um governo, de uma lingua, de +uma religião irmans, como nós o temos sido durante sete seculos, +evidentemente a resposta só póde ser uma. + + [7] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chron._, + pp., XXII e segg. + + [8] V. _As raças humanas_, introd., pp. LXVII e segg. + + [9] V. _Instit. primitivas_, pp. 290-306. + + [10] O sr. F. Ad. Coelho. + + [11] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), pp. 122-5. + + [12] V. As raças humanas, I, pp. 20-5. + + [13] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 117-45. + + [14] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 81-111. + + [15] V. _As raças humanas_, I, pp 20-5. + + [16] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, + pp. XXX-I. + + [17] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, + pp. XXVI-VII e _Instit. primit._, pp. 222 e segg. + + [18] V. _Instit. primitivas_, pp. 233-43. + + [19] V. _Raças humanas_, I, IV, 2, 3. + + [20] V. _Portugal contemporaneo_, II, pp. 119-37. + + [21] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 116-7. + + * * * * * + + + + +III + +Geographia portugueza + + +Quando se observa o retalho da Peninsula, de que a historia fez +Portugal, separado do corpo geographico a que pertence, desde logo se vê +como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendencias da natureza. Os +rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa occidental, +proseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para +muito além das fronteiras, até ao coração do corpo peninsular. As +cumiadas das montanhas e os valles extensos mudam de nacionalidade +n'aquelle ponto convencional que aos homens aprouve fixar. + +Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso proprio territorio, +motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto póde a +obcecação doutrinaria! Diz um que essa separação dos litoraes é uma +regra;[22] nega outro o caracter arbitrario da linha das +fronteiras de leste, affirmando que essa linha coincide com os limites +extremos até onde os nossos rios são navegaveis. Decerto nunca os viu +quem tal affirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o +rio é portuguez nas duas margens até Monsarás, formando a raia d'ahi até +Elvas. O Douro para cima da Regoa é tão navegavel até Zamora como até á +Barca-d'Alva. No Tejo, passando Abrantes, tanto se vae até Alcantara, +como até Aranjuez. Onde está pois a concordancia da fronteira com a +parte navegavel dos rios? A allegada _base geographica_ da nacionalidade +desapparece pois, se é que uma tal expressão não quer apenas denunciar o +destino maritimo, como que phenicio, da nação. + +As duas cousas não devem, porém, confundir-se, pois n'um caso +encontramos a causa determinante da aggregação social, emquanto no outro +se observa a consequencia do facto da existencia anterior d'essa +aggregação, fortuitamente constituida n'um litoral. É evidente que o +caracter maritimo e colonial da nação portugueza, na segunda dynastia, +não podia ter influido no facto já secular da independencia. É sabido +que D. Affonso Henriques, o author d'ella, não tinha navios, servindo-se +dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcacer. A marinha foi uma creação +da monarchia e um producto da nação, depois de constituida: o caracter +maritimo é historico, não é primitivo em um povo rural, como era o +portuguez dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o gallego. O movimento +de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Diniz, as +de D. Fernando, depois a empreza do Infante D. Henrique, são momentos +successivos de uma historia que é o nervo intimo da vida portugueza. +Desde a reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de +Lisboa, desde a introducção dos genovezes, que vieram ensinar-nos a +navegar, vê-se começar a formar-se essa nação cosmopolita, destinada á +vida commercial, maritima e colonisadora.[23] + +É essa a nação que a historia fórma: e por isso mesmo que a vida +portugueza foi maritima, e o destino da sua historia o mar: por isso +mesmo avultam os elementos que diariamente tornam cosmopolitas as +cidades maritimas de um paiz cuja capital é um dos melhores portos do +mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido á força +absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular. + +Erguido em frente do mar como um amphitheatro cujos primeiros degraus as +ondas constantemente aspergem, o territorio portuguez, independente, +adquiriu d'esta localisação um caracter seu: ao mesmo tempo que nos +habitantes de Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia +uma tendencia particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas, +e, pelo coração dos valles, o curso dos nossos rios, são as veias e os +tendões que nos ligam ao corpo peninsular; assim tambem no nosso sangue +os elementos primitivos accusam o facto de uma origem e de uma raça irman. + +E se temos uma phisionomia moral, distincta sem ser diversa, tambem as +condições do nosso territorio nos dão um genero de destino differente, +mas encaminhado a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa +gloria e a nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas, +construimos; conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores, +desvendámos todos os segredos dos Oceanos; mas o nosso imperio no +Oriente foi um desastre, para o Oriente e para nós. A bordo fomos tudo; +em terra apenas podémos demonstrar o heroismo do nosso caracter e a +incapacidade do nosso dominio. Façanhas de homens que dirigem instinctos +devotos e pensamentos de cubiça, eis ahi o que nós veremos ser o nosso +imperio oriental. Epopêa do espirito indagador, audaz e paciente, as +nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras, tornam-nos os +genios d'esse elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma +celtica nos attrahia. Quando á Europa humilhada o castelhano impõe a lei +com a espada e o mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros, +segurando o leme, ferrando as velas, alargamos mar em fóra a nau, com o +olhar perscrutador fixado nos astros que nos guiam. Vamos de manso, ao +longo das costas... Ninguem nos vê: só as ondas ouvem as melopêas +monotonas dos marinheiros, cujo rithmo obedece ao rithmo do quebrar da +vaga contra o costado.--Elles vão, emplumados e vestidos de aço, +arrogantes e cheios de imperio, com o seu grito stridente e tragico, +ensurdecer e estontear o mundo! Ninguem diria dois povos irmãos; e +são-no, porque ambos obedecem a um motivo identico, a um pensamento +egual, que está no fundo da sua alma inconsciente, como a chamma que +arde no cerne da Terra, dando origem a rochas tão diversas no aspecto, +na côr, na rigeza, na structura, no merito. + +Portugal é um amphitheatro levantado em frente do Atlantico que é uma +arena. A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores, +arrastando-os afinal á laboriosa empreza das navegações, que era para +elles um destino desde que a politica os destacára do corpo da Peninsula. + + * * * * * + +Quando se percorre de norte a sul a estreita facha da nação occidental +da Hespanha, encontram-se os successivos prolongamentos das cordilheiras +peninsulares, galgando uns até ao mar, terminando outros mais distante +da costa. Entre elles abrem-se as bacias ou estuarios de rios parallelos +que podem dividir-se em dois systemas: o do norte e o do sul, +delimitados pela cordilheira da Estrella-Aire-Montejunto-Cintra. + +No systema do norte, o Douro é a arteria central d'uma região montuosa, +coroada nos limites setentrionaes e austraes pelas duas cordilheiras +culminantes da Galliza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou +degraus successivos d'essa platéa de montanhas que se fecha áquem da +fronteira portugueza, descem outras serras, entre cujas depressões se +precipitam os rios nacionaes do norte: o Minho, que delimita a Galliza, +o Lima, o Cávado e o Ave, ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o +Mondego. As serras de entre Minho e Lima são as do Suajo; as de entre +Lima e Douro, as do Gerez e do Marão, separadas pelo Tamega, confluente +d'este ultimo; as d'entre Douro e Vouga, Montemuro; as d'entre Vouga e +Mondego, Caramullo. + +No sul, as bahias do Tejo e Sado, divididas pela peninsula da Arrabida, +constituem o centro de um systema de caudaes irradiantes que cortam a +zona mais plana, limitada de um lado pela serra da Estrella, do opposto +pela do Algarve. Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo, +desinternando-se de Castella; destacando-se d'este, para sueste, o +Sorraia, em plena planicie; e, mais pronunciadamente para o sul, o Sado, +que vae nascer no pendor norte das montanhas algarvias. + +Se a metade norte de Portugal é fechada a leste por um systema de +contrafortes avançados dos Pyreneus cantabricos, a metade sul, theatro +das guerras castello-portuguezas, contradiz de um modo incontestavel a +opinião dos que vêem na orographia a base necessaria da delimitação das +fronteiras nacionaes. + +A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira andaluza penetrando no +interior da Peninsula. Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana, +depois de ter regado os nossos terrenos raianos, toma uma direcção leste +atravez das largas campinas da Estremadura hespanhola que os tratados +apenas dividiram do nosso Alemtejo. N'esta metade austral da nossa +fronteira de leste, as planicies e as aguas do rio que as rega mudam de +nação sem mudarem de natureza; e outro tanto succede aos contrafortes +avançados que reunem n'um mesmo promontorio as serras de Guadalupe e a +Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Evora ao sul. +No troço de fronteira ao norte d'esta como que garra lançada pela +ossatura da Hespanha no Portugal alemtejano, corre, primeiro, o amplo +valle em cujo centro deslisa o Tejo, prolongando-se com elle, +Estremadura em fóra, até Toledo; e seguem, depois, as cumiadas da +Guardunha que dividem o Tejo do Zezere, apertando este rio contra a +serra da Estrella. + +O pendor austral das serras do Algarve e a facha ou tapete de jardins +sobre que pousa a sua base o throno d'esses montes, formam uma ultima e +como que excepcional provincia geographica, vedeta sobre o continente +fronteiro, cujo clima e producções partilha. + + * * * * * + +Geognosticamente, o territorio portuguez póde dividir-se em tres regiões +principaes: a das rochas igneas e paleozoicas, a dos terrenos +secundarios, e a dos terrenos terciarios. + +Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da +costa, se dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do +Minho. D'ahi extende-se por toda a raia de leste até ás serras do +Algarve, baixando-a em direcção poente, para a prolongar com a costa até +Sines. Depois, interne-se a contornar a bacia do Sado, por Grandola, +Cercal, Panoias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até Vendas-Novas; em +seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte-de-Sôr, caíndo sobre o Tejo +em Abrantes, e caminhando para norte por Thomar, Alvaiazere, Anadia--e +ter-se-ha encerrado em Aveiro um perimetro que abrange cerca de tres +quartas partes da superficie total da nação. É a região dos terrenos +primitivos. + +A dos terrenos secundarios compõe-se de dois retalhos isolados. O +primeiro extende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até +á Barquinha; entestando d'ahi até Aveiro com a linha anteriormente +traçada, e vindo ao longo da costa, a descer para o sul, circumscrever a +serra de Cintra, chegando outra vez a Lisboa. O segundo é constituido +pelo litoral do Algarve, no pendor sul das serras, até ao mar. + +A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciarios, desce pela +costa, desde a ponta do Bogio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se +pelas duas zonas divergentes dos valles do Sado e do Sorraia, +contornados pela linha determinada antes ao delimitar a raia da primeira +região. + +Esta ultima é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas +provincias ao norte do Douro, a quasi totalidade das duas Beiras e do +Alemtejo, e boa metade do Algarve. A Estremadura quasi por si só compõe +as duas segundas regiões--uma ao norte, outra ao sul do Tejo[24]. + +Na do norte predominam os terrenos cretaceos e jurassicos, formando +tambem estes ultimos a quasi totalidade do retalho algarvio da segunda +região. Uma pequena mancha de granitos em Cintra, os basaltos dos +arredores de Lisboa, e as dunas da costa, desde a Marinha-grande até +Aveiro, são os phenomenos esporadicos da geognosia d'esta parte de +Portugal. + +Na região do sul do Tejo apenas a Arrabida e S. Thiago de Cacem +apresentam breves nodoas de terrenos jurassicos; e estes, os terrenos +modernos formados pelas alluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as +margens, e os areaes da costa entre o Bogio e o cabo de Espichel, são as +unicas excepções do vasto lençol da região dos terrenos terciarios. + +Na primeira e mais extensa das zonas geognosticas de Portugal tambem o +Tejo póde dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões differentemente +caracterisadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, schistosos +quanto á structura, e primarios ou paleozoicos quanto á edade, +predominam em massa, envolvendo as rochas eruptivas ou igneas. Porém ao +norte do Tejo o volume d'estas rochas, exclusivamente graniticas, é +proximamente egual á dos schistos; ao passo que ao sul, além d'estes +ultimos predominarem, apparecem não só granitos mas porphyros e +diorites. + +Entre Castello-de-Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o +maior e mais compacto affloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois +d'este vem o de Evora, bracejando de um modo irregular, para norte até +Vimeiro, para nordeste até Lavre, e no lado opposto até Vianna, Aguiar e +S. Manços. Afinal, as pequenas nodoas de Galveas, de Santa Eulalia, de +Freia, de Reguengos, da Vidigueira, e de Valle-Vargo a nascente de +Serpa, completam o systema de affloramentos graniticos da sub-região do +sul do Tejo. Os porphyros e diorites constituem um longo dorso que vem +de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcaçovas, +terminar junto de Cabrella, quasi na raia da região terciaria. Além +d'esta formação principal, encontram-se destacadas as manchas sporadicas +de Alter, de Bonnavilla, de Monforte, e as duas mais consideraveis de +Campo-maior e de Elvas, proximo da fronteira. + +Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas +predomina sobre a dos schistos. Depois do macisso schistoso da +Guardunha, entre Castello-Branco e o Fundão, transposto o valle do +Zezere, encontra-se a base alastrada da serra da Estrella, e afinal os +alicerces de Monte-muro. Os granitos vêem desde a fronteira, entre +Alfaiates e a Barca d'Alva, pela Covilhan e Taboa ao sul, por Vizeu a +poente, entestar no Douro, cuja margem esquerda sobe até á raia de Leão. +Pequenas são as nodoas schistosas na área circumscripta: S. +João-da-Pesqueira e Villa-nova-da-Foscoa, na margem do Douro: +Villa-da-Egreja ás origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da +serra da Estrella. + +Porém as abas occidentaes das serras da Guardunha, da Estrella e do +Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de +terrenos paleozoicos, uma cortada pelo Zezere, outra pelo Mondego e pelo +Vouga: são estas zonas que vêem raiar com a região dos terrenos +secundarios até Aveiro, e com o mar desde Aveiro até â foz do Douro, +tendo de permeio a facha de dunas da costa. + +Ao norte do Douro os schistos predominam para cima da linha +Regoa-Chaves, os granitos para baixo. Ao longo da costa, desde o Porto +até á Povoa, encontra-se, destacado, um affloramento de rochas +eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerez e do Suajo, a +poente do Tamega, lançando junto a Braga um ramo que vae, por Barcellos, +a Vianna e até Caminha. + +A leste da linha Chaves-Regoa são irregulares e dispersos os +affloramentos eruptivos: acompanham a margem portugueza do Douro desde +Bemposta até Miranda; apparecem em dois pontos da extrema fronteira do +norte; vêem de Montalegre, por Chaves até Valpassos e Torre-de-D. Chama; +e pela serra do Marão, desde Mondim e Ribeira-de-Pena, por Villa-Pouca e +Villa-Real, morrer junto ao Douro em Villarinho. Todo o resto, o Marão, +da Campean a Santa Martha, as alturas á esquerda do Corgo, a maxima +parte do valle do Tua, e todo o valle do Sabor, são formados pelos +terrenos paleozoicos. + + [22] V. _As raças humanas_, introd., pp. XXXI-II. + + [23] V. _O Brasil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 1-29. + + [24] V. para a geologia terciaria do Tejo, os _Elem. de Anthropologia_ + (3.ª ed.), pp. 212-17, podendo cotejar-se o estudo da região + portugueza com o da Peninsula no seu todo na _Hist. da + civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-XXI. + + * * * * * + + + + +IV + +A terra e o homem + + +Conhecida a orographia e a geognosia do territorio, brevemente +indicaremos o systema de caracteres agricolas e climatologicos, ambos +subordinados aos anteriores, e todos solidariamente ligados para formar +a phisionomia natural das diversas regiões do territorio portuguez. + +A sua antiga divisão em provincias obedecia mais a estas condições +naturaes do que a moderna divisão em districtos: as causas determinantes +de uma e de outra são o motivo d'esta differença. As provincias +formaram-se historicamente em obediencia ás condições naturaes; os +districtos actuaes foram creados administrativamente de um modo até +certo ponto artificial. Umas provinham dos caracteres proprios das +regiões, e a administração limitára-se a reconhecer factos naturaes: +outros, determinados por motivos abstractos, nasceram de principios +administrativos e estatisticos (área, quantidade de população, etc.), +fazendo-os discordar o menos possivel dos limites naturaes, geographicos +e climatologicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por +provincias, e não por districtos, o territorio portuguez; deixando para +o lugar competente o estudo das condições modernas da nação.[25] + +A divisão das provincias apoiava-se em factos phisicos de um valor +eminente. Começando pelo norte, o territorio de além-Douro inscreve duas +zonas separadas pelo Tamega: a leste, Traz-os-Montes, a oeste, +Entre-Douro-e-Minho. Além de obedecer, como se vê, á geographia, +buscando nos rios fronteiras naturaes, a divisão das duas provincias +consagrava differenças essenciaes: as geognosticas já por nós observadas +(rochas eruptivas dominando a oeste, schistos a leste do Tamega), e além +d'ellas as climatericas. Portugal, segundo já se disse n'outro lugar, é +em geral um amphitheatro de montanhas, levantado em frente do Oceano. +Esta circumstancia caracterisa para logo as regiões de um modo tambem +geral, dividindo-as em duas categorias: as maritimas e as interiores; as +cis e as transmontanas; as que estão directamente expostas á acção das +brisas maritimas, e os declives orientaes, os valles interiores, e os +degraus ou socalcos das serras encobertas aos bafejos do mar por +cumiadas occidentaes sobranceiras. + +Esta circumstancia dá caracteres inteiramente diversos ás duas +provincias do Douro-Minho e de Traz-os-Montes, divididas pelas serranias +do Gerez e do Marão, que roubam a ultima á acção das brisas maritimas. +Quem alguma vez transpoz o Tamega, decerto observou a profunda +differença da paizagem e do caracter e aspecto dos habitantes de áquem e +de além d'esse rio. O transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para +logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e +ingenuo. Além do Tamega o clima é secco (40 a 60% de humidade relativa) +poucas as chuvas (500 a 1:000 millim. e no estio 70 a 80 apenas), grande +o calor no fundo dos valles apertados, mas temperado nas alturas; +intensos os frios hibernaes, que coroam de neve as montanhas e gelam a +agua pelas baixas (12 a 15° temp. média). Áquem, as brisas do mar, +estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as +chuvas copiosas: por isso no Minho o pendor occidental das serras de +oriente é sarjado pelos numerosos e successivos rios parallelos, cujos +valles, reunindo-se junto á costa, formam ao longo d'ella a primeira das +planicies litoraes de Portugal. Habita essa região pingue uma população +abundante, activa, mas sem distincção de caracter, nem elevação de +espirito: consequencia necessaria da humidade e da fertilidade. Falta +essa especie de tonificação propria do ar secco e dos largos horizontes +recortados n'um céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma +Attica. As chuvas precipitam-se abundantes (1:200 a 2:000 mill. annuaes, +e no estio 80 a 200) sobre um chão lavrado de caudaes; a humidade (70 a +100%) torna flaccidos os temperamentos e entorpece a vivacidade +intellectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo +faz fermentar, á maneira do que succede nas zonas genesiacas dos +tropicos. Temperado o clima (12 a 15°), sem excessivos afastamentos +hibernaes, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetaes e de +ar humido, offerece a imagem de um exercito de laboriosas formigas sem +cousa alguma de aládo e brilhante de um enxame dourado de abelhas. + +O clima determina a paizagem. Além Tamega as louras messes do trigo, os +pampanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os +pendores de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no +inverno coroadas de neves, se recortam no fundo azul do firmamento, +dando fixidez e nobreza ao quadro, e infundindo o quer que é de elevado +no espirito. A natureza vive na luz, e a alma sente que os elementos +teem dentro em si forças que os animam. + +Áquem Tamega o scenario muda: a humidade cria em toda a parte vegetações +abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de +plantas: mas como o solo é breve, como a rocha afflora por toda a parte, +e os campos nascem do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do +granito pelas folhas e ramos decompostos, e nos estuarios dos rios pelos +sedimentos das cheias, a vegetação é rasteira e humilde, o pinho +maritimo de uma constituição debil, o carvalho um pigmeu enleiado pelas +varas das vides suspensas. A densidade da população completa a obra da +natureza n'uma região onde o vinho não amadurece: o acido picante dá-lhe +uma similhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou cerveja, e com +ella, ao genio do povo, caracteres tambem similhantes aos de bretões e +flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão +dos homens: as necessidades implacaveis da população abundante produzem +uma cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos, +circumdados por pequeninos valles, orlados de carvalhos pigmeus, +decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto +formiga a familia: o pae, a mãe, os filhos, immundos, atraz d'uns +boisinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de +um carro. Sob um céu ennuveado quasi sempre, pisando um chão quasi +sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos, dominado em +torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem +abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não +podendo despegar-se da terra, como que se confunde com ella; e, com os +seus bois, os seus arados e enxadas, fórma um todo d'onde se não ergue +uma voz de independencia moral, embora amiude se levante o grito de +resistencia utilitaria.[26] A paizagem é rural, não é agricola; a poesia +dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez +subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas +espessas de arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados +de muros e renques de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausencia de +um largo folego de ideal, e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e +acolá, engastado na monotonia da côr dos milhos, um canto do verde +alegre do linho vem lembrar que tambem no coração do minhoto ha um lugar +para o idyllio infantil do amor. + + * * * * * + +Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira +litoral, dão-se differenças analogas ás que distinguem o Minho e +Traz-os-Montes: analogas, dizemos, e não identicas, porque n'esta nova +região começam a sentir-se as influencias de causas geraes, como são as +da latitude. A zona anterior estanceia entre os parallelos de 41° e 42°; +as Beiras descem até 39° 30'. Portugal, inscripto entre 37° e 42°, e +lançado como uma estreita facha norte-sul, tem na latitude das regiões +uma causa geral a concorrer sempre com as causas particulares, quaes são +a altitude, a exposição e a constituição geognostica das montanhas, no +sentido de determinar os caracteres das suas differentes provincias. + +N'esta de que agora nos occupamos, levanta-se ao centro a serra da +Estrella, a cujo pendor maritimo se chamou Beira-alta, dando-se aos +declives transmontanos oppostos, reunidos á Guardunha, o nome de +Beira-baixa. Tres zonas compõem a região das duas provincias: o litoral +formado pelos estuarios do Vouga e do Mondego, as serranias occidentaes +ou maritimas, e as orientaes ou transmontanas. + +A serra da Estrella é a mais elevada das cordilheiras portuguezas; é o +prolongamento da espinha dorsal da Peninsula; é a divisoria das duas +metades de Portugal, tão diversas de phisionomia e temperamento; é +finalmente como que o coração do paiz--e acaso nas suas quebradas e +declives, pelos seus valles e encostas, demora ainda o genuino +representante do lusitano antigo. Se ha um typo propriamente portuguez: +se atravez dos acasos da historia permaneceu puro algum exemplar de uma +raça ante-historica onde possamos filiar-nos, é ahi que o havemos de +procurar, e não entre os gallegos ao norte do Douro, nem entre os +turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas +com o sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais +variadas nações. + +O pastor quasi-barbaro d'essas cumiadas da serra a topetar com as nuvens +(1:800 a 2:000m. de altit.), abordoado ao seu cajado, vestido de pelles, +seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o descendente dos +companheiros de Viriato. Por essas eminencias, tapetadas de relva no +estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem a +subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê +gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro, +rasteiro e roído pelo gado, circumda os altos nús; logo apparecem os +piornos, as urzes brancas, os carvalhos; depois, já a meia altura da +encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames de aldeias; afinal, +na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas +em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espalhar-se no labyrintho dos +canaes. + +A serra da Estrella, reforçada ao norte pelo contraforte de Monte-muro, +fecha, com o Marão e o Gerez, uma muralha natural, onde os ventos do mar +estacam. Apenas cortada pelos valles do Douro e do Tua--duas +fendas--essa barreira, cujos picos sobem até 2:000m., encerra e protege +o Portugal do norte, sendo a principal causa das chuvas abundantes e do +clima creador do litoral de além-Mondego. + +O beirão, habitante da encosta occidental onde o ar é mais humido do que +em Traz-os-Montes (65 a 100%), as chuvas mais abundantes (700 a 1:200 +millim.) e a temperatura identica: onde o castanheiro colossal, o cedro, +o carvalho e o pinheiro bravo põem na paizagem todos os tons e essa +grandeza propria de arvores que vivem seculos: o beirão é menos vivo, +mas mais robusto. Quem divagou por essas terras admirou decerto a +structura herculea dos seus homens, cuja face, não luzindo com os +brilhantes reflexos de vida interior, accusa todavia um pleno +desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anachronicos +representantes de uma independencia de outras edades,[27] a +Beira é o viveiro de musculosos trabalhadores, que vão todos os annos, +pelo estio, lavrar as glebas do sul do Tejo, levemente vestidos com as +bragas curtas de linho, descalços, com a camisola de lan agasalhando o +tronco, o barrete phrigio na cabeça, a manta e a enxada ao hombro. + +Descendo ao litoral, o beirão é amphibio: pescador e lavrador. A lavoura +nasce do mar: os carros são barcos, adubos o _molisso_ de algas e +mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar +insinua-se pelos canaes retalhando a planicie, em cujo centro, como uma +arteria, corre placidamente o Vouga. A tres leguas da costa vê-se +fundeado um barco: as mulheres cozem as redes, ao lado, sobre a terra +humida e negra, que os bois lavram, ou o cavador abre á enxada. O calor +(15 a 16), a humidade permanente (65 a 80%), fazem germinar breve as +sementes, multiplicam as colheitas, e as febres. Essa paizagem deliciosa +e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche de vivo +prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das +montanhas, attrahe-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e +veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens. + +A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrella e dos +cerros subalternos da Guardunha dá á provincia da Beira-baixa um outro +aspecto: ha maior seccura no ar, e as chuvas são menos abundantes: os +olivaes medram melhor, e os hahitantes juntam á vida agricola a +industrial, tecendo as lans dos rebanhos da serra com a força das +torrentes que se despenham nas quebradas do valle do Zezere. + +Já similhante por muitos lados ao alto Alemtejo, a Beira-baixa é a +transição da metade norte para a metade sul do paiz. + +Caminhemos de oriente para occidente. O Alto-Alemtejo tem o clima de +Traz-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16 a 17.), porque a +menor altura das montanhas dá frios menos intensos no inverno; as chuvas +estivaes são menores tambem (30 a 50 mill.). Fronteira aberta da +Hespanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura +castelhana. As mesmas planicies onduladas, as mesmas culturas +cerealiferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas, +os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e do outro da +fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, +porte nobre e seguro, bizarro, folgasão, hospitaleiro e communicativo, o +alemtejano exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre +que vive. Não é decerto um grego de Athenas, mas é um grego da Beocia. +Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas +longas e alinhadas estradas, entre lençoes de mattas de azinho escuro, +sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem +de poeira, que a luz illumina, e ouvimos o tilintar alegre das +campainhas e guizos nas colleiras dos machos--é o cazeiro, que a trote +largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções +de briche preto, vae á feira de Villa-Viçosa em maio, ou á de Evora em +junho, tratar dos negocios da lavoura. A distancia, vem o arreeiro no +seu carro toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de +vinho: logo o pastor com o guarda-mato de pelle de cabra, o cajado ao +hombro, conduzindo as ovelhas, a vara de porcos, gordos como texugos, ou +a boiada loura de longas hastes. O sol ardente dá tom a todas as côres, +vida a todos os movimentos: suffoca-se, a poeira céga, e as bagas de +suor camarinham na testa. O alemtejano diz pouco, e raro canta; não é +misanthropia, é indifferença. O idyllio não póde seduzir a quem vive em +ampla communhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em +fogo. Apenas, de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas, +fazendo a vigilia aos seus santos favoritos, não para esquecer um +trabalho que lhe não dóe, mas para dar largas aos seus amores de um +momento. + +Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto +á navegação, Guadiana em fóra até ao Algarve, terão sentido ao chegar á +foz a impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim: de quem deixa +uma gruta escura por uma planicie luminosa. Breve é a extensão do +Algarve, desde Villa-Real até Lagos, abrigado pela ponta do cabo de S. +Vicente; mas esse trajecto sombrio do Guadiana divide duas regiões +caracteristicamente accentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrario +do alemtejano, tudo o interessa, de tudo fala, agita-se em permanencia, +com uma vivacidade quasi infantil. No Algarve não ha o silencio e a +impassibilidade: ha o movimento constante, o falar, o cantar de uma +população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados nos seus navios +costeiros, ora occupados nos seus campos, que são jardins. Se a planicie +e os longos horizontes das montanhas dão ao espirito a placidez solemne, +tambem o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado como um +eirado, está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente, +meio-tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o +estio, e no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o +algarvio desconhece a aspereza da vida: nem os frios o obrigam á +industria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada para +comer. Emquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando, +contrabandeando, crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a +laranjeira, cuja seiva o sol se encarrega de transformar todos os annos +em fructos. A alfarrobeira nas encostas da sua serra, a palma pelos +vallados, pedem apenas que lhes colham os fructos e os ramos; e o +mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as cargas, para as +trocar por dinheiro. + + * * * * * + +No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortiferas baixas do +Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos n'essa região desolada; porque +agora, regressando pela costa acima, o litoral do Alemtejo e a parte +occidental da Estremadura transtagana partilham com ella os caracteres +tristonhos e doentios. Entramos na região dos terrenos terciarios: as +aguas estagnam e apodrecem nas baixas; as populações definham. Ou +torradas pelo arido suão, que os areaes ardentes não podem suavisar, e +sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se; ou +envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe n'uma +fermentação permanente, as populações amarellecidas e magras definham, +curvadas pelo trabalho mortifero das marinhas de sal, ou da cultura +pantanosa do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas +baixas do sul. Além, copiosas chuvas e uma humidade creadora; aqui o ar +secco (500 a 700 mil. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade, 30 a 80%) +duro e carregado de emanações mephiticas. Além, uma temperatura branda; +aqui um calor (med. 17°) excessivo. Além, uma população exuberante: +aqui, as solidões e os areaes nús, matizados pela traiçoeira cevadilha, +e pelo áloes orgulhoso, levantando com imperio o seu penacho côr de +fogo. Além, homens laboriosos e familias; aqui tribus esfarrapadas em +choupanas, tiritando com o frio das sezões n'uma atmosphera de lume: +mulheres esqualidas, creanças verde-negras, homens na indifferenca de +desolação, ou na vertigem do crime. + + * * * * * + +Entre estas duas regiões litoraes extremas está porém a central, a +vingar-nos da miseria de uma e da opulencia da outra. Quem desce, de +Canha e Alcacer-do-Sal até Setubal na peninsula de entre Tejo e Sado, e +domina, desde o promontorio da Arrabida, a paizagem circumdante, respira +afinal a longos traços uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não ha +no reino panorama nem mais bello, nem maior, nem mais nobre, nem mais +variado. A nossos pés descem as anfractuosidades da serra vestidas de +espessas matas: as giestas douradas, as bagas carmineas dos medronhos, o +rosmaninho, a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes. +Sobranceiros a Palmella, vemos-lhe os muros ameiados: Setubal desenha-se +no valle encastoada n'um jardim de laranjaes; no fundo quebram-se as +ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado opposto as collinas da +fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhaes extendido +até ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S. +Vicente e o sul; para leste, Evora de um lado, as campinas do Riba-Tejo +do outro; para norte, Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; além +d'ella, Cintra e os montes da Estremadura cistagana, a qual, até ao +Mondego, fórma a primeira zona extremenha, por onde vamos entrar no +exame da ultima das regiões do nosso territorio. + +O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do +paiz. Ahi o ar temperado pelas brisas maritimas mantém um grau de +humidade, (60 a 85%), e as chuvas, regulares sem serem copiosas (700 a +800 mil. annuaes, e 20 a 30 no estio), uma rega, que fertilisam os +terrenos sem os tornar gordos, como os do norte. Nem o calor (15 a 16°) +tisna de verão as vegetações, nem o frio do inverno as atrophia. Por +tudo isto, a população abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o +habitante reune á laboriosidade de uma vida agricola a liberdade de uma +existencia mais ampla. Por tudo isto, além dos caracteres geognosticos +da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro bravo e o manso, a +vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o centeio. Desde os +campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e Alcobaça +vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e, +transpondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o +Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á idéa o typo d'essas +raças da Africa setentrional, lybios ou mouros, cujo sangue anda +misturado em nossas veias. A cavallo, de pampilho ao hombro, grossos +sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os +rebanhos de touros nas campinas humidas e vicejantes, é como um beduino +do Nilo. A vasta planicie matizada de povoações e bosques de choupos, de +salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumiadas das serras, +tem o caracter das paizagens do Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo +esqueleto giganteo do Atlas[28]. + +Como o beirão, tambem o ribatejano reune á vida agricola a maritima ou +fluvial: é elle quem vem nos seus barcos de _agua-acima_, até Lisboa, +trazer o seu tributo de cereaes e fructas. Pelo Tejo, o Portugal +maritimo abraça o Portugal agricola fundindo n'uma as duas phisionomias +typicas da nação. Rio acima, o Alemtejo de um lado, a Beira do outro, +por esta fórma se communicam com a população maritima do litoral. +Lisboa, com Sines ao sul, Aveiro ao norte, eis os pontos cardeaes d'essa +costa Occidental, d'onde tantas grandes aventuras, tão dilatadas viagens +se emprehenderam. Capital geographica, Lisboa é tambem a nossa capital +maritima; e se as viagens e descobertas são o coração da nossa historia +particular nacional, Lisboa é tambem a nossa capital historica. As +toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a costa do +occidente; essas cantigas, monotonas como o ruido do mar, tristes como a +vida dos nautas, desferidas á noute sobre o Vouga, sobre o Mondego, +sobre o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de +alguma antiga raça, que, demorando-se na nossa costa, pozesse em nós as +vagas esperanças de um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a +conquistar ao mar? + +Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos +embalados pelo incessante murmurio do mar bretão e pelo ciciar das +florestas druidicas; o carinho da natureza pelo homem, traduzido n'essas +lendas piedosas em que os animaes falam, os passaros veem fazer ninhos +na mão dos santos, e a voz das fadas se mistura com o ramalhar das +arvores e o murmurar das aguas: esse vaporoso e encantador botão da alma +celtica, porventura desabrochava no espirito nacional portuguez, quando +a conclusão das guerras da independencia assim o ordenou. + +D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druida, o amor ingenuo da +natureza: «Ó vergonha e grande cubiça dos homens, que por haver as +desventuras dos metaes cavam tanto a terra que lhe tiram fóra as tripas, +derribam grandes outeiros, abaixam asperas e altissimas serras no andar +e olivel dos campos, e não contentes de _estragarem tanto a terra_, +rompem e furam pelo mar por haverem uma perla--e para esculdrinhar uma +obra maravilhosa da natureza são timidos e preguiçosos!» + + [25] V. _Portugal contemporaneo_, pass. + + [26] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 183-91. + + [27] V. _Portugal contemporaneo_, (2.ª ed.) II, pp. 51-3. + + [28] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.) p. 232. + + * * * * * + + + + +V + +A historia nacional + + +D'esta viagem, breve, pallida, e incorrectamente esboçada, +ficaria--ousamos crêl-o--no espirito do leitor uma impressão por isso +mesmo verdadeira. Pallida e como que indeterminada, sem fortes côres nem +linhas pronunciadas, é a phisionomia da nação, quer na paizagem, quer +nos homens. Nenhum traço profundo distingue a nossa geographia; benigno, +médio ou temperado é o nosso clima, e tambem o nosso caracter. + +Se alguma cousa de facto nos individualisa, é a falta de affirmação do +nosso genio. Aquellas a que poderemos chamar qualidades peculiares +nossas, consistem na facilidade com que recebemos e assimilamos as de +extranhos. Navegadores--e só por si este caracter não imprime em nós um +cunho distincto dos demais povos maritimos--a maneira por que nos +aventurámos ao mar, retrata ainda a nossa phisionomia collectiva: fomos +prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em +ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando sempre, tenazes, +mas jámais temerarios[29]. + +Essa individualidade passiva do nosso genio traduz-se na nossa historia. +Ninguem busque n'ella movimentos originaes e profundamente +caracterisados por uma idéa nacional: esperal-o-hia o castigo reservado +a todas as chimeras. Ninguem busque tampouco o systema de um +desenvolvimento proprio e organico, obedecendo a leis particulares, e +constituindo, no seu todo, aquillo a que se chama uma civilisação: por +esse lado apparecemos indestructivelmente ligados ao corpo peninsular; e +apesar de politicamente separados, obedecemos ás leis geraes que lhe +determinam a vida historica. O conjuncto dos nossos pensamentos moraes, +o caracter dos movimentos que compõem o systema do desenvolvimento das +instituições, o das condições das classes, e até as linhas geraes da +nossa vida politica, são apenas um aspecto do systema da historia da +peninsula iberica. Por isso nós, que, em outro livro,[30] +tratamos d'este assumpto, não voltaremos agora a occupar-nos d'elle, +para não fatigarmos o leitor com repetições inuteis. Procuraremos n'esta +obra determinar o modo particular, proprio ou nacional, com que +realisámos um programma historico geral, definindo a nossa +individualidade collectiva; procuraremos tambem indicar os movimentos +politicos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e +finalmente mostrar que, sendo a ausencia de caracter nacional +affirmativo, e a malleabilidade com que recebemos e assimilamos as +influencias extranhas, o que mais pronunciadamente nos individualisa +como povo, a independencia da nação não proveiu de factos naturaes, +porém sim dos actos de vontade dos seus homens. Causas de outra ordem +houve de certo que vieram dar-lhes um apoio energico, e, não falando +agora nas maritimas e coloniaes, referimo-nos ás influencias extranhas á +Hespanha, que por momentos nos pozeram, a nós, seus filhos, n'um estado +de antagonismo transitorio com o desenvolvimento da historia peninsular. +É sabido que a nossa primeira dynastia procedia de Borgonha; nos +primeiros tempos são numerosos os fidalgos e soldados estrangeiros entre +nós: e as conquistas de Lisboa, de Alcacer, do Algarve, effectuam-se com +o auxilio de exercitos e armadas forasteiros. Mais tarde veem combater +ao lado de D. João I os inglezes, com quem já ao tempo de D. Diniz +celebráramos tratados de commercio, e que, nossos alliados no tempo do +D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e lettras. D'então +data a generalisação dos nomes inglezes como Tristão, Jorge, Duarte, que +se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e gothicos. As +allianças inglezas repetem-se nos primeiros tempos da dynastia de Aviz, +até que o desenvolvimento do nosso imperio colonial nos torna soberanos. +Annexados á Hespanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da +França, quando readquirimos a independencia. Generaes francezes +commandam as campanhas da Restauração, patrocinada pela França; generaes +inglezes, as guerras do principio do seculo subsidiadas pela Inglaterra. +E duas vezes, quando se tentou chamar a nação á vida eminente da +sciencia; duas vezes, quando D. João III e o marquez de Pombal +reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres extrangeiros. + +De tudo o que deixamos escripto o leitor decerto comprehendeu já o +systema de preceitos a que vae obedecer o nosso estudo; e +affigura-se-nos ser este o caminho verdadeiramente scientifico de +encarar a historia nacional, despindo-a de illusões patrioticas, e de +phantasias chimericas. Mal de nós, se, amando do coração a nossa +independencia, imaginarmos que ella póde manter-se firme sobre um +alicerce de fabulas, contra a recta e indestructivel verdade da +sciencia! A independencia dos povos assenta sobre tudo na vontade +collectiva: tal foi a base da nossa, tal continuam a ser, se com a +vontade tivermos o juizo correspondente. Sem elle, o querer é apenas um +capricho. + +Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia patria em quatro +periodos successivos. No primeiro, o da dynastia de Borgonha, não nos +destacamos ainda bem do systema dos Estados peninsulares: somos um +d'elles, e a independencia provém exclusivamente do espirito separatista +da Edade-média personalisado no ciume absolutista dos reis e barões +portuguezes.--Depois de Aljubarrota, porém, o sentimento de +independencia nacional torna-se popular, desde que a revolução do Mestre +d'Aviz o faz coincidir com o interesse particular da região portugueza. +Entretanto a vida maritima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia +obedece conquistando o litoral da Africa aos marroquinos, á corrente +historica peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um +movimento particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um +momento Portugal esteve á testa da historia da Hespanha. + +A terceira epocha abrange, a nosso vêr, a infeliz empreza do Imperio +oriental, onde o movimento maritimo nos levou. Os elementos de vida +propria, formados na epocha anterior, produziram uma colonisação á +antiga e uma litteratura néo-latina: n'estas duas circumstancias +provavamos faltar-nos uma fibra de intima originalidade nacional. A +perversão dos costumes, a vastidão das emprezas, o limitado dos nossos +meios, os erros politicos, finalmente, condemnam-nos á perda da +independencia.--Se na quarta e final das epochas da nossa historia +voltamos a reganhal-a, a nossa vida apparece, comtudo, outra. Ao imperio +oriental perdido, vem a exploração e colonisação do Brazil +substituir-se, dando um ponto de apoio externo ao pequeno corpo europeu; +e mais tarde, perdido a seu turno o Brazil, voltamo-nos agora, a vêr se +a Africa póde dar-nos os meios de custearmos as despezas de um paiz +pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os encargos cada +vez maiores do machinismo nacional. Hollanda do extremo occidente, +radicada no corpo da Hespanha, como ella o está no corpo germanico, só +n'um ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma +independencia excepcional; só á custa de recursos coloniaes poderemos +talvez satisfazer as multiplas e dispendiosas exigencias da organisação +economica, scientifica e moral, hoje inseparaveis e indispensaveis á +existencia de uma nação.[31] + + [29] V. _O Brazil e as colonias portuguezas_ (3.ª ed.) pp. 2-6. + + [30] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.). + + [31] V. _O Brazil e as colon. port._ liv. IV-V, e + _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.) liv. VI, 1, 3. + + * * * * * + + + + +LIVRO SEGUNDO + +HISTORIA DA INDEPENDENCIA + +(DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385) + + + «He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas + razõoes, per propria invençom achadas, mas come aiumtador em huum + breve moolho, dos ditos dalguns que nos prouguerom.» + + F. LOPES, _Chr. de D. Pedro I_. + + * * * * * + + + + +I + +A separação de Portugal + + +O condado portucalense, creado nos ultimos annos do XI seculo a favor do +conde borguinhão D. Henrique, genro de Affonso VI, pouco tempo existiu +sob o regime de uma vassallagem indiscutidamente reconhecida. Era essa a +epocha em que a Hespanha tendia a constituir-se n'um systema de Estados +independentes, á medida que successivas regiões iam saíndo de sob o +dominio musulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos +seus actuaes alliados;[32] e o condado portucalense obedecia a esta +tendencia geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a +morte do sogro. + +É com effeito da data do obito de Affonso VI que deve contar-se a éra da +independencia de Portugal; embora por largos annos ella seja mais uma +ambição do que um facto: embora essa ambição traduza um pensamento que +os acontecimentos posteriores da historia impediram se realisasse. +Qualquer que fosse o valor dado no XI seculo á expressão geographica de +_Portucale_, é facto provado por todas as memorias e documentos d'esses +tempos, que para ninguem deixava de considerar-se o territorio de entre +Minho e Mondego como parte da Galliza. O facto da constituição do +condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a +formação dos Estados medievaes, na Peninsula e fóra d'ella, jámais +obedecia ás prescripções geographicas ou etimologicas. Não se attribua +pois a causas d'esta ordem, nem á consciencia de uma solidariedade +nacional, o facto da desmembração da Galliza dos fins do XI seculo. A +scisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem politica. + +Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o +principio da vitalidade da nação portugueza, durante estas primeiras e +ainda indecisas epochas da sua existencia. A solidariedade nacional +espontanea existia de facto para os gallegos; e desde que a Galliza fôra +dividida pela politica em duas, áquem e além Minho, restava saber qual +d'essas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de +independencia, commum a todos os membros ainda então disconnexos do +corpo peninsular. + +Varias causas concorriam para attribuir este papel á metade portugueza +da Galliza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal +do conde portuguez. Circumstancias d'esta ordem eram decisivas n'uma +epocha em que a anarchia systematica da constituição da sociedade fazia +principalmente depender os destinos immediatos d'ella da perspicacia ou +da bravura dos seus chefes. Nada ha de commum entre a vida d'estes +tempos e a dos posteriores: e n'um certo sentido póde até dizer-se que +os factos de ordem politica são independentes dos de ordem social, +porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por +elle apenas) obedece ás consequencias do desordenado capricho dos actos +e caracteres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a +representarem. + +Nos primeiros tres seculos, isto é, na primeira epocha da historia +portuguesa, a independencia é um facto originado no merecimento pessoal +dos chefes militares dos barões de áquem Minho. Nacionalidade +propriamente dita, não a ha; ou pelo menos não nol-a revelam os +monumentos historicos, unanimes, tambem, em revelar uma ambição +collectiva ou social que se estende a toda a Galliza. Ao merecimento +pessoal reune-se, nos primeiros monarchas portuguezes, a circumstancia +de serem os interpretes d'este sentimento. Por isso a tendencia +permanente e o principio claramente definido da politica portugueza, nos +primeiros seculos, é unificar a Galliza, constituindo a noroeste da +Peninsula um Estado tão homogeneo, como o Aragão ou a Navarra a +nordeste. + +N'este proposito se filiam todas as guerras civis--se este nome convém +ainda aos conflictos entre Portugal e Leão--e as repetidas allianças dos +barões gallegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com +que os reis portuguezes transpõem armados as aguas d'esse rio, o se +apossam por varias vezes dos territorios da Galliza leoneza, são provas +evidentes da opinião exposta. + +Não quiz a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento +politico, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galliza, para +usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites +convencionaes do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de +partida da formação de uma nação, cujo caracter, ulteriormente definida, +proveiu principalmente da phisionomia geographica da região; de uma +nação, repetimos, que veiu a perder a tradição d'essa primitiva origem, +desde que o genio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o +das do norte, na direcção e impulso dados á vida collectiva portuguesa. + +Se n'esta primeira epocha da nossa historia o pensamento occulto que +dirige com maior ou menor consciencia a politica, é incontestavelmente o +da hegemonia de Portugal na Galliza, seria absurdo suppôr que, ao lado +d'este principio, decadente desde certa epocha, se não fossem tambem +manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os +symptomas da deslocação do centro vital da nação. + +A circumstancia que mais decisivamente determina este caracter da nossa +historia primitiva é a conquista dos territorios sarracenos de áquem +Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxilios do +suzerano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os +laços de solidariedade entre os gallegos leonezes e os portugueses, vae +gradualmente addicionando a estes ultimos os _Lusitanos_ (seja-nos +licito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento) até +ao ponto de os ultimos predominarem na phisionomia posterior da nação, +transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino: +fazendo substituir á vida rural, primeiro quasi exclusiva, a vida +commercial e maritima depois predominante e quasi absoluta. + +A primeira epocha da historia portugueza offerece pois á observação do +critico dois movimentos[33], oppostos n'um sentido, concordes em outro, +que é o da affirmação positiva da independencia. Mas, se essa afirmação, +terminante nas guerras leonezas, e tambem nas sarracenas, exprime de um +lado a politica da hegemonia na Galliza, do outro exprime, de um modo +todavia inteiramente inconsciente e espontaneo, uma tendencia contraria. +É a da formação de uma nação _lusitana_, de que a Galliza portugueza +desce á condição de provincia ao norte, como o Algarve, mais +propriamente turdetano, vem a sel-o ao sul. O entre Douro e Guadiana, +isto é, a espinha dorsal da Estrella, ladeada pelas Beiras ao norte, +polo Alemtejo a sul, pela Estremadura a poente: eis ahi o que, logo +desde o XIV seculo, começa a representar o corpo homogeneo da nação +portugueza. + + * * * * * + +No Portugal primitivo, a politica da hegemonia na Galliza não se +fundava, porém, sómente em uma indeterminada ambição collectiva. Era um +pensamento decisivo e fixo dos monarchas, e trazia origens tão antigas +como a propria constituição do condado portucalense. + +Creado por uma desmembração da Galliza, o condado cedido ao borguinhão +não é natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do principe. Como +as almas que, desorientadas pelas extravagancias do barbaro +christianismo medieval, viviam n'um estado de aspirações nebulosamente +infinitas: assim a ausencia de um criterio fixo, intellectual ou moral, +e a lei da pura força em que existiam, lançavam os barões n'uma vida de +aventuras, cujo criterio unico era a sua ambição, cujo unico limite era +o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonez era, para +o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades. + +Logo porém que Affonso VI morreu, deixando um vasto espolio a dividir, +D. Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a +cadeia da vassallagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da +gratidão para com um sogro que tanto favorecera o conde, é d'esta éra +que, a nosso vêr, data a independencia de Portugal: e não da éra, de +resto indecisa e impossivel de determinar, em que Affonso Henriques +tomou para si o titulo de rei. É dar uma demasiada importancia ao facto +exterior e secundario do titulo, o fazer d'elle o symbolo da +independencia da nação. Apesar de rei, D. Affonso Henriques prestou +vassallagem: e a sua monarchia não é, de facto, mais nem menos +independente, como monarchia, do que o condado de D. Henrique, ou o +infantado de D. Thereza. A força e não a definição de um dominio, só +effectivo quando se estriba nas armas, eis ahi o que exclusivamente +caracterisa os movimentos dos seculos XI e XII. + +Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o +sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao dominio sobre os +territorios herdados ou conquistados, levara-a Affonso VI comsigo para o +tumulo; e entre os dois herdeiros rivaes, D. Urraca e o rei de Aragão, o +conde portugalense tinha um logar bem preparado para exercer a sua +astuciosa influencia, e para impôr condições e preço a uma alliança que +ambos egualmente ambicionavam. + +Passemos longe d'essas chronicas de perfidias, de violencias, de +adulterios e barbaridades que constituem a historia da herança de +Affonso VI. Como os generaes de Alexandre, os principes da Peninsula +retalham o manto do imperador: e a Edade-média, tão phantasiosamente +pintada com traços de nobreza e galhardia, não é de facto menos corrupta +e asquerosa do que a edade dos satrapas do Oriente. A ferocidade é mais +violenta, a luxuria menos requintada, a perfidia mais ingenua, porque os +homens são verdadeiramente barbaros, e não gregos barbarisados[34]. + +Do pacto de alliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o +engrandecimento do condado, para o norte na Galliza e para leste ao +longo da bacia do Douro, abrangendo Tuy, Vigo, Santiago, por um lado, +Zamora, Salamanca, Toro e até Valladolid pelo outro. A divisão e +demarcação do novo Estado chegou a fazer-se com a possivel solemnidade, +e com a concorrencia de barões leonezes e castelhanos. Era a definição +de um Portugal que a historia não consentiu se mantivesse. + +N'este convenio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as +pretenções dos soberanos portuguezes á posse da Galliza, e d'aquella +parte da Castella-velha geographicamente denominada Terra-de-Campos: +territorios que o conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da +herança de Affonso VI. Tres annos apenas gosou o conde a posse d'esses +seus dilatados dominios. Morrendo, a mesma historia de ignominias, +adulterios e barbaridades ia assignalar o governo de sua viuva herdeira, +como tinha assinalado o da viuva do conde Raymundo. Eram irmãs tambem, +no caracter e nos appetites sensuaes, as duas filhas do D. Affonso VI. + +Morrendo, o velho conde portuguez, ao sitiar Astorga, chamou para junto +de si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições: «Filho, toma esforço +no meu coração! Toda a terra que eu deixo, que é d'Astorga até Leão e +até Coimbra, não percas d'ella cousa nenhuma, que eu a tomei com muito +trabalho. Filho, toma esforço no meu coração! e sê similhante a mim, e +sê companheiro dos fidalgos e dá-lhes todos os seus direitos, aos +concelhos. Filho, toma esforço no meu coração!» + +Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituida +nas suas duas faces parallelas e correlativas: a nobreza, os concelhos. +«E depois que houve castigado o filho d'estas cousas e outras muitas que +aqui não dizemos, morreu.» + + * * * * * + +A viuva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde gallego +Fernando Peres, deu com os seus escandalos pretexto para uma revolta, +que poz em risco a conservação dos vastos dominios herdados de seu +marido. Assim tambem succedera a D. Urraca, perdida de amores pelo conde +de Trava. + +Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente +dissolutos da Edade-média a mancebia não era caso que offendesse o pudor +particular nem publico: os amantes das princesas offendiam, porém, o +ciume dos seus collegas em fidalguia; e o poder effectivo de que um +d'elles dispunha, á sombra do amor que o preferira, enchia de inveja e +odio os companheiros. + +As memorias do tempo retratam-nos D. Thereza como uma mulher sagaz, viva +e bella. A astucia combinava-se no seu espirito com um amor que a levava +a _comprometter-se_, como diriamos na nossa linguagem moderna. Uma vez, +na cathedral de Vizeu, apresentou-se com o amante, no meio da egreja +apinhada de povo, e em frente do prelado que prégava. A authoridade dos +bispos corria então parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de +Vizeu não duvidou dizer á rainha, em voz alta, do pulpito ou dos degraus +do altar, que abandonasse o amante ou se casasse: era um escandalo +aquella união, uma vergonha proceder de tal modo. A condessa, vermelha +de colera e confusão, fugiu rapidamente da egreja seguida pelo amante. + +Porque não succederia ao escandalo a vingança, para não quebrar a +constante alliança da impudicicia e da crueldade, dominantes na +Edade-média? Porque naturalmente as invectivas do bispo traduziam a +força do partido dos invejosos e rebeldes, que já faziam do moço filho +de D. Henrique um pendão de revolta contra a viuva apaixonada. Nem por +tão pouco se affligiria a consciencia do bispo, pois o clero demasiado +ouvia tambem os conselhos da carne, e os amores sacrilegos eram tão +frequentes como os amores livres ou adulterinos. + +A princeza não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais +tarde a vingança. Beijos lascivos, perfidias indignas e barbaridades +ferinas, eis os elementos que constituiam a mulher da Meia-Edade. Os +dotes femininos eram naturalmente pervertidos por um ambiente de +brutalidade anarchica nos sentimentos e nas acções; e, quando a mulher +dispunha da aucthoridade e da força, ou como a Fredegonda dos Merowigues +cevava em sangue a sua féra natureza, ou satisfazia n'uma impudicicia +desesperada as necessidades sensuaes do seu temperamento. Nem a +crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza +que n'elles dá o predominio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos +nas mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse +subalternisada á ambição e aos calculos politicos, ou á bravura e ás +façanhas guerreiras. + +Não se imagine, porém, a mulher da Edade-média um ser apenas formado de +crueldade e amor; menos se supponha D. Thereza uma similhante creatura. +A condessa, infanta ou rainha de Portugal--porque de todos estes titulos +usou--era tambem sagaz e astuta, qualidades que o filho veiu a herdar +com o sangue. Não tinha o animo varonil de uma amazona, mas tinha a +perspicacia e o juizo proprios dos principes d'esses tempos. Sabia +moderar a colera e engulir affrontas como a de Vizeu, quando não podia +vingar-se d'ellas. O amor traduzia apenas uma exigencia dos sentidos, +deixando livre e independente a acção da intelligencia. No meio das +agitadas circumstancias do seu breve governo, não deixou abandonadas as +conveniencias proprias, como dona e senhora do Estado portuguez. + +Muitas vezes se lêem descripções de uma vida sentimental e heroica, em +que as mulheres andam loucas de paixões poeticas, e os homens, typos de +nobreza e audacia, são victimas dos conflictos do amor e da honra. Não +ha nada mais differente da verdadeira, do que essa Edade-média das +operas. A carnalidade desenfreada, o cynismo e a perfidia, uma frieza +sempre calculadora, uma ambição feroz, uma avareza sordida, uma +corrupção de todas as fontes da vida moral: eis ahi o que de facto +constitue a vida aristocratica da Edade-média. Onde está a causa de +tamanhas desordens? Está na coexistencia e no conjuncto de condições +barbaras e de tradições cultas. D'onde provém a illusão com que muitos +suppozeram bellezas espontaneas nos caracteres, e nobres dedicações nos +actos, creando com a phantasia um falso quadro de encantos? Da +ingenuidade dos typos barbaros. + +Ha, com effeito, na natureza espontanea o quer que é de seductoramente +bello, que nos chama para uma região de deleites inconscientes: assim +todas as descripções das sociedades primitivas produzem em nós uma +impressão vivificante, e desde logo somos levados a engrandecer e +nobilitar os homens ainda não corrompidos pelas aberrações da +civllisação. É mistér porém observar que taes homens primitivos não são +os do XI seculo; que na Edade-média existem e vivem, principalmente por +via da Egreja, todas as tradições da cultura antiga; e que a conjuncção +da barbarie e do requinte lança nos caracteres uma semente de perversão, +prompta a rebentar em actos monstruosos, tão corrompidos no principio, +como barbaros na fórma. É popular o sentimento de tédio e nojo para com +o imperio de Byzancio; pois as causas originarias d'essa repugnancia são +tambem communs ás sociedades néo-latinas, ou néo-godas da Hespanha.[35] +Só variam as proporções: os elementos combinados são os +mesmos. No Oriente a cultura é maior, os costumes mais requintados: aqui +é maior a rudeza, e a feição barbara predomina. Por isso os vicios +procuravam, além, esconder-se sob o manto das convenções; e aqui se +expandem ingenua e francamente, á luz de uma ignorancia quasi primitiva. + + * * * * * + +Assim que D. Urraca morreu. Affonso VII, depois de reconquistadas ao +visinho aragonez as cidades de Castella, olhou para oeste, afim de +reconstituir de novo a monarchia leoneza, fazendo regressar ao seu +dominio os territorios de Campos e da Galliza. A invasão e a guerra +duraram apenas uma campanha; e a amorosa Thereza curvou-se ao imperio +das condições, reconheceu o facto da conquista, e confessou com +humildade a vassallagem ao sobrinho leonez. + +Portugal retrahia-se aos primeiros limites--do Minho ao Mondego--do +condado creado por Affonso VI; e os calculos do conde borguinhão +frustravam-se, depois de menos de vinte annos de indeciso dominio. + +Esse infortunio da _regina_ de Portugal acabou de decidir os invejosos +do conde gallego, seu amante. As tendencias de sublevação, até ahi +sopitadas ou mal definidas, tomaram corpo e unidade; e a revolta +declarada dos barões achou nos desastres de 1127 motivo sufficiente para +se erguer em campo aberto. + +Capitaneava a revolta o infante portuguez. Não é esta a unica occasião +em que vemos erguerem-se em armas os filhos contra os paes, os irmãos +contra os irmãos, como prova de que, se os sentimentos andavam +pervertidos pelos instinctos brutaes, ou vinculos de familia eram apenas +laços tenues que se rompiam ao impulso de qualquer exigencia da colera +ou da ambição. Nem sentimentos, nem instituições fixas: uma anarchia +total no individuo e na sociedade, uma desordem acabada na moral e no +direito, eis ahi as bases historicas da Edade-média, cujo deus é a força. + +D. Affonso Henriques, o primeiro rei portuguez, ou capitaneava ou era o +pendão apenas--hypothese que a sua curta edade justifica--da revolta que +tinha por chefes o arcebispo de Braga D. Paio, Sueiro Mendes o _grosso_, +Ermigio Moniz, Sancho Nunes, genro da _regina_ Thereza, e Garcia Soares. +Aos pactos de Braga succedeu o encontro de Guimarães. A rainha, abraçada +ao seu amante, vinha seguida por barões fieis de áquem, e pelos barões +de além-Minho, que se tinham submettido a Affonso VII[36]. +A batalha decidiu-se pelo filho, e a rainha fugiu a esconder no condado +do amante o desespero da derrota. De protectora, os acasos da guerra +faziam-na agora protegida; e a historia deve ainda ao conde gallego a +justiça de mencionar que a não abandonou, quando a viu despojada do +poder e do titulo. Os prazeres da paixão acaso suavisariam á formosa +filha do grande Affonso a infelicidade das armas, e porventura tambem o +desespero maternal, se é que os vinculos de sangue tinham para a mãe um +merecimento superior ao que tinham para o filho. + +No seio da barberie corrupta em que se revolvia, a Edade-média tinha, +porém, não só o instincto dos deveres, innato nos homens, como o medo +dos castigos divinos prégados por uma religião que até para o proprio +clero baixára ás condições de um quasi fetichismo. As lendas contam que, +vencedor, o filho encarcerára a mãe, e põem na bocca de D. Thereza este +anathema terrivel: «Affonso Henriques, meu filho, prendeste-me e +metteste-me em ferros e exherdaste-me da minha terra que me deixou meu +padre, e quitaste-me de meu marido: rogo a Deus sejas assi como eu sou, +e porque metteste ferros nos meus pés, quebradas sejam as tuas pernas +com ferros. Mande Deus que isto assim seja!» E o anathema cumpriu-se em +Badajoz, annos depois, porque Deus vingador não perdoava os crimes +frequentes dos filhos contra os paes. Assim pensavam esses homens simples. + +Á batalha de Guimarães ligava-se, porém, um alcance maior do que o de +uma simples questão de familia: era a ruptura de solidariedade entre as +duas metades da Galliza, e a victoria da portugueza sobre a leoneza. Era +o primeiro symptoma de uma direcção nova, que se ia imprimindo na vida +historica nacional. Essa ruptura da solidariedade, e a força da +monarchia leoneza sob Affonso VII, serão dois motivos concorrentes para +impedir que as tentativas do primeiro rei portuguez tenham sobre o norte +resultados efficazes. + +Logo depois de Guimarães, Affonso Henriques, preferindo o papel de +invasor ao de atacado, procura reivindicar as fronteiras perdidas em +1127 por D. Thereza. Duas vezes invade a Galliza transminhota: duas +vezes é forçado a recuar, em 1130 e em 1132; mas depois de Guimarães, +depois da lide de Val-de-Vez em que os portuguezes venceram, já a +independencia de facto estava conquistada. Sellados os preliminares de +paz, Affonso Henriques occupou-se em _acalmar_ as terras do seu senhorio +afim que nunca «lhe acontecesse outro tal desavisamento,» e conquistou +«todallas fortalezas de portugal assy como se fossem de mouros.» + +Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira +porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as +condições necessarias para consolidar uma independencia até ahi +precaria. Era audaz, temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem +tão commum no tempo, como a muitos acaso pareça. Fraco general, ao que +se vê, porque as batalhas feridas com as tropas leonezas perdeu-as +sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando um troço de soldados, caía +de improviso sobre um logar, e a furia irresistivel do ataque deu-lhe a +maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das emprezas o assustava, +nem as distancias o impediam de acudir a um tempo, do extremo norte, +quasi ao extremo sul no paiz. A estes dotes militares reunia outros não +menos valiosos, na precaria situação em que se apossára do reino. Era +secco, astuto, friamente ambicioso, sem chimeras, nem illusões. Era um +espirito agudo e pratico, e isso fazia boa parte da sua força. Mal dos +politicos ao mesmo tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais +leve brisa do cannavial, assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia, +logo que a sorte lhe era adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á +facilidade astuta com que se humilhava, respondia logo a teima perfida +com que se rebellava. Isto fazia-o indomavel. Tinha o quer que é de +fugitivo, na sua politica e no modo porque fazia a guerra. Ubiquo +militarmente, era nos negocios um proteu. Os seus amigos, leonezes, +sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e humilde quando se +achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava todas as +durezas; para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os +tratados, com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural, que +chegavam a espantar a propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem +sentimentos de familia, nem odios pessoaes, nem vinganças estupendas: +nenhuma chimera, nenhuma grande ambição, nenhum sentimento poetico, +enchiam a sua cabeça, estreita, e inteiramente occupada pela idéa fixa +de consolidar a sua independencia. O predominio absoluto de uma idéa +pratica, servida por uma intelligencia lucida, por um caracter sem +grandeza, e por uma valentia provada, tornavam-no invencivel, ainda +mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o similhante a uma lamina de +aço, um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida +quando livre, e impossivel de manter curvada desde que se acha solta. O +seu pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rigeza do bronze nem +o peso do chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu +refoio: assaltado, investia, despedaçando tudo com as fortes prezas. +Perseguido, fugia. Não tinha a nobreza do leão, nem a astucia ferina do +tigre: possuia apenas a tenacidade brava e bronca do javali. Um fraco +apenas lhe notam, embora os actos da sua vida não denunciem que esse +defeito o prejudicasse muito: gostava de ser adulado. + +Affonso Henriques foi quem verdadeiramente consummou a separação de +Portugal, não pelos meritos proprios apenas, mas porque a direcção +politica do reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos factos no +sentido de definir de um modo positivo a independencia da nação. + +Uma parte dos barões da Galliza leoneza, sublevados contra o suzerano, +acolheu-se em 1137 sob a protecção de Affonso Henriques, prestando-lhe +vassallagem, e, assim, de novo se levantou a questão das fronteiras do +norte de Portugal. Affonso VII não pudera, nos annos anteriores, descer +a rebater as invasões do turbulento visinho, occupado como estava a +debellar o navarro; agora, porém, tinha já os movimentos livres, e +apressou-se a submetter a Galliza. Por seu lado Affonso Henriques era +solicitado a defender a fronteira austral, onde os sarracenos tinham +vindo n'uma álgara feliz derrocar o castello de Leiria. É por estes +annos que o destino de Portugal se debate entre a Lusitania e a Galliza, +quando a actividade do guerreiro é solicitada, ora do norte contra os +leonezes, ora do sul contra os sarracenos. Oscillante ainda e indeciso, +breve assistiremos ao definitivo pender da balança no sentido do +alargamento das fronteiras austraes. + +A simultaneidade do ataque leonez e sarraceno em 1137 obriga Affonso +Henriques a curvar a cabeça, assignando as pazes de Tuy, nas quaes +desiste das suas pretensões de além-Minho, confessando, ao mesmo tempo, +vassallagem ao suzerano de Leão. _Ut arundo fragilis ferebatur_: vergava +como o cannavial o principe, a este sopro da fortuna adversa! Desistia +de tudo, da ambição e até da independencia. Quem se fia, porém, na +palavra do pertinaz batalhador? Defendido o seu senhorio por norte, não +se demora a persistir n'uma guerra leal mas perigosa. Espera melhor +oocasião para a desforra; porque lhe não custa subscrever a um tratado, +a que não pensa decerto submetter-se, senão emquanto a força das cousas +a isso o violentar. Não assim os fronteiros de nordeste que, apesar das +pazes de Tuy, continuam a guerra por conta propria: tão frageis eram +ainda os laços, que reuniam os vassallos ao conde soberano de Portugal! +De Tuy, o leonez, subindo pelo valle do Lima atravez da Galliza +portugueza que assolára, vae encontrar as mesnadas dos ricos-homens +sublevados nos Arcos-de-Val-de-Vez. Resam as tradições de um torneio ou +_bufurdio_[37] em que os cavalleiros inimigos batalharam +por seus exercitos, vencendo os portuguezes na estacada, onde numerosos +combatentes ficaram mortos, segundo as regras da cavallaria. Apesar de +victoriosos, porém, os portuguezes não podiam resistir a Affonso VII, +tanto mais que D. Affonso Henriques desistira de continuar uma guerra +improficua. + +Que fazia entretanto o principe? Tratava da desforra de Leiria; e em +1139 levava a cabo o temerario fossado de Ourique, pagando uma estocada +com outra; e preludiando esse duello de morte, entre Portugal e o +Al-Gharb sarraceno, com um golpe que foi, com a rapidez penetrante do +raio, ferir o corpo musulmano quasi junto a Chelb ou Silves, o coração +da Hespanha austral. A esta aventura temeraria, mas feliz, ia succeder +em curtos annos a empreza mais seria e importante da conquista da linha +estrategica do Tejo: facto de um alcance capital, n'esse periodo em que +o futuro destino da nação fluctuava ainda indeciso entre a Galliza e a +Lusitania. + + * * * * * + +Desde que o antigo condado portucalense, batido na sua tendencia de +absorver a Galliza, conquistava a região de entre Mondego e Tejo, +chegando a avançar padrastos ameaçadores para o sul, era evidente que um +novo Estado se formava; e esse Estado nascia dos actos proprios do conde +portuguez, não de concessões ou beneficios do suzerano. Esse Estado era +pois um reino, uma vez que a esta palavra andava ligada, de um modo mais +ou menos definido, a idéa da independencia, segundo o direito politico +dos godos. Foi, portanto, quando o plano de se apossar do sul do reino +começou a occupar o espirito do guerreiro, orgulhoso pela victoria de +Ourique, isto é, em 1139 ou 1140 (a erudição não conseguiu determinar a +éra) que Affonso Henriques tomou para si o titulo de rei. O caso não era +novo, porque por vezes a mãe usára chamar-se rainha de Portugal; +dava-se, porém, agora a circumstancia de que esse titulo, embora +juridicamente usurpado, o era com tamanho fundamento, que nunca mais +deixou de ser o dos soberanos portuguezes. + +A razão politica da independencia, evidente hoje para a critica, não o +estava de certo para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a +ambição, e o titulo a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não +tinha de certo a consciencia de que isso importasse o primeiro passo no +caminho da formação de uma nova nação peninsular. Ferido, tirára do +sarraceno uma desforra completa; mas faltava ainda apagar a nodoa de +Tuy, rasgar esses tratados que ligavam, como vassalla, á corôa soberana +de Leão, a sua corôa ainda mal assente, o seu reino precario ainda. Uma +volta da fortuna podia outra vez precipital-o, das eminencias onde as +suas ambições o erguiam, na humilde condição de conde de Portugal. + +Em Val-de-Vez Affonso VII assignára os preliminares de uma paz que os +acontecimentos dos annos posteriores não tinham consentido se traduzisse +n'um tratado definitivo; e agora não era já licito ao leonez exigir, nem +ao portuguez acceitar as duras condições de uma perfeita vassallagem. + +O papado exercia então na Europa uma especie de suzerania espiritual +sobre os principes christãos; porque no meio d'esses guerreiros, bravios +e timidos como selvagens, o sacerdote tinha verdadeiramente o poder de +condemnar em nome de Deus.[38] Uma excommunhão valia muitas +vezes mais do que um exercito. Assim, o cardeal Guido, legado do papa, é +quem em 1143 dicta em Zamora, onde Affonso Henriques foi vêr-se com o +imperador (d'esse titulo usava Affonso VII) as condições do tratado de +paz. O portuguez desiste ahi das suas pretenções ás fronteiras cedidas +por D. Urraca, e Affonso VII por seu turno reconhece a independencia do +novo reino e o titulo do seu soberano. Esta soberania e independencia +não eram, porém, absolutas. Na jerarchia feudal havia graus diversos de +suzerania e vassallagem correspondente; e os tratados de Zamora +alteravam a natureza, mas não quebravam de todo os laços que prendiam +Portugal ao corpo da grande monarchia peninsular. Affonso Henriques +ficava sendo um rei, mas o seu reino nem por isso deixava de fazer parte +do imperio da Hespanha; nem elle proprio, por tal fórma, deixava de +ficar n'uma situação subalterna perante o imperador. Era uma vassallagem +politica, substituindo a pura vassallagem pessoal do regime anterior. O +direito feodal não se obliterára, porém, ainda ao ponto de prescindir de +uma obrigação pessoal; e por isso o soberano portuguez continuava a ser +vassallo do visinho, não como soberano, mas como senhor de Astorga, para +esse effeito doada a Affonso Henriques.[39] + +Estas subtilezas propriamente byzantinas, inspiradas pela politica +ecclesiastica que imprimia o seu cunho ao feodalismo, formavam um +systema de enganos reciprocos, de mentiras mais ou menos sinceras, com +que se revestiam os actos brutaes da força, e os actos perfidos da astucia. + +Affonso Henriques, _regendi imperii jam bene sciolus_, mestre acabado na +arte de enganar e na arte de combater, tinha já formado o seu plano, e +por isso subscrevia sem reserva a todas as exigencias do tratado. A +independencia e a soberania que elle lhe dava eram apenas pessoaes e +vitalicias, e nas idéas aristocraticas a hereditariedade era inseparavel +do dominio. O seu reino era pois um falso reino, desde que, não havendo +no direito politico dos godos outra base para a successão, além da +electiva, ou Portugal seria por sua morte absorvido no imperio +hespanhol, em via de cristalisação, ou o filho de Affonso Henriques +teria de recomeçar a debater com as armas a questão vital da +independencia. Os termos do tratado decerto o não illudiam, +garantindo-lhe apenas pessoalmente a independencia e a soberania; e se +da parte do leonez houvera o intento perfido de o enganar, elle +preparava uma licção ao mestre, e tão eloquente como fôra cruel a licção +que dera ao sarraceno. + +Entre os dous litigantes o italiano perspicaz foi provavelmente o +conselheiro de ambos. Guido, como o insecto artificioso e cheio de +habilidades, teceu a trama. Ao leonez mostraria o modo de illudir o +adversario: conceder-lhe tudo, deixando esse tenue cordão umbilical de +Astorga, para no momento opportuno fazer reverter os territorios +portuguezes ao corpo da monarchia soberana. Voltando-se depois, com um +sorriso, diria baixo ao portuguez, que o tratado não valia nada de +principio a fim, se elle quizesse seguir-lhe os conselhos. Todas as +habilidades do imperador provariam inuteis: tinha um meio +seguro!--Affonso Henriques devia ouvir com attenção tenaz as +confidencias do cardeal. Havia um direito superior ao direito feodal: +era o canonico. Havia um soberano, rei dos reis: o papa. Porque não +seria Affonso Henriques vassallo do papa? Collocasse os seus reinos sob +a suzerania papal, e nenhum imperador das Hespanhas ousaria tocar-lhes. +Só assim a sua corôa ficaria segura na cabeça, d'elle e de seus +descendentes. A suzerania do papa era de resto infinitamente menos +incommoda. Reduzia-se a uma pequena somma de dinheiro. Um nada! Quatro +onças de ouro por anno, nem mereciam a pena contar-se deante da +independencia de facto. Se o rei acceitasse, elle proprio em pessoa +redigiria a carta, elle que redigira o tratado; elle proprio seria +portador da missiva ao papa. Se viera a Hespanha fazer a paz, iria de +Hespanha com o coração contente, por ter conquistado mais um vassallo +para a Egreja.--E mais um censo annual para o thesouro romano, +accrescentaria mentalmente! + +Affonso Henriques desde logo acceitou. Pouco lhe importava o censo, +porque não tinha sequer a certeza de ser fiel ao pagamento. O cardeal +illudia-se, se suppunha que o rei tremia das excommunhões: um rei que +não havia de hesitar em rasgar as bullas pontificias, e pôr e depôr +bispos, como bem lhe approuvesse! + +O cardeal partiu levando a carta do rei; e emquanto este ia formando a +tenção de supprimir o pagamento do censo, logo que lhe conviesse +fazel-o, o cardeal foi pela viagem ruminando o modo de colher as onças +de ouro, sem se inimisar com o leonez. Só annos depois Affonso VII veio +a saber como o visinho e já quasi émulo illudira as disposições do +tratado de Zamora. Insistindo com o papa para que recusasse a +vassallagem, não o consegue; mas tampouco Affonso Henriques consegue +aquillo por que pagára o preço de quatro onças de ouro annuaes; pois nas +piedosas cartas que lhe escreve, como suzerano a vassallo, o papa +cuidadosamente evita chamar-lhe _rei_, e _reino_ a Portugal. + +Em vão Affonso Henriques insta e exige. Por fim, já nos derradeiros +annos do seu reinado, e á custa de um presente de mil morabitinos e do +augmento do censo annual, Alexandre III decide-se, e sancciona-lhe o +titulo, garantindo-lhe a hereditariedade, sob condição de preito e +confirmação outorgada aos seus successores. + + * * * * * + +Portugal, que já a esse tempo tinha uma razão de ser territorial +independente da Galliza, achava agora um fundamento juridico de +independencia de Leão. A suzerania do papa collocava o novo reino ao +abrigo das pretenções da monarchia leoneza; e se Affonso Henriques não +saía da condição subalterna de vassallo, porque apenas mudára de +protector ou suzerano, o facto é que na mudança ganhava uma liberdade +real, esperando o que de facto veiu a conseguir: que a vassallagem se +tornasse nominal apenas. + +Ainda no tempo do primeiro rei portuguez de novo se ateia a guerra com +Leão; mas basta um exame superficial dos monumentos historicos para vêr +que o caracter e as condições d'essa nova campanha são já totalmente +outros. Não é um vassallo rebelde pugnando pela independencia: é o +choque de duas monarchias que reciprocamente se reconhecem como taes. A +serie de guerras entre os diversos estados da Peninsula--caminho por +onde ella chegou a determinar as condições definitivas das suas +constituições politicas--tem na campanha de 1160 um episodio. Affonso +Henriques, já rei de facto e de direito, já senhor da linha estrategica +de Santarem, e possuindo além d'isso, como vedetas avançadas para o sul, +varias praças do Alemtejo, dispunha de forças sufficientes para pesar +com a sua espada no debate das questões politicas dos Estados +peninsulares. Desde que se decidisse a fazel-o, é natural que a velha +ambição das fronteiras dilatadas de norte e nordeste fosse a causa +efficiente dos seus actos. + +Fernando II de Leão casára com uma filha do rei portuguez, mas nem ao +genro nem á filha Affonso Henriques cedia os seus ambiciosos propositos. +Raras vezes a politica tomou em consideração os vinculos de familia. O +rei de Leão usurpára a corôa de Castella, e contava que a esposa lhe +trouxesse a alliança do portuguez; porventura teria havido +intelligencias positivas entre os dois monarchas. Quando com uma livre +audacia se rompiam as pazes mais solemnes, que admira que se mentisse a +convenios ou ajustes privados? Affonso Henriques era, como se sabe, +mestre na arte de reinar. O facto é que, logo um anno depois do +casamento da infanta, aproveita o momento em que o rei Fernando se +achava a braços com a insurreição dos castelhanos, para mandar seu filho +e herdeiro, Sancho, á batalha de Arganal, onde foi batido (1165). +Invadindo em pessoa a Galliza, o rei apossára-se facilmente de Tuy e do +districto de Toronho até ao Lerez, seguindo d'ahi para leste (1166). +Essa nova occupação portugueza da Galliza dura até ao desastre de +Badajoz (1169). + +Correndo então ao sul, Affonso Henriques decide-se a consolidar as suas +possessões do Alemtejo, conquistando Badajoz aos sarracenos. Este acto, +porém, era simultaneamente um episodio da guerra com Leão, porque o wali +de Badajoz se collocára sob a suzerania de Fernando II, e porque a praça +ficava para fóra dos limites de leste, marcados em Zamora ás futuras +conquistas do rei de Portugal sobre os musulmanos. + +A cidade caiu sobre o ataque do portuguez. Colhidos por surpreza, os +defensores encerraram-se na alcaçova, resistindo. Poz-se o cerco, mas +entretanto o rei de Leão, avisado, correu a defender o que era seu; e +Affonso Henriques foi colhido entre dois inimigos. De sitiante viu-se +cercado. + +Afinal o temerario capitão caía em poder do adversario, afinal o caçador +colhia-o fóra do refoio. Debate-se, estrebuxa e, ainda vencido, lucta +desesperado; mas está pesado, velho e gasto. Faltam-lhe as forças para +arremetter como d'antes, com a cabeça baixa e as presas activas, contra +a matilha dos lebreus. Tropeça e cáe. É colhido. Cumpria-se o anathema: +Deus castigava o filho que prendera sua mãe! Prisioneiro, curva-se +submisso, recolhendo a colera e os dentes açulados, perante o seu nobre +vencedor. Tal nome convem de facto a Fernando II, cuja magnanimidade +perdoou as perfidias e ataques do visinho e sogro. «Restitua o que +roubou, guarde o que é seu, e vá em paz!» Cabisbaixo, com o joelho +ferido, a coxear, Affonso Henriques parte d'alli a Santarem, concluir o +que lhe resta de vida. Não tem coleras, nem fundas magoas pela afronta +que soffreu: só lamenta a virente Galliza, perdida para todo o sempre. + +Como o avarento, em cuja alma a paixão exclusiva absorveu todos os +sentimentos e paixões humanas, assim na alma de Affonso Henriques a +monomania da conquista, doença vulgar nos principes da Edade-média, +atrophiára o desenvolvimento de tudo o mais. Mas, se entre os consocios +de uma patria irman, se entre os herdeiros de uma historia commum, ha o +amor por essa patria e a veneração pelos antepassados, nenhum merece na +alma dos portuguezes respeito maior, do que o primeiro de todos aquelles +a cujo braço esforçado se deve a obra da constituição politica da nação. +N'este sentido as manias chegam a ser sublimes. Um salteador é, não +raro, um verdadeiro heroe; a perfidia é uma virtude, a crueldade é um +titulo de gloria, porque o espirito collectivo substitue o criterio +moral e abstracto pelo criterio historico, o qual tem como base a +consagração dos factos consummados. + +A separação de Portugal foi um facto consummado, graças ao valente +mediocre, tenaz, brutal e perfido caracter de Affonso Henriques. + + [32] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), liv. III, 1. + + [33] Resumimos á politica o campo das nossas observações, por + termos deixado na _Hist. da civil. iberica_ desenhados + os traços geraes dos movimentos propriamente sociaes. V. + Livro III; pass. + + [34] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 309-48. + + [35] _V. Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 113 e segg. + + [36] V. _Instit. primitiv._, p. 215. + + [37] V. _Instit. primitivas_, p. 165. + + [38] _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, XXXII-III. + + [39] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 267-75. + + * * * * * + + + + +II + +A conquista do Al-Gharb + + +Nas suas emprezas contra Leão, Affonso Henriques, batido sempre como +guerreiro, conseguira desforrar-se dos desbaratos com a astucia. Das +duas faces que apresenta a historia da fundação da monarchia, vimos a +primeira: resta-nos vêr a segunda. Assistimos aos actos do politico; +vamos assistir agora ás fecundas emprezas do conquistador. + +O principe trazia para a guerra as manhas da côrte, sem prejudicar a +firmeza necessaria, a bravura, o sangue-frio e a audacia. Com este +conjuncto de elementos dava um caracter original á guerra (_novo genere +pugnandi_). Ia de noute, ás escondidas (_furtim_), como um chefe de +bandidos em assalto a algum villar, fortificado, no pendor de uma serra +distante (_quasi per latrocinium_). Assim investiu e tomou Santarem. +«Assim conquistou a maior parte dos castellos das provincias de Belatha +e Al-Kassr, este inimigo de Deus!» diz o chronista arabe. O ponto de +ataque era de antemão escolhido. Por uma noute escura e tempestuosa +punha-se a caminho com um troço de homens resolutos: dir-se-hia uma +quadrilha de salteadores. Galgavam rapidamente as distancias, e chegados +ao destino, apeiavam-se, approximando-se caladamente dos muros. Affonso +Henriques encostado á escada, era o primeiro a subir com o punhal preso +entre os dentes. Parava, escutava, com o olhar agudo, a respiração +suspensa: afinal pousava ancioso o pé entre as ameias, e apertando o +punhal nas mãos, cozia-se com os muros. Na sombra não o distinguiam. +Caía como um falcão sobre a sentinella, e apunhalava-a antes que ella +podesse tugir um grito. Entretanto os companheiros iam subindo. O bando +reunia-se na esplanada, armado e resoluto, o ao grito de «Santiago!» +caía sobre a guarnição adormecida e trucidava-a. «Tal foi o modo por que +este inimigo de Deus tomou a maior parte dos castellos das provincias de +Belatha e Al-Kassr!» + +Havia porém ainda outra maneira de guerrear, cuja invenção não pertence +a Affonso Henriques: era o systema de álgaras, fossados ou correrias, +atravez dos extensos territorios fronteiros. De um lado e de outro, +n'uma zona mais ou menos larga, conforme o ordenavam a constituição +geographica e a estrategia, desdobravam-se as charnecas periodicamente +assoladas. Aqui e além, apertadas em cintos de muralhas, ficavam as +povoações, em cuja volta, como oasis, appareciam malhas de terrenos +agricultados. Confiar ao nervo e á velocidade dos cavallos o transpôr as +passagens perigosas d'esses desertos onde as sortidas dos castellos +podiam cortar a retirada, e cair impetuosamente sobre as searas, +incendiando-as, sobre os rebanhos, roubando-os, sobre os tardivagos, +matando-os; talando os campos, cortando as arvores, incendiando as +casas, e voltando rapidamente com as prezas feitas: tal era o processo +egualmente seguido por christãos e sarracenos; reduzido já a um systema +de invasões annuaes na epocha das colheitas, e contado como principal +recurso financeiro da rude economia do tempo. + +Se a tomada de Santarem (1147) é um typo da primeira especie, a batalha +de Ourique, ou Orik (1139), é o typo da segunda. A fortuna accendia a +audacia de Affonso Henriques, que levou o fossado por entre as fortes +posições de Santarem e Alcacer, deixando Palmella, Cintra e Lisboa na +retaguarda; atravessando o Tejo, para ir talar os campos de Chelb ou +Silves, emporio sarraceno da Hespanha lusitana. Poucas vezes, porém, um +fossado era apenas uma correria e um saque. As guarnições dos castellos +passavam signal, combinavam sortidas; e o episodio de uma batalha +acompanhava quasi sempre a obra de depredação. A batalha de Ourique, +qualquer que tivesse sido a importancia numerica dos combatentes, deu a +Affonso Henriques uma victoria que o encheu de animo para entrar em +campanhas mais regulares e fecundas. + +Os primeiros nove annos do governo do principe tinham sido absorvidos +pelas questões leonezas, quando em 1137 uma invasão sarracena veiu +destruir Leiria, que elle erguera para defender Coimbra das subitas +investidas dos inimigos. Ourique desforrou-o do desastre, que o rei por +outro lado remediava reconstruindo o castello, então fronteiro do +extremo sul dos seus Estados. Mas logo o musulmano responde, voltando +como uma onda que, alastrando o territorio christão, vae rolando até aos +altos de Trancoso, deixando pela segunda vez derrubadas as muralhas de +Leiria. Affonso Henriques consegue dominar a invasão, que retrocede ao +abrigo da linha do Tejo; e retribue logo a visita com uma tentativa +frustrada sobre Lisboa. Depois, alliado ao wali de Mertola contra o de +Santarem, vae assolar os districtos de Merida e Beja. Nos intervallos +d'estas correrias, o rei ferira as batalhas do tratado de Zamora, e +ganhára a victoria que lhe preparou o cardeal Guido. + +O periodo de dez annos que está entre 1137 e 1147 offerece n'estas +guerras o aspecto de um movimento que oscilla, como um pendulo suspenso +de um ponto que é Lisboa: invasões sarracenas para o norte, portuguesas +para o sul do Tejo, instabilidade de resultado de ambas. O eixo d'este +movimento era evidentemente Lisboa e o systema das suas linhas de +defeza--Cintra-Almada-Palmella-Santarem. A conquista da linha do Tejo +tornava-se a condição indeclinavel, não já do alargamento, mas até da +conservação da monarchia de Affonso Henriques. + +Demasiado, porém, sabia elle que os recursos militares de que dispunha, +se chegavam para os fossados annuaes, se bastavam para conquistar _quasi +per latrocinium_ os castellos isolados, eram demasiado escassos para +tentar empreza tão vasta como a da conquista do systema de fortalezas +que formavam o nucleo defensivo do centro do que foi depois o reino +portuguez. Na tentativa frustrada que fizera sobre Lisboa em 1140 fôra +ajudado por uma esquadra de Cruzados. As suas esperanças estribavam-se +n'um auxilio d'essa ordem: até porque, sem forças navaes para entrar no +Tejo--ainda então não havia marinha militar--seria absurdo tentar a +empreza. + +Entretanto, sete annos iam passados depois d'essa primeira apparição dos +Cruzados, sem que outros viessem proporcionar-lhe occasião para realisar +os seus designios. Impaciente, orgulhoso ainda com o resultado da +correria de Beja (1145), seguro do lado de Leão pelas pazes de Zamora, +forte pela confirmação do seu titulo, confiado na protecção papal--o +sangue pula-lhe nas veias, e decide tomar Santarem, (1147) _á sua moda_, +isto é, por surpreza. Pela calada da noute appareceu á raiz das muralhas +da villa. Pozeram-se escadas. Subiu um furtivamente e abafou uma _vela_ +(sentinella); depois subiu outro, depois terceiro, «e depois que todos +tres foram em cima do muro, a vela que estava em cima do caramancham, +quando sentiu Mem Moniz que se ia alongando, disse-lhe: «Manahu!» e elle +respondeu-lhe em aravia e fel-o descer, e logo que foi em baixo +cortou-lhe a cabeça e deitou-o aos de fóra. E então elles poseram outra +escada e subiram por ambas o mais toste que poderam, e foram tantos que +se apoderaram do muro e britaram as portas por onde entraram elrey e os +que com elle foram. E d'esta guisa foi furtada a villa de Santarem aos +mouros.» O resultado correspondeu pois ao plano, e quem sabe se a +temeridade teria arrastado o rei a proseguir do mesmo modo contra +Lisboa? Não foi, porém, necessario. Esse anno vieram os Cruzados[40] por +quem suspirava, e com elles metteu hombros á empreza. + +A guerra toma desde então um caracter regular de cercos e campanhas. Os +meios correspondem aos propositos, e estes á idéa da nação que começava +a definir-se. + + * * * * * + +A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portugueza, até +ahi envolvida nos limbos da geração. O cerco affigura-se-nos como o +concilio internacional, uma especie de congresso guerreiro, em que a +Europa baptisa o recem-vindo á luz da historia. Creado pelos actos +geradores da vontade de um homem, abrigado pela égide da Egreja, +Portugal tem a existencia confirmada pela sancção dos exercitos cruzados +da Europa. O caracter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior +phisionomia politica, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um +baptismo, quando, em frente d'essa piscina do Tejo, onde fundeiam +duzentas naus coroadas pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se +estende o cordão do exercito de flamengos, lotharingios, allemães e +inglezes. + +As columnas dos cavalleiros cruzados combatem ao lado das mesnadas dos +barões portuguezes, estendendo-se em meia lua, a investir o morro de +Lisboa; e com as pontas apoiadas contra o rio, formam metade do cinto +que a armada, fundeada no Tejo, encerra. Com os frankos e inglezes, +colossaes de estatura, rubros de sangue, herculeos de musculos, vêem +italianos sagazes, mestres consummados na arte das minas ou sapas. Sobre +os navios e do lado da terra a arte acorre em auxilio da força. Os +inglezes montavam as suas manganellas ou catapultas, os frankos as suas +torres; e Affonso Henriques pasmava d'esses maravilhosos instrumentos +deante dos quaes a escada e o punhal do salteador nocturno pareciam +miseraveis. Acaso a comparação offendia a sua opinião, bem fundada, de +atrevido; acaso achava mais rapido e simples confiar o resultado aos +seus expedientes favoritos de condôr: o facto é que decidiu começar por +um assalto. Foi no dia 3 de agosto que pela primeira vez rebombou a +trovoada dos golpes do moganons, o stridente sibilar das settas +despedidas do alto das torres, e das pedras soltas das fundas,[41] +o clamor apocalyptico dos combatentes, erguendo um côro de +imprecações ferozes, proferidas nas mais desvairadas linguas. Á tormenta +dos sons respondiam os relampagos do pez, do azeite, da estopa +incendiada, que os muros de Lisboa vomitavam sobre os assaltantes, +ajudando o sol que, illuminando a scena, congestionava as cabeças dos +filhos da algida Germania, da Britannia ou da Frankonia. Ás ondas de +lume, ao lume do sol, veio juntar-se um novo clarão de chammas e de +grossas voltas de fumo negro que subia cravejado de scentelhas a +perder-se no ar: as torres ardiam! O assalto era repellido; a tentativa +falhára. + +Começou o cerco. Em poucos dias a voracidade feroz dos homens louros do +norte destruiu quanto havia em torno de Lisboa: hortas e pomares, +villas, cazaes e granjas. Dentro da cidade escasseiavam os mantimentos, +e bandos de soldados fugiam com fome: do alto dos muros, os que ficavam +perseguiam-nos com surriadas de pedras. Os gastadores minavam, atulhando +a sapa com lenha cortada nos arredores: no dia decisivo, o fogo, +consumindo esses transitorios esteios, roubaria a base ás muralhas. Os +italianos construiam uma grande torre, que ficou terminada em meiado de +outubro, quando a resistencia de Lisboa tocava o extremo. Queimaram-se +os robles da sapa, assestaram-se os tiros, prepararam-se as columnas de +soldados, e deu-se o assalto, logo que se ouviu o estrondo de um panno +inteiro das muralhas que se derrocava do lado do oriente. + +Lisboa capitulou. Os Cruzados cevaram o amor do ouro, da prata, e das +mulheres formosas, (_auri et argenti et pulcherrimarum fæminarum +volupias_) que os levava á Syria; e Affonso Henriques tomou posse da +cidade. As fortalezas satellites de Lisboa não podiam resistir: Cintra, +Palmella, e Almada Cairam em curto espaço nas mãos dos vencedores. + +A base geographico-maritima de Portugal estava ganha para não mais se +perder; e se o rei fôra o author do facto da separação, era o rei quem +todos os dias ia adiantando a obra de uma independencia positiva e +formal. Lisboa não valia menos, para tal fim, do que a protecção de Roma. + + * * * * * + +Esses dias de Zamora e de Lisboa (1143 e 47) marcaram o apogeu do +reinado do primeiro monarcha portuguez. Batido em Badajoz pelo genro +leonez (1169), foi-o tambem nas suas novas conquistas, pelo sarraceno +(1161-71). Affonso Henriques não era já o mesmo homem: a edade +quebrára-lhe o vigor de outros annos; e o perdão de Badajoz e as armadas +dos Cruzados deviam ter quebrado tambem a cega confiança que punha nos +seus recursos e habilidades. Via que no coração dos homens podia haver +mais do que ambição e manha; e na arte da guerra processos mais valiosos +do que a escada e o punhal, a _razzia_ e o assalto nocturno. Taes +observações, acompanhadas pela ferida do joelho que o conservava tolhido +roiam o velho capitão no seu antro de Santarem (1171). + +O enthusiasmo da tomada de Lisboa tinha-o impellido a proseguir, +aproveitando a commoção triste dos vencidos e o apparecimento de novas +frotas que agora, christan Lisboa, demandavam o Tejo, para refrescar, +nas suas viagens para a Palestina. + +Al-Kassr, ou Alcacer-do-Sal, era, para além de Lisboa, o centro +estrategico da linha de defeza do Alem-Tejo, que guardava Chelb ou +Silves. Logo depois de rendida Palmella, Affonso Henriques, confiando +demasiado nas proprias forças, investira, só e ao modo antigo, o +castello de Alcacer, mas fôra cruelmente vencido (1151). Annos depois, +vale-se do auxilio de uma frota ingleza, sem conseguir render a desejada +praça (1157), que afinal cáe perante o ataque combinado das forças +portuguezas e alliadas da Cruzada de 1158. Evora e Beja cedem tambem por +essa occasião; e dir-se-hia que Silves, desguarnecida da sua linha de +fortalezas fronteiras, ia cair rapidamente nas mãos do afortunado principe. + +Não era, porém, assim. Essas successivas conquistas das praças do +Alemtejo não tinham a importancia decisiva que tivera a de Lisboa. +Levantadas como pontas de rocha isoladas, no meio dos vastos campos +desolados, as praças do Alemtejo offereciam aos guerreiros abundantes +prezas; e por isto os Cruzados de tão boa vontade paravam aqui, a +preludiar na Hespanha o programma feito para a Syria. Saqueadas, +incendiadas, porém, ou arrazadas, o seu valor para o reino era por certo +lado pequeno ou nullo. O rei não dispunha de forças bastantes para +guarnecer tão numerosos castellos e tão dilatadas fronteiras. Já para +conseguir manter a linha do Tejo, tivera de doar ás ordens +monastico-militares estrangeiras (Hospital, Templo, Santiago) as praças +rayanas de Thomar, de Palmella, de Leiria. Os territorios despovoados e +nús não vinham augmentar-lhe o numero de soldados, nem a riqueza. Para +que isso succedesse era mister que a paz e o tempo fomentassem o +desenvolvimento natural das forças economicas. Assim, desde que as +armadas dos Cruzados, abarrotadas de prezas, largavam a bahia do Tejo, +Affonso Henriques, tornando a achar-se a sós com os seus recursos +militares, era forçado a abandonar as conquistas avançadas do Alemtejo. +Annos havia, tomára e deixára Beja: e agora (1158), das praças +conquistadas, apenas guarnecia e conservava Alcacer. + +Estas campanhas do Alemtejo estão perante Silves como, antes, as da +Estremadura perante Lisboa: emquanto o sarraceno pisar o Algarve, serão +precarias todas as conquistas n'este largo trato de terreno devastado +que não poderá nutrir-se e prosperar, emquanto não estiver ao abrigo das +invasões. Porque não foi Affonso Henriques cair directamente sobre +Silves, aproveitando-se de alguma esquadra de Cruzados, em vez de +consumir as suas forças na empreza esteril das correrias, conquistas e +saques das praças do Alemtejo? Porque evidentemente lhe faltava a larga +vista das aguias dominadoras, tendo só o que é commum a todas as aves de +rapina: o ataque fulminante, e a garra cheia de força e tenacidade. + +Depois de saquearem Alcacer, os Cruzados tinham partido; e a noticia dos +successivos desastres dos ultimos onze annos decidira os almuhades[42] +a tratar seriamente de pôr cobro aos progressos de Affonso +Henriques. Invadem o Alemtejo; e junto de Alcacer, seis mil portuguezes +mortos, o exercito desbaratado, decidem a perda de todo o Alemtejo +(1161) pondo em perigo Lisboa. Os sarracenos chegaram a tomar Palmella e +Almada, mas julgaram prudente abandonar esses pontos destacados na +peninsula de entre o Tejo e Sado. Desde que outras emprezas obrigaram a +retirar o exercito almuhade depois de fortificar Alcacer, já Affonso +Henriques, e os seus discipulos em aventuras podiam á vontade recomeçar +as correrias e assaltos. Effectivamente, em 1162, um troço de burguezes +toma Beja por surpreza; e em 1166 um bando de salteadores, com Giraldo á +frente, de escada ao hombro, punhal nos dentes, entra uma noute em +Evora, que saqueia e atulha de cadaveres. Eram portugueses? eram +sarracenos? eram de uns e d'outros; eram uma das muitas companhias de +bandidos que batalhavam por conta propria, sem noção de patria a que +pertencessem, nem de religião que seguissem. Tinham por culto apenas a +ladroagem, e adoravam o deus do estupro, do saque, da matança. Eram de +todas as nações; e falavam uma algaravia, mosarabe nos christãos, +_most_'latina nos musulmanos--uma lingua franca. + +Affonso Henriques não podia socegar vendo essas façanhas. Eil-o outra +vez a cavallo, Alemtejo em fóra, a correr charnecas e arremetter +cidades: Moura, Serpa, Alconchel, e, internando-se pela Estremadura +hespanhola, Caceres o Tordjala, ou Trujillo (1166). Essa era a sua +paixão, o seu furor. Que importa, se, apenas voltava costas, logo se +erguia de novo a bandeira musulmana nas muralhas que escalára á traição? +Elle tambem voltaria, no verão seguinte, a repetir a sua façanha. E +assim, por falta do genio militar do conquistador, as scenas +repetiam-se, os castellos passavam successivamente de mão em mão, e +portuguezes e sarracenos apenas podiam chamar seu ao terreno que +actualmente pisavam. Se as forças proprias do portuguez lhe não +consentiam outra cousa: se, sem o auxilio dos Cruzados, não podia +abalançar-se á empreza de Silves, melhor fôra sacrificar a paixão ao +interesse proprio, consolidando o dominio, do que pôr em perigo o +Portugal cistagano, por consumir de um modo esteril as forças militares +do novo reino nas correrias transtaganas. O rudo capitão não tinha porém +intelligencia para tanto: a correria arrastava-o, a presa seduzia-o, e a +guerra governava-o a elle, em vez de ser elle quem governava a guerra. +Sem plano fixo, á toa, á aventura, internára-se até Trujillo e queria +tomar Badajoz, invadindo territorios que, apesar de sarracenos, eram +vassallos do visinho monarcha de Leão. A sua loucura teve a sorte de +todas as loucuras; e já o vimos coxeando e duplamente ferido, no joelho +e nos brios, caminhar a esconder a sua vergonha em Santarem (1169). + +O desastre de Badajoz devia ter soado por todo o Al-gharb, onde as +correrias e façanhas do bando de Affonso Henriques espalhavam a angustia +e o terror; e o musulmano, inimigo por patria e religião, não devia ao +bulhento principe a generosidade magnanima do genro leonez. Um novo e +poderoso exercito transpõe o Tejo, e vem cercar o ferido em Santarem +(1171). Acode-lhe Fernando II que, como verdadeiro rei, sabia calar os +resentimentos pessoaes, deante de um perigo commum para todos os +principes christãos da Peninsula. Duas vezes salvo pelo genro que o +vencera; humilhado, abatido, ferido e velho, Affonso Henriques já não é +o irrequieto soldado de outros tempos. Santarem que ganhára por esforço +proprio, escalando os muros, era o seu tumulo. Ahi n'um leito gemia +dores de muitas especies: todo o Alemtejo estava perdido; e agora (1184) +Jussuf, o grande émir de Marrocos, vinha em pessoa, dirigindo o +exercito, cercal-o outra vez. Acudiria o genro outra vez a salval-o? +Cinco annos havia que o exercito musulmano passeiava triumphante pelos +seus reinos. Não pudera entrar em Abrantes, mas tinha destruido Coruche, +que era para a defeza de Lisboa e da linha do Tejo, como fôra Leiria +para Coimbra e para a linha do Mondego. Evora apenas resistiria ás +invasões, que tinham levado Alcacer e Serpa, Beja, Moura, Jerumenha e +todo o Alemtejo (1179-82). Como o javali, encerrado no covil e perdido, +o guerreiro contava as horas, e antecipadamente sentia o penetrar das +lanças nas suas carnes abatidas pela edade, e o quebrar dos seus ossos +tão rijos ainda, mas mal governados pelos tendões flacidos. Chorava; +talvez se arrependesse dos seus erros. Feliz porém mais uma vez, os +acasos imprevistos concorriam para o salvar. Á magnanimidade do genro +devera o não ter ido acabar n'alguma masmorra escondida nas montanhas +das Asturias; e a esta circumstancia, verdadeiramente excepcional, de um +principe generoso, devera tambem o salvar-se do primeiro cerco. Em vez +de Fernando, que não acudiu agora, veiu em seu auxilio a sorte que matou +o émir de Marrocos, e espalhou uma peste no meio do exercito almuhade. + +Levantou-se o cerco, Affonso Henriques pôde respirar ainda livre os +ultimos annos da sua já acabada vida. + + * * * * * + +O pensamento que elle não soubera ou não pudera realisar, coube ao filho +e herdeiro pôr em pratica. O modo serio de conquistar o Alemtejo era ir +com os Cruzados, por mar, investir Silves. Logo que Sancho I herdou o +reino, e desde que appareceu no Tejo a primeira armada, decidiu-se levar +a cabo a empreza. Já então havia uma frota portugueza; e se á +constituição geographica do corpo da nação faltava a metade meridional, +o coração, Lisboa, pulsava já independente e vivo; os navios da primeira +expedição do Algarve são d'isso a prova. Abria-se agora uma segunda +epocha; e, ou filha do genio do monarcha, ou proveniente da expansão +natural das forças nacionaes, ou resultado das duas causas combinadas, o +facto é que, entrados n'uma segunda edade, respiramos um ar diverso, +observamos um typo differente e uma nova phisionomia da nação. + +Consolidam-se as conquistas, povoam-se e fortificam-se as villas, começa +a esboçar-se a administração, abandona-se a guerra de escada e punhal. +Ha um pensamento na politica e uma idéa nas campanhas. Sancho I é já um +rei: Affonso Henriques fôra como um bandido, á imitação de Pelayo. + +O districto de Chenchir ou Al-faghar--assim os arabes denominavam o +nosso moderno Algarve,--era o que é hoje ainda: um jardim estendido +sobre a costa, e apoiado contra um muro de serras que o defendem dos +ventos do norte. A guerra não conseguira mirral-o, como succedeu á costa +da Berberia, fronteira. Retalho da Africa, scindido pelo mar do Calpe, +no Algarve tinham os arabes achado um pedaço da sua patria. O clima, a +flóra, não eram bem europeus; e quem, nos fins do XII seculo, visitasse +Silves, ou Chelb, dir-se-hia transportado a uma cidade oriental. D'entre +as varias raças que tinham vindo á Peninsula, foram os arabes do Yemen +que principalmente a povoaram. Chelb ao sul, Hayrun (Faro) mais ao +norte, eram as duas cidades principaes do Al-faghar; mas a primeira +excedia em muito a segunda. Contava cerca de trinta mil habitantes, era +opulenta em thesouros e formosa em construcções. Davam-lhe a primazia +entre as cidades da Hespanha arabe. Vestida de palacios coroados pelos +terraços de marmore, cortada de ruas com bazares recheiados de +preciosidades orientaes, cercada de pomares viçosos e jardins, Chelb era +a perola de Chenchir, onde os prodigos da Mauritania vinham gosar com as +mulheres formosas, de puro sangue arabe, os seus ocios luxuosos. Era ao +mesmo tempo uma praça temivelmente fortificada. + +Quando pela primeira vez as armadas combinadas, dos portuguezes e dos +Cruzados, appareceram na costa de Al-faghar, Chelb intimidou os +guerreiros frisios e dinamarquezes, a ponto de lhes dominar a avidez com +que namoravam uma preza de tamanho quilate. Não se atreveram a atacar, +limitando-se a tomar Albur (Alvôr), e retirando com um saque abundante. + +Para os Cruzados, homens louros do norte que, sob a ingenuidade azul dos +olhos, escondem uma crueldade fria e pratica e um desvairado appetite +dos gosos vedados aos climas setentrionaes, a empreza de Chelb tinha o +valor da riqueza a roubar, das bellas mulheres, d'esse Oriente +mysterioso e seductor, a gozar sobre os leitos de sedas da India ou nos +fôfos tapetes da Persia. Eram voluptuosidades que antegostavam; +calculando ao mesmo tempo os thesouros de pedrarias, os marfins, os +estofos preciosos, a myrrha, o incenso, os metaes reluzentes, com que +voltariam ás suas agrestes serras, ás suas costas algidas, deslumbrar as +noutes veladas á luz baça da candeia, de azeite de phoca. Positivos e +praticos ao mesmo tempo, mediam bem o impossivel da aventura, e por isso +preferiram á temeridade de atacar Chelb, a modestia de saquear Albur. +Bastava-lhes o que levavam. + +Não succedia outro tanto a Sancho I. A conquista do Al-faghar tinha para +elle um alcance maior. E os portuguezes mais familiarisados com as +seducções dos costumes arabes, menos sensiveis ás tentações da carne, +mais abertos aos arrebatamentos da paixão, como todos os homens do sul, +tinham um proposito mais firme e intenções diversas. + +Logo depois da primeira tentativa frustrada no proposito essencial, +appareceu no Tejo uma segunda e mais poderosa armada de guerreiros do +norte. Decidiu-se então a conquista de Silves. Sancho e as tropas +portuguezas iriam por terra, atravez do Alemtejo, investir a cidade pelo +norte, cortando os soccorros de Alcacer e das demais praças +transtaganas: emquanto as armadas combinadas iriam por mar e, subindo a +ria de Silves, poriam o cerco pelo sul, apoiando-se nos navios. + +Silves, collocada n'uma eminencia e defendida por fortes muralhas, em +cujo recinto, no coração da cidade, se erguia a almedina ou alkassba, +estava ligada a uma torre albarran por uma couraça. A torre defendia uma +vasta cisterna que dava agua á cidade: conquistal-a seria, portanto, o +preludio do cerco. Desembarcados, os Cruzados começaram por assolar os +arrabaldes, destruindo quintas e casaes, trucidando os tardivagos, +incendiando e roubando, segundo a regra invariavelmente seguida n'estas +emprezas. Quando em torno dos muros não havia mais do que destroços, +ruinas e cinzas, atacaram a torre albarran. Foi em 21 de julho de 1189, +esta primeira tentativa frustrada. Em 29 chegou por terra el-rei Sancho, +cerrou-se o cerco, e prepararam-se os meios do ataque decisivo. Os +sitiados, no desespero, açulavam o furor e a cubiça dos inimigos com +insultos e crueldades. Nas ameias da torre albarran penduravam pelos pés +os prisioneiros christãos; e alli, em frente do exercito, como exemplo e +ameaça, matavam-nos ás lançadas. Era ardente o furor, incansavel o +trabalho. Estavam preparadas e promptas as machinas de guerra: começaram +os assaltos. Os allemães tinham montado um vae-vem coberto, cujas pontas +de ferro trabalhavam impunemente na derrocada dos muros: era a _origa_ +dos gregos, a _testudo_ de Vitruvio, o _ericius_ das guerras dos +romanos, em portuguez _ouriço_--uma catapulta couraçada contra as massas +de estopa a arder em azeite que sobre ella os defensores vasavam. Muitas +torres, numerosos trons batiam os muros e levantavam os sitiadores á +altura das ameias. A albarran caíu por fim, entulhou-se a cisterna. As +fontes dos pateos ajardinados de Chelb deixaram de correr, e a sede veiu +auxiliar as machinas e as armas dos christãos. Os musulmanos, +fortificados na almedina, resistiam, comtudo. + +O cerco entrava desde esse momento n'uma phase nova. Os assaltos +repetiam-se, infructiferos, e a alkassba parecia intomavel. +Soccorreram-se ás artes dos mineiros de Italia; mas os arabes eram +egualmente mestres na engenharia. As galerias subterraneas cruzavam-se, +encontravam-se, rompiam-se. Fatigados de pelejar em vão, á luz de um sol +abrazador, transferiram os combates para o coração da terra. Os +gastadores eram soldados, e rijas batalhas eccoaram n'essas galerias. A +lenha accumulada ardia presa do fogo; e á luz das chammas, buscavam-se, +um a um, os inimigos, ferozes como tigres, punhal ou alfange em punho, e +estrangulavam-se, despedaçavam-se, como feras. O crepitar do fogo +acompanhava as imprecações roucas, e nos olhos havia mais chammas do que +nos montes de troncos e ramos incendiados. O sangue corria dando á lama +das galerias subterraneas a côr do barro com que em tempos mais felizes +os arabes ladrilhavam os seus eirados alegres e os seus pateos ajardinados. + +A furia dos combates era excitada pelos calores da sêde. Os sitiados +ardiam em febres. Viam-se nús estendidos sobre as lages das ruas, sobre +os ladrilhos das casas, para refrescar a pelle. Comiam o barro do chão. +Estorciam-se, desesperados, e morriam pelas esquinas. As ruas deixavam +apodrecer os cadaveres, e as mães engeitavam os filhos, quebrando-lhes +os craneos tenros contra as umbreiras das portas. + +Nos sitiantes a furia era outra. Durava já um mez o cerco, o não fôra +para tão demorada campanha que os Cruzados tinham vindo. A alkassba não +caía! os perros musulmanos não se rendiam! Entretanto elles, Cruzados, +iam morrendo de feridas, de insolações; e o despojo promettido não +chegava. Não podiam perder assim o seu tempo. Isto diziam uns; outros +não queriam abandonar o trabalho gasto, e despedir-se de uma presa meio +conquistada. Sancho I, desanimado, pensou em retirar. Então rebentaram +as iras; porque a segunda opinião vencera no animo dos Cruzados. Quasi +chegaram ás mãos, os portuguezes e os homens louros do norte. Finalmente +a alkassba rendeu-se nos primeiros dias de setembro; mas isso deu logar +a novas rixas. O rei queria uma cidade, e não um despojo. Os Cruzados +queriam o contrario. Sancho offereceu pagar-lhes o valor da presa; os +Cruzados recusaram. Havia uma cousa que o rei não podia pagar com ouro: +era o delirio do saque, a orgia das matanças e dos estupros. Esses +ferozes caçadores de mouros queriam retoiçar-se pelo interior das +alcovas mysteriosas, e enterrar os braços nas arcas dos thesouros, +ensopar em sangue as almofadas macias sobre que iam abraçar as morenas +filhas do Yemen. + +Cevados, partiram logo. Sancho pedia-lhes que acabassem a empreza, +tomando Hayrun. Recusaram; não queriam arriscar os lucros, e estavam +turgidos de goso. Só ambicionavam tornar á patria, para contar os seus +feitos, e depôr aos pés das louras e ingenuas donzellas do norte, de +suas noivas e de suas filhas, os collares, os brincos, as manilhas de +ouro arrendado, que tinham roubado nos leitos, com a honra e a vida, ás +filhas de Mafoma. + +Sancho I, não podendo seduzil-os, nem convencel-os, desistiu da empreza; +e deixando Silves guarnecida, e occupado o oeste do Algarve, retirou +para o norte. Afim de consolidar a conquista, tomou Beja. Mas, emquanto +o velho Faro se conservava em poder do sarraceno, não devia o rei +portuguez considerar seu o Al-faghar. + + * * * * * + +Effectivamente durou pouco o primeiro dominio portuguez no extremo sul +do reino. Quando o filho de Jussuf, Jacub, chegou a soccorrer Chelb, já +a cidade estava perdida; e elle não soube ou não pôde retomal-a. +Vingou-se irrompendo pelo reino; e, galgando o Tejo, assolou a +Estremadura toda, pondo cerco a Thomar. Tampouco soube ou pôde vencer, e +retirou-se; mas para voltar no anno seguinte. Então Silves caíu de novo +em poder do sarraceno (1191) que, victorioso, tomou Beja, e na sua +_gaswat_ fulminante, veiu ameaçar Lisboa, desde os muros de Almada, +conquistada. + +Portugal recuava outra vez aos limites do Tejo; porém Silves, embora +perdida, indicava o futuro inevitavel d'este longo e mortifero duello. O +rei occupava-se em consolidar os seus Estados, povoando, e organisando a +administração. Na impossibilidade de levar a cabo a conquista do +Al-faghar, enfraquecido militarmente o reino pelas correrias, +desilludido sobre a efficacia do auxilio dos Cruzados, abandonou com +razão o systema das álgaras e surprezas, com que, sem conseguir +manter-se um dominio estavel, se extenuavam as forças vivas da nação. O +seu governo sabio preparou as decisivas emprezas posteriores. + +A primeira d'essas foi a tomada de Alcacer em 1217. No tempo de Affonso +II já os portuguezes se tinham achado na batalha das Navas de Tolosa +(1212), em que os principes christãos da Peninsula, tomando uma cruel +desforra do desastre de Alarcos, deram o ultimo golpe no dominio +sarraceno. Affonso II não tinha amor pela guerra. O lado organisador e +administrativo do governo de seu pae imprimira-lhe paixões pacificas. +Instigava-o ainda mais a sua avareza natural, e a condição dura em que a +fraqueza dos ultimos annos de Sancho I o collocara, por ter doado o +reino inteiro, thesouros e castellos, aos nobres e ao clero. Affonso II +não quiz tomar parte da empreza de Alcacer, porque andava occupado a +reivindicar para si o reino. + +Kassr-al-Fetah, Castello-da-porta ou da entrada, se dizia essa chave do +Alemtejo; e sem a posse de um tal ponto estrategico, eram vans as +tentativas de consolidação do dominio portuguez ao sul do Tejo. Castello +sobre todos nocivo, chamam-lhe as memorias coevas, (_Castrum super omnia +castra nocivum_, GUSUINI CARMEN) porque d'ahi iam annualmente para +Marrocos cem prisioneiros christãos, arrebatados aos territorios +fronteiros até Lisboa, nas álgaras de todos os annos. + +Com o auxilio de uma forte esquadra de Cruzados, Alcacer ficou +definitivamente em poder dos christãos no meiado de 1217. Nove annos +depois, Sancho II, em quem renascia o espirito guerreiro dos avós, +recomeçou a conquista do Algarve, caminhando ao longo da fronteira de +leste, valle do Guadiana abaixo, e tomando successivamente Elvas, Serpa, +Moura, Mertola, Ayamonte, Tavira e Cacella, que os arabes denominavam +Hisn-Kastala (1226). As deploraveis pendencias que lhe roubaram a corôa +não deixaram a Sancho II consummar a conquista do Algarve, que no meiado +do XIII seculo cáe por fim (1249), obscuramente, em poder do usurpador +da corôa fraterna, Affonso III. + +Consolidada a separação, constituido geographicamente o paiz, resta-nos +agora observar os movimentos internos da nação; para vêrmos como dentro +d'ella se affirma a independencia, só plena e cabalmente definida, +porém, na crise que poz termo á dynastia de Borgonha. + + [40] V. nas _Taboas de chronologia_, a das Cruzadas, a p. 219. + + [41] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 251-5, a descripção + das machinas de guerra dos antigos, que eram as da Edade-média. + + [42] _Taboas de chronologia_, pp. 43 e 271. + + * * * * * + + + + +III + +A monarchia e a justiça + + +«D. Diniz foi um aváro. Affonso IV um homem de juizo, Pedro I um doido +com intervallos lucidos de justiça e economia.» Assim A. Herculano +caracterisa os tres monarchas, a quem já fôra concedido reinar sobre +Portugal integralmente constituido, dentro dos limites das suas +fronteiras actuaes. Mas que eram então um rei e um reino? + +Errada idéa formará d'essas epochas aquelle que não puder desprender-se +das impressões resultantes de periodos mais proximos de nós. Foi só +desde o XV seculo que o desenvolvimento das nações peninsulares +permittiu aos reis começarem a ter consciencia do caracter +juridico-social do seu cargo[43]. Até ao XIV seculo, os +Estados peninsulares, ou--limitando-nos agora ao campo exclusivo das +nossas observações--Portugal, não merece propriamente o nome de nação, +se a este vocabulo dermos o valor moderno. As comparações illustram +superiormente a historia: e em nossos dias temos exemplos de similhança +quasi absoluta. Esses principados slavos, onde a occupação da Turquia +jámais deixou de encontrar resistencias, são como foram a Hespanha. O +Montenegro reproduz as tradições das Asturias, ninho dos bandidos de +Pelayo; a Servia ou a Herzegovina, em cujas campinas, avassalladas pelo +turco, as quadrilhas dos indomitos montanheses veem periodicamente fazer +as suas razzias, são como foi Portugal. A historia repete-se ainda na +independencia final, ganha pela irradiação do fóco de resistencia +invencivel. + +Regiões fadadas a tal existencia não podem ser propriamente nações: não +attingiram esse momento de existencia collectiva, não sairam dos +periodos preparatorios da organisação. O processo tem, n'este caso, dois +graus caracteristicos. Primeiro apparece o bando, depois a familia. O +rei é o chefe dos bandidos, antes de ser o protector, o pae, dos seus +subditos. Se a guerra é antes um systema de rapinas do que uma successão +de campanhas, a justiça é tambem mais a expressão arbitraria de um +instincto, do que a applicação regular de um principio. A sociedade que +se desenvolve de um modo espontaneo, á lei da natureza, vae +successivamente definindo as idéas collectivas, á maneira que progride +na serie das fórmas evolutivas do seu organismo[44]. + +A substituição do principio da justiça--no qual incluimos as relações +entre individuos, e entre classes e instituições--principio militar, +marca o momento da primeira transformação que é a passagem do organismo +do bando para a fórma social primitiva: a familia nacional, cujo pae ou +patriarcha é o rei. + +A loucura de D. Pedro I vale, portanto, a nosso vêr, tanto como o +bandidismo de Affonso Henriques. Os dois reis são os dois typos--da +guerra e da justiça. Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a +segunda é irregular, cheia de caprichos e arbitraria. Mas se Affonso +Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o _pae_ da familia +portugueza. + +O seu furor justiceiro não é mais louco, do que o furor guerreiro do +primeiro rei. Tentámos esboçar a phisionomia d'essa epocha primitiva: +buscaremos agora, indo beber á fonte limpa das chronicas mais proximas, +accentuar as feições do segundo periodo. Na guerra não havia regra, nem +planos: era uma correria solta. Na justiça não ha processos, nem +garantias: é o dominio livre do capricho. Mas se, n'um caso, a bravura +engrandecia e a victoria exaltava os actos do bandido, no outro, a +rectidão dava força, e a protecção paternal coroava as decisões do +_kadi_. O rei é o grande Juiz da familia portugueza: a sua vontade é +lei, as suas sentenças são oraculos[45]. + +A justiça de Pedro I caracterisa-se, pois, para nós, com o merecimento +de um typo, da mesma fórma que a guerra de Affonso Henriques. São tambem +os dois individuos symbolicos, por isso mesmo que são como que doidos. +As phisionomias dos outros reis esbatem-se mais no fundo do quadro, +confundem-se de um modo mais ou menos completo na massa dos sentimentos +do povo; e os seus actos acompanham o desenvolvimento das forças e +instinctos collectivos, sem os dominarem de uma fórma superior e typica. +O leitor perspicaz não esquece que estas apreciações excluem a do +merecimento individual das pessoas. Sancho I tem uma bella vida +tristemente rematada n'um torpor de fraqueza. Affonso II tem uma +phisionomia commum e antipathica, sem nobreza, mas forte e penetrante. +Sancho II possue muito do seu predecessor em nome. Affonso III +destaca-se pela educação franceza, que lhe ensinara a dissimulação, a +perfidia, de mãos dadas com o bom-senso governativo. Diniz é um aváro; +Affonso IV é um homem de juizo, no dizer de Herculano. Todos reunidos, +porém, n'um grupo, formam um corpo de phisionomias indecisas ou communs: +são mais ou menos guerreiros, são pessoalmente melhores ou peiores, o +que á historia importa pouco; são bons ou maus administradores da +republica, seu patrimonio, cuja riqueza fomentam, acompanhando o +desenvolvimento natural da sociedade. + +No principio e no fim d'esta serie estão, porém, os dois individuos +typos, os dois loucos--um, phrenetico, brandindo o punhal mortifero; +outro, carrancudo e fero, empunhando o latego do algoz e a vara de juiz, +ou risonho e folgasão, dançando e cantando nas ruas no meio da sua +familia, como um pae. + +Pedro I tinha a paixão da justiça; era n'elle uma mania, como em seu avô +o fôra a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os +criminosos vinham á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando +algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da +meza, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os +algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos +réos. Nunca abandonava o açoute: enrolado á cinta em viagem, tomava +d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe traziam. +Os adulteros mereciam-lhe um odio especial: jámais lhes perdoava. D. +Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, _luitador e trovador de +grandes ligeirices_, a quem embora amasse _mais que se deve aqui dizer_, +o rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse.--O rapaz +engrossou e morreu depois da _sua natural door_. Certa mulher era infiel +ao marido, que nem por isso se offendia: offendeu-se o rei, e mandando-a +queimar, respondeu ao esposo desolado que lhe devia alviçaras pelo ter +vingado. Havia um homem casado, com filhos, mas que antes da boda +forçara a mulher. Roussou? morra. Enforcou-o, entre os choros e +supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne +perseguia com furor as alcouvetas; e as feiticeiras não lhe mereciam +menos cuidados. + +Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda +mais terrivel a expressão da sua phisionomia. A fala não lhe deixava +traduzir bem as cóleras; e rubro, grosso, agitando o latego, n'um +delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, teem isto de particular: tanto +o defeito accrescenta ao horror na furia, como põe nas horas mansas o +quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz, +descansava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços +com os nebris e falcões, e pelas matilhas de caens. Então o seu rosto +aplacava-se, e era benigno, bemfazejo, liberal, folgasão. _Foi grande +criador de fidalgos._ Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a +vianda era em grande abastança. + +Punir os maus, enfrear os fortes, «querendo fazer graça e mercê ao nosso +poboo» era o seu constante desvelo paternal. Nas côrtes que reuniu em +Elvas (maio de 1361) vê-se pelas respostas aos capitulos dos povos como +o seu governo era protector. Queixavam-se os conselhos de que as casas +dos mestres das ordens, dos bispos e priores, dentro das villas, caíam +em ruinas; e o rei decide de um modo simples: _filhem_ as nossas +justiças aos proprietarios o que for necessario para as obras. Filhem +mais, para as pôr em grangeio, as herdades e vinhas ermas. Os +ricos-homens veem ao concelho e pousam em casa de mulheres honestas, +perdendo-lhes a reputação; pousam nas adegas e nos celleiros de trigo, e +fazem d'elles cavallariças, allega o povo--e o rei ameaça o fidalgo que +assim fizer. O clero, isento como estava dos serviços militares da hoste +ou do appellido, recusa-se a acudir na hora de um perigo imminente? Que +os clerigos acudam com os leigos, diz o rei, quando haja fogo ou inimigos. + +Mas o «nosso poboo» ás vezes exige de mais, como uma creança que se +sente adorada. Modere-se: o rei é um pae, mas o pae é um juiz, sempre +benigno e amoravel porém. Quando recusa, não se vê arrogancia, apenas +uma reserva prudente: «mostrem e declarem aquello em que lhis vam contra +seus foros, graças e mercees que ham e que, nos lhas faremos guardar.» +Exigir que as meretrizes e barregans andem estremadas pelo trajo, é +querer muito n'essa Edade-média prostituta e adultera, faminta e +leprosa, que vive de carnalidades, violencias e feiticerias: «Tragam +suas vestiduras como as poderem aver, porque perderiam muito em os +pannos que teem feitos e nos adubos que em elles tragem.» Mas quando o +povo se queixa do que soffre com os serviços militares, obrigado o +villão a ter cavallo e armas desde que possue uma certa _quantia_ de +bens, o rei attende e ordena que não sejam quantiados a nenhum os pannos +de seu vestir e de sua mulher até dois pares, nem as roupas de suas camas. + +Sobre a cabeça do povo humilde pesam duas ameaças constantes: o nobre +com a sua violencia, o judeu com a sua manha. O fidalgo e o onzeneiro +são a desgraça da gente, a perdição das filhas e a ruina das searas. +Quem nos protegerá senão o rei? Se o judeu onzenar, responde este, «nós +o mandaremos matar e lhe tomar quanto houver.» Mas ninguem se atreva com +elle, a não ser a justiça, que anda sobranceira a todos, a tudo. De uma +vez D. Pedro mandou matar dois escudeiros por terem roubado a um judeu; +e se tambem cortou a cabeça a outro, dos bons, de Entre-Douro-e-Minho, +por ter partido os arcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, foi +elle o proprio que mandou degolar o sobrinho do alcaide de Lisboa por +depennar as barbas a um porteiro. + +A justiça havia de ser tremenda quando os costumes eram barbaros, +corruptos e ingenuos ao mesmo tempo; quando o incesto, o adulterio, o +assassinato, o estupro, o roubo, e essa offensa extravagante da +merdinbuca (_stercum in ore_), tão frequente nos foraes, acompanham as +linhagens das familias e enchem as paginas das cartas dos +concelhos.[46] O juiz não será um algoz, mas é mistér que +seja um tyranno; e o symbolo da justiça não está na balança com o seu +fiel sensivel, mas antes na espada e no latego, na furia e no amor, no +capricho benevolente e na sanha vingadora de um rei temido como foi D. +Pedro. + +Assim como a sua justiça era, pois, destituida de magestade, assim o +eram as suas folganças. Dir-se-hia um rustico feito rei; e acaso por +isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas, no +sentimento, nem no trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz +e o algoz, as suas festas eram _kermesses_ extravagantes e plebeias. Os +instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, os torneios, as +lanças, não tinham n'elle um amador. Era um democrata, um _tyranno_ á +moda antiga, em cujo espirito encarnara toda a brutalidade popular: por +isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em +bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças +populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece quem +tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D. +Pedro. + +Quando voltava em bateis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a +recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba, +dançando ao som das _longas_ (trombetas) como um rei David. Estas folias +apaixonavam-no quasi tanto, como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava +a fazer loucuras. Certas noites, no paço, a insomnia perseguia-o: +levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o +pelas ruas, dançando e atroando tudo com os berros das longas. As +gentes, que dormiam, saíam com espanto ás janellas, a vêr o que era. Era +o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão +ledo!--Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as +ruas, um momento antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes, e +tinham o clamor da multidão em vivas e o movimento das danças universaes. + +Era uma loucura? Seria. A Edade-média é uma vertigem. O povo, afflicto +pelas miserias do mundo e pelos terrores do céo, vivia n'um sonho feito +de dôres positivas e de medos transcendentes: rodopiava n'um _sabbath_. +Deus abençoe o rei que nos defende por sua mão! que vem comnosco bailar +ás noites por essas ruas lugubres! que persegue os incantadores e +feiticeiras! É o nosso justo juiz, o nosso bom pae, o nosso amigo e +irmão: adoremol-o! + +Não eram só justiça e festas que o rei lhes dava: era pão. Sabio +administrador, juntava grandes thesouros; e esta noticia augmentava, ao +medo e ao amor, o respeito por um rei tão bom. A brutalidade e o egoismo +dos costumes medievaes traduzia-se a miude n'um flagello terrivel--a +fome, de que o pobre povo soffria sempre mais ou menos. A fome e as +guerras geravam pestes. A primeira metade do seculo XIV fôra uma cadeia +de desgraças. «No anno do Senhor, de 1830, diz o livro de Ceiça, foi a +pestilencia grande e morreram então em dois mezes cento e cincoenta +religiosos. Os lazaros eram tantos e tão antigos que D. Diniz +deixara-lhes em testamento duas mil libras. Em 1333 houve fome, e os +mortos já não cabiam nos adros das egrejas, enterrados aos seis em cada +cova. No dia de S. Bartholomeu do anno de 1346, tremera a terra a ponto +de os sinos tocarem nas torres, pavorosamente, um dobre de finados, +annunciando o acabar do mundo. Depois veiu a peste de 48; e em 55, dois +annos antes da morte de Affonso IV, foi a secca, havendo outra fome +medonha. Da gafaria para a cova, ameaçado por todos, na terra e no céo, +o povo infeliz e faminto congregava-se em volta do throno protector, +adorando o rei justiceiro e providente, inimigo das pestes, das guerras, +das fomes, e sentia-se rico dos thesouros guardados nas torres do +castello. Além d'isso, D. Pedro fartava-o. As suas folias não eram só +danças e musicas. Quando Affonso Tello foi armado cavalleiro houve uma +kermesse monumental. Durante a vigilia d'armas, cinco mil tochas +illuminavam as ruas, desde S. Domingos até ao paço; e o rei, entre as +alas de lumes, radioso e bom, na sua gaguez, dançou com o povo a noite +inteira. Ao outro dia o Rocio estava coalhado de tendas e montanhas de +pão e grandes tinas cheias de vinho. Nas fogueiras, em espetos +collossaes, assavam-se vaccas inteiras. Havia de comer para toda Lisboa. +O povo exultava, n'esses ágapes da monarchia. + +A velha tragedia dos seus amores e da sua rebellião augmentava-lhe ainda +as sympathias. O tyranno apparecia, justiceiro e bondoso, sobre o fundo +de um azul de amores infelizes que encantavam a alma popular. Ignez de +Castro, a sombra de um anjo, coroava-o de além do tumulo. Mas esta +piedosa recordação era, na alma do rei, um espinho que o mordia sem +cessar. O seu genio cruel pedia vinganças. Entendeu-se com o visinho de +Castella, e pôde haver ás mãos dois dos assassinos. O povo não approvou +o escambo; e o rei muito perdeu de sua fama, diz o chronista. O castigo +dos assassinos foi duro: D. Pedro estava fóra de si, as palavras +atropellavam-se-lhe na garganta, e não podendo satisfazel-o as muitas +injurias, deshonestas e feias, vingou-se a chicotear os infelizes na +cara. A sua colera attingia a ironia soez. Queria cebola e vinagre, para +comer o Coelho em molho-de-villão. Por fim mandou que lhes arrancassem, +vivos, os corações, a um pelo peito, a outro pelas costas. Gozou-lhes a +morte, e acabou vingado. + +Pedro I é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os +vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis +e as amisades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo onde acaso +alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam +o caracter d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo. Por isso o povo, +vendo-se n'elle retratado, o adorou. + + * * * * * + +A politica da independencia puzera no seio da familia portugueza um +membro, cujas arrogancias e pretenções ameaçavam desnortear o fiel da +justiça social. O clero aspirava a usurpar a authoridade á monarchia. +Além da força que as tradições juridicas lhe davam; além da authoridade +espiritual e do espectro das bullas de excommunhão, pavor das almas +ingenuamente crentes; além do poderio fundado n'uma riqueza excessiva e +na machina absorvente da mão-morta, poço onde caíam as heranças e +legados dos rudes batalhadores arrependidos; além de todas as causas +geraes, o clero invocava em Portugal um argumento particular: o rei era +vassallo, o papa suzerano. Por tal preço obtivera Affonso Henriques um +simulacro de sancção juridica para a sua rebellião. + +A situação do clero catholico no seio da primitiva sociedade +portugueza--e das coevas em geral--resulta de um tal concurso de +elementos heterogeneos, que nenhuma das faces do systema dos costumes +retrata, melhor do que esta, a confusão cahotica d'esse novo mundo que +se formava sobre as ruinas e destroços do antigo. Politicamente, o facto +de um poder, superior por ter um fundamento transcendente, estranho ao +poder civil, é a primeira causa de conflictos.[47] Perante +a Egreja, todos são egualmente subditos, desde o rei até ao infimo dos +_viliores_. A base religiosa d'esse poder consolida-se com a força que +dá a riqueza. Os barões, crendo de facto na verdade da revelação, e +n'uma outra vida onde hão de ser julgados, teem uma religião feita de +medo; e como no fundo são barbaros, vivem na terra á lei da força, +remindo com esmolas e legados, á hora da morte, os longos rosarios de +crimes. Julgando-se proximos a apparecer perante o supremo juiz, +reconhecendo á hora da morte a inutilidade da força e da perfidia +perante quem tudo póde e tudo vê, compram o perdão com o fructo das +rapinas e dos crimes; e assim formam o alicerce de um poder real, +verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que ficam teem de entender-se +com o clero herdeiro; teem de debater por todos os meios a influencia e +o poder, para outra vez, á hora da morte, repetirem os actos causadores +das luctas que lhes encheram a vida. Por tal fórma se encerra um circulo +vicioso que a politica não póde romper, porque a religião o não +consente. Desde que as raças germanicas, avassallando o imperio antigo, +não tinham podido desenvolver a sua independencia religiosa e acceitaram +o christianismo, força era que assim fosse, emquanto os dogmas christãos +governassem as consciencias. + +N'este sentido é perfeitamente legitima a influencia do clero; e não o é +menos por virtude da authoridade que lhe dá o saber, com effeito já +pervertido, mas ainda preponderante sobre reis e principes analphabetos. +Legitima a sua influencia, historicamente legitima a sua força, o clero, +porém, recebia por seu turno a acção reflexa do meio ambiente em que +vivia. Era tão aváro, tão feroz, tão barbaro, tão vicioso, como os +seculares; e a sua cultura accrescentava ainda, aos defeitos da +brutalidade, os da civilisação. As perversidades requintadas, as +perfidias subtís tinham n'elle os melhores mestres; e por sua via +entravam no corpo de uma sociedade barbara. Os sacerdotes eram os +educadores politicos dos principes, quando não eram os seus declarados +adversarios. Ensinavam as manhas, a quem apenas sabia commetter os actos +brutaes. Aos vicios do instincto sabiam juntar as perversidades da +intelligencia. + +Se os principes da Egreja influiam de tal modo, a plebe ecclesiastica +acompanhava as massas no rodopio lugubre e sanguinario da dança infernal +da Edade-média. Os homens da Egreja commettiam todos os crimes. +Sacerdotes, habitando os templos e os mosteiros, os seus erros eram +outros tantos sacrilegios, pela qualidade dos delinquentes e pela +condição do lugar. Roubavam, feriam, matavam, mentiam. Os casados +andavam bigamos; os solteiros, publicamente amancebados. Davam o braço +ás prostitutas, viviam com ellas, e desfloravam donzellas. Engeitavam os +filhos, repudiavam as esposas. Além de criminosos, eram indignos. +Faziam-se carniceiros em praça publica, matando e degollando as rezes, +vendendo carnes. Eram jograes, tafues, bufões. Escondiam a corôa, +deixavam crescer o cabello, e abandonavam o trajo ecclesiastico, para +mais á solta poderem abandonar-se aos seus desvarios. + +E, obrando taes crimes, desvirtuando por tal modo os legitimos +privilegios do sacerdocio e da illustração, não deixavam de reclamar o +fôro de uma justiça especial. D'ahi resultava que o rei podia enforcar +um réo, por ser secular, e o cumplice ecclesiastico ficava impune. +Testemunhas seculares não valiam contra elles, e ecclesiasticas não +appareciam, porque o vedava a solidariedade da classe. O desvario era +tamanho, que havia quem chegasse a ordenar-se, unicamente para commetter +crimes impunemente. + +Juntem-se estes costumes aos costumes bravios da epocha; junte-se mais a +serie de conflictos politicos e economicos, levantados pela condição +particular da Egreja; addicione-se a situação especial de vassallo em +que Affonso Henriques collocára o throno portuguez--e desde logo se +comprehenderão os motivos dos longos e pittorescos conflictos da +primeira época da historia nacional. + +A erudição lançou para o campo das lendas os episodios tradicionaes do +tempo de Affonso Henriques; mas a historia não póde desprezar esses +traços pittorescos com que o povo retrata, infiel mas typicamente, as +tendencias e os costumes. Sabe-se a historia do bispo negro de S. Cruz +de Coimbra; e os monumentos remotos contam o que Affonso Henriques, se +não fez, poderia ter feito ao legado que veiu de Roma excommungal-o por +se ter levantado contra a mãe, pela ter mettido a ferros e não a querer +soltar--segundo resa a chronica. Era homem «muy bravo de grande coraçom» +o principe a quem a rebeldia do clero irritava. Foi esperar o legado ao +Vimieiro, chegou-se a elle, travou-lhe do cabeção, sacou da espada e +quizera cortar-lhe a cabeça. Os cavalleiros do rei acudiram: «Dirão em +Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o rei de colera, mas +baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja excommungado +em todos os meus dias e que não leveis d'aqui ouro, nem prata, nem +bestas, senão tres!» E proseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a +posse «d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O +sobrinho do cardeal ficaria em refens: teria a cabeça cortada se a carta +não viesse em quatro mezes. O cardeal, diz-se, prometteu, annuindo a +tudo; e o leitor sabe, pelo modo como lhe contámos os pactos de Zamora, +qual é a verdade que esta scena pittoresca exprime. O rei que «em sua +mancebia foi muito bravo e esquivo,» prosegue a lenda, feitas as pazes, +disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E despindo-se, +mostrou-lhe as feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas em que +as tinha havido. Resolvida a contenda, satisfeita a cubiça, aplacada a +colera, apparecia depois do guerreiro violento o homem timido e crente, +com a visão do inferno e o terror da excommunhão. + +Por isso os prelados de Braga, Coimbra e Porto eram como tres reis no +reino, cujos limites já para um unico provavam escassos. Se as guerras +da separação, primeiro, depois a conquista do sul do reino e a +deslocação do seu centro para Lisboa, marcam os momentos geographicos +decisivos da historia da independencia, a resolução dos conflictos +ecclesiasticos e a consolidação do poder monarchico marcam, decerto, o +movimento tambem decisivo d'essa historia, sob o aspecto mais intimo e +organico da justiça social. + +Dos tres reis mitrados, o do Porto foi o que mais trabalhos deu aos +monarchas portuguezes. O reinado de D. Sancho I, tão brilhantemente +iniciado pela conquista de Silves, e com tanta sabedoria dirigido para a +consolidação do centro assolado do paiz, é dos mais notaveis na historia +dos conflictos com o clero. O rei era tão irascivel como credulo: +acompanhava-o sempre uma feiticeira, diariamente consultada. Não tinha o +furor bellico do pae, nem a energia justiceira do neto: parece ter sido +um homem commum, mas serio. + +Na primeira decada do XIII seculo governava o bispado do Porto Martinho +Rodrigues, homem atrevido, ambicioso, cheio de força e vicios. A +authoridade da corôa limitava-se por esses tempos ao velho Porto, hoje o +suburbio de Gaya, e o bispo imperava na cidade. Exacções e tyrannias, +communs a todos os senhorios feudaes, levaram os burguezes do Porto a +rebellar-se contra o bispo, invocando o auxilio que o rei lhes não +refusou. Acclamado pelo povo, Sancho I entra na cidade; arrombam-se as +portas das egrejas, a turba invade e assola os templos, conspurca os +altares; e o bispo fica cinco mezes preso no palacio episcopal, até que +finge submetter-se ás exigencias, com o proposito, que realisa, de ir a +Roma pedir desforra ao papa. Entretanto o de Coimbra encerrava os +templos e negava os serviços religiosos aos fieis: era esse um dos meios +ordinarios de combate. Sancho I vae a Coimbra, faz de bispo, obriga os +padres, á força, a celebrarem os officios divinos, mandando arrancar os +olhos aos recalcitrantes. + +Voltou a final (1210) Martinho Rodrigues, de Roma, com bullas de +Innocencio III. O nuncio ou legado do papa devia em pessoa lel-as ao +rei; porque o chanceller Julião, valendo-se da ignorancia do soberano, +usava alterar o que lia. Sancho I ouviu com humildade a monitoria papal. +Estava doente, já fatigado da vida, e na perspectiva da proximidade da +viagem para o outro-mundo, memorava tudo o que tinha feito, os desacatos +e sacrilegios. Os remorsos enchiam de terror o seu animo duro, obtuso e +bravio. Curvou-se e penitenciou-se. Este era sempre o momento infallivel +da victoria da Egreja: a superstição entregava-lhe, manietados e +submissos, os seus terriveis inimigos, na hora da morte imminente. +Sancho I pedia aos monges de Alcobaça que rezassem por sua alma esses +lugubres psalmos, que pareciam aos infelizes como um ecco das terriveis +symphonias da eternidade. Reclinado no leito da morte, o rei, apavorado, +via a face medonha do supremo Juiz; e sentia-se já precipitado nos +abysmos ardentes, no seio das chammas crepitantes, roído, macerado pelos +monstros diabolicos, a gritar em dôres infernaes. + +Desistiu de tudo; abandonou á sua miseranda sorte os burguezes fieis, +deu rendas, legados, terras, senhorios. Deu mais até do que possuia! +Conseguiria por tal preço obter o perdão? Os padres diziam-lhe que sim, +e abençoavam-no promettendo-lhe a salvação. + +Fóra da camara, onde o rei agonisava (1211), o herdeiro, Affonso II, +vulgar e obeso, avarento e incapaz de perceber a situação cruel do pae, +ruminava porém, com o chanceller Gonçalo Mendes, discipulo de Julião, o +plano da desforra. Começou por confirmar tudo o que o fallecido doára ao +clero, porque primeiro tinha que liquidar contas com os irmãos e com o +seu partido. Sancho I deixára-lhes metade do reino. Affonso queria-o +inteiro para si: e era muito bastante para vêr que não podia bater-se ao +mesmo tempo com todos os adversarios. Faltava no caracter do filho a +nobreza do caracter do pae. Nas côrtes de 1211 confirma ainda a isenção +dos cargos publicos, mas prohibe ao mesmo tempo ao clero a compra de +bens de raiz. O de Braga protesta, e Affonso II manda-lhe arrazar os +campos, destruir as granjas e confiscar as rendas. Estava outra vez +declarada a guerra entre a monarchia e o clero. O rei morre, +impenitente, apesar das ameaças das bullas de Honorio III. + +O segundo Sancho tinha muito do caracter do primeiro: era sinceramente +devoto, e na Edade-média a sinceridade implicava certeza de derrota. É +verdade que já a este tempo o terror das excommunhões diminuira: tão +excessivo uso o clero dellas tinha feito. Os interdictos e a denegação +de sepultura em sagrado eram acompanhamento constante de todas as +pretenções ecclesiasticas. Se, porém, a força das armas canonicas +minguára, não tinha diminuido o poderio positivo do clero, que era a +classe mais opulenta do reino. O que os bispos exigiam de Sancho era +demasiado; e como lhes foi negado, depozeram o bom e valente rei (1245). +Em França, o usurpador subscreveu a tudo; sentado no throno, o terceiro +Affonso, soube defender-se como se defendera o segundo. Trazia de fóra a +muita experiencia, a manha, e a pertinacia consummadas, que aprendera +nas côrtes mais polidas da Europa central. + +Evidentemente o clero baixa n'esta longa e interessante batalha. O +fundamento juridico das suas pretenções vae gradualmente fugindo, á +medida que as tradições romanistas e o espirito secular inspiram as +acções dos monarchas, primando sobre as maximas do direito canonico. +Esta substituição traduz o aclaramento gradual que se dá nas +consciencias, á maneira que as superstições infantis d'essas primeiras e +obscuras alvoradas, se vão abrindo no dia claro do renascimento da +cultura intellectual. + +D. Diniz (1279-325) já não é analphabeto, e mede bem o valor da +sciencia: prova-o a fundação das Escholas. Por outro lado, vê que a +principal causa da força do clero está no ultramontanismo, palavra então +desconhecida ainda para exprimir a influencia e authoridade soberanas +dos papas sobre as Egrejas nacionaes. Libertar-se d'essa perigosa +intervenção era o meio de diminuir a gravidade dos conflictos. Acaso a +tradição dos concilios da Hespanha visigothica influiu para a creação +das assembléas de prelados, cujas _concordatas_, registrando os fóros da +Egreja, a subtrahiam á influencia estrangeira, por tornarem nacional o +clero e internas as suas questões. O rei, que assim fomentava a educação +e nacionalisava a Egreja, cimentando por outro lado o desenvolvimento +economico do paiz, tinha uma intuição dos caracteres modernos das +nações. Portugal caminhava de facto, rapidamente, na estrada da sua +independencia, isto é, da sua constituição organica. O povo costumou-se +a dizer: «El-rei D. Diniz fez tudo o que quiz.» + +Pedro, o justiceiro, com a sua typica individualidade conclue de um modo +terminante e brusco a velha questão da influencia de Roma, quando +estabelece o _placito regito_: «Nenhumas bullas, nem lettras pontificias +serão publicadas em Portugal sem consentimento meu.» + +Procedia summariamente: e a sua politica, toda pessoal, acclamada com +enthusiasmo por um povo que o adorava, era a voz indomavel da nação que +falava por sua bocca. A sua loucura era a synthese do pensamento +collectivo. Quando o bispo do Porto reagiu, o rei foi lá em pessoa, diz +a chronica, fechou-se com elle n'uma sala, despiu o gibão para ficar +mais á vontade: trazia por baixo uma saia de escarlata. O bispo, +transido de susto, esperava, sem ousar pedir soccorro. D. Pedro +chegou-se e, placidamente, tirou-lhe a capa; desenrolou o latego, e +correu-o a açoites, dizendo-lhe a rir, gaguejando: vae! anda! toma! + +Não podia conceber leis, a cuja sombra os criminosos ficassem impunes; e +por isso dava-se-lhe pouco de enforcar os padres.--E as regalias da +Egreja?--«Vam-no enforcando, respondia com bom humor e pausa, porque não +podia falar depressa. Vam-no enforcando: por esse caminho lá vae para +Jesus Christo, seu vigario, que no outro-mundo o julgará!» + +E ficava-se a rir, vendo o tonsurado espernear na forca. + +Tudo mudára. Os tempos eram diversos; as excommunhões, papeis +rabiscados; as regalias da Egreja, uma tradição apenas. O rei parado, +com os olhos na forca, ria! + +«E diziam as gentes que taes dez annos nunca ouve em Portugal como estes +que reinara el-rei dom Pedro.(Fernão Lopes.) + + * * * * * + +A fidalguia não tem uma historia tão grave como a do clero. As condições +peculiares da constituição do reino portuguez augmentavam ainda os +embaraços que em toda a Hespanha houve para a formação acabada de um +feudalismo.[48] Todos os conflictos da nobreza com a Corôa +proveem, não de uma questão de ambição politica, não de um pensamento +definido de emancipação revolucionaria, como a do clero; mas da avareza, +da cubiça, da brutalidade pessoal dos homens, nos quaes é mistér incluir +tambem os reis. + +A não serem, por outro lado, as revoltas do Porto, e as guerras entre +Bragança e outros concelhos transmontanos, por causa do senhorio de +Lamas, nada se encontra em Portugal que dê idéa de uma descentralisação +de dominio politico, similhante á que lavra para além das nossas +fronteiras[49]. + +Poucos são os conflictos entre o rei e os barões que não tenham por +origem a _pilhagem_ dos realengos. Distante, e por isso mais fraca a +acção da Corôa, o fidalgo do logar não receava chamar seu e apossar-se +violentamente do terreno visinho, pertencente ao rei. Além d'isto, os +nobres forjavam titulos, inventavam doações, para _honrarem_ territorios +sujeitos á acção das justiças reaes. D'estas causas provinham confusões +inextricaveis, que a força apenas decidia. Quando o mordomo do rei, ou o +seu aguazil, appareciam a cobrar um tributo ou reclamar um preso, o +fidalgo usurpador, ou, do terreno, ou do privilegio apenas, saía com os +seus homens: «Ca por aqui é _honra_!» E enforcava-os. Enforcava-os, ou +matava-os mais barbaramente ainda. Um porteiro, que ia fazer uma +penhora, teve as mãos cortadas, e foi depois assassinado. Outro, atado á +cauda de um cavallo, foi de rastos, levado a galope em volta de toda a +_honra_. Um foi _pendurado pelos braços_. Outra vez o fidalgo _prendidit +eos per gargantas_: os processos eram tão barbaros como o latim. + +Entretanto, embora destituidas de um alcance ou significação +politico-feudal, não faltam nas primeiras epochas portuguezas revoltas e +desordens oriundas das necessidades bulhentas da fidalguia. Batalhar era +o unico meio de passar o tempo, ganhando fama e dinheiro ou terras. Mais +pacifico o reino occidental da Peninsula, «em aquell tempo os fidallgos +portuguezes hiam a Castella muitas vezes por se provarem pellos corpos +quando em Portugall mesteres nom avia.» Mesteres eram desordens, como a +que assolou o paiz no tempo de Sancho II e levou á deposição do rei. Eis +aqui um episodio do livro das _Linhagens_: «E este Raymão Viegas de +Portocarrero, sendo vassallo d'elrey D. Sancho de Portugal, veio uma +noute a Coimbra com a companha de Martim Gil Soverosa, onde el-rey jazia +dormindo na sua cama; e roubaram-lhe a rainha D. Mecia sua mulher de +apar d'elle e levaram-na para Ourem. O rei lançou-se apoz d'elles e só +os pôde alcançar em Ourem que era então muy forte. Disse-lhes que +abrissem as portas, pois era elrey D. Sancho, e levava seu preponto +vestido de seus signaes e seu escudo e seu pendão ante si, e deram-lhe +muy grandes sétadas e muy grandes pedradas no seu escudo e no seu pendão +e assim se houve ende (d'alli) a tornar.» Mesteres eram estas guerras +civis frequentes; mesteres, porém, menos nobres, eram as vinganças +crueis exercidas sobre o povo inerme, como a de um tal Martim Esteves, +que matou os doze melhores homens de Alter-do-Chão «por deshonra que lhe +ahi fizeram.» + +Mesteres ainda, são os desaggravos do thalamo tão a miude violado. Houve +um Dom Rodrigo Gonsalves casado com Dona Ignez Sanchez; ella, estando no +Castello de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e o marido, +certo d'isto, chegou ahi, cercou as portas do castello, e queimou-a a +ella e ao frade e homens e mulheres e bestas e caens e gatos e gallinhas +e todas as cousas vivas, e queimou a camara e pannos de vestir e cama, e +não deixou cousa movel. + +Nos mesteres amorosos tambem essa gente barbara se «provava pellos +corpos» mas sem necessidade de ir a Castella. Quando em tão pouco se +tinha a vida alheia, como se teria em muito a honra? De Affonso +Henriques, o rei «muito bravo e esquivo em mancebo», conta a historia +que foi um dia hospedar-se em Unhão, a casa de um homem-bom que havia +nome Gonçalo de Sousa, e emquanto elle ia adubando o comer, foi elrey +vêr-lhe a mulher que tinha por nome Dona Sancha Alvares e +começou-lh'a... E Dom Gonçalo de Sousa entrou pela porta e viu assim ser +e pesou-lhe d'ahi muito e disse-lhe: Senhor, levantae-vos, ca adubado o +tendes. E o rei foi sentar-se, e comeu e partiu; e o marido pegou da +esposa, montou-a n'um jumento com a cara para a cauda, e mandou-a assim +á côrte entregar ao rei. + +Estes escrupulos do fidalgo não eram, porém, geraes, e fazem-lhe honra. +A promiscuidade repugnante, o incesto, o sacrilegio são casos communs. +Um fez um filho em Tereja Mendes, abbadessa de Lorvão e levou-o para a +côrte, onde D. Diniz lhe deu muito bem e muita mercê. Outro «ouve um +filho, Ruy, que foi privado d'elrey D. Diniz e ouvidor de sua caza.» Os +reis, os nobres teem barregans publicas e legiões de bastardos. Quando +D. Maria Paes, amazia de Sancho I, vinha do enterro do rei em Coimbra, +encontrou em Avelans Gomes Lourenço, que lhe saíu ao caminho e a +_filhou_ por força, roussando-a. Elvira Annes roussou-a Ruy Gomes de +Briteiros. E D. Fernão Mendes, o bravo, «foi o que matou sua madre na +pelle da ussa e pose-lhe os caens, porque lhe baralhara com a barregan.» +A bestialidade nem respeita o sangue, nem um incesto impede o casamento +das nobres damas. «Dona Thereza Gil foi de mau preço e ouve filhos de +seu primo co-irmão»; Dom Pedro Garcia _jouve_ com sua irman e «fez em +ella semel.» Dona Mor Garcia não foi casada, mas roussou a seu irmão +Pedro e «fez em ella Martim Tavaya.» Outrotanto succedeu a uma Maria +Mendes, que depois casou com Lourenço Soares de Valladares. É longa a +lista das torpezas das _Linhagens_ da fidalguia. Taes são os poeticos +amores da Edade-média, cujo brio é perfidia, cuja bravura é crueldade, +cuja nobreza é astucia. A carne, o sangue e o ouro, a orgia bestial, a +carniceria e o roubo são os elementos d'essas historias, em que a rudeza +barbara apparece manchada de podridões asquerosas. + +O roubo e o assassinato compõem essa epopêa aristocratica, cujos amores +são _roussos_, estupros, adulterios, cujo espirito é a avareza e a +perfidia.[50] _Filhar_ as terras do rei, é a primeira das +emprezas da _cavallaria_ em Portugal. E o rei não vale mais do que os +cavalleiros. Quantas vezes, com effeito, não seria usurpadora a sua +intervenção? quantas vezes a ira brutal do fidalgo não teria um +fundamento justo? Affonso II leva metade do seu reinado a espoliar da +herança os irmãos, e todo elle a _inquirir_ o fundamento legal da posse +dos dominios aristocraticos: faz-se idéa da regularidade do segundo +processo, depois de observada a primeira façanha. A confusão é tão +grande, que D. Diniz (1309) decide abolir todas as _honras_ posteriores +a 1290. + +É tambem no seu tempo que um outro acto de grande alcance vem diminuir o +poder da nobreza, de um modo analogo ao que succedera ao clero. Assim +como, fóra da nação, o clero tinha em Roma o seu chefe supremo; assim +tambem as Ordens militares, estabelecidas em Portugal, tinham fóra do +reino os seus mestrados. Nacionalisar as Ordens militares (1310) +equivalia ao que se conseguira com as assembléas do clero. O _Templo_, +poderosa machina destruida por Clemente V, legava os seus bens ao +_Hospital_, mas os tres reis de Castella, Aragão e Portugal, _como todos +tres fuessemos uno a catar nuestro drecho_, conseguem nacionalisar os +bens dos templarios. É com elles que D. Diniz funda a ordem portugueza +de Christo. + + * * * * * + +Os monges militares[51] tinham representado um papel +importante no movimento da reconstituição economica dos territorios +portuguezes. Desde os primeiros tempos que ás Ordens jerosalemitanas +fôra confiada a guarda de numerosas povoações. O Templo, o Hospital e o +Sepulcro fruiam de abundantes doações; e Affonso Henriques concedera á +primeira a terça parte de todas as conquistas ao sul do Tejo. Á inopia +de forças para levar a cabo as grandes emprezas de Lisboa, Alcacer e +Silves, pontos decisivos da conquista do sul do reino, remediavam os +Cruzados; mas as esquadras partiam com o saque, e sósinhos os +portuguezes não podiam conservar o adquirido. N'este motivo se fundára a +concessão permanente de terras ás Ordens militares. Como vimos, Sancho +II estendeu as fronteiras do reino pelo alto-Alemtejo; e sem recursos +para conservar as conquistas, chamou para o reino os cavalleiros de +Santiago e Calatrava, cujo mestrado era castelhano. + +Tal era o unico meio de guarnecer os castellos dispersos pelas vastas +campinas assoladas do sul do reino. A instabilidade do dominio e a +escassez da população--ainda hoje sentimos as consequencias d'essas +prolongadas guerras--não permittiam que a cultura se estendesse; e á +falta de productos da terra, christãos e sarracenos tinham de +soccorrer-se ao systema de correrias e algaras permanentes. Como em +nossos tempos na Servia, o lavrador trabalhava armado, na limitada área +aproveitada em torno dos lugares fortificados. Além da occupação +constante de _alancear mouros_, havia os grandes fossados annuaes, no +tempo em que as searas estavam maduras; e isto fazia precaria e +transitoria a agricultura. Todas estas causas reunidas produziam em +resultado a devastação universal, já consummada na edade de que nos +occupamos. Nos foraes dos primeiros seculos da monarchia, o alfoz dos +concelhos é demarcado por uma certa penedia no alto da serra, pelo +carvalho insulado, pela _velha_ estrada mourisca, por certa pedra de côr +diversa; jámais por casas, villares ou granjas. + +O norte do reino, abrigado das invasões, defendido pelas linhas +estrategicas do Tejo e do Mondego, não era, desde seculos, theatro da +guerra santa. As depredações, menos geraes e menos frequentes, provinham +ahi apenas das rixas dos senhores e das guerras civis. Affonso II mandou +arrasar as propriedades do arcebispo de Braga. As guerras entre os +filhos de Sancho I, as commoções que acompanharam a queda de Sancho II, +a rebellião armada de Affonso (depois IV) contra seu pae, a do viuvo de +Ignez de Castro, entre outras, trouxeram decerto ruinas e desastres, mas +não para comparar com as assolações do sul, nem sequer com os males dos +primeiros tempos, quando a ambição de conquistar a Galliza fazia do +Minho o theatro das luctas quasi constantes com Leão. + +As guerras castelhanas do tempo de D. Fernando teem um novo theatro, +porque o antigo condado portucalense descera já á condição de provincia +portuguesa. O coração do reino está em Lisboa, a terra querida d'elrey +Diniz, _ca hy nascera, hy fora criado y bautizado, e hy fora rey_. Nem o +norte do Mondego, rico e populoso, nem o sul do Sado, demasiado bravio e +inhospito, chamam a attenção administrativa dos governos. Toda ella se +applica para o centro do reino, a renovar e agricultar, e para o +desenvolvimento da navegação e do commercio pelo magnifico porto onde +todos os navios, em viagem dos mares do norte para o Mediterraneo, +vinham refrescar, desde que Lisboa era christan. D. Diniz lavrou o +primeiro tratado mercantil com a Inglaterra (1308). Os armadores da +Normandia, da Flandres e da Inglaterra, já no fim do XIII seculo +demandavam o Tejo, para mercadejar; e os cuidados dos reis não se +limitavam apenas a favorecer esse commercio, porque as plantações de +vastos pinhaes nas costas teem como motivo proporcionar madeiras ás +construcções navaes, e ao mesmo tempo defender as terras da invasão das +dunas, no litoral de entre o Tejo e Mondego. + +O ultimo d'esta serie de phenomenos que demonstram a formação crescente +de um organismo nacional, é o apparecimento de Lisboa, a cidade querida, +como um centro de actividade maritima e commercial. Definitivamente +separado de Leão, obliteradas as ambições da absorpção da Galliza, +geographicamente completo até ao mar do Algarve, rota a dependencia +feudal de Roma, nacionalisado o clero e as Ordens militares, fortalecido +o poder dos reis, iniciada a organisação da justiça, da administração, +do ensino--o corpo da nação portugueza, até ahi acephalo, achava em +Lisboa a capital. A cidade do Tejo dava mais do que um centro de vida +organica, dava um destino definido--o maritimo--a uma nação que na terra +da Hespanha não tinha individualidade, nem por uma indole homogenea e +particular dos habitantes, nem por uma conformação especial e autónoma +do territorio. + +Corintho ou Veneza do occidente, Lisboa _grande cidade de muytas e +desvairadas gentes_ era mais do que a capital do reino: era a razão de +ser da sua independencia. + + [43] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) liv. III, 4. + + [44] V. _Instit. primit._, pp. 233 e segg. + + [45] V. _Instit. primitivas_, pp. 137-47. + + [46] V. para os usos judiciaes, etc., na Edade-média portuguesa, + o _Quadro das Instit. primit._, pp. 17-18, 154, 163-4, 170-1, + 175-8 e 181-205; e _Regime das Riquezas_, pp. 172-4. + + [47] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 158 e segg. + + [48] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 127-32 e 143-9. + + [49] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 135-43 + + [50] V. _Instit. primit._, pp. 98 e 157. + + [51] V. _Instit. primit._, p. 263. + + * * * * * + + + + +IV + +A crise + + +Quando Portugal se encaminhava, por fim, no sentido de uma rapida e +definitiva constituição, quiz o acaso que o throno coubesse por herança +a um principe de fracas, mas sympathicas qualidades. + + Do justo e duro Pedro nasce o brando + (Vede da natureza o desconcerto!) + Remisso e sem cuidado algum Fernando. + +O filho de Pedro I era uma infeliz creatura, mal equilibrada nas suas +qualidades e defeitos. Não era, decerto, aquelle homem de que a nação +carecia para consolidar de um modo seguro a sua independencia; e n'um +sentido póde dizer-se que as condições em que se achou foram a causa dos +males de que muito soffreu. Faltava-lhe a firmeza necessaria para +realisar os planos concebidos por uma intelligencia perspicaz. Era +inventivo, mas era chimerico. Media o alcance dos actos e pensamentos, +mas não sabia pesar o valor dos meios. O corpo de leis que promulgou +para fomentar a navegação e o commercio, honrarão eternamente a sua +intelligencia e a fina percepção com que via no desenvolvimento maritimo +o futuro da patria. A obra consideravel das fortificações da capital +(1377) concorre tambem a mostrar que reconhecia a verdade--cruamente por +elle aprendida--de que Portugal era já, e seria sempre Lisboa. +Accusam-no modernos sabios de ter defraudado a moeda: mas que outro +remedio havia então contra a penuria do thesouro? que outros exemplos +davam os demais principes? que outro exemplo damos nós ainda hoje, +quando, para não cercear o peso ou diminuir o toque do ouro, cunhamos +papel?--Accusam-no porque _hordenou almotaçaria em todallas cousas_ +(1375): e que outro remedio havia, na curta sciencia do tempo, contra os +monopolios e agiotagens, mais funestos na paz do que as batalhas dos +tempos de guerra? Tarifar os generos e os salarios foi medida applaudida +quasi até nossos dias; obrigar os detentores á venda dos cereaes, +determinar a partilha dos grãos, foram actos de salvação publica +repetidos ainda depois de D. Fernando, e sempre que uma crise obriga a +suspender as garantias, ou justiça civil. Mas o rei que cerceava as +moedas e ordenava a almotaçaria em todas as cousas, era o que fundava a +marinha mercante nacional: era o que, olhando para o mar, não se +esquecia da terra, obrigando os proprietarios dos maninhos alemtejanos a +cultival-os, ou a aforal-os. A administração de D. Fernando é um +cesarismo. O desenvolvimento politico e economico da nação chegava a um +momento de crise organica traduzida por uma crise militar e dynastica. A +população e a riqueza tinham crescido de um modo notavel desde que, +havia mais de um seculo, terminára a reconquista do territorio aos +musulmanos. O censo que annos depois se fez (1417) dá ao reino 4:800 +besteiros de conto, ao Porto 8:500 habitantes, e a Lisboa 63:750. +Pullulavam enxames de aldeias e casaes pelos campos agricultados, e +muitas villas que depois definharam eram ainda importantes: Sines, +Cezimbra e Mertola. Algumas cidades eram muito maiores do que são hoje: +Evora e Beja, Santarem, Thomar, Leiria. D. Fernando herdou o reino +robusto e forte. + +Mas o pobre rei, tão bom e tão sagaz, tinha porém um fraco, que +estragava tudo: era doido por mulheres. Singular na edade-média, a +pessoa de D. Fernando parece estar no fim de uma epocha historica, como +um indicio e um typo mal esboçado de futuros personagens. Superior na +intelligencia, acaso por isso mesmo era desmandado no modo de proceder. +Talvez lhe conviesse o nome de sceptico, especie moral que o +desenvolvimento da inteligencia, sem o desenvolvimento parallelo da +vontade, ou do caracter, faz tão commum em nossos dias. Para Cesar, D. +Fernando era, porém, bondoso de mais: tinha um fundo de sinceridade que +o perdia, porque á indifferença não reunia o cynismo. Era, no fundo, um +pobre homem de talento. Este genero de individuos é sempre sympathico; e +por isso o povo, embora chegasse a mofar, nunca o odiou. As suas +fraquezas, prazeres e amores sempre foram criticados com benevolencia. O +povo sabia que no fundo o caracter do rei não era perverso. Não o podia +respeitar nem temer, mas sorria-se amigavelmente das suas +extravagancias. Era o filho prodigo da nação. + +Ás suas qualidades e vicios sympathicos reunia o ser formoso, agil, +cavalleiro como os bons, caridoso, affavel, «gran criador de fidalgos e +muito companheiro com elles, cavalgante, torneador, grande justador e +lançador atavolado»--o jogo era uma das basofias do fidalgo +medieval--dadivoso para com todos, e grande agasalhador de estrangeiros. +A toda a gente queria bem, mas de um modo familiar e singelo, que não +infundia respeito. Os reis de fóra, sabendo-o tão singularmente bom e +simples, riam-se d'elle. + +Era um infeliz, no sentido que a expressão tem popularmente em +castelhano. Dava tudo pela caça: uma paixão desenfreada. Só falcoeiros +de besta contava quarenta e cinco, e não estava satisfeito: queria +povoar com elles uma rua inteira em Santarem. Quando mandava por aves, +nunca lhe trouxessem para menos de cincoenta, entre açores e falcões, +gerifaltes e negris, todas _primas_. Tinha um regimento de mouros para +apresarem as garças e outras aves, que iam buscar a caça nas lagôas. Não +perdoava sequer os innocentes pombos. Eram ás legiões as matilhas de +cães para coelhos, rapozas e lebres. Correr lebres ou atirar aos pombos +era o seu _grande sabor e desenfadamento_. O do seu avô Henriques fôra +correr mouros e atirar ás ameias dos castellos: os tempos, os +temperamentos, eram já inteiramente diversos. + +Ainda assim, não era a caça que perdia o rei. Namorado sempre e +mulherengo, «amador de mulheres o achegador a ellas,» diz F. Lopes, +tinha um feitio terno, _amavioso_. A carnalidade arrastava-o aos maiores +excessos, e é provavel que tivesse vicios ingenuos. Sua irman solteira, +a infanta D. Beatriz, fôra cinco vezes offerecida, outras tantas +recusada, a diversos principes, nas varias combinações politicas que a +sua fertil imaginação creava, e que a sua indolencia invencivel punha +logo de parte. A côrte d'essa irman era um viveiro de donas, onde o rei +permanentemente satisfazia os seus gostos mulherengos. Foi n'essa côrte +que viu e se perdeu de amores por Leonor Telles. Parece, comtudo, que +antes d'isso não amava; porque é proprio dos temperamentos, como era o +do rei, não ter paixões. A sua delicia era o gozar indolente dos +carinhos e meiguices das mulheres, não era amar. Não é provavel, pois, +«a suspeita deshonesta que alguns tinham da virgindade da infanta ser +por elle minguada.» Bastavam ao rei «os jogos e fallas tão a meude +misturadas com beijos e abraços e outros desenfados de similhante +preço.» Só aos fortes corações é dado amar e enlouquecer. D. Fernando +não tinha essa virilidade de caracter. Distincto, perspicaz, engenhoso +de espirito, bom, affavel de genio, faltavam-lhe o valor que faz os +homens, e a vontade que faz os reis. Era uma indolencia formada de +espirito e sensualidade; uma creatura romantica e sympathica; uma +mulher, fraca e intelligente, sentada no throno. Leonor Telles +conquistou-o, porque tinha o genio de um Homem; e o segredo d'essa +alliança tenaz não está n'uma paixão do rei, está na inversão das +pessoas e dos sexos. Ella fez-se rei; elle tornou-se a amante, passiva, +indolente, sensual. + + * * * * * + +O tempo de D. Fernando foi uma serie de guerras com o visinho reino de +Castella. As muitas desgraças d'essas emprezas loucas tiveram de bom o +affirmar de um modo terminante a independencia formal e positiva da +nação, como sáe da batalha de Aljubarrota. Á maneira de certas +enfermidades agudas, quando atacam o homem de temperamento indeciso e +constituição debil, na edade em que attinge a virilidade, e determinam +uma revolução organica, fixando e consolidando a saude--assim as guerras +castelhanas de D. Fernando. são, para Portugal, uma crise. O seu destino +vacillante, os seus orgãos esboçados apenas, soffrem a prova de uma +commoção violenta. Acordam outra vez as tentações antigas, já +anachronicas, da conquista da Galliza; o reino é mais de uma vez +invadido; a miseria, a ruina, as devastações e a penuria affligem, como +uma febre ardente, o corpo da nação. Falta decerto um rei que a dirija, +um homem forte que a represente e guie; mas isso mesmo concorre para +caracterisar a crise, demonstrando que a vitalidade collectiva existia +já, e não provinha apenas da imposição forte de um braço guerreiro. Em +dois seculos Portugal tornara-se de um amalgama de populações ruraes, +cuja unidade estava apenas no genio dos seus barões, em um organismo, +cuja consciencia de uma vida collectiva era real e definida. Tal é, a +nosso vêr, o merecimento d'essa revolução nacional, cujo supposto chefe, +o Mestre de Aviz, é mais o instrumento do que o heroe. + +Não precipitemos, porém, a narrativa. + +D. Fernando julgára convir-lhe apoiar a usurpação do throno de Castella +por Henrique de Trastamara, quando o poder do rei D. Pedro ainda chegava +para bater o rival em Najera. Depois que o usurpador, voltando de França +com o auxilio de Duguesclin, consegue desthronar o rei perdido, D. +Fernando julga conveniente alliar-se ao do Aragão e ao mouro de Granada, +contra o Trastamara victorioso. Formára o chimerico plano de bater o +vencedor com o partido vencido que o invocava; esperando sentar-se no +bello throno de Castella, de que promettia um retalho ao aragonez, outro +ao granadino. A empreza não destoava dos antecedentes historicos; porque +o regime politico da Hespanha, retalhada em varias monarchias, era um +systema de conquistas successivas de reinos. Era, porém, chimerica por +dous motivos, um ignorado então, outro evidente: a incapacidade do rei, +e o destino que marcava á Hespanha a solução unitária. Se Portugal pôde +escapar aos preceitos d'esse fado, deveu-o ao movimento que, por lhe dar +Lisboa, fazia d'elle uma nação cosmopolita, commercial e maritima, e não +propriamente hespanhola: outra Hollanda, no corpo de outra +Allemanha[52]. + +A politica de D. Fernando era, pois, historicamente insensata, falta que +seria absurdo irrogar ao rei; mas era tambem pessoalmente absurda, +porque os seus planos eram chimeras, tão breve nascidas como +abandonadas. Haveria no espirito do rei o pensamento, mais ou menos +definido, de se substituir ao castelhano na obra da unificação politica +dos Estados peninsulares? Nada authorisa a suppol-o; e até porque tal +pensamento não estava ainda cabalmente definido para os monarchas de +Castella. + +O facto é que D. Fernando declarou a guerra e abriu a campanha, +invadindo a Galliza (1369); «mas sua ida foi de tal guisa que mais sua +honra fora não ir alla dessa vegada.» Muitos barões gallegos correram a +recebel-o, a acclamal-o. Tradições de outras eras? Ambições, ainda +vivas, de uma independencia, que mais de uma vez tinham considerado +solidaria com a soberania de Portugal? É provavel; mas é tambem certo +que a rapina era o motivo immediato da adhesão, porque «muytos vinham-se +a ele e pediam-lhe os bees dos que se iam para D. Henrique, o que era +dado ledamente.» O inimigo, de Castella, fazia outro tanto. O conde +Andeiro foi o mais caloroso dos partidarios gallegos de D. Fernando. +Saíu ao encontro do rei, alvoroçado, a gritar: «Hu vem aqui meu senhor +Elrey D. Fernando?» E o rei, esporeando o cavallo, radioso e feliz por +uma tão facil conquista, vendo-se já sentado no throno de Castella, +avançou, respondendo: «Eu som! eu som!» A invasão tornava-se um passeio +até á Corunha; mas pouco adivinhavam ambos, o conde e o rei, quanto +haviam de pagar caro os prazeres desses dias breves. + +O castelhano corre sobre a Galliza, e D. Fernando foge a esconder-se em +Coimbra. A resaca assoladora vem até Braga e Guimarães, atravez de todo +o Minho. A provincia inteira gritava por soccorro: Aqui d'el-rei, contra +o castelhano!--O rei, indeciso, indolente, esperava a realisação da sua +chimera:--não é mister batalhar; Castella inteira vem entregar-se, como +se entregára, de braços abertos, a Galliza!--Passeava-se, entretanto, +com o exercito, entre Santarem e Lisboa. Ia, vinha, avançava e +retrocedia, tão tonto que já o povo da capital ria d'esses passeios: +_exvollo vae, exvollo vem!_[53] + +Afinal em Coimbra--cidade funesta aos dois Fernandos[54]--decidiu-se a +acudir ao Minho, quando o rei de Castella, depois de assolar tudo, tinha +já partido para além da fronteira. Pela raia, porém, o batalhar +continuava, e tambem na costa andaluza o bloqueio maritimo: já Portugal +tinha armadas. Mas a guerra dilatava-se; e Castella, decididamente, não +o chamava para seu rei. Começou a _assentar-se del a covardice_, +abandonou os alliados; e aborrecido e desilludido por esta vez, assignou +as pazes de Alcoutim. + +A sua chimera só, porém, o deixou quieto por tres annos. + +D. Pedro tinha morrido em Montiel, assassinado ás mãos de Trastamara +(1369); a filha mais velha do defunto era casada com o duque João de +Lencastre, da casa de Inglaterra: d'ahi vinham as pretenções d'este á +corôa castelhana e o bravo duello que a Inglaterra e a França debateram +na Hespanha por muitos annos. A influencia franceza era dominante em +Castella; e para logo, nas successivas e ulteriores convulsões, a +alliança ingleza venceu em Portugal. D. Fernando, ou movido pelo desejo +de desforra, ou pensando ainda nas suas velhas ambições, e esperando +ludibriar o alliado, assigna em Braga (1372) o tratado de alliança com o +inglez, contra o castelhano. Henrique de Trastamara, em cuja côrte +andavam diversos fidalgos portuguezes, como os gallegos da invasão +anterior andavam com D. Fernando, manda Pacheco (o terceiro assassino de +D. Ignez de Castro) vêr se effectivamente o rei se dispunha á guerra. +Era tão voluvel o seu caracter, que o castellão não acreditava ainda. +Voltou Pacheco: sem duvida o rei estava disposto a entrar em campanha. +Então D. Henrique, com bondade, lhe pede que abandone essa chimera, e +insta pela paz. Elle, excitado pelas _hespanholadas_ de Affonso Tello, +suppõe que a fraqueza era o motivo da insistencia. Inuteis as +observações, o rei de Castella prefere invadir a ser invadido; e +rapidamente entra pela Beira (1372), cáe sobre Lisboa, cujo cêrco uma +esquadra, ao mesmo tempo partida de Sevilha, encerra por mar (1373). + +Que fazia D. Fernando? Do alto dos muros de Santarem, onde se fechára, +via passar o exercito inimigo, sem ousar mover-se. Dois motivos lh'o +impediam. Esperava a toda a hora o soccorro do inglez; e se o fructo +d'essa guerra lhe era destinado a elle, bom seria que em pessoa o +disputasse. Deixar, porém, invadir assim o reino, pôr cêrco á capital, +abandonar o povo, abandonar Lisboa, era vergonhoso, decerto. Mas se +n'esses dias Leonor Telles, enferma, estava de cama, com as dôres do +parto? Como havia de o pobre rei acudir aos dois deveres? A quem +obedecer primeiro: ao tyranno politico, a corôa, ou ao domestico, a +rainha? Como todos os fracos, decidiu-se pelo mais proximo; tapou os +ouvidos aos clamores da nação, para attender só aos ais da enferma. Não +era por paixão que o fazia, era por indolencia: sempre esperava que +Lisboa afinal havia de resistir, e saberia defender-se! + +Com effeito, não se enganava. A cidade valia muito mais do que o rei. +Quando viu approximar-se o castelhano, chegou a ser temeraria; porque +pretendeu defender com barricadas os arrabaldes, fóra dos muros. Lisboa +tinha a homogeneidade na resistencia; e em vão D. Diniz (o infante que +por condemnar o casamento de Leonor Telles fugira para Castella), em vão +Pacheco e os mais portuguezes de D. Henrique buscavam convencer os +lisbonenses da vantagem da rendição. Não estamos agora no norte, meio +gallego, onde a idéa de nacionalidade vogava indecisa nos dois lados do +Minho: estamos no coração do paiz, e n'uma terra sem tradições leonezas, +que não foi _separada_, que nunca obedeceu a outro rei mais do que ao +portuguez, a quem deve o que é. Inuteis as tentativas de D. Diniz, de +Pacheco, e dos mais, o exercito approximou-se. Viu-se então a temeridade +de defender os arrabaldes; e á pressa, recolheram-se todos para dentro +dos muros. O enxame acudia ás portas, correndo curvado com o peso das +trouxas, das arcas, onde salvára o que tinha mais precioso. Vinham as +familias em grupos, as mães, carpindo, arrastando os cordões de +creanças, espantadas de tudo aquillo. Já os castelhanos entravam pelos +casaes e quintas dos arredores: o lume ardia ainda na lareira, a porta +estava aberta, os quartos vasios. Arrazaram e queimaram tudo, desde as +hervas até aos telhados. + +No rei assentára outra vez a covardice: e, como o inglez não acudia, +acceitou a paz, e foi de Santarem a Vallada assignal-a (1373). «Quanto +eu _haarricado_ venho!» dizia a rir, na volta. Effectivamente não queria +mal algum a D. Henrique; e, se a empreza falhára, o melhor era fazer +cara alegre, e acabar por uma vez com o muito que, do cêrco, padecia +Lisboa. Além d'isso, agradára-lhe o trato do inimigo: agradára-lhe +tanto, que lhe concedeu a irman, D. Beatriz, para casar com o irmão do +castelhano, Sancho. Triste destino o d'esta princeza, que era, nas mãos +do rei, como os joguetes que as creanças dão, tiram, voltam a dar, ao +sabor do seu capricho infantil! + +Este mesmo modo de que usava com a irman, estava reservado á filha: a +outra Beatriz nascida em Santarem durante a invasão precedente. Henrique +de Trastamara tinha morrido; e o herdeiro, João I, na idéa de reunir as +duas corôas de Castella e Portugal, pedira a D. Fernando (que não tinha +outro filho) a mão da pequena D. Beatriz; ao que este annuira, +celebrando-se tratados, porque para casamento era cedo ainda: a pequena +teria oito annos, se tanto. + +Mas o rei, diz o chronista, trazia sempre sua fala com os inglezes, o +mais encobertamente que podia. Que falas eram essas? Era a alliança de +Lencaster, na qual D. Fernando via talvez ainda luzir a possibilidade de +realisar a sua chimera. O conde Andeiro, que na primeira guerra abrira a +Galliza ao portuguez, fôra desterrado para Inglaterra, na occasião de +Alcoutim, por exigencia do castelhano. Era Andeiro o confidente do rei, +e o seu agente para com Lencaster. Veiu de Inglaterra, escondido, a +Extremoz, onde o rei, ao tempo, assistia: trazia novos tratos e +combinações, com a promessa de uma esquadra. O rei acceitou com +facilidade, e afiançou ao duque inglez a mão da filha promettida ao de +Castella. + +D'esta vez decidiu-se a proceder com energia. O castelhano, porém, já +conhecedor de tudo, mandára começar as escaramuças pelas fronteiras de +entre Tejo e Guadiana, theatro das façanhas de Nunalvares (o futuro +condestavel, que agora começa a sua epopêa) em quanto dispunha o grosso +das forças para a campanha de Lisboa. A energia do portuguez consistiu +em enviar a esquadra a Sevilha destruir a inimiga. Com effeito, em +quanto mandasse no Tejo, Lisboa não podia ser efficazmente cercada. Mas +a _sandia presumpção_ de Affonso Tello perdeu a esquadra em Saltes +(1381). A armada castelhana, victoriosa, entrou no Tejo, trazendo a +bordo o infante D. João, irmão do rei, filho de D. Pedro o crú, que se +homisiára de cá por ter assassinado a mulher, Maria Telles, irman de +Leonor. Tambem lhe tinham acenado com a mão da pequena D. Beatriz, e a +ambição perdera-o! D. João repete as palavras de D. Diniz na campanha +precedente; mas é recebido a tiro, o infeliz. As surriadas de trons e +virotões exprimiram a eloquencia independente de Lisboa; e o infante, +humilhado, levou para Castella o desmentido formal a todas as sedições +que annunciára e promettera. + +Chegou, afinal, por mar o Lencaster com os seus, trazendo novo alimento +á guerra, já accesa por todo o Alemtejo. Castella declarára-se pelo papa +de Avinhão, Clemente VII: os inglezes e o rei D. Fernando pronunciam-se +pelo papa de Roma. Urbano VI. A religião vinha azedar ainda mais os +odios dos combatentes. E os inglezes do duque, mercenarios o barbaros do +Norte duro, lançaram-se a este pedaço do Meio-dia, como lebreus famintos +a um regabofe. Estas gentes dos inglezes, refere o chronista, não vinham +como a defender a terra, mas para a destruir e buscar todo o mal, +matando, roubando e forçando mulheres. Nem se limitavam a tão pouco. De +uma guerra que lhes era indifferente, nas causas e motivos, entre povos +inimigos que não distinguiam, inimigos eram para elles todos, e cevar-se +o seu constante proposito. Guerreavam por conta propria, para saquearem. +Tomam aos portuguezes Monsarás, o Redondo e Evora; e as populações, por +fim desesperadas, acodem-se ao processo classicamente peninsular das +surprezas e assassinatos. «As gentes começaram a matar muitos d'elles +escusamente», a ponto de que mais de um terço ficou enterrado pelos +campos e aldeias do Alemtejo. Na extraordinaria confusão em que a +indolencia e as chimeras do rei punham o paiz, já cada um combatia por +si proprio, com o proposito unico da defeza nacional. + +Se os inglezes deixaram em volta do Tejo alguma cousa a roubar, ou algum +campo a queimar, os castelhanos da esquadra, desembarcando, quando o +exercito anglo-luso tinha subido para Evora a encontrar o inimigo, +acabaram a obra destruidora n'uma razzia monumental, a que não escapou +eira nem beira, nem arvore, nem cousa viva. Em volta das muralhas de +Lisboa ficou tudo um deserto morno e secco. + +Pela terceira vez assentou no rei a covardice; e sem combater, voltando +as costas ao inglez logrado, assignou as pazes de Badajoz com o +castelhano (1381). De novo a pequena infanta D. Beatriz torna a ser +promettida a outro noivo: Fernando, de Castella, que não vem ainda, +comtudo, a ser seu marido; porque, ao voltar para casa, o rei João, +enviuvando, teima no antigo plano da fusão dos reinos. O casamento da +filha com o valetudinario monarcha visinho, é o ultimo e o mais +insensato dos actos de D. Fernando. Extinguia-se com elle a dynastia; e +por herança legava, do leito da morte, a independencia em perigo ao povo +que, apesar de tão dorido, ainda e sempre lhe queria. + + * * * * * + +Fôra no viveiro feminino da côrte da irman que o rei Fernando vira +Leonor Telles. Era a terceira Leonor que escolhia para companheira, e +foi, desastradamente, a unica que veiu a ter. A primeira, de Aragão, +recusou-lh'a o perspicaz pae, por vêr quanto era defeituoso e fraco o +caracter do promettido genro. A segunda, de Castella, repudiou-a, desde +que viu e se namorou da terceira. + +Maria Telles, irman de Leonor, era aia da infanta D. Beatriz. Leonor, +casada, vivia no seu solar da Beira. Estava em Lisboa, de passagem, a +visitar a irman, quando o rei a viu. Como começaram esses amores? Os +antecedentes do rei e o caracter da futura rainha deixam vêr bem que não +deveu ter havido uma d'estas paixões fulminantes, communs nos homens +d'armas, mas de que D. Fernando era incapaz, e Leonor Telles tambem. + +A fria ambição calculadora era commum ás duas irmãs. A aia da infanta, +por quem o infeliz e louco D. João se namorára com paixão, preparára-lhe +cuidadosamente uma entrevista, á noute, no seu quarto. Quando o infante +chega, soffrego de amor, vê um altar e um padre diante do leito. +Casemo-nos primeiro, amaremos depois. O infante, coacto pela paixão, +casou-se para amar; mas a aia pagou mais tarde, com a vida, o erro de +brincar com um leão, como so fôra um rafeiro. + +Leonor Telles tinha em si o saber sufficiente para ensinar: não carecia +das lições da irman. Percebeu que o rei, nas suas ligeirices, a preferia +á propria infanta; mas o papel de amante não lhe convinha: queria o de +rainha. Foi-se deixando ficar, e acirrava com tentações a inclinação do +monarcha sensual e passivo. «Era louçan, aposta, e de bom corpo». D. +Fernando costumou-se ás denguices da sereia: nos fracos, o costume gera +necessidades imperiosas, a que tudo sacrificam. Com o tempo, a idéa de +que Leonor era casada, naturalmente a insistencia com que ella, séria e +affectando decóro, falaria na necessidade de voltar para casa, para o +marido, fizeram sentir ao rei a impossibilidade de quebrar o habito dos +seus amores innocentes e molles. A indolencia é muito mais teimosa nas +suas exigencias do que a força; um habito sensual tem maior tenacidade +do que uma paixão. Leonor Telles devia saber isto perfeitamente. O +momento decisivo approximava-se: não podia continuar por mais tempo em +Lisboa, o marido chamava-a, as más linguas podiam falar... + +O rei lembrou-se então de que para alguma cousa lhe podia servir sel-o: +desmancharia esse casamento, porque uma dama tão senhoril e casta não +podia ser sua amante. D. Fernando não tinha, o ingenuo, nem ponta de +cynismo. Falou seriamente, em particular, á irman. Mulheril como era, +este caso tinha maior gravidade do que uma guerra com Castella, pelo +repudio da princeza que lhe estava promettida nos tratados de Alcoutim. +«Melhor fizera elrey, dizia o povo, tel-a por tempo e depois casar com +outra mulher.» Bons conselhos! para quem vivia todo na atmosphera +feminina e molle da côrte de D. Beatriz, onde Maria Telles reinava. Como +se Maria, Leonor, não fossem excellentes senhoras, recatadas, mas +seductoras na sua terna dignidade! + +Maria poz por condição o casamento; Leonor Telles concordou em que muito +queria ao rei, mas ainda mais ao seu nome. Combinaram tudo em segredo, e +foram, ás escondidas, ao norte, casar-se (1371) a Leça do Bailio, junto +ao Porto. Tinham, com effeito, medo de Lisboa. Quando regressaram á +côrte e os rumores se confirmaram, as opiniões moveram-se na capital. O +commum das gentes accusava o rei com odios apaixonados; mas não faltavam +os experientes a observar placidamente, «que não era maravilha; já a +outros acontecera cousa semelhante; todo o homem namorado tinha uma +especie de sandice; o amor era como dôr que doe e não doe ao mesmo +tempo». Muita gente se ria do marido infeliz que sensatamente fugira +para Castella, e para prevenir os motejos mandára pôr no barrete dois +cornos de ouro em fórma de plumas; muitos notavam a facilidade com que o +papa fazia e desfazia casamentos; e esta cumplicidade da religião e do +amor não augmentava em nada o respeito pela Egreja. Em summa, desde que +o riso entrava na questão, o odio do povo não era muito; e Lisboa +esperava para ver o resultado d'essa comedia, e tomar o pulso ao +caracter da rainha. Ninguem sabia ainda de quantas manhas elle era formado. + +Mas nem em todos a longanimidade era tão grande; e uma parte da plebe +decidiu-se a pedir contas, a reclamar garantias, e até a protestar. +Esses adivinhavam a perversidade da rainha. No rei assentou a covardice, +e Leonor Telles não podia ainda contar com partido proprio. Fugiram, +pois, ás escondidas, para Santarem: e o povo, burlado, ficou em vão +esperando o rei no atrio de S. Domingos, para onde o comicio fôra +aprazado. Pelo caminho, na fuga, o rei carinhoso observava: «Olha +aquelles villões traidores, como se juntavam: prendiam-me certamente, se +lá vou.» E não podia esconder o susto, conchegando-se ao collo da +rainha, no seio d'uma inclinação protectora. Leonor Telles sorria, +calada. Era rainha, mas apupada: o plano da vingança acordava-lhe no +animo, e tambem o desdem por esse pobre rei, perdido e fraco. + +Este primeiro acto da nova rainha foi decerto o seu primeiro erro. Desde +logo, até os mais indulgentes viram que não havia remedio; e o partido +dos seus inimigos cresceu em numero e ganhou forças e atrevimento. Ella +prejudicára os seus planos por um acto precipitado; e todos os esforços +que empenhava em ganhar sympathias eram vãos. «Era mui grada e liberal a +quaesquer que lhe pediam, mas quanto fazia tudo damnava; e a sua +caridade e as suas manhas não podiam encobrir os seus deshonestos feitos.» + +Com effeito, a rainha nem melhorava a fraqueza do rei, nem o afastava +das suas loucuras e emprezas perdidas; e por sobre isto era +reconhecidamente má. Accusavam-na de ter preparado o assassinato da +irman pelo infante seu marido; e era publico que, no meio da agitação da +terceira guerra castelhana, tentára matar o Mestre de Aviz, forjando +para tanto um falso alvará. O povo já a descrevia como uma féra +sangrenta; e o povo sabia quantos odios comprimidos ella guardava contra +essa Lisboa miseravel que a insultava e a apupava. Toda a gente se +sentia offendida, humilhada, com a humilhação do pobre rei. Contava-se +como era com elle ousada e faladora; e como el-rei, submisso e +indolente, curvava a cabeça e se calava. Era uma desgraça que entrára no +palacio. Depois, além de cruel, sanguinaria, e descomposta no modo, era +de uma deshonestidade publica. Todos sabiam que nas barbas do marido +tinha o amante no paço. E o pobre rei não desconfiava, na sua cegueira. +Quando o Andeiro viera de Inglaterra, escondido, com os tratos de +Lencaster, el-rei recolheu-o na torre do seu paço de Extremoz. A sala da +sesta era o quarto do conde; e o rei ia-se, e a rainha vinha passar +horas esquecidas a sós com o amante. O rei, como homem de são coração, +não via o que escandalisava a todos. Pouco se lhe dava d'isso a ella, +chegando a fazer gala dos seus desvarios. O adulterio e a crueldade, o +prazer e o sangue, alliavam-se bem n'esse genio perverso, mas +intelligente e altivo, tão desdenhoso como impudico. Queria firmar sobre +o odio uma força que não pudera conquistar pelo amor. Repellida, +accusada, escarnecida por um povo, para quem talvez quiz ser boa, +decidiu impôr-se-lhe pelo desabrido do odio e pelo desplante do +comportamento. Vingava-se á maneira antiga, como uma Cleópatra. + +No outomno de 1383 falleceu D. Fernando; e logo que a tampa caiu sobre o +caixão do defunto, rebentou a revolução. + + * * * * * + +A revolução de 1383-5 tem um caracter de um Juizo-de-Deus. A dynastia +mentira ao papel justiceiro: morra por ello! Por uma serie de +extravagancias domesticas e politicas, D. Fernando levára a uma crise a +obra lenta e demorada da independencia nacional, iniciada com uma espada +por Affonso Henriques, assegurada com um açoite por Pedro o crú. É +verdade que não deixára de fomentar a consistencia material interna do +corpo da nação; mas de que valia isso, pois que a deixava outra vez a +braços com o problema vital da successão, o problema da independencia? + +Logo que o rei morreu, os differentes actores da tragedia começaram a +tomar os seus logares na scena. + +O castelhano immediatamente encarcera em Toledo o infante D. João, o +mais perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido +perante o povo pela nodoa do ataque de Lisboa, na esquadra inimiga. + +A rainha viuva, julgando o momento opportuno para conquistar sympathias, +representa uma scena de prantos. Abandonára por um instante a sua +politica de vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o +respeito, ou o amor dos seus. Ella não queria entregar o reino a +Castella: queria que a filha fosse acclamada rainha, e ella, como +regente, rei de facto. Talvez pensasse em casar-se com o Andeiro, a quem +parece amava do coração: seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por +ser a causa da sua perdição? + +Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, «fingia-se +mui desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma camara escura, +coberta de dó, com lagrimas e soluços--que ás mulheres não faltam quando +lhes servem--se lamentava, com as visitas, do seu desamparo, +queixando-se do governo que o rei déra ao reino, agora pobre e infeliz.» +(Fernão Lopes) Na sua dôr, na boa vontade que tem de servir a nação +(para que ella a não expulse do throno) está por tudo. Com effeito, a +morte do marido punha-a á mercê da vontade do povo. «Era em tudo +obedecida, assim dos povos como dos grandes; mas bem via que essa +obediencia nada tinha de pessoal, porque ninguem a amava, nem a +respeitava. De um momento para outro podia perder tudo. Os de Lisboa +queriam que se constituisse um conselho de governo composto de dois +homens-bons de cada comarca: annuiu a essa tutela. Quando fôra a +acclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observára os +tumultos geraes e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a +acclamação provocára rixas e conflictos; muita gente era pelo infante D. +João ou pelo infante D. Diniz, que andavam por Castella; outros +gritavam: _Arreal, arreal, cujo for o reino, leval-o-há!_ Em Santarem o +infante D. João foi positivamente acclamado. Elvas, para não se decidir, +no meio de tanta confusão, gritou: _Arreal, arreal, por Portugal!_ + +Esse era effectivamente o grito da nação: por Portugal! Ninguem se +recommendava bastante, no animo do povo, para merecer uma corôa +disponivel, para se sentar n'um throno vago. O que Portugal não queria, +era que n'esse throno viesse sentar-se o castelhano. A rainha não o +queria tampouco; e era toda esforços para ganhar a si o povo, para +herdar de facto o reino. Organisada a regencia, pensou desde logo na +guerra; porque o rei de Castella já se preparava para vir occupar +Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao Mestre de Aviz a zona +de entre Tejo e Guadiana. + +Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam: Nunalvares e Alvaro +Paes. O primeiro é a mais nobre, a mais bella figura que a Edade-média +portugueza nos deixou. O typo cristallisado nos romances, o typo do +cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro +condestavel. «Usava muito de ouvir e lêr livros de historias, e +especialmente usava mais lêr a historia de Galaaz, em que se continha a +somma da tavola redonda.» Tinha a nobreza ideal do cavalleiro, e a +castidade de um mystico. Era uma açucena na alma, e um leão na bravura e +na generosidade. Resistira por muito tempo ao pae que o queria casar, +porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o coração. Por tudo +isto, a infamia da rainha abraçada ao amante, e as lagrimas fingidas +pelo marido, córavam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação. +Nunca a obra indispensavel de salvar Portugal podia levar-se a cabo com +tal mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos, «Um dia, +passeando só no paço, a cuidar no que havia de ser do reino», +occorreu-lhe a idéa de que só a morte do Andeiro podia pôr termo ás +desgraças publicas. + +O cavalleiro tinha então 24 annos; e esse rapaz, typo ingenuo e puro de +virtude, é a imagem de uma nação, tambem joven, e ainda crente n'um +futuro proximo. Á indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria +e o calculo experiente de Alvaro Paes, padrasto do futuro grão-doctor. +Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para perder a rainha.--Era +verdadeiramente o juizo de Deus, cuja sentença, logo que fosse publica, +seria acclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de Aviz +Alvaro Paes em Lisboa. Falava por sua bocca a cidade que Leonor Telles +tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o author +do plano do dia 6 de dezembro (1383) na fundação de uma nova dynastia? +Queria acaso matar apenas o valido para aterrorisar a rainha; e +entregal-a, assim, manietada, ao poder de uma oligarchia urbana, em que +Lisboa se arrogasse o papel de defensora do reino, tendo á frente de um +conselho de governo, com a regente vilipendiada e coacta, o Mestre, +homem simples, por instrumento e chefe? Era um plano atrevido, mas mais +de uma vez posto em pratica por diversas cidades opulentas da Hespanha. +Não contava, porém, Alvaro Paes, nem com a arte que os annos +desenvolveram no Mestre; nem com o generoso e nobre caracter de +Nunalvares; nem com a força invencivel dos futuros textos e doutrinas do +grão-doctor João das Regras. + +Combinado o programma do dia 6, Alvaro Paes abraçou e beijou o Mestre. +N'esse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: partia para a sua +fronteira do Alemtejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns +fidalgos dos seus. A rainha, surprehendida, interrogou-o.--A fronteira +era muito _grossa_, levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados, +queria examinal-os... + +Leonor Telles estava então na sua camara, sentada no meio das suas +damas, costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o +Andeiro, de corpo bem disposto, _lustroso_, viril (40 annos), vestindo, +apesar do luto, um gibão de setim cramesi e um tabardo de panno preto, +sem o burel branco do estylo, falava manso com ella. Era um quadro de +familia, e tudo parecia sereno, menos o tom e o aspecto do Mestre e dos +seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na mente um crime. + +A rainha, inquieta, mas simulando indifferença e sangue frio, chamou o +escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassallos da comarca: +Escolhesse o Mestre os que quizesse. O escrivão de pé, com o livro +aberto, ia lendo, indifferentemente _item_, _Dom_... etc, mas o Mestre +não lhe prestava grande attenção. Uns perante outros, os personagens da +tragedia adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o +escrivão, no seu tabardo negro, com a voz monotona, era sincero. Andeiro +levantou-se, saíu a outra sala, a avisar os seus sequazes: o que o +Mestre vendo, receiou perder-se, ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o +comsigo para fóra. A rainha, no meio das suas damas, sobre o estrado, +costurava. O momento agudo da crise chegára: era mistér consummar o +acto. O Mestre empurra então o conde para o vão de uma janella. Elle ia +a fallar... «sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o ouvir», +deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia +defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do +Mestre acabou-o alli ás estocadas. Foi uma façanha arteiramente +combinada, barbara e cobardemente executada. Nunalvares, quando a mesma +solução lhe occorrera, pensou decerto n'um plano diverso. + +Consummado o assassinato, poz-se em scena a comedia do contra-regras, +Alvaro Paes. Foi mandado um pagem a gritar pelas ruas que acudissem ao +Mestre, que o matavam no paço. Entretanto, dentro d'elle, era grande o +alvoroço. Uns fugiam pelas janellas, outros pelos telhados: todos +corriam como doidos, cheios de susto, e se acotovellavam nos corredores +e entre as portas. A rainha levantando-se, ao ouvir que lhe tinham +matado o amante, rugiu de colera, como a fera a quem roubam os filhos: +era a sua cruel fraqueza! Viu tambem a sua vida em perigo, e por ventura +n'este momento desejou a morte[55]. Animosa, mandou perguntar ao Mestre, +que n'um eirado do palacio, á vontade, descançava das commoções +violentas, se tambem a queria matar. Elle voltou, respeitosamente, que +não. Era um homem simples, costumado a vêr em Leonor Telles a mulher do +rei: e por isso, além de ser muito novo (26 annos), não se atrevia a +tanto. Era fogoso, brutal, e de instinctos pesados: um instrumento capaz +de executar os planos manhosos do Alvaro Paes, prompto para tudo, porque +não distinguia bem a linha que separa a nobreza da villania--como, de +resto, succedia a quasi todos os homens d'armas da Edade-média. Foram a +revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez d'elle na edade +madura um sabio rei. + +Na rua, Alvaro Paes vinha a cavallo (por excepção rara, que era velho já +e pesado) á frente da procissão de energumenos, bradando por desvairadas +maneiras. A plebe, investindo com o palacio, quebrava os cancellos de +ferro, trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar +tudo. Era uma algazarra incrivel de improperios e nomes deshonestos, +dirigidos á rainha. Já de dentro havia medo de que o fogo pegasse, e que +o fim da tragedia fosse um incendio justiceiro. Extenuavam-se a gritar +que o Mestre estava vivo, Andeiro morto; mas ninguem tinha ouvidos no +meio do clamor da turba. Por fim, o Mestre de Aviz appareceu a uma +janella e foi victoriado: «Vinde para nós, gritavam-lhe, e dáe ao démo +esses paços!» Alli mesmo, ao pé do palacio, ficava a Sé; Era necessario +solemnisar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o +ordenava; mas os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que +queriam d'elles: e por esse crime foram precipitados á rua o bispo e +mais dois: e os cadaveres, arrastados ao Rocio, ahi ficaram para pasto +dos caens. + +Tambem o Mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Alvaro +Paes comer socegadamente. O homem cumprira o que tinha promettido: e, á +mesa, na satisfação da victoria, instruiu o rapaz sobre o que lhe +restava fazer: pedir perdão á rainha, depois de jantar. Quem sabe? +dir-lhe-hia elle, mastigando, mais tarde... casar com ella... E o +mestre, bastardo, pobre, ambicioso e simples, via abrirem-se-lhe +horisontes seductores. + +Com effeito, depois de jantar, o Mestre de Aviz foi ao paço e, de +joelhos, pediu perdão á rainha. Tamanha simplez encheu-a a ella de +espanto. Estava calada, não sabia que responder: e como o pobre +insistia, ella, afinal com desdem, voltou-lhe: Falemos de outras +cousas... O Mestre saía desorientado e corrido, atraz d'elle as suas +guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de chofre com o cadaver do +conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho. Não pôde mais +conter-se; e o seu animo, perdido, rebentou em duras queixa: «Enterrae-o +ao menos, já que o mataste tão deshonradamente!» Elles não curaram +d'isso, nem se doeram do adverbio da rainha, e foram para suas pousadas. +Era tempo perdido. + +Ao outro dia a rainha partiu para Alemquer--suffocada em odios contra +Lisboa: queria vel-a arrazada e queimada de mau fogo, queria uma +tonelada de linguas das suas mulheres. Queria uma vingança, uma desforra +que désse brado ao mundo. Que lhe importavam, á sua alma desvairada, a +nação e a independencia? No egoismo absoluto de uma paixão, esquecia +tudo; e por isso mudou de rumo á sua politica, e convidou o rei de +Castella a vir tomar posse de Portugal. Perdia-se irremediavelmente. + +Entretanto a maxima parte da nobreza acompanhava-a, e a fidalguia era +então o exercito. Uns não queriam pactuar com a revolta da plebe de +Lisboa, nem curvar a cerviz ao imperio de Alvaro Paes. Outros eram fieis +á legitimidade da regencia. O resto dos que não acompanhavam a rainha e +grande parte das classes médias eram pelo infante D. João, preso em +Toledo. O plano de Alvaro Paes e o partido do mestre de Aviz caiam +tanto, que, desanimado, o ultimo decide-se a abandonar a empreza e a +fugir para Inglaterra--como fez depois o seu successor na historia, o +Prior do Crato. Poderam, porém, contel-o. Para que? Para o decidirem a +uma segunda vergonha. Eram incapazes de nenhuma grande audacia, de +nenhum plano temerario; e só um d'esses poderia dar a victoria. Não +sentiam o palpitar violento de uma nação forte que aspirava á vida. Os +seus meios eram mesquinhos, soezes e crueis. Conquistaram o castello em +Lisboa, levando á frente de si as mulheres e os filhos dos que o +defendiam pelo infante D. João. Angariavam sequazes, comprando-os a +dinheiro, segundo a regra de Alvaro Paes: _dae o que não é vosso, +promettei o que não tendes, e perdoae a quem vos errou._ A rapina e a +impunidade eram o alicerce da força do partido, já ridiculamente +alcunhado do _Mexias de Lisboa_. O segundo plano proposto, para evitar a +fuga do _Mexias_, era a antiga idéa commum e soez de Alvaro Paes: +casal-o com Leonor Telles. O Mestre accedeu; e propoz o caso á rainha, +que respondeu com uma gargalhada. Podia-se acaso descer mais? Não podia. + +Quem faz, porém, os Messias é o povo. Valham pouco, valham nada, pouco +importa. São um lábaro, onde a turba escreve um moto. Vão, mas não +guiam. Portugal com effeito gerava uma revolução messianica; pedia em +altos brados que o salvassem; tinha a consciencia de que podia e havia +de ser salvo. Esta força latente e invencivel, era, porém, ignota para a +simplez do Mestre e para o lerdo instincto de Alvaro Paes. Andavam ambos +como cégos em torno de um pharol, sem o verem. Eram ambos como certos +animaes das trevas, a quem a desnecessidade priva de olhos. + +Para vêr e para sentir a gravidade do momento, para conceber a audacia +da revolução, era mistér, ou a ingenua candura dos fortes, ou a refinada +sabedoria dos mestres. O de Aviz teve a fortuna de encontrar dois homens +que o fizeram rei, e tornaram o seu titulo ridiculo de _Mexias_, no +titulo verdadeiro e forte de Defensor-do-reino, positivo messias da +nação (1384). + +Termina o reinado de Alvaro Paes, desde que o futuro condestavel e o +grão-doctor tomam conta, um da guerra, outro da politica. Temerarias, +audazes, quasi loucas ambas, exprimem ambas a suprema sabedoria; porque +traduzem o até ahi indefinido querer do povo, e empregam os meios unicos +de salvação. Nunalvares faz de toda a fronteira o theatro de incessantes +campanhas, pouco ou nada attende ás ordens do Defensor-do-reino, por +vezes desobedece formalmente. Á medida que o Mestre via o resultado das +armas do nobre capitão, ia reconhecendo a propria inferioridade; e a +simplez natural do seu genio tinha de bom o abrir-lhe os olhos á +verdade. Nos actos alheios, aprendia a pesar os seus, ganhando com isso +a attitude de um moderador prudente. Era sábia a arte com que ponderava +os conflictos inevitaveis de Nunalvares com João das Regras: do +cavalleiro idealista e heroico, e do habil, consummado politico: do +representante ingenuo de douradas phantasias, com o frio calculador das +cousas positivas; do ultimo homem da Edade-média, com o primeiro do novo +Portugal monarchico. Entre ambos, o Mestre de Aviz era um pendulo +regulador das duas forças em opposição. + +A politica ia buscar outra vez as allianças inglezas, acordando a antiga +ambição castelhana da casa de Lencaster; e a guerra, ora terrivel em +batalhas, ora fidalga em reptos e duellos, ia acordar por todo o paiz a +revolução. Os grandes, os alcaides das terras, eram por Castella ou pelo +infante D. João; mas o povo era pelo Messias: cria e esperava o milagre. +Formavam-se _uniões_ espontaneas; e as levas de populares conquistavam +para o Mestre os castellos e villas fortificados aos senhores e aos +alcaides dos concelhos. + +Uma grande parte do reino obedecia ao governo de Lisboa; mas a rainha, o +rei de Castella e o exercito invasor, na sua marcha sobre a capital, +occupavam Coimbra. Leonor Telles acabou ahi. Arrependida de ter chamado +o castelhano que a desprezava; reconhecendo que erradamente, por uma +precipitação, forjára por suas proprias mãos as cadeias do seu +captiveiro, vendo agora quanto se illudira, e que erro fôra o seu em não +avaliar a justa vitalidade do paiz, tentou ainda urdir uma trama para se +libertar, perdendo o genro e a filha. Os seus planos falharam; e anojada +e cheia de desespero, seguiu a ordem do genro, que de Coimbra a mandou +enterrar no mosteiro de Tordesillas. Como acabaria a sua vida? Quem +sabe? talvez arrependida, santamente amortalhada no burel monastico? +acaso roída de desespero, impenitente? + +O exercito castelhano desceu sobre Lisboa, e este segundo cêrco da +capital (1384) foi mais cruel ainda do que o primeiro, no tempo de D. +Fernando. Veiu a fome perseguir os heroicos lisbonenses, que andavam já +doentes das cousas que comiam. Por fóra a peste alastrava, porém, de +cadaveres os arrayaes castelhanos; e quando, um dia, a rainha de +Castella, pretendente de Portugal, adoeceu tambem, os inimigos +levantaram o cêrco. O povo encontrava n'isto motivos para crer n'uma +protecção do céu. + +Por mais de um anno se prolongaram ainda as guerras pelas provincias +afastadas; mas Lisboa, Coimbra e todo o centro do paiz era, já em 1385, +pelo Mestre. Os ultimos actos da revolução iam consummar-se: as côrtes +de Coimbra e a batalha de Aljubarrota. + +Em Coimbra o grão-doctor é o general e o chefe. Essa batalha de +discursos era diversa, mas não menos brava de pelejar; porque uma grande +parte da nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o +estava a acclamar rei o Mestre de Aviz. Legitimista, considerava-se +ligada ao infante D. João; e a união dos fidalgos, completa para a +defeza, não existia, agora que se tratava de consolidar, com uma nova +dynastia, a independencia e a constituição definitiva do reino. + +O rei de Castella era schismatico e excommungado por apoiar Clemente VII +contra Urbano VI; e além d'isso os maus costumes de Leonor Telles não +deixavam ter certeza sobre a legitimidade de D. Beatriz.--Todos apoiavam +João das Regras, porque ninguem queria o castelhano.--D. João, +continuava o doutor (e aqui principiavam os murmurios) é bastardo, +porque el-rei D. Pedro jámais se casou com D. Ignez de Castro.--Um +momento houve em que Nunalvares esteve a ponto de brigar com o +_roncador_ Martim Vasques, o chefe dos _leaes_; e as côrtes por um triz +se tornavam n'uma batalha. Interveiu o Mestre de Aviz, apasiguando o +exaltado capitão, melhor no campo do que no conselho. + +Ahi reinava o _grão-doctor_. Além de illegitimos, continuava sem se +perturbar, os filhos de D. Ignez de Castro tinham tomado armas contra a +patria; e este argumento, proprio a impressionar os leaes, pesou, mas +não os decidiu. Então o doutor lançou mão das reservas e venceu. +Apresentou as bullas, nas quaes o papa recusára acceder aos pedidos do +rei D. Pedro para a legitimação dos filhos. Podia haver prova mais +solemne? Ousaria ainda alguem conservar duvidas? E apoz isto desenrolava +todas as consequencias: a divisão das forças do reino perante o +castelhano, inimigo commum; a impossibilidade de acclamar rei um +principe preso em Castella, etc. O ataque era irresistivel; e tudo +cedeu, declarando-se vago o throno, e elegendo-se para o occupar o +Mestre de Aviz, D. João I. + +Que melhor prova podia dar-se da vitalidade da nação e da sua +independencia já acabada, do que estas côrtes de 1385, em que ella +exalta uma dynastia, sem base na tradição nem na herança, unicamente +enraizada no querer absoluto, commum dos portuguezes? É só n'este +momento que bem de facto se póde dizer terminada a historia da +independencia; porque a dynastia de Borgonha trazia comsigo o peccado +original da doação primitiva, segundo o direito feodal: o reino era um +senhorio, sublevado, como por tantas vezes e por tão longos tempos o +tinham sido, na propria Hespanha, a Galliza e a Biscaya.[56] Agora as +cousas mudavam; e mudavam, porque a nação, alargando-se para o sul, +recebendo novas gentes em seu seio, fomentando a actividade commercial e +maritima em Lisboa, ao mesmo tempo que se constituia interna ou +organicamente, era já um ser diverso do antigo, e um ser dotado de vida +independente e propria. A crise, que temos vindo historiando--com um +vagar desculpavel pela sua significação excepcional--parece ter, para a +vida nacional portugueza, a importancia que a natureza dá ás crises que +determinam a passagem de uns para outros dos seus typos organicos.[57] + +Não bastava porém uma acclamação, era necessario um baptismo, á nova +monarchia. Aljubarrota respondeu com as armas á eloquencia das côrtes; +e, victorioso no conselho e no campo, o throno de D. João I ficou +inabalavel. Segundo o parecer dos inglezes, seus alliados e mestres na +nova tactica militar com que vieram a esmagar em Azincourt a cavallaria +franceza, o Mestre d'Aviz entrincheira o seu pequeno exercito. +Nortberry, Hartcelle e d'Artherry, capitães, traçaram a _carriagem_. +Cortaram-se ramos de arvores com os quaes se levantou uma estacada para +paralysar as cargas da cavallaria; ao meio d'essa estacada um carreiro +estreito, internamente bordado por archeiros e bésteiros de pé, estava +aberto, como uma tentação e um laço ao ardor fidalgo dos inimigos. + +A desproporção do numero era grande entre os combatentes. O castelhano +trazia comsigo vinte mil homens de cavallo, nos quaes entravam dois mil +francezes, gascões e bearnezes: com a peonagem, o seu exercito ia a mais +metade. Em volta de D. João I não havia mais de duas mil lanças, +oitocentos bésteiros, e quatro mil peões: alguns elevam a dez mil o +total. Evidentemente, só a força da arte podia vencer a desproporção do +numero. Pelo meio dia appareceu o exercito inimigo, victoriosamente +composto na galhardia das armas reluzentes com o sol, dos pendões e +bandeiras blazonadas, das mesnadas dos ricos homens da Hespanha e da +França meridional, montados nos seus cavallos de guerra. Os portuguezes, +calados, humildes e obscuros, por detraz das suas trincheiras, esperavam +o choque d'essa brilhante móle. Havia em muitos valentia e enthusiasmo, +mas não faltava o temor, menos ainda a decisão firme de morrer vencidos, +na desesperança de rebater um ataque tão poderoso. O condestavel e os +cavalleiros excitavam o ardor bellico; os bispos, confessando, +absolvendo, dando a commungar, distribuiam a paz ás consciencias, +preparavam para a morte, accendendo a coragem com os odios religiosos. +Havia exaltação, votos singulares, ditos agudos, mas sobradas duvidas +sobre o resultado do dia. Os padres resavam no seu latim: _Verbum caro +factum est_, e os soldados traduziam d'esta fórma o evangelho: muito +caro feito é este: Havia até medo n'essas levas de gente bisonha do +campo, soldados saídos de uma população rural; mas uns trinta peões que +fugiram, apavorados, foram trucidados pelos castelhanos: o que nos +prestou o serviço de evitar as deserções, consolidando o proposito da +defeza. + +O exercito inimigo não se tinha decidido ainda sobre o modo de operar. +Uns optavam pela prudencia: vinham de longe, cansados da viagem, não +tinham comido ainda: esperassem, e os portuguezes, como javardos no seu +covil, seriam forçados a saír por lhes faltar o mantimento. Outros +achavam uma vergonha, para tão fidalgos cavalleiros, o parar deante +d'uma estacada mal defendida por um punhado de soldados bisonhos. Apesar +do rei vir em andas, doente com sezões, venceu a ultima opinião, e +atacaram galhardamente. «Em esto os ginetes dos inimigos provavam a +miude d'entrar na carriagem dos portuguezes, mas tudo achavam apercebido +de guisa que lhes non podiam empecer. De fórma que os castellãos tiveram +de apear e combater com armas curtas.» (F. Lopes). + +Realisava-se a previsão, e a batalha acabou por um destroço completo da +cavallaria orgulhosa. O rei de Castella fugiu nas suas andas. Toda a +bagagem do seu exercito caiu em poder dos vencedores. Eram carretas e +azemolas sem numero e dezenas de milhar de cabeças de gado. + +Como para a Europa central foi depois Azincourt, assim Aljubarrota foi +na Hespanha: o ultimo dia da cavallaria feodal, e o primeiro ensaio +d'esses combates de pé, com que dois seculos mais tarde a infanteria +castelhana de Carlos V havia de conquistar a Europa. + +A Edade-média portugueza acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira +epoca da nação, com o periodo da sua formação trabalhosa e lenta. Novos +horizontes, vastas ambições, pensamentos ainda inconscientes de um largo +futuro, amadurecem encobertos, no seio da nação, formada, acclamada, +baptizada em sangue. Chama-a de longe um dubio tentador--o Mar! + + [52] V. _As raças humanas_, I, pp. XXXI-III. + + [53] Curiosa coincidencia a repetição d'esta scena em 1834 na + guerra civil: (_Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 371). + + D. Pedro vae + D. Pedro vem, + Mas não entra + Em Santarem! + + O estribilho do tempo de D. Fernando acabava--_de Lisboa + a Santarem_. + + [54] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 291. + + [55] V. _Instit. primit._, p. 157. + + [56] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) a pp. 118-21 os + quadros dos estados peninsulares. + + [57] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.), pp. 13-20. + + * * * * * + + + + +LIVRO TERCEIRO + +A CONQUISTA DO MAR TENEBROSO + +(DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500) + + + ... quantas vezes estive mettido de baxo das bravas ondas por saber + o fundo das barras e para que parte endereçavam os canais, e entrada + dos rios até então nunqua lavrados cubertos de bravo mato; e asi + mesmo que para alcansar a verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e + remansos de rios, surgidouros de portos, abriguo de enseadas, + deferença das agulhas, altura das cidades, e fazer tavoas de cada + lugar e rio em que se contem a mostra da terra, baxos, restingas, + rotas, e como se devem de entrar, perdi muita parte da saude e + disposição natural. + + DOM JOHAM DE CASTRO, _Primeiro roteiro da costa da India._ + + * * * * * + + + + +I + +O Infante D. Henrique + + +Desde o miado do XII seculo que se propagára na Europa a noticia da +existencia de um imperio christão no extremo Oriente. O nuncio da Egreja +da Armenia falára ao papa (Eugenio III) em um principe, chamado João, +cujos dominios estavam situados para além da Armenia e da Persia, e que +reunia ao Imperio o sacerdocio: era um papa do extremo Oriente, e fizera +numerosas conquistas, o Preste-Joham.[58] Esta lenda, espalhada na +Europa, excitava tanto mais a pia curiosidade dos christãos, quanto +essas distantes regiões se pintavam como paraizos carregados de ouro e +encantos. + +Durante a Edade-média, vogavam tambem extravagantes lendas ácerca do +Atlantico.[59] As tradições obliteradas pela ignorancia davam caracteres +phantasticos ás antigas viagens dos carthaginezes ao longo das costas +d'Africa, e ás ilhas do mar atlantico.[60] Esse infinito de aguas, onde +mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de monstros e sombras +extravagantes; era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que nas suas +barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas +costas da França, foram caindo para o sul; e já no XV seculo tinham +chegado ás Canarias, já commerciavam ao longo da costa africana, para +cima do cabo Bojador, onde tambem, por terra, chegavam os berberes de +Marrocos.[61] + +As tradições dos geographos antigos, idealisadas pela imaginação bretan, +tinham dado logar á formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era +um oceano de luz, semeado de ilhas verdes onde havia cidades com +muralhas de ouro resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens +estava o paraizo terreal. Para os geographos arabes, menos fecundos em +phantasias, o mar tenebroso era uma vasta e infinita campina, a acabar +n'um cahos de nevoeiros e vapores aquosos; e, «ainda que os mareantes, +diz Ibn-Khaldún, conheçam os rumos dos ventos, não havendo, para além, +paiz algum habitado, perder-se-hão irremediavelmente, porque o limite do +oceano não é outro, senão o proprio oceano». + +Além d'estas tentações maritimas, havia a ambição do Oriente e do seu +commercio, accendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais +particularmente na Hespanha, pelo contacto intimo em que a occupação +arabe a puzera com os monopolisadores d'esse commercio, durante a +Edade-média. Hormuz[62] era o emporio mercantil de todos os mercadas do +oceano indico. D'ahi as carregações se dirigiam para a Europa e para a +Asia do norte, seguindo derrotas diversas. As da Asia iam em cáfilas, +caminho da Armenia, por Trebizonda, engolphar-se na Tartaria; as da +Europa, ou vinham por mar a Suês, e d'ahi em caravanas, pelo Cairo, a +Alexandria, ou seguiam por terra o valle do Euphrates a Bagdad, passando +em Damasco, no seu caminho de Beirut, sobre o Mediterraneo. + +Tinha, porém, no começo do XV seculo, a empreza encetada com tamanho +vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de +chegar por mar--como veiu a chegar-se--ao imperio do Preste-Joham das +Indias? Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das +ilhas de que havia uma noticia mais ou menos vaga; reconhecer e ir +occupando gradualmente a costa occidental da Africa--parecem ter sido +emprezas ainda não ligadas n'esse tempo com a da viagem aos reinos do +Preste-Joham. Esta viagem, comtudo, não occupava menos o espirito do +principe, que pensava leval-a a cabo por um caminho differente: por +terra. A conquista de Ceuta prende-se directa e principalmente a este +pensamento. Architectos arabes da Hespanha tinham ido pelo interior da +Africa até Timboktu, cujos palacios rivalizavam com os de Cordova ou de +Granada. Ceuta era a chave maritima do imperio de Marrocos; e, +porventura, atravez da Africa se poderia chegar ao dourado Oriente. Em +todo o caso a terra offerecia um campo de exploração mais definido do +que esse mar incognito, infinito, cheio de trevas. + +No ambicioso espirito do infante, cabiam as duas emprezas: conquistar o +imperio marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o +monopolio do commercio do Sudão;[63] e ao mesmo tempo conquistar ás +trevas as ilhas d'esse mar desconhecido, seguindo tambem o longo das +costas occidentaes para as visitar e explorar. Tenaz e até duro de +caracter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empreza: nem +o dobram as lagrimas do irmão infeliz sacrificado em Tanger, nem as +supplicas do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto +em Alfarrobeira. Ás conquistas da Africa immola os dois principes; ás +navegações os seus ocios, as rendas da Ordem de Christo, e as vidas +obscuras dos muitos que morreram ao longo das costas, ou na vasta +amplidão dos mares terriveis. Dominado por um grande pensamento, é +deshumano, como quasi todos os grandes-homens; mas, no limitado numero +dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do primeiro +Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o imperio ephemero +do Oriente: entre ambos, D. Henrique foi o heroe pertinaz e duro, a cuja +força Portugal deveu a honra de preceder as nações da Europa na obra do +reconhecimento e vassallagem de todo o globo. + + * * * * * + +A candida nobreza de Nunalvares, a sabedoria do grão-doctor João das +Regras, a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quasi um +heroe: os seus illustres filhos fazem d'elle o mais feliz dos paes. +Ditoso homem mediocre a quem tudo favorece, deu-lhe a sorte uma esposa +virtuosa e nobre na princeza, cuja lição e cujo exemplo põem a semente +das suas grandes acções no coração dos infantes--D. Pedro, acaso o typo +mais digno de toda a historia nacional; D. Fernando, cujos meritos +desapparecem perante o do martyrio que o santificou; D. Duarte, o rei +sabio e feliz: D. Henrique, finalmente, em cujo cerebro ferviam os +destinos futuros de Portugal. É uma pleiade de homens celebres, +presidindo a uma nação constituida e robusta. Com taes elementos +consegue-se tudo no mundo. Bons guerreiros, á antiga, os infantes não se +parecem, comtudo, já com os antigos personagens. A côrte apresenta uma +phisionomia diversa: dir-se-hia uma Academia. D. Duarte occupa-se em +cousas sábias, escreve o seu _Leal conselheiro_. D. Pedro, cujas +dilatadas viagens chegaram a formar lenda, traz comsigo vasta lição, +muitos livros, cartas, conhecimentos; a litteratura e a geographia +occupam-no por egual, e tambem escreve: dedica ao irmão primogenito o +seu tratado da _Virtuosa benfeitoria_. Á noute, nos serões, lêem-se, +_pouco, passo, e bem apontado_, como D. Duarte manda na sua obra, as +historias seductoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é uma côrte +da Edade-média, é já uma côrte da Renascença, cheia de idéas novas e de +uma cultura eminente. A educação transforma a politica, e as theorias +monarchicas da Italia são applaudidas e adoptadas. Bole-se na +legislação, limitam-se os privilegios aristocraticos e burguezes, +adianta-se a obra da unidade organica do corpo nacional. Os principes, +valentes e sabios, são estadistas, no moderno sentido da palavra; e o +rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nunalvares, ás lições de +João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe +mostram, com os livros e os mappas, a conveniencia de ir tomar +Ceuta--primeiro acto de uma longa e ambiciosa historia que desenrolavam +perante os ouvidos soffregos do antigo Mestre de Aviz. A rainha, +orgulhosa nos filhos, approva tanto, que, já moribunda, ainda obriga o +marido a partir. D. João I, passivo agora e sempre, obedece; e, do +principio ao fim da sua fecunda existencia, parece fadado a ornar-se com +os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara que outro semeou. Tinha +porém a habilidade propria dos homens de juizo--a de pesar, vêr, e +julgar com rectidão. + + * * * * * + +Os planos de D. Henrique mereciam a plena approvação do rei, que lhe +dava ampla liberdade para proseguir; e até o incitaria, se o infante +carecesse de estimulo. Já no proprio anno de Ceuta. D. Henrique fizera +uma primeira tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa +da Africa. + +Terminada a empreza de Ceuta, poz decididamente mãos á obra, e +estabeleceu-se em Sagres. Era uma lingua de rocha cravada nas ondas e +acoitada pelas ventanias do noroeste. Estava-se alli como a bordo; e a +academia do infante parecia uma náu, em que vogavam os destinos ainda +ignotos da nação. Os antigos tinham chamado _sacrum_, sagrado, a esse +promontorio, e o nome de agora tambem traduzia, no pensamento e na +linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no XV seculo, como fôra +nos velhos tempos, o pedestal de um templo. Acreditavam os antigos +celtas, do Guadiana espalhados até á costa,[64] que no templo circular +do promontorio sacro, se reuniam ás noutes os deuses, em mysteriosas +conversas com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho +dos homens para os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas +erguiam em Sagres um novo templo, onde tambem ás noutes, não deuses, mas +homens, se entretinham em falas com os ignotos mares, com as regiões +desconhecidas. O espirito era o mesmo, a religião era outra:--era a da +Renascença--a sciencia, a tentação irresistivel que arrastava os homens +para a natureza; que os fazia extenuarem-se a desflorar a virgindade dos +mares, a interrogar a mudez das noutes, na sua ancia de saber, de +dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes +estive mettido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e +para que parte endereçavam os canaes!» + +Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a +cosmographia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens +o manuscripto das peregrinações de Marco Paolo. Esses livros, os mappas +de Valseca, as narrativas e roteiros dos pilotos, as rudes cartas +maritimas, faziam vergar as mesas, a que o infante, tendo ao lado o seu +cosmographo, Jayme de Mayorca, então celebre, rodeado de discipulos, +passava os dias a discorrer, as noutes a interrogar, silenciosamente, os +enygmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo Lullio, entre as +drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o principio +da vida, os corpos simples ou elementares da materia para obter o +segredo da existencia physica e organica: assim o infante procurava +desvendar os segredos das ilhas e dos continentes, dos golphos e +enseadas, velados pelo manto azul-negro do Mar Tenebroso. + +Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa +tenaz curiosidade scientifica, differia essencialmente do mysticismo +religioso da Edade-média, eivado de phantasias kabbalisticas, e da +ingenuidade das mythogenias primitivas. O homem já preferia a sciencia á +imaginação: rejeitava as fabulas, e confiava tudo aos processos e aos +meios positivos. «Ora manifesto é, diz, um seculo depois, Pedro Nunes, +que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram +indo a acertar; mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos +de instrumentos e regras de astrologia e geographia, que são as cousas +de que os cosmographos hão de andar apercebidos. Levavam cartas mui +particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não +tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A +bussola, o astrolabio e o quadrante já guiavam as expedições maritimas +enviadas annualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a +descer a costa para o sul. Porto-Santo, a Madeira e os Açores foram por +esta fórma arrancadas ás trevas do mar.[65] Mas, apesar das +successivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador, +limite extremo até onde a costa era conhecida: havia doze annos que os +navios iam e voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a +um muro de terrores phantasticos. + +Gil Eannes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo +não acabava alli, sabia-se já; mas seria possivel ir além d'esse +_finis-terrae_ da Africa? Gil Eannes voltou para responder +affirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram +seguindo, costa abaixo, por Cabo-Verde, a Guiné, onde, cheios de +satisfação, os mareantes aprisionam os primeiros negros--os azenegues do +Senegal.[66] + +Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os +haviam de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensiveis, o +dilatado das viagens, sem consequencias fecundas, esfriavam nos animos o +enthusiasmo do principio. Não acabava, jámais, a costa da Africa! e o +Preste-Joham e os encantos do Oriente traduziam-se apenas pela +_malagueta_ da Guiné.[67] + +O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das +navegações. A empreza, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para +as forças da nação: não podiam ellas vencer de todo, nem o Mar, nem +Marrocos; e o que se tinha conseguido, perante os resultados praticos, +desanimava, e fazia sentir cansaço. + + * * * * * + +Antes de nos alongarmos na historia d'essa empreza, cabe-nos o dever de +registrar brevemente a da formação das forças navaes portuguezas, +indispensaveis para o emprehendimento das viagens de descoberta e das +expedições militares á costa da Berberia. + +Póde dizer-se que, até ao fim do XII seculo, não ha marinha na Hespanha +occidental. As luctas da reconquista, então feridas, eram-no por terra +exclusivamente; e a impericia maritima dos christãos, junta aos +relativos progressos dos arabes concorriam para tornar difficil a +conservação das praças litoraes conquistadas. Os primeiros dispunham +apenas de pequenas lanchas costeiras; emquanto os segundos tinham navios +regularmente armados e equipados, com que percorriam toda a costa +occidental, refrescando nos seus portos, abastecendo-os de munições e +gente quando estavam cercados, e desembarcando a miude, com o fim de +talar os campos dos christãos e captivar os tardivagos ou indefesos. Já, +porém, no XI seculo o bispo de Compostella tinha mandado vir de Genova +pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que foram ás costas do +Algarb sarraceno pagar em moeda egual antigas e grossas dividas. Os +genovezes foram os nossos mestres na arte de navegar. + +Mas desde o meiado do XII seculo o exame das armadas de Cruzados, com +cujo auxilio Lisboa e depois Alcacer foram tomadas, tinha vindo +accrescentar os conhecimentos: demonstrando ao mesmo tempo que, sem o +imperio no mar, jámais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do +reino. Á empreza de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios +portuguezes; e o que escrevemos sobre o caracter mais regular e +systematico da politica e das campanhas d'esse reinado leva-nos a crêr +que d'ahi deve datar-se a fundação da marinha militar portugueza. Com +effeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Affonso III, +como o provam as expedições maritimas que terminaram pela conquista +definitiva do Algarve, e as façanhas do lendario Fuas Roupinho. Havia +então já um corpo de tropas especiaes de embarque. + +Que eram esses navios, porém? O leitor de certo viu alguma vez, de +tarde, ao cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas +praias de Ovar ou da Povoa-de-Varzim. Viu a construcção e os typos +d'esses navios primitivos, e as pittorescas physionomias dos seus +tripulantes: eis ahi uma esquadra do XIII seculo.[68] Vel-a-ha, real e +verdadeiramente, se, com a imaginação, substituir por armas os +utensilios da pesca. E quando os barcos, encalhados na areia humida, +descarregaram--hoje o peixe, então as presas, os mantimentos e a +gente--homens e mulheres, fincadas as mãos sobre os joelhos, curvados, +com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo d'elle, +impellem-no, manobrando ao som de um canto rythmico, para o fazer rolar +sobre toros até ficar em secco, distante dos perigos das ondas. Essa +scena repetia-se para pôr a enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e +Sancho II realisou um progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas +praias de pescadores: mandou construir _debadoyras_ (cabrestantes) para +encalhar, tirados por cabos, os navios. No tempo de Affonso III já o +poder maritimo portuguez é de tal ordem, que os nossos navios vão em +soccorro a Castella, e o papa nos convida a acompanhar as gentes do +norte á Cruzada. + +O reinado de D. Diniz marca uma segunda éra na historia da marinha +nacional. Reciprocamente indispensaveis a marinha mercante e a militar, +os cuidados do rei administrador dirigem-se principalmente a fomentar a +primeira, cuja importancia o tratado de commercio, feito em 1308 com a +Inglaterra, accusa. Além d'isto o rei applica-se a melhorar o porto de +Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o contra as +dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo +pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Tambem no seu tempo, por +morte do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja familia esse cargo +andára, vem tomar o almirantado da armada portugueza o genovez Pezzagna. +Nacionalizada, a familia dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do +mar, ou almirantado, como já, á moda arabe, se dizia então. + +Os progressos realisados no XIV seculo preparam os recursos poderosos, +com que, no seguinte, o infante D. Henrique póde levar de frente as duas +emprezas a que votára a sua existencia. D. Fernando, o _amavioso_ e +infeliz rei, merece n'esta historia uma menção condigna. Apesar das +chimeras da sua politica tornarem em derrotas as suas emprezas, a +sabedoria e o alcance economico da sua legislação dão-lhe o direito de +preeminencia na historia da formação do poder naval dos portuguezes. Já +então a alfandega de Lisboa rendia, por anno, de 35 a 40 mil +dobras:[69] o que demonstra o progresso commercial do reino, +e comprova a opinião expressa no livro anterior, da deslocação do centro +de gravidade nacional do norte para o sul, e da nova phisionomia +adquirida depois do antigo caso da separação do condado portuguez do +corpo da monarchia leoneza. + +O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietarios a detenção +improductiva das terras, obrigando-os a lavral-as, ou a dal-as a quem +por elles o fizesse, era o mesmo que, n'um corpo de leis, protegia e +fomentava o commercio maritimo de Lisboa, já então uma cidade +cosmopolita. Os genovezes, os lombardos, os aragonezes, os mayorquinos, +milanezes, corsos, biscainhos, gentes de tão variadas partes--de toda a +Hespanha e das costas circum-mediterraneas--fixavam-se em Lisboa a +commerciar. Pelo Tejo saíam cada anno para cima de doze mil tonneis de +vinho, sem contar o dos navios da segunda carregação, em março. Os +navios eram já maiores e tinham coberta. O chronista chama á capital +«grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza que se +formava para succeder á antiga; e, como nas cidades republicanas da +Italia, tambem o commercio era privilegio dos mercadores, prohibido aos +nobres e clerigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fóra do +porto-franco de Lisboa. + +O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potencia +commercial e maritima: e o que fez em favor do seu progresso demonstra a +lucidez do seu espirito. O rei em pessoa era armador e negociante de +certos generos exclusivos. Creou _bolsas_ de seguros maritimos, mutuos, +em Lisboa e no Porto, com o producto de uma taxa especial lançada sobre +o commercio, instituindo o cadastro ou estatistica naval. Reduziu a +metade os direitos de importação dos generos trazidos por navios +nacionaes, estabelecendo assim um direito differencial de bandeira, a +cuja sombra se multiplicou o numero dos navios mercantes portugueses. +Deu, aos que desejassem construil-os, a faculdade de cortar madeiras nas +mattas reaes. Isentou de direitos os materiaes de construcção naval, e +os navios construidos fóra, por conta de nacionaes: e o mesmo concedeu á +exportação dos generos do primeiro carregamento de navios novos. Por +sobre esta protecção efficaz e energica, emprestava ainda aos armadores +capitaes para commerciarem, ficando interessado com elles no dizimo dos +lucros, que se liquidavam duas vezes ao anno. + +N'outro logar dissemos que o governo de D. Fernando fôra um cesarísmo, e +com effeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento +material da nação, na violencia das medidas de salvação publica, na +desordem dos costumes da côrte, e no caracter bondoso e ingenuamente +devasso do rei. Este Cesar do fim da Edade-média preparava o caminho á +nação, cuja vida brilhante de dois seculos, afastada da estrada +ordinaria da agricultura e da industria, ia ser a vida de uma Roma +imperial, de uma Carthago, de uma Veneza: metropole acanhada de um +imperio colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento +individual dos governantes autocratas, mais do que á força espontanea de +um espirito nacional, ao machinismo activo de um systema de instituições +e classes, organicamente construido e funccionando normalmente. De todos +os fundadores do Portugal maritimo D. Fernando é o maior; e se as +queixas formuladas, ao decair do XVI seculo, contra os que afastaram os +portuguezes do arado para o leme, do campo para o mar, teem razão +absoluta--a sabedoria de D. Fernando foi como o peior dos erros. Camões +fulminava, pela bocca do velho do Restello, os que arrastavam Portugal +para o mar; como Plutarcho tambem condemnou Themistocles por ter lançado +os athenienses no caminho das emprezas maritimas. + +Mas esses lamentos do espirito utilitario, se teem um cunho de verdade +positiva, teem tambem um escasso merecimento historico. Não tivesse a +Grecia sido colonisadora e maritima, e a sua voz educadora jámais se +teria ouvido no mundo. Outrotanto diremos de nós. Não tivessemos +alargado pelo mar um nome sem razão de ser na Europa, e, jungidos á +Galliza virente e á Castella farta, teriamos tido menos fome e menos +dôres, menos miserias decerto, mas nenhuma honra, tambem, na historia. O +proprio nome de Portugal não teria existido, senão como lembrança +erudita de um certo condado, que, nas mãos de principes astutos e +atrevidos, conseguira viver alguns seculos separado do corpo da nação +hespanhola. + +Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto. +Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações, +differe de absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer +as necessidades organicas. Além d'isto, o destino, fatalidade, +providencia, determinação, ou como se queira dizer--traduzido com as +successivas palavras, antigas, actuaes ou futuras, um mysterio +eterno--elege ou condemna--escolham tambem os sectarios entre as duas +expressões--os homens e as nações a uma determinada obra. Nós fomos +elegidos ou condemnados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que +o enchia de vagas ambições ou de funebres terrores. + +Era este o momento opportuno de dizermos todo o nosso pensamento ácerca +da empreza nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver +melhor chamar-lhe. A viagem das Indias, que vamos contar--descrevendo +previamente a derrota, por Ceuta e Tanger, e, no reino, pela +consolidação do poder cesarêo dos reis--necessitava ser julgada: agora +que, ainda no molhe os tripulantes, sobre a amarra os navios, se não +desferrou o panno, nem se deram as salvas da partida. + +Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D. +Fernando. Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam +tambem a marinha de guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372) +era, no dizer do chronista, _formosa campanha de ver_. Mice Lançarote +Peçanha, da linhagem do genovez, ia de almirante; e o cosmopolitismo da +nova patria portugueza vê-se bem no nome dos capitães: um João Focin +castelhano, um Badasal de Spinola, um Brancaleon. Como Roma, Lisboa +recebia no seu seio e nacionalisava gentes de toda a parte; e d'este +agglomerado de caracteres, naturalmente inorganico, sairá, no momento +culminante do XVI seculo, um espirito superior ao espirito +nacional-natural e a noção de uma patria moral ou ideal, como foi a +patria de Virgilio. + +A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta náus redondas, +afóra as que vieram _per ella da costa do mar_. Vinte e tres mezes teve +bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quasi tão +poderosa como esta, foi ainda ao Mediterraneo, na seguinte guerra de +Castella, para soffrer o desastre de Saltes (1381) consequencia da +temeridade do fanfarrão Affonso Tello. + +Agora, fundeada no Tejo, a armada, espera o rei e os principes para ir +conquistar Ceuta, em Africa. + + [58] V. _As raças humanas_, I, pp. 96-9. + + [59] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-VIII e + _Elem. de Anthropol._ (3.ª ed.) pp. 126-7 e 215-17. + + [60] V. _As raças humanas_, liv. IV, 2. + + [61] _Ibid._, pp. 111-18. + + [62] Seguiremos em geral a orthographia de Kiepert nos seus Atlas, + com referencia aos nomes geographicos do Oriente, traduzidos + nas nossas chronicas pelo ouvido dos soldados da India. + + [63] V. _As raças humanas_, I, pp, 94-6 e _O Brazil e as colon. + port._, (2.ª ed.), pp. 244-8. + + [64] V. _As raças humanas_, I, p. 184. + + [65] V. A chronologia particular das viagens de descoberta no + _Brazil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 2-3. + + [66] V. _As raças humanas_, I, pp. 116-7. + + [67] V. _O Brazil e as colon. port._, (2.ª ed.), pp. 14-5. + + [68] V. no _Regimen das riquezas_, pp. 81-8, a evolução dos + vehiculos maritimos. + + [69] A dobra continha 4 libras e 2 soldos; 50 dobras compunha o + marco de ouro cojo valor moderno é de 120$000 rs; a dobra + equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da Alfandega a de + 84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o chronista, + «400 a 500 navios de carregação» e em Sacavem e no Montijo, + a carga do vinho e do sal, 60 ou 70 em cada logar, suppondo + que esses navios se substituissem quatro vezes, fazendo quatro + viagens n'um anno, e sabendo nós que a sua lotação média + regularia por 100 toneladas--vemos que o movimento do porto + attingia mais de 200:000 toneladas de generos diversos. + Comparando-a com o rendimento da alfandega, faremos idéa + do grau de franquia do porto. + + * * * * * + + + + +II + +Portugal em Africa + + +Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento +de monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda, +com a peste, a rainha D. Philippa. Ninguem pozera na empreza melhor amor +do que ella: mandára fazer tres espadas cravadas de pedraria para os +filhos, que em Ceuta haviam de ser armados cavalleiros; mas o destino +não lhe consentiu vêr terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham +acabado de arrancar das paredes do convento de Odivellas os pannos de dó +do enterro, quando a armada partia. Morrera a 20; são hoje 25 do mez de +julho de 1415. + +As pazes celebradas com Castella no anno anterior tinham dado o socego a +uma côrte onde fervia o desejo de praticar grandes cousas. Diz-se que o +rei pensára em abrir em Lisboa um torneio de um anno, onde viriam os +mais celebres cavalleiros da Europa medir-se com os portuguezes; mas +esse plano extravagante foi substituido pelo projecto mais sensato de ir +a Ceuta. Para não prevenir os inimigos, conservára-se um segredo +absoluto sobre o destino da grossa frota que se reunia em Lisboa. Todos +temiam: o aragonez, e principalmente o mouro de Granada. Vinham de +varias partes soldados e navios. D. Duarte apparelhára em Lisboa oito +galeões, e D. Henrique tinha chegado do Porto com uma divisão de +cincoenta e dois navios de toda a classe. Havia inglezes, francezes e +allemães na armada, que, depois de inteiramente reunida, contava 33 +galeões grandes, 27 menores, de tres bancos de remeiros, 32 galeras e +120 fustas, transportes, e outros vasos secundarios. Iam embarcados +cincoenta mil homens. + +Ao passarem á vista do cabo de S. Vicente os navios baixaram as velas +_por razam das reliquias que ali havia_. Ainda em Sagres não existia ao +tempo a eschola do infante, mas o preito dado ao logar sagrado para +muitos parecerá symbolico. Era esta a primeira grande empreza maritima +de Portugal; ou antes e melhor, era a primeira vez que as esquadras +portuguezas saíam de Lisboa com o fito de alargar o reino para além do +mar. Inexperientes ainda os pilotos, as correntes do estreito dispersam +a poderosa armada, parte da qual é arrastada até Malaga, indo o resto +fundear em Ceuta. + +Não nos permittem as proporções d'esta obra narrar todas as batalhas e +cercos, nem isso importa; pois que, salvas excepções que temos tomado em +conta, todos se parecem entre si. Nenhum caracter novo, nem particular, +apresentou a tomada da cidade que, colhida de improviso, não pôde +resistir. Os moradores abandonaram-na depois de um combate em que +obtiveram a prova da inutilidade da defeza; e os christãos saquearam a +cidade deserta, arrancando as columnas de alabastro, os marmores das +portas e janellas, os tectos lavrados em paineis dourados, dos palacios +da opulenta Ceuta. Emquanto a turba dos soldados se espalhava pelos +meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os fugitivos, de +longe, sobre as collinas, bradavam desesperados e miseraveis n'um triste +clamor de perdidos. Ficavam-lhes além, dentro dos muros da cidade +tomada, afóra tudo o que possuiam, os cadaveres insepultos dos muitos +que na vespera tinham morrido no combate. + +Ceuta era portugueza; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam +desde logo para solemnisar a sagração da mesquita dos infieis. O infante +D. Henrique, principal author, denodado executor da empreza, recebeu o +titulo de duque, novo então em Portugal. Todos os tres irmãos foram +armados cavalleiros. + +Que se faria porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido, +como estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos designios do +infante, ou os não approvavam. + +Ceuta guardou-se como principio de mais dilatadas emprezas. + + * * * * * + +Vinte annos decorridos--em que o infante se déra principalmente aos seus +trabalhos de Sagres,--e vendo acaso que as descobertas das ilhas do +Atlantico não valiam assaz perante os sonhos da sua ambição, e que ao +longo de Africa pouco se adiantou por mar, torna a preoccupal-o a idea +das conquistas marroquinas, desde tempo postas de parte. A Atlantida +mysteriosa teimava em não apparecer; ou reduzia-se afinal á Madeira, ou +ao archipelago açoriano, onde não havia, nem encantos, nem muralhas +d'ouro, nem estranhas gentes: só desertos cerrados de florestas, bravios +de abrir, e pouco remuneradores. O reino encantado do Preste-Joham +fugiria deante dos navios aventureiros, como uma miragem enganadora? + +Já D. João I morrera a este tempo, e governava o reino o bom, infeliz D. +Duarte. O ambicioso irmão levou-o a emprehender a conquista de Tanger, +depois de ter convencido a que o acompanhasse o infante D. Fernando. O +rei, ou approvou, ou não teve energia bastante para se oppôr á temeraria +empreza. No conselho em que ella se debateu, porém, o outro irmão, D. +Pedro--cuja sensatez parece tel-o já a esta epocha afastado de uma +côrte, onde a irrequieta ambição de D. Henrique governava--observa que +tudo falta, para esperar um bom exito. Não havia dinheiro para custear o +exercito, e, sem grande cargo de sua consciencia, o rei não o podia +tomar aos povos. Mudar a moeda (enfraquecel-a) em proveito proprio, não +o devia: fallece-vos o principal cimento da passagem! Posto que Tanger +se tomasse, e Arzilla, e Azamor, que se lhes faria? Do reino, despovoado +e mingoado, era loucura enviar gente a guarnecel-as: seria trocar boa +capa por mau capello, perder Portugal sem por isso ganhar a Africa. O +exemplo dos castelhanos não colhia, porque dispunham de mais vastos +recursos.--O infante vira muito mundo, e aprendera a medir pelo seu +justo peso a importancia limitada da nação. A ignorancia, mãe de todas +as temeridades e audacias, não o cegava. + +D. Henrique, pertinaz, decidido e, por sobre isso, violento e sem +carinho, não perdoou decerto a sabia prudencia com que o irmão se +oppunha aos seus designios. As relações de ambos, já frias, azedaram-se +talvez; e porventura aqui esteja o motivo da indifferença com que D. +Henrique ouviu os rogos do irmão, quando mais tarde lhe pedia que o +servisse perante o sobrinho, Affonso V--indifferença que decerto +concorreu para a morte de D. Pedro em Alfarrobeira, se porventura a não +causou. + +As advertencias do principe no conselho eram tanto mais graves, quanto +os seus argumentos eram absolutamente fundados, positivos; e grandes os +creditos da sua opinião, merecido o respeito que todos tributavam ao seu +caracter. Por isso, apesar da nenhuma brecha que os argumentos, por via +de regra, fazem nas teimas, o rei (ou D. Henrique) julgou necessario +escudar-se com o parecer do papa. Consultou-se, pois, Roma; e a +resposta, que de lá veiu honra o nome do que a deu: «Se as terras foram +christans e ha templos convertidos em mesquitas, a guerra é santa; se o +não foram, deve distinguir-se: são visinhos incommodos e põem em perigo +os christãos? admoestem-se, ameacem-se e só em ultimo caso se recorra ás +armas. Não é este, porém, o caso? então, deixem-nos em paz, porque a +terra e a abundancia d'ella é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os +bons e os maus, e dá de comer a todas as aves do céu.» + +Esta ultima das tres hypotheses indicadas pelo papa era a verdadeira, o +que não impediu o infante de proseguir na sua teima. «A gente do reino +havia esta ida por tão pesada, que a mais d'ella preferia pagar as +multas (impostas aos refractarios ao alistamento) a arriscar as vidas.» +Nem as multas, nem o dinheiro do rei, nem os emprestimos, bastavam, +porém, para supprir o orçamento da armada; e por isso lançou-se mão dos +bens dos orfãos. Porém, apesar de tudo, dos 14:000 homens com que se +contava para a ida, apenas 6:000 se conseguiu reunir. + +Partiram, afinal, os dois irmãos; mas logo um mau agoiro entristeceu os +soldados: o vento despedaçou a bandeira do infante, quando a +desfraldava. Essa bandeira, sobre que o mouro havia de cuspir affrontas, +ia já rota de Portugal... + +O resultado correspondeu ás previsões geraes: depois de batida, a +expedição portugueza teve de capitular sob os muros do Tanger (1437), +deixando D. Fernando em refens de Ceuta, que era o preço da liberdade do +exercito. Tristes lagrimas de desespero orvalharam então as areias da +costa africana: não seriam as ultimas, nem as mais copiosas. D. Henrique +voltava com as reliquias da sua expedição, deixando o irmão preso. «Que +el-rey se lembre de mim... roguem por minha alma, que é a ultima vez que +nos veremos!» dizia o infeliz ao despedir-se, em lagrimas. D'alli os +mouros levaram-no a Fez. Ia como Isaac para o altar, ou como Jesus para +o Calvario. Conduziram-no montado n'um sendeiro mui magro, desferrado, +tendo por freio umas tamiças, a sella esfarrapada, os arções +despregados. Deram-lhe tambem uma canna, para guiar a azemola. Atraz +d'elle iam os outros prisioneiros amarrados sobre as bestas de carga. A +gente acudia ao caminho de Fez, chamada pelo pregão: «Venham vêr o rei +dos christãos!» E os apupos, as pedradas, os escarros, caíam sobre os +infelizes, chouteando, na sua paixão, esmagados por um sol abrazador. +Uns, com os apupos, remordiam-se colericos; o infante, submisso e +conformado, lembrava-se de que outro tanto, e mais ainda, soffrera Jesus +por elle. Antes, porém, ser de uma vez crucificado, do que acabar +lentamente nas lobregas estrebarias de Fez, varrendo as immundicies, +comido de bichos, devorado de febres, porque nem a lentidão do martyrio +lhe poupou o cadaver aos insultos da turba. Pendurado nú, pelos pés, nas +ameias da cidade, foi a sorte que lhe deram. Antes, pregado na cruz, +tivesse expirado como Christo. O pobre infante é o primeiro martyr da +nossa epopêa; e se nos honramos do muito que fizemos, é agora o momento +de deixar aqui uma lagrima de saudade e pena por esse infeliz precursor +do nosso imperio! + + * * * * * + +De volta ao reino, e salvo, D. Henrique oppoz-se decididamente á entrega +de Ceuta. O rei, lavado em lagrimas pela sorte do irmão, morreu logo no +anno seguinte, triste e taciturno. Com a deshumanidade de um apostolo, +D. Henrique sacrificava tudo e todos á sua fé. Por cousa nenhuma +consentiria que se entregasse Ceuta: e os reinos do Preste-Johan? e o +imperio do Oriente? Homens, familia, palavra, tudo era vão, diante +d'essa miragem que, desde tantos annos, lhe punha a cabeça em delirio. + +Com o seu braço conquistára Ceuta: arrastára a Tanger o irmão; deixára-o +lá perdido, nas mãos féras dos inimigos: tudo isto eram holocaustos no +altar da sua idéa. Quem sabe se elle mesmo não choraria a sós a +crueldade do seu destino, e a desgraça do irmão que levára ao cepo do +sacrificio? Não é, comtudo, provavel. Pelo menos, a impressão que o +leitor d'estas historias recebe da narração dos seus actos consecutivos, +é a de que no caracter do infante não primava a humanidade. + +Voltou a encerrar-se em Sagres, com os seus livros, os seus mappas, os +seus cosmographos e mareantes: voltou a olhar para o mar--pois que, por +largos annos, para sempre talvez! estava perdida metade da sua empreza. +Os seus navegadores iam vogando e _resgatando_[70] ao longo +da costa da Africa: e as ilhas dos Açores iam successivamente saindo dos +arcanos do Mar Tenebroso. O papa (Nicolau V) dava-lhe o senhorio e +dominio sobre todas as descobertas na Africa (1454): e o infante, no +meio das contrariedades, não desanimava na sua fé. + +Entretanto o reino passára, das mãos da rainha viuva, para as do infante +D. Pedro (1438) e d'estas, finalmente, para as de Affonso V (1446); +entretanto miseraveis intrigas, a que D. Henrique não quiz oppor-se para +salvar o irmão que lh'o pedia, tinham levado á desgraça de Alfarrobeira +(1449); e o infante, com a influencia que exercia no curto espirito do +sobrinho, facilmente o decide a lançar-se nas aventuras africanas: já +morrera D. Pedro, para vir repetir o que dissera nas vesperas de Tanger. +Quando, em 1460, morreu D. Henrique, esse principe tão funesto aos seus, +mas tão proveitoso para o reino, já Affonso V tinha conseguido tomar +Alcacer-Seguer (1458). Dez annos depois, a conquista de Arzilla importa +a rendição de Tanger. O dominio portuguez na costa de Marrocos chegava +ao apogeu; mas qual era o resultado d'essas emprezas? Vinha por ahi a +Portugal o commercio das Indias, como D. Henrique pensára? Não. +Monopolisado pelos arabes no Oriente, logo que Ceuta foi para elles +perdida, desviou-se para outros portos do Mediterraneo. Varrida essa +illusão, que restava? Uma serie de praças fortes, eschola de soldados, +fonte de permanentes conflictos, esteril em proventos, pasto para a van +necessidade batalhadora da nação: precipicio aberto, que ia tragando, +improficua e ingloriamente, muitas forças vivas do paiz. A opinião do +sabio principe D. Pedro era absolutamente verdadeira: nós não tinhamos +recursos, no reino pequeno e pobre de gente, para povoar Marrocos; e +mudar parte de uma população escassa, de Portugal para a Africa, era +trocar «uma boa capa, por um mau capello». Á conquista de Ceuta movera +ainda uma illusão: mas agora, varrida ella, as campanhas de Africa eram +uma serie de emprezas quixotescas, que viriam a terminar pela doidice +varrida de D. Sebastião. + +Contra uma opinião muito acceite, nós pensamos, pois, que a decisão de +D. João III, abandonando as praças africanas, só peccou por serodia; e +que Portugal nada tinha a esperar do seu dominio na Barberia--desde que +o destino o levava para o Oriente, e desde que era manifestamente +provado não poder chegar-se lá por via de Marrocos. Incidente na nossa +vida nacional, o dominio portuguez das praças do litoral d'Africa é +apenas um episodio da grande historia das descobertas e conquistas +ultramarinas; e o seu melhor merecimento foi de servir de eschola para +os guerreiros da India, de posto de acclimação--como hoje Malta ou +Gibraltar, para os inglezes. Para padrão das façanhas de Affonso V e das +lançadas de Lopo Barriga, não valia a pena que custou, ainda quando não +fosse a causa da final catastrophe de D. Sebastião. + + [70] _Regime das Riquezas_, pp. 92 e 107-9. + + * * * * * + + + + +III + +O principe perfeito + + +Perfeito não quer dizer sem nodoa, mas sim acabado, completo; não tem +aqui uma significação moral, tem um valor politico. D. João II é um +exemplar _perfeito_ do genero dos principes da Renascença, para quem +Machiavel escreveu (um pouco depois) o cathecismo: é um mestre da +moderna arte de reinar. + +O exemplo mesquinho da pessoa do antecessor e pae, Affonso V, as +desordens do reino e a fraqueza do rei, tinham educado o espirito agudo +e observador do moço principe. + +A tragedia de Alfarrobeira (1449) começára com um crime o espectaculoso +mas triste reinado do _africano_; e o epitheto dado ao rei ajudou a +formar a tradição de um homem cheio de valor e tenacidade, coisa que o +pobre Affonso V jámais foi. Combater com denodo, n'um momento de furia, +era uma qualidade commum que lhe não faltava; mas d'ahi ao valor +consummado vae uma distancia enorme. O grande defeito da sua mocidade +fôra a facilidade com que se deixava lisongear. Tutelado na sua +menoridade, pela mãe primeiro, pelo tio e sogro depois, o pobre rei +soffreu as consequencias communs a quasi todos os principes, como elle +acclamados em creanças. Em volta do rei, pupillo de futuro imperante, +formou-se um partido de adversarios da regencia, ambiciosos a quem não +satisfazia o juizo do infante D. Pedro, cheios de esperanças na +liberalidade e no caracter desegual do moço rei. Exploravam-lhe as +fraquezas, açulando-lhe os odios nos momentos de colera, distrahindo-o +com facecias e ditos nas horas de abatimento, gabando-lhe tudo: os +arremeços e as cobardias, a brandura e a colera, como aduladores de +officio. Da insensatez do rei esperavam colher uma farta ração de +beneficios e presentes. Apesar de o infante já ter feito entrega da +regencia, temiam-no ainda sobremaneira, e não cessavam de o malquistar +no animo do sobrinho e genro. D. Pedro em vão instava com o irmão, D. +Henrique, para que desmanchasse essas perfidias. Aborrecido de viver, +desejoso de deixar o mundo, o ex-regente via que tudo se conspirava para +o perder. «Era grande principe, de grande conselho, prudente, de viva +memoria, bem latinado, e assaz mixtico em sciencias e doutrinas de +letras, e dado muito ao estudo.» Era um dos poucos, a quem a sabedoria +tornára realmente bons. + +Os seus brios offendidos, a perfidia dos validos, o tonto desvairamento +do rei, levaram ao encontro de Alfarrobeira, quando o principe vinha á +côrte justificar-se das calumnias: e vinha armado, por saber que no +caminho o esperavam para o matar. Effectivamente o mataram, a elle, e ao +seu fiel Achates, o nobre conde de Avranches, typo de lealdade +cavalheiresca, sempre rara, e agora de todo ausente em côrtes +italianisadas. Morto o seu principe, o conde prepara-se para morrer +tambem, vingando-se: «Ó corpo! já sinto que não podes mais; tu, minha +alma, já tardas!» E com furia, defendia-se e matava. Quando por fim o +derrubaram, ferido, cruzou os braços, dizendo: «Fartar, rapazes! vingar, +vilanagem!» E morreu, trespassado de lanças. + +Livre do importuno conselheiro, Affonso V e os fidalgos da sua roda, tão +simples e estouvados como o rei, puderam abandonar-se á vontade ao +capricho das suas loucuras e batalhas. Fatigando o povo com impostos, +desbaratando com prodigalidades o patrimonio da corôa, o rei, levado +pela sua mania, sacrifica tudo ás correrias africanas, que a +decomposição interna do imperio marroquino já tornava possiveis. + +Mais de vinte annos consumiu em taes emprezas que o envelheceram. Era +corpulento, e com os annos tornára-se gordo, a ponto de não poder já +usar senão vestiduras soltas. Tinha a barba espessa, e era calvo; os +cabellos ennegreciam-lhe as mãos, as orelhas, o nariz, accusando a +vulgaridade e a violencia bravia do seu temperamento. Apesar de bem +proporcionado, era tão commum no aspecto como no espirito. Brutal e +vingativo, obtuso mas teimoso, e até cruel, a sua phisionomia reproduzia +a do commum dos homens d'armas; e imprimiu o cunho a esses guerreiros de +Africa, broncos, sem o menor requinte de perversidade fina, nem ponta de +elevação distincta: como touros que marram ás cegas e qualquer destro +bandarilheiro dóma. + +Foi isto mesmo que succedeu a Affonso V em França, onde Luiz XI se +fartou de rir do simples, illudindo-o com promessas, fatigando-o com +viagens, picando-o com ironias perdidas, carregando-lhe a nuca de +lisonjas, cumprimentos e attenções, como o bandarilheiro faz ao touro, +quando o carrega de vistosas farpas, bem aguçadas. + +Affonso V fôra a França pedir auxilio, porque o castelhano batera-o. Em +1474, Henrique IV de Castella ao morrer, deixava por herdeira D. Joanna, +a _beltraneja_ (assim os adulterios da mãe tinham denominado a filha) +confiando o governo do reino ao visinho de Portugal, e pedindo-lhe que +casasse com a sobrinha. Affonso V julgou que o reino de Castella era a +nova Africa da sua velhice, e poz-se em campo para conquistar a corôa +testada; conquistar, dizemos, porque os castelhanos invocavam contra a +_beltraneja_ os mesmos argumentos que, um seculo antes, nós invocavamos +contra a mulher de João I, D. Beatriz. Castella offerecia o throno a +Isabel, como nós o tinhamos dado ao Mestre de Aviz. + +Affonso V poz-se em campo. Já ao seu lado se via a reservada figura do +filho. Receioso das loucuras do velho, arrancára da sua fraqueza um +titulo secreto, pelo qual o rei annullava todas as doações superiores a +dez mil réis de renda que fizesse durante a guerra. O pae dava e não +dava, o filho dobrava cuidadosamente o papel, guardando-o para o futuro... + +A batalha de Toro (1476) não foi propriamente uma derrota militar, +mas foi uma derrota para o rei e para as suas ambições. O pobre +velho, gordo, estafado, sem poder comsigo, foi correndo abrigar-se +em Castro-Nuño, e deitou-se logo a dormir. Avendaño, o fidalgo do +lugar, declarára-se por elle: mas a mulher, castelhana esperta, +apontava-lhe o volume de carnes, para alli deitado a resonar +ruidosamente, como os gordos, e dizia ao marido:--«Olha lá por quem te +perdeste!»--Effectivamente o rei não valia para cousa alguma. Os +castelhanos rebeldes desde logo reconheceram o seu erro, e Affonso V +tomou a resolução de ir pedir a Luiz XI que lhe valesse. + +O principe herdeiro aprendia muito, porque observava tudo, com o seu +olhar profundo e sagaz. Deixou ir o pae, e ficando a reger o reino, +continuou, por amor da honra, mas sem calor, uma guerra que elle decerto +via não conduzir ao fim desejado. Emquanto o pae andava por fóra, +acclamaram-no, ou acclamou-se rei: diz-se que de França lhe viera uma +abdicação. Porém Affonso V, desilludido afinal, decidiu-se a voltar; e o +principe entregou-lhe immediatamente a corôa. Guardal-a, para que? Se +elle, de facto, continuava a reinar em nome do pae, desfeiteado, +vencido, quasi moribundo? Todas as maximas que Machiavel escreveu no seu +livro do _Principe_, tinha-as antecipadamente D. João II na memoria:--É +melhor ser louvado do que aborrecido, mas só quando isso não prejudica; +o bem é preferivel ao mal, quando se póde escolher entre ambos para se +conseguir um fim.--Por isso, como sabio principe, decidia-se a reinar +sob o nome do pae, já inteiramente docil e subjugado por tantas +miserias, esperando o momento proximo de outra vez tomar o nome de +rei--méra formalidade. + +No decorrer de dois annos (1479-81) a paz, negociada pelo principe +_perfeito_, fazia da _beltraneja_, encerrada n'um convento, a +_excellente-senhora_, e do rei um cadaver, afogado n'uma agonia de +afflicções pungentes. + +O filho não tinha nada dos loucos desvarios do pae, e desde logo vira o +absurdo da guerra de Castella. Seria mais nobre e cavalleiroso proseguir +valentemente na defeza dos direitos da corôa, da honra do velho, e da +vida e sorte da infeliz princeza confiada á guarda de Portugal? Seria. +Mas D. João II pensava (Machiavel) que o principe não deve preoccupar-se +com a infamia dos seus actos, quando sejam necessarios á conservação do +Estado; e que, depois de tudo bem pesado, praticar uma certa virtude +póde muitas vezes trazer a ruina, quando a infamia traria comsigo a +segurança e a fortuna. + +Este era effectivamente o caso em 1479. Dizia o principe que tempos +havia para usar de coruja, tempos para voar como falcão. Não traduzia, +porventura, com uma concisão mais eloquente, as palavras do +italiano?--«O principe deverá imitar bem os brutos (porque ha duas +maneiras de combater: com as leis e com a força; a primeira dos homens, +a segunda dos brutos) e saber empregar as artes da raposa e do leão; +pois o leão não se defende dos laços, nem a raposa dos lobos: é portanto +mistér ser raposa para conhecer as redes, e leão para assustar os +lobos.»--D. João II, menos classico ainda, recorria aos exemplos +venatorios da Edade-media; tempos havia para usar de coruja, tempos para +voar como falcão! + +Os filhos de D. João I, abrindo as portas da nação á cultura da +Renascença, chamando sabios, viajando, formando bibliothecas, tinham +lançado á terra dura do velho Portugal as sementes italianas. Affonso V +rebentára do solo como um cardo antigo, rijo e bravo, cheio de espinhos. +Fôra um aborto, ou um anachronismo medieval. D. João II nascia +italianisado, com todos os vicios e virtudes da cultura da Renascença. A +sua côrte era um retrato das pequenas côrtes de Italia; e o principe +como um italiano, cheio de perfidias e ambições, de lucidez e de manha, +de instinctos sanguinarios e fortes decisões politicas. + +Os tempos de coruja tinham acabado, porque não carecia mais de pactuar +com as tontices do pae; rei agora (1481), seria o falcão. Mas para ser +verdadeiramente rei, teria de vestir ainda muitas vezes o habito da ave +nocturna, até vêr por terra o poder d'essa fidalguia que os erros do pae +tinham ensoberbado. Isto, porém, não satisfazia ainda as suas largas +ambições. O _homem_, como Isabel de Castella o designava com espanto, +mirava mais longe. A possibilidade de vir a sentar-se, elle ou os seus +herdeiros, no throno de uma Hespanha unida, affagára-lhe o espirito em +moço, e chegou a esperar (antes de Toro) realisal-a. Depois, rechaçado, +mas não desesperado, fez de coruja em 1479; contando voar de falcão no +momento opportuno. Nem paravam ahi as suas ambições: lembrava-se do +fallecido infante D. Henrique, e dos vastos planos, abandonados, que +tinham fervido n'aquelle cerebro. A sua monarchia dilatava-se da +Hespanha á India: e com a Peninsula na Europa, com a Africa, a India, o +encantado reino do Preste-Joham, sonhou a monarchia de Philippe II... + + * * * * * + +N'uma só cousa o portuguez primava ao italiano: era sobrio, severo, +detestava o luxo--que prohibiu. A sua côrte apresentava o quer que é de +funebre e austero, sempre agradavel a portuguezes. A sua figura, tambem, +nada tinha de imponente, nem de graciosa. Os habitos de coruja davam-lhe +mais caracter do que os de falcão: ás duas aves, porém, pedia a côr que +punha em tudo, o negro. De maravilhoso engenho, subida agudeza, e +_mixtico pera todalas cousas_, de memoria viva e esperta, faltavam-lhe +porém os dotes exteriores. Não tinha elegancia, nem no corpo, nem no +dizer: arrastava as palavras, falava a custo e com uma voz fanhosa. Era +alvo, mas com umas veias de sangue que o faziam «com menencoria ser muy +temido». Inspirava medo sem infundir amor. Aos 37 annos já tinha cans na +barba o nos cabellos; só n'essa edade deixou de ser abstemio. A força +muscular, dote necessario aos principes dos bons tempos, tornava-o +celebre: cortava com um golpe de espada tres e quatro tochas de cera +reunidas. «Muy grande astucioso e acquiridor, sem deixar de ser inteiro +e dadivoso, era muy manhoso em todalas boas manhas que um principe deve +ter.» A natureza não o ajudava, decerto; e tambem, na sua educação de +principe, deixava de obedecer á regra de Machiavel: «Não é necessario +ser-se dotado de todas as qualidades, mas é indispensavel +affectal-as;--possuil-as e servir-se d'ellas póde chegar a ser perigoso: +fingil-as é sempre util;--seja-se fiel, clemente, humano, religioso e +integro; mas de modo que, senhor de si, se possa e saiba fazer todo o +contrario, quando a isso o caso obrigue.»--D. João não era, nem +clemente, nem humano, e não julgava necessario ao seu papel fingil-o: +isso fazia com que muitos o detestassem, o que era um mal: fazendo com +que, se a maior parte o temia, ninguem o amasse, o que se tornava peior +ainda. A perspicacia e authoridade não eram n'elle bastantes para que +soubesse envolvel-as n'uma simulada bonhomia, porque doçura ou +humanidade não as havia na sua alma. Não hesitava perante o assassinato, +á italiana, mas tinha a fraqueza portugueza de confessar como isso se +praticava. Lopo Vaz, a quem Affonso V fizera conde, levantou-se em Moura +defendendo o titulo revogado ou não confirmado, e o rei «por não fiar já +d'elle... determinou de o mandar matar... por certos cavalleiros que +manhosamente lá mandou e o mataram á traição, aos quaes o principe fez +boas mercês». Mas o cardeal D. Jorge da Costa, o _alpedrinha_, vendo-se +ameaçado, temeu e fugiu para Roma: o rei expozera-lhe um modo facil do +acabar com elle--mandal-o tomar por quatro moços de esporas, afogal-o em +um rio e dizer que caira e se afogára por desastre. + +Assim que o pae morreu, D. João II convocou côrtes (1482) e mostrou quem +era. Mandou examinar as jurisdições dos donatarios da corôa, +prescrevendo que os corregedores entrassem nas terras de doação no +cumprimento dos mandados regios, abolindo o direito de asylo dos +criminosos usurpado por muitos terrenos não coutados; e ao mesmo tempo +que assim coarctava as regalias historicas da nobreza, punha cobro ás +invasões anarchicas dos fidalgos no fôro dos concelhos, prohibindo o +lançamento de _pedidos_, o intrometterem-se na jurisdição do crime e nas +eleições e officios municipaes. O rei, inspirado pelas novas idéas +ácerca da authoridade soberana, começava por investir com a nobreza: +seria o successor, D. Manoel, que, reformando os foraes, atrophiaria a +outra face do systema duplo de instituições, cujo equilibrio mais ou +menos estavel formára a vida politica da Edade-media[71]. +Mas D. João II via-se tambem forçado a emendar os erros do pae, como o +segundo Affonso tivera tambem de fazer á morte de Sancho I. O moço rei +decidira formalmente revogar as doações do antecessor, reivindicar para +a corôa o que os fidalgos tinham pilhado ao pobre, gordo, Affonso V. De +todos esses fidalgos, o chefe era o poderoso duque de Bragança, cujos +dominios contavam cincoenta villas, cidades e castellos, além de +propriedades sem numero; cuja mesnada subia a 3:000 de cavallo e mais de +10:000 infantes; um rei no reino, do qual possuia, pelo menos, a terça +parte. Costumado a considerar o rei como egual, da linhagem de reis, e +herdeiro do famoso condestavel, o duque sincera e ingenuamente +acreditava na justiça da sua rebeldia. «Deservia muito grandemente o +rei, fazendo-lhe guerra calada,» e carteava-se com o conde de Athouguia, +seu tio, então em Castella, homem prudente, que buscava dissuadil-o, +respondendo-lhe em enygmas ao gosto da epocha: «Tal não deveis cuidar, +quanto mais commetter... quereis abrir uma fonte para matar vossa +sede... achareis a agua tão quente que vos hão de lá ficar as unhas... +_tradiderunt quos deligebam_.» Com effeito, era atraiçoado, e o rei +tinha os seus espiões por toda a parte. Um certo Figueiredo vinha a +escusas referir tudo a D. João II, que lhe respondia, com a sua voz +demorada, baixa e fanhosa: «Guarda-te o melhor que puderes, e depois te +farei mercê».--O espião ia e tornava, e quando, afinal, o duque foi +preso por surpresa e executado, o rei deu a mão a beijar ao Figueiredo: +«Até agora fiz que te não conhecia, d'ora avante olharei por ti. Pede o +que quizeres: ha tempos de coruja e tempos de falcão...» + +O duque foi degollado publicamente no rocio de Evora (1483), depois de +um simulacro de processo. Effectivamente, em taes causas os processos +são apenas formulas. A força impera á solta nas demandas politicas, por +isso mesmo que ellas põem em questão os fundamentos organicos da +sociedade, e portanto a lei civil. O duque e o rei eram inimigos velhos; +e aos odios antigos vinham juntar-se agora as intenções, rebeldes em um, +tyrannicas no outro. Entretanto, o caracter desnaturado da politica dos +reis na Renascença levava D. João II a representar um papel repugnante, +dando ao vencido uma palma como que de martyr; ao passo que a +sobranceria do fidalgo, quasi-rei, lhe mantinha a dignidade altiva até +sobre o cadafalso. Recusa prestar-se a responder no tribunal, a tomar +parte na comedia que o indigna; e quando os carrascos, afflictos, lhe +vestem o derradeiro trajo, uma loba roçagante, capello e carapuça de dó, +com os pollegares atados por uma fita ao cinto, elle observa +serenamente: «Soffrerei tudo, e mais um baraço ao pescoço, se S. A. +mandar!» + +A morte, tão digna, do duque de Bragança excitou ambições de vingança na +nobreza, e positivamente começou a tramar-se o assassinato do rei, que o +sabia. Os seus espiões andavam por toda a parte; e a politica dependia +das intrigas de alcova e dos serviços dos miseraveis. O rei usava de +todos os instrumentos, e o _sancta sanctis_ da razão-d'Estado absolvia-o +de todos os crimes. Havia um Tinoco, privado do bispo d'Evora, o qual +tinha por manceba uma irmã d'elle, e que por isso lhe queria muito. O +rei descobriu o caso, e comprou-o. Tinoco veiu, disfarçado em frade, a +Setubal, contar a conspiração em que o prelado estava, e de que o duque +de Vizeu era chefe; e recebeu cinco mil cruzados em ouro e um beneficio +de seiscentos mil réis, porque D. João II não regateava o preço dos bons +serviços. Estava compilada e tratada «a segunda e desleal desaventura de +que se causou a triste morte do duque de Vizeu». O rei chamou-o a +Setubal, e matou-o por suas mãos ás punhaladas. Prescindiu de processo, +mas não de um auto posthumo, com o fim de justificar o seu crime, e a +perseguição dos mais conjurados. O bispo de Evora foi mettido no fundo +de uma cisterna, em Palmella, onde com peçonha acabou a vida; os outros +foram assassinados ou justiçados, onde quer que os encontraram os +algozes do rei; e um, que conseguira fugir para França, nem por isso +escapou com vida, porque o rei mandou lá um sicario matal-o. + +O principe _perfeito_ mostrava-se consummado na arte de reinar, e +ninguem ousava já resistir-lhe. A primeira metade do seu programma +estava realisada--agora o falcão ia alargar os seus vôos amplos! + +Ninguem lhe resistia, mas no fundo da consciencia alguma cousa o +denunciava como assassino. Uma noute, em Santarem, acorda em sobresalto, +ouvindo alguem chamal-o. Quem era? Ninguem. Illusões! dizia-lhe a rainha +no leito: era _cousa má_ que andava pelos vãos dos telhados.[72] +O rei não socegava, porém, e levantou-se, vestiu um roupão, +tomou a espada e a rodela, na mão esquerda uma tocha, e viu que uma +sombra o guiava. Quem era? Abria as portas diante do rei, e mostrava-lhe +o caminho. Foram assim até aos vãos dos telhados, a sombra e o rei. Aos +gritos da rainha acudiram todos, e acharam-no no sotão, despejado, +alegre e seguro, diz o chronista mentindo palacianamente. A coruja +noctivaga perseguia o ambicioso falcão: a educação do principe não +conseguira apagar de todo a consciencia do homem. + + * * * * * + +Fernando e Isabel, de Castella, que lhe haviam tomado o pulso, ainda em +tempo do pae, admiravam-lhe muito as qualidades e tinham-no em grande +conta. Elle, nem por ter tratado as pazes de 1479, desistira dos seus +grandiosos planos. Os reis castelhanos tinham uma filha, D. João II um +filho: o casamento de ambos seria talvez um meio, mais simples e mais +rapido do que uma guerra, para dar ao herdeiro um grande throno. +Tratou-se, ajustou-se e fez-se o casamento (1490); e n'esse dia de +grandes esperanças, o rei sombrio e fanhoso quiz mostrar que tambem +sabia ser magnifico. As bodas de Evora ficaram celebres, e +principalmente o banquete, uma _kermesse_ formidanda. Na sala do jantar, +onde os noivos, o rei, e toda a côrte se achavam, appareceu uma vasta +machina: era um estrado com rodas, tendo em cima um carro com dois bois, +á canga. Os bois estavam assados inteiros, com as pontas e as patas +doiradas; e o carro carregado de carneiros tambem assados, tambem +inteiros, com as armas doiradas. Vinha um fidalgo, de aguilhada ao +hombro a dirigir o carro, e moços empurrando a machina. Deram a volta da +sala, cumprimentando o castelhano, que gabou muito a idéa; e entre os +applausos de todos, o carro saiu, e bois e carneiros foram dados ao +povo, pasmado fóra. Terminado o idyllio culinario, foram-se todos á +comida, a côrte e o povo. Nos velhos tempos do rei D. Pedro essas festas +eram uma só: o rei comia na rua entre os seus, e bailava, ao som das +_longas_, com as raparigas da rua. + +Á noute houve _mômos_, que ficaram celebres. + + + Entrou (el-rei) pelas portas da sala com nove bateis grandes, em + cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas de + panno de linho e pintadas de maneira que parecia agua. Com grande + estrondo de artilheria, que troava, e trombetas, atabales, e + menistres altas, que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de + muitos apitos de mestres, contramestres e marinheiros, vestidos de + brocados e sedas, com trajos de allemães, em bateis cheios de tochas + e muitas velas doiradas accesas, com toldos de brocado e muitas e + ricas bandeiras. + + E assim vinha uma nau á vela, cousa espantosa, com muitos homens + dentro e muitas bombardas, sem ninguem vêr o artificio como andava, + que era cousa maravilhosa. + + O toldo de brocado e as velas de tafetá branco e roxo, a cordoada de + ouro e seda, e as ancoras doiradas. E assi a nau, como os bateis, + com muitas velas de cêra douradas todas accesas, e as bandeiras e + estandartes eram das armas d'el-rey e da princeza, todas de damasco + e doiradas, e vinha diante do batel d'el-rey, que era o primeiro + sobre as ondas, um muito grande e formoso cysne com as pennas + brancas e doiradas, e apoz d'elle vinha na prôa do batel o seu + cavalleiro em pé, armado de ricas armas, e guiado d'elle, e em nome + d'el-rey saíu com sua falla e em joelhos deu á princesa um breve, + conforme sua tenção, que era querel-a servir nas festas do seu + casamento; e sobre conclusão de amores desafiou para justa de armas, + com oito mantedores, a todos os que o contrario quizessem combater. + + E por rei de armas, trombetas e officiaes para isso ordenados, se + publicou em alta voz o breve e desafio, com as condições das justas + e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia como + para quem melhor justasse. E acabado, os bateis botaram pranchas + fóra, e saiu el-rey com seus requissimos mômos, e a náu e bateis, + que enchiam toda a sala, se saíram com grandes gritos e estrondo de + artilharia, trombetas, atabales, charamellas e sacabuxas, que + parecia que a sala tremia e queria caír em terra. + + El-Rey dançou com a princeza, e os seus mantedores com damas que + tomaram, e logo veio o duque com fidalgos da sua casa, com outros + requissimos mômos. E veio outro entremez muito grande, em que vinham + muitos mômos mettidos em uma fortaleza, entre uma rocha e mata de + muitas verdes arvores e dois grandes selvagens á porta, com os quaes + um homem de armas pelejou e desbaratou, e cortou umas cadeas e + cadeados que tinham cerradas as portas do castello, que logo foram + abertas, e por uma ponte levadiça sairam muitos e mui ricos mômos; e + em se abrindo as portas, saíram de dentro tantas perdizes vivas e + outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia de aves + que andavam voando por ella até que as tomavam. E saído este grande + e custoso entremez, veiu outro em que vinham vinte fidalgos, todos + em trajos de peregrinos, com bordões dourados nas mãos, e grandes + ramaes de contas douradas ao pescoço, e seus chapeus com muitas + imagens, todos com manteos que os cobriam até ao joelho, de brocados + e por cima com remendos de veludo e setim... E assi vieram muitos e + ricos mômos que não digo... e dançaram todos até antemanhan; e foi + tamanha festa que, se não fôra vista de muitos, que ao presente são + vivos, eu a não ousara escrever. + + +O principe _perfeito_ sabia tambem ser magnifico, e qual um Medicis, no +momento opportuno. De facto, o casamento affagava-lhe as esperanças e +ambições, abrindo horizontes de novas grandezas. + +Ainda Colombo não descobrira a America, mas o futuro imperio do principe +Affonso alargava-se já por ignotas regiões. D. João II queria dar, em +troca de Castella, um bom dote ao herdeiro; queria-o, além de imperador +da Hespanha inteira, e da Italia hespanhola, imperador dos Estados +orientaes do Preste-Joham. As propostas de Colombo, apesar de recusadas, +excitavam-no; e por terra e mar enviava expedições em busca do lendario +principe. A empreza iniciada pelo infante D. Henrique proseguia nas mãos +do rei, que tomára a peito descobrir os mundos remotos. O seu poder +naval era já tão grande, que o Tejo via com pasmo o famoso galeão de mil +tonneis, monstro boiando n'agua, erriçado de canhões. Nunca os +estaleiros tinham produzido navio tão grande; nunca até ahi surgira a +idéa que o rei teve de artilhar as caravelas, dando um alcance e uma +mobilidade desconhecida aos trons do mar. No seu pensamento havia um +proposito firme de o subjugar, desvendando-o até aos seus ultimos +confins, dissipando inteiramente as trevas e mysterios das ondas. Mandou +aperfeiçoar as bussolas, desenhar cartas maritimas para orientação das +rotas; commettendo esses estudos a uma Junta em que entraram os seus +phisicos, mestre José e mestre Rodrigo, ambos judeus, com o famoso +allemão Behaim, discipulo de João Monte-Regio, que em Vienna estudára +astronomia com o celebre Purbach. Foi essa junta que inventou as taboas +da declinação do sol, permittindo aos navios alongarem-se das costas, +rumando seguros em alto mar. Traçavam-se como que estradas sobre as +ondas, estradas tão mysteriosas como as regiões da Mina, cuja navegação +costeira a astucia do rei envolvia em descripções terriveis para +afugentar rivaes--á maneira do que os phenicios tinham feito, quando os +romanos pretendiam seguil-os nas suas viagens mediterraneas.[73] +A posse dos segredos das costas e dos segredos das rotas +enchia de confiança o animo do rei no futuro grandioso do seu imperio. O +cabo da extrema Africa, limite por tanto tempo invencivel, tinha já +recebido o nome de Boa-Esperança! (1486). + +Aladas esperanças eram todas essas que o rei afagava, olhando a cabeça +do filho. N'este momento, a que podemos e devemos chamar revelador, D. +João II teve a consciencia do famoso destino que se preparava á +Hespanha: do seu imperio universal, da extraordinaria vastidão do seu +poder politico, e da sua influencia moral. Symbolisava tudo isso na +cabeça do filho amado; porque a cegueira dos homens careceu sempre das +lunetas de um symbolo para vêr de certo modo a realidade das cousas. Os +symbolos passam, as cousas ficam; e da mesma fórma os homens morrem e as +idéas vivem eternamente. E, na sua fraqueza, o espirito humano amortece, +desespera e cáe quando vê apagado ou destruido o symbolo em que para +elle estava, mesquinhamente, a realidade inteira. + +O funesto acaso da queda de um cavallo, matando o principe Affonso +(1491), foi para D. João II como o tiro do caçador, quando n'um instante +precipita, ás voltas, o passaro que de azas pandas vogava, inebriado, no +oceano do ar e da luz. O largo vôo do falcão estacou, e todas as +illusões se apagaram deante do cadaver gelado do principe, casado de um +anno. Essa vida que se finára, levava comsigo todos os sonhos doirados, +todas as esperanças, todas as chimeras! + +Foi um choro universal. «El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e +sentimento, se trosquiou. E elle e a rainha se vestiram de muito baixo +panno negro. E a princeza trosquiou os seus bellos cabellos e se vestiu +de almafega e cabeça coberta de negro vaso.» Nas exequias, os homens, as +mulheres, até as creanças, tomados de vertigem, arrancavam as barbas e +os cabellos, davam bofetadas nas faces, batiam com as cabeças nas quinas +da eça funeraria, e arranhavam o rosto a fazer sangue. O luto era geral +e desvairado. Á imitação do rei e da princeza viuva, toda a gente andava +tosquiada; o os que não podiam, por pobres, comprar o burel, que +encarecera excessivamente, adoptaram trajos extravagantes: as mulheres +vestiam as saias do avêsso, e os homens punham em cima de si os saccos +de forragens e os xaireis ou cobertas das bestas de carga. + +Este incidente imprevisto da morte do principe é um dos que obrigam a +meditar sobre o valor do acaso na historia. Tivesse-se consummado a +união dynastica de Portugal ao resto da Hespanha já unificado, e a +historia da Peninsula, a historia da Europa, seriam diversas.[74] +Que papel teria tido no mundo um imperio exclusivamente +senhor de todas as regiões descobertas? Que teria succedido, se Carlos V +e a dynastia austriaca não viessem reinar em Hespanha, pondo nas mãos de +um homem o imperio da Allemanha, da Italia e da Peninsula iberica? Acaso +a união, realisada no periodo ascencional da Hespanha, se tivesse +consolidado abafando o cristallisar da alma portugueza na éra classica e +abastardando a semente que nos deu Camões. Unido então, Portugal ficaria +como se nunca tivesse existido, por isso que não chegára ainda a +formular o seu pensamento historico, nem a consummar a sua empreza... + +D. João II, humilhado, abatido, e rapado por dó, voltou a envergar o +habito da coruja, para morrer (1495). Agonisante, mal podendo articular +já as palavras, com uma voz arrastada e fanhosa que a proximidade da +morte fazia satanica, dizia, encostando a cabeça felina sobre a mão +descamada: «Persigam-me sem dó os filhos do Bragança!» + + [71] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 137-49. + + [72] _V. Systema dos mythos relig._, p. 291. + + [73] V. _As raças humanas_, liv. IV, 3. + + [74] V. _Theoria da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, + pp. XXXII-III. + + * * * * * + + + + + IV + + Em demanda do Preste-Joham das Indias + + +No verão de 1486 tinha Bartholomeu Dias partido de Lisboa, para dobrar o +Cabo da Boa Esperança; o que de facto conseguiu, não podendo porém ir +mais ávante, porque lh'o não consentiram as tripulações assustadas. No +mesmo anno mandára o rei, por terra, para o Oriente, Antonio de Lisboa e +Pero Montaroyo, que não passaram de Jerusalem, por só ahi reconhecerem +que, não sabendo falar o arabe, não podiam intentar a viagem. + +No anno seguinte, portanto, escolhem-se dois homens que sabem arabe, +para ir por terra descobrir o Preste-Joham. A viagem por mar, ou se +abandonava por parecer impossivel, ou aprazava-se para mais tarde: +quando houvesse informações mais cabaes, colhidas nas expedições por +terra. Affonso de Payva e Pero da Covilhan partiram de Lisboa, via +Napoles, com cartas de credito sobre o principe banqueiro, Cosme de +Medicis. D'ahi os viajantes embarcam para Rhodes, depois para +Alexandria, d'onde seguiram pelo Cairo para Tur, (Tor) na praia do mar +Vermelho ao sopé do Sinai, como mercadores, acompanhando as caravanas. +De Tur foram a Aden, onde se separaram: Covilhan para a India, Payva +para Suâkin (Suaquem) na costa da Abyssinia; aprazando o encontro, á +volta, no Cairo. + +Covilhan, em Aden, embarcou para Kananor, no Malabar, e d'ahi foi a +Kalikodu (Calecut) e a Gôa. Atravessou, depois, o oceano indico, indo +parar a Sofala, onde colheu noticias sobre a costa oriental da Africa, e +sobre a ilha da Lua (Madagascar). Voltou logo ao Cairo, pressuroso de +enviar a Lisboa as importantes informações obtidas, e ahi soube da +prematura morte de Payva. Recebidas em Lisboa as cartas do viajante, D. +João II recambiou logo os arabes seus emissarios, com ordem de visitarem +Hormuz e a costa da Persia. Executada essa missão, Covilhan, cujo +primeiro dever era obter noticias do Preste-Joham, partiu para a +Abyssinia. Já por esta epocha o encantado principe que, segundo Marco +Paolo, habitava a Asia central, fôra transferido para a Nubia: e a lenda +personalisava no obscuro Negus o extravagante monarcha, tão falado e +admirado em tempos anteriores. Covilhan, de quem não houve outras +cartas, por largos annos aprendêra no Oriente a verdade; mas não podia +transmittil-a para Portugal. Preso, sem ser maltratado, favorecido e +rico pelo contrario, viveu por trinta e tres annos na Ethiopia,[75] +onde acabou. + +Se a sua viagem não saciava a curiosidade principal do monarcha +portuguez, se o Preste-Joham continuava a ser um mytho, o facto é que +mais valiosos resultados se tinham obtido. A Covilhan cabe a honra de +ter marcado o itinerario da navegação da India, affirmando que pelo sul +da Africa se chegaria ao Oriente. Nas cartas que enviou do Cairo, dizia +que os navios que navegassem ao longo da costa da Guiné, chegariam, +proseguindo, ao extremo sul do continente africano: e que, aproando ahi +para leste, em direcção da ilha da Lua, por Sofala, se encontrariam no +caminho da India. + +D'estas e das mais informações recebidas se compoz o programma da +atrevida expedição do anno de 1497, cujo destino marcado era desde logo +Kalikodu, ou Calecut, como cá lhe chamavam, e onde Covilhan estivera. +Vasco da Gama foi escolhido por D. Manuel (já a esse tempo D. João II +tinha tres annos de fallecido) para commandar a expedição. Era um homem +ousado mas prudente, e reunia ás qualidades militares as de marinheiro, +cousa então commum, e depois ainda. Succedeu o mesmo a Affonso +D'Albuquerque, a D. João de Castro, e a muitos outros; e a esta +circumstancia deve dar-se um merecido alcance. A separação das aptidões +não vinha embaraçar os planos; e havia uma unidade no mando, porque o +capitão era tambem o piloto. + +O maior juizo e prudencia dirigiam os preparos da expedição. Pesavam-se +e debatiam-se todas as noticias do Covilhan, commentando-as com os +conhecimentos anteriores. Examinavam-se os roteiros e cartas; e +Bartholomeu Dias de viva voz contava tudo o que lhe succedera, os +embaraços com que havia a luctar, as difficuldades a vencer. Com a sua +larga experiencia dirigia a construcção dos navios, banindo os exageros +nas dimensões, recommendando a solidez dos cavernames. O descobridor do +Cabo devia acompanhar a expedição até S. Jorge da Mina, e ficar ahi no +_resgate_ do ouro. Eram quatro náus pequenas, para poderem entrar em +todos os portos, visitar todas as angras, passar os baixios, ao longo +das costas. A sua construcção ia aprimorada e forte, como jámais se +vira: madeiras escolhidas, sans, e de exagerada grossura, pregadura bem +atacada, demorado e cuidadoso calafeto. As attenções não eram menores +com o equipamento: levavam tres _esquipações_ de velas armadas e mais +apparelhos, cordoalha tres vezes dobrada, e mantimentos, armaria e +bombardas em abastança. Levavam seis padrões de pedra lioz com o brazão +portuguez e a esphera armillar, que o rei adoptara por emblema, +esculpidos. Um havia de ser collocado na bahia de S. Braz, outro na foz +do Zambeze, outro em Moçambique, outro em Melinde, outro em Calecut, +outro na ilha de Santa Maria. Iam dois capellães a bordo de cada navio; +iam linguas ou interpretes negros, cafres e arabes; iam dez condemnados +para qualquer sacrificio necessario, e finalmente iam cento e quarenta e +oito soldados. Tinham-se escolhido os melhores pilotos, e o rei não +consentia que se poupasse em cousa alguma. Vinha em pessoa examinar o +estaleiro, e demorava-se a conversar com os mestres, ouvindo as +observações de Bartholomeu, de Pedro Dias, e Vasco da Gama, que lhe +mostrava o novo astrolabio de Behaim, tosco triangulo de madeira, mas +muito efficaz. Pelo modelo tinham-se mandado fazer outros, mais +pequenos, de latão. + +Tres dos navios levavam os nomes dos tres archanjos: _S. Gabriel_, +capitanea, de 120 toneis, _S. Miguel_ (antigamente _Berrio_) e _S. +Raphael_ de 100 toneis. O nome do quarto, de 200 toneis, desconhece-se. + +No fim de junho estavam todos concluidos, promptos e fundeados no mar, +em frente da egreja de Restello, onde os capitães velaram a noute de 7 +de julho. No dia seguinte, depois da missa, acompanhados pelo rei e por +todo o povo da cidade, seguiram em procissão para a praia, cantando, com +tochas nas mãos, e embarcaram. + +Diz Camões que, n'este momento, + + ... hum velho d'aspeito venerando, + Que ficava nas praias entre a gente, + ..................................... + C'hum saber só d'experiencias feito, + Taes palavras tirou do experto peito: + ...................................... + Oh maldito o primeiro que no mundo + Nas ondas vela poz em sêcco lenho! + +No peito de muitos havia, com effeito, uma condemnação formal por essa +teima persistente dos monarchas em sacrificar dinheiro e gente á chimera +das navegações.[76] A prudencia de experiencias feita, ronceira e fria, +não acreditava no exito, depois de tantas tentativas falhadas. O +resultado havia de votar contra ella; mas as palavras do poeta +prophetisavam as consequencias funebres d'um imperio, que todos porém, +os audazes e os prudentes, acclamaram quando Vasco da Gama voltou. +Camões, assistindo já ao declinar do sol, pôde contar as fomes soffridas +no mar, os temporaes e os naufragios, as peregrinações nos reinos +adustos do terrivel Adamastor, e o collar de esqueletos brancos +estendidos ao longo dos areaes das duas Africas--um rosario de tragedias +funebres! Pôde tambem contar as ondas de protervia e crimes, d'esse mar +da India, que se estirou até á Europa para afogar Portugal em vasa. + + * * * * * + +Com sete dias de viagem, a 15 (julho), chegam ás Canarias, onde um +nevoeiro dispersa a pequena frota, que, entre 23 e 27, se reunia outra +vez em Cabo-Verde, para d'ahi partir em 3 de agosto. Tres mezes gastaram +para descer até Santa Helena (nov. 7), onde refrescaram, porque tinham +seguido ao largo, sem se internarem no golpho da Guiné. Desembarcaram +tambem para reconhecer a altura, com o astrolabio, porque a bordo não +lh'o consentiam os balanços dos navios; tiveram algumas escaramuças com +os indigenas, e partiram afinal no dia 16 de novembro. A 19 estavam á +vista do cabo Tormentoso ou da Boa-esperança, dois nomes que egualmente +justificou d'esta vez. Tres dias alli andaram, batidos pelos temporaes. +O vento e o mar eram tantos, que os navios mettiam as postiças debaixo +de agua, e difficilmente se diria se andavam sobre as ondas, ou de +envolta com ellas. No alto dos castellos, á pôpa, levavam as náus +retabulos pintados, com a imagem dos santos do seu nome; e quando o mar +lançava com estrepito os paineis, sobre o tendal, toda a tripulação das +náus empallidecia de susto. Era um triste prognostico, e parecia que o +favor divino os queria desamparar. Mares crueis e espantosos vinham pela +pôpa arrebatando os bateis, arremeçando-os contra os costados das náus, +avariando os lemes. Amainavam as velas, cortavam os tendaes, começavam a +alijar carga ao mar... Por fim o tempo abonançou: «Nosso Senhor seja +louvado, que nas maiores fortunas soccorre com a sua infinita +misericordia!» + +Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na bahia de S. Braz, onde as +calmarias os forçaram a demorar-se até 7 do mez seguinte. Navegando uma +semana ao longo da costa austral d'Africa chegam a 15 aos ilheus-Chãos, +derradeiro termo da viagem de Bartholomeu Dias. Começavam agora a seguir +as instrucções do Covilhan, o piloto ausente pelas terras do +Preste-Joham, a quem demandavam. Queriam seguir ao longo da costa, mas +as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos para o pélago do +sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente: Vasco da +Gama, como um destino, inexoravel e prudente na sua audacia, venceu as +revoltas e as correntes. + +Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o +temivel cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e +o céu de azul puro: á noute, por duas ou tres vezes, no topo dos +mastros, brilhava a luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de +Lisboa. Tudo eram promessas de bonança. Subiam aos mastros a vêr os +signaes do milagre, e traziam, com devoção, os pingos de cera verde que +o santo lá deixára. Ás vezes chegavam a brigar contra algum incredulo, e +mais de um d'esses pagou _por ello_. Os marinheiros recordavam-se +piamente do seu santo, que ficára em Lisboa, e de Xabregas, onde cada +anno o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham, pondo os seus +ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, musicas, folias e +merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não +rebellavam, e alegres proseguiam, confiados tambem na pericia e valor do +capitão, que os domava com intrepidez. + +A 10 de janeiro tomavam terra em Inhambane, communicando com os cafres: +a 22 tinham subido até Quilimane, onde veem visital-os a bordo +_fidalgos_, com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez +chegavam _á India_. Viam gentes diversas, e signaes d'essa civilização +distante, demandada com tanto ardor. Emergiam do mar d'Africa e da +obscura sombra do continente negro. Esses _fidalgos_, para quem olhavam, +porém, quasi com amor, como irmãos, seriam os seus mais crueis inimigos. + +Ficam um mez em Quilimane, para reparar os navios e restaurar a saude, +porque o escrobuto começára a lavrar com força nas tripulações; e, +partidos, chegam em 2 de março a Moçambique. Os symptomas anteriores +augmentam: veem mais, muitos _fidalgos_: estão, decididamente, ás portas +da India! vão afinal chegar ao imperio do Preste! + +O que observavam augmentava-lhes o desejo, avivando-lhes a curiosidade. +Tudo era novo para elles, mas tudo avigorava as esperanças de virem a +encher-se com o saque dessas cousas brilhantes, marfins e sedas, ouros e +pedras, que luziam nos toucados e vestidos dos _fidalgos_ de Moçambique. +Em volta da esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta +nem pregaria: as taboas cosidas a couro, e velas de esteiras de +palma.[77] Os mouros vinham mercadejar com elles. O proprio +sultão em pessoa quiz cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a bordo. +Pediu-lhe pilotos que o guiassem á India, á terra do Preste-Joham; +pediu-lhe informações ácerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe +que o Preste era um poderoso principe, com muitas cidades n'aquella +costa, grandes navios e muita copia de mercadores: foi, pelo menos, isso +o que Vasco da Gama percebeu, e taes novas encheram-no de alegria. + +Mostrou-se depois o sultão perfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi +seguindo, costeiramente até Mombas (8 de abril), onde um acaso a salvou +da traição que _os mouros_ lhe preparavam. Elles tinham descortinado já +perigosos concorrentes n'esses homens vindos por mar ás regiões que, +desde a Arabia, o Egypto e a Nubia, eram até ahi imperio seu e +indisputado. Salvo por um milagre, Vasco da Gama seguiu a Malinda (15), +onde o _sultão_ o acolheu bem; mas não confiando mais n'esses _fidalgos_ +do Zamgebar, aproveitou de um mouro que se deixára ficar a bordo em +Moçambique, e que succedeu conhecer a rota para Kalikodu. Fizeram-se ao +mar, e em vinte e seis dias (24 de abril a 19 de maio) estavam na India. +Durára a viagem dez mezes e onze dias. + +Foi então que o seu espanto chegou ao auge. Tudo o que já tinham visto +não dava uma idéa, nem distante, do que viam agora, desembarcados. O +esplendor e o fausto natural do Oriente enchiam-nos de admiração e +cubiça; e na sua ignorancia religiosa viam por toda a parte os christãos +do Preste. Os indigenas adoravam a Virgem Maria; e os nossos +prostravam-se tambem deante de Nossa Senhora na pessoa de Gauri, a deusa +branca, Sakti de Shiva, o destruidor. Esta confusão, augmentada ainda +por não se entenderem no que diziam, dava logar a scenas ingenuamente +comicas. Alguns, duvidosos, observavam que, se os idolos eram diabos, a +sua reza era só para Deus; e com esta reserva mental ficavam quietos na +consciencia. Para augmentar o espanto, veiu ter com elles um _mouro_ a +falar portuguez: «Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas +esmeraldas!» + +E nada d'isto era um sonho, eram «sem mentir, puras verdades.» Os +indigenas abraçavam-nos, e os broncos alemtejanos, os beirões, os +marinheiros do Tejo, ingenuos e ignorantes, abraçavam-nos tambem, na +effusão de um instincto humano, como patricios. Dir-se-ia que se +conheciam de muito, e que pouco ou nada os distinguia: de Lisboa á India +era uma curta distancia, porque o sentimento não tem bitolas. Eram todos +christãos, tambem tinham reis! o mundo era um só, e o homem o mesmo em +toda a parte! A naturalidade ingenua com que se praticavam as maiores +cousas, é a grande prova da força heroica dos homens da Renascença. + +Por esse tempo, na India--e com este nome designamos todas as costas e +ilhas incluidas entre os meridianos de Suês e de Tidor, e entre 20° de +latitude S. e 30° N., theatro das campanhas portuguezas--na India, +dizemos, raças estranhas impunham uma especie de dominio em tudo +similhante ao que foi depois o dos portuguezes: um monopolio +commercial-maritimo, e como consequencia d'elle, feitorias, colonias e +Estados. Os povos que nós iamos despojar d'esse dominio eram os arabes e +os ethiopes, os persas, os turkomanos e os afghans, que, descendo do mar +Vermelho e do mar da Arabia, confundidos na onda religiosa do islamismo, +tinham avassalado a peninsula do Indo ao Ganges, e a Africa oriental +desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o extremo Oriente iam, +como nós fomos, até Kambodja e Tidor nas Molucas, atravez do Arakan e do +Pegu, da peninsula de Malaka e de Birma e Shan (Sião) no continente, +atravez de Sumatra e Borneo e pelo meio do archipelago de Sunda. A todas +essas gentes chamaram os portuguezes _mouros_,[78] expressão generica já +usada na Europa para designar os sectarios do Islam, e por isso tambem +adoptada agora que, tão longe e atravez de tantos mares, iamos +encontrar-nos de novo, frente a frente, com o _turco_, antagonista do +_christão_ em todo o mundo. + +«Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?» assim um mouro de Tunis, em +Kalikodu, cumprimentava o portuguez; e como em Moçambique e em Mombas, +os _mouros_ (usaremos d'ora ávante d'esta expressão generica, já +explicada) induzem ou obrigam o Samudri-rajah (Çamorim), rei ou conde--a +India vivia n'um regime simili-feodal--de Kalikodu, a exterminar os +portuguezes. Kalikodu era o emporio commercial da costa do Malabar, e os +dominios do seu rajah formavam o chamado reino de Kanará. + +Facil seria, sem duvida, convencer o principe de que Vasco da Gama era +um pirata, o seu rei uma burla; e sem o pensarem, decerto, os mouros de +Kalikodu definiam antecipadamente o dominio portuguez, que só veiu a +differençar-se d'uma pirataria commum, em ser uma rapina organisada por +um Estado politico. Convencido ou violentado, o rajah manda perseguir os +navegantes, que embarcam e se defendem (agosto 30.) Depois de uma +estação, de alguns mezes na ilha de Anjediva, sobre a costa, Vasco da +Gama decide voltar; e faz-se de vela para Portugal em 10 de julho de 98. +Um anno depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa. Na viagem, separou-se da +frota Nicolau Coelho em Cabo Verde, e Vasco da Gama veiu pela Terceira, +sepultar ahi o irmão que morrera no mar. + +O enthusiasmo foi grande em Lisboa, á chegada de Vasco da Gama: tambem +D. Manuel tinha as suas Indias, e Portugal o seu Colombo! E o +Preste-Joham, que noticias? E de Covilhan? Nada. O navegador conseguira +vencer o Cabo e achar a India, mas não conseguira decifrar o enigma, que +a este tempo já contava tres seculos de successivas indagações. + +Pouco viriam essas a importar para a historia. O essencial era a +decifração do outro enigma, ainda maior--o do Mar Tenebroso. Pouco +faltava já; e em vinte annos mais, não haveria, na rotunda superficie do +globo, um canto de terra incognita, nem um palmo por explorar na vasta +amplidão dos mares. «Debaixo das bravas ondas, por saber os segredos da +terra e os mysterios e enganos do oceano», os portuguezes, com uma +curiosidade heroica, tomaram em suas mãos o futuro da Europa, e do +mundo. No anno seguinte ao da descoberta da India, Pedro Alvares Cabral, +que para lá fôra mandado com uma imponente esquadra, não resiste á +tentação da curiosidade. Descendo no Atlantico, em direcção de leste, +uma pergunta incessante o persegue: que haverá para o poente? Para esse +lado descobriu Colombo umas Indias no hemispherio norte: acaso haverá +mais Indias no hemispherio do sul? Amarou para oeste, a indagar, a +vêr... Mais uns mezes, na longa viagem do Oriente, que importavam? Com +effeito, descobriu o Brazil;[79] a terra de oeste vinha, desde o extremo +norte até ao extremo sul, estendendo-se ao longo, nos dois hemispherios. +Só então a America se pôde dizer inteiramente descoberta. + +A noticia das novas terras encontradas impressionou pouco Lisboa; na +côrte ardia o desejo de descobrir o Preste, o encantado Preste-Joham; de +fazer com elle um bom tratado, para chamar a Portugal um pouco, ao +menos, das tantas cousas boas que Vasco da Gama vira por seus olhos, e, +contadas, enchiam de cubiça o espirito de toda a gente. Cabral fôra +mandado a isso, e não a descobrir terras: já eram demais as Cruzes, e os +nomes do repertorio escasseavam já para denominar ilhas e cabos, portos +e bahias, costas e continentes. Desejava-se outra cousa, ferviam outras +esperanças: + +«Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas esmeraldas!» + + * * * * * + +Tomarem-no por um pirata enchera de colera Vasco da Gama. Além da +necessidade de mostrar ao Çamorim perfido o poder do rei de Portugal, +era indispensavel desaggravar os brios do fidalgo offendido. Não podia +ir d'esta vez, mas para outra seria a sua vingança. + +Logo que Vasco da Gama chegou, decidiu-se, pois, enviar uma grande +armada á India; porque agora, sabido o caminho, não havia mais receios, +nem motivos, para reduzir o numero, nem a lotação dos navios. Pedro +Alvares Cabral fôra nomeado almirante da frota, que contava treze náus, +e levava mil e duzentos homens. + +A construcção dos navios tinha progredido com a frequencia e extenção +das viagens. Naus e galés, embarcações de vela e remo, tinham-se +preparado melhor, augmentando em dimensões. No primeiro quartel do XVI +seculo, porém, quando a avidez commercial não pervertia ainda a +prudencia, a lotação ordinaria não excedia 400 toneladas.[80] +A náu navegava á vela, jogando dos costados a artilheria, no +convez ou sob a coberta. Á pôpa e prôa, nos castellos, luxuosamente +ornados de lavores e douraduras, assentavam tambem canhões; e nos cestos +de gavea havia pequenas colubrinas. De um a outro castello corria um +baileu ou varanda volante, d'onde, nos combates, atiravam os +mosqueteiros, e se passava á abordagem dos navios inimigos. Muitas náus +andavam munidas de rostos ou esporões de aço nas prôas, para a +investida. As galés, navios de remo, dividiam-se em _bastardas_ e +_subtis_: as primeiras de 27 bancos a tres remeiros e 7 peças grossas; +as segundas de 25 bancos e 5 peças apenas. A artilheria grossa jogava +sómente á prôa, nos costados: entre os remeiros, collocavam-se, porém, +umas peças menores, a que se chamava _berços_. Havia, além d'isto, as +_fustas_, galés pequenas de 16 ou 20 bancos de dois remos, com duas +peças grossas. As galés, comtudo, tambem velejavam: e para isso tinham +dois mastros, onde levavam latinos; as fustas um só. Havia, porém, galés +que, por se approximarem mais da armação das náus, se diziam +_bastardas_: armavam dois mastros, mas no do traquete tinham duas velas +redondas, e cestos de gavea, como as náus. + +A esquadra de Pedro Alvares Cabral levantou ferro do Tejo no dia 9 de +março do anno de 1500. Os gritos da marinhagem, para alar a um tempo os +viradores nos cabrestantes, melopêa triste e funebre como o mar; o surdo +roçar das amarras nos escovens; o apito dos mestres, dirigindo as +manobras; as bandeiras multicolores soltas ao vento; e as velas meio +desdobradas nos mastros, formavam o vivo quadro da nação que tambem +partia, no anno de 500, já confessada e bem disposta, para essa longa +viagem de pouco mais de um seculo, cheia de escrobutos e naufragios, ao +cabo da qual a esperava um tumulo, vasto como é o mar, mudo como elle é +nas calmas funebres dos tropicos. + +Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não +partiam á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e +queriam trazer para Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o +capitão levava cartas solemnes do rei para o Çamorim. Em troca d'ellas, +da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam, viriam os rubis e as +esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo turco, inimigo de +Deus! + +Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa +religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta--os dois deuses que +viviam no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados, +mas servidos ambos de um modo egualmente barbaro. + +O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de +Colombo, que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na +existencia do lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se +tinham feito. Não o mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle +queria tambem inscrever o seu nome na lista dos que, durante o seculo +anterior, tinham pouco a pouco rasgado as trevas do mar mysterioso. A +sua viagem, além de iniciar o dominio portuguez na India, teve, com +effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu as duas lendas, a do +Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu dizer a D. +Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei preto, +infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia. + +Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os +continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão, +consummára a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma +miragem, e os homens sombras levadas pelos sabios ventos do destino... + +Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente, +faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e +dar-lhe a volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas mãos do +homem: eis ahi o valor da viagem de Magalhães, vinte annos mais tarde. + +Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova +empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo. + +Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral[81]. + + [75] V. _Regime das riquezas_, p. 109. + + [76] V. _Hist. da repub. romana_, p. I, XIX, _intr._ + + [77] V. _Regime das riquezas_, pp. 85-6. + + [78] V. nas _Raças humanas_, a ethnographia do Oriente a + pp. 70-85, 90-105 e 122-41 do vol. I. + + [79] V. no _Brazil e as colon. port._ p. 3 (2.ª ed.) a descoberta + das costas brazileiras. + + [80] V. no _Brazil e as colonias port._ (2.ª ed.) a composição + typo de uma nau da India, a p. 34 _nota_. + + [81] _Hist. da republ. romana_, I, pp. 217-8. + + * * * * * + + + + +LIVRO QUARTO + +A VIAGEM DA INDIA + + + Dês o primeiro dia que com a vista a experiencia propria me acabei + de desenganar do grande erro que até alli me trazia a fama das + cousas da India... me nasceu logo um desejo ardentissimo de fazer + por esta via um grande e extraordinario serviço. + + RODRIGUES DA SILVEIRA, _Reformação da milicia e governo do Estado da + India oriental._ + + * * * * * + + + + +I + +D. Francisco d'Almeida + + +Em 13 de Setembro do anno de 500 chegou Cabral a Kalikodu. Não ia, como +Vasco da Gama fôra--como descobridor; ia como embaixador, á frente de +uma poderosa armada, para não ser tomado por pirata, mas sim pelo +emissario, que era, do nobre monarcha portuguez, portador das suas +cartas e propostas de alliança para o rajah de Kalikodu. Como tal foi +effectivamente recebido, n'uma audiencia solemne. Os portuguezes, +vestindo as suas melhores roupas, as suas armas mais bellas e polidas, +pensavam impôr de ricos ao monarcha do Oriente; mas os representantes da +pobre e forte Europa iam ficar deslumbrados com as magnificencias da +India opulenta. O brilho das armaduras era offuscado pelo rutilar da +pedraria «cujas chammas impediam a vista». O rajah vinha em um palanquim +ou andor trazido aos hombros pelos nobres, recostado sobre almofadas de +seda, entre colchas lavradas de fio de ouro caíndo em pregas franjadas +com borlas cravejadas de pedras preciosas, e pannos de carbaso de linho +finissimo, cuja alvura sorria ao lado da vermelhidão sanguinea das sedas +e brocados. Corria a compasso o andor coberto por um pallio de seda +franjado de ouro, e dentro d'este duplo sacrario via-se o rajah negro +rutilante de pedras preciosas. Cegava olhal-o. Aos lados do pallio iam +pagens com leques de pennas de pavão agitando o ar, e á beira do +palanquim os que levavam as insignias da soberania: a espada e a adaga, +e estoque de ouro, a flor de liz symbolica, o gomil de agua, e +finalmente a copa onde o rei cuspia o betele, cujo mascar faz os dentes +côr de rosa e dá «muito bom bafo». + +Em toda a volta e prolongando-se na cauda da procissão, charangas de +musicos atroavam o ar com os seus tambores, com os tam-tams de prata e +de ouro, suspensos por cordeis em bambus altos, com as trombetas +enormes, umas rectas, outras curvas, levantadas para o ar, e que davam +aos musicos o aspecto de elephantes com trombas douradas, cujos +pavilhões se viam cravejados de rubis e esmeraldas. Vinha uma grande +trompa de ouro levada por dois homens a cavallo! Os musicos, negros, iam +nús, com manilhas nos braços e nas pernas, e á cinta um panno cobrindo +as vergonhas. Nús iam os nayres e mais tropas do rajah, esgrimindo aos +saltos em pyrrhicas singulares, parecendo atacados de furia, com as suas +armas variadas: alfanges curvos para os golpes de cutilada, espadas +largas e ponteagudas para as estocadas, espadas triangulares com o +vertice nos copos e na ponta a base espalmada, arcos e molhos de frechas +de bambu delgados, lanças com anneis tilintantes e guizos, correndo, +saltando e gritando em brados: «Cucuya!» como na hora das batalhas. Mais +ao largo, o povo mudo, n'uma impassibilidade de orientaes, olhava. + +A recepção do embaixador fez-se no _çarame_ do rajah, á beira-mar, +pavilhão de fórma oitavada erguido sobre esteios, todo rendado de +varandas e lavores, marchetado de marfim, chapeado de prata e ouro em +folhas, com pinaculos e corucheos que se desenhavam levemente no fundo +azul do ceu--tão azul como o do mar onde fundeava a esquadra de Pedro +Alvares Cabral. Na longa praia apinhavam-se as choças dos pescadores e +galeotes e por entre ellas a multidão negra, espantada. Para o interior +avistava-se a cidade, com os palacios e jardins do rei, dos nobres e dos +ricos, docemente abrigados contra o sol inclemente pela sombra dos +palmares e dos bosques de arvores aromaticas. No meio de um turbilhão de +gritos de guerra, de sons de trombetas, o cortejo encaminhou-se para o +palacio do rajah. + +Ahi o Çamorim estava sentado sobre o véllo preto, insignia da realeza, +no seu throno de prata com braços de ouro e as espaldas cravejadas de +rubis, diamantes e esmeraldas, no meio da sua côrte, recostado em macias +almofadas de seda, sobre fôfos tapetes da Persia, somnolento e immovel. +Negro, nú, um véo de linho branco descia-lhe em pregas desde o umbigo +até aos joelhos, com a ponta caída e n'ella enfiados anneis de ouro e +rubis. Da extremidade pendia uma perola enorme. Os dedos, braços, +estavam cobertos de anneis e manilhas. Das orelhas caíam arrecadas de +ouro cravejadas: á cintura trazia um cinto de ouro. Ao pescoço collares +roliços, de ouro tambem; e duas voltas de um fio de perolas, grandes +como avellans, que desciam até ao umbigo, suspendiam um enorme coração +de ouro encastoando a mais bella, a maior esmeralda. Nos cabellos +compridos e apanhados em nó no alto da cabeça havia perolas e pingentes, +e a corôa era um deslumbramento. O thesouro inteiro de Kalikodu saíra á +luz. Ao lado do rajah, em pé, viam-se os pagens nús com pannos de +purpura, apresentando as espadas e adagas de copos de ouro cravejados, e +junto ao soberano o da copa de ouro com a toalha a tiracollo, e o da +boceta cravejada de brilhantes, com o sal delido em agua de rosas, onde +molhava as folhas de betele, antes de as dar ao brahmane-mór, que detraz +das espaldas do throno as passava religiosamente ao rajah, para mascar. +Outros pagens tinham as toalhas, perfumadas de almiscar, com que nas +occasiões devidas esfregavam os braços e as pernas núas do soberano +reluzentes de manilhas cravejadas de rubis. Em torno havia castellos de +alfaias: vasos e urnas de bronze, de prata, de ouro, e os lampadarios de +metal amarello sempre accesos, segundo os ritos ordenavam. Os escrivães, +de pé, tinham debaixo do braço as longas folhas de palmeira, seccas, +onde se registravam as leis e tratados, em sulcos abertos pelos +estyletes de ferro, que balouçavam entre os dedos. Em frente de Pedro +Alvares Cabral, que, sentado, lia a carta de D. Manoel em arabigo, +estava a credencia com os presentes que trazia: uma taça e duas massas +de prata, quatro almofadas de brocado e dois pannos de Arraz, de um +desenho primoroso. A côrte, de pé, escutava em torno. Mais longe +agrupavam-se as mulheres do rajah, untadas de sandalo, e núas da cintura +para cima, com as cabeças coroadas de flôres, e collares de contas de +ouro, e pedraria, manilhas grossas nas pernas, braceletes, e anneis +fulgurantes. O rajah tinha mais de mil, entre amantes e varredeiras, +escravas e embostadoras. Para além das columnatas de alabastro, nos +pateos inundados de sol, viam-se os elephantes submissos, com os seus +collares de campainhas e guizos, cobertos por xaireis de seda recamada +de ouro; viam-se os pallios e leques do cortejo do soberano; os truões e +os fakires, rebolando-se no chão, desgrenhados, a uivar gritos. Depois +formavam alas, ou esgrimiam com tregeitos e cutiladas, os nayres, +bucellarios do rajah, casta singular e polyandra de quem disse o poeta: +«geraes são as mulheres porém sómente para os da geração de seus +maridos.»[82] Mas o que sobretudo enchia de espanto e cubiça os +portuguezes, envergonhados da sua pobreza, eram os rios luminosos da +pedraria que, destacando-se do fundo acobreado das pelles indigenas, os +cegavam: «As chammas que d'elles saíam impediam a vista!» Sobre o ouro +de Sofala, eram os rubis do Pegú, os diamantes do Dekkan e de Narsinga, +as saphiras de Simhala (Ceylão) e os seus topazios e turquezas, +jacinthos e amethistas. Eram as bellas esmeraldas de Babylonia! + +De parte a parte, comtudo, passada a recepção solemne, não se entendiam +bem; e os escrivães em balde mostravam as longas folhas de palmeira +escriptas, agitando os estyletes de ferro, a indicar as passagens das +leis que julgavam oppôr-se ao que pensavam serem os pedidos dos +portuguezes. Estes, em tregeitos, esforçavam-se por lhes fazer perceber +que queriam pôr alli feitorias, para trazerem por mar, para a Europa, as +preciosidades da India; e não cessavam de affirmar quante el-rey de +Portugal era poderoso e forte. Apesar de não ter tantos ouros nem +pedrarias tinha o bronze das suas peças e o ferro das suas granadas! +accrescentavam com decidida importancia. Os escrivães iam +comprehendendo, desconfiados: e os portuguezes desconfiavam tambem dos +sorrisos do rajah. Apesar d'isto, porém, foi concedido o que pediam; e +Cabral fundou a primeira feitoria portugueza na India, em Kalikodu. + +Logo os mouros vieram reclamar contra os intrusos que os despojavam: e +favorecidos pelo indigena, caíram sobre a feitoria, trucidando os +portuguezes que lá havia: cincoenta ao todo. Começava a historia da +India. Seguiram-se logo as terriveis represalias do almirante. Tomou dez +náus de mercadores arabes, passou á espada mais de 500 homens +tripulantes, e, bombardeando a cidade, poz-lhe fogo. O incendio de +Kalikodu, em 16 de dezembro do anno 1500, era a funebre aurora da +historia oriental. Se as pedrarias tinham cegado os olhos dos +portuguezes, agora as chammas cegavam os olhos afflictos do rajah, +n'essa noute de cruel memoria. + +Incendiada Kalikodu, o almirante foi com a esquadra entrar em Katchi +(Cochim) um pouco ao sul, na mesma costa de Malabar, mas já para além +dos dominios do rajah perfido de Kalikodu. O terror da recente façanha +abriu-lhe os braços do pequeno soberano de Katchi; e fundou-se ahi, em +boa paz e amizade, uma feitoria, tomando o almirante, entretanto, +refens, para segurança. Triumphára; o brahmane rajah de Katchi, +revoltára-se abertamente contra o Çamorim seu suzerano. No meiado de +janeiro (1501) partiu Cabral para Kananor: ahi carregou as suas náus de +pimenta e canella, e regressou ao reino. Dos treze navios com que +partira um anno antes, apenas tres o acompanhavam: cinco, desgarrados, +voltaram por diversas vias, e outros cinco foram tragados pelo Mar +Tenebroso. Esse inimigo terrivel, embora vencido, não estava domado, e a +primeira expedição da India, este primeiro acto da tragedia de mais de +um seculo, esboçava já todos os elementos da acção: assassinatos e +incendios, morticinios e naufragios; a espada e a pimenta; as armas do +guerreiro em uma das mãos, as balanças do mercador na outra; uma +Carthago moderna--e, no fundo, a voragem aberta do mar, prompto a +devorar homens, navios e riquezas; a fonte perenne do vicio, entornando +caudaes de torpezas! + + * * * * * + +Da curta historia anterior da India resultavam dois factos: a inimisade +perfida do rajah de Kalikodu, e a feitoria de Katchi. Castigar +terrivelmente o primeiro e consolidar, fortificando-a, a ultima, foi o +principal motivo da segunda armada, que em 1502 (fevereiro) partiu de +Lisboa para o Oriente, sob o commando de Vasco da Gama, o capitão +desapiedado, o fidalgo offendido nos brios pelo miseravel _Çamorim_. + +A historia da viagem é um horror; e a desforra do capitão uma prova +d'essa frieza sanguinaria, impassivel e cruel, que effectivamente existe +no temperamento, quasi africano, do portuguez. Obliterada na sujeição ou +na paz, rebentou sempre com o dominio e com a victoria, na guerra. Se +taes sentimentos, vivos na alma do Gama, inspiram os seus actos, a sua +campanha não obedece a um plano, nem no seu rude espirito cabem as +largas vistas do estadista. Se algumas levava, reduziam-se a espantar a +India com a crueldade das suas façanhas, e a dominal-a com o terror dos +seus morticinios. Grande sobre as ondas, em lucta com os temporaes, é a +imagem da nação, cuja grandeza está na coragem e na teima com que soube +vencer o Mar Tenebroso. Um terramoto agitou o mar da India quando o Gama +pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do +povo portuguez, acreditou e disse que até as proprias ondas tremiam com +medo nosso--com medo d'elle! + +Navegando porém no mar das Indias, com toda a artilheria carregada de +metralha, para arrasar Kalikodu, encontra o Gama uma náu de mercadores +arabes que ia para Meka ou voltava, nas romarias constantes á santa +Kaaba. Além da tripulação, o navio trazia duzentos e quarenta homens +passageiros, com suas mulheres e filhos. Era isto no dia 1 de outubro de +1502, «de que me lembrarei toda a minha vida!» escreve o piloto ainda +horrorisado, ao recordar como a náu foi cobardemente incendiada, com +todos os que continha, e que morreram desesperados no fogo ou no mar. Ia +a bordo um flamengo, que assim refere a occorrencia: «Tomámos uma náu de +Meka, onde iam a bordo 300 passageiros, entre elles mulheres e creanças; +e depois do sacarmos mais de 12:000 ducados de dinheiro e pelo menos +10:000 de fazenda, fizemol-a saltar com os passageiros que continha, por +meio de polvora, no 1.º de outubro.» Satisfeito de si, o capitão rumou +para Kalikodu. Mandou intimar ao rajah a expulsão de todos os mouros, +que eram cinco mil familias, das mais ricas da cidade: dizendo-lhe que +qualquer creado d'el-rey D. Manuel valia mais do que elle, _Çamorim_; e +que seu amo tinha poder para fazer de cada palmeira um rei!--Como era de +vêr, o rajah recusou; e o capitão que, ao fundear, apresára um numero +consideravel de mercadores no porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as +mãos, e amontoados n'um barco, foram com a maré varar na praia, levando +a resposta do Gama á recusa do afflicto principe.[83] Começou logo o +bombardeio (2 de novembro). A cidade ardia outra vez; e á população em +choros, respondiam as risadas ferozmente cynicas dos marinheiros, +abrigados detraz das amuradas dos navios, junto ás peças que vomitavam +fogo. Era uma inepcia, uma barbaridade e uma covardia; porque as curtas +lanças e as settas dos indigenas não podiam medir-se com as granadas, +despedidas de longe, de bordo das náus. O Gama, cada vez mais satisfeito +de si, foi-se a visitar o porto amigo de Katchi; e decidiu regressar ao +reino por Quilua, d'onde trouxe o ouro com que o rei D. Manuel fez uma +custodia para o seu templo dos Jeronymos. Vinha contente da brava +desforra que tomára: o _Çamorim_ estava punido! + +Deixára o Gama na India uma parte da sua armada sob o commando de +Vicente Sodré, personagem tão eminentemente celebre como o proprio +almirante, cujo tio era. Fidalgo, este amava as façanhas brutaes e +estrondosas; o outro queria mais á pirataria e ao roubo. Com effeito, +assim que o Gama partiu da costa do Malabar, o de Kalikodu, invocando +porventura direitos de suzerano sobre o visinho de Katchi, exigiu d'elle +a expulsão dos portuguezes da feitoria. Mas os ataques repetidos ao +poderoso rajah do Canará ensoberbeciam os seus vassallos, e fomentavam a +decomposição do systema politico de Hindustan. O de Katchi resistiu, +implorando o auxilio do Sodré, que pouco se lhe dava da feitoria, e a +abandonou para ir ao corso das náus de Meka: era trabalho de mais +proveito e menor risco piratear de parceria com a corôa portugueza nas +costas de Adal e da Arabia, á embocadura do mar Vermelho.[84] +O producto das náus de Meka pertencia, metade ao rei de +Portugal, metade ás tripulações: cabendo aos soldados uma parte, aos +marinheiros duas, outras duas aos bombardeiros, quatro aos pilotos e +outro tanto ao mestre. Pilhavam todos, de braço dado com a Corôa. + +Vicente Sodré andava n'isto, ao mesmo tempo que Ruy Lourenço, por sua +conta e risco, varria a costa de Zamgebar, caçava navios e cobrava +tributos aos sultões. + +O dominio portuguez adquiria logo de começo o caracter duplo que jámais +perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularisação e de +ordem. Era no mar uma anarchia de roubos, na terra uma serie de +depredações sanguinarias. Vasco da Gama ensinára o modo de imperar com o +fogo e o sangue; Sodré indicava o modo de ceifar no mar, pela abordagem, +as náus de Meka. A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do +dominio portuguez, cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta. + +Na artilheria, effectivamente, estava o segredo do poder dos invasores +da India. Ao tempo em que o Gama voltava da sua segunda viagem, partia +de Lisboa uma terceira esquadra (1503, abril) com Affonso de Albuquerque +e Duarte Pacheco a bordo. Foram a Katchi acudir ao rajah, na sua guerra +com o de Kalikodu, e construiram a primeira fortaleza na India. +Albuquerque voltou ao reino; Pacheco ficou em Katchi com as tropas e +navios preparados para o ataque. O heroe--porque este bateu-se como uma +féra, no seu covil de Kambalaan, nobre, desinteressada e +bravamente--desde logo disse que _toda a festa havia de ser de +artilheria_. De que serviam com effeito as armas brancas e de arremeço, +principal equipamento dos indigenas, que mal sabiam usar dos mosquetes e +bombardas, perante o vomitar distante da metralha? Isto explica a +possibilidade da resistencia dos setenta homens de Pacheco, brandamente +auxiliados pelos naturaes, contra os cincoenta mil que se dão ao +exercito do Samudri-rajah de Kalikodu. As surriadas da mosquetaria +auxiliavam decerto, mas a defeza decisiva consistia nas ondas de +metralha, que n'um instante varriam as jangadas cobertas de gente que +vinham por mar, e as columnas cerradas dos nayres armados de settas e +lanças investindo por terra. Mas nem por si só a artilheria seria capaz +de resistir á onda massiça das columnas inimigas, se a coragem, a +rapidez fulminante das marchas, a ubiquidade--póde dizer-se assim--do +primeiro heroe soldado do Oriente não animasse os poderosos meios de +defeza. Quatro mezes durou o assedio de Katchi, que terminou pela +derrota do Samudri-rajah. + +A esquadra de Lopo Soares de Albergaria trouxe para o reino (1505) +Duarte Pacheco: um homem simples que, por voltar carregado de feridas, +mas leve de dinheiro e diamantes, foi parar á capitania de S. Jorge da +Mina, para de lá vir em ferros por _capitulos_ que d'elle deram; para +jazer no carcere por muito tempo, e acabar esquecido e pobre. A sorte +d'este heroe, diz Goes, «foi de calidade que se pode d'elle tirar +exemplo para os homens se guardarem dos revezes dos reis e principes e +da pouca lembrança que muitas vezes tem d'aquelles a que são em +obrigação.» Pacheco voltou, pois, do Oriente, e na India ficou, por +capitão do mar, Telles Barreto com a missão de _correr as náus de Meca_. +A armada trazia para o reino, a bordo, Pacheco--um infeliz!--e uma carga +abundante de especiarias e cousas ricas. A côrte, o rei, em Lisboa, +quizeram muito mais ás segundas, do que ao primeiro. + +Entretanto a este devia D. Manuel a consolidação do seu imperio +oriental, incipiente ainda. Pacheco demonstrára aos naturaes e aos +arabes que os portuguezes não eram apenas piratas; e podiam fazer mais +do que bombardear impunemente uma cidade desarmada, ou tomar náus de +indefesos mercadores e romeiros. A façanha de Katchi fôra o baptismo de +sangue do novo imperio; e o baluarte, de pé, atestava a força dos novos +dominadores. + +Mas já do principio, tambem, surgia a ultima das pragas da India: a +inveja, a sizania, os odios, a maledicencia, com que, uns aos outros, os +homens do ultramar se abocanhavam na côrte; e a inepcia do governo do +rei, incapaz de pesar o valor das palavras, de medir o alcance das +accusações, e de ser justo e sabio. A lisonja reinava, e sobre ella o +favoritismo. + +Cinco annos tinham decorrido depois da viagem de Cabral; havia já uma +fortaleza em Katchi; estava batido o de Kalikodu; os navios portuguezes +pirateavam em liberdade no mar da India; e numerosas náus de Meka iam +sendo apresadas. Esboçava-se o futuro imperio, anarchicamente, mas já +por fórma tão decisiva, que era mistér organisal-o, dar-lhe uma lei e +uma direcção. + + * * * * * + +D. Francisco de Almeida foi o homem escolhido para governador da India, +constituida em vice-reino. Das tres successivas phisionomias que o +imperio portuguez no Oriente apresenta, é elle quem lhe imprime a +primeira; dos tres vice-reis mais notaveis, é elle o primeiro tambem. +Sem o heroismo antigo de Albuquerque, um Annibal;[85] sem a +sympathica pureza ingenua de um Castro, imitador fiel dos typos de +Plutarcho; Francisco de Almeida, valente como soldado, habil como +almirante, é sobretudo um estadista. + +Pondo de parte o merecimento absoluto d'essa politica commercial, +fecundo systema de explorar uma região inteira, fielmente executado mais +tarde e com tamanho exito pelos hollandezes, o facto é que, para +conseguir o fim desejado de roubar aos arabes o imperio, e a venezianos +e arabes o commercio do Oriente, a politica de Francisco de Almeida, sem +grandeza, é lucida, perspicaz e forte. O governo da India formou tres +grandes homens: Castro, que se póde dizer um santo; Albuquerque, a quem +melhor cabe o nome de heroe: Almeida, que é um sabio administrador, um +feitor intelligente. + +No seu caminho para a India, o primeiro viso-rei foi ajustar as contas +antigas com o sultão de Mombas, e arrazou-lhe a cidade (1505, agosto +14.) Levava tambem ordens para construir fortalezas em Quilua, Kananor, +Anjediva, além da de Katchi, que seria augmentada e reparada, depois dos +damnos soffridos no anno anterior. Não iam então as ambições do governo, +no reino, mais além d'esse pedaço da costa oriental da Africa, com as +estações fronteiras na costa do Malabar. Entretanto no pensamento do +viso-rei, maduro pela observação local e pela prova de uma primeira +guerra maritima com que o impenitente rajah de Kalikodu o recebera, +formulava-se já todo o seu plano de dominio. Não duvidou expol-o a D. +Manuel na carta que lhe escreveu, e que é um dos documentos mais +importantes da historia portugueza no Oriente. + +Toda a nossa força seja no mar, dizia; desistamos de nos apropriar da +terra. As tradições antigas de conquista, o imperio sobre reinos tão +distantes, não convém.[86] Destruamos estas gentes novas +(os arabes, afghans, ethiopes, turkomanos) e assentemos as velhas e +naturaes d'esta terra e costa: depois iremos mais longe. Com as nossas +esquadras teremos seguro o mar e protegidos os indigenas, em cujo nome +reinaremos de facto sobre a India; e se o que queremos são os productos +d'ella, o nosso imperio maritimo assegurará o monopolio portuguez, +contra o turco e o veneziano. Imponhamos pesados tributos, exageremos o +preço das licenças (_cartazes_) para as náus dos mouros navegarem nos +mares da India e isso as expulsará: as nossas armadas darão corso aos +contrabandos. Não é mal decerto que tenhamos algumas fortalezas ao longo +das costas, mas sómente para proteger as feitorias de um golpe de mão; +porque a verdadeira segurança d'ellas estará na amisade dos rajahs +indigenas, por nós collocados nos seus thronos, por nossas armadas +apoiados e defendidos. Substituamo-nos, pura e simplesmente, ao turco; e +abandonemos a idéa de conquistas, para não padecermos das molestias de +Alexandre. O que até agora se tem feito é uma anarchia e um esboço +apenas; um systema de matanças, de piratarias e desordens, a que é +mistér pôr cobro.--A primeira condição de um imperio seguro é um +pensamento definido, e tal era o do viso-rei. + +As difficuldades appareciam-lhe tanto mais fortes, quanto «as guerras +passadas eram com bestas, agora as temos com venezianos e turcos do +Soldão». Com effeito, a antiga impunidade, de que os nossos gosavam á +sombra da artilheria, desapparecia, desde que o veneziano e o do Egypto, +vendo em perigo o seu poder no Oriente, tinham lançado ao mar Vermelho +uma esquadra poderosa, e tão bem artilhada como as nossas. A guerra +tomava um caracter novo; e os portuguezes já não se encontravam apenas a +braços com as armas brancas do indigena. Apparecera a polvora do lado +dos inimigos; e a esta grave e nova phase das cousas veiu juntar-se, no +animo do viso-rei, o resultado cruel da temeridade do filho, que em +Tchala (Chaul) morrera batido pela esquadra egypcia: a armada de +_Mirocem, capitão-mór do Soldão do Gram Cairo e de Babylonia_--como se +dizia no tempo. + +Confirmando a doutrina com o exemplo, esporeado pelo desejo de vingar a +morte do filho,[87] e pela necessidade de destruir essa +armada que ameaçava matar á nascença o dominio portuguez na India. + + ... vem o pae com animo estupendo, + Trazendo furia e magoa por antolhos. + +Descendo pelo Mar Vermelho, a esquadra egypcia viera deitar ferro em +Diu, na costa do Gujerât (Guzarate), impondo ao indio a obrigação de ser +defendido. Entre _mouros_ e portuguezes, que uns a outros disputavam a +presa do commercio do Oriente, os rajahs, perseguidos pela protecção de +ambos, não sabiam as mais das vezes por quem se decidir, incertos do +lado para onde a victoria final penderia. Os vencedores foram sempre os +fieis alliados de todos os fracos. Tal era a situação do indio de Diu. +Não teve remedio senão acompanhar os rumes, e aprisionar os portuguezes +da esquadra batida de Lourenço d'Almeida, guardando-os como penhor, e +base de argumentos e desculpas para com o viso-rei--caso este vencesse +com a nova armada em que vinha. + +Effectivamente D. Francisco d'Almeida subia ao longo da costa, deixando +apoz si o rasto de cinzas e sangue, que por toda a parte annunciava a +passagem dos portuguezes. As faulhas do incendio de Deval (Dabul) e os +lamentos da população dispersa chegavam até á ria onde fundeavam as +esquadras do egypcio e do de Diu, já engrossadas com as trezentas fustas +que o de Kalikodu enviára tambem, para vêr se conseguia exterminar por +uma vez os incommodos visitantes. + +O egypcio, apesar de victorioso, temia o viso-rei; e fundeada a +esquadra, dispozera que picassem as amarras os navios assim que fossem +abalroados, dando á costa, e arrastando comsigo os portuguezes, sobre os +quaes as lanchas e fustas dos indios cairiam então desapiedadamente. Mas +o viso-rei, percebendo o ardil, mandou preparar as ancoras á pôpa, e os +navios inimigos foram sosinhos varar na praia. Era 3 de fevereiro (1509) +festa de S. Braz, pelo meio dia. A viração do mar soprava fresca pela +pôpa dos navios portuguezes, quando a _capitaina_ desfraldou o guião +azul á prôa e, toda empavezada, no meio dos gritos de «Senhor Deus; +misericordia! Santiago!» ao som das charangas de trombetas, soltou a +primeira banda de artilheria. Um clamor immenso de vozes, de trompas, de +tiros lhe respondeu, e a batalha generalisou-se com artilheria e arma +branca, á abordagem. A confusão de gentes que alli combatiam era +inextricavel; e os pavilhões da Cruz e do Crescente, erguidos nos +mastros dos navios, abrigavam os sentimentos mais extravagantes, as +crenças mais disparatadas. É que não se combatia, nem pela fé, nem pela +patria: disputava-se com furor o saque da India; e a cubiça torna irmãos +os homens de todas as fés, os filhos de todas as raças. Havia allemães e +francezes por bombardeiros a bordo das náus portuguezas; havia indios, +brahmanes e até _mouros_. Havia, do lado opposto, na confusão dos +navios, desde o nubio até ao arabe, desde o ethiope até ao afghan; havia +musulmanos de toda a casta, persas, e _rumes_ do Egypto--mercenarios de +todas as partes, a que se dava este nome generico; havia ao lado da +multidão dos infieis, o veneziano, renegado ou catholico, mas sobretudo +mercador, que por ordem da sua republica vinha como artilheiro defender, +no mar da India, os interesses solidarios dos seus socios no commercio +oriental. Em volta da população confusa da esquadra dos _rumes_, +apinhava-se em seus juncos a massa obscura dos indios, de Diu no +Gujerât, de Kalikodu no Kanará. + +Os navios portuguezes eram poucos, mas solidos, e ainda bem construidos +e artilhados; as suas guarnições não excediam mil homens. Eram náus +principalmente; mas tambem galés, _bastardas_ e _subtis_, e _fustas_--os +_avisos_ d'essas antigas esquadras. As náus vomitavam fogo das amuradas. +Nos castellos de pôpa e prôa fusilava a artilharia menor, baptisada com +os nomes da monteria feodal, _aguias_, _sacres_ e _falcões_, _leões_ e +_serpes_, _pedreiras_ que arrojavam balas de granito, _berços_, +_camellos_, _colubrinas_ e _esperas_. Nos bailéos, de pôpa á prôa, os +mosqueteiros despediam continuas surriadas de balas; e as xaretas de +corda, presas nas amuradas, defendiam as náus das abordagens dos juncos +e galeotas dos indios. A bordo das galés, o capitão sobre o +chapiteu--Jesus! S. Thomé! Ave-Maria!--excitava os soldados que, de +espada e rodella, se juntavam á prôa para a abordagem dos navios +inimigos, ou da pôpa, a tiros, caçavam mouros. As enxarcias appareciam +crivadas de settas. Da prôa tambem, o castello das galés vomitava fogo; +e o ligeiro navio, caíndo perpendicularmente sobre o contrario, +rasgava-lhe o ventre com o esporão, despedaçava-lhe os remos, crivava-o +de balas. Sentados os forçados, nús e negros, acorrentados aos bancos, +remavam agil e poderosamente; obedecendo aos gritos do comitre que, de +espada em punho, corria na coxia, entre as platéas dos bancos, +distribuindo cutiladas. Sob a coberta, junto ao paiol defendido por +colchas e cobertores escorrendo agua, o capitão-do-fogo distribuia a +polvora, tirando-a ás gamellas dos caldeirões. E os bombardeiros, com os +murrões e bota-fogos a bom resguardo, obedeciam á ordem de atirar. Os +bailéus, d'onde a taifa dos soldados se lançava ás abordagens, defendiam +com a mosqueteria os remeiros; e as velas estavam carregadas nos +mastros, por causa dos incendios. O fogo punha um elemento novo n'este +antigo modo de batalhar no mar.[88] No meio do enxame das galés e +caravelas,[89] correndo á caça dos paráos fugitivos, os navios de vela, +de typos novos, náus e galeões, urcas e carracas, eram como fortalezas +fluctuantes, vomitando lume, estrondos, fumo, naufragios e morte. + +Tingiram-se mais uma vez de vermelho as aguas do mar das Indias; +morreram innumeros; boiavam feridos, pedindo misericordia e recebendo +tiros: e por fim, depois de todos os episodios e scenas proprias d'estas +tragedias, a victoria foi pelo vice-rei que destruiu rumes e indios. +Esta batalha naval tinha uma importancia superior ainda á das victorias +de Duarte Pacheco em Katchi: porque os indios, meditando e observando, +reconheciam que a phalange portugueza não era só invencivel para elles: +era-o tambem para os rumes do Egypto, e para a artilharia de Veneza... + +O de Diu, que estivera sempre indeciso, ao vêr o resultado da batalha, +veiu pressuroso, desculpar-se, entregar logo os prisioneiros da empreza +anterior. Guardára-os para os salvar das garras ferozes dos rumes, a +quem desejava todo o mal, sem lhes ter podido resistir. Mandava-os +carregados de presentes e parabens, por tão grande victoria, que o +libertava da odiosa tyrannia dos rumes. + +No chapiteu da sua náu, o almirante e vice-rei contemplava a scena de +carnagem, agora muda, e os destroços que boiavam com os cadaveres no mar +tinto em sangue; e estava glorioso e contente no meio dos seus, que +contavam com verbosidade os episodios, o que tinham feito, como se +tinham saído, cada qual de seu lance... quando chegaram á borda, n'uma +almadia, os prisioneiros forros, gritando alegres, a pedir que os +recebessem. O vice-rei lembrou-se então que lhe faltava o filho, e «se +foi assentar na tolda com um lenço na mão, que não podia estancar as +lagrimas que lhe corriam!» Acudiram todos a consolal-o; e elle, +tomando-lhe os animos, ergueu-se, e disse-lhes enxugando os olhos, e +tratando-os por filhos, que isso já passára e traspassára a sua alma, +que se alegrassem todos agora com a boa vingança que Nosso Senhor por +sua misericordia lhes dava! + +E regressando, conformado com a sua sorte, ao passar em frente de +Kananor, salvou á terra para celebrar a victoria; mas, para acabar de +vingar a morte do filho, mandou amarrar prisioneiros ás boccas das +bombardas, e as cabeças e membros despedaçados dos infelizes iam cair na +cidade como pelouros... A morte do filho transtornára o seu lucido +espirito, mudando as suas opiniões antigas de estadista n'um furor +carniceiro, attestado pela devastação da costa do Gujerât. Cedêra tambem +ás intrigas e maledicencias dos capitães que tinham vindo de Hormuz, +fugindo ao mando terrivel de Albuquerque, atemorisados pela loucura das +suas emprezas tytanicas. Bulhavam, o governador que acabava o praso do +governo, e Albuquerque já nomeado de Lisboa para lhe succeder; e á côrte +haviam chegado noticias perfidas de excessos commettidos pelo sabio +vice-rei. Em paga dos seus trabalhos esperava-o a masmorra de Duarte +Pacheco; porém, na viagem para o reino, deu á costa da Cafraria, o foi +morto pelos negros ás pedradas e zagunchadas. + + * * * * * + +O seu plano de governo, por ser sabio, era chimerico, pois que a India +era uma loucura. Só homens de genio, como Albuquerque, poderiam tornar +grande uma empreza condemnada; só, como Castro, um santo podia resalvar +o brio portuguez da nodoa de uma ignominia formal. + +Para que o nosso dominio fosse maritimo e mercantil apenas, era +necessario que essas tradições estivessem na alma portugueza, como +tinham estado, n'outras edades, na alma de Carthago, e como agora +estavam na de Veneza. Em Portugal, o espirito patrio fôra formado pela +religião e pela cavallaria; e exigir dos soldados d'Africa que não +desembarcassem dos navios, convencel-os de que o verdadeiro modo de +conquistar fosse prescindir do governo, era querer uma cousa impossivel. +Alargar, ao contrario, os dominios portuguezes, avassallar territorios, +fazer conquistas, e crear um imperio á antiga, como o de Alexandre e o +dos romanos, era o pensamento commum--naturalmente deduzido dos +antecedentes militares da nação, e agora fomentado de um modo especial +pela cultura classica, enlevo de todos os bons espiritos da Europa. A +idéa de que Portugal era uma Roma preoccupava os reis e os escriptores, +que se fatigavam a procurar origens e a indicar analogias, de certo +verdadeiras. Albuquerque fez vivo em si um tal pensamento, e viu-se o +Scipião d'essa Roma[90], ou antes o Alexandre da nova Grecia. + +Além dos motivos intimos que tornavam inacceitavel a politica commercial +e maritima do primeiro vice-rei da India, havia motivos mais praticos. +Uma das suas justas exigencias era a da prohibição do commercio aos +soldados, magistrados e capitães do Oriente. Com effeito, o dominio, tal +como elle o concebia, não era um saque: era uma protecção armada a um +commercio, franco por um lado, monopolio do Estado, ou apanagio da +corôa, pelo outro. Os capitães e governadores seriam simultaneamente +agentes commerciaes de S. A., excelso mercador da Pimenta. Isto exigia +uma fleugma de que só os hollandezes foram capazes, e ainda assim á +custa de salarios que supprimem as tentações. + +Desde que o rei era o primeiro negociante, porque não seria o vice-rei o +segundo, os capitães das fortalezas e das armadas os terceiros, os +soldados os derradeiros? Só isto era, evidentemente, logico; e, apesar +de todas as confusões, quem bem observa, descobre sempre que a historia +obedece á logica. Ninguem distinguia bem, na era de 500, entre a pessoa +individual do rei e a pessoa abstracta ou symbolica do monarcha. Não se +separavam Rei e Estado; e só com esta perspicacia moderna poderia +convencer-se o rude soldado da India de que o commercio, bom para o rei, +era mau para elle; de que uma virtude podia ser um vicio, por mudarem as +condições. Além d'isto, os portuguezes lançavam-se, famintos, ao +banquete do Oriente, como seculos antes os povos do norte, ao banquete +da Gallia, da India, da Hespanha[91]. Ninguem seria capaz +de lhes arrancar dos dentes essas carnes palpitantes, que devoravam com +ancia; e eram inevitaveis as consequencias funestas, que D. Francisco +d'Almeida previa sabiamente. + +Fleugmatico e pontual no cumprimento dos seus deveres duplos de capitão +e caixeiro, o vice-rei, ao mesmo tempo que expunha para Lisboa os seus +planos de governo, mandava os seus relatorios commerciaes, como um +correspondente ao seu patrão de Genova ou de Veneza. O vice-rei estudára +como geographo o Oriente; e para fundamentar o seu plano de imperio +maritimo dizia, com Barros, que a India «tem entradas e saídas de que +seu commercio vive, e que são como o corpo animado, que, se lhe tiram a +entrada e saída das cousas que o sustentam, não tem mais vida.» O +principal estado consiste na navegação, escrevia o vice-rei; só com ella +se governará no mar Vermelho e no golpho persico, essas duas correntes +da exportação da India; só com ella na peninsula de Malaka, que é a +transição da India para o extremo Oriente; só com ella manteremos o +privilegio da passagem do cabo da Boa-Esperança, caminho que descobrimos +para a Europa. Albuquerque em Hormuz, em Goa, em Malaka, assentou na +terra firme os limites do imperio que para o seu antecessor devia vogar +fluctuante sobre as ondas. + +Estadista e geographo, D. Francisco d'Almeida era ao mesmo tempo um +mercador cuidadoso e até habil. Dava ao rei minuciosas informações dos +generos, preços e pezos. «E o lacre que V. A. diz lhe mande, será +maravilha haver-se, porque estas náus (portadoras de cartas) partem +cedo, e as náus que o trazem do Pegú e Martamão (Martaban) veem tarde. +Espero por uma boa somma d'elle, porque o tenho mandado trazer... E assi +V. A. me manda que a pimenta vá limpa e secca, e que o pezo se faça com +nossas balanças e pezos... e dá-se tal aviamento que, com duas balanças, +té vespora pesaram mil quintaes. Se os navios não chegassem tão +avariados, em vinte dias carregariam e partiriam. O baar de Cochim +(Katchi) tem tres quintaes e trinta arrateis de pezo velho, e custa o +quintal mil e quinhentos réis e meio.--Mandei noticiar com pregões que +todos trouxessem pimenta, e que logo se lhes pagaria á vista: é o meio +de bater os mouros, que são regatões e compram fiado. Acodem os gentios +com pimenta, e levam o cobre muito alegres.--Quanto á pimenta e drogas +que vão ao Levante, são de Malaca, Sumatra e Diu, onde nasce muita +pimenta longa e redonda, e muito bem sei por onde passa e em que tempo: +falta-me o principal.--O aljofar e perolas que me manda que lhe envie +não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle (?); os sinabafos, +porcellanas e mais cousas de jaez são de mais longe. As escravas que +quer, tomam-se depressa: que as gentias d'esta terra são pretas e +mancebas do mundo, como chegam a dez annos.--Tem cobre aqui para cinco +annos, vermelhão sem numero, chumbo e azougue, pannos de lan a +apodrecer, escarlatas, espelhos, oculos, chapéus, e sellas ginetas, que +é mui certa mercadoria para cá.» E continúa assim, misturando toda a +especie de mercadoria, desde as escravas mancebas do mundo, até ás +perolas e aljofar.--Porque não manda S. A. papel? Seria um excellente +negocio.» + +Eis ahi o motivo intimo, o principio fundamental, o cuidado superior do +rei e dos seus governadores na India.[92] D. Manuel perdoava tudo, os +crimes e os roubos, as carnificinas e as brutalidades, os incendios e as +piratarias, com tanto que lhe mandassem o que elle sobretudo +ambicionava: curiosidades, primores e riquezas para encher os seus paços +de Lisboa, e deslumbrar o papa em Roma com a sua magnifica embaixada. +«Manda pimenta e deita-te a dormir», dizia mais tarde, da côrte para a +India, Tristão da Cunha, ao filho Nuno, governador. O saque do +Oriente--este é o nome que melhor convém ao nosso dominio--ia ordenado +de Lisboa. + + [82] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 264-7. + + [83] «Então mandou aos bateis que fossem roubar os pageres (barcos) + que eram dezeseis e as duas náos, em que todos acharam arroz e + muitas jarras de manteiga e muitos fardos de roupa. Então tudo + isto recolheram aos navios e a gente toda das náos grandes, e + mandou que recolhessem o arroz que quizessem, que tomaram quatro + pageres, que vasaram, que não quizeram mais. Então o Capitão-mór + mandou a toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo + isto metter em um pager, em o qual mandou metter o frade tambem + sem orelhas, nem narizes, nem mãos, que lhas mandou atar ao + pescoço com uma ola (folha, carta) para el-rey em que lhe dizia + que mandasse fazer caril para comer do que lhe levava o + seu _frade_. + + E a todos os negros, assim justiçados, mandou atar os pés, + porque não tinham mãos para se desatarem, e porque se não + desatassem com os dentes com páos lhes mandou dar n'elles + que nas bocas lh'os metteram por dentro, e foram assim + carregados uns sobre os outros embrulhados no sangue que d'elles + corria e mandou sobre elles deitar esteiras e ola secca e lhe + mandou dar as vélas para terra com o fogo posto, que eram mais + de 800 mouros, e o pager do _frade_ com todas as mãos e orelhas + tambem á véla para terra sem fogo, com que foram logo ter a + terra, onde acudiu muita gente a apagar o fogo e tirar os que + acharam vivos com que fizeram seus grandes prantos.» + Gaspar Correia, _Lendas_, I, p. 302. + + [84] «... em que no mar tomaram náos de Cambaya e Calecut que iam + para Meka, a que roubaram o melhor que acharam de que se + carregaram os navios e caravellas quanto poderam e mormente + roupas de muito preço e muitos mantimentos e mouros para dar + ás bombas, e não se occuparam em carregar os navios de pimenta + e drogas que levavam as náos de Calecut que a todas, umas e + outras, poseram fogo e queimaram com toda a gente sem a nenhum + darem vida, mas Vicente Sodré mandou que os Mouros que tinham + tomado para a bomba todos os tornaram com os outros e todos + forão mortos.» Gaspar Correia, _Lendas_, I, pp. 365-6. + + [85] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 215-80. + + [86] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 211 e segg. + + [87] «O Viso rey estava assentado em uma janella que vinha sobre + a praya com o Capitão e com outros fidalgos, e vendo o geito + da caravella e o capitão d'ella d'arte que desembarcava, se + tirou da janella e se assentou dentro em uma cadeira e poz + o braço na cadeira e sobre a mão encostou a face direita e disse: + + --Esta caravella me traz a nova que eu tenho no coração; pois + que as náos de Cochim vieram sem meu filho, é que elle é morto. + + Ao que o Camacho entrou com grande tristeza no rosto, o qual + antes que fallasse, o Viso rey lhe fallou dizendo: + + --Camacho, ainda que meu filho seja morto, porque não salvaste + esta fortaleza: pois não é do pae do morto? Que meu filho não + era mais que um só homem... Nem me fica outro. + + O Camacho não lhe respondeu, mas poz os joelhos no chão e com + muitas lagrimas disse: + + --Senhor, Nossa Senhora perdeu a seu bento filho posto na Cruz + entre dois ladrões, e vós perdestes o vosso filho pelejando com + os turcos do Soldão. + + O Viso rey com o rosto muy seguro lhe disse: + + --Ora vos ide a descançar e mandae á caravella que faça sua + costumada salva e eu mandarei na Egreja fazer signal pelo + defunto e acodirá gente e lhe dirão paternosters pela alma, + porque quem o frangão comeu hade comer o galo ou pagal-o. + + Com o que se recolheu para uma ante-camara, onde assentado, o + Capitão e fidalgos moveram pratica de sustancias consolatorias + para abrandar tamanha dor como sentiam que o pae devia ter com + a morte de tal filho. Ao que o Viso rey lhes foi á mão, dizendo: + + --Eu não me posso escusar da dor que a carne me dá, como pae, + de força da natureza, mas espero em Nosso Senhor que me ajudará + por sua misericordia, e com a ajuda de meus amigos ma dará + alegria n'esta dor que ora tenho, em que acabando a vida será + para mim o mór descanço. Vão-se Vossas Mercês embora, que as + palavras de conforto são das mulheres para suas amigas, quando + pranteam seus filhos mortos em acontecimentos como ora foi + d'este meu. + + E lhes fazendo sua cortesia se recolheu á sua camara.» + Gaspar Correia, _Lendas_, I, 775. + + [88] V. quadros das batalhas navaes dos antigos, _Hist. da republ. + romana_, I, pp. 193-8. + + [89] «Não tém cestos de gavea (as caravelas) nem as vergas fazem + angulos rectos com os mastros, mas pendem obliquas d'uma alça + que é triangular, roça quasi pelas amuradas. As vergas que se + amuram aos costados do navio são pela parte de baixo grossas + como mastareus, e adelgaçam até ao cimo da vela. De vasos + d'esta feição se servem na guerra maritima os portuguezes, + pelo muito ligeiros que elles são, sendo-lhes mui maneiro + apontar á prôa ou á pôpa o conto d'estas vergas, e ainda a + meio costado do navio passalas da direita para a esquerda + segundo lhes faz feição, ferrar o panno ou disferillo das + vergas, a que o atam pelo cepo da entenna, com quem as velas + abrem a base do angulo: e qual lhes sopra o vento, tal lhe + apresentam o bojo da vela não tardios. Todo o vento lhe fas + geito, de modo que com vento de ilharga bolinam em direitura, + como se foram arrazadas em pôpa, e para ir o mesmo navio em + senso contrario não tem mais que mudar o velame, o que muy + prestes se prefaz.» Osorio, _Vida e feitos d'el-rey D. Manuel_ + (tr. F. M. do Nascimento) I, p. 193. + + [90] V. _Hist. da republ. romana_, I, pp. 292 e segg. + + [91] V. _As raças humanas_, I, pag. 358 e segg. e _Hist. da + civilisação iberica_ (3.ª ed.), pag. 34 e segg. + + [92] _V. Regime das riquezas_, p. 90 e segg. + + * * * * * + + + + +II + +Affonso de Albuquerque + + +«As cousas da India fazem grandes fumos!» costumava dizer o novo +governador. Mas que _fumos_ eram esses? Eram a vaidade e os erros de +tantos pigmeus que o gigante via formigar activamente, encelleirar, e, +depois de gordos e ricos, pavonearem-se na côrte, allegando serviços, +com a basofia de quem tudo sabia das cousas do Oriente. Fumos, com +effeito, eram todos esses para o governador, que aprendera nas suas +primeiras viagens, e agora levava já bem definido o seu plano. Levava +sem o saber os seus _fumos_ tambem: porque em fumo se havia de tornar o +imperio ephemero que construia na mente... + +Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno, +na armada de Tristão da Cunha; mas o genio do guerreiro não se reprimia +com isso, nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando +absoluto, para pôr em pratica o seu plano gigantesco. Elle sabia demais +que, no cháos da India, cada qual trabalhava por sua conta e risco; e +que, n'esse vasto campo de batalha, as manobras não obedeciam ao mando +de um general; iam ao acaso, segundo a audacia e o genio dos capitães. +De Lisboa a Zamgebar uma armada era um exercito; no mar da India o +exercito fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era +senhor de proseguir, conforme o seu plano, na vasta empreza de saquear o +Oriente. O plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um imperio. + +A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introducção, +arrasando, queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava),[93] +na costa, acima de Zamgebar, dirigindo-se a Sokotra--essa +ilha que, junto á ponta extrema da Africa, pelo norte, o cabo de +Jar-Hafun (Guardafui), era a vedeta sobre a entrada do mar Vermelho, e a +estação onde os navios de corso ás náus de Meka se deviam abastecer e +refrescar. Os arabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os +todos, sem ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida. +Feito isto, dirigiu-se á India, destacando Albuquerque (impaciente quasi +até á rebeldia, durante a delonga da construcção do forte) com seis +navios e quinhentos homens, para a caça das náus, no Estreito. + +Afinal, o capitão commandava! Afinal dispunha de uma phalange sua! e +resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha +desappareceram, na sua viagem para a India, Albuquerque largou de +Sokotra para a costa da Arabia, ao longo da qual foi subindo +vagarosamente, assolando tudo. Formára o plano de começar por Hormuz as +suas conquistas, marcando primeiro o limite por norte e occidente, para +mais tarde ir ao oriente, pôr em Malaka o extremo do seu imperio. +Hormuz, Sofala e Malaka são tres quinas de um triangulo, cuja base mede +70 graus em longitude, cuja altura, até ao vertice de Hormuz, conta 50 +em latitude. + +Foi a 10 de agosto do anno de 507 que Affonso de Albuquerque largou de +Sokotra, em direcção do golpho Persico. A sua esquadrilha compunha-se de +seis navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a +poderosa unidade que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança +que todos tinham no seu genio e na sua sabedoria, e tambem nos mosquetes +e artilharia das náus, tornavam poderosa como um ariête esta pequena +divisão. Para nos servirmos da expressão de Francisco d'Almeida, +tratava-se apenas de combater _com bestas_; e não havia ainda que temer +em Hormuz a artilharia dos rumes, nem os bombardeiros venezianos. A +novidade de um engenho de guerra e a audacia de um guerreiro á antiga, +iam levar a cabo uma empreza, de facto espantosa, como as de Alexandre +ou de Cyro. + +Seguindo os exemplos d'esses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na +mente, punha em pratica os antigos meios orientaes. Avançava no meio de +um côro de afflições e mortes, precedido por uma columna de incendios, +para que, ao chegar, a vanguarda do terror precipitasse os animos na +abjecção. Assim ia ao longo da costa da Arabia assolando e devastando +todos os logares vassallos do suzerano de Hormuz. Primeiro arrazou +Kalhât (Calayate) «que é feito de casas de pedra, terradas e muitas +cobertas de palha, casas espalhadas e mal armadas e fóra do logar á mão +direita um palmar de palmeiras de tamaras, onde estavam uns poços de +agua de que bebiam. O logar assenta ao longo d'agua, e por detrás ha +grandes serranias de pedra viva, e no mar alguns zambucos e náus que vem +aqui carregar cavallos e tamaras e peixe salgado.» (G. C., _Lendas_). + +Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a +todos os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e +mutilados, annunciar por toda a parte a fama do seu poder. Em +Khor-Fakhan (Orfacate) reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou +todos os prisioneiros. Entre elles, porém, estava um velho letrado +persa, de longas barbas brancas, que vivia de admirar Alexandre, cujo +livro possuia. O velho applaudia o portuguez, commentando o livro com as +façanhas do novo heroe; e applaudia-se a si por ter ainda em vida +assistido á resurreição do filho de Olympias. Acclamava o portuguez, ou +o grego, confundindo a realidade com a historia; e de joelhos, +adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe. + +Em Makât (Mascate), já na entrada do golpho, e quasi fronteiro a Hormuz, +tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e +Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrivel d'esse heroe +que se approximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha +appareceu diante da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em +resistir, por vêr que os navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que +cada um d'elles, com os seus canhões escondidos por detraz das amuradas, +era um vulcão prompto a rebentar em lava, um inimigo perfido cuja força +latente não podia medir-se. Maskât foi bombardeada. A mesquita onde os +infelizes se tinham refugiado caíu a machado, e os captivos, mutilados, +foram fugindo, chorando, reunir-se á gente da cidade escondida nas +serras. Havia cadaveres em todas as ruas e o fogo posto começava a +crepitar lavrando nos armazens cheios de azeite e de melaço. As +labaredas subiam, zumbia ao longe o clamor dos desgraçados, e á maneira +que o terribil heroe se alongava na praia com os seus para regressar aos +navios, os _mouros_ vinham anciosos e cheios de medo vêr se podiam ainda +salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto das chammas vivas. Era em +vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque proseguiu deixando um +rasto de sangue e cinzas. Hormuz estava proximo, e cumpria que a onda do +terror, que fôra crescendo, estoirasse agora de um modo pavoroso. + +Hormuz era então a joia mais preciosa da corôa da Persia. Chamavam-lhe +_a pedra do annel_ das Indias. Era a Londres oriental, onde todos os +productos do Oriente vinham desembarcar; d'onde saíam nas longas +caravanas que se dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartaria e o +Turquestan, por toda a Asia do norte. Os armadores levavam por mar a +Hormuz a pimenta, o cravo das Molucas, o gengibre, o cardamomo, os paus +de sandalo e brazil, os tamarinhos, o açafrão, a cera, o ferro, as +cargas do arroz de Dekkan, os côcos, as pedrarias, as porcellanas, o +benjoim, os pannos de Kambai, de Chala, de Deval, e os cinabasos de +Bengala. Ahi vinham, de Aden, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o +azougue, os brocados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da +Europa, pelo caminho de Alexandria, a Suês, via do mar Vermelho. Toda a +Persia se abastecia em Hormuz dos generos de fóra; por Hormuz toda ella +mandava importar os productos indigenas. Os navios carregavam ahi a seda +e o almiscar, rhuibarbo de Babylonia, e as récuas de cavallos da Arabia, +tão queridos no Dekkan, em Kambai e nos Estados da contra-costa de +Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. Contra o arroz +e os pannos que levavam, os commerciantes traziam de Hormuz as tamaras, +o sal das suas collinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljofar +grosso, muito procurado em Narsinga. + +A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e +prazer, uma côrte de mercadores. As casas, recheiadas de cousas +preciosas, eram thesoiros ou museus, com paredes forradas de marmores, +columnatas, eirados, pateos ajardinados e fontes preciosas. A vida +custava ahi carissimo, porque o luxo absorvia todos os recursos +naturaes. A terra, uma salina, era esteril de si: tudo vinha da Persia, +da Arabia, da India: mas os mercadores tinham defronte, além, na costa +firme, as quintas e hortas, onde iam com frequencia. Ahi o platano +magestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cypreste +meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e +jardins de rosas, povoados de rouxinoes, abrigando nas encostas á sua +sombra as vinhas ferteis. Os pomares regados estavam coalhados de +laranjeiras, de fructos de ouro e flôres de neve perfumada; de +macieiras, pecegos, albaquorques; de figueiras de fórmas extravagantes e +amplas folhas; de granadas, com os fructos rebentados a sorrir nos seus +grãos côr de rubi. No chão serpeavam as redes de hastes dos meloaes, +louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com peso os cachos +de uvas preciosas de todas as côres. Por entre os bastos pomares e do +seio dos jardins de rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira, +com o seu turbante de folhas agudas, carregada de tamaras. + +Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a +defendiam da luz e do calor do sol, formigava uma população de varias +raças, de côres diversas, occupada em comprar, em vender; mais occupada +ainda em gozar a vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os +perfumes inebriavam os sentidos, e acordavam todos os instinctos +sensuaes. Vinham ali vender neve, de trinta leguas do interior da +Persia. Amar era o primeiro de todos os commercios de Hormuz; e o persa, +alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os desvairamentos da +pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até aborrecidas em +Hormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os harens dos +ricos, e os bordeis para o commum dos mercadores. Era uma devassidão +abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam +sempre seguidos por pagens, com toalhas e jarras de prata e bacias com +agua. Havia musicas e festas por toda a parte e as bandas e orchestras +andavam constantemente nas ruas onde os mercadores expunham á venda o +aljofar em colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos +estofos, e sobre as camisas brancas de algodão finissimo vestiam-se +tunicas de chamalote ou gran, cingidas por almejares com grandes adagas +ornadas de ouro e prata e pedras preciosas. Os broqueis eram redondos, +forrados de seda; os arcos acharoados, ou de corno de bufalo com cordas +de seda. Usavam, além do arco e da frecha, do escudo e da adaga, +machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e tauxiadas +de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um annel e a pedra +Hormuz. Só a alfandega rendia meio milhão de xerafins.[94] + +As noticias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de +terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delicias. No +porto havia, com effeito, uma poderosa armada que escondia as aguas: +eram centenas de náus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se +arrestado os navios dos mercadores e do seio da frota estava a náu de +Cambaya, a _Meri_, de mil toneis, com gente basta e numerosa artilharia. +Havia o melhor de duzentos galeões de remo com arrombadas de saccas de +algodão tão altas que escondiam os remeiros. O persa que vestia os +laudeis, em vez de corpos de aço, couraçava tambem de algodão os navios. +As terradas alastravam o mar, carregadas de gente armada, com +estandartes garridos «que era cousa fermosa para ver». Na terra, ao +longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas +musicas de trombetas e anafis. «As gaitas do mar e terra eram tantas que +parecia que se fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça +desesperados, contando como os seis, seis navios apenas portuguezes! +traziam no ventre uns monstros de fogo destruidores! E o soldão persa, +afflicto, não sabia de que modo receber a visita de Albuquerque e dos +seus navios, que já estavam, terriveis mas quietos como um volcão em +paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Hormuz. Albuquerque +exigia-lhe que abandonasse o persa, e se declarasse vassallo do +portuguez; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para que +deixassem em paz--quando o capitão, enfadado com as delongas e +subtilezas, rompeu inopinadamente o fogo. Começou a varejar em torno o +estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de destroços, de naufragios +e cadaveres que era horroroso de vêr. Estava como um lobo no meio de um +rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos +nadavam n'um mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que os +soldados matavam n'elles ás lançadas e cutiladas. Da amurada das náus os +grumetes e pagens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de +visceras fluctuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim +oitenta _mouros_. E emquanto a armada de Hormuz e as tropas do sultão +eram chacinadas, desmanchava-se o lançol de barcos como uma teia cujas +malhas se soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o +mar sorvia uma atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam +fugindo em chammas, como trombas de fogo correndo, vogando á mercê do +vento «que era um grande espectaculo para vêr». Ainda oito dias depois +do sanguinario caso havia cadaveres boiando no mar, e os portuguezes em +lanchas occupavam-se n'essa particular especie de pesca. A colheita era +abundante, os cadaveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anneis +e alfinetes, as adagas e punhaes tauxiados de ouro e prata com joias +engastadas. Denudados, vinham a bordo as familias reconhecer os +cadaveres e leval-os piedosamente, em lagrimas, aos seus sepulcros. A +façanha fôra tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos +corpos mortos as chagas das frechas, não havendo similhante arma entre +os nossos? Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso +tristemente revelador da confusão do combate com o novo Alexandre da India. + +O pobre sultão de Hormuz, afflicto, immediatamente accedeu a tudo: +consentiu que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil +xerafins de tributo. E d'este concerto se fizeram duas cartas, uma em +folha de ouro, a modo de livro, escripta em arabico com letras abertas a +buril e suas brochas de ouro com tres sellos de ouro dependurados por +cadeias; a outra em parsi, que era a linguagem commum da terra, e em +papel com letras de ouro. E ambas estas cartas mandou Affonso +d'Albuquerque a el-rei D. Manuel. + + * * * * * + +Hormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque: mas isto mesmo +desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam, +cubiçosos de tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não +comprehendia para que se haviam de demorar alli, a construir uma +fortaleza; quando, a não saquearem a cidade, mais valia partirem para o +rendoso corso das náos de Meka, na bocca do Estreito. A intriga +insinuava-se, dizendo que o capitão-mór queria construir a fortaleza +para si, e fazer-se rei de Hormuz, levantando-se contra o de Portugal: +na India não havia ainda mais tradição do que a do saque maritimo, e o +pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser comprehendido. Nem +em tres annos, diziam, voltariam á India, perdendo occasião de carregar +as quintaladas que tinham de ordenado. A cubiça de mãos dadas com a +violencia e a cegueira agitavam perigosamente as guarnições. +Albuquerque, impassivel, proseguia. De uma vez que lhe levaram um +requerimento quando vigiava pessoalmente a obra da fortaleza, tomou-o +assim dobrado como lh'o deram, e sem o ler metteu-o debaixo de uma pedra +do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava cimentado +com as queixas. Mas as lages não pesavam bastante para as abafar, e +recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20:000 +xerafins pagos pelo de Hormuz, que, esperançado n'estas desordens, +confiado em promessas de sedição, e nos auxilios que o persa lhe +enviava, ousou romper as hostilidades. Viera com effeito o cheik Yar +(Xaquear) trazendo comsigo quatro mil arabes. Albuquerque estava n'um +serio perigo, e outro qualquer perder-se-hia. Os capitães recusavam ir +ao combate; mas elle, arrancando as barbas, aos punhados, ao capitão +Nova, levou diante de si os soldados, sósinho, ás cutiladas. Dos seis +navios, porém, fugiram-lhe tres, que vieram para a India contar ao +vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam resistir +ao seu mando _terribil_, só lhes era dado fugir! Albuquerque retirou +tambem de Hormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a +empreza, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a +Sokotra aprisionar as náus de Meka, e mais um navio o abandonou ahi: +nenhum podia supportar o ferreo mando do heroe. + +Em novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Hormuz, +estava de regresso á India, em Kananor, onde abriu a carta de Lisboa, +que lhe confiava o governo do Oriente. N'esse momento a violencia do seu +genio furioso arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados, +queria sobretudo terminar rapidamente o plano das suas conquistas; e +foram necessarios os rogos de D. Francisco de Almeida, a quem o filho +acabava de morrer, para consentir na expedição naval de Diu. Só quando, +mezes depois, chegou á India a fidalga armada de D. Fernando Coutinho, +poderam terminar as deploraveis contendas, entre o vice-rei e o seu +successor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu; +e, cheio de basofias, lançou-se na empreza em que achou a morte. +Engolfados na matança e no saque, no meio de parte da cidade incendiada, +os portuguezes foram por sua vez trucidados, quando os inimigos os +colheram dispersos e sem armas. + +Só e livre, absoluto senhor do imperio nascente, Albuquerque entregou-se +com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição d'elle era +a fundação de uma cidade, uma capital portugueza--cousa que até então +não existira. Katchi, cujo rajah desde o principio se abraçára aos novos +invasores, era uma cidade India, onde possuiamos apenas uma fortaleza, +abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa +para capital. Collocada a meia altura da costa Occidental da peninsula, +bom porto, a cidade reunia as condições desejaveis. Fazia elle então +parte do reino de Vijajapur (Bijapor) fracção que no fim do XV seculo se +separára do de Dekkan, declarando-se o seu khan independente, sob o +titulo de adil-shah (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-shah do Vijajapur, +ao tempo de Albuquerque, tinha por nome Yusuf. Por este governava em Goa +Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em fevereiro de 510 +Albuquerque tomou Goa por surpreza; e pela primeira vez houve no Oriente +um Estado portuguez. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um +logar significava apenas a substituição da suzerania indigena pela +nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construcção de fortalezas, +tinham sómente em vista assegurar o commercio e a cobrança das páreas ou +tributos de vassallagem, segundo o plano do primeiro vice-rei. +Albuquerque iniciava um systema differente; creava uma cidade +propriamente portugueza; e com o novo governador, o nosso dominio +desembarcava dos navios para a terra firme. A um systema de colonias, +como fôra em volta do Mediterraneo o dos phenicios ou o dos gregos, +substituia-se um imperio, como Annibal o sonhára na Italia, e Alexandre +o fundou na Asia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma +cidade portugueza, no sentido de ser exclusivamente habitada por +europeus: seria chimerico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto +fomentou os cruzamentos de portuguezes com mulheres indigenas, creando, +tanto em Goa como depois em Malaka[95], uma população de mestiços, que +mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso imperio. +Sob o dominio portuguez, os naturaes viveriam livremente na sua +religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao imperio +protector e soberano de Portugal.[96] Era um plano correspondente ao que +mais tarde os inglezes pozeram em pratica, sem todavia cruzarem com os +indigenas: da mesma fórma que os hollandezes preferiram os planos +maritimo-commerciaes de D. Francisco d'Almeida. + +Goa occupou ao governador todo o anno de 510; porque o _Sabaio_, tomado +por surpreza em fevereiro, voltou no verão; e os soldados de Albuquerque +não quizeram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da furia +e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os +planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da India, +que além de lhes não comprehenderem o alcance, se viam privados de +saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em agosto; mas logo +tornou para o dominio portuguez, ganha por assalto em novembro. Os +soldados obedeciam, porque o commando do governador era _terribil_, +desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé catholica. +Alexandre cria-se um deus, Albuquerque _viu_ mais de uma vez os milagres +do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavalleiro de armas +brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os +_mouros_[97]--conforme a tradição historica portugueza. Nas cidades da +costa da Arabia, viajando para Hormuz, as suas crueldades tinham sido +barbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impôr pelo medo; aqui +destruia como politico. Todos os _mouros_ de ambos os sexos, de todas as +edades, mais de seis mil, foram mortos; e queimados vivos os que se +tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque +para socego d'ella só devia conter gentios. Era o logar escolhido para +capital do imperio dos novos gregos pelo moderno Alexandre. + +Consolidada a posse da capital, no coração da India, Albuquerque +voltou-se rapido para as duas emprezas que rematariam o seu imperio: +Malaka e Hormuz. Embarcou, logo no principio de 511, e tocando em +Ceylão, a terra encantada das pedras preciosas, delicias do mundo, +patria da canella e das perolas, achamol-o, já em maio, em frente de +Malaka, no extremo Oriente. + +Malaka, na ponta da peninsula da Indo-China, sobre o estreito a que dá o +nome, era para esta região, como Hormuz, a norte-leste, para a outra. +Assim como além se permutavam os generos da India com os da Arabia e da +Persia, e em Adem com os do Egypto; assim em Malaka se faziam todas as +trocas dos productos occidentaes da China e das Molucas, e de todo o +extremo Oriente. De Malaka iam as náus a Ternate e a Tidor, a Banda e a +Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de +_juncos_ de Java, conduzindo á cidade o arroz, as carnes, a caça e os +_crizes_ tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que +levavam de retorno para as ilhas do archipelago. Amphibios, os malaios +viviam no mar em permanencia, com a casa e a familia a bordo; e os seus +_juncos_, com enxarcias de verga, iam buscar a Malaka os pannos de +Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as +drogarias de Kambai. + +Do saque de Malaka, o governador reservou para si apenas seis leões de +bronze, destinados ao seu tumulo. Sem se demorar, avassalou todo o +archipelago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, +segura a porta oriental da India, voltou-se a Goa, de caminho para +Hormuz e Aden, a consolidar o imperio pelo occidente. Em fevereiro de +513 sáe com uma armada para Aden, que não consegue tomar; viaja em torno +do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente +forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arabia, indo a Meka +despedaçar a santa Kaaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado +positivo, desde que Aden consegue resistir ás investidas do governador. +Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cupula do seu +edificio e a chave do imperio que vinha construindo. Conquistada Aden, +as duas emprezas que meditava eram relativamente faceis na sua +simplicidade temeraria. Levaria quatrocentos homens de cavallo em +taforeas ou caravellas e iria desembarcar em Liumbo, partindo n'um +galope até Meka, logar santo mal guardado por gente prostrada em +adorações. Roubaria o thesouro sagrado e o proprio corpo do propheta: +com ambos se resgataria o Santo-Sepulcro de Jerusalem, captivo. +Consumar-se-hia a obra mallograda das Cruzadas, tradição piedosa que na +Renascença passara das nações do norte para a Italia e para a Hespanha, +arrastando mais tarde Portugal a Alcacerquibir. Ao mesmo tempo, e por +outro lado, a grande empreza do mar Vermelho descarregaria um golpe +mortal no Egypto, que era a joia do imperio dos turcos e o arsenal de +onde vinham as armadas á India. O seu plano consistia em «cortar uma +serra muy pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste +Joham, para lançar as correntes d'elle por outro cabo que não fossem +regar as terras do Cairo».[98] Desviando o Nilo seccaria o Egypto.[99] +Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse officiaes da Madeira, onde os +havia mestres no córte das serras para formar as levadas de rega dos +canaveaes. Tudo isto continha a empreza de Aden, cujo mallogro cortou os +vôos ás ambições grandiosas do heroe. + +Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse +fulgurado aos olhos do mystico e terrivel heroe uma cruz vermelha, +Christo abandonara-o na empreza. Quando o famoso milagre surgiu, +Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que +andavam, caíram de rastos adorando a cruz.[100] E o capitão, para +corresponder ao céu, mandou tanger os córos de trombetas, responder com +artilheria aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um _estromento_ +assignado pelas guarnições, que veiu para D. Manuel, com a carga de +pimenta, afervorar a piedade mystica da côrte carthagineza. + +Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se +para Hormuz, cujo dominio não estava seguro. Outro Alexandre em +Persepolis, o heroe condemnou-se em Hormuz: a grandeza das suas façanhas +tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. +Orientalisado como o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam +já a crueldade, nem a força: appellava para a perfidia; e +intromettendo-se nas miseraveis politicas dos persas, chamou á sua tenda +para uma festa o ministro que então governava o principe idiota de +Hormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava +proximo da cova: e a sorte não queria que á historia d'este heroe +faltasse o epilogo frequente da historia dos heroes: uma abjecção. +Tampouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e +fraqueza commum. Alexandre mimoseava os litteratos de Athenas para que o +exaltassem: Albuquerque mandava anneis de pedras preciosas ao chronista +Ruy de Pina «para escrever com melhor vontade os memoraveis feitos da +India». + +De volta de Hormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como +fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte +Pacheco. A côrte de Lisboa já o mandára substituir no governo por Lopo +Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condemnar o seu +predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, +Albuquerque pegou da penna e dirigiu uma carta ao rei--«quando esta +escrevo a V. A. estou com um soluço que é signal de morte!» E pedia-lhe +que lhe honrasse a memoria e protegesse o filho: o que o rei fez, honra +lhe seja. Agonisando, via-se incomprehendido pela tacanha côrte de +Lisboa, e acceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor +d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, á +vista de Goa. Era homem de mean estatura, rosto comprido e corado. Era +avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui +facil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar +com os mouros, muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de +uma familia de sangue nobre, e educara-se na côrte militar de Affonso V, +viveiro da geração dos capitães da India amestrados nas guerras de +Africa. Fôra em 1480 na esquadra mandada a Napoles em auxilio do rei +Fernando contra os turcos, e nove annos depois partira para Africa a +defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era +estribeiro-mór de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D. +Manuel o mandou á India pela primeira vez. Foi, voltou com bons +creditos, mas sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e +aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como +capitão na esquadra de Tristão da Cunha. D'essa ida começa a historia +que narrámos e que termina agora com a sua morte. + +Os soldados, a bordo, amortalharam-no no habito de Santiago com +borzeguins e esporas, espada á cinta, na cabeça uma carapuça de velludo +e aos hombros uma beca tambem de velludo. O enterro subiu em lanchas, e +era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de +Goa. Ao desembarcar, foi levado aos hombros dos soldados, sob o pallio, +pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos +meio abertos, a longa barba atada até á cinta, fluctuando, não o criam +morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por +muito tempo houve romarias ao sepulchro do heroe, vindo os naturaes +pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfidias dos portuguezes, +offerecendo-lhe boninas e azeite para a sua lampada. Do extremo Oriente, +desde o Pégu até á China, ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.[101] + + * * * * * + +Hormuz, Goa, Malaka, os tres pontos cardeaes do imperio fundado por +Albuquerque no breve periodo de cinco annos (1507-11), valiam o dominio +em todo o mar das Indias e a vassallagem de todas as costas, desde +Sofala, em Africa, ao cabo de Jar-Hafun; desde Khor-Fakhan, na Arabia, +até ao golpho Persico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); d'ahi +ás boccas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pégu, até Malaka--com +as ilhas dispersas de Madagascar e Sokotra, Anjediva, os archipelagos de +Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Sinhala (Ceylão),[102] e +Sumatra e Java, Bornéo e as Molucas, até aos pontos extremos de Banda e +Ambon. Com effeito, depois de Malaka e da viagem temerosa mas esteril de +513 a Aden, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o +_terribil_. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os +principes queriam a amisade do portuguez, e a seus pés arrastavam a +corôa os rajahs de Ahmednagar e de Kambai, de Vijajapur e de +Narsinga,[103] o shah da Persia e os sultões de Sião, do Pégu, do +Arakan; e até o proprio _Hidalcão_, o adil-shah do Kanará, consentindo a +fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do +Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Bengala. Desde o Indo até ao +Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da +peninsula estava inteiramente submettido ao jugo portuguez. + +Entretanto este imperio não podia dizer-se ainda construido: era um +esboço apenas. Como depois de uma victoria brilhante os timidos se +curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na +politica de conquistas, o imperio portuguez ganhava a primeira batalha; +mas não podia decerto ensarilhar as armas, emquanto a costa da Arabia e +as margens do mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os +naturaes da India, avassallados por uma corrupção antiga, acceitavam o +dominio de qualquer vencedor; mas era necessario, para o manter, que a +victoria fosse decisiva. Ora o inimigo, o _mouro_, fôra batido, mas não +fôra expulso. Como n'uma doença, tinham-se debellado muitos symptomas, +mas não se destruira o principio morbido. Aden continuava a ser o +emporio do dominio commercial maritimo dos arabes e egypcios no Oriente; +o mar Vermelho, o Suês, no extremo fundo d'esse estreito corredor, as +boccas sempre abertas, para vasar sobre a India navios, artilheria e +soldados. O dominio, que os portuguezes se propunham substituir, +continuava; e do caracter dual ou mixto que a occupação da India +apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os _mouros_ e +com os naturaes, que ora os preferiam a elles, ora a nós. Ninguem, nação +alguma seria capaz de resistir a um seculo inteiro de similhante vida. O +destino do imperio portuguez no Oriente dependia do exclusivo do +dominio, desde que era impossivel pactuar ou dividir a presa entre os +dois caçadores rivaes. + +O genio de Affonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez: +Aden, Meka, o mar Vermelho, eram a sua preoccupação: «Tres cousas, diz o +filho e commentador, ha na India que são escapolas de todo o commercio +das mercadorias d'aquellas partes, e chaves principaes d'ella. A +primeira é Malaka, que está em tres graus na entrada e sahida do +estreito de Singapura; a segunda Aden, que está em vinte e um graus de +altura e na entrada e saída do mar Rôxo; a terceira é Hormuz, a qual +está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Persia. +Este Hormuz, a meu vêr, é a principal de todas. E se el-rey de Portugal +tivera senhoreado Aden podera chamar-se senhor de todo o mundo.» Dar um +golpe mortal no islamismo era, além de retribuir em Meka a affronta +humilhante de Jerusalem, mostrar aos musulmanos do Oriente que Jesus +podia mais do que Mafoma. Mas se o genio excepcional de Albuquerque não +bastou para levar a empreza ao fim, como poderiam bastar para isso os +pigmeus que lhe succederam? Valentes muitos ou quasi todos, incansaveis +no mar e na terra, os governadores da India foram extenuando em um +seculo de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento +politico, sem plano definido, á tôa e á mercê d'um capricho, ou d'uma +idéa a que o ciume imbecil da côrte limitava constantemente os vôos. A +primeira politica, a maritima, fôra abandonada com a queda de Francisco +de Almeida; a segunda politica, a imperial, condemnada com a deposição e +morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um dominio +estavel e seguro: uma tradição. + +Esta falta, comtudo, provinha de causas mais intimas, umas nacionaes, +outras chronologicas. O absurdo espirito da politica de Lisboa, e a já +provada incapacidade dominadora dos portuguezes, estão na primeira +categoria: na segunda estão os costumes e idéas de tempos relativamente +barbaros. Os portuguezes, ao pôr pé na India, faziam o mesmo que os +povos germanicos, ao descer dos Alpes sobre a Lombardia: cevavam-se. A +historia de Affonso de Albuquerque em Hormuz (1507) demonstra bem quanto +era impossivel impôr disciplina e ordem em campanhas que tinham no saque +o exclusivo motivo. + + Fomos ao rio de Meca, + Pelejámos e roubámos + E muito risco passámos. + +Estas palavras de Gil-Vicente resumem a historia da India; e com taes +elementos era possivel saqueal-a, era impossivel dominal-a. + +Por isso, n'esse seculo de 500 que a historia da India abrange, o +conjuncto dos caracteres da occupação portugueza fórma dois systemas: o +da rapina, contra o qual protesta e reage em vão a espada militar de +Albuquerque; e depois o da simonia, contra o qual, em vão tambem, reage +a vara justiceira de D. João de Castro. + +Estudemos agora o primeiro, a seu tempo estudaremos o segundo. Todos os +soldados de Antonio da Silveira, um capitão que andava pela costa, entre +Chala e Daman, trouxeram fato, escravos e dinheiro, com que foram +contentes; e assolaram tudo «em tanta maneira que se despovoaram todolos +logares da fralda do mar, que pela terra dentro dez leguas não havia +gente». Em Barava, destruida por Tristão da Cunha, os barbaros cortaram +as mãos e as orelhas ás mulheres para furtarem as manilhas e brincos de +ouro. A tomada de Mangaluru ficou celebre: «Foi entrada com muito valor, +e dentro d'ella fizeram os nossos espantosas cruezas, não perdoando a +sexo nem a idade, nem ainda ás alimarias». D. Paulo de Lima «deu na +cidade de Johore (Jor)--escreve á esposa--e assolou-a _com o favor +divino_». N'outro logar os combatentes, empilhados contra os muros, +pedem aos da frente que, _por amor de Deus_, lhes deixem matar um +_mouro_. Á approximação dos portuguezes, despovoam-se as cidades e fogem +todos com terror: assim aconteceu em Bintang. Albuquerque sustentou por +tres annos, no mar da Arabia, a sua armada com as presas das náus de +Meka. Quando os portuguezes occuparam as terras de Bardez «fizeram mui +grandes males de roubos, tyrannias, tirando as mulheres e filhas +formosas a seus maridos, e outras corrompiam, e as furtavam e tornavam a +vender». O de Hormuz queixava-se de que, em paz, lhe tiravam, a elle e +aos seus, «parentas de que (os nossos) faziam uso, tornando-as christans +a seu pesar». O roubo e a luxuria, alliados aos inimigos, davam lugar a +interminaveis guerras: assim os capitães de Malaka originaram as de +Johore e do Atchim (Achem); e nas Molucas a cidade de Bachian, +despovoada e vasia, foi incendiada, indo-se os barbaros ás sepulturas +dos reis furtar os ossos, na esperança de receber por elles, mais tarde, +um grosso resgate. Roubando e pirateando á solta, o genio aventuroso dos +portuguezes larga as azas, e os exploradores vão até aos confins do +mundo, fiados no seu atrevimento. Dois heroes das _Peregrinações_ teem +uma historia extravagante. Um, Antonio de Faria, vae á China roubar os +sepulcros dos imperadores; outro, Diogo Soares de Albergaria, obtém o +titulo de irmão do rei de Pégu, com duzentos mil cruzados de renda e o +commando do exercito: é o rei, mas morre assassinado, por ter furtado +uma rapariga. Nem se julgue que só pelos confins do mundo oriental +portuguez, em Hormuz ou em Malaka, ou só pelas costas, nos seus navios, +a furia dos portuguezes se desmanda em ferocidades anarchicas. Na +propria Gôa, capital, a vida é um combate. Pelas ruas ha batalhas e +cadaveres insepultos. Um governador prende certos salteadores +portuguezes, manda-os ferrar no rosto, junto á picota, e degredar para o +Brazil: logo um pelotão de amigos se amotina em armas para os libertar, +e, não podendo conseguil-o, vae a bandear-se para os mouros inimigos: o +governador manda-os desorelhar e amarrar aos bancos das galés; fogem e +fortificam-se, e é necessario tomar á força o reducto; prisioneiros, +são, afinal, amarrados vivos a elephantes, e esquartejados. É conhecida +a tragedia em que a amante de D. Paulo de Lima, precipitando-se das +janellas do seu palacio de Pangin, morreu, e o seductor, de espada e +rodella, abriu caminho por entre a gente armada que acudia com o marido. + +Até dentro das proprias egrejas havia rixas, a tiros: viam-se homens +caír assassinados no confessionario, e nos degraus dos altares, á meza +da communhão; e uma vez foi morto com um tiro o bispo quando levava a +hostia, em procissão, pelas ruas. + +Era uma anarchia barbara; e decerto os naturaes lamentavam a má-sorte +que os condemnava a supportar tantas crueldades ferozes. Antes o mouro +indolente e molle, e o antigo tempo que placidamente corria no seio de +uma orgia podre mas calma, nos braços do luxo, da opulencia e dos +prazeres! Como demonios vomitando fogo, negros nas suas armaduras, esses +portuguezes eram enviados para os desgraçar, para os punir talvez! E +levas esfarrapadas de fugitivos, n'um côro unisono de lagrimas e +afflicções, acompanhavam por toda a parte a visita dos terriveis +forasteiros, que não sabiam fazer-se amar do indio, tão submisso, tão +bem disposto para obedecer e servir. + +Os _fumos_ da India (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres +portuguezes, limitados na Europa á porção congrua do bragal e do aço, +sujeitos a uma forçada sobriedade e a costumes mais presos. Na India o +_fumo_ desenfreava o animal, que se retouçava delirante nas sedas e nos +perfumes, nas fructas e nas mulheres, coberto de diamantes, abarrotado +de pardaus de oiro. Breve, porém, esse _fumo_ se dispersou no ar; e a +desolação universal trouxe a miseria, o luxo trouxe a fraqueza; e á +violencia de barbaros, os portuguezes juntaram a mesquinhez de chatins. + + [93] «Ao que se achou presente Tristão Alvares, que era feitor do + capitão-mór, que não consentiu que ninguem tomasse nada e com + João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram tudo ao capitão-mór, + o qual logo tudo mandou qubrar e ameaçar e deu ao capitão e + aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de + prata e a Affonso de Albuquerque tres, porque nunca estes + capitães e fidalgos se apartaram para ir roubar.» + G. Correia, _Lendas_, I, 677. + + [94] O xerafin (as hrafi) = 12 rupia = 1 cruzado. Duarte Barbosa + da-lhe a equivalencia de 300 reis. + + [95] V. _Raças humanas_, I, pp. LX-I. + + [96] Não consentia o governador A. de A. que os portuguezes tratassem + (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser + poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do + que se recreceriam males de os matarem e perderem suas + fazendas... e tambem que, se os mouros vissem que lhes + tomavamos seus tratos nos teriam mór odio, e mais, que os + homens, andando tratando, andavam fóra do serviço de Deus e + d'Elrey, de que elle daria muitas contas a Deus: pela qual + razão não consentia que nenhum homem andasse fóra do serviço + d'Elrey. Com esta pragmatica os portuguezes eram muito temidos + por cavalleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos + que ainda que um só portuguez fosse em uma almadia, se o + topassem naus de mouros, todas amainavam e lhe iam obedecer, + mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos + eram assignados por A. de A.»--Gaspar Correia, _Lendas_, I, 518. + + [97] V. _Systema dos mythos relig._, p. 331. + + [98] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 243. + + [99] V. _As raças humanas_, I, pp. 106-10. + + [100] V. _Syst. dos mythos relig._, p. 331. + + [101] Ainda hoje os indios chamam _Affonso d'Albuquerque_ a um + certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoologico + não podemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu: + afundou-se, e revive n'esses animaes marinhos. A maxilla + inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das + figuras portuguezas do seculo XVI: o barrete, as barbas + ponteagudas e longas, etc. Os indios pintam esses ossos, + dando-lhes phisionomia humana e guardam os _Affonsos de + Albuquerques_ como fetiches. + + [102] V. _Inst. primit._, p. 3. + + [103] V. _Ibid._, pag. 163. + + * * * * * + + + + +III + +D. João de Castro + + +Morto Albuquerque, as cousas da India voltam ao estado anterior; e +abandonada a politica imperial, torna-se á politica maritima; ou antes o +dominio fluctua ao acaso, indeciso entre os dois planos. Lopo Soares +proseguiu ainda as guerras de conquista, acabando de avassallar Ceylão e +as Molucas. Vasco da Gama voltou pela terceira vez á India, como +vice-rei, para vêr se podia pôr cobro ás desordens e á corrupção interna +das colonias: foi com elle que se inaugurou o systema das successões, +mandadas de Lisboa em cartas, que só se abririam por ordem numerica, na +falta de cada vice-rei, para prevenir as frequentes desordens, a que +dava lugar a transmissão do governo. O almirante morreu tres mezes +depois de chegado, succedendo-lhe D. Henrique de Menezes; a este, Pero +Mascarenhas, e o usurpador Lopo Vaz de Sampaio, tão celebre pelas suas +perfidias. + +Nuno da Cunha tomou posse do governo em 1528 em condições difficeis. As +torpezas dos governos anteriores tinham sublevado contra nós os +monarchas do Hindustan. O de Kambai, ao norte, com o de Kalikodu, +inimigo antigo, ao sul, estavam desde tempo em guerra aberta comnosco, +de mãos dadas com os _mouros_, nossos rivaes. O governador, em quem os +dotes de guerreiro primavam, decidiu reunir todas as suas forças para ir +tomar Diu, na costa do Gujerât, castigando por um modo ruidoso a +insubordinação do de Kambai. + +Quem via a esquadra com que Nuno da Cunha se foi a Diu, podia avaliar a +transformação que trinta annos apenas, ou menos ainda, tinham produzido +no caracter dos portuguezes. Ninguem os tomaria já pelos descendentes de +Pedralvares Cabral, envergonhados da sua pobreza em Kalikodu; nem sequer +pelos piratas domesticados com a disciplina de Albuquerque: pareciam já +mouros, na opulencia e nos costumes. A esquadra era das maiores, senão a +maior de todas as que se tinham reunido na India: constava de +quatrocentas velas, entre as quaes mais de quarenta vasos maiores, e +multidão de bergantins, galeaças, fustas e catures. Apoz ella vinham os +juncos malaios com mantimentos, e um cardume de zambucos e cotias de +taverneiros, gente da terra, vendendo comestiveis e vinho. Capitães e +soldados tinham-se preparado como para uma funcção, luxuosamente +vestidos, carregados de pedras preciosas e ricas armas tauxiadas. As +mulheres enxameavam a bordo, esposas e amantes da gente da guarnição; e +além das mulheres os escravos eram numerosos. O governador tinha +promettido premios de 1:000, 500 e 300 pardaus aos primeiros que +successivamente subissem ás muralhas. Era uma expedição mercenaria, e +não uma aventura de bandidos. Isto exprimia a transformação que já se +tinha operado; e o governador, apesar dos seus meritos, nada podia +contra ella. + +Seguindo as boas tradições, a esquadra foi ao longo da costa deixando o +seu rasto de carnificinas e investidas covardes, contra os pontos +indefesos; e quando chegou em frente de Diu, rompeu o bombardeio. Dentro +da cidade era grande o susto. Os commerciantes mouros agitavam-se, +escondendo os seus thesouros e preparando-se para a fuga. Os fakirs +immundos, nús, e de rastos, estrebuxavam, e, erguendo-se como doidos, +acutilavam os braços e as pernas, ou batiam com calhaus grossos na +ossatura do peito, como a quererem matar-se n'um delirio de visões +santas. E o brahmine, com os seus longos cabellos enlaçados em turbante +no alto da cabeça coroada de flôres, perfumado de aloes e de agua de +rosas, untado de sandalo branco e açafrão, lançava-lhes uma esmola e +palavras de paz, para não juntar á desgraça da guerra novas desgraças de +suicidios! Os senhores de Diu, ricos do Gujerât, principes de Kambai, +attonitos, vagueavam nas ruas com as mulheres, a procurar refugio contra +as bombardas que estalavam por toda a parte. Com as caras rapadas á +navalha e os longos bigodes negros caídos, arrastavam pressurosos as +compridas camisas de algodão e de seda, calçados nos seus sapatos +bicudos de cordovão lavrado: e os longos brincos de ouro cravejados de +pedras balouçavam e tilintavam nas orelhas, em quanto corriam +desafivelando, cansados, os cintos de ouro rutilantes de esmeraldas. +Atraz d'elles as mulheres, de uma raça delicada e formosa, com o rosto +de um branco de leite, meio encoberto em mantos de seda com que vestiam +o tronco nú, corriam descalças, mostrando nos dedos dos pés os ricos +anneis, nas pernas as manilhas de ouro e prata, os braços nús carregados +de pulseiras, as mãos rutilantes de pedras preciosas. Era um terror e +uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o ribombar da artilheria, e +ao verem no ar a trajectoria de fogo das bombardas, que vinham sem +piedade rebentar em estilhas no meio da gente, crivando de lascas o +corpo côr de perola das mulheres, e as carnes côr de barro dos fakires +tisnados pelo sol, cobertos de uma camada de lodo secco e de immundicies +das estrebarias dos elephantes. + +As tropas de Kambai, nos seus postos das muralhas, esperavam o assalto, +para então se medirem com esses homens que, abrigados por detraz das +suas peças, distribuiam assim impunemente a devastação e a morte. +Tremiam comtudo; e os mouros, por entre os batalhões, lamentavam-se da +falta dos artilheiros venezianos e das esquadras dos rumes. Esperavam, +porém, muito da tropa de elephantes, que eram quinhentos com as prezas +limadas e o pé triturador, com que haviam de fazer em pastas humidas de +sangue a phalange portugueza.[104] As balas dos mosquetes +nada podiam contra a couraça da sua pelle, e esmagando com o peso, +despedaçando com as prezas, acabariam a obra começada pelos besteiros e +fundibularios de cima das torres. Mudos e immoveis, os quinhentos +elephantes de Kambai estavam na planicie, como ancora da salvação de +Diu; e os soldados olhavam para elles com amor. Além dos elephantes, +tambem a cavallaria se achava formada, montando á bastarda os leves +cavallos da Persia, embraçados os seus escudos pequenos e redondos +forrados de seda, ao cinto duas espadas e uma adaga, ao hombro as settas +e o arco. Uns vinham defendidos com armaduras e cotas de malha de aço, +outros com laudeis, que eram mantos de algodão acolchoado, onde todos os +golpes morriam perdidos. Os cavallos traziam testeiras de aço. Porém, +apesar de toda a força reunida, a artilheria dos navios aterrorisava-os; +e já por mais de uma vez alguma bomba, caíndo no meio dos elephantes, +dispersára as montanhas de carne, a correr em rugidos, com a tromba +erguida, como um mastro, entre as prezas de marfim. Na cidade havia +tambem artilheria e mosquetes, mas que nada podiam contra os navios +distantes: os pelouros disparados recochetavam na agua. + +Parou afinal o bombardeio, e todos olhavam com ancia, porque esperavam +assistir ao desembarque e contavam com a peleja. Viram, porém, com +surpreza que as náus emmastreavam e as galés mudavam a prôa ao mar, +afastando-se ao impulso dos remos. Fôra medo? fôra fraqueza? Decerto; e +a esquadra, atulhada de escravos e mulheres, não tinha forças para uma +batalha: apenas se arriscava a um canhoneio sem perigos. Já era fóra de +duvida que os deixava. As velas desfraldadas impelliam os navios na +volta do mar. A alegria e a assuada substituiram então o pavor e o +silencio. Todos pulavam contentes, desde o fakir immundo, até ao grave e +perfumado brahmine; desde os velhos e as creanças, até ás mulheres, +envolvidas nos seus mantos de seda, com os braços e as pernas núas, a +correr, agitando os longos brincos, preciosos, tão pesados que lhes +rasgavam as orelhas. Os commerciantes mouros abriam os bazares e +desenterravam os cofres; e todos vinham á praia vêr a armada que se +afastava, despedindo-se d'ella com vaias e gritos de zombaria, tangendo +musicas, disparando tiros de espingardas para o ar, e mandando, por +cortezia, pelouros, a arranhar a superficie azul das ondas. Diu estava +salva das ameaças do portuguez. + +Porém quatro annos depois, intervindo nas questões internas dos sultões +e rajahs da peninsula, Nuno da Cunha obteve a permissão de construir a +fortaleza de Diu, celebre depois pelo heroismo dos seus cercos. A +politica do governador não desdenhava, comtudo, o assassinato; e o pobre +sultão de Kambai, convidado a uma entrevista, foi trucidado, á maneira +do que já succedera antes em Hormuz. D'ahi proveiu a guerra e o primeiro +cerco de Diu, sobre-humanamente defendido por Antonio da Silveira. + +As chronicas chamam a Nuno da Cunha vencedor de Kambai, heroe de +Bassaim, de Kalikodu, e fundador de Diu. Basta esta enumeração dos +lugares para demonstrar que o dominio portuguez na India inclinava já, +com trinta annos de vida apenas, á decadencia. Os erros politicos +originavam guerras permanentes; e o poder dos invasores, que n'um +relampago se alargára por todo o Oriente, não se consolidava: agitava-se +desordenadamente, no meio de questões sempre renascentes, extenuando as +forças defensivas, e corrompendo-se intimamente. Se Nuno da Cunha merece +dos coevos o nome de heroe, não é pelo valor ou alcance dos meritos +proprios, é pela absoluta incapacidade dos seus predecessores e dos que +lhe succederam. D. Garcia de Noronha, que veio apoz elle, era um fidalgo +pobre, sem merecimentos, além do da pobreza e das sympathias do rei, que +o mandou á India enriquecer. «Honra, eu a tenho: não venho mais que a +levar dinheiro», dizia mais de um governador. D. Estevam da Gama foi +ninguem; e Martim Affonso de Souza prégou com o exemplo, francamente +cynico, a abjecção em que a administração da India se tornára--agora que +terminára o saque de todas as costas, e as náus de Meka, mais raras e já +artilhadas e preparadas para rudos combates, não davam com que +satisfazer a cubiça dos occupantes. + +A segunda epocha da historia da India, a da podridão, apparecia já +desenvolvida e accentuada por tal fórma, que o governo de Lisboa +reconheceu a necessidade de pôr cobro a tamanha desordem, e nomeou +viso-rei D. João de Castro, leitor assiduo de Plutarcho e decidido, por +opinião, a ser um modelo de virtude, e um typo de nobreza á antiga,--ou +pelo menos á moda do que então se julgava terem sido certos dos antigos +heroes. + + * * * * * + +Effectivamente o estado das cousas exigia remedios energicos. Martim +Affonso de Souza deve abrir o rol, porque ninguem melhor e mais +ingenuamente vivia no seio da podridão e o confessava, nas cartas que +enviava para Lisboa, ao rei. A successão do governo de Vijajapur era +debatida entre dois principes indigenas; e o governador «tardou em se +determinar, porque estava esperando quem levava a melhor». Afinal +decidiu-se pelo _Hidalcão_, que parecia ter mais justiça e era _mais +firme_, «ainda que vos certifico que da outra (parte) havia tantas +razões e contrarios que foi necessario _soccorrer-me a missas e +devoções_». Além das devoções, o vencedor deu-lhe 70:000 pardaus para +el-rey, 20:000 para elle proprio governador, e uma joia para sua esposa. +Deus, porém, não se contentando com ajudar o modo por que o governador +vendia o seu apoio, matou o rival vencido. Tudo corria para o melhor, +quando, para coroar o caso, vem um privado de Assud-Khan propôr-lhe a +divisão do thesouro do fallecido: 500:000 pardaus: «Mando 300 a el-rey, +mas d'estes tomei 30:000 para mi, que é o dizimo que lá mando a minha +mulher: que em razão está que tenha alguma parte d'isso, pois o podera +ter todo, que eu podera ter tomado este dinheiro sem o ninguem saber». +Esta pratica de vender o auxilio nas contendas indigenas não era, +todavia, privilegio de Martim Affonso. Em Hormuz, sob a tutela dos +portuguezes, D. Duarte de Menezes substitue a um governo amigo dos +nossos, um outro que preferia o mouro, porque este lhe deu «cem mil +pardaus em xerafins novos, e em conta ricas perolas e joias e aljofar». +Gaspar Correia diz do governador, que gostava de «boas peças e dadivas e +alvitres de apanhar dinheiro, e banquetes e prazeres, e com mulheres +solteiras com que ia folgar no tanque de Tinoja, e em tudo era mui +devasso». + +Os capitães seguiam os exemplos dos governadores. De um de Hormuz, Diogo +de Mello, queixa-se o _rei_, porque o alguazil o ferira e quizera matar +por lhe não dar dinheiro e joias que exigia; pedindo soccorro, pois se +lhe não acudissem, despovoava-se a cidade. E nem só as fortalezas, ao +lado dos soberanos indigenas, eram rendosos meios de rapina: o mar +produzia tambem muito. Ruy Vaz vae por sua conta a Bengala _ás prezas_; e +dois navios, mandados expressamente de Lisboa á India com instrucções e +cartas, para decidir o pleito entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz, +fogem para Madagascar _ás prezas_, e ahi se perdem. A pirataria dos +portuguezes era tão productiva que excitava os estranhos; e de parceria, +piratas francezes, guiados pelos nossos, dão a volta d'Africa, e vão +explorar a India. Não era tampouco raro vêr nos mares do Oriente navios +de arabes guarnecidos por portuguezes mercenarios; os _mouros_ pagavam +melhor do que o rei. A guarnição da armada com que Lopo Vaz foi ás ilhas +de Sunda incendeia os navios por falta de pagamento do soldo; e os +naturaes assaltam os portuguezes á pedrada, obrigando-os a pedir +capitulação. Effectivamente a sorte dos soldados era tão dura, que se +recusavam a embarcar em Goa, sem primeiro terem sido pagos. Os +governadores eram obrigados a mandal-os caçar pelas ruas e casas, +levando-os algemados ao tronco, e da prisão para a armada. + +A vida do soldado da India e a organisação militar eram com effeito +singulares. Desembarcando sem dinheiro em Goa, depois das doenças da +viagem, os que não tinham parentes ou amigos na capital da India, +espalhavam-se pedindo esmola em bandos pelas ruas, dormindo esfarrapados +e semi-nús debaixo dos alpendres das egrejas, ou nas galés e lanchas +varadas na praia. Empenhavam o que traziam: a capa, a espada; ou +preferiam roubar para viver, esperando o arrolamento da armada, que +todos os annos ia varrer as costas do Malabar, inçadas de piratas arabes +cujo rei era o Cutiale (Kuuat-Ali).[105] Chegada a epocha, +lançado o bando, nomeiavam-se os capitães dos navios--logo veremos +porque artes e maneiras o capitão tratava de angariar a sua gente. A +_chusma_ da marinhagem compunha-se de negros captivos, agarrados a laço +pelas ruas. Os soldados recrutavam-se nos bandos já amestrados na rapina +e que, de volta das expedições, se pavoneavam nas ruas de Goa: era uma +tropa de salteadores e adulteros, malsins e alcoviteiros, que enchiam a +cidade de roubos e assassinatos nocturnos, occupando-se a beber nos +lupanares e a matar por officio e dinheiro. Os _reinoes_ bisonhos +entravam só nas faltas, até que tivessem por seu turno aprendido como se +era soldado da India. O capitão dava dez xerafins a cada um dos soldados +para se prepararem e armarem. Cada qual escolhia as armas que bem lhe +agradavam, e muitos preferiam gastar o dinheiro em orgias, indo para +bordo esfarrapados e sem mosquete, nem lança, nem rodella, nem espada: +com as mãos vazias. + +A mesma anarchia se usava no ataque; desembarcavam em chusma, e +_davam-lhes de Santiago_, cada um conforme podia e sabia. Dispersavam-se +todos com a mira no que podiam roubar, porque esse era o verdadeiro +soldo; os dez xerafins um preparo apenas. Geralmente a primeira +investida era irresistivel: e logo ao ataque se seguiam o incendio, o +roubo, a matança--muitas vezes tambem a reacção dos inimigos. Dispersos, +deixando as armas ás portas das casas para irem mais leves a roubar, os +soldados eram mortos um a um: como succedera no grande desbarato de +Kalikodu, onde morreu D. Fernando Coutinho; como succedia a cada passo, +por toda a parte. Com tal systema, a guerra protrahia-se +indefinidamente; mas era isso o que convinha a todos, porque d'ella +tiravam o melhor dos seus proventos. + +Os soldados roubavam, os capitães roubavam com elles, roubavam-nos a +elles, cerceando-lhes as rações de arroz avariado e podre. E depois da +façanha, em que muitos ficavam, depois de forçados a fugir em debandada, +«os capitães-móres das armadas recolhem-se com os focinhos quebrados e +com alguns navios perdidos. E ao entrar a barra de Goa, é tanta a +bombardada que não ha quem se ouça, e ao sahir em terra tanta pluma e +bisarrice, como se deixaram destruido o mundo.[106]--E não +é bem, accrescenta outra testemunha, a facilidade com que os capitães da +India entram em Gôa triumphando, esbombardeando, cheios de plumas e +pontas de ouro, deixando muitos companheiros descabeçados nas praias de +Calecut.» + +Não é bem, decerto; mas não podia ser de outra fórma; e ainda assim a +basofia, apesar de ser enorme, não era a peior das fraquezas dos +capitães da India. Pedro não obedecia a Gonçalo por não ser tão fidalgo +como elle: eram todos _pontinhos e biquinhos de honra_. Em tendo sido +capitães de quatro fustas, não queriam mais saír fóra sem bandeira na +quadra; «e alguns não teem mais noticia da guerra que passear ás damas.» +O peior, o peior de tudo era que uma vergonhosa corrupção apagava todos +os brios. Nuno da Cunha dizia que os homens da India eram como os +doentes de colera, tinham os gostos damnados; e outro accrescentava que +os viso-reis, ao passarem o cabo da Boa-Esperança, perdiam de todo o +temor a Deus e ao rei, como perdem a memoria os que passam o Lethes. + +Vimos ha pouco o modo por que se guarnecia uma armada; resta dizer que +as capitanias do mar e as das fortalezas eram compradas por dinheiro aos +viso-reis: um rapaz imberbe pagou uma d'essas por um serviço de mãos e +um saleiro de prata; e duzentos pardaus eram _as ordinarias_, isto é, o +preço usual de uma capitania. Providos no seu lugar, os capitães, que o +tinham comprado, faziam-se mercadores e contrabandistas, conluiando-se +com os empregados fiscaes, e associando-se com os mouros e judeus. Os +capitães de Malaka tinham náus para irem de sua conta, á China, de um +lado; a Diu, Chala, Daman, Bassaim, do outro. Os de Hormuz commerciavam +por mar com Bengala, com os portos da costa occidental da peninsula, e +com o Zamgebar. Como negociantes, á imagem do rei, exigiam tambem em +favor proprio um monopolio; e d'ahi vinham as desordens e violencias +brutaes exercidas sobre os indigenas. «A guarda do _cartaz_ +(salvo-conducto que os navios _mouros_ pagavam para navegar no mar da +India) é o credito do nosso Estado», diziam os homens-bons do Oriente; +mas por cima de tudo o mais, os capitães, para fazerem prezas, buscavam +_bicos_ no exame dos passaportes e roubavam os navios e as cargas. Os +lucros do commercio não lhes bastavam, e o roubo vinha engrossar o +rendimento das capitanias. Hormuz era, sobre todas, celebre n'esta +especie. Arrolamentos de guarnições ficticias, matriculas de praças +mortas, para embolsarem o soldo de suppostos soldados, eram casos +ordinarios e communs a todas: só d'esta verba um capitão de Hormuz fazia +30:000 cruzados em tres annos. Com os navios succedia outro tanto: +fundeados, a apodrecer nas aguas, ou varados na praia, custavam ao +thesouro da India o preço de guarnições que só existiam no papel. E +estes roubos eram tão vulgares que não havia pejo em os confessar. Um +capitão de Hormuz declarava alto e bom som, que não perdoaria um real da +somma que se tinha decidido a ganhar--300:000 cruzados. + +Um certo Alvaro de Noronha, na mesma praça, accusado, responde que outro +tanto fizera o seu antecessor, «que sendo _apenas um Lima_ levára +140:000 pardaus: elle _como Noronha_, havia de levar mais». O brazão da +sua casa ficaria manchado, seus avós corariam, se gente menos nobre lhe +passasse adiante em qualquer cousa--até no roubo. + +E os crimes dos capitães não podiam ser punidos, porque os viso-reis +faziam outro tanto e mais: quando o exemplo vinha de cima, como se havia +de condemnar a copia? O governador Lopo Vaz de Sampaio, que era pobre e +tinha muitos parentes a proteger, foi a Hormuz _para fazer proveito_, +com doze navios, cujos capitães eram todos seus proximos e afilhados. +Diogo de Mello era seu cunhado, e isso o deixou impune dos roubos e +males extraordinarios que tinha commettido. Nas deploraveis intrigas com +que empolgou o governo a Pero de Mascarenhas, Lopo Vaz, para crear +partidarios, usou de todos os meios. Pagaram-se todos os _alcances_ por +meio de folhas de suppostos soldos vencidos; e n'esta _agoa envôlta_ +muitos enriqueceram. A um certo Nuno Redondo, eximio em _falsar sinaes_, +deveu o governador o alvará com que espoliou o seu émulo. + +As principaes rendas dos governadores provinham de diversas especies de +peculato: as _peitas_, ou luvas que recebiam por todos os empregos; as +heranças jacentes que roubavam; os cabedaes do indio ou judeu queimado +pela Inquisição de Goa; os conluios com os _contadores_, para +extorquirem dinheiro aos funccionarios e litigantes; a falsificação da +moda; o roubo do cofre dos orfãos; o fornecimento de material de guerra; +as matriculas de soldados mortos ou nunca arrolados; a amortisação dos +titulos de divida do governo, comprados no mercado por vil preço, e que +nas contas iam mettidos pelo seu valor nominal. + +A turbulencia e devassidão dos soldados provinham dos crimes dos +commandantes, ficando por isso impunes; os roubos dos governadores +authorisavam os dos capitães: mas se o governador fosse punido, não +poderia acaso varrer-se o lodo e moralisar-se o dominio? Poderia; mas os +governadores tinham a favor da sua corrupção argumentos muito valiosos, +e podiam contar com a impunidade. Em Lisboa, salvas momentaneas +excepções, considerava-se a India como uma vasta seara a colher. «Cartas +se liam pelas portas, em ajuntamentos de cadeiras, que era uma vergonha +os descreditos que n'ellas vinham.» Desde o rei até ao mais infimo dos +moços da chusma, todos eram commerciantes; e o commercio, cuja mira é o +lucro apenas, tolera tudo, pactua com todas as devassidões. Contam que +D. Manuel em pessoa achava graça ás manhas e expedientes vis, com que se +explorava a India, quando os que de lá vinham justificavam as artes com +a riqueza, augmentando a opulencia faustuosa da côrte. Bastante dinheiro +e um pedaço de lisonja venciam tudo. Diogo de Mello, de quem já falamos +como heroe, foi condemnado á morte pela Relação de Lisboa; mas _fiqou_ +em morte civil para S. Thomé; depois para Africa; e, por fim, com dar +500 cruzados para a Arca-da-Piedade, casando suas filhas com as muitas +riquezas dos roubos que n'este mundo não pagou. + +Pagal-os-hia no outro? Não era de crer; porque o jesuitismo tinha +descoberto que a simonia não era peccado, sempre que se seguissem umas +certas regras. O furto deixava de provocar escrupulos de consciencia, +desde que os casuistas tinham averiguado ser licito cobrar por qualquer +modo, o que se não póde haver por demanda, de pessoa poderosa. Ora quem +mais poderoso do que o rei, dono do thesouro da India? Por isso, uma vez +os conegos de Goa fecharam a sua egreja e suspenderam o culto, quando o +viso-rei, distante em Katchi, deixou atrazar-se-lhes as pagas. E além +d'esta justificação de todos os expedientes, os padres confessores da +_Companhia_, defendendo os que recebiam _luvas_, diziam que o nome de +_peita_ se entende só do que se toma da parte antes de a despachar, ou +de concerto que se faça para o negocio[107]. Mas se a parte +fôr despachada, póde muito bem gratificar depois: é um agradecimento, e +não uma peita. + +Não deixaria, por certo, de valer para muitos esta boa paz em que se +achavam com o céu; mas é fóra de duvida que os escrupulos religiosos não +incommodavam a maxima parte, senão quando, na volta para o reino, os +assaltavam os temporaes da costa d'Africa. A cumplicidade de Deus era +muito; mas era melhor ainda a cumplicidade das justiças, que na terra +podiam confiscar, prender e matar. Um chronista erudito escrevia: «O +imperio romano não se começou a perder, senão depois que se começaram a +vender os magistrados; e assim eu dou a India por acabada». Não eram só +venaes, eram tambem analphabetos, os juizes: fazia-se um desembargador +com _dois debrums de latim_. As testemunhas custavam em Goa a pardau por +cabeça «e se a um ladrão ou salteador, por conhecido que seja, não +faltam 4 ou 6 testemunhas que o abonem, como faltarão a um viso-rei?» +Além d'isso, de que valeriam rigores contra os «roubos, injurias, +mortes, forças, adulterios com as casadas, viuvas, virgens, orfans... se +dizem que elrey N. S. é tão cheio de misericordia, que por males que lhe +façam, tudo perdoa e quita?» Gaspar Correia achava, entretanto, +indispensavel que se mandasse cortar a cabeça de um viso-rei no caes de +Goa. + +A misericordia de S. A. não consentia isso, mas o povo esteve por um +nada a fazel-o. Quando o conde da Vidigueira, ex-governador, partia para +o reino, as turbas derribaram da porta da cidade de Goa a estatua do bis +avô (Vasco da Gama), enforcaram-no em effigie na verga de uma náo, e +envenenaram ao neto o pasto dos animaes que levava de vitualha para a +viagem[108]. + +Mais graves e decisivos symptomas de desaggregação do ephemero imperio +da India rebentavam constantemente, e por toda a parte. Ferviam as +deserções; e grupos de soldados iam arrolar-se nas tropas indigenas, ou +nos navios arabes, por miseria, por cubiça, por homizio, arrastados pela +fome ou pelas _moraxas_ infieis, espalhando-se em Kambai, no +Balutchistân, no Afghanistân e na Persia, de um lado; em Bengala, do +opposto; alastrando-se pelo Arakan, por Pegú, por Malaka, e Kamboja, até +á China. Os que militavam debaixo das insignias dos reis e principes +infieis eram tantos, «que sem muitas lagrimas não se poderá considerar, +quanto mais escrever... e muitos se põem por soldados em navios de +chatins, onde, posto que o soldo não seja tão honrado como o d'elrey, é +mais proveitoso, por ser melhor pago». Em tempo d'elrey D. Sebastião +havia na India 16:000 portuguezes, e não se poderam mandar 800 homens a +soccorrer Malaka. + +Já em Chala, no tempo de D. Francisco de Almeida, logo no começo da +occupação da India, 50 marinheiros da armada do viso-rei, perante o +inimigo, conspiravam para se passar aos _mouros_, que pagavam melhor. +Estes phenomenos, pois, não provinham directamente da decadencia, +manifesta agora; mas tinham causas intimas, e logo evidentes no começo +da empreza. + +Além dos que desertavam, outros iam por conta propria estabelecer +feitorias, ninhos de piratas «buscando pão para comer, por não haver +armadas ou fortalezas em que lh'o deem». Assim em Tchitâgan, assim em +Ugoli de Bengala, em Nagapatan na costa oriental da India, em Macau e em +infinitos lugares.[109] + + * * * * * + +Para engrenar esta roda de miserias, foi do reino enviado D. João de +Castro. O quarto viso-rei da India[110] era, havia muito, +conhecido pela candida nobreza do seu caracter, pela sua experiencia de +navegador e guerreiro, e pela vastidão do seu saber, pelo seu amor ás +boas lettras. Esse amor punha na sombra os dotes ingenuos do seu +espirito; e esse asceta e amante mystico da natureza, qual o descobrimos +nos seus escriptos, vestia a toga dos heroes antigos, para apparecer em +publico na attitude classica do estylo dos seus papeis de Estado e do +cortejo do seu triumpho em Goa. A preoccupação romana do XVI seculo em +Portugal tinha em D. João de Castro um fervoroso sectario; e como o +genio do viso-rei era de uma sinceridade candida, a affectação antiga +tomava para elle as proporções de um culto. As suas phrases e gestos, +copiados dos antigos heroes, não eram decerto uma mascara postiça, +embora a nós se affigurem taes. Affonso de Albuquerque, porém, tinha no +sangue a força de Alexandre; e a D. João de Castro só a imaginação fazia +um Numa, e um Cincinnato. Mas a imaginação governava-o tanto, que lhe +moldou o genio, tornando-o um exemplo vivo do poder que a educação moral +é capaz de exercer sobre o temperamento. Esta construcção artificial do +caracter produzia, comtudo, contradicções necessarias. O amor litterario +da phrase, e o enthusiasmo da copia, arrastavam-no a cousas, senão +ridiculas, extravagantes. Não ter em casa uma gallinha para comer, +enfermo, e confessal-o com orgulho, era de certo misturar á honradez +natural uma ponta de affectação. Quando pediu a Goa trinta mil pardaus +para levantar a fortaleza de Diu, mandou os cabellos das barbas por +penhor; mas, com o symbolo, era forçado a dar tambem uma provisão para o +thesoureiro de Goa, adjudicando ao pagamento do emprestimo o rendimento +dos cavallos. Todos os casos da sua vida sympathica demonstram a nobreza +ingenita de um caracter, cunhado artificialmente pela educação litteraria. + +Era este o homem capaz de engrenar a roda da decomposição do imperio +oriental? Não, decerto. A sua propria grandeza na honra valia pouco, por +ser affectada, embora não fosse fingida. Os homens positivos e +corrompidos da India sorriam d'esse espectaculoso heroe; e, vendo ao +mesmo tempo a ingenuidade candida e pura do seu espirito, confiavam +descansados em que não lhes viria d'ahi mal algum para os seus +interesses. A propria affectação _antiga_ do viso-rei demonstrava a +fraqueza do estadista; porque só uma alma ingenua podia ligar tamanho +amor ás fórmas, e a ingenuidade jámais venceu nos governos. Integro, +forte, e piedoso no seu fôro intimo, D. João de Castro era um heroe e um +santo; mas nem essa fórma subjectiva do heroismo, nem a santidade, foram +nunca os meios de travar o movimento de decomposição de uma sociedade, +ou de a impellir no caminho do progresso. Para tanto, exigem-se as almas +duras, os espiritos frios, sem escrupulos, de um João II, ou de um Pombal. + +D. João de Castro não tinha em si os dotes de nenhum d'esses; e o seu +governo ficou inutil como uma bella pagina de moral: á maneira do livro +em que lhe escreveram a vida, e que é uma boa pagina de rhetorica.[111] +Ficou, porém, como um sincero protesto: esse é o seu valor +social-historico. Ficou como um exemplo de bravura temeraria, attestada +nos cercos de Diu--quando o sultão da Turquia (Soliman II) mandou de +reforço quatro mil janisaros, ou _rumes_ sob o commando do pacha do +Cairo, em auxilio de Khuajeh Safar (Cogeçofar), o ministro do rei do +Gujerât--mas d'esses exemplos abundavam; ficou, por fim, como um typo, +ao mesmo tempo nobre e interessante, do caracter de um santo e da +influencia da litteratura no genio dos individuos, ou antes nas suas +acções. + +Se é que alguem havia em Portugal capaz de governar a India, o governo +de D. João III demonstrou cegueira, escolhendo-o; ainda que, por +distinctos que fossem os dotes de qualquer outro, é tambem facto que a +empreza de levantar da anarchia o imperio do Oriente excedia as forças +humanas, porque os vicios d'elle eram congenitos da sua existencia. + +Ao terminar este rapido esboço da vida politica de Portugal no Oriente, +convém mencionar a opinião do quarto viso-rei e as suas observações, +transmittidas para Lisboa, em cartas ao monarcha. «Cá está tudo, +escrevia, em estado que não ha mouro que cuyde haveis de ser de ferro +para o seu ouro, nem christão que o creio.» E passava a enumerar o +estendal das miserias. As armadas ficavam podres, que se desfaziam com +as mãos; e não escapariam ao inverno, sem irem ao fundo. Nenhum dos +soberanos do Oriente confiaria nem uma palha a um portuguez: a tanto +chegára o descredito. Fôra um milagre trazer do reino á India, a +salvamento, a esquadra em que viera. Todos os dias havia em Goa +lançadas, revoltas e desafios, capazes de maravilhar até a propria +Italia. Não havia soldado que não tivesse uma ou mais mancebas. Todos +desobedeciam aos capitães, e cada qual se arvorava em chefe. Por causa +das mancebas dos soldados havia revoltas e desastres em todas as náus. +Nas Molucas, os nossos, depois de saquearem e roubarem as casas de um +certo rei, pozeram-no a ferros e «forçaram suas mulheres com tamanhas +desonestidades, que se não póde dizer a V. A.--Todos são ladrões, todos, +sem excepção, chatins. As cobiças e vicios teem cobrado tamanha posse e +authoridade, que nenhuma cousa já se póde fazer por feia e torpe, que +dos homens seja estranha. E são mais as almas perdidas dos portuguezes +que veem á India, do que se salvam as dos gentios que os prégadores +religiosos convertem á nossa santa fé.» + + [104] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 161-2 e 275-6. + + [105] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 188-95, a descripção + da pirataria mediterranea: causas identicas produzem + resultados eguaes. + + [106] V. _Hist. da republica romana_, I, p. 274. + + [107] _Hist. da rep. romana_, II, p. 187. + + [108] V. _Hist. da rep. romana_, I, p. 356 + + [109] V. nas _Raças humanas_, a p. LX-I do vol. I, o estado actual + dos restos da colonia portugueza de Malaka; tambem I, + pp. 75 e segg. + + [110] 1 D. Francisco d'Almeida 1505 1.º viso-rei + + 2 Affonso de Albuquerque 1509 + + 3 Lopo Soares de Albergaria 1515 + + 4 Diogo Lopes de Sequeira 1518 + + 5 D. Duarte de Menezes 1521 + + 6 Vasco da Gama 1524 2.º viso-rei + + 7 D. Henrique de Menezes 1524 + + 8 Lopo Vaz de Sampaio 1526 + + 9 Nuno da Cunha 1529 + + 10 D. Garcia de Noronha 1539 3.º viso-rei + + 11 D. Estevam da Gama 1540 + + 12 Martim Affonso de Sousa 1542 + + 13 D. João de Castro 1545 4.º viso-rei + + 14 Garcia de Sá 1548 + + 15 Jorge Cabral 1549 + + 16 D. Affonso de Noronha 1550 5.º viso-rei + + 17 D. Pedro Mascarenhas 1554 6.º viso-rei + + 18 Francisco Barreto 1555 + + 19 D. Constantino de Bragança 1558 7.º viso-rei + + 20 D. Francisco Coutinho 1561 8.º viso-rei + + 21 João de Mendonça 1564 + + 22 D. Antão de Noronha 1564 9.º viso-rei + + 23 D. Luiz de Athayde 1569 10.º viso-rei + + 24 D. Antonio de Noronha 1571 11.º viso-rei + + 25 Antonio Moniz Barreto 1573 + + 26 D. Diogo de Menezes 1576 + + 27 D. Luiz de Athayde 1578 12.º viso-rei + + 28 Fernão Telles de Menezes 1581 + + 29 D. Francisco Mascarenhas 1581 13.º viso-rei + + 30 D. Duarte de Menezes 1584 14.º viso-rei + + 31 Manuel de Sousa Coutinho 1588 + + 32 Mathias de Albuquerque 1591 15.º viso-rei + + 33 D. Francisco da Gama 1597 16.º viso-rei + + Pela constituição do vice reino da India o mandato dos + governadores durava tres annos, findos os quaes podiam ser + reconduzidos por novo triennio, conforme succedeu a muitos, + e se vê do rol supra. Com a nomeação do vice-rei iam, em + cartas fechadas e numeradas, as dos substitutos; e quando + occorria a morte do governador abria-se a primeira _successão_, + na falta do individuo ahi indicado, a segunda, etc. As datas + acima inscriptas e a ausencia do titulo do viso-rei mostram + quem governou por _successão_. O titulo de vice-rei, excepcional + a principio, tornou-se inherente ao cargo de governador + desde 1550. + + [111] J. Freire de Andrade, _Vida de João de Castro_. + + * * * * * + + + + +IV + +Summario da derrota. Volta ao reino + + +Anarchicamente iniciada, a occupação da India foi, de principio a fim, +uma exploração anarchica. A politica maritima e commercial de D. +Francisco de Almeida, o imperio de Affonso de Albuquerque, o virtuoso +reinado de D. João de Castro, provaram egualmente impotentes para +organisar o dominio portuguez no Oriente, de um modo regular e +duradouro. Nem a arte, nem a força, nem o santo exemplo, poderam +disciplinar a turba dos invasores da India. + +Causas intimas, a que de passagem temos alludido, o impediam. A +Renascença, apresentando aos homens um sem numero de idéas e impressões +novas, desorganisando os systemas, as crenças, as instituições e todo o +organismo das sociedades medievaes, abandonou o individuo aos impulsos +desordenados da natureza, pondo ao mesmo tempo nos seus actos uma +energia affirmativa até alli desconhecida. Heroismo pessoal e +naturalista, uma grande explosão de força, a devassidão nos costumes e a +anarchia nas idéas, eis ahi em que se resume, por este lado, a +Renascença. A França, a Italia, a Hespanha, a Inglaterra e a Allemanha, +isto é, a Europa inteira, offerecem ao observador caracteres de +phisionomia bastantes para suppôr que, se a qualquer d'ellas tivesse +cabido o destino de occupar as Indias, o seu imperio não teria sido +melhor nem peior do que foi o nosso. + +Porventura, porém, ás nações protestantes que nos succederam com +superior fortuna no Oriente poderia a rigidez fanatica ter cohibido um +tanto, e o genio mercantil ter mostrado mais depressa os meios efficazes +de explorar a India, sem a saquear. A nós faltavam-nos os dois +requisitos. O catholicismo não era então--como o era a religião +protestante--uma fé intima e absorvente: era uma convicção para uns, uma +convenção para outros, uma conveniencia para muitos, e um desvairamento +para os defensores intolerantes da fé. Havia decerto uma affirmação +religiosa unanime e violenta; mas desapparecera a unanimidade ingenua e +espontanea da crença, que radica as religiões. O catholicismo +atravessára uma crise, de que saíra malferido; e a violencia com que se +impunha, estava denunciando que ficára sendo, antes uma expressão de +authoridade, do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia com +que o povo, sem renegar o catholicismo, fosse caíndo n'um relaxamento; e +que, ficando com a religião, deixasse de lhe dar significação ou +importancia moral. Muita devoção e muita devassidão; eis ahi a +concomitancia resultante, e universalmente provada pelos costumes das +nações catholicas depois da Renascença. + +Apesar do catholicismo, podemos, pois, dizer que não havia no dominio da +India uma religião capaz de moralisar o imperio, embora houvesse +exemplos de uma santidade heroica como a de Antonio Galvão, o apostolo +das Molucas. Mas taes exemplos eram excepções, e faltando o primeiro +elemento de ordem, quando os motivos sociaes não se tinham definido +ainda de um modo sufficiente, o individualismo naturalista do tempo +arrastava os homens a todas as desordens, precipitava-os em todos os +crimes; e umas e outros cresciam tanto mais, quanto maior era a força +intima, o arrojo, a temeridade dos guerreiros. Sobre isto, a influencia +dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental, veiu lançar a +sua semente de corrupção; e o individuo, desarmado, sem crenças nem +leis, vivendo ao bel-prazer dos seus instinctos e paixões, caíu n'um +poço de ignominias, perdendo inteiramente a noção do proprio brio, da +força, e tornando-se, de um pirata, em um chatim. + +A estas causas geraes é necessario addicionar as causas particulares, +provenientes da incapacidade fortuita dos governos em Lisboa; e +porventura, se a India se tivesse descoberto meio seculo mais cedo, o +genio politico de D. João II teria desde o começo evitado graves +transtornos. D. Manoel e os seus conselheiros tinham para a India um +plano só: exploral-a, e arrastar a Lisboa, por quaesquer meios, as +riquezas do Oriente. Systema e programma de governo foram cousas +desconhecidas; e assim vemos que a occupação muda de caracter com os +successivos governadores, e ao sabor das idéas ou das inclinações de +cada um d'elles. A India soffre de todos os inconvenientes dos governos +electivos e temporarios, sem gozar das vantagens dos governos +hereditarios; e é n'isso que se fundará sempre a accusação de +incapacidade que a historia formula contra o nosso dominio. + +Porém essa incapacidade trazia raizes de mais fundo. Explorar o Oriente +commercialmente á hollandeza, era cousa para que o nosso genio nos não +chamava. Nos estadistas não houve a perspicacia bastante para medirem as +differenças que distinguiam Portugal de Veneza, e as condições do +commercio anterior do Oriente das condições em que elle ia achar-se, +desde que nós chegámos por mar, armados, á India. A geographia dera aos +arabes o dominio indisputado dos mares das Indias; e era ella tambem que +fazia dos venezianos os alliados do Turco, e de Veneza o emporio do +commercio oriental. Para nos substituirmos na India aos arabes, na +Europa a Veneza, tinhamos contra nós, não só a geographia, mas ainda e +principalmente outra circumstancia. Indo despojar os arabes da sua +preza, deviamos commerciar de armas na mão, manter poderosas esquadras +n'esses mares longinquos outr'ora avassallados pacificamente por visinhos. + +Estas causas naturaes, alliadas ás causas egualmente naturaes da falta +de tirocinio commercial, produziram um genero de exploração, até certo +ponto novo na historia; porque não é propriamente uma _razzia_, como as +conquistas dos antigos persas ou assyrios, pois pretende ser um +commercio; mas, como o commercio só póde fazer-se á sombra da fortaleza +ou á vista da esquadra, as transacções andam sempre misturadas com +pilhagens e mortes, com roubos e violencias. Isto dá aos nossos capitães +da India uma phisionomia original na sua dualidade. Vê-se de um lado um +mercador, como foram outr'ora os carthaginezes ou phenicios; mas vê-se +no mesmo homem um soldado, como os de Cyro, ou Assurbanipal.[112] + +Uma tal confusão de cousas, um tão grande cahos de elementos oppostos e +idéas contradictorias, bastavam para arruinar breve e necessariamente o +imperio; ainda quando, por sobre tudo isto, o caracter do portuguez, +pouco vivo na sua audacia, bronco, cheio de orgulho ingenuo, mais +temerario ainda que valente, presumpçoso e fanfarrão, não viesse +accrescentar difficuldades; ainda quando o ar inebriante, os venenos +adormentadores, as seducções perigosas, os vicios extenuantes do +encantado Oriente, não viessem entorpecer os braços e perverter o +espirito dos occupadores. + + * * * * * + +O padre Manuel Godinho, que estava na India pelo meiado do XVII seculo, +dividia em quatro epochas a historia do nosso dominio oriental. A +primeira eram os 24 annos do reinado de D. Manuel; a segunda os 35 do de +D. João III; a terceira vinha do 1557 a 1600; e a quarta, finalmente, +até á epocha em que elle viajava no Oriente. + +Logo na primeira, o dominio portuguez conseguira alargar-se por todas as +costas e ilhas, desde Sofala até Malaka; isto é, pela Africa Oriental, +pela Persia, por todo o Hindustan, do Indo ao Ganges, e pela Indo-China. +Algumas, poucas, cidades propriamente portuguezas, feitorias e +fortalezas espalhadas por toda a parte, e a vassallagem dos soberanos em +cujos Estados assentavam: eis ahi a fórma do nosso dominio. Goa e Malaka +eram nossas; e tributarios da corôa portugueza os soberanos +(independentes ou subalternos, porque o regime politico indigena era +feodal)--o de Hormuz, na Persia; o de Tidore, nas Molucas;[113] +o de Simhala; o das ilhas Malajas; o de Batukala (Batecalá), +no Kanará; o de Kollan, em Karnataka, na extremidade austral da +peninsula da India; e na costa de Africa, os de Malinda e de Quilua. +Além d'estas suzeranias, algumas dellas consignadas apenas nos tratados, +varias fortalezas garantiam a vassallagem de outros territorios. A de +Sofala era a primeira, para quem vinha do reino pelo Cabo; depois a de +Sokotra na ilha d'esse nome, junto ao Jar-Hafun, dominando a embocadura +do mar Vermelho; d'ahi Hormuz, na garganta do golpho persico; depois, na +costa occidental da India, descendo para o sul, Chala, Anjediva, +fronteira a Goa; Kananor, Kalikodu, onde Vasco da Gama primeiro aportou; +Kadunguluru (Cranganor); Katchi, theatro das façanhas de Duarte Pacheco; +e Kollam (Coulão), proximo do cabo Kumâri. Sobre as ilhas do oceano +indico havia a fortaleza de Malaia (Maldiva), e a de Kola-ambu (Colombo) +em Ceylão; e finalmente, lá para os confins orientaes, Persaim (Pacem) +no Pégu,[114] e Ternate nas Molucas. + +Os annos do segundo periodo viram consolidar-se estes dilatados dominios +por meio de numerosas fortalezas que, completando o systema esboçado +pelas antigas, bordavam de feitorias todas as costas. Na oriental da +peninsula hindustanica, ou de Cholamandalam (Coromandel), levantaram-se +os presidios de Nagapatan e de Mahabalipurum (Meliapor, S. Thomé). +Completou-se a occupação da ilha de Ceylão por meio de fortalezas e +colonias-feitorias[115] de Jafanapatan, de Negombo, de Kalitura +(Calaturé) e de Galla, na costa occidental; e de Pattikalo (Baticaloa) e +Trinkonomali (Triquimalé), na oriental. Bassaim, Daman e Diu, além de +outros pontos fortificados, asseguraram a costa de Kambai. Incessantes +guerras, bem succedidas, abateram as revoltas, consolidaram dominios +antigos, ou alargaram o imperio portuguez. Assim, a derrota final do +Samudri de Kalikodu, do sultão de Kambai, do Shah de Vijajapur +(Hidalcão), do Nizam de Ahmednagar (Melique, Isamaluco, Nisamaluco, ou +Nisamoxá), garantiram a posse pacifica de toda a costa occidental da +India, no Gujerât, em Kontana, no Kanará. As guerras da Indo-China +firmaram o poder portuguez em Jadithani (Ujantama), no reino de Annam, e +em Johor: em Bintang (Bintão), na ponta extrema da peninsula de Malaka; +em Atchim (Achem), na ilha de Sumatra; e a submissão de todo o +archipelago de Sunda até ás Molucas completou, por oriente, o +imperio colonial portuguez, reproducção do velho typo grego e +liby-phenicio.[116] Por occidente, os resultados eram menos decisivos; e +se as duas costas que levam ao estreito de Bab-el-Mandeb se confessavam +tributarias de Portugal, nem em Aden ao norte, nem ao sul, na costa de +Adal, o nosso dominio era positivo. O musulmano guardava com ciume a +porta do mar santo de Meka; e os mercadores arabes sabiam que, mais ou +menos embaraçados, jámais seriam de todo expulsos do commercio da India, +emquanto possuissem o mar Vermelho, onde os inimigos iam, sim, mas não +conseguiam fixar-se. De arma ao hombro, na sua ilha de Sokotra, e a +bordo das armadas que cruzavam no golpho do mar da Arabia, o portuguez +espiava o armamento das esquadras de rumes e os comboyos das náus de +Meka; mas não faltavam opportunidades para que umas e outras, astuta ou +violentamente, conseguissem atravessar o estreito, entrando ou saíndo +para mercadejar ou combater. + +No terceiro periodo conserva-se, não se alarga o dominio da corôa; ainda +que na Africa oriental e na costa do Malabar apparecem novos presidios. +São, no Kanará, Barkuluru (Barcelor), Mangaluru (Mangalor), e Hanavare +(Onor). Na Africa, pela derrota e morte do _rei_ de Laum, a fortaleza de +Patta; mais ao sul a de Mombas, e a da ilha de Pemba; e além do +Zamgebar, já avassallado, Monomotapa, na costa de Moçambique. Afóra +isto, funda-se ainda Sirian, no Pégu; e Hugli (Golim), em Bengala, sobre +o delta do Ganges. + +Porém o acontecimento mais grave d'este periodo foi a guerra simultanea +do Adil-Shah contra Goa, do de Ahmednagar contra Chala, do Samudri +contra Kalikodu. Os principes indigenas da India Occidental, collocados +contra o portuguez, foram porém batidos; ao mesmo tempo que o era o de +Atchin (Achem) atacando Malaka; e que um pirata incommodo e celebre nos +mares da India, o _Cunhalle_ (Kunji-Ali-Markar), era degollado em Goa +depois de tomado o seu forte de Pudepatan, d'onde saía ás prezas. + +Apesar dos symptomas de decomposição, o imperio commercial portuguez +attingia, no fim do XVI seculo, o seu apogeu. As frotas singravam, +carregadas de preciosidades, até aos mares do Japão e da China, d'onde +traziam a prata e o ouro, sedas e almiscar. Das Molucas vinha o cravo, +de Sunda a massa e a noz, de Bengala toda a sorte de finissimos tecidos, +do Pégu os rubis, de Ceylão a canella, de Mausalipatam os diamantes. Na +pequena ilha de Manaar, junto a Ceylão, carregavam-se as perolas e +aljofares; em Atchin, na Sumatra, o benjoim; das ilhas Malajas trazia-se +o ambar; e Ceylão exportava elephantes, por Jafanapatan. Katchi +contribuia com os angelins, tekas e couramas; toda a costa com a +pimenta, e com o gengibre o Kanará. Nas ilhas de Sunda, Madurá fornecia +o salitre, Solor o pau, e Bornéo dava a camphora. De Kambai vinham o +anil, o lacar, os tecidos; e Chala era celebre pelas suas baetas. Hormuz +vendia os cavallos da Arabia, e as sedas e alcatifas da Persia: e, do +outro lado do mar da India, a Africa dava em Sokotra o azebre, em Sofala +o ouro, em Moçambique o marfim, o ebano e o ambar. Além dos preciosos +carregamentos, além dos lastros de arroz do Kanará para mantimentos, e +de pimenta que era um estanco régio, as náus da corôa levavam, de Diu, +de Hormuz e de Malaka, as grossas quantias de dinheiro que n'esses tres +pontos estrategicos se cobravam, pelos _cartazes_ que ahi compravam os +navios mercantes. + +As causas de decadencia, tão antigas como a descoberta, mas avolumadas +todos os dias, precipitaram porém a queda, logo que, pela união a +Castella, Portugal se achou envolvido nas guerras com a Inglaterra e a +Hollanda. Mais tarde ou mais cedo, de um ou de outro lado, é, porém, +fóra de duvida que o dominio portuguez na India, corroido de tão grandes +lepras, cairia, desde que os protestantes, maritimos e mercadores, +seguissem caminho do Oriente, pelo cabo da Boa-Esperança, na esteira das +náus portuguezas. Já por vezes piratas francezes tinham ido por ahi á +India; e se, com o inglez, nem o hollandez lá fôra ainda, era porque +lh'o impediam as condições e embaraços que, a religião para um, para o +outro a independencia, levantavam na Europa. Batida a Hespanha pela +Inglaterra protestante e pelas Provincias-unidas independentes, ambas +estas nações, alliadas, iam batel-a na India, com a facilidade com que +se vence um inimigo doente, mal apercebido, cheio de vicios e molestias. + +Os que no meiado do XVII seculo observavam o imperio portuguez, diziam +no estylo pretencioso do tempo: «Está o estado da India tão velho que só +o temos _por estado_. Se foi gigante é pigmeu. Se foi muito, não é já +nada.» Era apenas Goa e Macau, Bassaim, Daman, Diu, Moçambique e Mombas. +Já não havia armadas nos mares; e os hollandezes e inglezes, fomentando +a rebellião dos naturaes, e auxiliando-os, substituiam-nos, como nós +tinhamos substituido os arabes--mas com outra arte e muito juizo. + +Uns preferiram a Indo-China, outros as partes occidentaes; e em +cincoenta annos varreram das costas e ilhas os presidios e feitorias +portuguezas. O inglez combateu ao lado do persa em Hormuz para nos +expulsar, e o exito levantou todos os naturaes. O soberano do Arakan +lança-nos fóra do Pégu, o de Bengala despede-nos de Hugli, perdemos +assim Mahabalipurum e na contra-costa, Mangaluru, Barkuru, Hanavare, +Chala, Kalikodu. A perda de Hormuz arrastou comsigo Maskat, com a qual +se foram todos os estabelecimentos no litoral da Arabia até ao mar +Vermelho; e desguarnecida a costa do norte, inutil era conservar Sokotra +e os pontos fronteiros no Adal, que foram abandonados com Quilua em +Africa, as ilhas de Malaja e Anjediva, e Passir (Pacem) em Sumatra. + +Os hollandezes herdavam, do nosso imperio do extremo Oriente, tudo o que +não voltava a caír no poder dos naturaes. Outro tanto succedia na India. +Da Africa, Arabia, e Persia, isto é, das fronteiras occidentaes, +ficavam-nos Mombas e Moçambique;[117] das fronteiras orientaes, o ponto +isolado de Macau, já na China, e Solor; do centro, restavam apenas uma +cidade e quatro fortes--memoria, mais do que dominio, em frente d'esses +mares, onde já se não via tremular a bandeira portugueza em poderosas +esquadras como as de outro tempo. + +Ambon, Tidor, Ternate nas Molucas, Malaka na sua peninsula, Madura e +toda a Sunda, eram hollandezas; os nossos antigos pontos de +Ceylão--Kola-ambu e Kalitura, Negombo e Battikalo, Trinkonomali, Galla e +Jafnapatan, com a ilha de Manaar visinha--pertenciam-lhe tambem; e nas +duas costas da peninsula hindustanica tinham-nos tomado egualmente +Negapatan de um lado, Kollam, Kadunguluru, Kananor, e Katchi, do outro. +Abertamente se proclamava a queda do imperio portuguez, e até os mais +infimos blasonavam. Um regulo do Arrakan escrevia nos seus estandartes: +«Fatekan, senhor de Sundiva, derramador do sangue dos christãos e +destruidor da nação portugueza!» + +Tudo estava perdido, e a viagem terminada. Não havia outra cousa a +fazer, senão voltar a casa: embarcar para o reino, com o producto das +rapinas, dando a pôpa a esse mundo, onde a nossa missão terminára. + +Cada capitão que, nos bons tempos, regressava da India, fazia outro +tanto: cerrava as arcas atulhadas de ouro e pedrarias, arrumava a +bagagem no porão, e largava as velas á náu, dizendo adeus para sempre ao +Oriente! + + * * * * * + +Assim aconteceu em 1589 a D. Paulo de Lima, o que assolára Johor, na +Malasia.[118] Foi em janeiro d'esse anno funesto que embarcou em Goa. +Vinha rico; e a náu gemia com o peso do carregamento, abarrotada com um +lastro de pimenta a granel, o convez atulhado de arcas, fardos e +escravos. O capitão trazia comsigo a esposa e domesticos; e embarcaram +com elle, de passageiros, numerosas pessoas: soldados de retorno, +frades, clerigos e mulheres. + +Como na India não havia estaleiros onde os navios podessem vêr o fundo e +passar o calafeto, a náu, já velha e demasiadamente grande, voltava em +mau estado. Ao embarque benziam-se todos e imploravam a protecção dos +frades, lembrando-se dos muitos naufragios que o tamanho e má condição +das náus multipticava todos os dias. Este contava que da esquadra de +Kalikodu, no anno anterior, tinham desapparecido quatro náus com toda a +gente, vindo um mastro com a cordoalha da enxarcia entrar pelo rio de +Daman. Aquelle, que já tres vezes fôra á India, narrava o naufragio +celebre da _Flamenga_, e chamava ás náus sepultura de homens, e vasos de +desastres: e um, persignando-se, contrito, dizia que as náus iam e +vinham tão alastradas de peccados, que nas tormentas se ouviam falar os +demonios claramente. Os religiosos não declaravam que fosse impossivel, +mas recommendavam resignação e esperança no auxilio divino; intercalando +nos seus discursos phrases breves, n'um latim sagrado.[119] + +Entretanto a viagem seguia feliz com um mar bonançoso. Todos confiavam +em que Deus não deixaria de proteger um capitão piedoso como era D. +Paulo de Lima. Isto, porém, não impedia que fossem commentando as +tristes cousas do mar; e com tanta maior liberdade, que começavam a +crer-se salvos d'esses perigos, á medida que viam irem-se approximando +do terrivel cabo da Africa. Asseguravam que nem um terço dos que +embarcavam em Lisboa chegavam á India, e isto ninguem impugnava, por ser +verdade reconhecida; e que a volta ao reino acabava os que as doenças da +terra, a miseria e a guerra tinham poupado no Oriente. Era um sorvedouro +de homens, era... De 700 a 800 que cada náu levava, só metade vinha a +servir. Depois, queixavam-se dos calafates que lançavam os navios ao +mar, mal feitos e mal vedados; e referiam os numerosos casos de +agua-aberta, dentro do Tejo, em navios novos. Outros accusavam o modo +deshumano com que se arrumava a bordo muita mais gente do que a lotação +permittia: iam como carneiros, a monte, nas toldas, expostos ao sereno +mortifero das noutes, sem camas nem para os enfermos, respirando o ar +podre das cobertas: por estas causas havia o escrobuto, as febres +podres, as dysenterias... como se não bastassem os perigos do mar e dos +ventos! Na náu em que fôra á India D. Antonio de Noronha iam 900 +pessoas: metade morreu na viagem. Além d'isso os capitães--era +sabido--roubavam nos mantimentos, e para poupar, escolhiam generos da +peior especie. Tudo ia avariado e podre, a agua corrompida. N'uma viagem +de seis mezes, como a da India, abasteciam-se para cinco apenas: d'ahi +resultavam fomes. + +Estas conversas exaltavam muitas vezes os animos. Como punham nos crimes +o nome dos réus, levantavam-se os partidos; e mais de uma vez houve +rixas tão bravas, que o capitão se viu forçado a leval-os de roldão, +para debaixo do castello de prôa; e os frades, atraz, de crucifixos nas +mãos, prégavam paz e amor, com orações pausadas em latim. + +Os fidalgos e religiosos, no chapiteu da pôpa, commentavam as queixas +dos soldados, reconhecendo que, em verdade, tinham razão; e como eram +mais letrados, ligavam os effeitos ás causas. + +A abundancia da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as +dimensões dos navios, ainda por cima aggravada pelo excesso das cargas. +Era funesta uma cubiça, causa de tantas victimas; mas o mal vinha de +longe, desde o reinado de D. João III. Os navios, mal desenhados, de +muito porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e +eram ronceiros... Verdade seja dita, os antigos não tinham podido +admirar as monstruosas carracas de sete e oito cobertas, com alojamento +para dois mil homens e porões para mil tonelladas de carga. Cada um +d'esses navios parecia um reino! Armavam peças de vinte tonelladas de +peso e calavam mais de dez braças. O costado media cincoenta palmos +acima do lume de agua á meia náu, e chegava a oitenta nos castellos á +pôpa e á prôa. Os baileus, que os ligavam, tinham dois andares: e nos +cestos de gavea cabiam dez ou doze homens, para manobrar os canhões +pequenos: berços e sacres. Mas as carracas, observavam tambem, eram +pessimas no mar: boiavam, não andavam. E um dos fidalgos velhos contava +como era o _S. João_, o _Botafogo_ em que fôra, em 1535, com a divisão +portugueza, a Tunis, na expedição de Carlos V. + +E por fim, esquecidos de males distantes, todos concordavam em admirar a +grandeza de Portugal, onde havia sempre para mais de 400 navios de +alto-bordo, além de perto de 2:000 caravelas e vasos menores... porque o +tempo ia bonança, e o vento fresco levava-os rapidamente, pelo canal de +Moçambique, direito ao Cabo. + +Estavam em 26° quando, porém, quasi á vista da ponta austral de S. +Lourenço (Madagascar), deram por uma agua que a náu fazia. Tudo correu +aos porões, clamando contra os calafates, por cuja causa as náus se +perdiam, andando pelo mar a Deus misericordia, por pouparem quatro +cruzados. Afastando a carga, viram que a agua era na prôa, abaixo das +escôas, ás primeiras picas: cuspia as estopas e as pastas de chumbo do +fôrro, jorrando no porão, d'um torno tamanho que por elle cabia um +punho. Mas, como o tempo estava bonança, não se affligiram demasiado, +depois de terem vedado o rombo com saccas de arroz; e foram rumando para +o sul, até 32°, a oitenta leguas da terra do Natal. Já levavam tres +mezes de viagem. + +Foi então que o vento rondou a sudoeste, o que os forçou a fazerem-se na +volta do norte. O mar crescia, e com o quebrar das vagas a náu +desconjuntava-se, e o torno da prôa, vedado com arroz, cedeu. Agua +aberta e temporal desfeito: era um dia de juizo! Começaram a ouvir-se os +demonios, e as mulheres a gritar em ais. Cada qual implorava o seu +santo, a sua Nossa-Senhora, com uma fé simples e espontanea, beijando os +relicarios e bentinhos, resando em voz alta, confessando em grita os +seus peccados, arrepellando os cabellos, estorcendo-se nas ancias do +medo da morte e do inferno. Decorriam os expedientes devotos e pediam-se +milagres. O capitão levava a bordo uma cruz de ouro com uma particula do +Santo-Lenho engastada: reliquia, fetiche, em que todos punham as maiores +esperanças. Amarraram-na com um fio de retroz, ataram-na piedosamente a +uma espia, lançaram-na pela pôpa, a vêr se moderavam a sanha do mar. A +náu rolava com as ondas, o Santo-Lenho, seguro na pôpa, com um prégo +para o afundar, seguia os balanços do navio. Milagre! milagre! +exclamaram quando o céu aclarou, amainando o vento, parecendo socegar as +ondas. Os homens--fidalgos, soldados e escravos, brancos, pretos, +mulatos e amarellos, pozeram mãos á obra, confiando ainda na salvação. +Havia seis palmos de agua no porão; mas apesar da ancia, revezando-se +nos aldropes das bombas, não conseguiam vencel-a. Alijaram ao mar toda a +carga do convez, para libertar as escotilhas e alliviar a náu que vinha +abarrotada. Nos porões a carga nadava, e as pranchas de brazil, as pipas +da aguada, e mais volumes, boiando, eram lançados pelos balanços do mar +contra o costado, batido por fôra com violencia pelas ondas. O temporal +recrescia; o Santo-Lenho não queria protegel-os! Era um inferno e um +desespero de estrondos, com o assobiar sinistro do sudoeste na cordoalha +das enxarcias. Como as bombas não vasavam os porões, estabeleceram +forcas nas escotilhas, e por ahi tiravam a agua em barris, como de um +poço. D. Paulo de Lima não fugia ao trabalho, puxando á corda como os +escravos. Nem comer podiam; e os frades iam de uns a outros, com agua e +biscoitos, matando-lhes a fome e a sede, combatendo o cansaço com +exhortações, e recommendando contra a desesperança que confiassem na +providencia de Deus... + +Tres dias, desde 12 a 14 de março, conservaram a fé e os brios. Ao +quarto viram que trabalhavam debalde. A agua já inundava a coberta, e só +no convez se podia estar. As bombas não trabalhavam, entupidas com a +pimenta a granel do porão; e só á custa do muito que iam alijando--todo +o fructo das rapinas da India!--conseguiam que o navio não sossobrasse. +Já tinham resolvido varar na terra; mas o temporal crescia sempre, e no +meio da cerração plumbea, não podiam governar-se. Para mais, uma vaga +partiu o leme. O vento sudoeste vinha batido em salseiros rijos, que +despedaçavam o panno. A pobre náu era um destroço, com que as ondas +brincavam na sua furia. Assim estiveram, perdidos e já sem esperança, +duas noites e um dia. De 14 para 16, os transes foram medonhos. Em +montes, estendidos no convez, os homens, ou blasphemavam, ou se +confessavam em voz alta, accusando todos os seus crimes, os roubos, as +violencias, os estupros, as matanças da India, e pedindo em lagrimas, +aos clerigos, que os salvassem das penas do inferno! As mulheres, +pranteando-se, levantavam um choro de resas, lembravam-se dos seus +santos favoritos, as _nossa-senhoras_ particulares da sua devoção, +fazendo votos e promessas. Os frades ouviam as confissões, absolviam, +deixando semi-mortos, na confiança do perdão, os que antes clamavam em +desespero, movidos pelo terror. E por sobre tudo isto os salseiros rijos +do vento assobiavam nas cordas, bradando: morte! morte! «D. Paulo havia +que aquelle castigo era por seus peccados.» + +No dia 16 o tempo clareou um pouco: e no rumo de nor-nordeste que +levavam, descobriram terra á prôa. A noute de 17 passou-se em afflicções +e esperanças; mas quando amanheceu, e os olhos ávidos não poderam tornar +a vêr a costa, decidiram formalmente deitar o batel ao mar. Logo todos +se precipitaram no barco, ainda suspenso nos apparelhos. A ancia de +viver enlouquecia-os; e D. Paulo em pé sobre o batel, com a espada e a +adaga em punho, defendia-o, acutilando os invasores, como n'uma +abordagem. O seu abatimento, a sua fraqueza, a sua desesperança, +apagavam-se, varridos pela aurora derradeira. Repellidos os homens, o +batel desceu e poisou no mar. Depois veiu remando, pela pôpa da náu, +para receber pela varanda os fidalgos, suas mulheres, e os frades: o +commum dos infelizes tinha a bordo um tumulo feito. Com os balanços da +náu e o impulso da vaga, o batel ameaçava despedaçar-se a cada momento +contra o costado; e as mulheres desciam, penduradas em cordas de lançoes +e pannos, até ao mar, onde as apanhavam. + +Os do batel gritavam, desesperados por partir, porque a gente era demais +e o barco afogava-se; os da náu gesticulavam, bradando em furia para que +os salvassem. Uma escrava, com o filho da senhora nos braços, mostrava-o +de bordo á mãe que lh'o pedia, exigindo que a salvassem, se queriam +salvar da morte a creança. E os marinheiros condemnavam, em altos gritos +e phrases insultuosas e obscenas, D. Paulo e os fidalgos, pelos +abandonarem cruamente a uma morte miseravel. Mais difficil fôra o +naufragio da nau _Santiago_, no baixo da India, e tinham-se salvado +todos em jangadas. Não abandonassem os infelizes, lembrando-se apenas de +si, os fidalgos malditos! Havia tempo para formar uma jangada, onde +todos iriam, guiados pelo batel. + +N'este desespero infernal e no meio da explosão de egoismo feroz houve +um unico heroe: um frade que não saiu de bordo, sem ter confessado todos +os condemnados. Absolvidos, lançou-se ao mar, e foi a nado agarrar-se ao +batel que se afastava pesadamente: o habito salvou-o, porque os do barco +não ousavam repellir o sacerdote, como repelliam a golpes os mais que +vinham a nado. Na imminencia da morte, escrupulisavam de matar um padre. + +Por toda essa noute de angustias, o batel vogou nas aguas da náu: os +remos não podiam vencer a força das ondas, e o vento arrojava-o para o +mar. A carga era demasisada, e reconhecendo isto, deitaram fóra seis +homens; depois mais seis, ficando de 110, em 98, ao todo. A bordo da náu +havia mais de outro tanto. + +Condemnados a uma morte inevitavel, já confessados e absolvidos, estavam +resignados. Ainda tinham formado duas jangadas, que o mar logo devorou: +e depois d'isso unanimemente resolveram morrer, a bem com Deus. Os do +batel viam no escuro da noute as luzes das velas accesas ao retabulo da +_nossa-senhora_ do castello da pôpa,[120] diante do qual, +prostradas de rastos, com os cabellos desgrenhados, chorando, as +escravas resavam. Os homens faziam procissões sobre o convez, cantando +ladainhas e hymnos. Pela manhã viram o batel tão perto que chegaram á +fala; e pediam ainda que os salvassem com vozes tão profundas e +piedosas, que mettiam medo e terror. + +Finalmente, n'um clamor de gritos e n'uma columna de fumo, espadanando a +agua, a náu sossobrou: no alto do capitel da pôpa a escrava, com a +creança nos braços, mostrava-a á mãe, desolada no batel. A náu +sossobrou, enterrando comsigo os homens, as mulheres e «as cousas da +India, adquiridas pelos meios que Deus sabe». + + * * * * * + +A viagem da India não terminou aqui. O imperio submergiu-se, mas os +salvados foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miseria +e perdição... + +O batel foi dar á terra em 27°20' sul, na terra dos _fumos_, a que os +cafres chamam Macomata, a Zuluandia. Desembarcaram, os restos da náu da +India; e achou-se que tinham 5 espingardas, 5 espadas e um barril de +polvora. Eram ao todo 98. Dos remos fizeram contos de lanças, e ferros +das verrumas dos carpinteiros. Formaram em columna, seguindo costa em +fóra, em demanda de Lourenço Marques. + +Á frente ia um frade com a cruz alçada; depois D. Pedro de Lima com +metade da gente e das armas, na cauda o capitão da náu com o resto; e, +entre ambos, as mulheres, umas de pé, outras em andores levados por +marinheiros e grumetes, e feitos com os remos e velas do batel. Seguiam +a columna bandos de cafres, com quem por vezes tinham de pelejar, e que +fugiam rebolando-se no chão e em gatinhas, como bogios aos saltos. +Dormiam na areia ao relento; comiam alguma cousa que apanhavam, +principalmente os caranguejos da praia; levavam os pés empolados e em +chagas... Em tamanha miseria se tornára o antigo imperio com que tinham +andado pela India, pela Arabia e por Johor, em Malaka! + +Na altura de 26°30' depararam com os restos das jangadas da náo +_Santiago_; uma sorte commum esperava, no regresso, todos os que vinham +da India; e esses desastres eram os da nação, que em massa embarcára, e +agora em massa tambem naufragava. «Estas desventuras e outras, diz o +chronista, que cada dia se vêem por esta carreira da India poderam +servir de balizas aos homens, principalmente aos capitães de fortalezas, +para n'ellas se moderarem com o que Deus á boa mente lhes dá, e deixarem +viver os pobres». + +Os naufragos, miseraveis e famintos, internaram-se em Manhica, achando +nos cafres a protecção e carinho que negavam no Oriente aos naturaes. +Dispersaram-se em varias direcções, indo uns por mar a Inhambane; e na +ilha de Inhaca, D. Paulo «caío em cama, ou para melhor dizer, no chão», +e morreu... + +Não eram, porém, sómente as ondas que, punindo a desordem e a avidez, +tragavam os navios podres e abarrotados; eram tambem os nossos inimigos, +cruzando nos mares da India, que apresavam as náus portuguezas, como +outr'ora nós tinhamos apresado as dos arabes e egypcios. + +Cornelio Honteman, perseguido pela Inquisição de Portugal, fôra para +Amsterdam, e publicára o que sabia das viagens da India, incitando os +hollandezes com as perspectivas de grossos lucros. Em 1595 partiu de +Texel a primeira frota hollandeza que dobrou o cabo da Boa-Esperança; e +já em 1591 os inglezes tinham feito uma viagem á India. Em 1602 +fundou-se a companhia hollandeza das Indias orientaes: foi no primeiro +quartel do XVII seculo que o imperio portuguez caíu. + +Tudo se desmoronava de um modo simples e rapido. As esquadras perdiam-se +inteiras; e tantas desgraças abatiam os animos antigos, a ponto de +tornarem a covardia tão vulgar, como eram de antes a audacia e a +bravura. Entre outros casos, conta-se o de um philippebote hollandez +tomando um galeão que montava dobrada artilheria e guarnição. Em 1591 e +92, de 22 navios de alto bordo saídos da India, só duas náus chegaram ao +Tejo, porque vinham vasias por velhas. Quer á ida, quer á volta, os +cruzeiros inimigos caçavam as nossas frotas; e a destruição do poder +maritimo portuguez garantiu para todo o sempre a destruição consummada +do imperio do Oriente. + +Essa louca viagem, sem pilotos habeis, terminava por um breve naufragio; +e os mares que, no seculo XV nós vencemos com tamanha audacia, +vingavam-se, no XVI, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar +Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos +nevoeiros prognosticados pelos geographos arabes, no meio das trevas da +nossa perversidade. A natureza offendida punia-nos com a morte; e o +destino implacavel retribuia-nos todos os males com que tinhamos +flagellado o proximo. + + [112] V. _Raças humanas_, II, pp. 185-91, e _Taboas de Chronol._, + pp. 45-9. + + [113] V. ácerca dos costumes dos indigenas. _Quadro das instit. + primit._, pp. 14-5, 158, 160-1, 174; e _Regime das riquezas_, + pp. 56, 65, 85, 109. + + [114] V. _Regime das riquezas_, p. 109. + + [115] V. _O Brazil e as col. port._, L. IV, 3. + + [116] V. _Hist. da rep. romana_, I, pp. 183-91. + + [117] V. _O Brazil e as colon. Port._ (2.ª ed.), p. 36. + + [118] V. _Hist. da republica romana_, II, p. 185. + + [119] V. a estatistica dos naufragios no _Brazil e as colonias + port._ (2.ª ed.), p. 34, _nota_. + + [120] V. _Hist. da republ. romana_, I. pag. 194. + + +FIM DO TOMO PRIMEIRO + + * * * * * + + + + +INDICE + +DO + +TOMO PRIMEIRO + + + ADVERTENCIA + LIVRO PRIMEIRO + Descripção de Portugal + I. Os lusitanos + II. Fundamentos da nacionalidade + III. Geographia portugueza + IV. A terra e o homem + V. A historia nacional + LIVRO SEGUNDO + HISTORIA DA INDEPENDENCIA + (DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385) + I. A separação de Portugal + II. A conquista do Al-Gharb + III. A monarchia e a justiça + IV. A crise + LIVRO TERCEIRO + A conquista do Mar Tenebroso + (DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500) + I. O Infante D. Henrique + II. Portugal em Africa + III. O principe perfeito + IV. Em demanda do Preste-Joham das Indias + LIVRO QUARTO + A viagem da India + (1500-1640) + I. D. Francisco d'Almeida + II. Affonso de Albuquerque + III. D. João de Castro + IV. Summario da derrota. Volta ao reino + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by +Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I *** + +***** This file should be named 34387-8.txt or 34387-8.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/3/8/34387/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. Special rules, +set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to +copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to +protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists +because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from +people in all walks of life. + +Volunteers and financial support to provide volunteers with the +assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's +goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will +remain freely available for generations to come. In 2001, the Project +Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure +and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. +To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation +and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 +and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. + + +Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact +information can be found at the Foundation's web site and official +page at https://pglaf.org + +For additional contact information: + Dr. Gregory B. Newby + Chief Executive and Director + gbnewby@pglaf.org + + +Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation + +Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide +spread public support and donations to carry out its mission of +increasing the number of public domain and licensed works that can be +freely distributed in machine readable form accessible by the widest +array of equipment including outdated equipment. Many small donations +($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt +status with the IRS. + +The Foundation is committed to complying with the laws regulating +charities and charitable donations in all 50 states of the United +States. Compliance requirements are not uniform and it takes a +considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up +with these requirements. We do not solicit donations in locations +where we have not received written confirmation of compliance. To +SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any +particular state visit https://pglaf.org + +While we cannot and do not solicit contributions from states where we +have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition +against accepting unsolicited donations from donors in such states who +approach us with offers to donate. + +International donations are gratefully accepted, but we cannot make +any statements concerning tax treatment of donations received from +outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. + +Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation +methods and addresses. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. diff --git a/34387-8.zip b/34387-8.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..e6eeced --- /dev/null +++ b/34387-8.zip diff --git a/34387-h.zip b/34387-h.zip Binary files differnew file mode 100644 index 0000000..96eb4f0 --- /dev/null +++ b/34387-h.zip diff --git a/34387-h/34387-h.htm b/34387-h/34387-h.htm new file mode 100644 index 0000000..ae1237d --- /dev/null +++ b/34387-h/34387-h.htm @@ -0,0 +1,9343 @@ +<!DOCTYPE HTML PUBLIC "-//W3C//DTD HTML 4.01 Transitional//EN" "http://www.w3.org/TR/html4/loose.dtd"> +<html> +<head> + <title>História de Portugal, volume 1, por Oliveira Martins</title> + <meta name="Author" content="Oliveira Martins"> + <meta name="Edition" + content="7ª Edição. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1908."> + <meta http-equiv="content-type" content="text/html; charset=iso-8859-15"> + <style type="text/css"> + body{margin-left: 10%; + margin-right: 10%; + } + .pn { + text-indent: 0em; + text-decoration: none; + position: absolute; + left: 92%; + font-size: 7px; + text-align: right; + color: gray; + } + + + sup {font-size: 7px; } + .list {text-align: justify; text-indent: -1.5em; list-style-type:none; margin: 0; margin-left: 1.5em; font-size: 0.8em;} + #corpo p{text-align: justify; text-indent: 1.5em;} + h1, h2, h3, h4 {text-align: center; margin-top: 2em;} + h2 {text-align: center; margin-bottom: 2em;} + #corpo p.sinopse {margin: 2em; font-size: small; text-indent: -2em;} + #corpo p.ni {text-indent: 0;} + #corpo p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + #corpo blockquote p {text-indent: 0;} + #corpo p.assin {text-indent: 0; text-align: right; margin-right: 2em;} + p.centrado {text-indent: 0; text-align: center;} + hr.dotted {border: 0; border-bottom: dotted 2px #000;} + hr {border: 0; border-bottom: solid 2px #000;} + blockquote {margin-left: 10%; font-size: small;} + #corpo .ilustracao p {text-align: center; font-size: small;} + a {text-decoration: none;} + .rodape { + font-size: 0.7em; + color: gray; + margin-left: 2em; + margin-right: 2em; + } + #corpo .rodape p {text-indent: 0;} + .errata {border-bottom: dotted 2px #aaaaaa;} + .typo {border-bottom: dotted 2px #77dd77;} + .ntransc {border: solid black 1px; background-color: #FFFFCC; font-size: 0.8em; + margin-left: 10%; margin-right: 10%;} + .cap:first-letter {float: left; clear: left; margin: -0.2em 0.1em 0 0; margin-top: 0%; + padding: 0; line-height: .75em; font-size: 300%; text-align: justify;} + .cap {text-align: justify;} + .sc {text-transform: uppercase;} + </style> +</head> + +<body> + + +<pre> + +The Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by +Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with +almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or +re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included +with this eBook or online at www.gutenberg.org + + +Title: Historia de Portugal: Tomo I + +Author: Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +Release Date: November 21, 2010 [EBook #34387] + +Language: Portuguese + +Character set encoding: ISO-8859-1 + +*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I *** + + + + +Produced by Pedro Saborano + + + + + +</pre> + +<p> </p> + +<div class="ntransc"> +<p><b>Notas de transcrição:</b></p> + +<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1908.</p> + +<p>Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido corrigidos +apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que +por isso não foram assinalados.</p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.8em;">HISTORIA DE PORTUGAL</p> + +<hr style="width: 15%"> + +<p style="font-size: 1.2em;">TOMO I</p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.6em;">J. P. OLIVEIRA MARTINS</p> + +<hr style="width: 15%"> + +<p style="text-align:center; font-size: 1.2em;">OBRAS COMPLETAS</p> + +<p style="margin-left:2em;">I. Historia nacional:</p> + +<p class="list">H<small>ISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA</small>, 4.ª ed. (1897), +1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p> + +<p class="list">H<small>ISTORIA DE </small>P<small>ORTUGAL</small>, 7.ª ed. +(1908), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p> + +<p class="list">O B<small>RAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS</small>, 4.ª ed. +(1888). 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p> + +<p class="list">P<small>ORTUGAL CONTEMPORANEO</small>, 4.ª ed. (1907). 2 vol., +br. 2$000 rs. Enc. 2$400.</p> + +<p class="list">P<small>ORTUGAL NOS MARES</small>, (1889), 1 vol., br. 700 rs. +Enc. 900.</p> + +<p class="list">C<small>AMÕES, OS </small>L<small>USIADAS E A +</small>R<small>ENASCENÇA EM </small>P<small>ORTUGAL</small>, (1891). 1 vol., +br. 600 rs. Enc. 800.</p> + +<p class="list">N<small>AVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS +PORTUGUESES</small>, (<em>ed. do Ateneo de Madrid</em>, 1892). 1 vol. (não +entrou no commercio.)</p> + +<p class="list">A V<small>IDA DE +</small>N<small>UN'</small>A<small>LVARES</small>, 2.ª ed. (1894). 1 vol., br. +2$000 rs. Cart. 2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.</p> + +<p class="list">O<small>S </small>F<small>ILHOS DE </small>D. J<small>OÃO +</small>I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p> + +<p class="list">O P<small>RINCIPE </small>P<small>ERFEITO</small>, (1895), 1 +vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas doiradas, 3$200.</p> + +<p style="margin-left:2em;">II. Historia geral:</p> + +<p class="list">E<small>LEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA</small>, 4.ª ed. (1885), 1 +vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p> + +<p class="list">A<small>S RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA</small>, 2 +vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p> + +<p class="list">S<small>YSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS</small>, 3.ª ed. (1895), 1 +vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p> + +<p class="list">Q<small>UADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS</small>, 2.ª ed. +(1893), 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p> + +<p class="list">O <small>REGIME DAS RIQUEZAS</small>, 2.ª ed. (1894), 1 vol., +br. 600 rs. Enc. 800.</p> + +<p class="list">H<small>ISTORIA DA REPUBLICA ROMANA</small>, 2.ª ed., 1897, 2 +vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.</p> + +<p class="list">O H<small>ELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ</small>, 2.ª ed., 1 +vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p> + +<p class="list">T<small>ABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA</small>, +(1884), 1 vol., br. 1$000 rs. Encadernado 1$200.</p> + +<p style="margin-left:2em;">III. Varia:</p> + +<p class="list">A <small>CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA</small>, 2.ª ed., 1 vol., br. +800 rs. Enc. 1$000.</p> + +<p class="list">A <small>REORGANISAÇÃO DO BANCO DE +</small>P<small>ORTUGAL</small>, opusculo, (1877), br. 150 rs.</p> + +<p class="list">O <small>ARTIGO «</small>B<small>ANCO»</small>, no +<em>Diccionario Universal Portuguez</em>, (1877), 1 vol., br. 500.</p> + +<p class="list">P<small>OLITICA E ECONOMIA NACIONAL</small>, (1885), 1 vol., +br. 700 rs.</p> + +<p class="list">P<small>ROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL</small>, +<em>apresentado á camara dos deputados na sessão de 1887</em>, 1 vol., br. 300 +rs.</p> + +<p class="list">E<small>LOGIO HISTORICO DE </small>A<small>NSELMO </small>J. +B<small>RAAMCAMP</small>, <em>ed. part.</em> (1886), 1 vol. (esgotado).</p> + +<p class="list">T<small>HEOPHILO </small>B<small>RAGA E O +</small>C<small>ANCIONEIRO</small>, <em>opusculo</em>, (1869) (esgotado).</p> + +<p class="list">O S<small>OCIALISMO</small>, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. +(Esgotado)</p> + +<p class="list">A<small>S ELEIÇÕES</small>, <em>opusculo</em>, (1878), br. 200 +rs.</p> + +<p class="list">C<small>ARTEIRA DE UM JORNALISTA</small>: I. <em>Portugal em +Africa</em>, (1891), 1 vol., br. 400 rs.</p> + +<p class="list">A I<small>NGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE</small>, 2.ª +ed., 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.</p> + +<p class="list">C<small>ARTAS </small>P<small>ENINSULARES</small>, (1895), 1 +vol., br. 600 rs. Enc. 800.<span class="pn"><a +name="pag_III">{pg. III}</a></span></p> + +<p> </p> + +<div style="text-align:center;"> +<p style="font-size: 1.6em;">HISTORIA</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">DE</p> + +<p style="font-size: 2.2em;">PORTUGAL</p> + +<p>POR</p> + +<p style="font-size: 1.6em;">J. P. Oliveira Martins</p> + +<p style="font-size: 1.2em;">Setima edição</p> + +<p> </p> + +<p style="font-size: 1.4em;">TOMO PRIMEIRO</p> + +<p> </p> + +<p>1908<br> +P<small>ARCERIA </small>A<small>NTONIO </small>M<small>ARIA +</small>P<small>EREIRA</small><br> +<small>LIVRARIA EDITORA</small><br> +Rua Augusta—44 a 54<br> +LISBOA<span class="pn"><a name="pag_IV">{pg. IV}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<hr> + +<div style="text-align:center;"> +<p>Composto e impresso na typographia<br> +<small>DA</small><br> +Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA<br> +<small>Rua Augusta, 44 a 54</small><br> +LISBOA<span class="pn"><a name="pag_V">{pg. V}</a></span></p> +</div> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<p style="text-align:center;">Á<br> +MEMORIA<br> +<small>DE</small><br> +<big>ALEXANDRE HERCULANO</big><br> +mestre e amigo<span class="pn"><a name="pag_VI">{pg. VI}</a><br> +<a name="pag_VII">{pg. VII}</a></span></p> + +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> +<p> </p> + +<div id="corpo"> +<h2><a name="SECTION001000">ADVERTENCIA</a></h2> + +<p> </p> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p>«Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi + erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros porque se delles + soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos aos bõos fezessem + cobiça auer pera as semelhentes cousas faseram.»</p> + + <p style="margin-left:2em;"><em>Coronica do Condestabre.</em></p> +</blockquote> + +<p> </p> + +<p>A historia é sobre tudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso vêr, +sáe de todos os eminentes progressos ultimamente realisados no fôro das +sciencias sociaes. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a critica a +melhor bussola da intelligencia: por isso a historia exige sobretudo observação +directa das fontes primordiaes, pintura verdadeira dos sentimentos, descripção +fiel dos acontecimentos, e, ao lado d'isto, a frieza impassivel do critico, +para coordenar, comparar, de um modo impessoal ou objectivo, o systema dos +sentimentos geradores e dos actos positivos.</p> + +<p>O desenvolvimento do criterio racional e o predominio crescente dos +processos proprios das sciencias, baniram os modelos antigos e fizeram da +historia um genero novo. Nem os discursos moraes ou litterarios <em>sobre</em> +a historia, á maneira do <small>XVII</small><span class="pn"><a +name="pag_VIII">{pg. VIII}</a></span> seculo, nem o doutrinarismo secco do +<small>XVIII</small> que sobre factos e instituições mal conhecidos construia +systemas geraes chimericos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, de +considerar a historia unicamente nos seus phenomenos exteriores, averiguando +eruditamente as epochas e as condições dos successos, merecem, a nosso vêr, +imitação.</p> + +<p>Todos estes systemas, porém, ensaios successivos para determinar o genero de +um modo definitivo, teem um lado de verdade aproveitavel. Os modelos classicos +fizeram sentir o caracter moral da historia; os modelos abstractos, a +necessidade de comprehender os phenomenos n'um systema de leis geraes; os +modelos eruditos, finalmente, a condição imprescriptivel de um conhecimento +real e positivo da chronologia e dos elementos que compõem o <em>meio</em> +externo ou phisico das sociedades.<a name="tex2html1" +href="#foot1129"><sup>[1]</sup></a></p> + +<p>Nada d'isto, porém, é ainda realmente a historia, embora todas essas +condições sejam indispensaveis para a sua comprehensão. O intimo e essencial +consiste no systema das instituições e no systema das idéas collectivas, que +são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o individuo, +consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes o dos caracteres, na +pintura animada dos logares e accessorios que formam o scenario do theatro +historico.</p> + +<p>Estes dois aspectos são egualmente essenciaes; porque a coexistencia +independente dos motivos collectivos e naturaes, e dos actos individuaes, é um +facto incontestavel na vida das sociedades.</p> + +<p>Na <em>Historia da civilização iberica</em> tratámos de estudar o systema de +instituições e de idéas da sociedade peninsular, para expôr a sua vida +collectiva,<span class="pn"><a name="pag_IX">{pg. IX}</a></span> organica e moral. +Tomámos ahi a sociedade como um individuo, e procurámos retratal-o phisica e +moralmente. Agora o nosso proposito é diverso. Tratando da historia particular +portugueza, somos levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos +essenciaes da historia geral. A sociedade portugueza, como molecula que é do +organismo social iberico, peninsular, ou hespanhol—estas tres expressões teem +aqui um alcance equivalente—obedeceu, nos seus movimentos collectivos, ao +systema de causas e condições proprias da historia geral da peninsula +hispanica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo pelo +qual as leis geraes se realisavam simultaneamente nas duas nações hespanholas: +duas, porque a historia assim constituiu politicamente a Peninsula.</p> + +<p>Metade da historia portugueza está, portanto, escripta na <em>Historia da +civilisação iberica</em>: a metade que trata da vida da sociedade, como um ser +organico. Comprehender-se-ha, pois, que nos abstenhamos agora de repetir o que +está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse livro; indicando, +quando fôr necessario, o logar onde poderá encontrar a explicação das causas +geraes a que no texto se tem de alludir.</p> + +<p>Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que ha de particular na +historia portugueza; resta fazer viver os seus homens, e representar de um modo +real a scena em que se agitam: tal é o programma d'este livro, cujas +difficuldades de execução excedem em muito as do anterior. N'esse, bastavam o +conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como foram as cousas, outro para +nos indicar o principio e o systema da civilisação. Agora carece-se do faro +especial da intuição historica, e d'um estylo que traduza a animação +propria<span class="pn"><a name="pag_X">{pg. X}</a></span> das cousas vivas. Toda a +longanimidade do leitor será pois necessaria para desculpar as imperfeições da +obra.</p> + +<p>É mistér indicar ainda outro assumpto e prevenir uma impressão, natural em +quem ler successivamente as duas obras. A <em>Historia de Portugal</em> +consiste n'uma serie de quadros, em que, na maxima parte das vezes, os +caracteres dos homens, os seus actos, os motivos immediatos que os determinam e +as condições e modo porque se realisam, merecem antes a nossa reprovação do que +o nosso applauso. Crimes brutaes, paixões vis, abjecções e miserias, compõem, +por via de regra, a existencia humana; e por isso mais de um moralista tem +condemnado o estudo da historia como pernicioso para a educação.—Por outro +lado, a <em>Historia da civilisação iberica</em> respira um enthusiasmo +optimista que, ao primeiro exame, pareceria contradictorio com o pessimo e +mesquinho caracter que as acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para +demonstrar este antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e +asiaticas uma obra heroica, e agora veremos que montanha de ignominias foi o +imperio portuguez no Oriente.</p> + +<p>Esta contradicção, real para o criterio abstracto, não existe, porém, para o +criterio historico. Toda a boa philosophia nos diz que o homem real é a imagem +rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que +todas as acções dos homens, maculadas de defeitos e vicios, obedecem a um +systema de leis, idealmente sublimes. É esta verdade que o povo consagrou +quando formulou o adagio: Deus escreve direito por linhas tortas.</p> + +<p>Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo +cabal, vêr-se-ha como na<span class="pn"><a name="pag_XI">{pg. XI}</a></span> +historia de uma civilisação os caracteres particulares das acções dos homens, +fundindo-se no systema geral de principios e leis que os determinam, perdem +individualidade, e não valem senão como elementos componentes de um todo +superior: que sejam humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos +cumpre attender ao destino que os determina, e a moral é um criterio +incompetente para a esphera ou categoria collectiva de que se trata.</p> + +<p>Na esphera dos movimentos de instituições e idéas, na categoria da vida +social, as acções dos homens são sempre absolutamente excellentes; porque a +supremacia da sociedade sobre o individuo consiste no facto da existencia de +uma consciencia superior da Idéa, no organismo que se diz sociedade. Os poetas +épicos, seres privilegiados cuja voz não é propria, senão collectiva, são os +orgãos vivos da consciencia de uma civilisação: assim Camões sente e exprime a +grandeza historica do imperio das Indias, que na propria opinião particular do +poeta são uma Babylonia, um poço de ignominias.</p> + +<p>Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e rapido, +resta-nos dizer que na segunda metade da historia, na que trata dos individuos +e dos episodios, na que pinta os costumes e os pensamentos, o criterio é outro: +por isso affirmámos que a historia é uma lição moral. Nos vicios e nas +virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos individuos +que foram, ha um exemplo excellente. Na sabedoria ou na loucura dos actos +politicos e administrativos passados ha um meio de prevenir e encaminhar a +direcção dos actos futuros. A historia é, n'esse sentido, a grande mestra da +vida.<span class="pn"><a name="pag_XII">{pg. XII}</a></span></p> + +<p>Se os vicios, os erros, o crime e a loucura predominam sobre as virtudes, os +acertos, a nobreza e a sabedoria dos homens, como sem duvida predominam, iremos +por isso condemnar a historia por perniciosa? Não, decerto. Apresentar crua e +realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no homem uma +fibra intima de aspirações ideaes e justas, sempre viva, embora mais ou menos +obliterada. Conhecer-se a si proprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a +principal condição da virtude.<span class="pn"><a +name="pag_1">{pg. 1}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1129" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> V. <em>Th. da + hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp. + <small>VI-XXII</small>.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h1><big>HISTORIA DE PORTUGAL</big></h1> +<hr> +<p> </p> + +<h2><a name="SECTION002100"><big>LIVRO PRIMEIRO</big><br> +Descripção de Portugal</a> </h2> + +<p> </p> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p>«Onde a terra se acaba e o mar começa.»<br> + C<small>AMÕES</small>, <em>Lusiadas</em>, + <small>III</small>, 20</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002110">I<br> +Os lusitanos</a> </h3> + +<p>«O povo desde o qual os historiadores têem tecido a genealogia portugueza +está achado: é o dos lusitanos. Na opinião d'esses escriptores, atravez de +todas as phases politicas e sociaes da Hespanha, durante mais de tres mil +annos, aquella raça de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte: +reproduzir-se, immortal na sua essencia; e nós os portuguezes do seculo +<small>XIX</small> temos a honra de ser os seus legitimos herdeiros e +representantes.»</p> + +<p>Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano<a +name="tex2html2" href="#foot1130"><sup>[2]</sup></a> os seus predecessores, +historiographos nacionaes, e, segurando com valor a<span class="pn"><a +name="pag_2">{pg. 2}</a></span> férula magistral, castigava o povo culpado de +acreditar n'uma tradição que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de +ser recente. Só desde o fim do <small>XV</small> seculo o nome de +<em>lusitani</em> começa a substituir o do <em>portugalenses</em>, nos livros; +mas essa innovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim uma +crença nacional e quasi popular.</p> + +<p>Que valor merece a innovação? Nenhum; e por varios motivos. «Tudo falta: a +conveniencia de limites territoriaes, a identidade da raça, a filiação da +lingua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos barbaros e +nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sabio historiador, não nos parece +a nós—perdoe-se-nos o atrevimento—que o sejam. Outro tanto succede com todas +as nações, ou quasi todas, desde que procuramos estabelecer a arvore +genealogica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a phisionomia dos +mortos de muitos seculos e determinar d'entre elles os primeiros avós de uma +nação. Seria absurdo exigir conveniencia de limites territoriaes, ou por outra, +identidade de fronteiras, entre a localisação de uma tribu primitiva, e a de +uma nação moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam, +pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigencia. Se ha ou não identidade de +raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negal-o é +proceder dogmatica e não scientificamente.</p> + +<p>Allega-se que são indecisas as noções de Strabão com respeito ás fronteiras +dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu á provincia +da Lusitania.<a name="tex2html3" href="#foot1131"><sup>[3]</sup></a> O +geographo antigo,<span class="pn"><a name="pag_3">{pg. 3}</a></span> ora parece +incluir os callaicos nos lusitanos, entendendo as fronteiras d'estes ultimos +até á costa do norte da Peninsula; ora os separa, dando-lhes o Douro como +divisoria. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda versão. As fronteiras +orientaes extendiam-se, quer para o geographo, quer, depois, para a +administração romana, muito além da raia portugueza, incluindo Salamanca, e +subindo quasi até proximo de Toledo. D'alli para o sul, e depois para o +nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Strabão e a +Lusitania de Augusto tinham como limite este rio, quasi desde as suas fontes, e +até á sua foz, na costa do nosso Algarve.</p> + +<p>Se ligassemos, pois, um valor positivo ás resenhas dos antigos geographos, e +um alcance social-historico á identidade das fronteiras primitivas e actuaes, +parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etimologia +dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte +ao Minho (conquista da Lusitania sobre a Gallecia) retráia-se a fronteira de +leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitania) e teremos feito +coincidir os antigos com as actuaes limites. Qual é, dos primitivos, o povo que +no decurso da sua vida historica deixou de conquistar e de ser conquistado? +qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou d'outro, sobre ou para os +visinhos?</p> + +<p>Se a maneira porque, a partir do seculo <small>XV</small> ou +<small>XVI</small>, os historiographos nacionaes filiam o Portugal moderno na +antiga Lusitania justifica as fundadas ironias do nosso grande historiador, não +nos parece que o processo por elle seguido para negar a doutrina, seja +conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos +nada<span class="pn"><a name="pag_4">{pg. 4}</a></span> haja de commum. Quando hoje +vimos renascer de um modo erudito, e d'alli affirmar-se no espirito popular, a +tradição nacional germanica, a italiana e até a romania: que valor tem o facto +da tradição lusitana ter estado obliterada por seculos, para só resurgir n'uma +epocha relativamente proxima e de um modo erudito? Se os portuguezes da +Edade-media não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós, +italos, romanos ou teutonicos, os piemonteses, os vallacos, ou os prussianos +até ao <small>XVIII</small> seculo? Acaso, tambem, ser-lhes-ha mais possivel do +que a nós estabelecer uma transição natural e uma historia ininterrupta desde +as primeiras edades até ás modernas? Não, decerto. Se a erudição podesse +demonstrar a unidade da raça iberica, então os lusitanos baixariam á condição +de uma variedade sem autonomia; facto é, porém, que pouco ou nada sabemos, nem +de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por isso as fabulas dos +velhos antiquarios não merecem a attenção moderna. Não haverá, porém, acaso +outro caminho para atacar este problema? Á falta de monumentos escriptos, nada +poderá valer-nos? Entre a fabula ingenua dos antiquarios e as exigencias seccas +e formaes dos eruditos modernos, não estará outra via? Affigura-se-nos que +sim.<a name="tex2html4" href="#foot1132"><sup>[4]</sup></a></p> + +<p>Todos reconhecem hoje a indestructivel tenacidade das populações primitivas. +Raizes profundas que nenhuma charrua destroe apesar de revolta a leiva pelo +ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas e troncos pelo tropear dos +cavallos de guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incendios +das invasões: embora<span class="pn"><a name="pag_5">{pg. 5}</a></span> se lancem +novas sementes á terra e nasçam vegetações novas, essas raizes profundas tornam +a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou +esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas invencivel +as plantas intrusas.</p> + +<p>A permanencia dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutivel, +permitte fazer—consinta-se-nos a expressão—a historia ao inverso: julgar de +hoje para hontem, inferir do actual para o passado. A questão da raça lusitana +apresenta-se-nos pois n'estes termos: ha uma originalidade collectiva no povo +portuguez, em frente dos demais povos da Peninsula? Crêmos que a ha +circumscripta porém a traços secundarios. Crêmos que as diversas populações da +Hespanha, individualisadas sim, formam, comtudo, no seu conjuncto, um corpo +ethnologico dotado de caracteres geraes communs a todas. A unidade da historia +peninsular, apesar do dualismo politico dos tempos modernos, é a prova mais +patente d'esta opinião.<a name="tex2html5" href="#foot1133"><sup>[5]</sup></a> +</p> + +<p>Esse dualismo, porém, leva-nos tambem a crêr que entre as diversas tribus +ibericas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente +caracterisadas. Não esquecemos, decerto, a influencia posterior dos successos +da historia particular portugueza: mas elles, por si só, não bastam para +explicar o feitio diverso com que cousas identicas se representam ao nosso +espirito nacional. Ha no genio portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, +que contrasta com a terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo +lusitano uma nobreza que differe da furia dos nossos visinhos; ha nas nossas +letras e no nosso pensamento uma nota<span class="pn"><a +name="pag_6">{pg. 6}</a></span> profunda ou sentimental, ironica ou meiga, que em +vão se buscaria na historia da civilisação castelhana, violenta sem +profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas alheia a +toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade, mais que humana +muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a entestar com as féras. +Tragica e ardente sempre, a historia hespanhola differe da portugueza que é +mais propriamente epica; e as differenças da historia traduzem as +dessimilhanças do caracter.</p> + +<p>Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primaria +d'este phenomeno? Decerto não. Ou sombras impenetraveis o encobrem, ou a +escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendal-o. Como hypothese—e do +nosso atrevimento será escusa a nossa modestia—somos levados a crêr que a +individualidade do caracter dos lusitanos (quer n'elles incluamos os callaicos, +quer não) provém de uma dose maior de sangue celtico ou celta (questionou-se +outr'ora sobre isto) que gira em nossas veias, de mistura com o nosso sangue +iberico. Os nomes proprios de logares, os nomes de pessoas e divindades, +tirados das inscripções latinas da Lusitania e da Tarraconense, que constituem +o nosso Portugal, provam a preponderancia de um elemento celtico. As vagas +indicações dos antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e +dão-nol-os na costa Occidental da Peninsula. Vale porém mais do que isso a +analogia evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos +gallegos, e aquella phisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas da +França e da Irlanda teem determinado a estes ultimos.<a name="tex2html6" +href="#foot1134"><sup>[6]</sup></a> Tentámos<span class="pn"><a +name="pag_7">{pg. 7}</a></span> ha pouco esboçar a nossa phisionomia differencial: +escusado é tornar agora ao assumpto. Se a idéa de uma filiação dos lusitanos +foi expressa de um modo ridiculo pelos antiquarios classicos, a idéa de uma +filiação celtica ou celta teve já a mesma sorte quando, quasi em nossos dias, +houve quem pretendesse filiar directamente o portuguez na lingua dos bardos. +Paz do esquecimento a todas as chimeras!<span class="pn"><a +name="pag_8">{pg. 8}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1130" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> V. o seu retrato + no <em>Portugal Contemporaneo</em> (2.ª ed.) <small>II</small>, pp. 283 a + 327.</p> + + <p><a name="foot1131" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 11-15 e <em>Taboas de chronol.</em>, pp. + 256-7.</p> + + <p><a name="foot1132" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> V. ácerca dos + lusitanos. <em>As raças humanas</em>, <small>I</small>, pp. 198-201, e + 209-11, <em>nota</em>.</p> + + <p><a name="foot1133" href="#tex2html5"><sup>[5]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. <small>XXXIV-XLIV</small>.</p> + + <p><a name="foot1134" href="#tex2html6"><sup>[6]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, liv. <small>II</small>, p. 4.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002120">II<br> +Fundamentos da nacionalidade</a> </h3> + +<p>Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da independencia +politica?</p> + +<p>Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento mais distante, +circumstancias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram com que no nosso +tempo se substituisse, ao principio do equilibrio internacional, o principio +das nacionalidades, na organisação dos corpos politicos independentes da +Europa.<a name="tex2html7" href="#foot1135"><sup>[7]</sup></a></p> + +<p>Invasora como todas as doutrinas, e além d'isso habilmente explorada pelos +estadistas, a das nacionalidades tentou—se não tenta ainda—predominar +absoluta no triplo conjuncto de causas naturaes que de facto determinaram +sempre, e sempre determinarão, a existencia das nações: a geographia, a raça, e +as necessidades de ponderação: uma vez que a Europa é de facto uma +amphictyonia. Sobre estes tres elementos naturaes, ou antes coarctado por +elles, o egoismo das nações e a ambição dos imperantes talharam no mappa a +delimitação das fronteiras. Por escasso que seja o conhecimento da historia, +ninguem ignora que de todos tres o que mais impunemente tem sido e é atacado +pela vontade dos homens, é o primeiro. A rebeldia dos<span class="pn"><a +name="pag_9">{pg. 9}</a></span> dois segundos traduz-se de um modo mais immediato e +efficaz nas guerras de equilibrio e nas guerras commerciaes ou estrategicas. +Guerras, propria e exclusivamente de raça, são raras, se é que alguma houve; e +os povos opprimidos por extranhos, quando teem o sentimento como que religioso +da communidade de origem, extinguem-se, ou em revoltas estereis, ou emigrando. +O equilibrio, o commercio, a estrategia, porém, muitas vezes aproveitam o +sentimento da raça, fomentando-o, para dar com elle ás guerras a sancção que +n'outros tempos se achava, de um modo analogo, nas crenças propriamente +religiosas.</p> + +<p>Até hoje todas as successivas tentativas para descobrir a nossa +<em>raça</em> teem falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal mosarabes, teem +passado: ficam os portuguezes, cuja <em>raça</em>, se tal nome convém empregar, +foi formada por sete seculos de historia. D'essa historia nasceu a idéa de uma +patria, idéa culminante que exprime a cohesão acabada de um corpo social<a +name="tex2html8" href="#foot1136"><sup>[8]</sup></a> e que, mais ou menos +consciente, constitue como que a alma das nações, independentemente da maior ou +menor homogeneidade das suas origens ethnicas. O patriotismo tanto póde, com +effeito, provir das tradições de uma descendencia commum, como das +consequencias da vida historica. Não ha duvida, porém, que, se assenta sobre a +affinidade ethnogenica, resiste mais ao imperio extranho do que quando provém +apenas de uma communidade de historia. No dia em que a independencia politica +se perde, obliteram-se mais rapidamente os caracteres autonomicos, embora +durante a lucta valham menos os elementos de força provenientes da +homogeneidade<span class="pn"><a name="pag_10">{pg. 10}</a></span> ethnogenica. +Assim tantas nações perderam na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem +vestigios vivos da sua antiga independencia; ao passo que as individualidades +ethnicas apparecem ainda hoje distinctas no seio de nações politicamente +unificadas desde largos seculos: taes são o paiz basco, a Galliza e o Aragão, +na Hespanha: a Irlanda e a Escocia, de raça celtica, na Inglaterra; a Provença, +ou a Bretanha, em França: e, na Russia, a Finlandia que é scandinava, ou as +provincias balticas que são germanicas.<a name="tex2html9" +href="#foot1137"><sup>[9]</sup></a></p> + +<p>O patriotismo portuguez não é pois argumento a favor nem contra o problema +da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou. O jornalismo e +a politica podem explorar rhetoricamente todas as cousas, confundindo-as; mas á +sciencia impassivel e soberana fica mal deixar-se arrastar por motivos +inferiores. O patriotismo é excellente, no seu logar. Negar que durante os tres +seculos da dynastia de Aviz a nação portugueza viveu de um modo forte e +positivo, animada por um sentimento arraigado da sua cohesão, seria um absurdo. +Essa cohesão que fôra ganha nas luctas e campanhas da primeira dynastia, +perde-se no <small>XVI</small> seculo, por causa das consequencias do imperio +oriental e da educação dos jesuitas. Portugal acaba; os <em>Lusiadas</em> são +um epitaphio.</p> + +<p>Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que +precederam a formação da monarchia portugueza. N'essa epocha, o Mondego divide +em duas metades o territorio nacional e as differenças typicas da população +deviam<span class="pn"><a name="pag_11">{pg. 11}</a></span> ser então ainda mais +acentuadas do que o são hoje. Na metade do sul o typo vae confundir-se com os +limitrophes de além da fronteira do reino: e na metade do norte, diz um nosso +illustre escriptor<a name="tex2html10" href="#foot135"><sup>[10]</sup></a>, «a +Galliza, que tem comnosco de commum a lingua, que é uma continuação natural da +zona geographica portugueza, podia muito melhor formar com Portugal uma nação, +do que Portugal com Castella». A Galliza, cuja lingua se tornou litteraria sob +o nome de portuguez<a name="tex2html11" href="#foot1138"><sup>[11]</sup></a>, +vem com effeito até ao Mondego: o mosteiro de Lorvão dá-se em antigos +documentos como situado <em>in finibus Galleciæ</em>.</p> + +<p>O fallecido Soromenho <small class="SMALL">(</small><em><small +class="SMALL">Or. da ling. port.</small></em><small class="SMALL">)</small> +dizia que «entre a lingua usada na provincia de Entre-Douro-e-Minho e a que +mais tarde apparece nas terras do Cima-Côa e na Estremadura ha uma differença +bastante sensivel. Póde sem receio dizer-se que, á similhança do que succedia +além dos Pyreneus, em Portugal havia tambem uma <em>langue d'oc</em> e uma +<em>langue d'oil</em>, a lingua do Norte e a lingua do Sul... O Mondego é a +lingua divisoria... ainda um seculo depois de D. Diniz ter abandonado o latim +como lingua official». Esta differença coincide singularmente com as +differenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no caracter das +populações do Norte e do Sul do nosso paiz. E a uniformidade posterior da +lingua explica-se natural e comesinhamente pelo facto de sete seculos de +unidade nacional. «A importancia que o portuguez adquiriu repentinamente, diz o +sr. Ad. Coelho <small class="SMALL">(</small><em><small class="SMALL">A lingua +portugueza</small></em><small class="SMALL">)</small>, <em>resultou da +introducção da cultura poetica na côrte portugueza</em>». É conhecido o +papel<span class="pn"><a name="pag_12">{pg. 12}</a></span> da politica no sentido +do unificar as linguas do uma nação; abundam os exemplos de linguas +substituidas, e nem sempre a lingua denuncia a stirpe<a name="tex2html12" +href="#foot1139"><sup>[12]</sup></a>. Os normandos perderam em França o seu +idioma scandinavo, os burgundios o os lombardos, na França e na Italia, os seus +idiomas germanicos; á maneira dos oseos e umbrios<a name="tex2html13" +href="#foot1140"><sup>[13]</sup></a> que tinham trocado pelo latim as suas +linguas.</p> + +<p>Não se pretenda por fórma alguma dizer, comtudo, que ao sul do Mondego +houvesse uma lingua diversa: diga-se, porém, que o argumento da <em>unidade +actual</em> da lingua, depois de sete seculos de vida nacional, não tem valor. +Todos vêem ainda hoje como é rara a população no sul, menos densos portanto os +laços collectivos: e todos sabem como essas regiões, sujeitas por seculos a +guerras exterminadoras habitadas por mosarabes, invadidas por berberes, taladas +pelo fanatismo almoravide<a name="tex2html14" +href="#foot1141"><sup>[14]</sup></a> passaram para sob o imperio da monarchia +nascida na Galliza portugueza. Como não receberiam a lingua do vencedor? Não +podia haver lucta entre duas linguas romanicas, porque a arabisação do sul fôra +completa: podel-a-hia haver entre o arabe e o portuguez, quando a população +captiva passava á condição de escrava? quando as novas terras conquistadas eram +povoadas por colonias frankas, ou pelos cavalleiros hyerosalemitanos?</p> + +<p>Por taes motivos parece evidente a ausencia de uma causa ethnogenica no +facto da formação da monarchia portugueza, cujas razões de existir são +comesinhas, praticamente comprehensiveis, sem theorias subtis. A lingua vale +decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a<span +class="pn"><a name="pag_13">{pg. 13}</a></span> fala? Não se acham por esse mundo +homens de uma mesma raça falando idiomas diversos, e populações de um mesmo +idioma, pertencendo a raças differentes?<a name="tex2html15" +href="#foot1142"><sup>[15]</sup></a> Ora quem trilhou Portugal e a Hespanha +visinha observou decerto—ou não tem olhos para vêr—uma affinidade +incontestavel do aspecto e do caracter, um parentesco evidente, entre as +populações dos dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados +da raia secca de leste. Se esses homens não falassem, ninguem distinguiria duas +nações. E por outro lado, confundiu já alguem um algarvio, ou um alemtejano +puro, com um puro minhoto? A historia commum funde, não scinde; e quando vêmos, +depois de sete seculos, differenças tão marcadas, a observação dos homens +leva-nos a crêr que com effeito em Portugal faltou uma unidade de raça, +sobrando pelo contrario uma vontade energica e uma capacidade notavel nos seus +principes e barões. Com um retalho da Galliza, outro retalho de Leão, outro da +Hespanha meridional sarracena, esses principes compozeram para si um Estado.<a +name="tex2html16" href="#foot1143"><sup>[16]</sup></a></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A raça é de facto o mais tenue dos laços proprios para garantir a cohesão +independente de um povo. E além d'isso a doutrina—se admittissemos a +identidade d'ella e do facto—exigiria que á expressão de raça se ligassem +sempre certos caracteres correspondentes á vastidão necessaria, á eminencia +sempre crescente das funcções organicas, e<span class="pn"><a +name="pag_14">{pg. 14}</a></span> á originalidade activa, das nações modernas. Mal +de nós, pois, se ao facto de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros +quaesquer, formos pedir argumentos para defender a nossa independencia +nacional; porque esse facto não augmentará, nem a nossa força, nem as nossas +razões: porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da +monarchia leoneza.</p> + +<p>Não nos levantámos contra ella como lusitanos opprimidos: nós nem tinhamos a +menor idéa de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra cousa. A população do +condado portucalense, ibera, cruzada de celtas, romanisada, submettida ao +governo dos godos, depois aos arabes, e finalmente ao monarcha leonez, não +podia ter decerto um sentimento de cohesão collectiva ou nacional, incompativel +com o estado da sua cultura, com a tradição, e com a situação social e +politica: é isso o que todos os documentos historicos nos revelam. «Portugal, +diz o snr. Herculano, nascido no <small>XII</small> seculo em um angulo da +Galliza, dilatando-se pelo territorio do Al-Gharb sarraceno, e buscando até +augmentar a sua população com as colonias trazidas de além dos Pyreneus, é uma +nação inteiramente moderna.» É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha +raizes antigas. Não confundamos esta questão com a da independencia, e teremos, +cremos nós, pisado o verdadeiro e solido terreno da historia.</p> + +<p>A causa da separação de Portugal do corpo da monarchia leoneza não é +obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de +independencia do governador do condado, que o tinha do rei suzerano: é o +afastamento d'esta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade de +pulverisação da soberania, que a alliança d'esta idéa com a de propriedade, e a +ignorancia de<span class="pn"><a name="pag_15">{pg. 15}</a></span> meios +administrativos capazes de manter a ordem em terrenos dilatados, tornam +inevitavel na Edade-media.<a name="tex2html17" +href="#foot1144"><sup>[17]</sup></a> Portugal separava-se, da mesma fórma que o +reino da Navarra se dividira em tres, e pelos mesmos motivos. Portugal defende +a separação: o monarcha suzerano impugna-a. Debate-se mais de uma vez a questão +com as armas: não porque se chocassem os sentimentos nacionaes, mas porque os +principes defendiam o que era, ou julgavam ser, propriedade sua. Estas +primeiras guerras portuguezas não depõem decerto de um modo particular em favor +da independencia, porque eram a lei de toda a Hespanha, a lei de toda a +Europa—podemos dizer assim. É um preconceito fazer do conde D. Henrique o +fundador consciente da independencia de uma nação, quando o conde apenas +cuidava da independencia pessoal e propria. O sentimento de independencia +nacional, a idéa de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e +não os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se póde +dizer que só data da dynastia de Aviz, depois do dia memoravel de +Aljubarrota.<a name="tex2html18" href="#foot1145"><sup>[18]</sup></a></p> + +<p>No <small>XII</small> e <small>XIII</small> seculos Portugal é um certo +territorio, propriedade de um certo principe: d'onde vem? quem é? pouco +importa. O conde D. Henrique era francez. Assim, a epocha da primeira dynastia +desmente por todos os lados, e de todas as fórmas, a idéa de uma raça, +possuindo, de um modo mais ou menos definido, a consciencia da sua existencia +collectiva.</p> + +<p>É essa consciencia que dá porém o caracter<span class="pn"><a +name="pag_16">{pg. 16}</a></span> eminente á segunda dynastia, ou de Aviz, em cujas +mãos Portugal desempenha um papel bem similhante ao dos phenicios da +Antiguidade.<a name="tex2html19" href="#foot1146"><sup>[19]</sup></a> Como aos +phenicios succedeu aos portugueses: no momento em que a razão de ser da sua +acção na civilisação da Europa desappareceu, a nação definhou, sumiu-se, +perdendo tudo até perder a independencia.</p> + +<p>É verdade que a nossa independencia restaura-se em 1640. Mas como, de que +modo? Atrever-se-ha alguem a dizer que é uma resurreição? Não será a historia +da Restauração a nova historia de um paiz, que, destruida a obra do imperio +ultramarino, surge, no <small>XVI</small> seculo, como no nosso appareceu a +Belgica, filho das necessidades do equilibrio europeu? Não vivemos desde 1641 +sob o protectorado da Inglaterra? Não chegámos a ser positivamente uma feitoria +britannica? E ainda no decurso d'esta historia o Brazil veiu, enchendo-nos de +oiro, prestar-nos um ponto do apoio extra-europeu, e como que restaurar o +antigo caracter do Portugal manuelino, capital europêa de um imperio +ultramarino, á maneira da Hollanda. E que melhor prova póde haver da nossa +desorganização do que a duração ephemera da obra do marquez de Pombal—o +estadista que concebeu a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um +momento a fazer d'elle outra vez uma nação independente? que melhor prova do +que a reacção victoriosa de D. Maria I?</p> + +<p>A perda do Brazil, reduzindo o reino á miseria, veiu mostrar a fragilidade +do nosso edificio politico. Os inglezes tiveram de nos tutelar para manter, +como lhes convinha, a dynastia de Bragança; e passada, vencida a crise, +appareceu com o liberalismo<span class="pn"><a name="pag_17">{pg. 17}</a></span> a +impotencia manifesta de restaurar a vida historica de uma nação imperial ou +colonial.<a name="tex2html20" href="#foot1147"><sup>[20]</sup></a></p> + +<p>Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que ha sensato, o patriotismo com +as questões e problemas scientificos das origens naturaes ethnicas. Tambem a +Suissa, alleman, italiana, franceza, odiou o austriaco, á maneira por que nós +<em>odiamos Castella</em>. Basta a historia, basta o interesse, para dar +homogeneidade social e politica a um povo; e basta essa homogeneidade para +crear um patriotismo. Ora o patriotismo das raças assim formadas exprime-se na +acção, e não em miragens enganadoras de um passado que a historia acaba. Na sua +lingua, nas suas tradições, no seu caracter, o celta da Irlanda encontra sempre +um ponto de apoio vivo e positivo. Quereis uma prova da differença? Os pontos +de apoio que nós buscamos são mortos ou negativos: morto o imperio maritimo e +colonial, a India, e toda a historia que terminou com os <em>Lusiadas</em> em +1580: negativo, o <em>odio a Castella</em>, que nem nos opprime, nem nos +odeia.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na +sua formação ás ordens da geographia: os barões audazes, ávidos e turbulentos +são ao mesmo tempo ignorantes de theorias e systemas. Vão até onde vae a ponta +da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve, com tanto que alarguem o seu +dominio.</p> + +<p>Por isso as fronteiras de Portugal oscillam durante<span class="pn"><a +name="pag_18">{pg. 18}</a></span> os primeiros dois seculos á mercê dos azares das +guerras, com Leão e Castella de um lado, com os sarracenos do outro; e Portugal +vem a ser formado com dois fragmentos: do reino leonez, um, dos émirados +sarracenos, outro.</p> + +<p>Quando Fernando-Magno de Castella, descendo do oriente, conquistou a moderna +Beira aos musulmanos,<a name="tex2html21" href="#foot1148"><sup>[21]</sup></a> +a Galliza encontrou em Coimbra e na linha de defeza do Mondego uma fronteira +que a punha ao abrigo de futuras correrias, até ou além do valle do Douro. Pelo +meiado do <small>XI</small> seculo a expressão geographica de Galliza ia, pois, +até ao Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituidas pelo rei +n'um governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a leste, +uma linha passada por Lamego, Vizeu e Cêa, e que, descendo de novo á costa, +acompanhava os pendores setentrionaes da serra da Estrella. Condado de Galliza +ao norte, de Coimbra ao sul do Douro, sarracenos ao sul do Mondego: eis ahi a +condição do territorio do moderno Portugal na segunda metade do +<small>XI</small> seculo.</p> + +<p>Já, porém, n'esta epocha, uma expressão a que não correspondia valor +politico, militar ou administrativo, apparece a designar o territorio de entre +o Douro e o Minho e a moderna provincia de Traz-os-Montes: a essa parte do +condado da Galliza chama-se já Portucale.</p> + +<p>Nos ultimos annos do <small>XI</small> seculo correrias felizes deram ao +celebre Affonso VI a posse de Santarem, Lisboa e Cintra, alargando as +fronteiras christans até á linha do Tejo. Os nossos territorios de entre +Mondego e Tejo foram creados em condado ou governo, e confiados á guarda de +Gonçalo Mendes da<span class="pn"><a name="pag_19">{pg. 19}</a></span> Maia, o +nomeado <em>lidador</em>: e os tres governos que tinham por limites successivos +o Douro, o Mondego e o Tejo, constituiram em favor do genro de Affonso VI, +Raymundo de Borgonha, uma especie de vice-reino. Breve foi, porém, a duração +d'este periodo; porque logo em 1097, depois do desbarato do conde borguinhão e +da perda da fronteira do Tejo, Affonso VI effectua uma nova divisão do +territorio, dando autonomia politica á expressão geographica de Portucale ou +Portugal, e annexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense, +por tal fórma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galliza, e os seus +dominios recuavam assim de golpe desde o Tejo até ao Minho. Esse primo era o +conde D. Henrique, tambem genro do poderoso Affonso VI.</p> + +<p>Na primeira metade do <small>XII</small> seculo, o conde e a viuva sua +herdeira levam as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para +norte, por entre Minho e Bivey, até Tuy e Orense. As guerras civis dos Estados +da Peninsula davam e tiravam assim, constantemente, territorios e povoações. A +fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus actuaes limites de +além-Douro; mas o governo de Affonso Henriques, o primeiro que ousou quebrar de +todo os laços tenues da vassallagem a Leão, viu alargar-se do lado opposto a +raia até á linha do Sado, desde que, no meiado do <small>XII</small> seculo, +Lisboa, Santarem, Cintra, Almada e Palmella cairam definitivamente em seu +poder, accrescentando novas terras ás do primitivo condado portucalense.</p> + +<p>As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da accessão +de Sancho I ao throno, as mesmas de hoje: margem esquerda do Minho, por Melgaço +a Lindoso, d'ahi a Bragança por Miranda, entestar com o Douro no ponto em<span +class="pn"><a name="pag_20">{pg. 20}</a></span> que agora se extremam Portugal e a +Hespanha. A fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Diniz se +demarcou por onde hoje passa: no fim do <small>XII</small> seculo a raia seguia +desde a foz do Coa, rio acima, até á confluencia do Pinhel, e, acompanhando-o, +passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. D'ahi ao Tejo, +então e agora, a fronteira é a mesma.</p> + +<p>Ao sul do Tejo é difficil, senão impossivel, determinar chronologicamente as +fronteiras portuguesas. A nacionalidade do dominio nas cidades do Alemtejo +permittiria traçar geographicamente a linha da fronteira com uma aproximação +conveniente, tanto mais que os territorios de entre as cidades, devastados e +ermos, eram posse de quem no momento os pisava armado. Mas as successivas +correrias de lado a lado, a tomada, logo a queda; depois a reconquista de uma +mesma cidade, ás vezes n'um periodo de mezes, tornam impossivel demarcar a +fronteira antes da epocha em que definitivamente uma certa região passa para o +dominio portuguez, para d'elle não mais saír. Assim, a tomada de Evora em 1166 +dá á linha do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra +as fortalezas sarracenas de Jerumenha, Elvas e Badajoz. Por ahi a raia +portugueza iria até Marvão, acaso até Arronches.</p> + +<p>Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal.</p> + +<p>No primeiro quartel do <small>XIII</small> seculo, Alcacer do Sal, base +estrategica da linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de +leste, cáem em poder dos portuguezes; e á determinação final da nossa raia +alemtejana vem juntar-se, até ao meiado do seculo, a conquista do Algarve, +completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal.<span class="pn"><a +name="pag_21">{pg. 21}</a></span></p> + +<p>No ferir das guerras da conquista não são os musulmanos que põem um freio á +ambição pessoal dos principes, porque a sorte do imperio do Islam estava +lançada, e para a consummar concorriam todos os Estados christãos da Peninsula. +Será porventura a raça que delimita as fronteiras da nova nação? Ocioso é já +responder. Será a geographia? Não parece; desde que vêmos a raia cortar de lado +a lado as planicies do Alemtejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair +perpendicularmente sobre as cumiadas das montanhas em vez de lhes seguir a +orientação. Qual dos tres elementos nos resta? O equilibrio. O equilibrio é com +effeito o elemento ponderador: á ambição dos principes de Portugal oppõe-se a +resistencia dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um dos +antagonistas não tem força bastante para submetter o adversario, o outro tem de +usar com prudencia de um poder limitado. Quando tenta passar além do Minho, ou +adquirir para si Badajoz, a reacção mostra-lhe até onde póde ir a acção dos +meios de que dispõe. Do equilibrio ou ponderação das duas forças antagonicas +nasce a determinação geographica do Portugal moderno, para o qual só no extremo +norte e no extremo sul, sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em +admittir uma fronteira natural.</p> + +<p>Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expôr claramente o nosso +pensamento. Ha ou não ha uma nacionalidade portugueza? Questão absurda, assim +formulada. Evidentemente ha, se nacionalidade quer dizer nação. Se por +nacionalidade se entende, porém, um corpo de população ethnogenicamente +homogeneo, localisado n'uma região naturalmente delimitada, insistimos em dizer +que tal cousa se não dá comnosco. Se por nacionalidade<span class="pn"><a +name="pag_22">{pg. 22}</a></span> se entende, finalmente, essa unidade social que a +historia imprime em povos submettidos ao regime de um governo, de uma lingua, +de uma religião irmans, como nós o temos sido durante sete seculos, +evidentemente a resposta só póde ser uma.<span class="pn"><a +name="pag_23">{pg. 23}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1135" href="#tex2html7"><sup>[7]</sup></a> V. <em>Th. da + hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chron.</em>, pp., <small>XXII</small> + e segg.</p> + + <p><a name="foot1136" href="#tex2html8"><sup>[8]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, introd., pp. <small>LXVII</small> e segg.</p> + + <p><a name="foot1137" href="#tex2html9"><sup>[9]</sup></a> V. <em>Instit. + primitivas</em>, pp. 290-306.</p> + + <p><a name="foot135" href="#tex2html10"><sup>[10]</sup></a> O sr. F. Ad. + Coelho.</p> + + <p><a name="foot1138" href="#tex2html11"><sup>[11]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.), pp. 122-5.</p> + + <p><a name="foot1139" href="#tex2html12"><sup>[12]</sup></a> V. As raças + humanas, <small>I</small>, pp. 20-5.</p> + + <p><a name="foot1140" href="#tex2html13"><sup>[13]</sup></a> V. <em>Hist. da + repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 117-45.</p> + + <p><a name="foot1141" href="#tex2html14"><sup>[14]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 81-111.</p> + + <p><a name="foot1142" href="#tex2html15"><sup>[15]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp 20-5.</p> + + <p><a name="foot1143" href="#tex2html16"><sup>[16]</sup></a> V. <em>Th. da + hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp. + <small>XXX-I</small>.</p> + + <p><a name="foot1144" href="#tex2html17"><sup>[17]</sup></a> V. <em>Th. da + hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp. + <small>XXVI-VII</small> e <em>Instit. primit.</em>, pp. 222 e segg.</p> + + <p><a name="foot1145" href="#tex2html18"><sup>[18]</sup></a> V. <em>Instit. + primitivas</em>, pp. 233-43.</p> + + <p><a name="foot1146" href="#tex2html19"><sup>[19]</sup></a> V. <em>Raças + humanas</em>, I, <small>IV</small>, 2, 3.</p> + + <p><a name="foot1147" href="#tex2html20"><sup>[20]</sup></a> V. <em>Portugal + contemporaneo</em>, <small>II</small>, pp. 119-37.</p> + + <p><a name="foot1148" href="#tex2html21"><sup>[21]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 116-7.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002130">III<br> +Geographia portugueza</a> </h3> + +<p>Quando se observa o retalho da Peninsula, de que a historia fez Portugal, +separado do corpo geographico a que pertence, desde logo se vê como a vontade +dos homens pôde sobrepujar as tendencias da natureza. Os rios e as serranias +descem, perpendiculares sobre a costa occidental, proseguindo uma derrota e +provindo de uma origem que se dilatam para muito além das fronteiras, até ao +coração do corpo peninsular. As cumiadas das montanhas e os valles extensos +mudam de nacionalidade n'aquelle ponto convencional que aos homens aprouve +fixar.</p> + +<p>Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso proprio territorio, +motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto póde a +obcecação doutrinaria! Diz um que essa separação dos litoraes é uma regra;<a +name="tex2html22" href="#foot1149"><sup>[22]</sup></a> nega outro o caracter +arbitrario da linha das fronteiras de leste, affirmando que essa linha coincide +com os limites extremos até onde os nossos rios são navegaveis. Decerto nunca +os viu quem tal affirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o +rio é portuguez nas duas margens até Monsarás, formando a raia d'ahi até Elvas. +O Douro para cima da Regoa é tão navegavel até Zamora como até á Barca-d'Alva. +No Tejo, passando Abrantes, tanto se vae<span class="pn"><a +name="pag_24">{pg. 24}</a></span> até Alcantara, como até Aranjuez. Onde está pois +a concordancia da fronteira com a parte navegavel dos rios? A allegada <em>base +geographica</em> da nacionalidade desapparece pois, se é que uma tal expressão +não quer apenas denunciar o destino maritimo, como que phenicio, da nação.</p> + +<p>As duas cousas não devem, porém, confundir-se, pois n'um caso encontramos a +causa determinante da aggregação social, emquanto no outro se observa a +consequencia do facto da existencia anterior d'essa aggregação, fortuitamente +constituida n'um litoral. É evidente que o caracter maritimo e colonial da +nação portugueza, na segunda dynastia, não podia ter influido no facto já +secular da independencia. É sabido que D. Affonso Henriques, o author d'ella, +não tinha navios, servindo-se dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcacer. A +marinha foi uma creação da monarchia e um producto da nação, depois de +constituida: o caracter maritimo é historico, não é primitivo em um povo rural, +como era o portuguez dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o gallego. O +movimento de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Diniz, +as de D. Fernando, depois a empreza do Infante D. Henrique, são momentos +successivos de uma historia que é o nervo intimo da vida portugueza. Desde a +reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de Lisboa, desde a +introducção dos genovezes, que vieram ensinar-nos a navegar, vê-se começar a +formar-se essa nação cosmopolita, destinada á vida commercial, maritima e +colonisadora.<a name="tex2html23" href="#foot1150"><sup>[23]</sup></a></p> + +<p>É essa a nação que a historia fórma: e por isso mesmo que a vida portugueza +foi maritima, e o<span class="pn"><a name="pag_25">{pg. 25}</a></span> destino da +sua historia o mar: por isso mesmo avultam os elementos que diariamente tornam +cosmopolitas as cidades maritimas de um paiz cuja capital é um dos melhores +portos do mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido á força +absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular.</p> + +<p>Erguido em frente do mar como um amphitheatro cujos primeiros degraus as +ondas constantemente aspergem, o territorio portuguez, independente, adquiriu +d'esta localisação um caracter seu: ao mesmo tempo que nos habitantes de +Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia uma tendencia +particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas, e, pelo coração dos +valles, o curso dos nossos rios, são as veias e os tendões que nos ligam ao +corpo peninsular; assim tambem no nosso sangue os elementos primitivos accusam +o facto de uma origem e de uma raça irman.</p> + +<p>E se temos uma phisionomia moral, distincta sem ser diversa, tambem as +condições do nosso territorio nos dão um genero de destino differente, mas +encaminhado a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa gloria e a +nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas, construimos; +conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores, desvendámos todos +os segredos dos Oceanos; mas o nosso imperio no Oriente foi um desastre, para o +Oriente e para nós. A bordo fomos tudo; em terra apenas podémos demonstrar o +heroismo do nosso caracter e a incapacidade do nosso dominio. Façanhas de +homens que dirigem instinctos devotos e pensamentos de cubiça, eis ahi o que +nós veremos ser o nosso imperio oriental. Epopêa do espirito indagador, audaz e +paciente, as nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras,<span +class="pn"><a name="pag_26">{pg. 26}</a></span> tornam-nos os genios d'esse +elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma celtica nos +attrahia. Quando á Europa humilhada o castelhano impõe a lei com a espada e o +mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros, segurando o leme, ferrando as +velas, alargamos mar em fóra a nau, com o olhar perscrutador fixado nos astros +que nos guiam. Vamos de manso, ao longo das costas... Ninguem nos vê: só as +ondas ouvem as melopêas monotonas dos marinheiros, cujo rithmo obedece ao +rithmo do quebrar da vaga contra o costado.—Elles vão, emplumados e vestidos +de aço, arrogantes e cheios de imperio, com o seu grito stridente e tragico, +ensurdecer e estontear o mundo! Ninguem diria dois povos irmãos; e são-no, +porque ambos obedecem a um motivo identico, a um pensamento egual, que está no +fundo da sua alma inconsciente, como a chamma que arde no cerne da Terra, dando +origem a rochas tão diversas no aspecto, na côr, na rigeza, na structura, no +merito.</p> + +<p>Portugal é um amphitheatro levantado em frente do Atlantico que é uma arena. +A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores, arrastando-os +afinal á laboriosa empreza das navegações, que era para elles um destino desde +que a politica os destacára do corpo da Peninsula.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Quando se percorre de norte a sul a estreita facha da nação occidental da +Hespanha, encontram-se os successivos prolongamentos das cordilheiras +peninsulares, galgando uns até ao mar, terminando outros mais distante da +costa. Entre elles abrem-se as bacias ou estuarios de rios parallelos que +podem<span class="pn"><a name="pag_27">{pg. 27}</a></span> dividir-se em dois +systemas: o do norte e o do sul, delimitados pela cordilheira da +Estrella-Aire-Montejunto-Cintra.</p> + +<p>No systema do norte, o Douro é a arteria central d'uma região montuosa, +coroada nos limites setentrionaes e austraes pelas duas cordilheiras +culminantes da Galliza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou degraus +successivos d'essa platéa de montanhas que se fecha áquem da fronteira +portugueza, descem outras serras, entre cujas depressões se precipitam os rios +nacionaes do norte: o Minho, que delimita a Galliza, o Lima, o Cávado e o Ave, +ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o Mondego. As serras de entre Minho e +Lima são as do Suajo; as de entre Lima e Douro, as do Gerez e do Marão, +separadas pelo Tamega, confluente d'este ultimo; as d'entre Douro e Vouga, +Montemuro; as d'entre Vouga e Mondego, Caramullo.</p> + +<p>No sul, as bahias do Tejo e Sado, divididas pela peninsula da Arrabida, +constituem o centro de um systema de caudaes irradiantes que cortam a zona mais +plana, limitada de um lado pela serra da Estrella, do opposto pela do Algarve. +Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo, desinternando-se de +Castella; destacando-se d'este, para sueste, o Sorraia, em plena planicie; e, +mais pronunciadamente para o sul, o Sado, que vae nascer no pendor norte das +montanhas algarvias.</p> + +<p>Se a metade norte de Portugal é fechada a leste por um systema de +contrafortes avançados dos Pyreneus cantabricos, a metade sul, theatro das +guerras castello-portuguezas, contradiz de um modo incontestavel a opinião dos +que vêem na orographia a base necessaria da delimitação das fronteiras +nacionaes.</p> + +<p>A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira<span class="pn"><a +name="pag_28">{pg. 28}</a></span> andaluza penetrando no interior da Peninsula. +Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana, depois de ter regado os +nossos terrenos raianos, toma uma direcção leste atravez das largas campinas da +Estremadura hespanhola que os tratados apenas dividiram do nosso Alemtejo. +N'esta metade austral da nossa fronteira de leste, as planicies e as aguas do +rio que as rega mudam de nação sem mudarem de natureza; e outro tanto succede +aos contrafortes avançados que reunem n'um mesmo promontorio as serras de +Guadalupe e a Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Evora ao +sul. No troço de fronteira ao norte d'esta como que garra lançada pela ossatura +da Hespanha no Portugal alemtejano, corre, primeiro, o amplo valle em cujo +centro deslisa o Tejo, prolongando-se com elle, Estremadura em fóra, até +Toledo; e seguem, depois, as cumiadas da Guardunha que dividem o Tejo do +Zezere, apertando este rio contra a serra da Estrella.</p> + +<p>O pendor austral das serras do Algarve e a facha ou tapete de jardins sobre +que pousa a sua base o throno d'esses montes, formam uma ultima e como que +excepcional provincia geographica, vedeta sobre o continente fronteiro, cujo +clima e producções partilha.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Geognosticamente, o territorio portuguez póde dividir-se em tres regiões +principaes: a das rochas igneas e paleozoicas, a dos terrenos secundarios, e a +dos terrenos terciarios.</p> + +<p>Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da costa, se +dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do Minho. D'ahi +extende-se por toda a raia de leste até<span class="pn"><a +name="pag_29">{pg. 29}</a></span> ás serras do Algarve, baixando-a em direcção +poente, para a prolongar com a costa até Sines. Depois, interne-se a contornar +a bacia do Sado, por Grandola, Cercal, Panoias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até +Vendas-Novas; em seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte-de-Sôr, caíndo +sobre o Tejo em Abrantes, e caminhando para norte por Thomar, Alvaiazere, +Anadia—e ter-se-ha encerrado em Aveiro um perimetro que abrange cerca de tres +quartas partes da superficie total da nação. É a região dos terrenos +primitivos.</p> + +<p>A dos terrenos secundarios compõe-se de dois retalhos isolados. O primeiro +extende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até á Barquinha; +entestando d'ahi até Aveiro com a linha anteriormente traçada, e vindo ao longo +da costa, a descer para o sul, circumscrever a serra de Cintra, chegando outra +vez a Lisboa. O segundo é constituido pelo litoral do Algarve, no pendor sul +das serras, até ao mar.</p> + +<p>A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciarios, desce pela costa, +desde a ponta do Bogio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se pelas duas +zonas divergentes dos valles do Sado e do Sorraia, contornados pela linha +determinada antes ao delimitar a raia da primeira região.</p> + +<p>Esta ultima é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas +provincias ao norte do Douro, a quasi totalidade das duas Beiras e do Alemtejo, +e boa metade do Algarve. A Estremadura quasi por si só compõe as duas segundas +regiões—uma ao norte, outra ao sul do Tejo<a name="tex2html24" +href="#foot1151"><sup>[24]</sup></a>.<span class="pn"><a +name="pag_30">{pg. 30}</a></span></p> + +<p>Na do norte predominam os terrenos cretaceos e jurassicos, formando tambem +estes ultimos a quasi totalidade do retalho algarvio da segunda região. Uma +pequena mancha de granitos em Cintra, os basaltos dos arredores de Lisboa, e as +dunas da costa, desde a Marinha-grande até Aveiro, são os phenomenos +esporadicos da geognosia d'esta parte de Portugal.</p> + +<p>Na região do sul do Tejo apenas a Arrabida e S. Thiago de Cacem apresentam +breves nodoas de terrenos jurassicos; e estes, os terrenos modernos formados +pelas alluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as margens, e os areaes da +costa entre o Bogio e o cabo de Espichel, são as unicas excepções do vasto +lençol da região dos terrenos terciarios.</p> + +<p>Na primeira e mais extensa das zonas geognosticas de Portugal tambem o Tejo +póde dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões differentemente +caracterisadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, schistosos quanto á +structura, e primarios ou paleozoicos quanto á edade, predominam em massa, +envolvendo as rochas eruptivas ou igneas. Porém ao norte do Tejo o volume +d'estas rochas, exclusivamente graniticas, é proximamente egual á dos schistos; +ao passo que ao sul, além d'estes ultimos predominarem, apparecem não só +granitos mas porphyros e diorites.</p> + +<p>Entre Castello-de-Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o +maior e mais compacto affloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois d'este +vem o de Evora, bracejando de um modo irregular, para norte até Vimeiro, para +nordeste até Lavre, e no lado opposto até Vianna, Aguiar e S. Manços. Afinal, +as pequenas nodoas de Galveas, de Santa Eulalia, de Freia, de Reguengos, da +Vidigueira, e de<span class="pn"><a name="pag_31">{pg. 31}</a></span> Valle-Vargo a +nascente de Serpa, completam o systema de affloramentos graniticos da +sub-região do sul do Tejo. Os porphyros e diorites constituem um longo dorso +que vem de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcaçovas, +terminar junto de Cabrella, quasi na raia da região terciaria. Além d'esta +formação principal, encontram-se destacadas as manchas sporadicas de Alter, de +Bonnavilla, de Monforte, e as duas mais consideraveis de Campo-maior e de +Elvas, proximo da fronteira.</p> + +<p>Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas predomina +sobre a dos schistos. Depois do macisso schistoso da Guardunha, entre +Castello-Branco e o Fundão, transposto o valle do Zezere, encontra-se a base +alastrada da serra da Estrella, e afinal os alicerces de Monte-muro. Os +granitos vêem desde a fronteira, entre Alfaiates e a Barca d'Alva, pela +Covilhan e Taboa ao sul, por Vizeu a poente, entestar no Douro, cuja margem +esquerda sobe até á raia de Leão. Pequenas são as nodoas schistosas na área +circumscripta: S. João-da-Pesqueira e Villa-nova-da-Foscoa, na margem do Douro: +Villa-da-Egreja ás origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da serra +da Estrella.</p> + +<p>Porém as abas occidentaes das serras da Guardunha, da Estrella e do +Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de terrenos +paleozoicos, uma cortada pelo Zezere, outra pelo Mondego e pelo Vouga: são +estas zonas que vêem raiar com a região dos terrenos secundarios até Aveiro, e +com o mar desde Aveiro até â foz do Douro, tendo de permeio a facha de dunas da +costa.</p> + +<p>Ao norte do Douro os schistos predominam para<span class="pn"><a +name="pag_32">{pg. 32}</a></span> cima da linha Regoa-Chaves, os granitos para +baixo. Ao longo da costa, desde o Porto até á Povoa, encontra-se, destacado, um +affloramento de rochas eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerez e +do Suajo, a poente do Tamega, lançando junto a Braga um ramo que vae, por +Barcellos, a Vianna e até Caminha.</p> + +<p>A leste da linha Chaves-Regoa são irregulares e dispersos os affloramentos +eruptivos: acompanham a margem portugueza do Douro desde Bemposta até Miranda; +apparecem em dois pontos da extrema fronteira do norte; vêem de Montalegre, por +Chaves até Valpassos e Torre-de-D. Chama; e pela serra do Marão, desde Mondim e +Ribeira-de-Pena, por Villa-Pouca e Villa-Real, morrer junto ao Douro em +Villarinho. Todo o resto, o Marão, da Campean a Santa Martha, as alturas á +esquerda do Corgo, a maxima parte do valle do Tua, e todo o valle do Sabor, são +formados pelos terrenos paleozoicos.<span class="pn"><a +name="pag_33">{pg. 33}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1149" href="#tex2html22"><sup>[22]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, introd., pp. <small>XXXI-II</small>.</p> + + <p><a name="foot1150" href="#tex2html23"><sup>[23]</sup></a> V. <em>O Brasil + e as colonias portuguezas</em> (2.ª ed.) pp. 1-29.</p> + + <p><a name="foot1151" href="#tex2html24"><sup>[24]</sup></a> V. para a + geologia terciaria do Tejo, os <em>Elem. de Anthropologia</em> (3.ª ed.), pp. + 212-17, podendo cotejar-se o estudo da região portugueza com o da Peninsula + no seu todo na <em>Hist. da civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. + <small>VII-XXI</small>.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002140">IV<br> +A terra e o homem</a> </h3> + +<p>Conhecida a orographia e a geognosia do territorio, brevemente indicaremos o +systema de caracteres agricolas e climatologicos, ambos subordinados aos +anteriores, e todos solidariamente ligados para formar a phisionomia natural +das diversas regiões do territorio portuguez.</p> + +<p>A sua antiga divisão em provincias obedecia mais a estas condições naturaes +do que a moderna divisão em districtos: as causas determinantes de uma e de +outra são o motivo d'esta differença. As provincias formaram-se historicamente +em obediencia ás condições naturaes; os districtos actuaes foram creados +administrativamente de um modo até certo ponto artificial. Umas provinham dos +caracteres proprios das regiões, e a administração limitára-se a reconhecer +factos naturaes: outros, determinados por motivos abstractos, nasceram de +principios administrativos e estatisticos (área, quantidade de população, +etc.), fazendo-os discordar o menos possivel dos limites naturaes, geographicos +e climatologicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por provincias, e não +por districtos, o territorio portuguez; deixando para o lugar competente o +estudo das condições modernas da nação.<a name="tex2html25" +href="#foot1152"><sup>[25]</sup></a><span class="pn"><a +name="pag_34">{pg. 34}</a></span></p> + +<p>A divisão das provincias apoiava-se em factos phisicos de um valor eminente. +Começando pelo norte, o territorio de além-Douro inscreve duas zonas separadas +pelo Tamega: a leste, Traz-os-Montes, a oeste, Entre-Douro-e-Minho. Além de +obedecer, como se vê, á geographia, buscando nos rios fronteiras naturaes, a +divisão das duas provincias consagrava differenças essenciaes: as geognosticas +já por nós observadas (rochas eruptivas dominando a oeste, schistos a leste do +Tamega), e além d'ellas as climatericas. Portugal, segundo já se disse n'outro +lugar, é em geral um amphitheatro de montanhas, levantado em frente do Oceano. +Esta circumstancia caracterisa para logo as regiões de um modo tambem geral, +dividindo-as em duas categorias: as maritimas e as interiores; as cis e as +transmontanas; as que estão directamente expostas á acção das brisas maritimas, +e os declives orientaes, os valles interiores, e os degraus ou socalcos das +serras encobertas aos bafejos do mar por cumiadas occidentaes sobranceiras.</p> + +<p>Esta circumstancia dá caracteres inteiramente diversos ás duas provincias do +Douro-Minho e de Traz-os-Montes, divididas pelas serranias do Gerez e do Marão, +que roubam a ultima á acção das brisas maritimas. Quem alguma vez transpoz o +Tamega, decerto observou a profunda differença da paizagem e do caracter e +aspecto dos habitantes de áquem e de além d'esse rio. O transmontano, vivo, +ágil, robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e +laborioso, tenaz, persistente e ingenuo. Além do Tamega o clima é secco <small +class="SMALL">(40 a 60% de humidade relativa)</small> poucas as chuvas <small +class="SMALL">(500 a 1:000 millim. e no estio 70 a 80 apenas)</small>, grande o +calor no fundo dos valles apertados, mas temperado nas alturas; intensos os +frios hibernaes, que coroam de neve as<span class="pn"><a +name="pag_35">{pg. 35}</a></span> montanhas e gelam a agua pelas baixas <small +class="SMALL">(12 a 15° temp. média)</small>. Áquem, as brisas do mar, +estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as chuvas +copiosas: por isso no Minho o pendor occidental das serras de oriente é sarjado +pelos numerosos e successivos rios parallelos, cujos valles, reunindo-se junto +á costa, formam ao longo d'ella a primeira das planicies litoraes de Portugal. +Habita essa região pingue uma população abundante, activa, mas sem distincção +de caracter, nem elevação de espirito: consequencia necessaria da humidade e da +fertilidade. Falta essa especie de tonificação propria do ar secco e dos largos +horizontes recortados n'um céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma +Attica. As chuvas precipitam-se abundantes <small class="SMALL">(1:200 a 2:000 +mill. annuaes, e no estio 80 a 200)</small> sobre um chão lavrado de caudaes; a +humidade <small class="SMALL">(70 a 100%)</small> torna flaccidos os +temperamentos e entorpece a vivacidade intellectual, que nem um frio demasiado +irrita, nem um calor excessivo faz fermentar, á maneira do que succede nas +zonas genesiacas dos tropicos. Temperado o clima <small class="SMALL">(12 a +15°)</small>, sem excessivos afastamentos hibernaes, a população satisfeita, +feliz, e bem nutrida de vegetaes e de ar humido, offerece a imagem de um +exercito de laboriosas formigas sem cousa alguma de aládo e brilhante de um +enxame dourado de abelhas.</p> + +<p>O clima determina a paizagem. Além Tamega as louras messes do trigo, os +pampanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os pendores +de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no inverno coroadas de +neves, se recortam no fundo azul do firmamento, dando fixidez e nobreza ao +quadro, e infundindo o quer que é de elevado no espirito. A natureza vive +na<span class="pn"><a name="pag_36">{pg. 36}</a></span> luz, e a alma sente que os +elementos teem dentro em si forças que os animam.</p> + +<p>Áquem Tamega o scenario muda: a humidade cria em toda a parte vegetações +abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de plantas: mas +como o solo é breve, como a rocha afflora por toda a parte, e os campos nascem +do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do granito pelas folhas e ramos +decompostos, e nos estuarios dos rios pelos sedimentos das cheias, a vegetação +é rasteira e humilde, o pinho maritimo de uma constituição debil, o carvalho um +pigmeu enleiado pelas varas das vides suspensas. A densidade da população +completa a obra da natureza n'uma região onde o vinho não amadurece: o acido +picante dá-lhe uma similhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou +cerveja, e com ella, ao genio do povo, caracteres tambem similhantes aos de +bretões e flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela +mão dos homens: as necessidades implacaveis da população abundante produzem uma +cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos, circumdados +por pequeninos valles, orlados de carvalhos pigmeus, decotados, onde se +penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto formiga a familia: o pae, a +mãe, os filhos, immundos, atraz d'uns boisinhos anões que lavram uma amostra de +campo, ou puxam a miniatura de um carro. Sob um céu ennuveado quasi sempre, +pisando um chão quasi sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos, +dominado em torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem +abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não podendo +despegar-se da terra, como que se confunde com ella; e, com<span class="pn"><a +name="pag_37">{pg. 37}</a></span> os seus bois, os seus arados e enxadas, fórma um +todo d'onde se não ergue uma voz de independencia moral, embora amiude se +levante o grito de resistencia utilitaria.<a name="tex2html26" +href="#foot1155"><sup>[26]</sup></a> A paizagem é rural, não é agricola; a +poesia dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez +subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas espessas de +arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados de muros e renques +de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausencia de um largo folego de ideal, +e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e acolá, engastado na monotonia da +côr dos milhos, um canto do verde alegre do linho vem lembrar que tambem no +coração do minhoto ha um lugar para o idyllio infantil do amor.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira litoral, +dão-se differenças analogas ás que distinguem o Minho e Traz-os-Montes: +analogas, dizemos, e não identicas, porque n'esta nova região começam a +sentir-se as influencias de causas geraes, como são as da latitude. A zona +anterior estanceia entre os parallelos de 41<small class="SMALL">°</small> e +42<small class="SMALL">°</small>; as Beiras descem até 39<small +class="SMALL">°</small> 30'. Portugal, inscripto entre 37<small +class="SMALL">°</small> e 42<small class="SMALL">°</small>, e lançado como uma +estreita facha norte-sul, tem na latitude das regiões uma causa geral a +concorrer sempre com as causas particulares, quaes são a altitude, a exposição +e a constituição geognostica das montanhas, no sentido de determinar os +caracteres das suas differentes provincias.<span class="pn"><a +name="pag_38">{pg. 38}</a></span></p> + +<p>N'esta de que agora nos occupamos, levanta-se ao centro a serra da Estrella, +a cujo pendor maritimo se chamou Beira-alta, dando-se aos declives +transmontanos oppostos, reunidos á Guardunha, o nome de Beira-baixa. Tres zonas +compõem a região das duas provincias: o litoral formado pelos estuarios do +Vouga e do Mondego, as serranias occidentaes ou maritimas, e as orientaes ou +transmontanas.</p> + +<p>A serra da Estrella é a mais elevada das cordilheiras portuguezas; é o +prolongamento da espinha dorsal da Peninsula; é a divisoria das duas metades de +Portugal, tão diversas de phisionomia e temperamento; é finalmente como que o +coração do paiz—e acaso nas suas quebradas e declives, pelos seus valles e +encostas, demora ainda o genuino representante do lusitano antigo. Se ha um +typo propriamente portuguez: se atravez dos acasos da historia permaneceu puro +algum exemplar de uma raça ante-historica onde possamos filiar-nos, é ahi que o +havemos de procurar, e não entre os gallegos ao norte do Douro, nem entre os +turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas com o +sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais variadas +nações.</p> + +<p>O pastor quasi-barbaro d'essas cumiadas da serra a topetar com as nuvens +<small class="SMALL">(1:800 a 2:000m. de altit.)</small>, abordoado ao seu +cajado, vestido de pelles, seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o +descendente dos companheiros de Viriato. Por essas eminencias, tapetadas de +relva no estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem +a subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê +gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro,<span +class="pn"><a name="pag_39">{pg. 39}</a></span> rasteiro e roído pelo gado, +circumda os altos nús; logo apparecem os piornos, as urzes brancas, os +carvalhos; depois, já a meia altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, e +os enxames de aldeias; afinal, na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de +esmeraldas engastadas em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espalhar-se no +labyrintho dos canaes.</p> + +<p>A serra da Estrella, reforçada ao norte pelo contraforte de Monte-muro, +fecha, com o Marão e o Gerez, uma muralha natural, onde os ventos do mar +estacam. Apenas cortada pelos valles do Douro e do Tua—duas fendas—essa +barreira, cujos picos sobem até 2:000m., encerra e protege o Portugal do norte, +sendo a principal causa das chuvas abundantes e do clima creador do litoral de +além-Mondego.</p> + +<p>O beirão, habitante da encosta occidental onde o ar é mais humido do que em +Traz-os-Montes <small class="SMALL">(65 a 100%)</small>, as chuvas mais +abundantes <small class="SMALL">(700 a 1:200 millim.) </small>e a temperatura +identica: onde o castanheiro colossal, o cedro, o carvalho e o pinheiro bravo +põem na paizagem todos os tons e essa grandeza propria de arvores que vivem +seculos: o beirão é menos vivo, mas mais robusto. Quem divagou por essas terras +admirou decerto a structura herculea dos seus homens, cuja face, não luzindo +com os brilhantes reflexos de vida interior, accusa todavia um pleno +desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anachronicos +representantes de uma independencia de outras edades,<a name="tex2html27" +href="#foot1161"><sup>[27]</sup></a> a Beira é o viveiro de musculosos +trabalhadores, que vão todos os annos, pelo estio, lavrar as glebas do sul do +Tejo, levemente vestidos com as bragas curtas de<span class="pn"><a +name="pag_40">{pg. 40}</a></span> linho, descalços, com a camisola de lan +agasalhando o tronco, o barrete phrigio na cabeça, a manta e a enxada ao +hombro.</p> + +<p>Descendo ao litoral, o beirão é amphibio: pescador e lavrador. A lavoura +nasce do mar: os carros são barcos, adubos o <em>molisso</em> de algas e +mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar +insinua-se pelos canaes retalhando a planicie, em cujo centro, como uma +arteria, corre placidamente o Vouga. A tres leguas da costa vê-se fundeado um +barco: as mulheres cozem as redes, ao lado, sobre a terra humida e negra, que +os bois lavram, ou o cavador abre á enxada. O calor <small class="SMALL">(15 a +16)</small>, a humidade permanente <small class="SMALL">(65 a 80%)</small>, +fazem germinar breve as sementes, multiplicam as colheitas, e as febres. Essa +paizagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche +de vivo prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das +montanhas, attrahe-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e veneno. +Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens.</p> + +<p>A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrella e dos +cerros subalternos da Guardunha dá á provincia da Beira-baixa um outro aspecto: +ha maior seccura no ar, e as chuvas são menos abundantes: os olivaes medram +melhor, e os hahitantes juntam á vida agricola a industrial, tecendo as lans +dos rebanhos da serra com a força das torrentes que se despenham nas quebradas +do valle do Zezere.</p> + +<p>Já similhante por muitos lados ao alto Alemtejo, a Beira-baixa é a transição +da metade norte para a metade sul do paiz.<span class="pn"><a +name="pag_41">{pg. 41}</a></span></p> + +<p>Caminhemos de oriente para occidente. O Alto-Alemtejo tem o clima de +Traz-os-Montes; a temperatura média é mais elevada <small class="SMALL">(16 a +17.)</small>, porque a menor altura das montanhas dá frios menos intensos no +inverno; as chuvas estivaes são menores tambem <small class="SMALL">(30 a 50 +mill.)</small>. Fronteira aberta da Hespanha, a raia apenas convencionalmente o +divide da Estremadura castelhana. As mesmas planicies onduladas, as mesmas +culturas cerealiferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas +vinhas, os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e do outro da +fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, porte +nobre e seguro, bizarro, folgasão, hospitaleiro e communicativo, o alemtejano +exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre que vive. Não é +decerto um grego de Athenas, mas é um grego da Beocia. Os seus campos são um +granel, os seus montados um viveiro. Quando nas longas e alinhadas estradas, +entre lençoes de mattas de azinho escuro, sob o calor de um sol dardejante, +divisamos ao longe uma pequena nuvem de poeira, que a luz illumina, e ouvimos o +tilintar alegre das campainhas e guizos nas colleiras dos machos—é o cazeiro, +que a trote largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus +calções de briche preto, vae á feira de Villa-Viçosa em maio, ou á de Evora em +junho, tratar dos negocios da lavoura. A distancia, vem o arreeiro no seu carro +toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de vinho: logo o pastor +com o guarda-mato de pelle de cabra, o cajado ao hombro, conduzindo as ovelhas, +a vara de porcos, gordos como texugos, ou a boiada loura de longas hastes. O +sol ardente dá tom a todas as côres, vida a todos os movimentos: suffoca-se, a +poeira céga, e as bagas<span class="pn"><a name="pag_42">{pg. 42}</a></span> de +suor camarinham na testa. O alemtejano diz pouco, e raro canta; não é +misanthropia, é indifferença. O idyllio não póde seduzir a quem vive em ampla +communhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em fogo. Apenas, +de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas, fazendo a vigilia aos +seus santos favoritos, não para esquecer um trabalho que lhe não dóe, mas para +dar largas aos seus amores de um momento.</p> + +<p>Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto á +navegação, Guadiana em fóra até ao Algarve, terão sentido ao chegar á foz a +impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim: de quem deixa uma gruta +escura por uma planicie luminosa. Breve é a extensão do Algarve, desde +Villa-Real até Lagos, abrigado pela ponta do cabo de S. Vicente; mas esse +trajecto sombrio do Guadiana divide duas regiões caracteristicamente +accentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrario do alemtejano, tudo o +interessa, de tudo fala, agita-se em permanencia, com uma vivacidade quasi +infantil. No Algarve não ha o silencio e a impassibilidade: ha o movimento +constante, o falar, o cantar de uma população como a dos gregos das ilhas, ora +embarcados nos seus navios costeiros, ora occupados nos seus campos, que são +jardins. Se a planicie e os longos horizontes das montanhas dão ao espirito a +placidez solemne, tambem o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado +como um eirado, está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente, +meio-tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o estio, e +no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o algarvio desconhece a +aspereza da vida: nem os frios<span class="pn"><a name="pag_43">{pg. 43}</a></span> +o obrigam á industria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada +para comer. Emquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando, contrabandeando, +crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a laranjeira, cuja seiva o sol +se encarrega de transformar todos os annos em fructos. A alfarrobeira nas +encostas da sua serra, a palma pelos vallados, pedem apenas que lhes colham os +fructos e os ramos; e o mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as +cargas, para as trocar por dinheiro.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortiferas baixas do +Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos n'essa região desolada; porque agora, +regressando pela costa acima, o litoral do Alemtejo e a parte occidental da +Estremadura transtagana partilham com ella os caracteres tristonhos e doentios. +Entramos na região dos terrenos terciarios: as aguas estagnam e apodrecem nas +baixas; as populações definham. Ou torradas pelo arido suão, que os areaes +ardentes não podem suavisar, e sem montanhas que obriguem os vapores do mar a +condensarem-se; ou envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe +n'uma fermentação permanente, as populações amarellecidas e magras definham, +curvadas pelo trabalho mortifero das marinhas de sal, ou da cultura pantanosa +do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas baixas do sul. +Além, copiosas chuvas e uma humidade creadora; aqui o ar secco <small +class="SMALL">(500 a 700 mil. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade, 30 a +80%)</small> duro e carregado de emanações mephiticas. Além, uma temperatura +branda; aqui um calor <small class="SMALL">(med. 17°)</small> excessivo. Além, +uma população exuberante: aqui, as solidões e os<span class="pn"><a +name="pag_44">{pg. 44}</a></span> areaes nús, matizados pela traiçoeira cevadilha, +e pelo áloes orgulhoso, levantando com imperio o seu penacho côr de fogo. Além, +homens laboriosos e familias; aqui tribus esfarrapadas em choupanas, tiritando +com o frio das sezões n'uma atmosphera de lume: mulheres esqualidas, creanças +verde-negras, homens na indifferenca de desolação, ou na vertigem do crime.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Entre estas duas regiões litoraes extremas está porém a central, a +vingar-nos da miseria de uma e da opulencia da outra. Quem desce, de Canha e +Alcacer-do-Sal até Setubal na peninsula de entre Tejo e Sado, e domina, desde o +promontorio da Arrabida, a paizagem circumdante, respira afinal a longos traços +uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não ha no reino panorama nem mais +bello, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado. A nossos pés descem as +anfractuosidades da serra vestidas de espessas matas: as giestas douradas, as +bagas carmineas dos medronhos, o rosmaninho, a alfazema, misturando todos os +seus aromas inebriantes. Sobranceiros a Palmella, vemos-lhe os muros ameiados: +Setubal desenha-se no valle encastoada n'um jardim de laranjaes; no fundo +quebram-se as ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado opposto as collinas +da fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhaes extendido até +ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S. Vicente e o sul; +para leste, Evora de um lado, as campinas do Riba-Tejo do outro; para norte, +Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; além d'ella, Cintra e os montes da +Estremadura cistagana, a qual, até ao Mondego, fórma a primeira<span +class="pn"><a name="pag_45">{pg. 45}</a></span> zona extremenha, por onde vamos +entrar no exame da ultima das regiões do nosso territorio.</p> + +<p>O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do +paiz. Ahi o ar temperado pelas brisas maritimas mantém um grau de humidade, +<small class="SMALL">(60 a 85%)</small>, e as chuvas, regulares sem serem +copiosas <small class="SMALL">(700 a 800 mil. annuaes, e 20 a 30 no +estio)</small>, uma rega, que fertilisam os terrenos sem os tornar gordos, como +os do norte. Nem o calor <small class="SMALL">(15 a 16°)</small> tisna de verão +as vegetações, nem o frio do inverno as atrophia. Por tudo isto, a população +abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o habitante reune á laboriosidade de +uma vida agricola a liberdade de uma existencia mais ampla. Por tudo isto, além +dos caracteres geognosticos da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro +bravo e o manso, a vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o +centeio. Desde os campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e +Alcobaça vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e, +transpondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o +Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á idéa o typo d'essas raças da +Africa setentrional, lybios ou mouros, cujo sangue anda misturado em nossas +veias. A cavallo, de pampilho ao hombro, grossos sapatos ferrados, gorro +vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os rebanhos de touros nas +campinas humidas e vicejantes, é como um beduino do Nilo. A vasta planicie +matizada de povoações e bosques de choupos, de salgueiros e de álamos, +contornada ao longe pelas cumiadas das serras, tem o caracter das paizagens do +Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo esqueleto giganteo do Atlas<a +name="tex2html28" href="#foot1164"><sup>[28]</sup></a>.<span class="pn"><a +name="pag_46">{pg. 46}</a></span></p> + +<p>Como o beirão, tambem o ribatejano reune á vida agricola a maritima ou +fluvial: é elle quem vem nos seus barcos de <em>agua-acima</em>, até Lisboa, +trazer o seu tributo de cereaes e fructas. Pelo Tejo, o Portugal maritimo +abraça o Portugal agricola fundindo n'uma as duas phisionomias typicas da +nação. Rio acima, o Alemtejo de um lado, a Beira do outro, por esta fórma se +communicam com a população maritima do litoral. Lisboa, com Sines ao sul, +Aveiro ao norte, eis os pontos cardeaes d'essa costa Occidental, d'onde tantas +grandes aventuras, tão dilatadas viagens se emprehenderam. Capital geographica, +Lisboa é tambem a nossa capital maritima; e se as viagens e descobertas são o +coração da nossa historia particular nacional, Lisboa é tambem a nossa capital +historica. As toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a +costa do occidente; essas cantigas, monotonas como o ruido do mar, tristes como +a vida dos nautas, desferidas á noute sobre o Vouga, sobre o Mondego, sobre o +Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de alguma antiga raça, +que, demorando-se na nossa costa, pozesse em nós as vagas esperanças de um +futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a conquistar ao mar?</p> + +<p>Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos embalados +pelo incessante murmurio do mar bretão e pelo ciciar das florestas druidicas; o +carinho da natureza pelo homem, traduzido n'essas lendas piedosas em que os +animaes falam, os passaros veem fazer ninhos na mão dos santos, e a voz das +fadas se mistura com o ramalhar das arvores e o murmurar das aguas: esse +vaporoso e encantador botão da alma celtica, porventura desabrochava no +espirito nacional portuguez,<span class="pn"><a name="pag_47">{pg. 47}</a></span> +quando a conclusão das guerras da independencia assim o ordenou.</p> + +<p>D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druida, o amor ingenuo da +natureza: «Ó vergonha e grande cubiça dos homens, que por haver as desventuras +dos metaes cavam tanto a terra que lhe tiram fóra as tripas, derribam grandes +outeiros, abaixam asperas e altissimas serras no andar e olivel dos campos, e +não contentes de <em>estragarem tanto a terra</em>, rompem e furam pelo mar por +haverem uma perla—e para esculdrinhar uma obra maravilhosa da natureza são +timidos e preguiçosos!»<span class="pn"><a name="pag_48">{pg. 48}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1152" href="#tex2html25"><sup>[25]</sup></a> V. <em>Portugal + contemporaneo</em>, pass.</p> + + <p><a name="foot1155" href="#tex2html26"><sup>[26]</sup></a> V. <em>Portugal + contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 183-91.</p> + + <p><a name="foot1161" href="#tex2html27"><sup>[27]</sup></a> V. <em>Portugal + contemporaneo</em>, (2.ª ed.) <small>II</small>, pp. 51-3.</p> + + <p><a name="foot1164" href="#tex2html28"><sup>[28]</sup></a> V. <em>Elem. de + Anthropologia</em> (3.ª ed.) p. 232.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002150">V<br> +A historia nacional</a> </h3> + +<p>D'esta viagem, breve, pallida, e incorrectamente esboçada, ficaria—ousamos +crêl-o—no espirito do leitor uma impressão por isso mesmo verdadeira. Pallida +e como que indeterminada, sem fortes côres nem linhas pronunciadas, é a +phisionomia da nação, quer na paizagem, quer nos homens. Nenhum traço profundo +distingue a nossa geographia; benigno, médio ou temperado é o nosso clima, e +tambem o nosso caracter.</p> + +<p>Se alguma cousa de facto nos individualisa, é a falta de affirmação do nosso +genio. Aquellas a que poderemos chamar qualidades peculiares nossas, consistem +na facilidade com que recebemos e assimilamos as de extranhos. Navegadores—e +só por si este caracter não imprime em nós um cunho distincto dos demais povos +maritimos—a maneira por que nos aventurámos ao mar, retrata ainda a nossa +phisionomia collectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das costas +africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando +sempre, tenazes, mas jámais temerarios<a name="tex2html29" +href="#foot1165"><sup>[29]</sup></a>.</p> + +<p>Essa individualidade passiva do nosso genio traduz-se na nossa historia. +Ninguem busque n'ella<span class="pn"><a name="pag_49">{pg. 49}</a></span> +movimentos originaes e profundamente caracterisados por uma idéa nacional: +esperal-o-hia o castigo reservado a todas as chimeras. Ninguem busque tampouco +o systema de um desenvolvimento proprio e organico, obedecendo a leis +particulares, e constituindo, no seu todo, aquillo a que se chama uma +civilisação: por esse lado apparecemos indestructivelmente ligados ao corpo +peninsular; e apesar de politicamente separados, obedecemos ás leis geraes que +lhe determinam a vida historica. O conjuncto dos nossos pensamentos moraes, o +caracter dos movimentos que compõem o systema do desenvolvimento das +instituições, o das condições das classes, e até as linhas geraes da nossa vida +politica, são apenas um aspecto do systema da historia da peninsula iberica. +Por isso nós, que, em outro livro,<a name="tex2html30" +href="#foot1166"><sup>[30]</sup></a> tratamos d'este assumpto, não voltaremos +agora a occupar-nos d'elle, para não fatigarmos o leitor com repetições +inuteis. Procuraremos n'esta obra determinar o modo particular, proprio ou +nacional, com que realisámos um programma historico geral, definindo a nossa +individualidade collectiva; procuraremos tambem indicar os movimentos +politicos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e finalmente +mostrar que, sendo a ausencia de caracter nacional affirmativo, e a +malleabilidade com que recebemos e assimilamos as influencias extranhas, o que +mais pronunciadamente nos individualisa como povo, a independencia da nação não +proveiu de factos naturaes, porém sim dos actos de vontade dos seus homens. +Causas de outra ordem houve de certo que vieram dar-lhes um apoio energico, e, +não falando agora nas maritimas e coloniaes, referimo-nos ás<span class="pn"><a +name="pag_50">{pg. 50}</a></span> influencias extranhas á Hespanha, que por +momentos nos pozeram, a nós, seus filhos, n'um estado de antagonismo +transitorio com o desenvolvimento da historia peninsular. É sabido que a nossa +primeira dynastia procedia de Borgonha; nos primeiros tempos são numerosos os +fidalgos e soldados estrangeiros entre nós: e as conquistas de Lisboa, de +Alcacer, do Algarve, effectuam-se com o auxilio de exercitos e armadas +forasteiros. Mais tarde veem combater ao lado de D. João I os inglezes, com +quem já ao tempo de D. Diniz celebráramos tratados de commercio, e que, nossos +alliados no tempo do D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e +lettras. D'então data a generalisação dos nomes inglezes como Tristão, Jorge, +Duarte, que se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e +gothicos. As allianças inglezas repetem-se nos primeiros tempos da dynastia de +Aviz, até que o desenvolvimento do nosso imperio colonial nos torna soberanos. +Annexados á Hespanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da França, +quando readquirimos a independencia. Generaes francezes commandam as campanhas +da Restauração, patrocinada pela França; generaes inglezes, as guerras do +principio do seculo subsidiadas pela Inglaterra. E duas vezes, quando se tentou +chamar a nação á vida eminente da sciencia; duas vezes, quando D. João III e o +marquez de Pombal reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres +extrangeiros.</p> + +<p>De tudo o que deixamos escripto o leitor decerto comprehendeu já o systema +de preceitos a que vae obedecer o nosso estudo; e affigura-se-nos ser este o +caminho verdadeiramente scientifico de encarar a historia nacional, despindo-a +de illusões patrioticas, e de phantasias chimericas. Mal de nós,<span +class="pn"><a name="pag_51">{pg. 51}</a></span> se, amando do coração a nossa +independencia, imaginarmos que ella póde manter-se firme sobre um alicerce de +fabulas, contra a recta e indestructivel verdade da sciencia! A independencia +dos povos assenta sobre tudo na vontade collectiva: tal foi a base da nossa, +tal continuam a ser, se com a vontade tivermos o juizo correspondente. Sem +elle, o querer é apenas um capricho.</p> + +<p>Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia patria em quatro periodos +successivos. No primeiro, o da dynastia de Borgonha, não nos destacamos ainda +bem do systema dos Estados peninsulares: somos um d'elles, e a independencia +provém exclusivamente do espirito separatista da Edade-média personalisado no +ciume absolutista dos reis e barões portuguezes.—Depois de Aljubarrota, porém, +o sentimento de independencia nacional torna-se popular, desde que a revolução +do Mestre d'Aviz o faz coincidir com o interesse particular da região +portugueza. Entretanto a vida maritima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia +obedece conquistando o litoral da Africa aos marroquinos, á corrente historica +peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um movimento +particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um momento Portugal +esteve á testa da historia da Hespanha.</p> + +<p>A terceira epocha abrange, a nosso vêr, a infeliz empreza do Imperio +oriental, onde o movimento maritimo nos levou. Os elementos de vida propria, +formados na epocha anterior, produziram uma colonisação á antiga e uma +litteratura néo-latina: n'estas duas circumstancias provavamos faltar-nos uma +fibra de intima originalidade nacional. A perversão dos costumes, a vastidão +das emprezas, o limitado dos nossos meios, os erros politicos, finalmente,<span +class="pn"><a name="pag_52">{pg. 52}</a></span> condemnam-nos á perda da +independencia.—Se na quarta e final das epochas da nossa historia voltamos a +reganhal-a, a nossa vida apparece, comtudo, outra. Ao imperio oriental perdido, +vem a exploração e colonisação do Brazil substituir-se, dando um ponto de apoio +externo ao pequeno corpo europeu; e mais tarde, perdido a seu turno o Brazil, +voltamo-nos agora, a vêr se a Africa póde dar-nos os meios de custearmos as +despezas de um paiz pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os +encargos cada vez maiores do machinismo nacional. Hollanda do extremo +occidente, radicada no corpo da Hespanha, como ella o está no corpo germanico, +só n'um ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma independencia +excepcional; só á custa de recursos coloniaes poderemos talvez satisfazer as +multiplas e dispendiosas exigencias da organisação economica, scientifica e +moral, hoje inseparaveis e indispensaveis á existencia de uma nação.<a +name="tex2html31" href="#foot1167"><sup>[31]</sup></a><span class="pn"><a +name="pag_53">{pg. 53}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1165" href="#tex2html29"><sup>[29]</sup></a> V. <em>O Brazil + e as colonias portuguezas</em> (3.ª ed.) pp. 2-6.</p> + + <p><a name="foot1166" href="#tex2html30"><sup>[30]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.).</p> + + <p><a name="foot1167" href="#tex2html31"><sup>[31]</sup></a> V. <em>O Brazil + e as colon. port.</em> liv. <small>IV-V</small>, e <em>Portugal + contemporaneo</em> (2.ª ed.) liv. <small>VI</small>, 1, 3.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h2><a name="SECTION002200"><big>LIVRO SEGUNDO</big><br> +HISTORIA DA INDEPENDENCIA</a> </h2> + +<p style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">(DYNASTIA DE +BORGONHA: 1109-1385)</p> + +<p> </p> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p>«He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas razõoes, + per propria invençom achadas, mas come aiumtador em huum breve moolho, dos + ditos dalguns que nos prouguerom.»</p> + + <p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">F. + L<small>OPES</small>, <em>Chr. de D. Pedro I</em>.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002210">I<br> +A separação de Portugal</a> </h3> + +<p>O condado portucalense, creado nos ultimos annos do <small>XI</small> seculo +a favor do conde borguinhão D. Henrique, genro de Affonso VI, pouco tempo +existiu sob o regime de uma vassallagem indiscutidamente reconhecida. Era essa +a epocha em que a Hespanha tendia a constituir-se n'um systema de Estados +independentes, á medida que successivas regiões iam saíndo de sob o dominio +musulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos seus actuaes +alliados;<a name="tex2html32" href="#foot1168"><sup>[32]</sup></a> e o condado +portucalense obedecia a esta tendencia geral, no empenho que o seu conde não +mais encobriu desde a morte do sogro.</p> + +<p>É com effeito da data do obito de Affonso VI<span class="pn"><a +name="pag_54">{pg. 54}</a></span> que deve contar-se a éra da independencia de +Portugal; embora por largos annos ella seja mais uma ambição do que um facto: +embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos posteriores da +historia impediram se realisasse. Qualquer que fosse o valor dado no +<small>XI</small> seculo á expressão geographica de <em>Portucale</em>, é facto +provado por todas as memorias e documentos d'esses tempos, que para ninguem +deixava de considerar-se o territorio de entre Minho e Mondego como parte da +Galliza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta opinião; +porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievaes, na Peninsula e +fóra d'ella, jámais obedecia ás prescripções geographicas ou etimologicas. Não +se attribua pois a causas d'esta ordem, nem á consciencia de uma solidariedade +nacional, o facto da desmembração da Galliza dos fins do <small>XI</small> +seculo. A scisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem +politica.</p> + +<p>Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o +principio da vitalidade da nação portugueza, durante estas primeiras e ainda +indecisas epochas da sua existencia. A solidariedade nacional espontanea +existia de facto para os gallegos; e desde que a Galliza fôra dividida pela +politica em duas, áquem e além Minho, restava saber qual d'essas metades +tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de independencia, commum +a todos os membros ainda então disconnexos do corpo peninsular.</p> + +<p>Varias causas concorriam para attribuir este papel á metade portugueza da +Galliza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde +portuguez. Circumstancias d'esta ordem eram decisivas n'uma epocha em que a +anarchia<span class="pn"><a name="pag_55">{pg. 55}</a></span> systematica da +constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos immediatos +d'ella da perspicacia ou da bravura dos seus chefes. Nada ha de commum entre a +vida d'estes tempos e a dos posteriores: e n'um certo sentido póde até dizer-se +que os factos de ordem politica são independentes dos de ordem social, porque a +sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por elle apenas) +obedece ás consequencias do desordenado capricho dos actos e caracteres dos +chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem.</p> + +<p>Nos primeiros tres seculos, isto é, na primeira epocha da historia +portuguesa, a independencia é um facto originado no merecimento pessoal dos +chefes militares dos barões de áquem Minho. Nacionalidade propriamente dita, +não a ha; ou pelo menos não nol-a revelam os monumentos historicos, unanimes, +tambem, em revelar uma ambição collectiva ou social que se estende a toda a +Galliza. Ao merecimento pessoal reune-se, nos primeiros monarchas portuguezes, +a circumstancia de serem os interpretes d'este sentimento. Por isso a tendencia +permanente e o principio claramente definido da politica portugueza, nos +primeiros seculos, é unificar a Galliza, constituindo a noroeste da Peninsula +um Estado tão homogeneo, como o Aragão ou a Navarra a nordeste.</p> + +<p>N'este proposito se filiam todas as guerras civis—se este nome convém ainda +aos conflictos entre Portugal e Leão—e as repetidas allianças dos barões +gallegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis +portuguezes transpõem armados as aguas d'esse rio, o se apossam por varias +vezes dos territorios da Galliza leoneza, são provas evidentes da opinião +exposta.<span class="pn"><a name="pag_56">{pg. 56}</a></span></p> + +<p>Não quiz a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento +politico, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galliza, para usarmos de +expressões modernas; antes ordenou que os limites convencionaes do condado +portucalense apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação, +cujo caracter, ulteriormente definida, proveiu principalmente da phisionomia +geographica da região; de uma nação, repetimos, que veiu a perder a tradição +d'essa primitiva origem, desde que o genio das populações de entre Mondego e +Tejo sobrepujou o das do norte, na direcção e impulso dados á vida collectiva +portuguesa.</p> + +<p>Se n'esta primeira epocha da nossa historia o pensamento occulto que dirige +com maior ou menor consciencia a politica, é incontestavelmente o da hegemonia +de Portugal na Galliza, seria absurdo suppôr que, ao lado d'este principio, +decadente desde certa epocha, se não fossem tambem manifestando de um modo +correlativo, e cada vez mais pronunciado, os symptomas da deslocação do centro +vital da nação.</p> + +<p>A circumstancia que mais decisivamente determina este caracter da nossa +historia primitiva é a conquista dos territorios sarracenos de áquem Mondego, +levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxilios do suzerano de Leão. É +este movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os +gallegos leonezes e os portugueses, vae gradualmente addicionando a estes +ultimos os <em>Lusitanos</em> (seja-nos licito dizer assim, para mais +claramente definir o nosso pensamento) até ao ponto de os ultimos predominarem +na phisionomia posterior da nação, transferindo de Guimarães e de Coimbra, para +Lisboa, a capital do reino: fazendo substituir á vida rural, primeiro quasi +exclusiva,<span class="pn"><a name="pag_57">{pg. 57}</a></span> a vida commercial e +maritima depois predominante e quasi absoluta.</p> + +<p>A primeira epocha da historia portugueza offerece pois á observação do +critico dois movimentos<a name="tex2html33" +href="#foot1169"><sup>[33]</sup></a>, oppostos n'um sentido, concordes em +outro, que é o da affirmação positiva da independencia. Mas, se essa afirmação, +terminante nas guerras leonezas, e tambem nas sarracenas, exprime de um lado a +politica da hegemonia na Galliza, do outro exprime, de um modo todavia +inteiramente inconsciente e espontaneo, uma tendencia contraria. É a da +formação de uma nação <em>lusitana</em>, de que a Galliza portugueza desce á +condição de provincia ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano, +vem a sel-o ao sul. O entre Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da +Estrella, ladeada pelas Beiras ao norte, polo Alemtejo a sul, pela Estremadura +a poente: eis ahi o que, logo desde o <small>XIV</small> seculo, começa a +representar o corpo homogeneo da nação portugueza.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>No Portugal primitivo, a politica da hegemonia na Galliza não se fundava, +porém, sómente em uma indeterminada ambição collectiva. Era um pensamento +decisivo e fixo dos monarchas, e trazia origens tão antigas como a propria +constituição do condado portucalense.</p> + +<p>Creado por uma desmembração da Galliza, o condado cedido ao borguinhão não é +natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do principe. Como<span +class="pn"><a name="pag_58">{pg. 58}</a></span> as almas que, desorientadas pelas +extravagancias do barbaro christianismo medieval, viviam n'um estado de +aspirações nebulosamente infinitas: assim a ausencia de um criterio fixo, +intellectual ou moral, e a lei da pura força em que existiam, lançavam os +barões n'uma vida de aventuras, cujo criterio unico era a sua ambição, cujo +unico limite era o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonez +era, para o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades.</p> + +<p>Logo porém que Affonso VI morreu, deixando um vasto espolio a dividir, D. +Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a cadeia da +vassallagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da gratidão para com um +sogro que tanto favorecera o conde, é d'esta éra que, a nosso vêr, data a +independencia de Portugal: e não da éra, de resto indecisa e impossivel de +determinar, em que Affonso Henriques tomou para si o titulo de rei. É dar uma +demasiada importancia ao facto exterior e secundario do titulo, o fazer d'elle +o symbolo da independencia da nação. Apesar de rei, D. Affonso Henriques +prestou vassallagem: e a sua monarchia não é, de facto, mais nem menos +independente, como monarchia, do que o condado de D. Henrique, ou o infantado +de D. Thereza. A força e não a definição de um dominio, só effectivo quando se +estriba nas armas, eis ahi o que exclusivamente caracterisa os movimentos dos +seculos <small>XI</small> e <small>XII</small>.</p> + +<p>Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o +sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao dominio sobre os territorios +herdados ou conquistados, levara-a Affonso VI comsigo para o tumulo; e entre os +dois herdeiros rivaes, D. Urraca e o rei de Aragão, o conde portugalense tinha +um logar bem preparado para<span class="pn"><a name="pag_59">{pg. 59}</a></span> +exercer a sua astuciosa influencia, e para impôr condições e preço a uma +alliança que ambos egualmente ambicionavam.</p> + +<p>Passemos longe d'essas chronicas de perfidias, de violencias, de adulterios +e barbaridades que constituem a historia da herança de Affonso VI. Como os +generaes de Alexandre, os principes da Peninsula retalham o manto do imperador: +e a Edade-média, tão phantasiosamente pintada com traços de nobreza e +galhardia, não é de facto menos corrupta e asquerosa do que a edade dos +satrapas do Oriente. A ferocidade é mais violenta, a luxuria menos requintada, +a perfidia mais ingenua, porque os homens são verdadeiramente barbaros, e não +gregos barbarisados<a name="tex2html34" +href="#foot1170"><sup>[34]</sup></a>.</p> + +<p>Do pacto de alliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o engrandecimento +do condado, para o norte na Galliza e para leste ao longo da bacia do Douro, +abrangendo Tuy, Vigo, Santiago, por um lado, Zamora, Salamanca, Toro e até +Valladolid pelo outro. A divisão e demarcação do novo Estado chegou a fazer-se +com a possivel solemnidade, e com a concorrencia de barões leonezes e +castelhanos. Era a definição de um Portugal que a historia não consentiu se +mantivesse.</p> + +<p>N'este convenio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as +pretenções dos soberanos portuguezes á posse da Galliza, e d'aquella parte da +Castella-velha geographicamente denominada Terra-de-Campos: territorios que o +conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da herança de Affonso VI. +Tres annos apenas gosou o conde a posse d'esses seus dilatados dominios. +Morrendo, a mesma historia de ignominias, adulterios e barbaridades<span +class="pn"><a name="pag_60">{pg. 60}</a></span> ia assignalar o governo de sua +viuva herdeira, como tinha assinalado o da viuva do conde Raymundo. Eram irmãs +tambem, no caracter e nos appetites sensuaes, as duas filhas do D. Affonso +VI.</p> + +<p>Morrendo, o velho conde portuguez, ao sitiar Astorga, chamou para junto de +si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições: «Filho, toma esforço no meu +coração! Toda a terra que eu deixo, que é d'Astorga até Leão e até Coimbra, não +percas d'ella cousa nenhuma, que eu a tomei com muito trabalho. Filho, toma +esforço no meu coração! e sê similhante a mim, e sê companheiro dos fidalgos e +dá-lhes todos os seus direitos, aos concelhos. Filho, toma esforço no meu +coração!»</p> + +<p>Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituida nas +suas duas faces parallelas e correlativas: a nobreza, os concelhos. «E depois +que houve castigado o filho d'estas cousas e outras muitas que aqui não +dizemos, morreu.»</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A viuva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde gallego Fernando +Peres, deu com os seus escandalos pretexto para uma revolta, que poz em risco a +conservação dos vastos dominios herdados de seu marido. Assim tambem succedera +a D. Urraca, perdida de amores pelo conde de Trava.</p> + +<p>Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente dissolutos +da Edade-média a mancebia não era caso que offendesse o pudor particular nem +publico: os amantes das princesas offendiam, porém, o ciume dos seus collegas +em fidalguia;<span class="pn"><a name="pag_61">{pg. 61}</a></span> e o poder +effectivo de que um d'elles dispunha, á sombra do amor que o preferira, enchia +de inveja e odio os companheiros.</p> + +<p>As memorias do tempo retratam-nos D. Thereza como uma mulher sagaz, viva e +bella. A astucia combinava-se no seu espirito com um amor que a levava a +<em>comprometter-se</em>, como diriamos na nossa linguagem moderna. Uma vez, na +cathedral de Vizeu, apresentou-se com o amante, no meio da egreja apinhada de +povo, e em frente do prelado que prégava. A authoridade dos bispos corria então +parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de Vizeu não duvidou dizer á +rainha, em voz alta, do pulpito ou dos degraus do altar, que abandonasse o +amante ou se casasse: era um escandalo aquella união, uma vergonha proceder de +tal modo. A condessa, vermelha de colera e confusão, fugiu rapidamente da +egreja seguida pelo amante.</p> + +<p>Porque não succederia ao escandalo a vingança, para não quebrar a constante +alliança da impudicicia e da crueldade, dominantes na Edade-média? Porque +naturalmente as invectivas do bispo traduziam a força do partido dos invejosos +e rebeldes, que já faziam do moço filho de D. Henrique um pendão de revolta +contra a viuva apaixonada. Nem por tão pouco se affligiria a consciencia do +bispo, pois o clero demasiado ouvia tambem os conselhos da carne, e os amores +sacrilegos eram tão frequentes como os amores livres ou adulterinos.</p> + +<p>A princeza não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais tarde a +vingança. Beijos lascivos, perfidias indignas e barbaridades ferinas, eis os +elementos que constituiam a mulher da Meia-Edade. Os dotes femininos eram +naturalmente pervertidos por um ambiente de brutalidade<span class="pn"><a +name="pag_62">{pg. 62}</a></span> anarchica nos sentimentos e nas acções; e, quando +a mulher dispunha da aucthoridade e da força, ou como a Fredegonda dos +Merowigues cevava em sangue a sua féra natureza, ou satisfazia n'uma +impudicicia desesperada as necessidades sensuaes do seu temperamento. Nem a +crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza que +n'elles dá o predominio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos nas +mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse subalternisada á ambição +e aos calculos politicos, ou á bravura e ás façanhas guerreiras.</p> + +<p>Não se imagine, porém, a mulher da Edade-média um ser apenas formado de +crueldade e amor; menos se supponha D. Thereza uma similhante creatura. A +condessa, infanta ou rainha de Portugal—porque de todos estes titulos +usou—era tambem sagaz e astuta, qualidades que o filho veiu a herdar com o +sangue. Não tinha o animo varonil de uma amazona, mas tinha a perspicacia e o +juizo proprios dos principes d'esses tempos. Sabia moderar a colera e engulir +affrontas como a de Vizeu, quando não podia vingar-se d'ellas. O amor traduzia +apenas uma exigencia dos sentidos, deixando livre e independente a acção da +intelligencia. No meio das agitadas circumstancias do seu breve governo, não +deixou abandonadas as conveniencias proprias, como dona e senhora do Estado +portuguez.</p> + +<p>Muitas vezes se lêem descripções de uma vida sentimental e heroica, em que +as mulheres andam loucas de paixões poeticas, e os homens, typos de nobreza e +audacia, são victimas dos conflictos do amor e da honra. Não ha nada mais +differente da verdadeira, do que essa Edade-média<span class="pn"><a +name="pag_63">{pg. 63}</a></span> das operas. A carnalidade desenfreada, o cynismo +e a perfidia, uma frieza sempre calculadora, uma ambição feroz, uma avareza +sordida, uma corrupção de todas as fontes da vida moral: eis ahi o que de facto +constitue a vida aristocratica da Edade-média. Onde está a causa de tamanhas +desordens? Está na coexistencia e no conjuncto de condições barbaras e de +tradições cultas. D'onde provém a illusão com que muitos suppozeram bellezas +espontaneas nos caracteres, e nobres dedicações nos actos, creando com a +phantasia um falso quadro de encantos? Da ingenuidade dos typos barbaros.</p> + +<p>Ha, com effeito, na natureza espontanea o quer que é de seductoramente +bello, que nos chama para uma região de deleites inconscientes: assim todas as +descripções das sociedades primitivas produzem em nós uma impressão +vivificante, e desde logo somos levados a engrandecer e nobilitar os homens +ainda não corrompidos pelas aberrações da civllisação. É mistér porém observar +que taes homens primitivos não são os do <small>XI</small> seculo; que na +Edade-média existem e vivem, principalmente por via da Egreja, todas as +tradições da cultura antiga; e que a conjuncção da barbarie e do requinte lança +nos caracteres uma semente de perversão, prompta a rebentar em actos +monstruosos, tão corrompidos no principio, como barbaros na fórma. É popular o +sentimento de tédio e nojo para com o imperio de Byzancio; pois as causas +originarias d'essa repugnancia são tambem communs ás sociedades néo-latinas, ou +néo-godas da Hespanha.<a name="tex2html35" href="#foot1171"><sup>[35]</sup></a> +Só variam as proporções: os elementos combinados são os mesmos. No Oriente<span +class="pn"><a name="pag_64">{pg. 64}</a></span> a cultura é maior, os costumes mais +requintados: aqui é maior a rudeza, e a feição barbara predomina. Por isso os +vicios procuravam, além, esconder-se sob o manto das convenções; e aqui se +expandem ingenua e francamente, á luz de uma ignorancia quasi primitiva.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Assim que D. Urraca morreu. Affonso VII, depois de reconquistadas ao visinho +aragonez as cidades de Castella, olhou para oeste, afim de reconstituir de novo +a monarchia leoneza, fazendo regressar ao seu dominio os territorios de Campos +e da Galliza. A invasão e a guerra duraram apenas uma campanha; e a amorosa +Thereza curvou-se ao imperio das condições, reconheceu o facto da conquista, e +confessou com humildade a vassallagem ao sobrinho leonez.</p> + +<p>Portugal retrahia-se aos primeiros limites—do Minho ao Mondego—do condado +creado por Affonso VI; e os calculos do conde borguinhão frustravam-se, depois +de menos de vinte annos de indeciso dominio.</p> + +<p>Esse infortunio da <em>regina</em> de Portugal acabou de decidir os +invejosos do conde gallego, seu amante. As tendencias de sublevação, até ahi +sopitadas ou mal definidas, tomaram corpo e unidade; e a revolta declarada dos +barões achou nos desastres de 1127 motivo sufficiente para se erguer em campo +aberto.</p> + +<p>Capitaneava a revolta o infante portuguez. Não é esta a unica occasião em +que vemos erguerem-se em armas os filhos contra os paes, os irmãos contra os +irmãos, como prova de que, se os sentimentos andavam pervertidos pelos +instinctos<span class="pn"><a name="pag_65">{pg. 65}</a></span> brutaes, ou +vinculos de familia eram apenas laços tenues que se rompiam ao impulso de +qualquer exigencia da colera ou da ambição. Nem sentimentos, nem instituições +fixas: uma anarchia total no individuo e na sociedade, uma desordem acabada na +moral e no direito, eis ahi as bases historicas da Edade-média, cujo deus é a +força.</p> + +<p>D. Affonso Henriques, o primeiro rei portuguez, ou capitaneava ou era o +pendão apenas—hypothese que a sua curta edade justifica—da revolta que tinha +por chefes o arcebispo de Braga D. Paio, Sueiro Mendes o <em>grosso</em>, +Ermigio Moniz, Sancho Nunes, genro da <em>regina</em> Thereza, e Garcia Soares. +Aos pactos de Braga succedeu o encontro de Guimarães. A rainha, abraçada ao seu +amante, vinha seguida por barões fieis de áquem, e pelos barões de além-Minho, +que se tinham submettido a Affonso VII<a name="tex2html36" +href="#foot1172"><sup>[36]</sup></a>. A batalha decidiu-se pelo filho, e a +rainha fugiu a esconder no condado do amante o desespero da derrota. De +protectora, os acasos da guerra faziam-na agora protegida; e a historia deve +ainda ao conde gallego a justiça de mencionar que a não abandonou, quando a viu +despojada do poder e do titulo. Os prazeres da paixão acaso suavisariam á +formosa filha do grande Affonso a infelicidade das armas, e porventura tambem o +desespero maternal, se é que os vinculos de sangue tinham para a mãe um +merecimento superior ao que tinham para o filho.</p> + +<p>No seio da barberie corrupta em que se revolvia, a Edade-média tinha, porém, +não só o instincto dos deveres, innato nos homens, como o medo dos castigos +divinos prégados por uma religião que até para o proprio clero baixára ás +condições de<span class="pn"><a name="pag_66">{pg. 66}</a></span> um quasi +fetichismo. As lendas contam que, vencedor, o filho encarcerára a mãe, e põem +na bocca de D. Thereza este anathema terrivel: «Affonso Henriques, meu filho, +prendeste-me e metteste-me em ferros e exherdaste-me da minha terra que me +deixou meu padre, e quitaste-me de meu marido: rogo a Deus sejas assi como eu +sou, e porque metteste ferros nos meus pés, quebradas sejam as tuas pernas com +ferros. Mande Deus que isto assim seja!» E o anathema cumpriu-se em Badajoz, +annos depois, porque Deus vingador não perdoava os crimes frequentes dos filhos +contra os paes. Assim pensavam esses homens simples.</p> + +<p>Á batalha de Guimarães ligava-se, porém, um alcance maior do que o de uma +simples questão de familia: era a ruptura de solidariedade entre as duas +metades da Galliza, e a victoria da portugueza sobre a leoneza. Era o primeiro +symptoma de uma direcção nova, que se ia imprimindo na vida historica nacional. +Essa ruptura da solidariedade, e a força da monarchia leoneza sob Affonso VII, +serão dois motivos concorrentes para impedir que as tentativas do primeiro rei +portuguez tenham sobre o norte resultados efficazes.</p> + +<p>Logo depois de Guimarães, Affonso Henriques, preferindo o papel de invasor +ao de atacado, procura reivindicar as fronteiras perdidas em 1127 por D. +Thereza. Duas vezes invade a Galliza transminhota: duas vezes é forçado a +recuar, em 1130 e em 1132; mas depois de Guimarães, depois da lide de +Val-de-Vez em que os portuguezes venceram, já a independencia de facto estava +conquistada. Sellados os preliminares de paz, Affonso Henriques occupou-se em +<em>acalmar</em> as terras do seu senhorio afim que nunca «lhe acontecesse +outro tal desavisamento,» e conquistou «todallas fortalezas<span class="pn"><a +name="pag_67">{pg. 67}</a></span> de portugal assy como se fossem de mouros.»</p> + +<p>Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira +porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as condições +necessarias para consolidar uma independencia até ahi precaria. Era audaz, +temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem tão commum no tempo, como a +muitos acaso pareça. Fraco general, ao que se vê, porque as batalhas feridas +com as tropas leonezas perdeu-as sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando +um troço de soldados, caía de improviso sobre um logar, e a furia irresistivel +do ataque deu-lhe a maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das emprezas +o assustava, nem as distancias o impediam de acudir a um tempo, do extremo +norte, quasi ao extremo sul no paiz. A estes dotes militares reunia outros não +menos valiosos, na precaria situação em que se apossára do reino. Era secco, +astuto, friamente ambicioso, sem chimeras, nem illusões. Era um espirito agudo +e pratico, e isso fazia boa parte da sua força. Mal dos politicos ao mesmo +tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais leve brisa do cannavial, +assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia, logo que a sorte lhe era +adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á facilidade astuta com que se +humilhava, respondia logo a teima perfida com que se rebellava. Isto fazia-o +indomavel. Tinha o quer que é de fugitivo, na sua politica e no modo porque +fazia a guerra. Ubiquo militarmente, era nos negocios um proteu. Os seus +amigos, leonezes, sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e +humilde quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava +todas as durezas; para logo mentir<span class="pn"><a +name="pag_68">{pg. 68}</a></span> a todas as promessas, rasgar todos os tratados, +com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural, que chegavam a espantar a +propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem sentimentos de familia, nem +odios pessoaes, nem vinganças estupendas: nenhuma chimera, nenhuma grande +ambição, nenhum sentimento poetico, enchiam a sua cabeça, estreita, e +inteiramente occupada pela idéa fixa de consolidar a sua independencia. O +predominio absoluto de uma idéa pratica, servida por uma intelligencia lucida, +por um caracter sem grandeza, e por uma valentia provada, tornavam-no +invencivel, ainda mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o similhante a uma +lamina de aço, um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida +quando livre, e impossivel de manter curvada desde que se acha solta. O seu +pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rigeza do bronze nem o peso do +chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu refoio: assaltado, +investia, despedaçando tudo com as fortes prezas. Perseguido, fugia. Não tinha +a nobreza do leão, nem a astucia ferina do tigre: possuia apenas a tenacidade +brava e bronca do javali. Um fraco apenas lhe notam, embora os actos da sua +vida não denunciem que esse defeito o prejudicasse muito: gostava de ser +adulado.</p> + +<p>Affonso Henriques foi quem verdadeiramente consummou a separação de +Portugal, não pelos meritos proprios apenas, mas porque a direcção politica do +reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos factos no sentido de definir +de um modo positivo a independencia da nação.</p> + +<p>Uma parte dos barões da Galliza leoneza, sublevados contra o suzerano, +acolheu-se em 1137 sob a protecção de Affonso Henriques, prestando-lhe<span +class="pn"><a name="pag_69">{pg. 69}</a></span> vassallagem, e, assim, de novo se +levantou a questão das fronteiras do norte de Portugal. Affonso VII não pudera, +nos annos anteriores, descer a rebater as invasões do turbulento visinho, +occupado como estava a debellar o navarro; agora, porém, tinha já os movimentos +livres, e apressou-se a submetter a Galliza. Por seu lado Affonso Henriques era +solicitado a defender a fronteira austral, onde os sarracenos tinham vindo +n'uma álgara feliz derrocar o castello de Leiria. É por estes annos que o +destino de Portugal se debate entre a Lusitania e a Galliza, quando a +actividade do guerreiro é solicitada, ora do norte contra os leonezes, ora do +sul contra os sarracenos. Oscillante ainda e indeciso, breve assistiremos ao +definitivo pender da balança no sentido do alargamento das fronteiras +austraes.</p> + +<p>A simultaneidade do ataque leonez e sarraceno em 1137 obriga Affonso +Henriques a curvar a cabeça, assignando as pazes de Tuy, nas quaes desiste das +suas pretensões de além-Minho, confessando, ao mesmo tempo, vassallagem ao +suzerano de Leão. <em>Ut arundo fragilis ferebatur</em>: vergava como o +cannavial o principe, a este sopro da fortuna adversa! Desistia de tudo, da +ambição e até da independencia. Quem se fia, porém, na palavra do pertinaz +batalhador? Defendido o seu senhorio por norte, não se demora a persistir n'uma +guerra leal mas perigosa. Espera melhor oocasião para a desforra; porque lhe +não custa subscrever a um tratado, a que não pensa decerto submetter-se, senão +emquanto a força das cousas a isso o violentar. Não assim os fronteiros de +nordeste que, apesar das pazes de Tuy, continuam a guerra por conta propria: +tão frageis eram ainda os laços, que reuniam os vassallos ao conde soberano de +Portugal!<span class="pn"><a name="pag_70">{pg. 70}</a></span> De Tuy, o leonez, +subindo pelo valle do Lima atravez da Galliza portugueza que assolára, vae +encontrar as mesnadas dos ricos-homens sublevados nos Arcos-de-Val-de-Vez. +Resam as tradições de um torneio ou <em>bufurdio</em><a name="tex2html37" +href="#foot1173"><sup>[37]</sup></a> em que os cavalleiros inimigos batalharam +por seus exercitos, vencendo os portuguezes na estacada, onde numerosos +combatentes ficaram mortos, segundo as regras da cavallaria. Apesar de +victoriosos, porém, os portuguezes não podiam resistir a Affonso VII, tanto +mais que D. Affonso Henriques desistira de continuar uma guerra improficua.</p> + +<p>Que fazia entretanto o principe? Tratava da desforra de Leiria; e em 1139 +levava a cabo o temerario fossado de Ourique, pagando uma estocada com outra; e +preludiando esse duello de morte, entre Portugal e o Al-Gharb sarraceno, com um +golpe que foi, com a rapidez penetrante do raio, ferir o corpo musulmano quasi +junto a Chelb ou Silves, o coração da Hespanha austral. A esta aventura +temeraria, mas feliz, ia succeder em curtos annos a empreza mais seria e +importante da conquista da linha estrategica do Tejo: facto de um alcance +capital, n'esse periodo em que o futuro destino da nação fluctuava ainda +indeciso entre a Galliza e a Lusitania.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Desde que o antigo condado portucalense, batido na sua tendencia de absorver +a Galliza, conquistava a região de entre Mondego e Tejo, chegando a avançar +padrastos ameaçadores para o sul,<span class="pn"><a +name="pag_71">{pg. 71}</a></span> era evidente que um novo Estado se formava; e +esse Estado nascia dos actos proprios do conde portuguez, não de concessões ou +beneficios do suzerano. Esse Estado era pois um reino, uma vez que a esta +palavra andava ligada, de um modo mais ou menos definido, a idéa da +independencia, segundo o direito politico dos godos. Foi, portanto, quando o +plano de se apossar do sul do reino começou a occupar o espirito do guerreiro, +orgulhoso pela victoria de Ourique, isto é, em 1139 ou 1140 (a erudição não +conseguiu determinar a éra) que Affonso Henriques tomou para si o titulo de +rei. O caso não era novo, porque por vezes a mãe usára chamar-se rainha de +Portugal; dava-se, porém, agora a circumstancia de que esse titulo, embora +juridicamente usurpado, o era com tamanho fundamento, que nunca mais deixou de +ser o dos soberanos portuguezes.</p> + +<p>A razão politica da independencia, evidente hoje para a critica, não o +estava de certo para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a ambição, +e o titulo a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não tinha de certo a +consciencia de que isso importasse o primeiro passo no caminho da formação de +uma nova nação peninsular. Ferido, tirára do sarraceno uma desforra completa; +mas faltava ainda apagar a nodoa de Tuy, rasgar esses tratados que ligavam, +como vassalla, á corôa soberana de Leão, a sua corôa ainda mal assente, o seu +reino precario ainda. Uma volta da fortuna podia outra vez precipital-o, das +eminencias onde as suas ambições o erguiam, na humilde condição de conde de +Portugal.</p> + +<p>Em Val-de-Vez Affonso VII assignára os preliminares de uma paz que os +acontecimentos dos annos posteriores não tinham consentido se traduzisse<span +class="pn"><a name="pag_72">{pg. 72}</a></span> n'um tratado definitivo; e agora +não era já licito ao leonez exigir, nem ao portuguez acceitar as duras +condições de uma perfeita vassallagem.</p> + +<p>O papado exercia então na Europa uma especie de suzerania espiritual sobre +os principes christãos; porque no meio d'esses guerreiros, bravios e timidos +como selvagens, o sacerdote tinha verdadeiramente o poder de condemnar em nome +de Deus.<a name="tex2html38" href="#foot1174"><sup>[38]</sup></a> Uma +excommunhão valia muitas vezes mais do que um exercito. Assim, o cardeal Guido, +legado do papa, é quem em 1143 dicta em Zamora, onde Affonso Henriques foi +vêr-se com o imperador (d'esse titulo usava Affonso VII) as condições do +tratado de paz. O portuguez desiste ahi das suas pretenções ás fronteiras +cedidas por D. Urraca, e Affonso VII por seu turno reconhece a independencia do +novo reino e o titulo do seu soberano. Esta soberania e independencia não eram, +porém, absolutas. Na jerarchia feudal havia graus diversos de suzerania e +vassallagem correspondente; e os tratados de Zamora alteravam a natureza, mas +não quebravam de todo os laços que prendiam Portugal ao corpo da grande +monarchia peninsular. Affonso Henriques ficava sendo um rei, mas o seu reino +nem por isso deixava de fazer parte do imperio da Hespanha; nem elle proprio, +por tal fórma, deixava de ficar n'uma situação subalterna perante o imperador. +Era uma vassallagem politica, substituindo a pura vassallagem pessoal do regime +anterior. O direito feodal não se obliterára, porém, ainda ao ponto de +prescindir de uma obrigação pessoal; e por isso o soberano portuguez continuava +a ser vassallo do visinho, não<span class="pn"><a name="pag_73">{pg. 73}</a></span> +como soberano, mas como senhor de Astorga, para esse effeito doada a Affonso +Henriques.<a name="tex2html39" href="#foot1175"><sup>[39]</sup></a></p> + +<p>Estas subtilezas propriamente byzantinas, inspiradas pela politica +ecclesiastica que imprimia o seu cunho ao feodalismo, formavam um systema de +enganos reciprocos, de mentiras mais ou menos sinceras, com que se revestiam os +actos brutaes da força, e os actos perfidos da astucia.</p> + +<p>Affonso Henriques, <em>regendi imperii jam bene sciolus</em>, mestre acabado +na arte de enganar e na arte de combater, tinha já formado o seu plano, e por +isso subscrevia sem reserva a todas as exigencias do tratado. A independencia e +a soberania que elle lhe dava eram apenas pessoaes e vitalicias, e nas idéas +aristocraticas a hereditariedade era inseparavel do dominio. O seu reino era +pois um falso reino, desde que, não havendo no direito politico dos godos outra +base para a successão, além da electiva, ou Portugal seria por sua morte +absorvido no imperio hespanhol, em via de cristalisação, ou o filho de Affonso +Henriques teria de recomeçar a debater com as armas a questão vital da +independencia. Os termos do tratado decerto o não illudiam, garantindo-lhe +apenas pessoalmente a independencia e a soberania; e se da parte do leonez +houvera o intento perfido de o enganar, elle preparava uma licção ao mestre, e +tão eloquente como fôra cruel a licção que dera ao sarraceno.</p> + +<p>Entre os dous litigantes o italiano perspicaz foi provavelmente o +conselheiro de ambos. Guido, como o insecto artificioso e cheio de habilidades, +teceu a trama. Ao leonez mostraria o modo de illudir o adversario: conceder-lhe +tudo, deixando esse tenue cordão umbilical de Astorga, para no<span +class="pn"><a name="pag_74">{pg. 74}</a></span> momento opportuno fazer reverter os +territorios portuguezes ao corpo da monarchia soberana. Voltando-se depois, com +um sorriso, diria baixo ao portuguez, que o tratado não valia nada de principio +a fim, se elle quizesse seguir-lhe os conselhos. Todas as habilidades do +imperador provariam inuteis: tinha um meio seguro!—Affonso Henriques devia +ouvir com attenção tenaz as confidencias do cardeal. Havia um direito superior +ao direito feodal: era o canonico. Havia um soberano, rei dos reis: o papa. +Porque não seria Affonso Henriques vassallo do papa? Collocasse os seus reinos +sob a suzerania papal, e nenhum imperador das Hespanhas ousaria tocar-lhes. Só +assim a sua corôa ficaria segura na cabeça, d'elle e de seus descendentes. A +suzerania do papa era de resto infinitamente menos incommoda. Reduzia-se a uma +pequena somma de dinheiro. Um nada! Quatro onças de ouro por anno, nem mereciam +a pena contar-se deante da independencia de facto. Se o rei acceitasse, elle +proprio em pessoa redigiria a carta, elle que redigira o tratado; elle proprio +seria portador da missiva ao papa. Se viera a Hespanha fazer a paz, iria de +Hespanha com o coração contente, por ter conquistado mais um vassallo para a +Egreja.—E mais um censo annual para o thesouro romano, accrescentaria +mentalmente!</p> + +<p>Affonso Henriques desde logo acceitou. Pouco lhe importava o censo, porque +não tinha sequer a certeza de ser fiel ao pagamento. O cardeal illudia-se, se +suppunha que o rei tremia das excommunhões: um rei que não havia de hesitar em +rasgar as bullas pontificias, e pôr e depôr bispos, como bem lhe +approuvesse!</p> + +<p>O cardeal partiu levando a carta do rei; e emquanto este ia formando a +tenção de supprimir o<span class="pn"><a name="pag_75">{pg. 75}</a></span> +pagamento do censo, logo que lhe conviesse fazel-o, o cardeal foi pela viagem +ruminando o modo de colher as onças de ouro, sem se inimisar com o leonez. Só +annos depois Affonso VII veio a saber como o visinho e já quasi émulo illudira +as disposições do tratado de Zamora. Insistindo com o papa para que recusasse a +vassallagem, não o consegue; mas tampouco Affonso Henriques consegue aquillo +por que pagára o preço de quatro onças de ouro annuaes; pois nas piedosas +cartas que lhe escreve, como suzerano a vassallo, o papa cuidadosamente evita +chamar-lhe <em>rei</em>, e <em>reino</em> a Portugal.</p> + +<p>Em vão Affonso Henriques insta e exige. Por fim, já nos derradeiros annos do +seu reinado, e á custa de um presente de mil morabitinos e do augmento do censo +annual, Alexandre III decide-se, e sancciona-lhe o titulo, garantindo-lhe a +hereditariedade, sob condição de preito e confirmação outorgada aos seus +successores.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Portugal, que já a esse tempo tinha uma razão de ser territorial +independente da Galliza, achava agora um fundamento juridico de independencia +de Leão. A suzerania do papa collocava o novo reino ao abrigo das pretenções da +monarchia leoneza; e se Affonso Henriques não saía da condição subalterna de +vassallo, porque apenas mudára de protector ou suzerano, o facto é que na +mudança ganhava uma liberdade real, esperando o que de facto veiu a conseguir: +que a vassallagem se tornasse nominal apenas.</p> + +<p>Ainda no tempo do primeiro rei portuguez de<span class="pn"><a +name="pag_76">{pg. 76}</a></span> novo se ateia a guerra com Leão; mas basta um +exame superficial dos monumentos historicos para vêr que o caracter e as +condições d'essa nova campanha são já totalmente outros. Não é um vassallo +rebelde pugnando pela independencia: é o choque de duas monarchias que +reciprocamente se reconhecem como taes. A serie de guerras entre os diversos +estados da Peninsula—caminho por onde ella chegou a determinar as condições +definitivas das suas constituições politicas—tem na campanha de 1160 um +episodio. Affonso Henriques, já rei de facto e de direito, já senhor da linha +estrategica de Santarem, e possuindo além d'isso, como vedetas avançadas para o +sul, varias praças do Alemtejo, dispunha de forças sufficientes para pesar com +a sua espada no debate das questões politicas dos Estados peninsulares. Desde +que se decidisse a fazel-o, é natural que a velha ambição das fronteiras +dilatadas de norte e nordeste fosse a causa efficiente dos seus actos.</p> + +<p>Fernando II de Leão casára com uma filha do rei portuguez, mas nem ao genro +nem á filha Affonso Henriques cedia os seus ambiciosos propositos. Raras vezes +a politica tomou em consideração os vinculos de familia. O rei de Leão usurpára +a corôa de Castella, e contava que a esposa lhe trouxesse a alliança do +portuguez; porventura teria havido intelligencias positivas entre os dois +monarchas. Quando com uma livre audacia se rompiam as pazes mais solemnes, que +admira que se mentisse a convenios ou ajustes privados? Affonso Henriques era, +como se sabe, mestre na arte de reinar. O facto é que, logo um anno depois do +casamento da infanta, aproveita o momento em que o rei Fernando se achava a +braços com a insurreição dos castelhanos, para mandar seu filho<span +class="pn"><a name="pag_77">{pg. 77}</a></span> e herdeiro, Sancho, á batalha de +Arganal, onde foi batido (1165). Invadindo em pessoa a Galliza, o rei +apossára-se facilmente de Tuy e do districto de Toronho até ao Lerez, seguindo +d'ahi para leste (1166). Essa nova occupação portugueza da Galliza dura até ao +desastre de Badajoz (1169).</p> + +<p>Correndo então ao sul, Affonso Henriques decide-se a consolidar as suas +possessões do Alemtejo, conquistando Badajoz aos sarracenos. Este acto, porém, +era simultaneamente um episodio da guerra com Leão, porque o wali de Badajoz se +collocára sob a suzerania de Fernando II, e porque a praça ficava para fóra dos +limites de leste, marcados em Zamora ás futuras conquistas do rei de Portugal +sobre os musulmanos.</p> + +<p>A cidade caiu sobre o ataque do portuguez. Colhidos por surpreza, os +defensores encerraram-se na alcaçova, resistindo. Poz-se o cerco, mas +entretanto o rei de Leão, avisado, correu a defender o que era seu; e Affonso +Henriques foi colhido entre dois inimigos. De sitiante viu-se cercado.</p> + +<p>Afinal o temerario capitão caía em poder do adversario, afinal o caçador +colhia-o fóra do refoio. Debate-se, estrebuxa e, ainda vencido, lucta +desesperado; mas está pesado, velho e gasto. Faltam-lhe as forças para +arremetter como d'antes, com a cabeça baixa e as presas activas, contra a +matilha dos lebreus. Tropeça e cáe. É colhido. Cumpria-se o anathema: Deus +castigava o filho que prendera sua mãe! Prisioneiro, curva-se submisso, +recolhendo a colera e os dentes açulados, perante o seu nobre vencedor. Tal +nome convem de facto a Fernando II, cuja magnanimidade perdoou as perfidias e +ataques do visinho e sogro. «Restitua o que roubou, guarde o que é seu, e vá em +paz!» Cabisbaixo, com o joelho ferido, a coxear, Affonso Henriques<span +class="pn"><a name="pag_78">{pg. 78}</a></span> parte d'alli a Santarem, concluir o +que lhe resta de vida. Não tem coleras, nem fundas magoas pela afronta que +soffreu: só lamenta a virente Galliza, perdida para todo o sempre.</p> + +<p>Como o avarento, em cuja alma a paixão exclusiva absorveu todos os +sentimentos e paixões humanas, assim na alma de Affonso Henriques a monomania +da conquista, doença vulgar nos principes da Edade-média, atrophiára o +desenvolvimento de tudo o mais. Mas, se entre os consocios de uma patria irman, +se entre os herdeiros de uma historia commum, ha o amor por essa patria e a +veneração pelos antepassados, nenhum merece na alma dos portuguezes respeito +maior, do que o primeiro de todos aquelles a cujo braço esforçado se deve a +obra da constituição politica da nação. N'este sentido as manias chegam a ser +sublimes. Um salteador é, não raro, um verdadeiro heroe; a perfidia é uma +virtude, a crueldade é um titulo de gloria, porque o espirito collectivo +substitue o criterio moral e abstracto pelo criterio historico, o qual tem como +base a consagração dos factos consummados.</p> + +<p>A separação de Portugal foi um facto consummado, graças ao valente mediocre, +tenaz, brutal e perfido caracter de Affonso Henriques.<span class="pn"><a +name="pag_79">{pg. 79}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1168" href="#tex2html32"><sup>[32]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.), liv. <small>III</small>, 1.</p> + + <p><a name="foot1169" href="#tex2html33"><sup>[33]</sup></a> Resumimos á + politica o campo das nossas observações, por termos deixado na <em>Hist. da + civil. iberica</em> desenhados os traços geraes dos movimentos propriamente + sociaes. V. Livro <small>III</small>; pass.</p> + + <p><a name="foot1170" href="#tex2html34"><sup>[34]</sup></a> V. <em>Hist. da + repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 309-48.</p> + + <p><a name="foot1171" href="#tex2html35"><sup>[35]</sup></a> <em>V. Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 113 e segg.</p> + + <p><a name="foot1172" href="#tex2html36"><sup>[36]</sup></a> V. <em>Instit. + primitiv.</em>, p. 215.</p> + + <p><a name="foot1173" href="#tex2html37"><sup>[37]</sup></a> V. <em>Instit. + primitivas</em>, p. 165.</p> + + <p><a name="foot1174" href="#tex2html38"><sup>[38]</sup></a> <em>Th. da hist. + universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, <small>XXXII-III</small>.</p> + + <p><a name="foot1175" href="#tex2html39"><sup>[39]</sup></a> V. <em>Quadro + das instit. primit.</em>, pp. 267-75.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002220">II<br> +A conquista do Al-Gharb</a> </h3> + +<p>Nas suas emprezas contra Leão, Affonso Henriques, batido sempre como +guerreiro, conseguira desforrar-se dos desbaratos com a astucia. Das duas faces +que apresenta a historia da fundação da monarchia, vimos a primeira: resta-nos +vêr a segunda. Assistimos aos actos do politico; vamos assistir agora ás +fecundas emprezas do conquistador.</p> + +<p>O principe trazia para a guerra as manhas da côrte, sem prejudicar a firmeza +necessaria, a bravura, o sangue-frio e a audacia. Com este conjuncto de +elementos dava um caracter original á guerra (<em>novo genere pugnandi</em>). +Ia de noute, ás escondidas (<em>furtim</em>), como um chefe de bandidos em +assalto a algum villar, fortificado, no pendor de uma serra distante (<em>quasi +per latrocinium</em>). Assim investiu e tomou Santarem. «Assim conquistou a +maior parte dos castellos das provincias de Belatha e Al-Kassr, este inimigo de +Deus!» diz o chronista arabe. O ponto de ataque era de antemão escolhido. Por +uma noute escura e tempestuosa punha-se a caminho com um troço de homens +resolutos: dir-se-hia uma quadrilha de salteadores. Galgavam rapidamente as +distancias, e chegados ao destino, apeiavam-se, approximando-se caladamente dos +muros. Affonso Henriques encostado á escada, era o primeiro a subir com o<span +class="pn"><a name="pag_80">{pg. 80}</a></span> punhal preso entre os dentes. +Parava, escutava, com o olhar agudo, a respiração suspensa: afinal pousava +ancioso o pé entre as ameias, e apertando o punhal nas mãos, cozia-se com os +muros. Na sombra não o distinguiam. Caía como um falcão sobre a sentinella, e +apunhalava-a antes que ella podesse tugir um grito. Entretanto os companheiros +iam subindo. O bando reunia-se na esplanada, armado e resoluto, o ao grito de +«Santiago!» caía sobre a guarnição adormecida e trucidava-a. «Tal foi o modo +por que este inimigo de Deus tomou a maior parte dos castellos das provincias +de Belatha e Al-Kassr!»</p> + +<p>Havia porém ainda outra maneira de guerrear, cuja invenção não pertence a +Affonso Henriques: era o systema de álgaras, fossados ou correrias, atravez dos +extensos territorios fronteiros. De um lado e de outro, n'uma zona mais ou +menos larga, conforme o ordenavam a constituição geographica e a estrategia, +desdobravam-se as charnecas periodicamente assoladas. Aqui e além, apertadas em +cintos de muralhas, ficavam as povoações, em cuja volta, como oasis, appareciam +malhas de terrenos agricultados. Confiar ao nervo e á velocidade dos cavallos o +transpôr as passagens perigosas d'esses desertos onde as sortidas dos castellos +podiam cortar a retirada, e cair impetuosamente sobre as searas, +incendiando-as, sobre os rebanhos, roubando-os, sobre os tardivagos, +matando-os; talando os campos, cortando as arvores, incendiando as casas, e +voltando rapidamente com as prezas feitas: tal era o processo egualmente +seguido por christãos e sarracenos; reduzido já a um systema de invasões +annuaes na epocha das colheitas, e contado como principal recurso financeiro da +rude economia do tempo.<span class="pn"><a name="pag_81">{pg. 81}</a></span></p> + +<p>Se a tomada de Santarem (1147) é um typo da primeira especie, a batalha de +Ourique, ou Orik (1139), é o typo da segunda. A fortuna accendia a audacia de +Affonso Henriques, que levou o fossado por entre as fortes posições de Santarem +e Alcacer, deixando Palmella, Cintra e Lisboa na retaguarda; atravessando o +Tejo, para ir talar os campos de Chelb ou Silves, emporio sarraceno da Hespanha +lusitana. Poucas vezes, porém, um fossado era apenas uma correria e um saque. +As guarnições dos castellos passavam signal, combinavam sortidas; e o episodio +de uma batalha acompanhava quasi sempre a obra de depredação. A batalha de +Ourique, qualquer que tivesse sido a importancia numerica dos combatentes, deu +a Affonso Henriques uma victoria que o encheu de animo para entrar em campanhas +mais regulares e fecundas.</p> + +<p>Os primeiros nove annos do governo do principe tinham sido absorvidos pelas +questões leonezas, quando em 1137 uma invasão sarracena veiu destruir Leiria, +que elle erguera para defender Coimbra das subitas investidas dos inimigos. +Ourique desforrou-o do desastre, que o rei por outro lado remediava +reconstruindo o castello, então fronteiro do extremo sul dos seus Estados. Mas +logo o musulmano responde, voltando como uma onda que, alastrando o territorio +christão, vae rolando até aos altos de Trancoso, deixando pela segunda vez +derrubadas as muralhas de Leiria. Affonso Henriques consegue dominar a invasão, +que retrocede ao abrigo da linha do Tejo; e retribue logo a visita com uma +tentativa frustrada sobre Lisboa. Depois, alliado ao wali de Mertola contra o +de Santarem, vae assolar os districtos de Merida e Beja. Nos intervallos +d'estas correrias, o rei ferira<span class="pn"><a +name="pag_82">{pg. 82}</a></span> as batalhas do tratado de Zamora, e ganhára a +victoria que lhe preparou o cardeal Guido.</p> + +<p>O periodo de dez annos que está entre 1137 e 1147 offerece n'estas guerras o +aspecto de um movimento que oscilla, como um pendulo suspenso de um ponto que é +Lisboa: invasões sarracenas para o norte, portuguesas para o sul do Tejo, +instabilidade de resultado de ambas. O eixo d'este movimento era evidentemente +Lisboa e o systema das suas linhas de defeza—Cintra-Almada-Palmella-Santarem. +A conquista da linha do Tejo tornava-se a condição indeclinavel, não já do +alargamento, mas até da conservação da monarchia de Affonso Henriques.</p> + +<p>Demasiado, porém, sabia elle que os recursos militares de que dispunha, se +chegavam para os fossados annuaes, se bastavam para conquistar <em>quasi per +latrocinium</em> os castellos isolados, eram demasiado escassos para tentar +empreza tão vasta como a da conquista do systema de fortalezas que formavam o +nucleo defensivo do centro do que foi depois o reino portuguez. Na tentativa +frustrada que fizera sobre Lisboa em 1140 fôra ajudado por uma esquadra de +Cruzados. As suas esperanças estribavam-se n'um auxilio d'essa ordem: até +porque, sem forças navaes para entrar no Tejo—ainda então não havia marinha +militar—seria absurdo tentar a empreza.</p> + +<p>Entretanto, sete annos iam passados depois d'essa primeira apparição dos +Cruzados, sem que outros viessem proporcionar-lhe occasião para realisar os +seus designios. Impaciente, orgulhoso ainda com o resultado da correria de Beja +(1145), seguro do lado de Leão pelas pazes de Zamora, forte pela confirmação do +seu titulo, confiado na protecção papal—o sangue pula-lhe nas veias, e decide +tomar<span class="pn"><a name="pag_83">{pg. 83}</a></span> Santarem, (1147) <em>á +sua moda</em>, isto é, por surpreza. Pela calada da noute appareceu á raiz das +muralhas da villa. Pozeram-se escadas. Subiu um furtivamente e abafou uma +<em>vela</em> (sentinella); depois subiu outro, depois terceiro, «e depois que +todos tres foram em cima do muro, a vela que estava em cima do caramancham, +quando sentiu Mem Moniz que se ia alongando, disse-lhe: «Manahu!» e elle +respondeu-lhe em aravia e fel-o descer, e logo que foi em baixo cortou-lhe a +cabeça e deitou-o aos de fóra. E então elles poseram outra escada e subiram por +ambas o mais toste que poderam, e foram tantos que se apoderaram do muro e +britaram as portas por onde entraram elrey e os que com elle foram. E d'esta +guisa foi furtada a villa de Santarem aos mouros.» O resultado correspondeu +pois ao plano, e quem sabe se a temeridade teria arrastado o rei a proseguir do +mesmo modo contra Lisboa? Não foi, porém, necessario. Esse anno vieram os +Cruzados<a name="tex2html40" href="#foot1176"><sup>[40]</sup></a> por quem +suspirava, e com elles metteu hombros á empreza.</p> + +<p>A guerra toma desde então um caracter regular de cercos e campanhas. Os +meios correspondem aos propositos, e estes á idéa da nação que começava a +definir-se.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portugueza, até ahi +envolvida nos limbos da geração. O cerco affigura-se-nos como o concilio +internacional, uma especie de congresso guerreiro, em que a Europa baptisa o +recem-vindo á luz da historia. Creado pelos actos geradores da vontade<span +class="pn"><a name="pag_84">{pg. 84}</a></span> de um homem, abrigado pela égide da +Egreja, Portugal tem a existencia confirmada pela sancção dos exercitos +cruzados da Europa. O caracter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior +phisionomia politica, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um baptismo, +quando, em frente d'essa piscina do Tejo, onde fundeiam duzentas naus coroadas +pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se estende o cordão do exercito de +flamengos, lotharingios, allemães e inglezes.</p> + +<p>As columnas dos cavalleiros cruzados combatem ao lado das mesnadas dos +barões portuguezes, estendendo-se em meia lua, a investir o morro de Lisboa; e +com as pontas apoiadas contra o rio, formam metade do cinto que a armada, +fundeada no Tejo, encerra. Com os frankos e inglezes, colossaes de estatura, +rubros de sangue, herculeos de musculos, vêem italianos sagazes, mestres +consummados na arte das minas ou sapas. Sobre os navios e do lado da terra a +arte acorre em auxilio da força. Os inglezes montavam as suas manganellas ou +catapultas, os frankos as suas torres; e Affonso Henriques pasmava d'esses +maravilhosos instrumentos deante dos quaes a escada e o punhal do salteador +nocturno pareciam miseraveis. Acaso a comparação offendia a sua opinião, bem +fundada, de atrevido; acaso achava mais rapido e simples confiar o resultado +aos seus expedientes favoritos de condôr: o facto é que decidiu começar por um +assalto. Foi no dia 3 de agosto que pela primeira vez rebombou a trovoada dos +golpes do moganons, o stridente sibilar das settas despedidas do alto das +torres, e das pedras soltas das fundas,<a name="tex2html41" +href="#foot1177"><sup>[41]</sup></a> o clamor apocalyptico<span class="pn"><a +name="pag_85">{pg. 85}</a></span> dos combatentes, erguendo um côro de imprecações +ferozes, proferidas nas mais desvairadas linguas. Á tormenta dos sons +respondiam os relampagos do pez, do azeite, da estopa incendiada, que os muros +de Lisboa vomitavam sobre os assaltantes, ajudando o sol que, illuminando a +scena, congestionava as cabeças dos filhos da algida Germania, da Britannia ou +da Frankonia. Ás ondas de lume, ao lume do sol, veio juntar-se um novo clarão +de chammas e de grossas voltas de fumo negro que subia cravejado de scentelhas +a perder-se no ar: as torres ardiam! O assalto era repellido; a tentativa +falhára.</p> + +<p>Começou o cerco. Em poucos dias a voracidade feroz dos homens louros do +norte destruiu quanto havia em torno de Lisboa: hortas e pomares, villas, +cazaes e granjas. Dentro da cidade escasseiavam os mantimentos, e bandos de +soldados fugiam com fome: do alto dos muros, os que ficavam perseguiam-nos com +surriadas de pedras. Os gastadores minavam, atulhando a sapa com lenha cortada +nos arredores: no dia decisivo, o fogo, consumindo esses transitorios esteios, +roubaria a base ás muralhas. Os italianos construiam uma grande torre, que +ficou terminada em meiado de outubro, quando a resistencia de Lisboa tocava o +extremo. Queimaram-se os robles da sapa, assestaram-se os tiros, prepararam-se +as columnas de soldados, e deu-se o assalto, logo que se ouviu o estrondo de um +panno inteiro das muralhas que se derrocava do lado do oriente.</p> + +<p>Lisboa capitulou. Os Cruzados cevaram o amor do ouro, da prata, e das +mulheres formosas, (<em>auri et argenti et pulcherrimarum fæminarum +volupias</em>) que os levava á Syria; e Affonso Henriques tomou posse da +cidade. As fortalezas satellites de<span class="pn"><a +name="pag_86">{pg. 86}</a></span> Lisboa não podiam resistir: Cintra, Palmella, e +Almada Cairam em curto espaço nas mãos dos vencedores.</p> + +<p>A base geographico-maritima de Portugal estava ganha para não mais se +perder; e se o rei fôra o author do facto da separação, era o rei quem todos os +dias ia adiantando a obra de uma independencia positiva e formal. Lisboa não +valia menos, para tal fim, do que a protecção de Roma.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Esses dias de Zamora e de Lisboa (1143 e 47) marcaram o apogeu do reinado do +primeiro monarcha portuguez. Batido em Badajoz pelo genro leonez (1169), foi-o +tambem nas suas novas conquistas, pelo sarraceno (1161-71). Affonso Henriques +não era já o mesmo homem: a edade quebrára-lhe o vigor de outros annos; e o +perdão de Badajoz e as armadas dos Cruzados deviam ter quebrado tambem a cega +confiança que punha nos seus recursos e habilidades. Via que no coração dos +homens podia haver mais do que ambição e manha; e na arte da guerra processos +mais valiosos do que a escada e o punhal, a <em>razzia</em> e o assalto +nocturno. Taes observações, acompanhadas pela ferida do joelho que o conservava +tolhido roiam o velho capitão no seu antro de Santarem (1171).</p> + +<p>O enthusiasmo da tomada de Lisboa tinha-o impellido a proseguir, +aproveitando a commoção triste dos vencidos e o apparecimento de novas frotas +que agora, christan Lisboa, demandavam o Tejo, para refrescar, nas suas viagens +para a Palestina.</p> + +<p>Al-Kassr, ou Alcacer-do-Sal, era, para além de Lisboa, o centro estrategico +da linha de defeza do Alem-Tejo, que guardava Chelb ou Silves. Logo<span +class="pn"><a name="pag_87">{pg. 87}</a></span> depois de rendida Palmella, Affonso +Henriques, confiando demasiado nas proprias forças, investira, só e ao modo +antigo, o castello de Alcacer, mas fôra cruelmente vencido (1151). Annos +depois, vale-se do auxilio de uma frota ingleza, sem conseguir render a +desejada praça (1157), que afinal cáe perante o ataque combinado das forças +portuguezas e alliadas da Cruzada de 1158. Evora e Beja cedem tambem por essa +occasião; e dir-se-hia que Silves, desguarnecida da sua linha de fortalezas +fronteiras, ia cair rapidamente nas mãos do afortunado principe.</p> + +<p>Não era, porém, assim. Essas successivas conquistas das praças do Alemtejo +não tinham a importancia decisiva que tivera a de Lisboa. Levantadas como +pontas de rocha isoladas, no meio dos vastos campos desolados, as praças do +Alemtejo offereciam aos guerreiros abundantes prezas; e por isto os Cruzados de +tão boa vontade paravam aqui, a preludiar na Hespanha o programma feito para a +Syria. Saqueadas, incendiadas, porém, ou arrazadas, o seu valor para o reino +era por certo lado pequeno ou nullo. O rei não dispunha de forças bastantes +para guarnecer tão numerosos castellos e tão dilatadas fronteiras. Já para +conseguir manter a linha do Tejo, tivera de doar ás ordens monastico-militares +estrangeiras (Hospital, Templo, Santiago) as praças rayanas de Thomar, de +Palmella, de Leiria. Os territorios despovoados e nús não vinham augmentar-lhe +o numero de soldados, nem a riqueza. Para que isso succedesse era mister que a +paz e o tempo fomentassem o desenvolvimento natural das forças economicas. +Assim, desde que as armadas dos Cruzados, abarrotadas de prezas, largavam a +bahia do Tejo, Affonso Henriques, tornando a achar-se a sós com<span +class="pn"><a name="pag_88">{pg. 88}</a></span> os seus recursos militares, era +forçado a abandonar as conquistas avançadas do Alemtejo. Annos havia, tomára e +deixára Beja: e agora (1158), das praças conquistadas, apenas guarnecia e +conservava Alcacer.</p> + +<p>Estas campanhas do Alemtejo estão perante Silves como, antes, as da +Estremadura perante Lisboa: emquanto o sarraceno pisar o Algarve, serão +precarias todas as conquistas n'este largo trato de terreno devastado que não +poderá nutrir-se e prosperar, emquanto não estiver ao abrigo das invasões. +Porque não foi Affonso Henriques cair directamente sobre Silves, +aproveitando-se de alguma esquadra de Cruzados, em vez de consumir as suas +forças na empreza esteril das correrias, conquistas e saques das praças do +Alemtejo? Porque evidentemente lhe faltava a larga vista das aguias +dominadoras, tendo só o que é commum a todas as aves de rapina: o ataque +fulminante, e a garra cheia de força e tenacidade.</p> + +<p>Depois de saquearem Alcacer, os Cruzados tinham partido; e a noticia dos +successivos desastres dos ultimos onze annos decidira os almuhades<a +name="tex2html42" href="#foot1178"><sup>[42]</sup></a> a tratar seriamente de +pôr cobro aos progressos de Affonso Henriques. Invadem o Alemtejo; e junto de +Alcacer, seis mil portuguezes mortos, o exercito desbaratado, decidem a perda +de todo o Alemtejo (1161) pondo em perigo Lisboa. Os sarracenos chegaram a +tomar Palmella e Almada, mas julgaram prudente abandonar esses pontos +destacados na peninsula de entre o Tejo e Sado. Desde que outras emprezas +obrigaram a retirar o exercito almuhade depois de fortificar Alcacer, já +Affonso Henriques, e os seus discipulos em aventuras podiam<span class="pn"><a +name="pag_89">{pg. 89}</a></span> á vontade recomeçar as correrias e assaltos. +Effectivamente, em 1162, um troço de burguezes toma Beja por surpreza; e em +1166 um bando de salteadores, com Giraldo á frente, de escada ao hombro, punhal +nos dentes, entra uma noute em Evora, que saqueia e atulha de cadaveres. Eram +portugueses? eram sarracenos? eram de uns e d'outros; eram uma das muitas +companhias de bandidos que batalhavam por conta propria, sem noção de patria a +que pertencessem, nem de religião que seguissem. Tinham por culto apenas a +ladroagem, e adoravam o deus do estupro, do saque, da matança. Eram de todas as +nações; e falavam uma algaravia, mosarabe nos christãos, <em>most</em>'latina +nos musulmanos—uma lingua franca.</p> + +<p>Affonso Henriques não podia socegar vendo essas façanhas. Eil-o outra vez a +cavallo, Alemtejo em fóra, a correr charnecas e arremetter cidades: Moura, +Serpa, Alconchel, e, internando-se pela Estremadura hespanhola, Caceres o +Tordjala, ou Trujillo (1166). Essa era a sua paixão, o seu furor. Que importa, +se, apenas voltava costas, logo se erguia de novo a bandeira musulmana nas +muralhas que escalára á traição? Elle tambem voltaria, no verão seguinte, a +repetir a sua façanha. E assim, por falta do genio militar do conquistador, as +scenas repetiam-se, os castellos passavam successivamente de mão em mão, e +portuguezes e sarracenos apenas podiam chamar seu ao terreno que actualmente +pisavam. Se as forças proprias do portuguez lhe não consentiam outra cousa: se, +sem o auxilio dos Cruzados, não podia abalançar-se á empreza de Silves, melhor +fôra sacrificar a paixão ao interesse proprio, consolidando o dominio, do que +pôr em perigo o Portugal cistagano, por consumir de um modo esteril as forças +militares do novo reino nas<span class="pn"><a name="pag_90">{pg. 90}</a></span> +correrias transtaganas. O rudo capitão não tinha porém intelligencia para +tanto: a correria arrastava-o, a presa seduzia-o, e a guerra governava-o a +elle, em vez de ser elle quem governava a guerra. Sem plano fixo, á toa, á +aventura, internára-se até Trujillo e queria tomar Badajoz, invadindo +territorios que, apesar de sarracenos, eram vassallos do visinho monarcha de +Leão. A sua loucura teve a sorte de todas as loucuras; e já o vimos coxeando e +duplamente ferido, no joelho e nos brios, caminhar a esconder a sua vergonha em +Santarem (1169).</p> + +<p>O desastre de Badajoz devia ter soado por todo o Al-gharb, onde as correrias +e façanhas do bando de Affonso Henriques espalhavam a angustia e o terror; e o +musulmano, inimigo por patria e religião, não devia ao bulhento principe a +generosidade magnanima do genro leonez. Um novo e poderoso exercito transpõe o +Tejo, e vem cercar o ferido em Santarem (1171). Acode-lhe Fernando II que, como +verdadeiro rei, sabia calar os resentimentos pessoaes, deante de um perigo +commum para todos os principes christãos da Peninsula. Duas vezes salvo pelo +genro que o vencera; humilhado, abatido, ferido e velho, Affonso Henriques já +não é o irrequieto soldado de outros tempos. Santarem que ganhára por esforço +proprio, escalando os muros, era o seu tumulo. Ahi n'um leito gemia dores de +muitas especies: todo o Alemtejo estava perdido; e agora (1184) Jussuf, o +grande émir de Marrocos, vinha em pessoa, dirigindo o exercito, cercal-o outra +vez. Acudiria o genro outra vez a salval-o? Cinco annos havia que o exercito +musulmano passeiava triumphante pelos seus reinos. Não pudera entrar em +Abrantes, mas tinha destruido Coruche, que era para a defeza de Lisboa e da +linha<span class="pn"><a name="pag_91">{pg. 91}</a></span> do Tejo, como fôra +Leiria para Coimbra e para a linha do Mondego. Evora apenas resistiria ás +invasões, que tinham levado Alcacer e Serpa, Beja, Moura, Jerumenha e todo o +Alemtejo (1179-82). Como o javali, encerrado no covil e perdido, o guerreiro +contava as horas, e antecipadamente sentia o penetrar das lanças nas suas +carnes abatidas pela edade, e o quebrar dos seus ossos tão rijos ainda, mas mal +governados pelos tendões flacidos. Chorava; talvez se arrependesse dos seus +erros. Feliz porém mais uma vez, os acasos imprevistos concorriam para o +salvar. Á magnanimidade do genro devera o não ter ido acabar n'alguma masmorra +escondida nas montanhas das Asturias; e a esta circumstancia, verdadeiramente +excepcional, de um principe generoso, devera tambem o salvar-se do primeiro +cerco. Em vez de Fernando, que não acudiu agora, veiu em seu auxilio a sorte +que matou o émir de Marrocos, e espalhou uma peste no meio do exercito +almuhade.</p> + +<p>Levantou-se o cerco, Affonso Henriques pôde respirar ainda livre os ultimos +annos da sua já acabada vida.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>O pensamento que elle não soubera ou não pudera realisar, coube ao filho e +herdeiro pôr em pratica. O modo serio de conquistar o Alemtejo era ir com os +Cruzados, por mar, investir Silves. Logo que Sancho I herdou o reino, e desde +que appareceu no Tejo a primeira armada, decidiu-se levar a cabo a empreza. Já +então havia uma frota portugueza; e se á constituição geographica do corpo da +nação faltava a metade meridional, o coração, Lisboa, pulsava já independente e +vivo; os navios<span class="pn"><a name="pag_92">{pg. 92}</a></span> da primeira +expedição do Algarve são d'isso a prova. Abria-se agora uma segunda epocha; e, +ou filha do genio do monarcha, ou proveniente da expansão natural das forças +nacionaes, ou resultado das duas causas combinadas, o facto é que, entrados +n'uma segunda edade, respiramos um ar diverso, observamos um typo differente e +uma nova phisionomia da nação.</p> + +<p>Consolidam-se as conquistas, povoam-se e fortificam-se as villas, começa a +esboçar-se a administração, abandona-se a guerra de escada e punhal. Ha um +pensamento na politica e uma idéa nas campanhas. Sancho I é já um rei: Affonso +Henriques fôra como um bandido, á imitação de Pelayo.</p> + +<p>O districto de Chenchir ou Al-faghar—assim os arabes denominavam o nosso +moderno Algarve,—era o que é hoje ainda: um jardim estendido sobre a costa, e +apoiado contra um muro de serras que o defendem dos ventos do norte. A guerra +não conseguira mirral-o, como succedeu á costa da Berberia, fronteira. Retalho +da Africa, scindido pelo mar do Calpe, no Algarve tinham os arabes achado um +pedaço da sua patria. O clima, a flóra, não eram bem europeus; e quem, nos fins +do <small>XII</small> seculo, visitasse Silves, ou Chelb, dir-se-hia +transportado a uma cidade oriental. D'entre as varias raças que tinham vindo á +Peninsula, foram os arabes do Yemen que principalmente a povoaram. Chelb ao +sul, Hayrun (Faro) mais ao norte, eram as duas cidades principaes do Al-faghar; +mas a primeira excedia em muito a segunda. Contava cerca de trinta mil +habitantes, era opulenta em thesouros e formosa em construcções. Davam-lhe a +primazia entre as cidades da Hespanha arabe. Vestida de palacios coroados pelos +terraços de marmore, cortada de ruas<span class="pn"><a +name="pag_93">{pg. 93}</a></span> com bazares recheiados de preciosidades +orientaes, cercada de pomares viçosos e jardins, Chelb era a perola de +Chenchir, onde os prodigos da Mauritania vinham gosar com as mulheres formosas, +de puro sangue arabe, os seus ocios luxuosos. Era ao mesmo tempo uma praça +temivelmente fortificada.</p> + +<p>Quando pela primeira vez as armadas combinadas, dos portuguezes e dos +Cruzados, appareceram na costa de Al-faghar, Chelb intimidou os guerreiros +frisios e dinamarquezes, a ponto de lhes dominar a avidez com que namoravam uma +preza de tamanho quilate. Não se atreveram a atacar, limitando-se a tomar Albur +(Alvôr), e retirando com um saque abundante.</p> + +<p>Para os Cruzados, homens louros do norte que, sob a ingenuidade azul dos +olhos, escondem uma crueldade fria e pratica e um desvairado appetite dos gosos +vedados aos climas setentrionaes, a empreza de Chelb tinha o valor da riqueza a +roubar, das bellas mulheres, d'esse Oriente mysterioso e seductor, a gozar +sobre os leitos de sedas da India ou nos fôfos tapetes da Persia. Eram +voluptuosidades que antegostavam; calculando ao mesmo tempo os thesouros de +pedrarias, os marfins, os estofos preciosos, a myrrha, o incenso, os metaes +reluzentes, com que voltariam ás suas agrestes serras, ás suas costas algidas, +deslumbrar as noutes veladas á luz baça da candeia, de azeite de phoca. +Positivos e praticos ao mesmo tempo, mediam bem o impossivel da aventura, e por +isso preferiram á temeridade de atacar Chelb, a modestia de saquear Albur. +Bastava-lhes o que levavam.</p> + +<p>Não succedia outro tanto a Sancho I. A conquista do Al-faghar tinha para +elle um alcance<span class="pn"><a name="pag_94">{pg. 94}</a></span> maior. E os +portuguezes mais familiarisados com as seducções dos costumes arabes, menos +sensiveis ás tentações da carne, mais abertos aos arrebatamentos da paixão, +como todos os homens do sul, tinham um proposito mais firme e intenções +diversas.</p> + +<p>Logo depois da primeira tentativa frustrada no proposito essencial, +appareceu no Tejo uma segunda e mais poderosa armada de guerreiros do norte. +Decidiu-se então a conquista de Silves. Sancho e as tropas portuguezas iriam +por terra, atravez do Alemtejo, investir a cidade pelo norte, cortando os +soccorros de Alcacer e das demais praças transtaganas: emquanto as armadas +combinadas iriam por mar e, subindo a ria de Silves, poriam o cerco pelo sul, +apoiando-se nos navios.</p> + +<p>Silves, collocada n'uma eminencia e defendida por fortes muralhas, em cujo +recinto, no coração da cidade, se erguia a almedina ou alkassba, estava ligada +a uma torre albarran por uma couraça. A torre defendia uma vasta cisterna que +dava agua á cidade: conquistal-a seria, portanto, o preludio do cerco. +Desembarcados, os Cruzados começaram por assolar os arrabaldes, destruindo +quintas e casaes, trucidando os tardivagos, incendiando e roubando, segundo a +regra invariavelmente seguida n'estas emprezas. Quando em torno dos muros não +havia mais do que destroços, ruinas e cinzas, atacaram a torre albarran. Foi em +21 de julho de 1189, esta primeira tentativa frustrada. Em 29 chegou por terra +el-rei Sancho, cerrou-se o cerco, e prepararam-se os meios do ataque decisivo. +Os sitiados, no desespero, açulavam o furor e a cubiça dos inimigos com +insultos e crueldades. Nas ameias da torre albarran penduravam pelos pés os +prisioneiros christãos; e alli, em frente do exercito,<span class="pn"><a +name="pag_95">{pg. 95}</a></span> como exemplo e ameaça, matavam-nos ás lançadas. +Era ardente o furor, incansavel o trabalho. Estavam preparadas e promptas as +machinas de guerra: começaram os assaltos. Os allemães tinham montado um +vae-vem coberto, cujas pontas de ferro trabalhavam impunemente na derrocada dos +muros: era a <em>origa</em> dos gregos, a <em>testudo</em> de Vitruvio, o +<em>ericius</em> das guerras dos romanos, em portuguez <em>ouriço</em>—uma +catapulta couraçada contra as massas de estopa a arder em azeite que sobre ella +os defensores vasavam. Muitas torres, numerosos trons batiam os muros e +levantavam os sitiadores á altura das ameias. A albarran caíu por fim, +entulhou-se a cisterna. As fontes dos pateos ajardinados de Chelb deixaram de +correr, e a sede veiu auxiliar as machinas e as armas dos christãos. Os +musulmanos, fortificados na almedina, resistiam, comtudo.</p> + +<p>O cerco entrava desde esse momento n'uma phase nova. Os assaltos +repetiam-se, infructiferos, e a alkassba parecia intomavel. Soccorreram-se ás +artes dos mineiros de Italia; mas os arabes eram egualmente mestres na +engenharia. As galerias subterraneas cruzavam-se, encontravam-se, rompiam-se. +Fatigados de pelejar em vão, á luz de um sol abrazador, transferiram os +combates para o coração da terra. Os gastadores eram soldados, e rijas batalhas +eccoaram n'essas galerias. A lenha accumulada ardia presa do fogo; e á luz das +chammas, buscavam-se, um a um, os inimigos, ferozes como tigres, punhal ou +alfange em punho, e estrangulavam-se, despedaçavam-se, como feras. O crepitar +do fogo acompanhava as imprecações roucas, e nos olhos havia mais chammas do +que nos montes de troncos e ramos incendiados. O sangue corria dando á lama das +galerias subterraneas<span class="pn"><a name="pag_96">{pg. 96}</a></span> a côr do +barro com que em tempos mais felizes os arabes ladrilhavam os seus eirados +alegres e os seus pateos ajardinados.</p> + +<p>A furia dos combates era excitada pelos calores da sêde. Os sitiados ardiam +em febres. Viam-se nús estendidos sobre as lages das ruas, sobre os ladrilhos +das casas, para refrescar a pelle. Comiam o barro do chão. Estorciam-se, +desesperados, e morriam pelas esquinas. As ruas deixavam apodrecer os +cadaveres, e as mães engeitavam os filhos, quebrando-lhes os craneos tenros +contra as umbreiras das portas.</p> + +<p>Nos sitiantes a furia era outra. Durava já um mez o cerco, o não fôra para +tão demorada campanha que os Cruzados tinham vindo. A alkassba não caía! os +perros musulmanos não se rendiam! Entretanto elles, Cruzados, iam morrendo de +feridas, de insolações; e o despojo promettido não chegava. Não podiam perder +assim o seu tempo. Isto diziam uns; outros não queriam abandonar o trabalho +gasto, e despedir-se de uma presa meio conquistada. Sancho I, desanimado, +pensou em retirar. Então rebentaram as iras; porque a segunda opinião vencera +no animo dos Cruzados. Quasi chegaram ás mãos, os portuguezes e os homens +louros do norte. Finalmente a alkassba rendeu-se nos primeiros dias de +setembro; mas isso deu logar a novas rixas. O rei queria uma cidade, e não um +despojo. Os Cruzados queriam o contrario. Sancho offereceu pagar-lhes o valor +da presa; os Cruzados recusaram. Havia uma cousa que o rei não podia pagar com +ouro: era o delirio do saque, a orgia das matanças e dos estupros. Esses +ferozes caçadores de mouros queriam retoiçar-se pelo interior das alcovas +mysteriosas, e enterrar os braços nas arcas dos thesouros, ensopar em sangue +as<span class="pn"><a name="pag_97">{pg. 97}</a></span> almofadas macias sobre que +iam abraçar as morenas filhas do Yemen.</p> + +<p>Cevados, partiram logo. Sancho pedia-lhes que acabassem a empreza, tomando +Hayrun. Recusaram; não queriam arriscar os lucros, e estavam turgidos de goso. +Só ambicionavam tornar á patria, para contar os seus feitos, e depôr aos pés +das louras e ingenuas donzellas do norte, de suas noivas e de suas filhas, os +collares, os brincos, as manilhas de ouro arrendado, que tinham roubado nos +leitos, com a honra e a vida, ás filhas de Mafoma.</p> + +<p>Sancho I, não podendo seduzil-os, nem convencel-os, desistiu da empreza; e +deixando Silves guarnecida, e occupado o oeste do Algarve, retirou para o +norte. Afim de consolidar a conquista, tomou Beja. Mas, emquanto o velho Faro +se conservava em poder do sarraceno, não devia o rei portuguez considerar seu o +Al-faghar.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Effectivamente durou pouco o primeiro dominio portuguez no extremo sul do +reino. Quando o filho de Jussuf, Jacub, chegou a soccorrer Chelb, já a cidade +estava perdida; e elle não soube ou não pôde retomal-a. Vingou-se irrompendo +pelo reino; e, galgando o Tejo, assolou a Estremadura toda, pondo cerco a +Thomar. Tampouco soube ou pôde vencer, e retirou-se; mas para voltar no anno +seguinte. Então Silves caíu de novo em poder do sarraceno (1191) que, +victorioso, tomou Beja, e na sua <em>gaswat</em> fulminante, veiu ameaçar +Lisboa, desde os muros de Almada, conquistada.</p> + +<p>Portugal recuava outra vez aos limites do Tejo; porém Silves, embora +perdida, indicava o futuro<span class="pn"><a name="pag_98">{pg. 98}</a></span> +inevitavel d'este longo e mortifero duello. O rei occupava-se em consolidar os +seus Estados, povoando, e organisando a administração. Na impossibilidade de +levar a cabo a conquista do Al-faghar, enfraquecido militarmente o reino pelas +correrias, desilludido sobre a efficacia do auxilio dos Cruzados, abandonou com +razão o systema das álgaras e surprezas, com que, sem conseguir manter-se um +dominio estavel, se extenuavam as forças vivas da nação. O seu governo sabio +preparou as decisivas emprezas posteriores.</p> + +<p>A primeira d'essas foi a tomada de Alcacer em 1217. No tempo de Affonso II +já os portuguezes se tinham achado na batalha das Navas de Tolosa (1212), em +que os principes christãos da Peninsula, tomando uma cruel desforra do desastre +de Alarcos, deram o ultimo golpe no dominio sarraceno. Affonso II não tinha +amor pela guerra. O lado organisador e administrativo do governo de seu pae +imprimira-lhe paixões pacificas. Instigava-o ainda mais a sua avareza natural, +e a condição dura em que a fraqueza dos ultimos annos de Sancho I o collocara, +por ter doado o reino inteiro, thesouros e castellos, aos nobres e ao clero. +Affonso II não quiz tomar parte da empreza de Alcacer, porque andava occupado a +reivindicar para si o reino.</p> + +<p>Kassr-al-Fetah, Castello-da-porta ou da entrada, se dizia essa chave do +Alemtejo; e sem a posse de um tal ponto estrategico, eram vans as tentativas de +consolidação do dominio portuguez ao sul do Tejo. Castello sobre todos nocivo, +chamam-lhe as memorias coevas, <small class="SMALL">(</small><em><small +class="SMALL">Castrum super omnia castra nocivum</small></em><small +class="SMALL">, </small><small class="SMALL"><small>GUSUINI +CARMEN</small></small><small class="SMALL">)</small> porque d'ahi iam +annualmente para Marrocos cem prisioneiros christãos, arrebatados aos +territorios fronteiros até Lisboa, nas álgaras de todos os annos.<span +class="pn"><a name="pag_99">{pg. 99}</a></span></p> + +<p>Com o auxilio de uma forte esquadra de Cruzados, Alcacer ficou +definitivamente em poder dos christãos no meiado de 1217. Nove annos depois, +Sancho II, em quem renascia o espirito guerreiro dos avós, recomeçou a +conquista do Algarve, caminhando ao longo da fronteira de leste, valle do +Guadiana abaixo, e tomando successivamente Elvas, Serpa, Moura, Mertola, +Ayamonte, Tavira e Cacella, que os arabes denominavam Hisn-Kastala (1226). As +deploraveis pendencias que lhe roubaram a corôa não deixaram a Sancho II +consummar a conquista do Algarve, que no meiado do <small>XIII</small> seculo +cáe por fim (1249), obscuramente, em poder do usurpador da corôa fraterna, +Affonso III.</p> + +<p>Consolidada a separação, constituido geographicamente o paiz, resta-nos +agora observar os movimentos internos da nação; para vêrmos como dentro d'ella +se affirma a independencia, só plena e cabalmente definida, porém, na crise que +poz termo á dynastia de Borgonha.<span class="pn"><a +name="pag_100">{pg. 100}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1176" href="#tex2html40"><sup>[40]</sup></a> V. nas + <em>Taboas de chronologia</em>, a das Cruzadas, a p. 219.</p> + + <p><a name="foot1177" href="#tex2html41"><sup>[41]</sup></a> V. na <em>Hist. + da repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 251-5, a descripção das machinas + de guerra dos antigos, que eram as da Edade-média.</p> + + <p><a name="foot1178" href="#tex2html42"><sup>[42]</sup></a> <em>Taboas de + chronologia</em>, pp. 43 e 271.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002230">III<br> +A monarchia e a justiça</a> </h3> + +<p>«D. Diniz foi um aváro. Affonso IV um homem de juizo, Pedro I um doido com +intervallos lucidos de justiça e economia.» Assim A. Herculano caracterisa os +tres monarchas, a quem já fôra concedido reinar sobre Portugal integralmente +constituido, dentro dos limites das suas fronteiras actuaes. Mas que eram então +um rei e um reino?</p> + +<p>Errada idéa formará d'essas epochas aquelle que não puder desprender-se das +impressões resultantes de periodos mais proximos de nós. Foi só desde o +<small>XV</small> seculo que o desenvolvimento das nações peninsulares +permittiu aos reis começarem a ter consciencia do caracter juridico-social do +seu cargo<a name="tex2html43" href="#foot1179"><sup>[43]</sup></a>. Até ao +<small>XIV</small> seculo, os Estados peninsulares, ou—limitando-nos agora ao +campo exclusivo das nossas observações—Portugal, não merece propriamente o +nome de nação, se a este vocabulo dermos o valor moderno. As comparações +illustram superiormente a historia: e em nossos dias temos exemplos de +similhança quasi absoluta. Esses principados slavos, onde a occupação da +Turquia jámais deixou de encontrar resistencias, são como foram a Hespanha. O +Montenegro reproduz as tradições das Asturias, ninho dos bandidos de +Pelayo;<span class="pn"><a name="pag_101">{pg. 101}</a></span> a Servia ou a +Herzegovina, em cujas campinas, avassalladas pelo turco, as quadrilhas dos +indomitos montanheses veem periodicamente fazer as suas razzias, são como foi +Portugal. A historia repete-se ainda na independencia final, ganha pela +irradiação do fóco de resistencia invencivel.</p> + +<p>Regiões fadadas a tal existencia não podem ser propriamente nações: não +attingiram esse momento de existencia collectiva, não sairam dos periodos +preparatorios da organisação. O processo tem, n'este caso, dois graus +caracteristicos. Primeiro apparece o bando, depois a familia. O rei é o chefe +dos bandidos, antes de ser o protector, o pae, dos seus subditos. Se a guerra é +antes um systema de rapinas do que uma successão de campanhas, a justiça é +tambem mais a expressão arbitraria de um instincto, do que a applicação regular +de um principio. A sociedade que se desenvolve de um modo espontaneo, á lei da +natureza, vae successivamente definindo as idéas collectivas, á maneira que +progride na serie das fórmas evolutivas do seu organismo<a name="tex2html44" +href="#foot1180"><sup>[44]</sup></a>.</p> + +<p>A substituição do principio da justiça—no qual incluimos as relações entre +individuos, e entre classes e instituições—principio militar, marca o momento +da primeira transformação que é a passagem do organismo do bando para a fórma +social primitiva: a familia nacional, cujo pae ou patriarcha é o rei.</p> + +<p>A loucura de D. Pedro I vale, portanto, a nosso vêr, tanto como o bandidismo +de Affonso Henriques. Os dois reis são os dois typos—da guerra e da justiça. +Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a segunda é irregular, cheia +de caprichos<span class="pn"><a name="pag_102">{pg. 102}</a></span> e arbitraria. +Mas se Affonso Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o +<em>pae</em> da familia portugueza.</p> + +<p>O seu furor justiceiro não é mais louco, do que o furor guerreiro do +primeiro rei. Tentámos esboçar a phisionomia d'essa epocha primitiva: +buscaremos agora, indo beber á fonte limpa das chronicas mais proximas, +accentuar as feições do segundo periodo. Na guerra não havia regra, nem planos: +era uma correria solta. Na justiça não ha processos, nem garantias: é o dominio +livre do capricho. Mas se, n'um caso, a bravura engrandecia e a victoria +exaltava os actos do bandido, no outro, a rectidão dava força, e a protecção +paternal coroava as decisões do <em>kadi</em>. O rei é o grande Juiz da familia +portugueza: a sua vontade é lei, as suas sentenças são oraculos<a +name="tex2html45" href="#foot1181"><sup>[45]</sup></a>.</p> + +<p>A justiça de Pedro I caracterisa-se, pois, para nós, com o merecimento de um +typo, da mesma fórma que a guerra de Affonso Henriques. São tambem os dois +individuos symbolicos, por isso mesmo que são como que doidos. As phisionomias +dos outros reis esbatem-se mais no fundo do quadro, confundem-se de um modo +mais ou menos completo na massa dos sentimentos do povo; e os seus actos +acompanham o desenvolvimento das forças e instinctos collectivos, sem os +dominarem de uma fórma superior e typica. O leitor perspicaz não esquece que +estas apreciações excluem a do merecimento individual das pessoas. Sancho I tem +uma bella vida tristemente rematada n'um torpor de fraqueza. Affonso II tem uma +phisionomia commum e antipathica, sem nobreza, mas forte e penetrante. Sancho +II possue muito do seu predecessor<span class="pn"><a +name="pag_103">{pg. 103}</a></span> em nome. Affonso III destaca-se pela educação +franceza, que lhe ensinara a dissimulação, a perfidia, de mãos dadas com o +bom-senso governativo. Diniz é um aváro; Affonso IV é um homem de juizo, no +dizer de Herculano. Todos reunidos, porém, n'um grupo, formam um corpo de +phisionomias indecisas ou communs: são mais ou menos guerreiros, são +pessoalmente melhores ou peiores, o que á historia importa pouco; são bons ou +maus administradores da republica, seu patrimonio, cuja riqueza fomentam, +acompanhando o desenvolvimento natural da sociedade.</p> + +<p>No principio e no fim d'esta serie estão, porém, os dois individuos typos, +os dois loucos—um, phrenetico, brandindo o punhal mortifero; outro, carrancudo +e fero, empunhando o latego do algoz e a vara de juiz, ou risonho e folgasão, +dançando e cantando nas ruas no meio da sua familia, como um pae.</p> + +<p>Pedro I tinha a paixão da justiça; era n'elle uma mania, como em seu avô o +fôra a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os criminosos vinham +á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e +o rei comia, levantava-se pressuroso da meza, e trocava a vianda pela tortura. +Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos +para obter a confissão dos réos. Nunca abandonava o açoute: enrolado á cinta em +viagem, tomava d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe +traziam. Os adulteros mereciam-lhe um odio especial: jámais lhes perdoava. D. +Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, <em>luitador e trovador de grandes +ligeirices</em>, a quem embora amasse <em>mais que se deve aqui dizer</em>, o +rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse.—O rapaz engrossou e +morreu depois da<span class="pn"><a name="pag_104">{pg. 104}</a></span> <em>sua +natural door</em>. Certa mulher era infiel ao marido, que nem por isso se +offendia: offendeu-se o rei, e mandando-a queimar, respondeu ao esposo desolado +que lhe devia alviçaras pelo ter vingado. Havia um homem casado, com filhos, +mas que antes da boda forçara a mulher. Roussou? morra. Enforcou-o, entre os +choros e supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne +perseguia com furor as alcouvetas; e as feiticeiras não lhe mereciam menos +cuidados.</p> + +<p>Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda mais +terrivel a expressão da sua phisionomia. A fala não lhe deixava traduzir bem as +cóleras; e rubro, grosso, agitando o latego, n'um delirio, mettia espanto. Os +gagos, porém, teem isto de particular: tanto o defeito accrescenta ao horror na +furia, como põe nas horas mansas o quer que é de bonhomia quasi ironica. Era +assim D. Pedro. Caçador tenaz, descansava do officio de juiz nas corridas do +monte, seguido pelos moços com os nebris e falcões, e pelas matilhas de caens. +Então o seu rosto aplacava-se, e era benigno, bemfazejo, liberal, folgasão. +<em>Foi grande criador de fidalgos.</em> Glotão, passava horas esquecidas á +meza, onde a vianda era em grande abastança.</p> + +<p>Punir os maus, enfrear os fortes, «querendo fazer graça e mercê ao nosso +poboo» era o seu constante desvelo paternal. Nas côrtes que reuniu em Elvas +(maio de 1361) vê-se pelas respostas aos capitulos dos povos como o seu governo +era protector. Queixavam-se os conselhos de que as casas dos mestres das +ordens, dos bispos e priores, dentro das villas, caíam em ruinas; e o rei +decide de um modo simples: <em>filhem</em> as nossas justiças aos proprietarios +o que for necessario para as obras.<span class="pn"><a +name="pag_105">{pg. 105}</a></span> Filhem mais, para as pôr em grangeio, as +herdades e vinhas ermas. Os ricos-homens veem ao concelho e pousam em casa de +mulheres honestas, perdendo-lhes a reputação; pousam nas adegas e nos celleiros +de trigo, e fazem d'elles cavallariças, allega o povo—e o rei ameaça o fidalgo +que assim fizer. O clero, isento como estava dos serviços militares da hoste ou +do appellido, recusa-se a acudir na hora de um perigo imminente? Que os +clerigos acudam com os leigos, diz o rei, quando haja fogo ou inimigos.</p> + +<p>Mas o «nosso poboo» ás vezes exige de mais, como uma creança que se sente +adorada. Modere-se: o rei é um pae, mas o pae é um juiz, sempre benigno e +amoravel porém. Quando recusa, não se vê arrogancia, apenas uma reserva +prudente: «mostrem e declarem aquello em que lhis vam contra seus foros, graças +e mercees que ham e que, nos lhas faremos guardar.» Exigir que as meretrizes e +barregans andem estremadas pelo trajo, é querer muito n'essa Edade-média +prostituta e adultera, faminta e leprosa, que vive de carnalidades, violencias +e feiticerias: «Tragam suas vestiduras como as poderem aver, porque perderiam +muito em os pannos que teem feitos e nos adubos que em elles tragem.» Mas +quando o povo se queixa do que soffre com os serviços militares, obrigado o +villão a ter cavallo e armas desde que possue uma certa <em>quantia</em> de +bens, o rei attende e ordena que não sejam quantiados a nenhum os pannos de seu +vestir e de sua mulher até dois pares, nem as roupas de suas camas.</p> + +<p>Sobre a cabeça do povo humilde pesam duas ameaças constantes: o nobre com a +sua violencia, o judeu com a sua manha. O fidalgo e o onzeneiro são a desgraça +da gente, a perdição das filhas<span class="pn"><a +name="pag_106">{pg. 106}</a></span> e a ruina das searas. Quem nos protegerá senão +o rei? Se o judeu onzenar, responde este, «nós o mandaremos matar e lhe tomar +quanto houver.» Mas ninguem se atreva com elle, a não ser a justiça, que anda +sobranceira a todos, a tudo. De uma vez D. Pedro mandou matar dois escudeiros +por terem roubado a um judeu; e se tambem cortou a cabeça a outro, dos bons, de +Entre-Douro-e-Minho, por ter partido os arcos de uma cuba de vinho a um pobre +lavrador, foi elle o proprio que mandou degolar o sobrinho do alcaide de Lisboa +por depennar as barbas a um porteiro.</p> + +<p>A justiça havia de ser tremenda quando os costumes eram barbaros, corruptos +e ingenuos ao mesmo tempo; quando o incesto, o adulterio, o assassinato, o +estupro, o roubo, e essa offensa extravagante da merdinbuca (<em>stercum in +ore</em>), tão frequente nos foraes, acompanham as linhagens das familias e +enchem as paginas das cartas dos concelhos.<a name="tex2html46" +href="#foot1182"><sup>[46]</sup></a> O juiz não será um algoz, mas é mistér que +seja um tyranno; e o symbolo da justiça não está na balança com o seu fiel +sensivel, mas antes na espada e no latego, na furia e no amor, no capricho +benevolente e na sanha vingadora de um rei temido como foi D. Pedro.</p> + +<p>Assim como a sua justiça era, pois, destituida de magestade, assim o eram as +suas folganças. Dir-se-hia um rustico feito rei; e acaso por isso o povo o +amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas, no sentimento, nem no +trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas +eram <em>kermesses</em> extravagantes e plebeias.<span class="pn"><a +name="pag_107">{pg. 107}</a></span> Os instinctos aristocraticos e as fórmas da +cortezia nobre, os torneios, as lanças, não tinham n'elle um amador. Era um +democrata, um <em>tyranno</em> á moda antiga, em cujo espirito encarnara toda a +brutalidade popular: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, +passando de bocca em bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas +continuas folganças populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos +merece quem tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de +D. Pedro.</p> + +<p>Quando voltava em bateis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a +recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba, +dançando ao som das <em>longas</em> (trombetas) como um rei David. Estas folias +apaixonavam-no quasi tanto, como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava a fazer +loucuras. Certas noites, no paço, a insomnia perseguia-o: levantava-se, chamava +os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o pelas ruas, dançando e +atroando tudo com os berros das longas. As gentes, que dormiam, saíam com +espanto ás janellas, a vêr o que era. Era o rei. Ainda bem! ainda bem! que +prazer vel-o assim tão ledo!—Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos +de somno; e as ruas, um momento antes silenciosas e negras, brilhavam com as +luzes, e tinham o clamor da multidão em vivas e o movimento das danças +universaes.</p> + +<p>Era uma loucura? Seria. A Edade-média é uma vertigem. O povo, afflicto pelas +miserias do mundo e pelos terrores do céo, vivia n'um sonho feito de dôres +positivas e de medos transcendentes: rodopiava n'um <em>sabbath</em>. Deus +abençoe o rei que nos defende por sua mão! que vem comnosco bailar ás noites +por essas ruas lugubres! que persegue<span class="pn"><a +name="pag_108">{pg. 108}</a></span> os incantadores e feiticeiras! É o nosso justo +juiz, o nosso bom pae, o nosso amigo e irmão: adoremol-o!</p> + +<p>Não eram só justiça e festas que o rei lhes dava: era pão. Sabio +administrador, juntava grandes thesouros; e esta noticia augmentava, ao medo e +ao amor, o respeito por um rei tão bom. A brutalidade e o egoismo dos costumes +medievaes traduzia-se a miude n'um flagello terrivel—a fome, de que o pobre +povo soffria sempre mais ou menos. A fome e as guerras geravam pestes. A +primeira metade do seculo <small>XIV</small> fôra uma cadeia +de desgraças. «No anno do Senhor, de 1830, diz o livro de Ceiça, foi a +pestilencia grande e morreram então em dois mezes cento e cincoenta religiosos. +Os lazaros eram tantos e tão antigos que D. Diniz deixara-lhes em testamento +duas mil libras. Em 1333 houve fome, e os mortos já não cabiam nos adros das +egrejas, enterrados aos seis em cada cova. No dia de S. Bartholomeu do anno de +1346, tremera a terra a ponto de os sinos tocarem nas torres, pavorosamente, um +dobre de finados, annunciando o acabar do mundo. Depois veiu a peste de 48; e +em 55, dois annos antes da morte de Affonso IV, foi a secca, havendo outra fome +medonha. Da gafaria para a cova, ameaçado por todos, na terra e no céo, o povo +infeliz e faminto congregava-se em volta do throno protector, adorando o rei +justiceiro e providente, inimigo das pestes, das guerras, das fomes, e +sentia-se rico dos thesouros guardados nas torres do castello. Além d'isso, D. +Pedro fartava-o. As suas folias não eram só danças e musicas. Quando Affonso +Tello foi armado cavalleiro houve uma kermesse monumental. Durante a vigilia +d'armas, cinco mil tochas illuminavam as ruas, desde S. Domingos até ao<span +class="pn"><a name="pag_109">{pg. 109}</a></span> paço; e o rei, entre as alas de +lumes, radioso e bom, na sua gaguez, dançou com o povo a noite inteira. Ao +outro dia o Rocio estava coalhado de tendas e montanhas de pão e grandes tinas +cheias de vinho. Nas fogueiras, em espetos collossaes, assavam-se vaccas +inteiras. Havia de comer para toda Lisboa. O povo exultava, n'esses ágapes da +monarchia.</p> + +<p>A velha tragedia dos seus amores e da sua rebellião augmentava-lhe ainda as +sympathias. O tyranno apparecia, justiceiro e bondoso, sobre o fundo de um azul +de amores infelizes que encantavam a alma popular. Ignez de Castro, a sombra de +um anjo, coroava-o de além do tumulo. Mas esta piedosa recordação era, na alma +do rei, um espinho que o mordia sem cessar. O seu genio cruel pedia vinganças. +Entendeu-se com o visinho de Castella, e pôde haver ás mãos dois dos +assassinos. O povo não approvou o escambo; e o rei muito perdeu de sua fama, +diz o chronista. O castigo dos assassinos foi duro: D. Pedro estava fóra de si, +as palavras atropellavam-se-lhe na garganta, e não podendo satisfazel-o as +muitas injurias, deshonestas e feias, vingou-se a chicotear os infelizes na +cara. A sua colera attingia a ironia soez. Queria cebola e vinagre, para comer +o Coelho em molho-de-villão. Por fim mandou que lhes arrancassem, vivos, os +corações, a um pelo peito, a outro pelas costas. Gozou-lhes a morte, e acabou +vingado.</p> + +<p>Pedro I é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os +vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis e as +amisades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo onde acaso alguma lepra +dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam<span class="pn"><a +name="pag_110">{pg. 110}</a></span> o caracter d'esse rei que é verdadeiramente um +symbolo. Por isso o povo, vendo-se n'elle retratado, o adorou.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A politica da independencia puzera no seio da familia portugueza um membro, +cujas arrogancias e pretenções ameaçavam desnortear o fiel da justiça social. O +clero aspirava a usurpar a authoridade á monarchia. Além da força que as +tradições juridicas lhe davam; além da authoridade espiritual e do espectro das +bullas de excommunhão, pavor das almas ingenuamente crentes; além do poderio +fundado n'uma riqueza excessiva e na machina absorvente da mão-morta, poço onde +caíam as heranças e legados dos rudes batalhadores arrependidos; além de todas +as causas geraes, o clero invocava em Portugal um argumento particular: o rei +era vassallo, o papa suzerano. Por tal preço obtivera Affonso Henriques um +simulacro de sancção juridica para a sua rebellião.</p> + +<p>A situação do clero catholico no seio da primitiva sociedade portugueza—e +das coevas em geral—resulta de um tal concurso de elementos heterogeneos, que +nenhuma das faces do systema dos costumes retrata, melhor do que esta, a +confusão cahotica d'esse novo mundo que se formava sobre as ruinas e destroços +do antigo. Politicamente, o facto de um poder, superior por ter um fundamento +transcendente, estranho ao poder civil, é a primeira causa de conflictos.<a +name="tex2html47" href="#foot1184"><sup>[47]</sup></a> Perante a Egreja, todos +são egualmente subditos, desde o rei até ao infimo dos <em>viliores</em>. A +base religiosa d'esse poder<span class="pn"><a name="pag_111">{pg. 111}</a></span> +consolida-se com a força que dá a riqueza. Os barões, crendo de facto na +verdade da revelação, e n'uma outra vida onde hão de ser julgados, teem uma +religião feita de medo; e como no fundo são barbaros, vivem na terra á lei da +força, remindo com esmolas e legados, á hora da morte, os longos rosarios de +crimes. Julgando-se proximos a apparecer perante o supremo juiz, reconhecendo á +hora da morte a inutilidade da força e da perfidia perante quem tudo póde e +tudo vê, compram o perdão com o fructo das rapinas e dos crimes; e assim formam +o alicerce de um poder real, verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que +ficam teem de entender-se com o clero herdeiro; teem de debater por todos os +meios a influencia e o poder, para outra vez, á hora da morte, repetirem os +actos causadores das luctas que lhes encheram a vida. Por tal fórma se encerra +um circulo vicioso que a politica não póde romper, porque a religião o não +consente. Desde que as raças germanicas, avassallando o imperio antigo, não +tinham podido desenvolver a sua independencia religiosa e acceitaram o +christianismo, força era que assim fosse, emquanto os dogmas christãos +governassem as consciencias.</p> + +<p>N'este sentido é perfeitamente legitima a influencia do clero; e não o é +menos por virtude da authoridade que lhe dá o saber, com effeito já pervertido, +mas ainda preponderante sobre reis e principes analphabetos. Legitima a sua +influencia, historicamente legitima a sua força, o clero, porém, recebia por +seu turno a acção reflexa do meio ambiente em que vivia. Era tão aváro, tão +feroz, tão barbaro, tão vicioso, como os seculares; e a sua cultura +accrescentava ainda, aos defeitos da brutalidade, os da civilisação. As +perversidades requintadas,<span class="pn"><a name="pag_112">{pg. 112}</a></span> +as perfidias subtís tinham n'elle os melhores mestres; e por sua via entravam +no corpo de uma sociedade barbara. Os sacerdotes eram os educadores politicos +dos principes, quando não eram os seus declarados adversarios. Ensinavam as +manhas, a quem apenas sabia commetter os actos brutaes. Aos vicios do instincto +sabiam juntar as perversidades da intelligencia.</p> + +<p>Se os principes da Egreja influiam de tal modo, a plebe ecclesiastica +acompanhava as massas no rodopio lugubre e sanguinario da dança infernal da +Edade-média. Os homens da Egreja commettiam todos os crimes. Sacerdotes, +habitando os templos e os mosteiros, os seus erros eram outros tantos +sacrilegios, pela qualidade dos delinquentes e pela condição do lugar. +Roubavam, feriam, matavam, mentiam. Os casados andavam bigamos; os solteiros, +publicamente amancebados. Davam o braço ás prostitutas, viviam com ellas, e +desfloravam donzellas. Engeitavam os filhos, repudiavam as esposas. Além de +criminosos, eram indignos. Faziam-se carniceiros em praça publica, matando e +degollando as rezes, vendendo carnes. Eram jograes, tafues, bufões. Escondiam a +corôa, deixavam crescer o cabello, e abandonavam o trajo ecclesiastico, para +mais á solta poderem abandonar-se aos seus desvarios.</p> + +<p>E, obrando taes crimes, desvirtuando por tal modo os legitimos privilegios +do sacerdocio e da illustração, não deixavam de reclamar o fôro de uma justiça +especial. D'ahi resultava que o rei podia enforcar um réo, por ser secular, e o +cumplice ecclesiastico ficava impune. Testemunhas seculares não valiam contra +elles, e ecclesiasticas não appareciam, porque o vedava a solidariedade da +classe. O desvario era tamanho, que havia quem<span class="pn"><a +name="pag_113">{pg. 113}</a></span> chegasse a ordenar-se, unicamente para +commetter crimes impunemente.</p> + +<p>Juntem-se estes costumes aos costumes bravios da epocha; junte-se mais a +serie de conflictos politicos e economicos, levantados pela condição particular +da Egreja; addicione-se a situação especial de vassallo em que Affonso +Henriques collocára o throno portuguez—e desde logo se comprehenderão os +motivos dos longos e pittorescos conflictos da primeira época da historia +nacional.</p> + +<p>A erudição lançou para o campo das lendas os episodios tradicionaes do tempo +de Affonso Henriques; mas a historia não póde desprezar esses traços +pittorescos com que o povo retrata, infiel mas typicamente, as tendencias e os +costumes. Sabe-se a historia do bispo negro de S. Cruz de Coimbra; e os +monumentos remotos contam o que Affonso Henriques, se não fez, poderia ter +feito ao legado que veiu de Roma excommungal-o por se ter levantado contra a +mãe, pela ter mettido a ferros e não a querer soltar—segundo resa a chronica. +Era homem «muy bravo de grande coraçom» o principe a quem a rebeldia do clero +irritava. Foi esperar o legado ao Vimieiro, chegou-se a elle, travou-lhe do +cabeção, sacou da espada e quizera cortar-lhe a cabeça. Os cavalleiros do rei +acudiram: «Dirão em Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o rei de +colera, mas baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja +excommungado em todos os meus dias e que não leveis d'aqui ouro, nem prata, nem +bestas, senão tres!» E proseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a posse +«d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O sobrinho do cardeal +ficaria em refens: teria a cabeça cortada se a carta não viesse em quatro +mezes. O cardeal,<span class="pn"><a name="pag_114">{pg. 114}</a></span> diz-se, +prometteu, annuindo a tudo; e o leitor sabe, pelo modo como lhe contámos os +pactos de Zamora, qual é a verdade que esta scena pittoresca exprime. O rei que +«em sua mancebia foi muito bravo e esquivo,» prosegue a lenda, feitas as pazes, +disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E despindo-se, mostrou-lhe as +feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas em que as tinha havido. +Resolvida a contenda, satisfeita a cubiça, aplacada a colera, apparecia depois +do guerreiro violento o homem timido e crente, com a visão do inferno e o +terror da excommunhão.</p> + +<p>Por isso os prelados de Braga, Coimbra e Porto eram como tres reis no reino, +cujos limites já para um unico provavam escassos. Se as guerras da separação, +primeiro, depois a conquista do sul do reino e a deslocação do seu centro para +Lisboa, marcam os momentos geographicos decisivos da historia da independencia, +a resolução dos conflictos ecclesiasticos e a consolidação do poder monarchico +marcam, decerto, o movimento tambem decisivo d'essa historia, sob o aspecto +mais intimo e organico da justiça social.</p> + +<p>Dos tres reis mitrados, o do Porto foi o que mais trabalhos deu aos +monarchas portuguezes. O reinado de D. Sancho I, tão brilhantemente iniciado +pela conquista de Silves, e com tanta sabedoria dirigido para a consolidação do +centro assolado do paiz, é dos mais notaveis na historia dos conflictos com o +clero. O rei era tão irascivel como credulo: acompanhava-o sempre uma +feiticeira, diariamente consultada. Não tinha o furor bellico do pae, nem a +energia justiceira do neto: parece ter sido um homem commum, mas serio.</p> + +<p>Na primeira decada do <small>XIII</small> seculo governava o<span +class="pn"><a name="pag_115">{pg. 115}</a></span> bispado do Porto Martinho +Rodrigues, homem atrevido, ambicioso, cheio de força e vicios. A authoridade da +corôa limitava-se por esses tempos ao velho Porto, hoje o suburbio de Gaya, e o +bispo imperava na cidade. Exacções e tyrannias, communs a todos os senhorios +feudaes, levaram os burguezes do Porto a rebellar-se contra o bispo, invocando +o auxilio que o rei lhes não refusou. Acclamado pelo povo, Sancho I entra na +cidade; arrombam-se as portas das egrejas, a turba invade e assola os templos, +conspurca os altares; e o bispo fica cinco mezes preso no palacio episcopal, +até que finge submetter-se ás exigencias, com o proposito, que realisa, de ir a +Roma pedir desforra ao papa. Entretanto o de Coimbra encerrava os templos e +negava os serviços religiosos aos fieis: era esse um dos meios ordinarios de +combate. Sancho I vae a Coimbra, faz de bispo, obriga os padres, á força, a +celebrarem os officios divinos, mandando arrancar os olhos aos +recalcitrantes.</p> + +<p>Voltou a final (1210) Martinho Rodrigues, de Roma, com bullas de Innocencio +III. O nuncio ou legado do papa devia em pessoa lel-as ao rei; porque o +chanceller Julião, valendo-se da ignorancia do soberano, usava alterar o que +lia. Sancho I ouviu com humildade a monitoria papal. Estava doente, já fatigado +da vida, e na perspectiva da proximidade da viagem para o outro-mundo, memorava +tudo o que tinha feito, os desacatos e sacrilegios. Os remorsos enchiam de +terror o seu animo duro, obtuso e bravio. Curvou-se e penitenciou-se. Este era +sempre o momento infallivel da victoria da Egreja: a superstição entregava-lhe, +manietados e submissos, os seus terriveis inimigos, na hora da morte imminente. +Sancho I<span class="pn"><a name="pag_116">{pg. 116}</a></span> pedia aos monges de +Alcobaça que rezassem por sua alma esses lugubres psalmos, que pareciam aos +infelizes como um ecco das terriveis symphonias da eternidade. Reclinado no +leito da morte, o rei, apavorado, via a face medonha do supremo Juiz; e +sentia-se já precipitado nos abysmos ardentes, no seio das chammas crepitantes, +roído, macerado pelos monstros diabolicos, a gritar em dôres infernaes.</p> + +<p>Desistiu de tudo; abandonou á sua miseranda sorte os burguezes fieis, deu +rendas, legados, terras, senhorios. Deu mais até do que possuia! Conseguiria +por tal preço obter o perdão? Os padres diziam-lhe que sim, e abençoavam-no +promettendo-lhe a salvação.</p> + +<p>Fóra da camara, onde o rei agonisava (1211), o herdeiro, Affonso II, vulgar +e obeso, avarento e incapaz de perceber a situação cruel do pae, ruminava +porém, com o chanceller Gonçalo Mendes, discipulo de Julião, o plano da +desforra. Começou por confirmar tudo o que o fallecido doára ao clero, porque +primeiro tinha que liquidar contas com os irmãos e com o seu partido. Sancho I +deixára-lhes metade do reino. Affonso queria-o inteiro para si: e era muito +bastante para vêr que não podia bater-se ao mesmo tempo com todos os +adversarios. Faltava no caracter do filho a nobreza do caracter do pae. Nas +côrtes de 1211 confirma ainda a isenção dos cargos publicos, mas prohibe ao +mesmo tempo ao clero a compra de bens de raiz. O de Braga protesta, e Affonso +II manda-lhe arrazar os campos, destruir as granjas e confiscar as rendas. +Estava outra vez declarada a guerra entre a monarchia e o clero. O rei morre, +impenitente, apesar das ameaças das bullas de Honorio III.</p> + +<p>O segundo Sancho tinha muito do caracter do<span class="pn"><a +name="pag_117">{pg. 117}</a></span> primeiro: era sinceramente devoto, e na +Edade-média a sinceridade implicava certeza de derrota. É verdade que já a este +tempo o terror das excommunhões diminuira: tão excessivo uso o clero dellas +tinha feito. Os interdictos e a denegação de sepultura em sagrado eram +acompanhamento constante de todas as pretenções ecclesiasticas. Se, porém, a +força das armas canonicas minguára, não tinha diminuido o poderio positivo do +clero, que era a classe mais opulenta do reino. O que os bispos exigiam de +Sancho era demasiado; e como lhes foi negado, depozeram o bom e valente rei +(1245). Em França, o usurpador subscreveu a tudo; sentado no throno, o terceiro +Affonso, soube defender-se como se defendera o segundo. Trazia de fóra a muita +experiencia, a manha, e a pertinacia consummadas, que aprendera nas côrtes mais +polidas da Europa central.</p> + +<p>Evidentemente o clero baixa n'esta longa e interessante batalha. O +fundamento juridico das suas pretenções vae gradualmente fugindo, á medida que +as tradições romanistas e o espirito secular inspiram as acções dos monarchas, +primando sobre as maximas do direito canonico. Esta substituição traduz o +aclaramento gradual que se dá nas consciencias, á maneira que as superstições +infantis d'essas primeiras e obscuras alvoradas, se vão abrindo no dia claro do +renascimento da cultura intellectual.</p> + +<p>D. Diniz (1279-325) já não é analphabeto, e mede bem o valor da sciencia: +prova-o a fundação das Escholas. Por outro lado, vê que a principal causa da +força do clero está no ultramontanismo, palavra então desconhecida ainda para +exprimir a influencia e authoridade soberanas dos papas sobre as Egrejas +nacionaes. Libertar-se d'essa perigosa<span class="pn"><a +name="pag_118">{pg. 118}</a></span> intervenção era o meio de diminuir a gravidade +dos conflictos. Acaso a tradição dos concilios da Hespanha visigothica influiu +para a creação das assembléas de prelados, cujas <em>concordatas</em>, +registrando os fóros da Egreja, a subtrahiam á influencia estrangeira, por +tornarem nacional o clero e internas as suas questões. O rei, que assim +fomentava a educação e nacionalisava a Egreja, cimentando por outro lado o +desenvolvimento economico do paiz, tinha uma intuição dos caracteres modernos +das nações. Portugal caminhava de facto, rapidamente, na estrada da sua +independencia, isto é, da sua constituição organica. O povo costumou-se a +dizer: «El-rei D. Diniz fez tudo o que quiz.»</p> + +<p>Pedro, o justiceiro, com a sua typica individualidade conclue de um modo +terminante e brusco a velha questão da influencia de Roma, quando estabelece o +<em>placito regito</em>: «Nenhumas bullas, nem lettras pontificias serão +publicadas em Portugal sem consentimento meu.»</p> + +<p>Procedia summariamente: e a sua politica, toda pessoal, acclamada com +enthusiasmo por um povo que o adorava, era a voz indomavel da nação que falava +por sua bocca. A sua loucura era a synthese do pensamento collectivo. Quando o +bispo do Porto reagiu, o rei foi lá em pessoa, diz a chronica, fechou-se com +elle n'uma sala, despiu o gibão para ficar mais á vontade: trazia por baixo uma +saia de escarlata. O bispo, transido de susto, esperava, sem ousar pedir +soccorro. D. Pedro chegou-se e, placidamente, tirou-lhe a capa; desenrolou o +latego, e correu-o a açoites, dizendo-lhe a rir, gaguejando: vae! anda! +toma!</p> + +<p>Não podia conceber leis, a cuja sombra os criminosos ficassem impunes; e por +isso dava-se-lhe pouco de enforcar os padres.—E as regalias da<span +class="pn"><a name="pag_119">{pg. 119}</a></span> Egreja?—«Vam-no enforcando, +respondia com bom humor e pausa, porque não podia falar depressa. Vam-no +enforcando: por esse caminho lá vae para Jesus Christo, seu vigario, que no +outro-mundo o julgará!»</p> + +<p>E ficava-se a rir, vendo o tonsurado espernear na forca.</p> + +<p>Tudo mudára. Os tempos eram diversos; as excommunhões, papeis rabiscados; as +regalias da Egreja, uma tradição apenas. O rei parado, com os olhos na forca, +ria!</p> + +<p>«E diziam as gentes que taes dez annos nunca ouve em Portugal como estes que +reinara el-rei dom Pedro.<small class="SMALL">(Fernão Lopes.)</small></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A fidalguia não tem uma historia tão grave como a do clero. As condições +peculiares da constituição do reino portuguez augmentavam ainda os embaraços +que em toda a Hespanha houve para a formação acabada de um feudalismo.<a +name="tex2html48" href="#foot1185"><sup>[48]</sup></a> Todos os conflictos da +nobreza com a Corôa proveem, não de uma questão de ambição politica, não de um +pensamento definido de emancipação revolucionaria, como a do clero; mas da +avareza, da cubiça, da brutalidade pessoal dos homens, nos quaes é mistér +incluir tambem os reis.</p> + +<p>A não serem, por outro lado, as revoltas do Porto, e as guerras entre +Bragança e outros concelhos transmontanos, por causa do senhorio de Lamas, nada +se encontra em Portugal que dê idéa de uma descentralisação de dominio +politico, similhante<span class="pn"><a name="pag_120">{pg. 120}</a></span> á que +lavra para além das nossas fronteiras<a name="tex2html49" +href="#foot1186"><sup>[49]</sup></a>.</p> + +<p>Poucos são os conflictos entre o rei e os barões que não tenham por origem a +<em>pilhagem</em> dos realengos. Distante, e por isso mais fraca a acção da +Corôa, o fidalgo do logar não receava chamar seu e apossar-se violentamente do +terreno visinho, pertencente ao rei. Além d'isto, os nobres forjavam titulos, +inventavam doações, para <em>honrarem</em> territorios sujeitos á acção das +justiças reaes. D'estas causas provinham confusões inextricaveis, que a força +apenas decidia. Quando o mordomo do rei, ou o seu aguazil, appareciam a cobrar +um tributo ou reclamar um preso, o fidalgo usurpador, ou, do terreno, ou do +privilegio apenas, saía com os seus homens: «Ca por aqui é <em>honra</em>!» E +enforcava-os. Enforcava-os, ou matava-os mais barbaramente ainda. Um porteiro, +que ia fazer uma penhora, teve as mãos cortadas, e foi depois assassinado. +Outro, atado á cauda de um cavallo, foi de rastos, levado a galope em volta de +toda a <em>honra</em>. Um foi <em>pendurado pelos braços</em>. Outra vez o +fidalgo <em>prendidit eos per gargantas</em>: os processos eram tão barbaros +como o latim.</p> + +<p>Entretanto, embora destituidas de um alcance ou significação +politico-feudal, não faltam nas primeiras epochas portuguezas revoltas e +desordens oriundas das necessidades bulhentas da fidalguia. Batalhar era o +unico meio de passar o tempo, ganhando fama e dinheiro ou terras. Mais pacifico +o reino occidental da Peninsula, «em aquell tempo os fidallgos portuguezes hiam +a Castella muitas vezes por se provarem pellos corpos quando em Portugall +mesteres nom avia.» Mesteres eram desordens,<span class="pn"><a +name="pag_121">{pg. 121}</a></span> como a que assolou o paiz no tempo de Sancho II +e levou á deposição do rei. Eis aqui um episodio do livro das +<em>Linhagens</em>: «E este Raymão Viegas de Portocarrero, sendo vassallo +d'elrey D. Sancho de Portugal, veio uma noute a Coimbra com a companha de +Martim Gil Soverosa, onde el-rey jazia dormindo na sua cama; e roubaram-lhe a +rainha D. Mecia sua mulher de apar d'elle e levaram-na para Ourem. O rei +lançou-se apoz d'elles e só os pôde alcançar em Ourem que era então muy forte. +Disse-lhes que abrissem as portas, pois era elrey D. Sancho, e levava seu +preponto vestido de seus signaes e seu escudo e seu pendão ante si, e deram-lhe +muy grandes sétadas e muy grandes pedradas no seu escudo e no seu pendão e +assim se houve ende (d'alli) a tornar.» Mesteres eram estas guerras civis +frequentes; mesteres, porém, menos nobres, eram as vinganças crueis exercidas +sobre o povo inerme, como a de um tal Martim Esteves, que matou os doze +melhores homens de Alter-do-Chão «por deshonra que lhe ahi fizeram.»</p> + +<p>Mesteres ainda, são os desaggravos do thalamo tão a miude violado. Houve um +Dom Rodrigo Gonsalves casado com Dona Ignez Sanchez; ella, estando no Castello +de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e o marido, certo d'isto, chegou +ahi, cercou as portas do castello, e queimou-a a ella e ao frade e homens e +mulheres e bestas e caens e gatos e gallinhas e todas as cousas vivas, e +queimou a camara e pannos de vestir e cama, e não deixou cousa movel.</p> + +<p>Nos mesteres amorosos tambem essa gente barbara se «provava pellos corpos» +mas sem necessidade de ir a Castella. Quando em tão pouco se tinha a vida +alheia, como se teria em muito a honra?<span class="pn"><a +name="pag_122">{pg. 122}</a></span> De Affonso Henriques, o rei «muito bravo e +esquivo em mancebo», conta a historia que foi um dia hospedar-se em Unhão, a +casa de um homem-bom que havia nome Gonçalo de Sousa, e emquanto elle ia +adubando o comer, foi elrey vêr-lhe a mulher que tinha por nome Dona Sancha +Alvares e começou-lh'a... E Dom Gonçalo de Sousa entrou pela porta e viu assim +ser e pesou-lhe d'ahi muito e disse-lhe: Senhor, levantae-vos, ca adubado o +tendes. E o rei foi sentar-se, e comeu e partiu; e o marido pegou da esposa, +montou-a n'um jumento com a cara para a cauda, e mandou-a assim á côrte +entregar ao rei.</p> + +<p>Estes escrupulos do fidalgo não eram, porém, geraes, e fazem-lhe honra. A +promiscuidade repugnante, o incesto, o sacrilegio são casos communs. Um fez um +filho em Tereja Mendes, abbadessa de Lorvão e levou-o para a côrte, onde D. +Diniz lhe deu muito bem e muita mercê. Outro «ouve um filho, Ruy, que foi +privado d'elrey D. Diniz e ouvidor de sua caza.» Os reis, os nobres teem +barregans publicas e legiões de bastardos. Quando D. Maria Paes, amazia de +Sancho I, vinha do enterro do rei em Coimbra, encontrou em Avelans Gomes +Lourenço, que lhe saíu ao caminho e a <em>filhou</em> por força, roussando-a. +Elvira Annes roussou-a Ruy Gomes de Briteiros. E D. Fernão Mendes, o bravo, +«foi o que matou sua madre na pelle da ussa e pose-lhe os caens, porque lhe +baralhara com a barregan.» A bestialidade nem respeita o sangue, nem um incesto +impede o casamento das nobres damas. «Dona Thereza Gil foi de mau preço e ouve +filhos de seu primo co-irmão»; Dom Pedro Garcia <em>jouve</em> com sua irman e +«fez em ella semel.» Dona Mor Garcia não foi casada, mas roussou a seu irmão +Pedro e «fez em ella Martim<span class="pn"><a name="pag_123">{pg. 123}</a></span> +Tavaya.» Outrotanto succedeu a uma Maria Mendes, que depois casou com Lourenço +Soares de Valladares. É longa a lista das torpezas das <em>Linhagens</em> da +fidalguia. Taes são os poeticos amores da Edade-média, cujo brio é perfidia, +cuja bravura é crueldade, cuja nobreza é astucia. A carne, o sangue e o ouro, a +orgia bestial, a carniceria e o roubo são os elementos d'essas historias, em +que a rudeza barbara apparece manchada de podridões asquerosas.</p> + +<p>O roubo e o assassinato compõem essa epopêa aristocratica, cujos amores são +<em>roussos</em>, estupros, adulterios, cujo espirito é a avareza e a +perfidia.<a name="tex2html50" href="#foot1187"><sup>[50]</sup></a> +<em>Filhar</em> as terras do rei, é a primeira das emprezas da +<em>cavallaria</em> em Portugal. E o rei não vale mais do que os cavalleiros. +Quantas vezes, com effeito, não seria usurpadora a sua intervenção? quantas +vezes a ira brutal do fidalgo não teria um fundamento justo? Affonso II leva +metade do seu reinado a espoliar da herança os irmãos, e todo elle a +<em>inquirir</em> o fundamento legal da posse dos dominios aristocraticos: +faz-se idéa da regularidade do segundo processo, depois de observada a primeira +façanha. A confusão é tão grande, que D. Diniz (1309) decide abolir todas as +<em>honras</em> posteriores a 1290.</p> + +<p>É tambem no seu tempo que um outro acto de grande alcance vem diminuir o +poder da nobreza, de um modo analogo ao que succedera ao clero. Assim como, +fóra da nação, o clero tinha em Roma o seu chefe supremo; assim tambem as +Ordens militares, estabelecidas em Portugal, tinham fóra do reino os seus +mestrados. Nacionalisar as Ordens militares (1310) equivalia ao que se +conseguira<span class="pn"><a name="pag_124">{pg. 124}</a></span> com as assembléas +do clero. O <em>Templo</em>, poderosa machina destruida por Clemente V, legava +os seus bens ao <em>Hospital</em>, mas os tres reis de Castella, Aragão e +Portugal, <em>como todos tres fuessemos uno a catar nuestro drecho</em>, +conseguem nacionalisar os bens dos templarios. É com elles que D. Diniz funda a +ordem portugueza de Christo.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Os monges militares<a name="tex2html51" href="#foot1188"><sup>[51]</sup></a> +tinham representado um papel importante no movimento da reconstituição +economica dos territorios portuguezes. Desde os primeiros tempos que ás Ordens +jerosalemitanas fôra confiada a guarda de numerosas povoações. O Templo, o +Hospital e o Sepulcro fruiam de abundantes doações; e Affonso Henriques +concedera á primeira a terça parte de todas as conquistas ao sul do Tejo. Á +inopia de forças para levar a cabo as grandes emprezas de Lisboa, Alcacer e +Silves, pontos decisivos da conquista do sul do reino, remediavam os Cruzados; +mas as esquadras partiam com o saque, e sósinhos os portuguezes não podiam +conservar o adquirido. N'este motivo se fundára a concessão permanente de +terras ás Ordens militares. Como vimos, Sancho II estendeu as fronteiras do +reino pelo alto-Alemtejo; e sem recursos para conservar as conquistas, chamou +para o reino os cavalleiros de Santiago e Calatrava, cujo mestrado era +castelhano.</p> + +<p>Tal era o unico meio de guarnecer os castellos dispersos pelas vastas +campinas assoladas do sul do reino. A instabilidade do dominio e a escassez da +população—ainda hoje sentimos as consequencias<span class="pn"><a +name="pag_125">{pg. 125}</a></span> d'essas prolongadas guerras—não permittiam que +a cultura se estendesse; e á falta de productos da terra, christãos e +sarracenos tinham de soccorrer-se ao systema de correrias e algaras +permanentes. Como em nossos tempos na Servia, o lavrador trabalhava armado, na +limitada área aproveitada em torno dos lugares fortificados. Além da occupação +constante de <em>alancear mouros</em>, havia os grandes fossados annuaes, no +tempo em que as searas estavam maduras; e isto fazia precaria e transitoria a +agricultura. Todas estas causas reunidas produziam em resultado a devastação +universal, já consummada na edade de que nos occupamos. Nos foraes dos +primeiros seculos da monarchia, o alfoz dos concelhos é demarcado por uma certa +penedia no alto da serra, pelo carvalho insulado, pela <em>velha</em> estrada +mourisca, por certa pedra de côr diversa; jámais por casas, villares ou +granjas.</p> + +<p>O norte do reino, abrigado das invasões, defendido pelas linhas estrategicas +do Tejo e do Mondego, não era, desde seculos, theatro da guerra santa. As +depredações, menos geraes e menos frequentes, provinham ahi apenas das rixas +dos senhores e das guerras civis. Affonso II mandou arrasar as propriedades do +arcebispo de Braga. As guerras entre os filhos de Sancho I, as commoções que +acompanharam a queda de Sancho II, a rebellião armada de Affonso (depois IV) +contra seu pae, a do viuvo de Ignez de Castro, entre outras, trouxeram decerto +ruinas e desastres, mas não para comparar com as assolações do sul, nem sequer +com os males dos primeiros tempos, quando a ambição de conquistar a Galliza +fazia do Minho o theatro das luctas quasi constantes com Leão.</p> + +<p>As guerras castelhanas do tempo de D. Fernando<span class="pn"><a +name="pag_126">{pg. 126}</a></span> teem um novo theatro, porque o antigo condado +portucalense descera já á condição de provincia portuguesa. O coração do reino +está em Lisboa, a terra querida d'elrey Diniz, <em>ca hy nascera, hy fora +criado y bautizado, e hy fora rey</em>. Nem o norte do Mondego, rico e +populoso, nem o sul do Sado, demasiado bravio e inhospito, chamam a attenção +administrativa dos governos. Toda ella se applica para o centro do reino, a +renovar e agricultar, e para o desenvolvimento da navegação e do commercio pelo +magnifico porto onde todos os navios, em viagem dos mares do norte para o +Mediterraneo, vinham refrescar, desde que Lisboa era christan. D. Diniz lavrou +o primeiro tratado mercantil com a Inglaterra (1308). Os armadores da +Normandia, da Flandres e da Inglaterra, já no fim do <small>XIII</small> seculo +demandavam o Tejo, para mercadejar; e os cuidados dos reis não se limitavam +apenas a favorecer esse commercio, porque as plantações de vastos pinhaes nas +costas teem como motivo proporcionar madeiras ás construcções navaes, e ao +mesmo tempo defender as terras da invasão das dunas, no litoral de entre o Tejo +e Mondego.</p> + +<p>O ultimo d'esta serie de phenomenos que demonstram a formação crescente de +um organismo nacional, é o apparecimento de Lisboa, a cidade querida, como um +centro de actividade maritima e commercial. Definitivamente separado de Leão, +obliteradas as ambições da absorpção da Galliza, geographicamente completo até +ao mar do Algarve, rota a dependencia feudal de Roma, nacionalisado o clero e +as Ordens militares, fortalecido o poder dos reis, iniciada a organisação da +justiça, da administração, do ensino—o corpo da nação portugueza, até ahi +acephalo, achava em Lisboa a<span class="pn"><a name="pag_127">{pg. 127}</a></span> +capital. A cidade do Tejo dava mais do que um centro de vida organica, dava um +destino definido—o maritimo—a uma nação que na terra da Hespanha não tinha +individualidade, nem por uma indole homogenea e particular dos habitantes, nem +por uma conformação especial e autónoma do territorio.</p> + +<p>Corintho ou Veneza do occidente, Lisboa <em>grande cidade de muytas e +desvairadas gentes</em> era mais do que a capital do reino: era a razão de ser +da sua independencia.<span class="pn"><a name="pag_128">{pg. 128}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1179" href="#tex2html43"><sup>[43]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) liv. <small>III</small>, 4.</p> + + <p><a name="foot1180" href="#tex2html44"><sup>[44]</sup></a> V. <em>Instit. + primit.</em>, pp. 233 e segg.</p> + + <p><a name="foot1181" href="#tex2html45"><sup>[45]</sup></a> V. <em>Instit. + primitivas</em>, pp. 137-47.</p> + + <p><a name="foot1182" href="#tex2html46"><sup>[46]</sup></a> V. para os usos + judiciaes, etc., na Edade-média portuguesa, o <em>Quadro das Instit. + primit.</em>, pp. 17-18, 154, 163-4, 170-1, 175-8 e 181-205; e <em>Regime das + Riquezas</em>, pp. 172-4.</p> + + <p><a name="foot1184" href="#tex2html47"><sup>[47]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 158 e segg.</p> + + <p><a name="foot1185" href="#tex2html48"><sup>[48]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 127-32 e 143-9.</p> + + <p><a name="foot1186" href="#tex2html49"><sup>[49]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 135-43</p> + + <p><a name="foot1187" href="#tex2html50"><sup>[50]</sup></a> V. <em>Instit. + primit.</em>, pp. 98 e 157.</p> + + <p><a name="foot1188" href="#tex2html51"><sup>[51]</sup></a> V. <em>Instit. + primit.</em>, p. 263.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002240">IV<br> +A crise</a> </h3> + +<p>Quando Portugal se encaminhava, por fim, no sentido de uma rapida e +definitiva constituição, quiz o acaso que o throno coubesse por herança a um +principe de fracas, mas sympathicas qualidades.</p> + +<blockquote> + <p>Do justo e duro Pedro nasce o brando<br> + (Vede da natureza o desconcerto!)<br> + Remisso e sem cuidado algum Fernando.</p> +</blockquote> + +<p>O filho de Pedro I era uma infeliz creatura, mal equilibrada nas suas +qualidades e defeitos. Não era, decerto, aquelle homem de que a nação carecia +para consolidar de um modo seguro a sua independencia; e n'um sentido póde +dizer-se que as condições em que se achou foram a causa dos males de que muito +soffreu. Faltava-lhe a firmeza necessaria para realisar os planos concebidos +por uma intelligencia perspicaz. Era inventivo, mas era chimerico. Media o +alcance dos actos e pensamentos, mas não sabia pesar o valor dos meios. O corpo +de leis que promulgou para fomentar a navegação e o commercio, honrarão +eternamente a sua intelligencia e a fina percepção com que via no +desenvolvimento maritimo o futuro da patria. A obra consideravel das +fortificações da capital (1377) concorre tambem a mostrar que reconhecia<span +class="pn"><a name="pag_129">{pg. 129}</a></span> a verdade—cruamente por elle +aprendida—de que Portugal era já, e seria sempre Lisboa. Accusam-no modernos +sabios de ter defraudado a moeda: mas que outro remedio havia então contra a +penuria do thesouro? que outros exemplos davam os demais principes? que outro +exemplo damos nós ainda hoje, quando, para não cercear o peso ou diminuir o +toque do ouro, cunhamos papel?—Accusam-no porque <em>hordenou almotaçaria em +todallas cousas</em> (1375): e que outro remedio havia, na curta sciencia do +tempo, contra os monopolios e agiotagens, mais funestos na paz do que as +batalhas dos tempos de guerra? Tarifar os generos e os salarios foi medida +applaudida quasi até nossos dias; obrigar os detentores á venda dos cereaes, +determinar a partilha dos grãos, foram actos de salvação publica repetidos +ainda depois de D. Fernando, e sempre que uma crise obriga a suspender as +garantias, ou justiça civil. Mas o rei que cerceava as moedas e ordenava a +almotaçaria em todas as cousas, era o que fundava a marinha mercante nacional: +era o que, olhando para o mar, não se esquecia da terra, obrigando os +proprietarios dos maninhos alemtejanos a cultival-os, ou a aforal-os. A +administração de D. Fernando é um cesarismo. O desenvolvimento politico e +economico da nação chegava a um momento de crise organica traduzida por uma +crise militar e dynastica. A população e a riqueza tinham crescido de um modo +notavel desde que, havia mais de um seculo, terminára a reconquista do +territorio aos musulmanos. O censo que annos depois se fez (1417) dá ao reino +4:800 besteiros de conto, ao Porto 8:500 habitantes, e a Lisboa 63:750. +Pullulavam enxames de aldeias e casaes pelos campos agricultados, e muitas +villas que depois definharam eram ainda importantes:<span class="pn"><a +name="pag_130">{pg. 130}</a></span> Sines, Cezimbra e Mertola. Algumas cidades eram +muito maiores do que são hoje: Evora e Beja, Santarem, Thomar, Leiria. D. +Fernando herdou o reino robusto e forte.</p> + +<p>Mas o pobre rei, tão bom e tão sagaz, tinha porém um fraco, que estragava +tudo: era doido por mulheres. Singular na edade-média, a pessoa de D. Fernando +parece estar no fim de uma epocha historica, como um indicio e um typo mal +esboçado de futuros personagens. Superior na intelligencia, acaso por isso +mesmo era desmandado no modo de proceder. Talvez lhe conviesse o nome de +sceptico, especie moral que o desenvolvimento da inteligencia, sem o +desenvolvimento parallelo da vontade, ou do caracter, faz tão commum em nossos +dias. Para Cesar, D. Fernando era, porém, bondoso de mais: tinha um fundo de +sinceridade que o perdia, porque á indifferença não reunia o cynismo. Era, no +fundo, um pobre homem de talento. Este genero de individuos é sempre +sympathico; e por isso o povo, embora chegasse a mofar, nunca o odiou. As suas +fraquezas, prazeres e amores sempre foram criticados com benevolencia. O povo +sabia que no fundo o caracter do rei não era perverso. Não o podia respeitar +nem temer, mas sorria-se amigavelmente das suas extravagancias. Era o filho +prodigo da nação.</p> + +<p>Ás suas qualidades e vicios sympathicos reunia o ser formoso, agil, +cavalleiro como os bons, caridoso, affavel, «gran criador de fidalgos e muito +companheiro com elles, cavalgante, torneador, grande justador e lançador +atavolado»—o jogo era uma das basofias do fidalgo medieval—dadivoso para com +todos, e grande agasalhador de estrangeiros. A toda a gente queria bem, mas de +um modo familiar e singelo, que não infundia respeito.<span class="pn"><a +name="pag_131">{pg. 131}</a></span> Os reis de fóra, sabendo-o tão singularmente +bom e simples, riam-se d'elle.</p> + +<p>Era um infeliz, no sentido que a expressão tem popularmente em castelhano. +Dava tudo pela caça: uma paixão desenfreada. Só falcoeiros de besta contava +quarenta e cinco, e não estava satisfeito: queria povoar com elles uma rua +inteira em Santarem. Quando mandava por aves, nunca lhe trouxessem para menos +de cincoenta, entre açores e falcões, gerifaltes e negris, todas +<em>primas</em>. Tinha um regimento de mouros para apresarem as garças e outras +aves, que iam buscar a caça nas lagôas. Não perdoava sequer os innocentes +pombos. Eram ás legiões as matilhas de cães para coelhos, rapozas e lebres. +Correr lebres ou atirar aos pombos era o seu <em>grande sabor e +desenfadamento</em>. O do seu avô Henriques fôra correr mouros e atirar ás +ameias dos castellos: os tempos, os temperamentos, eram já inteiramente +diversos.</p> + +<p>Ainda assim, não era a caça que perdia o rei. Namorado sempre e mulherengo, +«amador de mulheres o achegador a ellas,» diz F. Lopes, tinha um feitio terno, +<em>amavioso</em>. A carnalidade arrastava-o aos maiores excessos, e é provavel +que tivesse vicios ingenuos. Sua irman solteira, a infanta D. Beatriz, fôra +cinco vezes offerecida, outras tantas recusada, a diversos principes, nas +varias combinações politicas que a sua fertil imaginação creava, e que a sua +indolencia invencivel punha logo de parte. A côrte d'essa irman era um viveiro +de donas, onde o rei permanentemente satisfazia os seus gostos mulherengos. Foi +n'essa côrte que viu e se perdeu de amores por Leonor Telles. Parece, comtudo, +que antes d'isso não amava; porque é proprio dos temperamentos, como era o do +rei, não ter paixões. A sua delicia era o gozar indolente<span class="pn"><a +name="pag_132">{pg. 132}</a></span> dos carinhos e meiguices das mulheres, não era +amar. Não é provavel, pois, «a suspeita deshonesta que alguns tinham da +virgindade da infanta ser por elle minguada.» Bastavam ao rei «os jogos e +fallas tão a meude misturadas com beijos e abraços e outros desenfados de +similhante preço.» Só aos fortes corações é dado amar e enlouquecer. D. +Fernando não tinha essa virilidade de caracter. Distincto, perspicaz, engenhoso +de espirito, bom, affavel de genio, faltavam-lhe o valor que faz os homens, e a +vontade que faz os reis. Era uma indolencia formada de espirito e sensualidade; +uma creatura romantica e sympathica; uma mulher, fraca e intelligente, sentada +no throno. Leonor Telles conquistou-o, porque tinha o genio de um Homem; e o +segredo d'essa alliança tenaz não está n'uma paixão do rei, está na inversão +das pessoas e dos sexos. Ella fez-se rei; elle tornou-se a amante, passiva, +indolente, sensual.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>O tempo de D. Fernando foi uma serie de guerras com o visinho reino de +Castella. As muitas desgraças d'essas emprezas loucas tiveram de bom o affirmar +de um modo terminante a independencia formal e positiva da nação, como sáe da +batalha de Aljubarrota. Á maneira de certas enfermidades agudas, quando atacam +o homem de temperamento indeciso e constituição debil, na edade em que attinge +a virilidade, e determinam uma revolução organica, fixando e consolidando a +saude—assim as guerras castelhanas de D. Fernando. são, para Portugal, uma +crise. O seu destino vacillante, os seus orgãos esboçados apenas, soffrem a +prova de uma commoção violenta. Acordam outra<span class="pn"><a +name="pag_133">{pg. 133}</a></span> vez as tentações antigas, já anachronicas, da +conquista da Galliza; o reino é mais de uma vez invadido; a miseria, a ruina, +as devastações e a penuria affligem, como uma febre ardente, o corpo da nação. +Falta decerto um rei que a dirija, um homem forte que a represente e guie; mas +isso mesmo concorre para caracterisar a crise, demonstrando que a vitalidade +collectiva existia já, e não provinha apenas da imposição forte de um braço +guerreiro. Em dois seculos Portugal tornara-se de um amalgama de populações +ruraes, cuja unidade estava apenas no genio dos seus barões, em um organismo, +cuja consciencia de uma vida collectiva era real e definida. Tal é, a nosso +vêr, o merecimento d'essa revolução nacional, cujo supposto chefe, o Mestre de +Aviz, é mais o instrumento do que o heroe.</p> + +<p>Não precipitemos, porém, a narrativa.</p> + +<p>D. Fernando julgára convir-lhe apoiar a usurpação do throno de Castella por +Henrique de Trastamara, quando o poder do rei D. Pedro ainda chegava para bater +o rival em Najera. Depois que o usurpador, voltando de França com o auxilio de +Duguesclin, consegue desthronar o rei perdido, D. Fernando julga conveniente +alliar-se ao do Aragão e ao mouro de Granada, contra o Trastamara victorioso. +Formára o chimerico plano de bater o vencedor com o partido vencido que o +invocava; esperando sentar-se no bello throno de Castella, de que promettia um +retalho ao aragonez, outro ao granadino. A empreza não destoava dos +antecedentes historicos; porque o regime politico da Hespanha, retalhada em +varias monarchias, era um systema de conquistas successivas de reinos. Era, +porém, chimerica por dous motivos, um ignorado então, outro evidente: a +incapacidade do rei, e o<span class="pn"><a name="pag_134">{pg. 134}</a></span> +destino que marcava á Hespanha a solução unitária. Se Portugal pôde escapar aos +preceitos d'esse fado, deveu-o ao movimento que, por lhe dar Lisboa, fazia +d'elle uma nação cosmopolita, commercial e maritima, e não propriamente +hespanhola: outra Hollanda, no corpo de outra Allemanha<a name="tex2html52" +href="#foot1189"><sup>[52]</sup></a>.</p> + +<p>A politica de D. Fernando era, pois, historicamente insensata, falta que +seria absurdo irrogar ao rei; mas era tambem pessoalmente absurda, porque os +seus planos eram chimeras, tão breve nascidas como abandonadas. Haveria no +espirito do rei o pensamento, mais ou menos definido, de se substituir ao +castelhano na obra da unificação politica dos Estados peninsulares? Nada +authorisa a suppol-o; e até porque tal pensamento não estava ainda cabalmente +definido para os monarchas de Castella.</p> + +<p>O facto é que D. Fernando declarou a guerra e abriu a campanha, invadindo a +Galliza (1369); «mas sua ida foi de tal guisa que mais sua honra fora não ir +alla dessa vegada.» Muitos barões gallegos correram a recebel-o, a acclamal-o. +Tradições de outras eras? Ambições, ainda vivas, de uma independencia, que mais +de uma vez tinham considerado solidaria com a soberania de Portugal? É +provavel; mas é tambem certo que a rapina era o motivo immediato da adhesão, +porque «muytos vinham-se a ele e pediam-lhe os bees dos que se iam para D. +Henrique, o que era dado ledamente.» O inimigo, de Castella, fazia outro tanto. +O conde Andeiro foi o mais caloroso dos partidarios gallegos de D. Fernando. +Saíu ao encontro do rei, alvoroçado, a gritar: «Hu vem aqui meu senhor Elrey D. +Fernando?» E o rei, esporeando<span class="pn"><a +name="pag_135">{pg. 135}</a></span> o cavallo, radioso e feliz por uma tão facil +conquista, vendo-se já sentado no throno de Castella, avançou, respondendo: «Eu +som! eu som!» A invasão tornava-se um passeio até á Corunha; mas pouco +adivinhavam ambos, o conde e o rei, quanto haviam de pagar caro os prazeres +desses dias breves.</p> + +<p>O castelhano corre sobre a Galliza, e D. Fernando foge a esconder-se em +Coimbra. A resaca assoladora vem até Braga e Guimarães, atravez de todo o +Minho. A provincia inteira gritava por soccorro: Aqui d'el-rei, contra o +castelhano!—O rei, indeciso, indolente, esperava a realisação da sua +chimera:—não é mister batalhar; Castella inteira vem entregar-se, como se +entregára, de braços abertos, a Galliza!—Passeava-se, entretanto, com o +exercito, entre Santarem e Lisboa. Ia, vinha, avançava e retrocedia, tão tonto +que já o povo da capital ria d'esses passeios: <em>exvollo vae, exvollo +vem!</em><a name="tex2html53" href="#foot1190"><sup>[53]</sup></a></p> + +<p>Afinal em Coimbra—cidade funesta aos dois Fernandos<a name="tex2html54" +href="#foot1191"><sup>[54]</sup></a>—decidiu-se a acudir ao Minho, quando o +rei de Castella, depois de assolar tudo, tinha já partido para além da +fronteira. Pela raia, porém, o batalhar continuava, e tambem na costa<span +class="pn"><a name="pag_136">{pg. 136}</a></span> andaluza o bloqueio maritimo: já +Portugal tinha armadas. Mas a guerra dilatava-se; e Castella, decididamente, +não o chamava para seu rei. Começou a <em>assentar-se del a covardice</em>, +abandonou os alliados; e aborrecido e desilludido por esta vez, assignou as +pazes de Alcoutim.</p> + +<p>A sua chimera só, porém, o deixou quieto por tres annos.</p> + +<p>D. Pedro tinha morrido em Montiel, assassinado ás mãos de Trastamara (1369); +a filha mais velha do defunto era casada com o duque João de Lencastre, da casa +de Inglaterra: d'ahi vinham as pretenções d'este á corôa castelhana e o bravo +duello que a Inglaterra e a França debateram na Hespanha por muitos annos. A +influencia franceza era dominante em Castella; e para logo, nas successivas e +ulteriores convulsões, a alliança ingleza venceu em Portugal. D. Fernando, ou +movido pelo desejo de desforra, ou pensando ainda nas suas velhas ambições, e +esperando ludibriar o alliado, assigna em Braga (1372) o tratado de alliança +com o inglez, contra o castelhano. Henrique de Trastamara, em cuja côrte +andavam diversos fidalgos portuguezes, como os gallegos da invasão anterior +andavam com D. Fernando, manda Pacheco (o terceiro assassino de D. Ignez de +Castro) vêr se effectivamente o rei se dispunha á guerra. Era tão voluvel o seu +caracter, que o castellão não acreditava ainda. Voltou Pacheco: sem duvida o +rei estava disposto a entrar em campanha. Então D. Henrique, com bondade, lhe +pede que abandone essa chimera, e insta pela paz. Elle, excitado pelas +<em>hespanholadas</em> de Affonso Tello, suppõe que a fraqueza era o motivo da +insistencia. Inuteis as observações, o rei de Castella prefere invadir a ser +invadido; e rapidamente entra pela Beira (1372),<span class="pn"><a +name="pag_137">{pg. 137}</a></span> cáe sobre Lisboa, cujo cêrco uma esquadra, ao +mesmo tempo partida de Sevilha, encerra por mar (1373).</p> + +<p>Que fazia D. Fernando? Do alto dos muros de Santarem, onde se fechára, via +passar o exercito inimigo, sem ousar mover-se. Dois motivos lh'o impediam. +Esperava a toda a hora o soccorro do inglez; e se o fructo d'essa guerra lhe +era destinado a elle, bom seria que em pessoa o disputasse. Deixar, porém, +invadir assim o reino, pôr cêrco á capital, abandonar o povo, abandonar Lisboa, +era vergonhoso, decerto. Mas se n'esses dias Leonor Telles, enferma, estava de +cama, com as dôres do parto? Como havia de o pobre rei acudir aos dois deveres? +A quem obedecer primeiro: ao tyranno politico, a corôa, ou ao domestico, a +rainha? Como todos os fracos, decidiu-se pelo mais proximo; tapou os ouvidos +aos clamores da nação, para attender só aos ais da enferma. Não era por paixão +que o fazia, era por indolencia: sempre esperava que Lisboa afinal havia de +resistir, e saberia defender-se!</p> + +<p>Com effeito, não se enganava. A cidade valia muito mais do que o rei. Quando +viu approximar-se o castelhano, chegou a ser temeraria; porque pretendeu +defender com barricadas os arrabaldes, fóra dos muros. Lisboa tinha a +homogeneidade na resistencia; e em vão D. Diniz (o infante que por condemnar o +casamento de Leonor Telles fugira para Castella), em vão Pacheco e os mais +portuguezes de D. Henrique buscavam convencer os lisbonenses da vantagem da +rendição. Não estamos agora no norte, meio gallego, onde a idéa de +nacionalidade vogava indecisa nos dois lados do Minho: estamos no coração do +paiz, e n'uma terra sem tradições leonezas, que não foi <em>separada</em>, +que<span class="pn"><a name="pag_138">{pg. 138}</a></span> nunca obedeceu a outro +rei mais do que ao portuguez, a quem deve o que é. Inuteis as tentativas de D. +Diniz, de Pacheco, e dos mais, o exercito approximou-se. Viu-se então a +temeridade de defender os arrabaldes; e á pressa, recolheram-se todos para +dentro dos muros. O enxame acudia ás portas, correndo curvado com o peso das +trouxas, das arcas, onde salvára o que tinha mais precioso. Vinham as familias +em grupos, as mães, carpindo, arrastando os cordões de creanças, espantadas de +tudo aquillo. Já os castelhanos entravam pelos casaes e quintas dos arredores: +o lume ardia ainda na lareira, a porta estava aberta, os quartos vasios. +Arrazaram e queimaram tudo, desde as hervas até aos telhados.</p> + +<p>No rei assentára outra vez a covardice: e, como o inglez não acudia, +acceitou a paz, e foi de Santarem a Vallada assignal-a (1373). «Quanto eu +<em>haarricado</em> venho!» dizia a rir, na volta. Effectivamente não queria +mal algum a D. Henrique; e, se a empreza falhára, o melhor era fazer cara +alegre, e acabar por uma vez com o muito que, do cêrco, padecia Lisboa. Além +d'isso, agradára-lhe o trato do inimigo: agradára-lhe tanto, que lhe concedeu a +irman, D. Beatriz, para casar com o irmão do castelhano, Sancho. Triste destino +o d'esta princeza, que era, nas mãos do rei, como os joguetes que as creanças +dão, tiram, voltam a dar, ao sabor do seu capricho infantil!</p> + +<p>Este mesmo modo de que usava com a irman, estava reservado á filha: a outra +Beatriz nascida em Santarem durante a invasão precedente. Henrique de +Trastamara tinha morrido; e o herdeiro, João I, na idéa de reunir as duas +corôas de Castella e Portugal, pedira a D. Fernando (que não tinha outro filho) +a mão da pequena D. Beatriz;<span class="pn"><a name="pag_139">{pg. 139}</a></span> +ao que este annuira, celebrando-se tratados, porque para casamento era cedo +ainda: a pequena teria oito annos, se tanto.</p> + +<p>Mas o rei, diz o chronista, trazia sempre sua fala com os inglezes, o mais +encobertamente que podia. Que falas eram essas? Era a alliança de Lencaster, na +qual D. Fernando via talvez ainda luzir a possibilidade de realisar a sua +chimera. O conde Andeiro, que na primeira guerra abrira a Galliza ao portuguez, +fôra desterrado para Inglaterra, na occasião de Alcoutim, por exigencia do +castelhano. Era Andeiro o confidente do rei, e o seu agente para com Lencaster. +Veiu de Inglaterra, escondido, a Extremoz, onde o rei, ao tempo, assistia: +trazia novos tratos e combinações, com a promessa de uma esquadra. O rei +acceitou com facilidade, e afiançou ao duque inglez a mão da filha promettida +ao de Castella.</p> + +<p>D'esta vez decidiu-se a proceder com energia. O castelhano, porém, já +conhecedor de tudo, mandára começar as escaramuças pelas fronteiras de entre +Tejo e Guadiana, theatro das façanhas de Nunalvares (o futuro condestavel, que +agora começa a sua epopêa) em quanto dispunha o grosso das forças para a +campanha de Lisboa. A energia do portuguez consistiu em enviar a esquadra a +Sevilha destruir a inimiga. Com effeito, em quanto mandasse no Tejo, Lisboa não +podia ser efficazmente cercada. Mas a <em>sandia presumpção</em> de Affonso +Tello perdeu a esquadra em Saltes (1381). A armada castelhana, victoriosa, +entrou no Tejo, trazendo a bordo o infante D. João, irmão do rei, filho de D. +Pedro o crú, que se homisiára de cá por ter assassinado a mulher, Maria Telles, +irman de Leonor. Tambem lhe tinham acenado com a mão da pequena D. Beatriz, e a +ambição perdera-o! D. João<span class="pn"><a name="pag_140">{pg. 140}</a></span> +repete as palavras de D. Diniz na campanha precedente; mas é recebido a tiro, o +infeliz. As surriadas de trons e virotões exprimiram a eloquencia independente +de Lisboa; e o infante, humilhado, levou para Castella o desmentido formal a +todas as sedições que annunciára e promettera.</p> + +<p>Chegou, afinal, por mar o Lencaster com os seus, trazendo novo alimento á +guerra, já accesa por todo o Alemtejo. Castella declarára-se pelo papa de +Avinhão, Clemente <small>VII</small>: os inglezes e o rei D. Fernando +pronunciam-se pelo papa de Roma. Urbano <small>VI</small>. A religião vinha +azedar ainda mais os odios dos combatentes. E os inglezes do duque, mercenarios +o barbaros do Norte duro, lançaram-se a este pedaço do Meio-dia, como lebreus +famintos a um regabofe. Estas gentes dos inglezes, refere o chronista, não +vinham como a defender a terra, mas para a destruir e buscar todo o mal, +matando, roubando e forçando mulheres. Nem se limitavam a tão pouco. De uma +guerra que lhes era indifferente, nas causas e motivos, entre povos inimigos +que não distinguiam, inimigos eram para elles todos, e cevar-se o seu constante +proposito. Guerreavam por conta propria, para saquearem. Tomam aos portuguezes +Monsarás, o Redondo e Evora; e as populações, por fim desesperadas, acodem-se +ao processo classicamente peninsular das surprezas e assassinatos. «As gentes +começaram a matar muitos d'elles escusamente», a ponto de que mais de um terço +ficou enterrado pelos campos e aldeias do Alemtejo. Na extraordinaria confusão +em que a indolencia e as chimeras do rei punham o paiz, já cada um combatia por +si proprio, com o proposito unico da defeza nacional.</p> + +<p>Se os inglezes deixaram em volta do Tejo alguma cousa a roubar, ou algum +campo a queimar, os<span class="pn"><a name="pag_141">{pg. 141}</a></span> +castelhanos da esquadra, desembarcando, quando o exercito anglo-luso tinha +subido para Evora a encontrar o inimigo, acabaram a obra destruidora n'uma +razzia monumental, a que não escapou eira nem beira, nem arvore, nem cousa +viva. Em volta das muralhas de Lisboa ficou tudo um deserto morno e secco.</p> + +<p>Pela terceira vez assentou no rei a covardice; e sem combater, voltando as +costas ao inglez logrado, assignou as pazes de Badajoz com o castelhano (1381). +De novo a pequena infanta D. Beatriz torna a ser promettida a outro noivo: +Fernando, de Castella, que não vem ainda, comtudo, a ser seu marido; porque, ao +voltar para casa, o rei João, enviuvando, teima no antigo plano da fusão dos +reinos. O casamento da filha com o valetudinario monarcha visinho, é o ultimo e +o mais insensato dos actos de D. Fernando. Extinguia-se com elle a dynastia; e +por herança legava, do leito da morte, a independencia em perigo ao povo que, +apesar de tão dorido, ainda e sempre lhe queria.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Fôra no viveiro feminino da côrte da irman que o rei Fernando vira Leonor +Telles. Era a terceira Leonor que escolhia para companheira, e foi, +desastradamente, a unica que veiu a ter. A primeira, de Aragão, recusou-lh'a o +perspicaz pae, por vêr quanto era defeituoso e fraco o caracter do promettido +genro. A segunda, de Castella, repudiou-a, desde que viu e se namorou da +terceira.</p> + +<p>Maria Telles, irman de Leonor, era aia da infanta D. Beatriz. Leonor, +casada, vivia no seu solar da Beira. Estava em Lisboa, de passagem, a +visitar<span class="pn"><a name="pag_142">{pg. 142}</a></span> a irman, quando o +rei a viu. Como começaram esses amores? Os antecedentes do rei e o caracter da +futura rainha deixam vêr bem que não deveu ter havido uma d'estas paixões +fulminantes, communs nos homens d'armas, mas de que D. Fernando era incapaz, e +Leonor Telles tambem.</p> + +<p>A fria ambição calculadora era commum ás duas irmãs. A aia da infanta, por +quem o infeliz e louco D. João se namorára com paixão, preparára-lhe +cuidadosamente uma entrevista, á noute, no seu quarto. Quando o infante chega, +soffrego de amor, vê um altar e um padre diante do leito. Casemo-nos primeiro, +amaremos depois. O infante, coacto pela paixão, casou-se para amar; mas a aia +pagou mais tarde, com a vida, o erro de brincar com um leão, como so fôra um +rafeiro.</p> + +<p>Leonor Telles tinha em si o saber sufficiente para ensinar: não carecia das +lições da irman. Percebeu que o rei, nas suas ligeirices, a preferia á propria +infanta; mas o papel de amante não lhe convinha: queria o de rainha. Foi-se +deixando ficar, e acirrava com tentações a inclinação do monarcha sensual e +passivo. «Era louçan, aposta, e de bom corpo». D. Fernando costumou-se ás +denguices da sereia: nos fracos, o costume gera necessidades imperiosas, a que +tudo sacrificam. Com o tempo, a idéa de que Leonor era casada, naturalmente a +insistencia com que ella, séria e affectando decóro, falaria na necessidade de +voltar para casa, para o marido, fizeram sentir ao rei a impossibilidade de +quebrar o habito dos seus amores innocentes e molles. A indolencia é muito mais +teimosa nas suas exigencias do que a força; um habito sensual tem maior +tenacidade do que uma paixão. Leonor Telles devia saber isto perfeitamente. O +momento decisivo approximava-se: não podia continuar<span class="pn"><a +name="pag_143">{pg. 143}</a></span> por mais tempo em Lisboa, o marido chamava-a, +as más linguas podiam falar...</p> + +<p>O rei lembrou-se então de que para alguma cousa lhe podia servir sel-o: +desmancharia esse casamento, porque uma dama tão senhoril e casta não podia ser +sua amante. D. Fernando não tinha, o ingenuo, nem ponta de cynismo. Falou +seriamente, em particular, á irman. Mulheril como era, este caso tinha maior +gravidade do que uma guerra com Castella, pelo repudio da princeza que lhe +estava promettida nos tratados de Alcoutim. «Melhor fizera elrey, dizia o povo, +tel-a por tempo e depois casar com outra mulher.» Bons conselhos! para quem +vivia todo na atmosphera feminina e molle da côrte de D. Beatriz, onde Maria +Telles reinava. Como se Maria, Leonor, não fossem excellentes senhoras, +recatadas, mas seductoras na sua terna dignidade!</p> + +<p>Maria poz por condição o casamento; Leonor Telles concordou em que muito +queria ao rei, mas ainda mais ao seu nome. Combinaram tudo em segredo, e foram, +ás escondidas, ao norte, casar-se (1371) a Leça do Bailio, junto ao Porto. +Tinham, com effeito, medo de Lisboa. Quando regressaram á côrte e os rumores se +confirmaram, as opiniões moveram-se na capital. O commum das gentes accusava o +rei com odios apaixonados; mas não faltavam os experientes a observar +placidamente, «que não era maravilha; já a outros acontecera cousa semelhante; +todo o homem namorado tinha uma especie de sandice; o amor era como dôr que doe +e não doe ao mesmo tempo». Muita gente se ria do marido infeliz que +sensatamente fugira para Castella, e para prevenir os motejos mandára pôr no +barrete dois cornos de ouro em fórma de plumas; muitos notavam a facilidade com +que o papa fazia<span class="pn"><a name="pag_144">{pg. 144}</a></span> e desfazia +casamentos; e esta cumplicidade da religião e do amor não augmentava em nada o +respeito pela Egreja. Em summa, desde que o riso entrava na questão, o odio do +povo não era muito; e Lisboa esperava para ver o resultado d'essa comedia, e +tomar o pulso ao caracter da rainha. Ninguem sabia ainda de quantas manhas elle +era formado.</p> + +<p>Mas nem em todos a longanimidade era tão grande; e uma parte da plebe +decidiu-se a pedir contas, a reclamar garantias, e até a protestar. Esses +adivinhavam a perversidade da rainha. No rei assentou a covardice, e Leonor +Telles não podia ainda contar com partido proprio. Fugiram, pois, ás +escondidas, para Santarem: e o povo, burlado, ficou em vão esperando o rei no +atrio de S. Domingos, para onde o comicio fôra aprazado. Pelo caminho, na fuga, +o rei carinhoso observava: «Olha aquelles villões traidores, como se juntavam: +prendiam-me certamente, se lá vou.» E não podia esconder o susto, +conchegando-se ao collo da rainha, no seio d'uma inclinação protectora. Leonor +Telles sorria, calada. Era rainha, mas apupada: o plano da vingança +acordava-lhe no animo, e tambem o desdem por esse pobre rei, perdido e fraco. +</p> + +<p>Este primeiro acto da nova rainha foi decerto o seu primeiro erro. Desde +logo, até os mais indulgentes viram que não havia remedio; e o partido dos seus +inimigos cresceu em numero e ganhou forças e atrevimento. Ella prejudicára os +seus planos por um acto precipitado; e todos os esforços que empenhava em +ganhar sympathias eram vãos. «Era mui grada e liberal a quaesquer que lhe +pediam, mas quanto fazia tudo damnava; e a sua caridade e as suas manhas não +podiam encobrir os seus deshonestos feitos.»<span class="pn"><a +name="pag_145">{pg. 145}</a></span></p> + +<p>Com effeito, a rainha nem melhorava a fraqueza do rei, nem o afastava das +suas loucuras e emprezas perdidas; e por sobre isto era reconhecidamente má. +Accusavam-na de ter preparado o assassinato da irman pelo infante seu marido; e +era publico que, no meio da agitação da terceira guerra castelhana, tentára +matar o Mestre de Aviz, forjando para tanto um falso alvará. O povo já a +descrevia como uma féra sangrenta; e o povo sabia quantos odios comprimidos +ella guardava contra essa Lisboa miseravel que a insultava e a apupava. Toda a +gente se sentia offendida, humilhada, com a humilhação do pobre rei. Contava-se +como era com elle ousada e faladora; e como el-rei, submisso e indolente, +curvava a cabeça e se calava. Era uma desgraça que entrára no palacio. Depois, +além de cruel, sanguinaria, e descomposta no modo, era de uma deshonestidade +publica. Todos sabiam que nas barbas do marido tinha o amante no paço. E o +pobre rei não desconfiava, na sua cegueira. Quando o Andeiro viera de +Inglaterra, escondido, com os tratos de Lencaster, el-rei recolheu-o na torre +do seu paço de Extremoz. A sala da sesta era o quarto do conde; e o rei ia-se, +e a rainha vinha passar horas esquecidas a sós com o amante. O rei, como homem +de são coração, não via o que escandalisava a todos. Pouco se lhe dava d'isso a +ella, chegando a fazer gala dos seus desvarios. O adulterio e a crueldade, o +prazer e o sangue, alliavam-se bem n'esse genio perverso, mas intelligente e +altivo, tão desdenhoso como impudico. Queria firmar sobre o odio uma força que +não pudera conquistar pelo amor. Repellida, accusada, escarnecida por um povo, +para quem talvez quiz ser boa, decidiu impôr-se-lhe pelo desabrido do odio e +pelo desplante do comportamento.<span class="pn"><a +name="pag_146">{pg. 146}</a></span> Vingava-se á maneira antiga, como uma +Cleópatra.</p> + +<p>No outomno de 1383 falleceu D. Fernando; e logo que a tampa caiu sobre o +caixão do defunto, rebentou a revolução.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A revolução de 1383-5 tem um caracter de um Juizo-de-Deus. A dynastia +mentira ao papel justiceiro: morra por ello! Por uma serie de extravagancias +domesticas e politicas, D. Fernando levára a uma crise a obra lenta e demorada +da independencia nacional, iniciada com uma espada por Affonso Henriques, +assegurada com um açoite por Pedro o crú. É verdade que não deixára de fomentar +a consistencia material interna do corpo da nação; mas de que valia isso, pois +que a deixava outra vez a braços com o problema vital da successão, o problema +da independencia?</p> + +<p>Logo que o rei morreu, os differentes actores da tragedia começaram a tomar +os seus logares na scena.</p> + +<p>O castelhano immediatamente encarcera em Toledo o infante D. João, o mais +perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido perante o povo +pela nodoa do ataque de Lisboa, na esquadra inimiga.</p> + +<p>A rainha viuva, julgando o momento opportuno para conquistar sympathias, +representa uma scena de prantos. Abandonára por um instante a sua politica de +vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o respeito, ou o +amor dos seus. Ella não queria entregar o reino a Castella: queria que a filha +fosse acclamada rainha, e ella, como regente, rei de facto. Talvez pensasse em +casar-se com o Andeiro, a quem parece amava do coração:<span class="pn"><a +name="pag_147">{pg. 147}</a></span> seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por +ser a causa da sua perdição?</p> + +<p>Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, «fingia-se mui +desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma camara escura, coberta de dó, +com lagrimas e soluços—que ás mulheres não faltam quando lhes servem—se +lamentava, com as visitas, do seu desamparo, queixando-se do governo que o rei +déra ao reino, agora pobre e infeliz.» <small class="SMALL">(Fernão +Lopes)</small> Na sua dôr, na boa vontade que tem de servir a nação (para que +ella a não expulse do throno) está por tudo. Com effeito, a morte do marido +punha-a á mercê da vontade do povo. «Era em tudo obedecida, assim dos povos +como dos grandes; mas bem via que essa obediencia nada tinha de pessoal, porque +ninguem a amava, nem a respeitava. De um momento para outro podia perder tudo. +Os de Lisboa queriam que se constituisse um conselho de governo composto de +dois homens-bons de cada comarca: annuiu a essa tutela. Quando fôra a +acclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observára os tumultos +geraes e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a acclamação provocára +rixas e conflictos; muita gente era pelo infante D. João ou pelo infante D. +Diniz, que andavam por Castella; outros gritavam: <em>Arreal, arreal, cujo for +o reino, leval-o-há!</em> Em Santarem o infante D. João foi positivamente +acclamado. Elvas, para não se decidir, no meio de tanta confusão, gritou: +<em>Arreal, arreal, por Portugal!</em></p> + +<p>Esse era effectivamente o grito da nação: por Portugal! Ninguem se +recommendava bastante, no animo do povo, para merecer uma corôa disponivel, +para se sentar n'um throno vago. O que Portugal não queria, era que n'esse +throno viesse sentar-se<span class="pn"><a name="pag_148">{pg. 148}</a></span> o +castelhano. A rainha não o queria tampouco; e era toda esforços para ganhar a +si o povo, para herdar de facto o reino. Organisada a regencia, pensou desde +logo na guerra; porque o rei de Castella já se preparava para vir occupar +Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao Mestre de Aviz a zona de +entre Tejo e Guadiana.</p> + +<p>Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam: Nunalvares e Alvaro +Paes. O primeiro é a mais nobre, a mais bella figura que a Edade-média +portugueza nos deixou. O typo cristallisado nos romances, o typo do +cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro condestavel. +«Usava muito de ouvir e lêr livros de historias, e especialmente usava mais lêr +a historia de Galaaz, em que se continha a somma da tavola redonda.» Tinha a +nobreza ideal do cavalleiro, e a castidade de um mystico. Era uma açucena na +alma, e um leão na bravura e na generosidade. Resistira por muito tempo ao pae +que o queria casar, porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o +coração. Por tudo isto, a infamia da rainha abraçada ao amante, e as lagrimas +fingidas pelo marido, córavam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação. +Nunca a obra indispensavel de salvar Portugal podia levar-se a cabo com tal +mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos, «Um dia, passeando só +no paço, a cuidar no que havia de ser do reino», occorreu-lhe a idéa de que só +a morte do Andeiro podia pôr termo ás desgraças publicas.</p> + +<p>O cavalleiro tinha então 24 annos; e esse rapaz, typo ingenuo e puro de +virtude, é a imagem de uma nação, tambem joven, e ainda crente n'um futuro +proximo. Á indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria e o calculo +experiente de Alvaro<span class="pn"><a name="pag_149">{pg. 149}</a></span> Paes, +padrasto do futuro grão-doctor. Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para +perder a rainha.—Era verdadeiramente o juizo de Deus, cuja sentença, logo que +fosse publica, seria acclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de +Aviz Alvaro Paes em Lisboa. Falava por sua bocca a cidade que Leonor Telles +tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o author do +plano do dia 6 de dezembro (1383) na fundação de uma nova dynastia? Queria +acaso matar apenas o valido para aterrorisar a rainha; e entregal-a, assim, +manietada, ao poder de uma oligarchia urbana, em que Lisboa se arrogasse o +papel de defensora do reino, tendo á frente de um conselho de governo, com a +regente vilipendiada e coacta, o Mestre, homem simples, por instrumento e +chefe? Era um plano atrevido, mas mais de uma vez posto em pratica por diversas +cidades opulentas da Hespanha. Não contava, porém, Alvaro Paes, nem com a arte +que os annos desenvolveram no Mestre; nem com o generoso e nobre caracter de +Nunalvares; nem com a força invencivel dos futuros textos e doutrinas do +grão-doctor João das Regras.</p> + +<p>Combinado o programma do dia 6, Alvaro Paes abraçou e beijou o Mestre. +N'esse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: partia para a sua fronteira +do Alemtejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns fidalgos dos seus. A +rainha, surprehendida, interrogou-o.—A fronteira era muito <em>grossa</em>, +levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados, queria examinal-os...</p> + +<p>Leonor Telles estava então na sua camara, sentada no meio das suas damas, +costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o Andeiro, de corpo +bem disposto, <em>lustroso</em>, viril (40 annos),<span class="pn"><a +name="pag_150">{pg. 150}</a></span> vestindo, apesar do luto, um gibão de setim +cramesi e um tabardo de panno preto, sem o burel branco do estylo, falava manso +com ella. Era um quadro de familia, e tudo parecia sereno, menos o tom e o +aspecto do Mestre e dos seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na +mente um crime.</p> + +<p>A rainha, inquieta, mas simulando indifferença e sangue frio, chamou o +escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassallos da comarca: +Escolhesse o Mestre os que quizesse. O escrivão de pé, com o livro aberto, ia +lendo, indifferentemente <em>item</em>, <em>Dom</em>... etc, mas o Mestre não +lhe prestava grande attenção. Uns perante outros, os personagens da tragedia +adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o escrivão, no seu +tabardo negro, com a voz monotona, era sincero. Andeiro levantou-se, saíu a +outra sala, a avisar os seus sequazes: o que o Mestre vendo, receiou perder-se, +ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o comsigo para fóra. A rainha, no meio das +suas damas, sobre o estrado, costurava. O momento agudo da crise chegára: era +mistér consummar o acto. O Mestre empurra então o conde para o vão de uma +janella. Elle ia a fallar... «sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o +ouvir», deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia +defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do Mestre +acabou-o alli ás estocadas. Foi uma façanha arteiramente combinada, barbara e +cobardemente executada. Nunalvares, quando a mesma solução lhe occorrera, +pensou decerto n'um plano diverso.</p> + +<p>Consummado o assassinato, poz-se em scena a comedia do contra-regras, Alvaro +Paes. Foi mandado um pagem a gritar pelas ruas que acudissem<span class="pn"><a +name="pag_151">{pg. 151}</a></span> ao Mestre, que o matavam no paço. Entretanto, +dentro d'elle, era grande o alvoroço. Uns fugiam pelas janellas, outros pelos +telhados: todos corriam como doidos, cheios de susto, e se acotovellavam nos +corredores e entre as portas. A rainha levantando-se, ao ouvir que lhe tinham +matado o amante, rugiu de colera, como a fera a quem roubam os filhos: era a +sua cruel fraqueza! Viu tambem a sua vida em perigo, e por ventura n'este +momento desejou a morte<a name="tex2html55" +href="#foot1192"><sup>[55]</sup></a>. Animosa, mandou perguntar ao Mestre, que +n'um eirado do palacio, á vontade, descançava das commoções violentas, se +tambem a queria matar. Elle voltou, respeitosamente, que não. Era um homem +simples, costumado a vêr em Leonor Telles a mulher do rei: e por isso, além de +ser muito novo (26 annos), não se atrevia a tanto. Era fogoso, brutal, e de +instinctos pesados: um instrumento capaz de executar os planos manhosos do +Alvaro Paes, prompto para tudo, porque não distinguia bem a linha que separa a +nobreza da villania—como, de resto, succedia a quasi todos os homens d'armas +da Edade-média. Foram a revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez +d'elle na edade madura um sabio rei.</p> + +<p>Na rua, Alvaro Paes vinha a cavallo (por excepção rara, que era velho já e +pesado) á frente da procissão de energumenos, bradando por desvairadas +maneiras. A plebe, investindo com o palacio, quebrava os cancellos de ferro, +trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar tudo. Era uma +algazarra incrivel de improperios e nomes deshonestos, dirigidos á rainha. Já +de dentro havia medo de que o fogo pegasse, e que o fim da tragedia fosse um +incendio justiceiro. Extenuavam-se a<span class="pn"><a +name="pag_152">{pg. 152}</a></span> gritar que o Mestre estava vivo, Andeiro morto; +mas ninguem tinha ouvidos no meio do clamor da turba. Por fim, o Mestre de Aviz +appareceu a uma janella e foi victoriado: «Vinde para nós, gritavam-lhe, e dáe +ao démo esses paços!» Alli mesmo, ao pé do palacio, ficava a Sé; Era necessario +solemnisar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o ordenava; mas +os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que queriam d'elles: e por +esse crime foram precipitados á rua o bispo e mais dois: e os cadaveres, +arrastados ao Rocio, ahi ficaram para pasto dos caens.</p> + +<p>Tambem o Mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Alvaro Paes +comer socegadamente. O homem cumprira o que tinha promettido: e, á mesa, na +satisfação da victoria, instruiu o rapaz sobre o que lhe restava fazer: pedir +perdão á rainha, depois de jantar. Quem sabe? dir-lhe-hia elle, mastigando, +mais tarde... casar com ella... E o mestre, bastardo, pobre, ambicioso e +simples, via abrirem-se-lhe horisontes seductores.</p> + +<p>Com effeito, depois de jantar, o Mestre de Aviz foi ao paço e, de joelhos, +pediu perdão á rainha. Tamanha simplez encheu-a a ella de espanto. Estava +calada, não sabia que responder: e como o pobre insistia, ella, afinal com +desdem, voltou-lhe: Falemos de outras cousas... O Mestre saía desorientado e +corrido, atraz d'elle as suas guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de +chofre com o cadaver do conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho. +Não pôde mais conter-se; e o seu animo, perdido, rebentou em duras queixa: +«Enterrae-o ao menos, já que o mataste tão deshonradamente!» Elles não curaram +d'isso, nem se doeram do adverbio da rainha, e foram para suas pousadas. Era +tempo perdido.<span class="pn"><a name="pag_153">{pg. 153}</a></span></p> + +<p>Ao outro dia a rainha partiu para Alemquer—suffocada em odios contra +Lisboa: queria vel-a arrazada e queimada de mau fogo, queria uma tonelada de +linguas das suas mulheres. Queria uma vingança, uma desforra que désse brado ao +mundo. Que lhe importavam, á sua alma desvairada, a nação e a independencia? No +egoismo absoluto de uma paixão, esquecia tudo; e por isso mudou de rumo á sua +politica, e convidou o rei de Castella a vir tomar posse de Portugal. Perdia-se +irremediavelmente.</p> + +<p>Entretanto a maxima parte da nobreza acompanhava-a, e a fidalguia era então +o exercito. Uns não queriam pactuar com a revolta da plebe de Lisboa, nem +curvar a cerviz ao imperio de Alvaro Paes. Outros eram fieis á legitimidade da +regencia. O resto dos que não acompanhavam a rainha e grande parte das classes +médias eram pelo infante D. João, preso em Toledo. O plano de Alvaro Paes e o +partido do mestre de Aviz caiam tanto, que, desanimado, o ultimo decide-se a +abandonar a empreza e a fugir para Inglaterra—como fez depois o seu successor +na historia, o Prior do Crato. Poderam, porém, contel-o. Para que? Para o +decidirem a uma segunda vergonha. Eram incapazes de nenhuma grande audacia, de +nenhum plano temerario; e só um d'esses poderia dar a victoria. Não sentiam o +palpitar violento de uma nação forte que aspirava á vida. Os seus meios eram +mesquinhos, soezes e crueis. Conquistaram o castello em Lisboa, levando á +frente de si as mulheres e os filhos dos que o defendiam pelo infante D. João. +Angariavam sequazes, comprando-os a dinheiro, segundo a regra de Alvaro Paes: +<em>dae o que não é vosso, promettei o que não tendes, e perdoae a quem vos +errou.</em> A rapina e a impunidade<span class="pn"><a +name="pag_154">{pg. 154}</a></span> eram o alicerce da força do partido, já +ridiculamente alcunhado do <em>Mexias de Lisboa</em>. O segundo plano proposto, +para evitar a fuga do <em>Mexias</em>, era a antiga idéa commum e soez de +Alvaro Paes: casal-o com Leonor Telles. O Mestre accedeu; e propoz o caso á +rainha, que respondeu com uma gargalhada. Podia-se acaso descer mais? Não +podia.</p> + +<p>Quem faz, porém, os Messias é o povo. Valham pouco, valham nada, pouco +importa. São um lábaro, onde a turba escreve um moto. Vão, mas não guiam. +Portugal com effeito gerava uma revolução messianica; pedia em altos brados que +o salvassem; tinha a consciencia de que podia e havia de ser salvo. Esta força +latente e invencivel, era, porém, ignota para a simplez do Mestre e para o +lerdo instincto de Alvaro Paes. Andavam ambos como cégos em torno de um pharol, +sem o verem. Eram ambos como certos animaes das trevas, a quem a desnecessidade +priva de olhos.</p> + +<p>Para vêr e para sentir a gravidade do momento, para conceber a audacia da +revolução, era mistér, ou a ingenua candura dos fortes, ou a refinada sabedoria +dos mestres. O de Aviz teve a fortuna de encontrar dois homens que o fizeram +rei, e tornaram o seu titulo ridiculo de <em>Mexias</em>, no titulo verdadeiro +e forte de Defensor-do-reino, positivo messias da nação (1384).</p> + +<p>Termina o reinado de Alvaro Paes, desde que o futuro condestavel e o +grão-doctor tomam conta, um da guerra, outro da politica. Temerarias, audazes, +quasi loucas ambas, exprimem ambas a suprema sabedoria; porque traduzem o até +ahi indefinido querer do povo, e empregam os meios unicos de salvação. +Nunalvares faz de toda a fronteira o<span class="pn"><a +name="pag_155">{pg. 155}</a></span> theatro de incessantes campanhas, pouco ou nada +attende ás ordens do Defensor-do-reino, por vezes desobedece formalmente. Á +medida que o Mestre via o resultado das armas do nobre capitão, ia reconhecendo +a propria inferioridade; e a simplez natural do seu genio tinha de bom o +abrir-lhe os olhos á verdade. Nos actos alheios, aprendia a pesar os seus, +ganhando com isso a attitude de um moderador prudente. Era sábia a arte com que +ponderava os conflictos inevitaveis de Nunalvares com João das Regras: do +cavalleiro idealista e heroico, e do habil, consummado politico: do +representante ingenuo de douradas phantasias, com o frio calculador das cousas +positivas; do ultimo homem da Edade-média, com o primeiro do novo Portugal +monarchico. Entre ambos, o Mestre de Aviz era um pendulo regulador das duas +forças em opposição.</p> + +<p>A politica ia buscar outra vez as allianças inglezas, acordando a antiga +ambição castelhana da casa de Lencaster; e a guerra, ora terrivel em batalhas, +ora fidalga em reptos e duellos, ia acordar por todo o paiz a revolução. Os +grandes, os alcaides das terras, eram por Castella ou pelo infante D. João; mas +o povo era pelo Messias: cria e esperava o milagre. Formavam-se <em>uniões</em> +espontaneas; e as levas de populares conquistavam para o Mestre os castellos e +villas fortificados aos senhores e aos alcaides dos concelhos.</p> + +<p>Uma grande parte do reino obedecia ao governo de Lisboa; mas a rainha, o rei +de Castella e o exercito invasor, na sua marcha sobre a capital, occupavam +Coimbra. Leonor Telles acabou ahi. Arrependida de ter chamado o castelhano que +a desprezava; reconhecendo que erradamente, por uma precipitação, forjára por +suas proprias mãos<span class="pn"><a name="pag_156">{pg. 156}</a></span> as +cadeias do seu captiveiro, vendo agora quanto se illudira, e que erro fôra o +seu em não avaliar a justa vitalidade do paiz, tentou ainda urdir uma trama +para se libertar, perdendo o genro e a filha. Os seus planos falharam; e +anojada e cheia de desespero, seguiu a ordem do genro, que de Coimbra a mandou +enterrar no mosteiro de Tordesillas. Como acabaria a sua vida? Quem sabe? +talvez arrependida, santamente amortalhada no burel monastico? acaso roída de +desespero, impenitente?</p> + +<p>O exercito castelhano desceu sobre Lisboa, e este segundo cêrco da capital +(1384) foi mais cruel ainda do que o primeiro, no tempo de D. Fernando. Veiu a +fome perseguir os heroicos lisbonenses, que andavam já doentes das cousas que +comiam. Por fóra a peste alastrava, porém, de cadaveres os arrayaes +castelhanos; e quando, um dia, a rainha de Castella, pretendente de Portugal, +adoeceu tambem, os inimigos levantaram o cêrco. O povo encontrava n'isto +motivos para crer n'uma protecção do céu.</p> + +<p>Por mais de um anno se prolongaram ainda as guerras pelas provincias +afastadas; mas Lisboa, Coimbra e todo o centro do paiz era, já em 1385, pelo +Mestre. Os ultimos actos da revolução iam consummar-se: as côrtes de Coimbra e +a batalha de Aljubarrota.</p> + +<p>Em Coimbra o grão-doctor é o general e o chefe. Essa batalha de discursos +era diversa, mas não menos brava de pelejar; porque uma grande parte da +nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o estava a acclamar rei +o Mestre de Aviz. Legitimista, considerava-se ligada ao infante D. João; e a +união dos fidalgos, completa para a defeza, não existia, agora que se +tratava<span class="pn"><a name="pag_157">{pg. 157}</a></span> de consolidar, com +uma nova dynastia, a independencia e a constituição definitiva do reino.</p> + +<p>O rei de Castella era schismatico e excommungado por apoiar Clemente VII +contra Urbano VI; e além d'isso os maus costumes de Leonor Telles não deixavam +ter certeza sobre a legitimidade de D. Beatriz.—Todos apoiavam João das +Regras, porque ninguem queria o castelhano.—D. João, continuava o doutor (e +aqui principiavam os murmurios) é bastardo, porque el-rei D. Pedro jámais se +casou com D. Ignez de Castro.—Um momento houve em que Nunalvares esteve a +ponto de brigar com o <em>roncador</em> Martim Vasques, o chefe dos +<em>leaes</em>; e as côrtes por um triz se tornavam n'uma batalha. Interveiu o +Mestre de Aviz, apasiguando o exaltado capitão, melhor no campo do que no +conselho.</p> + +<p>Ahi reinava o <em>grão-doctor</em>. Além de illegitimos, continuava sem se +perturbar, os filhos de D. Ignez de Castro tinham tomado armas contra a patria; +e este argumento, proprio a impressionar os leaes, pesou, mas não os decidiu. +Então o doutor lançou mão das reservas e venceu. Apresentou as bullas, nas +quaes o papa recusára acceder aos pedidos do rei D. Pedro para a legitimação +dos filhos. Podia haver prova mais solemne? Ousaria ainda alguem conservar +duvidas? E apoz isto desenrolava todas as consequencias: a divisão das forças +do reino perante o castelhano, inimigo commum; a impossibilidade de acclamar +rei um principe preso em Castella, etc. O ataque era irresistivel; e tudo +cedeu, declarando-se vago o throno, e elegendo-se para o occupar o Mestre de +Aviz, D. João I.</p> + +<p>Que melhor prova podia dar-se da vitalidade da nação e da sua independencia +já acabada, do que estas côrtes de 1385, em que ella exalta uma<span +class="pn"><a name="pag_158">{pg. 158}</a></span> dynastia, sem base na tradição +nem na herança, unicamente enraizada no querer absoluto, commum dos +portuguezes? É só n'este momento que bem de facto se póde dizer terminada a +historia da independencia; porque a dynastia de Borgonha trazia comsigo o +peccado original da doação primitiva, segundo o direito feodal: o reino era um +senhorio, sublevado, como por tantas vezes e por tão longos tempos o tinham +sido, na propria Hespanha, a Galliza e a Biscaya.<a name="tex2html56" +href="#foot1193"><sup>[56]</sup></a> Agora as cousas mudavam; e mudavam, porque +a nação, alargando-se para o sul, recebendo novas gentes em seu seio, +fomentando a actividade commercial e maritima em Lisboa, ao mesmo tempo que se +constituia interna ou organicamente, era já um ser diverso do antigo, e um ser +dotado de vida independente e propria. A crise, que temos vindo +historiando—com um vagar desculpavel pela sua significação excepcional—parece +ter, para a vida nacional portugueza, a importancia que a natureza dá ás crises +que determinam a passagem de uns para outros dos seus typos organicos.<a +name="tex2html57" href="#foot1194"><sup>[57]</sup></a></p> + +<p>Não bastava porém uma acclamação, era necessario um baptismo, á nova +monarchia. Aljubarrota respondeu com as armas á eloquencia das côrtes; e, +victorioso no conselho e no campo, o throno de D. João I ficou inabalavel. +Segundo o parecer dos inglezes, seus alliados e mestres na nova tactica militar +com que vieram a esmagar em Azincourt a cavallaria franceza, o Mestre d'Aviz +entrincheira o seu pequeno exercito. Nortberry, Hartcelle e d'Artherry, +capitães, traçaram a <em>carriagem</em>. Cortaram-se ramos de arvores com os +quaes se levantou<span class="pn"><a name="pag_159">{pg. 159}</a></span> uma +estacada para paralysar as cargas da cavallaria; ao meio d'essa estacada um +carreiro estreito, internamente bordado por archeiros e bésteiros de pé, estava +aberto, como uma tentação e um laço ao ardor fidalgo dos inimigos.</p> + +<p>A desproporção do numero era grande entre os combatentes. O castelhano +trazia comsigo vinte mil homens de cavallo, nos quaes entravam dois mil +francezes, gascões e bearnezes: com a peonagem, o seu exercito ia a mais +metade. Em volta de D. João I não havia mais de duas mil lanças, oitocentos +bésteiros, e quatro mil peões: alguns elevam a dez mil o total. Evidentemente, +só a força da arte podia vencer a desproporção do numero. Pelo meio dia +appareceu o exercito inimigo, victoriosamente composto na galhardia das armas +reluzentes com o sol, dos pendões e bandeiras blazonadas, das mesnadas dos +ricos homens da Hespanha e da França meridional, montados nos seus cavallos de +guerra. Os portuguezes, calados, humildes e obscuros, por detraz das suas +trincheiras, esperavam o choque d'essa brilhante móle. Havia em muitos valentia +e enthusiasmo, mas não faltava o temor, menos ainda a decisão firme de morrer +vencidos, na desesperança de rebater um ataque tão poderoso. O condestavel e os +cavalleiros excitavam o ardor bellico; os bispos, confessando, absolvendo, +dando a commungar, distribuiam a paz ás consciencias, preparavam para a morte, +accendendo a coragem com os odios religiosos. Havia exaltação, votos +singulares, ditos agudos, mas sobradas duvidas sobre o resultado do dia. Os +padres resavam no seu latim: <em>Verbum caro factum est</em>, e os soldados +traduziam d'esta fórma o evangelho: muito caro feito é este: Havia até medo +n'essas levas de gente bisonha do campo, soldados<span class="pn"><a +name="pag_160">{pg. 160}</a></span> saídos de uma população rural; mas uns trinta +peões que fugiram, apavorados, foram trucidados pelos castelhanos: o que nos +prestou o serviço de evitar as deserções, consolidando o proposito da +defeza.</p> + +<p>O exercito inimigo não se tinha decidido ainda sobre o modo de operar. Uns +optavam pela prudencia: vinham de longe, cansados da viagem, não tinham comido +ainda: esperassem, e os portuguezes, como javardos no seu covil, seriam +forçados a saír por lhes faltar o mantimento. Outros achavam uma vergonha, para +tão fidalgos cavalleiros, o parar deante d'uma estacada mal defendida por um +punhado de soldados bisonhos. Apesar do rei vir em andas, doente com sezões, +venceu a ultima opinião, e atacaram galhardamente. «Em esto os ginetes dos +inimigos provavam a miude d'entrar na carriagem dos portuguezes, mas tudo +achavam apercebido de guisa que lhes non podiam empecer. De fórma que os +castellãos tiveram de apear e combater com armas curtas.» <small +class="SMALL">(F. Lopes)</small>.</p> + +<p>Realisava-se a previsão, e a batalha acabou por um destroço completo da +cavallaria orgulhosa. O rei de Castella fugiu nas suas andas. Toda a bagagem do +seu exercito caiu em poder dos vencedores. Eram carretas e azemolas sem numero +e dezenas de milhar de cabeças de gado.</p> + +<p>Como para a Europa central foi depois Azincourt, assim Aljubarrota foi na +Hespanha: o ultimo dia da cavallaria feodal, e o primeiro ensaio d'esses +combates de pé, com que dois seculos mais tarde a infanteria castelhana de +Carlos V havia de conquistar a Europa.</p> + +<p>A Edade-média portugueza acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira epoca +da nação, com<span class="pn"><a name="pag_161">{pg. 161}</a></span> o periodo da +sua formação trabalhosa e lenta. Novos horizontes, vastas ambições, pensamentos +ainda inconscientes de um largo futuro, amadurecem encobertos, no seio da +nação, formada, acclamada, baptizada em sangue. Chama-a de longe um dubio +tentador—o Mar!<span class="pn"><a name="pag_162">{pg. 162}</a><br> +<a name="pag_163">{pg. 163}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1189" href="#tex2html52"><sup>[52]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp. <small>XXXI-III</small>.</p> + + <p><a name="foot1190" href="#tex2html53"><sup>[53]</sup></a> Curiosa + coincidencia a repetição d'esta scena em 1834 na guerra civil: (<em>Portugal + contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 371).</p> + + <blockquote> + <p>D. Pedro vae<br> + D. Pedro vem,<br> + Mas não entra<br> + Em Santarem!</p> + </blockquote> + + <p>O estribilho do tempo de D. Fernando acabava—<em>de Lisboa a + Santarem</em>.</p> + + <p><a name="foot1191" href="#tex2html54"><sup>[54]</sup></a> V. <em>Portugal + contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 291.</p> + + <p><a name="foot1192" href="#tex2html55"><sup>[55]</sup></a> V. <em>Instit. + primit.</em>, p. 157.</p> + + <p><a name="foot1193" href="#tex2html56"><sup>[56]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) a pp. 118-21 os quadros dos estados + peninsulares.</p> + + <p><a name="foot1194" href="#tex2html57"><sup>[57]</sup></a> V. <em>Elem. de + Anthropologia</em> (3.ª ed.), pp. 13-20.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h2><a name="SECTION002300"><big>LIVRO TERCEIRO</big><br> +A CONQUISTA DO MAR TENEBROSO</a> </h2> + +<p +style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">(<small>DYNASTIA +DE AVIZ</small>: 1385-1500)</p> + +<p> </p> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p>... quantas vezes estive mettido de baxo das bravas ondas por saber o + fundo das barras e para que parte endereçavam os canais, e entrada dos rios + até então nunqua lavrados cubertos de bravo mato; e asi mesmo que para + alcansar a verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e remansos de rios, + surgidouros de portos, abriguo de enseadas, deferença das agulhas, altura das + cidades, e fazer tavoas de cada lugar e rio em que se contem a mostra da + terra, baxos, restingas, rotas, e como se devem de entrar, perdi muita parte + da saude e disposição natural.</p> + + <p style="margin-left:2em;">D<small>OM </small>J<small>OHAM DE + </small>C<small>ASTRO</small>, <em>Primeiro roteiro da costa da + India.</em></p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002310">I<br> +O Infante D. Henrique</a> </h3> + +<p>Desde o miado do <small>XII</small> seculo que se propagára na Europa a +noticia da existencia de um imperio christão no extremo Oriente. O nuncio da +Egreja da Armenia falára ao papa (Eugenio III) em um principe, chamado João, +cujos dominios estavam situados para além da Armenia e da Persia, e que reunia +ao Imperio o sacerdocio: era um papa do extremo Oriente, e fizera numerosas +conquistas, o Preste-Joham.<a name="tex2html58" +href="#foot1195"><sup>[58]</sup></a> Esta lenda, espalhada na Europa,<span +class="pn"><a name="pag_164">{pg. 164}</a></span> excitava tanto mais a pia +curiosidade dos christãos, quanto essas distantes regiões se pintavam como +paraizos carregados de ouro e encantos.</p> + +<p>Durante a Edade-média, vogavam tambem extravagantes lendas ácerca do +Atlantico.<a name="tex2html59" href="#foot1196"><sup>[59]</sup></a> As +tradições obliteradas pela ignorancia davam caracteres phantasticos ás antigas +viagens dos carthaginezes ao longo das costas d'Africa, e ás ilhas do mar +atlantico.<a name="tex2html60" href="#foot1197"><sup>[60]</sup></a> Esse +infinito de aguas, onde mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de +monstros e sombras extravagantes; era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que +nas suas barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas +costas da França, foram caindo para o sul; e já no <small>XV</small> seculo +tinham chegado ás Canarias, já commerciavam ao longo da costa africana, para +cima do cabo Bojador, onde tambem, por terra, chegavam os berberes de +Marrocos.<a name="tex2html61" href="#foot1198"><sup>[61]</sup></a></p> + +<p>As tradições dos geographos antigos, idealisadas pela imaginação bretan, +tinham dado logar á formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era um +oceano de luz, semeado de ilhas verdes onde havia cidades com muralhas de ouro +resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens estava o paraizo terreal. +Para os geographos arabes, menos fecundos em phantasias, o mar tenebroso era +uma vasta e infinita campina, a acabar n'um cahos de nevoeiros e vapores +aquosos; e, «ainda que os mareantes, diz Ibn-Khaldún, conheçam os rumos dos +ventos, não havendo, para além, paiz algum habitado, perder-se-hão +irremediavelmente,<span class="pn"><a name="pag_165">{pg. 165}</a></span> porque o +limite do oceano não é outro, senão o proprio oceano».</p> + +<p>Além d'estas tentações maritimas, havia a ambição do Oriente e do seu +commercio, accendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais particularmente na +Hespanha, pelo contacto intimo em que a occupação arabe a puzera com os +monopolisadores d'esse commercio, durante a Edade-média. Hormuz<a +name="tex2html62" href="#foot615"><sup>[62]</sup></a> era o emporio mercantil +de todos os mercadas do oceano indico. D'ahi as carregações se dirigiam para a +Europa e para a Asia do norte, seguindo derrotas diversas. As da Asia iam em +cáfilas, caminho da Armenia, por Trebizonda, engolphar-se na Tartaria; as da +Europa, ou vinham por mar a Suês, e d'ahi em caravanas, pelo Cairo, a +Alexandria, ou seguiam por terra o valle do Euphrates a Bagdad, passando em +Damasco, no seu caminho de Beirut, sobre o Mediterraneo.</p> + +<p>Tinha, porém, no começo do <small>XV</small> seculo, a empreza encetada com +tamanho vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de +chegar por mar—como veiu a chegar-se—ao imperio do Preste-Joham das Indias? +Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das ilhas de que havia +uma noticia mais ou menos vaga; reconhecer e ir occupando gradualmente a costa +occidental da Africa—parecem ter sido emprezas ainda não ligadas n'esse tempo +com a da viagem aos reinos do Preste-Joham. Esta viagem, comtudo, não occupava +menos o espirito do principe, que pensava leval-a a cabo por um caminho +differente: por terra. A conquista de Ceuta prende-se<span class="pn"><a +name="pag_166">{pg. 166}</a></span> directa e principalmente a este pensamento. +Architectos arabes da Hespanha tinham ido pelo interior da Africa até Timboktu, +cujos palacios rivalizavam com os de Cordova ou de Granada. Ceuta era a chave +maritima do imperio de Marrocos; e, porventura, atravez da Africa se poderia +chegar ao dourado Oriente. Em todo o caso a terra offerecia um campo de +exploração mais definido do que esse mar incognito, infinito, cheio de +trevas.</p> + +<p>No ambicioso espirito do infante, cabiam as duas emprezas: conquistar o +imperio marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o monopolio do +commercio do Sudão;<a name="tex2html63" href="#foot1199"><sup>[63]</sup></a> e +ao mesmo tempo conquistar ás trevas as ilhas d'esse mar desconhecido, seguindo +tambem o longo das costas occidentaes para as visitar e explorar. Tenaz e até +duro de caracter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empreza: nem +o dobram as lagrimas do irmão infeliz sacrificado em Tanger, nem as supplicas +do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto em Alfarrobeira. +Ás conquistas da Africa immola os dois principes; ás navegações os seus ocios, +as rendas da Ordem de Christo, e as vidas obscuras dos muitos que morreram ao +longo das costas, ou na vasta amplidão dos mares terriveis. Dominado por um +grande pensamento, é deshumano, como quasi todos os grandes-homens; mas, no +limitado numero dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do +primeiro Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o imperio +ephemero do Oriente: entre ambos, D. Henrique foi o heroe<span class="pn"><a +name="pag_167">{pg. 167}</a></span> pertinaz e duro, a cuja força Portugal deveu a +honra de preceder as nações da Europa na obra do reconhecimento e vassallagem +de todo o globo.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A candida nobreza de Nunalvares, a sabedoria do grão-doctor João das Regras, +a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quasi um heroe: os seus +illustres filhos fazem d'elle o mais feliz dos paes. Ditoso homem mediocre a +quem tudo favorece, deu-lhe a sorte uma esposa virtuosa e nobre na princeza, +cuja lição e cujo exemplo põem a semente das suas grandes acções no coração dos +infantes—D. Pedro, acaso o typo mais digno de toda a historia nacional; D. +Fernando, cujos meritos desapparecem perante o do martyrio que o santificou; D. +Duarte, o rei sabio e feliz: D. Henrique, finalmente, em cujo cerebro ferviam +os destinos futuros de Portugal. É uma pleiade de homens celebres, presidindo a +uma nação constituida e robusta. Com taes elementos consegue-se tudo no mundo. +Bons guerreiros, á antiga, os infantes não se parecem, comtudo, já com os +antigos personagens. A côrte apresenta uma phisionomia diversa: dir-se-hia uma +Academia. D. Duarte occupa-se em cousas sábias, escreve o seu <em>Leal +conselheiro</em>. D. Pedro, cujas dilatadas viagens chegaram a formar lenda, +traz comsigo vasta lição, muitos livros, cartas, conhecimentos; a litteratura e +a geographia occupam-no por egual, e tambem escreve: dedica ao irmão +primogenito o seu tratado da <em>Virtuosa benfeitoria</em>. Á noute, nos +serões, lêem-se, <em>pouco, passo, e bem apontado</em>, como D. Duarte manda na +sua obra, as historias seductoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é<span +class="pn"><a name="pag_168">{pg. 168}</a></span> uma côrte da Edade-média, é já +uma côrte da Renascença, cheia de idéas novas e de uma cultura eminente. A +educação transforma a politica, e as theorias monarchicas da Italia são +applaudidas e adoptadas. Bole-se na legislação, limitam-se os privilegios +aristocraticos e burguezes, adianta-se a obra da unidade organica do corpo +nacional. Os principes, valentes e sabios, são estadistas, no moderno sentido +da palavra; e o rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nunalvares, ás +lições de João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe +mostram, com os livros e os mappas, a conveniencia de ir tomar Ceuta—primeiro +acto de uma longa e ambiciosa historia que desenrolavam perante os ouvidos +soffregos do antigo Mestre de Aviz. A rainha, orgulhosa nos filhos, approva +tanto, que, já moribunda, ainda obriga o marido a partir. D. João I, passivo +agora e sempre, obedece; e, do principio ao fim da sua fecunda existencia, +parece fadado a ornar-se com os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara que +outro semeou. Tinha porém a habilidade propria dos homens de juizo—a de pesar, +vêr, e julgar com rectidão.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Os planos de D. Henrique mereciam a plena approvação do rei, que lhe dava +ampla liberdade para proseguir; e até o incitaria, se o infante carecesse de +estimulo. Já no proprio anno de Ceuta. D. Henrique fizera uma primeira +tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa da Africa.</p> + +<p>Terminada a empreza de Ceuta, poz decididamente mãos á obra, e +estabeleceu-se em Sagres.<span class="pn"><a name="pag_169">{pg. 169}</a></span> +Era uma lingua de rocha cravada nas ondas e acoitada pelas ventanias do +noroeste. Estava-se alli como a bordo; e a academia do infante parecia uma náu, +em que vogavam os destinos ainda ignotos da nação. Os antigos tinham chamado +<em>sacrum</em>, sagrado, a esse promontorio, e o nome de agora tambem +traduzia, no pensamento e na linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no +<small>XV</small> seculo, como fôra nos velhos tempos, o pedestal de um templo. +Acreditavam os antigos celtas, do Guadiana espalhados até á costa,<a +name="tex2html64" href="#foot1200"><sup>[64]</sup></a> que no templo circular +do promontorio sacro, se reuniam ás noutes os deuses, em mysteriosas conversas +com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho dos homens para +os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas erguiam em Sagres um novo +templo, onde tambem ás noutes, não deuses, mas homens, se entretinham em falas +com os ignotos mares, com as regiões desconhecidas. O espirito era o mesmo, a +religião era outra:—era a da Renascença—a sciencia, a tentação irresistivel +que arrastava os homens para a natureza; que os fazia extenuarem-se a desflorar +a virgindade dos mares, a interrogar a mudez das noutes, na sua ancia de saber, +de dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes +estive mettido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e para +que parte endereçavam os canaes!»</p> + +<p>Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a +cosmographia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens o +manuscripto das peregrinações de Marco Paolo. Esses livros, os mappas de +Valseca, as narrativas<span class="pn"><a name="pag_170">{pg. 170}</a></span> e +roteiros dos pilotos, as rudes cartas maritimas, faziam vergar as mesas, a que +o infante, tendo ao lado o seu cosmographo, Jayme de Mayorca, então celebre, +rodeado de discipulos, passava os dias a discorrer, as noutes a interrogar, +silenciosamente, os enygmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo +Lullio, entre as drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o +principio da vida, os corpos simples ou elementares da materia para obter o +segredo da existencia physica e organica: assim o infante procurava desvendar +os segredos das ilhas e dos continentes, dos golphos e enseadas, velados pelo +manto azul-negro do Mar Tenebroso.</p> + +<p>Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa tenaz +curiosidade scientifica, differia essencialmente do mysticismo religioso da +Edade-média, eivado de phantasias kabbalisticas, e da ingenuidade das +mythogenias primitivas. O homem já preferia a sciencia á imaginação: rejeitava +as fabulas, e confiava tudo aos processos e aos meios positivos. «Ora manifesto +é, diz, um seculo depois, Pedro Nunes, que estes descobrimentos de costas, +ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar; mas partiam os nossos +mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e +geographia, que são as cousas de que os cosmographos hão de andar apercebidos. +Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, +que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A +bussola, o astrolabio e o quadrante já guiavam as expedições maritimas enviadas +annualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a descer a costa para +o sul. Porto-Santo, a Madeira e os Açores foram por esta fórma arrancadas<span +class="pn"><a name="pag_171">{pg. 171}</a></span> ás trevas do mar.<a +name="tex2html65" href="#foot1201"><sup>[65]</sup></a> Mas, apesar das +successivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador, limite +extremo até onde a costa era conhecida: havia doze annos que os navios iam e +voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a um muro de terrores +phantasticos.</p> + +<p>Gil Eannes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo não +acabava alli, sabia-se já; mas seria possivel ir além d'esse +<em>finis-terrae</em> da Africa? Gil Eannes voltou para responder +affirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram +seguindo, costa abaixo, por Cabo-Verde, a Guiné, onde, cheios de satisfação, os +mareantes aprisionam os primeiros negros—os azenegues do Senegal.<a +name="tex2html66" href="#foot1202"><sup>[66]</sup></a></p> + +<p>Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os haviam +de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensiveis, o dilatado das +viagens, sem consequencias fecundas, esfriavam nos animos o enthusiasmo do +principio. Não acabava, jámais, a costa da Africa! e o Preste-Joham e os +encantos do Oriente traduziam-se apenas pela <em>malagueta</em> da Guiné.<a +name="tex2html67" href="#foot1203"><sup>[67]</sup></a></p> + +<p>O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das +navegações. A empreza, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para as +forças da nação: não podiam ellas vencer de todo, nem o Mar, nem Marrocos; e o +que se tinha conseguido, perante os resultados praticos, desanimava, e fazia +sentir cansaço.<span class="pn"><a name="pag_172">{pg. 172}</a></span></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Antes de nos alongarmos na historia d'essa empreza, cabe-nos o dever de +registrar brevemente a da formação das forças navaes portuguezas, +indispensaveis para o emprehendimento das viagens de descoberta e das +expedições militares á costa da Berberia.</p> + +<p>Póde dizer-se que, até ao fim do <small>XII</small> seculo, não ha marinha +na Hespanha occidental. As luctas da reconquista, então feridas, eram-no por +terra exclusivamente; e a impericia maritima dos christãos, junta aos relativos +progressos dos arabes concorriam para tornar difficil a conservação das praças +litoraes conquistadas. Os primeiros dispunham apenas de pequenas lanchas +costeiras; emquanto os segundos tinham navios regularmente armados e equipados, +com que percorriam toda a costa occidental, refrescando nos seus portos, +abastecendo-os de munições e gente quando estavam cercados, e desembarcando a +miude, com o fim de talar os campos dos christãos e captivar os tardivagos ou +indefesos. Já, porém, no <small>XI</small> seculo o bispo de Compostella tinha +mandado vir de Genova pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que +foram ás costas do Algarb sarraceno pagar em moeda egual antigas e grossas +dividas. Os genovezes foram os nossos mestres na arte de navegar.</p> + +<p>Mas desde o meiado do <small>XII</small> seculo o exame das armadas de +Cruzados, com cujo auxilio Lisboa e depois Alcacer foram tomadas, tinha vindo +accrescentar os conhecimentos: demonstrando ao mesmo tempo que, sem o imperio +no mar, jámais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do reino. Á empreza +de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios portuguezes; e o que escrevemos +sobre o caracter mais regular e systematico da politica e das campanhas d'esse +reinado leva-nos a crêr que d'ahi deve datar-se a fundação da marinha +militar<span class="pn"><a name="pag_173">{pg. 173}</a></span> portugueza. Com +effeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Affonso III, como o +provam as expedições maritimas que terminaram pela conquista definitiva do +Algarve, e as façanhas do lendario Fuas Roupinho. Havia então já um corpo de +tropas especiaes de embarque.</p> + +<p>Que eram esses navios, porém? O leitor de certo viu alguma vez, de tarde, ao +cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas praias de Ovar ou da +Povoa-de-Varzim. Viu a construcção e os typos d'esses navios primitivos, e as +pittorescas physionomias dos seus tripulantes: eis ahi uma esquadra do +<small>XIII</small> seculo.<a name="tex2html68" +href="#foot1204"><sup>[68]</sup></a> Vel-a-ha, real e verdadeiramente, se, com +a imaginação, substituir por armas os utensilios da pesca. E quando os barcos, +encalhados na areia humida, descarregaram—hoje o peixe, então as presas, os +mantimentos e a gente—homens e mulheres, fincadas as mãos sobre os joelhos, +curvados, com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo d'elle, +impellem-no, manobrando ao som de um canto rythmico, para o fazer rolar sobre +toros até ficar em secco, distante dos perigos das ondas. Essa scena repetia-se +para pôr a enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e Sancho II realisou um +progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas praias de pescadores: mandou +construir <em>debadoyras</em> (cabrestantes) para encalhar, tirados por cabos, +os navios. No tempo de Affonso III já o poder maritimo portuguez é de tal +ordem, que os nossos navios vão em soccorro a Castella, e o papa nos convida a +acompanhar as gentes do norte á Cruzada.</p> + +<p>O reinado de D. Diniz marca uma segunda éra<span class="pn"><a +name="pag_174">{pg. 174}</a></span> na historia da marinha nacional. Reciprocamente +indispensaveis a marinha mercante e a militar, os cuidados do rei administrador +dirigem-se principalmente a fomentar a primeira, cuja importancia o tratado de +commercio, feito em 1308 com a Inglaterra, accusa. Além d'isto o rei applica-se +a melhorar o porto de Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o +contra as dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo +pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Tambem no seu tempo, por morte +do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja familia esse cargo andára, vem tomar o +almirantado da armada portugueza o genovez Pezzagna. Nacionalizada, a familia +dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do mar, ou almirantado, como já, á +moda arabe, se dizia então.</p> + +<p>Os progressos realisados no <small>XIV</small> seculo +preparam os recursos poderosos, com que, no seguinte, o infante D. Henrique +póde levar de frente as duas emprezas a que votára a sua existencia. D. +Fernando, o <em>amavioso</em> e infeliz rei, merece n'esta historia uma menção +condigna. Apesar das chimeras da sua politica tornarem em derrotas as suas +emprezas, a sabedoria e o alcance economico da sua legislação dão-lhe o direito +de preeminencia na historia da formação do poder naval dos portuguezes. Já +então a alfandega de Lisboa rendia, por anno, de 35 a 40 mil dobras:<a +name="tex2html69" href="#foot656"><sup>[69]</sup></a> o que demonstra<span +class="pn"><a name="pag_175">{pg. 175}</a></span> o progresso commercial do reino, +e comprova a opinião expressa no livro anterior, da deslocação do centro de +gravidade nacional do norte para o sul, e da nova phisionomia adquirida depois +do antigo caso da separação do condado portuguez do corpo da monarchia +leoneza.</p> + +<p>O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietarios a detenção +improductiva das terras, obrigando-os a lavral-as, ou a dal-as a quem por elles +o fizesse, era o mesmo que, n'um corpo de leis, protegia e fomentava o +commercio maritimo de Lisboa, já então uma cidade cosmopolita. Os genovezes, os +lombardos, os aragonezes, os mayorquinos, milanezes, corsos, biscainhos, gentes +de tão variadas partes—de toda a Hespanha e das costas +circum-mediterraneas—fixavam-se em Lisboa a commerciar. Pelo Tejo saíam cada +anno para cima de doze mil tonneis de vinho, sem contar o dos navios da segunda +carregação, em março. Os navios eram já maiores e tinham coberta. O chronista +chama á capital «grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza +que se formava para succeder á antiga; e, como nas cidades republicanas da +Italia, tambem o commercio era privilegio dos mercadores, prohibido aos nobres +e clerigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fóra do porto-franco de +Lisboa.</p> + +<p>O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potencia +commercial e maritima: e o que fez em favor do seu progresso demonstra a +lucidez do seu espirito. O rei em pessoa era armador e negociante de certos +generos exclusivos.<span class="pn"><a name="pag_176">{pg. 176}</a></span> Creou +<em>bolsas</em> de seguros maritimos, mutuos, em Lisboa e no Porto, com o +producto de uma taxa especial lançada sobre o commercio, instituindo o cadastro +ou estatistica naval. Reduziu a metade os direitos de importação dos generos +trazidos por navios nacionaes, estabelecendo assim um direito differencial de +bandeira, a cuja sombra se multiplicou o numero dos navios mercantes +portugueses. Deu, aos que desejassem construil-os, a faculdade de cortar +madeiras nas mattas reaes. Isentou de direitos os materiaes de construcção +naval, e os navios construidos fóra, por conta de nacionaes: e o mesmo concedeu +á exportação dos generos do primeiro carregamento de navios novos. Por sobre +esta protecção efficaz e energica, emprestava ainda aos armadores capitaes para +commerciarem, ficando interessado com elles no dizimo dos lucros, que se +liquidavam duas vezes ao anno.</p> + +<p>N'outro logar dissemos que o governo de D. Fernando fôra um cesarísmo, e com +effeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento material da +nação, na violencia das medidas de salvação publica, na desordem dos costumes +da côrte, e no caracter bondoso e ingenuamente devasso do rei. Este Cesar do +fim da Edade-média preparava o caminho á nação, cuja vida brilhante de dois +seculos, afastada da estrada ordinaria da agricultura e da industria, ia ser a +vida de uma Roma imperial, de uma Carthago, de uma Veneza: metropole acanhada +de um imperio colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento individual +dos governantes autocratas, mais do que á força espontanea de um espirito +nacional, ao machinismo activo de um systema de instituições e classes, +organicamente construido e funccionando normalmente. De todos os fundadores do +Portugal maritimo D.<span class="pn"><a name="pag_177">{pg. 177}</a></span> +Fernando é o maior; e se as queixas formuladas, ao decair do <small>XVI</small> +seculo, contra os que afastaram os portuguezes do arado para o leme, do campo +para o mar, teem razão absoluta—a sabedoria de D. Fernando foi como o peior +dos erros. Camões fulminava, pela bocca do velho do Restello, os que arrastavam +Portugal para o mar; como Plutarcho tambem condemnou Themistocles por ter +lançado os athenienses no caminho das emprezas maritimas.</p> + +<p>Mas esses lamentos do espirito utilitario, se teem um cunho de verdade +positiva, teem tambem um escasso merecimento historico. Não tivesse a Grecia +sido colonisadora e maritima, e a sua voz educadora jámais se teria ouvido no +mundo. Outrotanto diremos de nós. Não tivessemos alargado pelo mar um nome sem +razão de ser na Europa, e, jungidos á Galliza virente e á Castella farta, +teriamos tido menos fome e menos dôres, menos miserias decerto, mas nenhuma +honra, tambem, na historia. O proprio nome de Portugal não teria existido, +senão como lembrança erudita de um certo condado, que, nas mãos de principes +astutos e atrevidos, conseguira viver alguns seculos separado do corpo da nação +hespanhola.</p> + +<p>Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto. +Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações, differe de +absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer as necessidades +organicas. Além d'isto, o destino, fatalidade, providencia, determinação, ou +como se queira dizer—traduzido com as successivas palavras, antigas, actuaes +ou futuras, um mysterio eterno—elege ou condemna—escolham tambem os sectarios +entre as duas expressões—os homens e as nações a uma determinada<span +class="pn"><a name="pag_178">{pg. 178}</a></span> obra. Nós fomos elegidos ou +condemnados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que o enchia de vagas +ambições ou de funebres terrores.</p> + +<p>Era este o momento opportuno de dizermos todo o nosso pensamento ácerca da +empreza nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver melhor +chamar-lhe. A viagem das Indias, que vamos contar—descrevendo previamente a +derrota, por Ceuta e Tanger, e, no reino, pela consolidação do poder cesarêo +dos reis—necessitava ser julgada: agora que, ainda no molhe os tripulantes, +sobre a amarra os navios, se não desferrou o panno, nem se deram as salvas da +partida.</p> + +<p>Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D. Fernando. +Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam tambem a marinha de +guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372) era, no dizer do chronista, +<em>formosa campanha de ver</em>. Mice Lançarote Peçanha, da linhagem do +genovez, ia de almirante; e o cosmopolitismo da nova patria portugueza vê-se +bem no nome dos capitães: um João Focin castelhano, um Badasal de Spinola, um +Brancaleon. Como Roma, Lisboa recebia no seu seio e nacionalisava gentes de +toda a parte; e d'este agglomerado de caracteres, naturalmente inorganico, +sairá, no momento culminante do <small>XVI</small> seculo, um espirito superior +ao espirito nacional-natural e a noção de uma patria moral ou ideal, como foi a +patria de Virgilio.</p> + +<p>A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta náus redondas, +afóra as que vieram <em>per ella da costa do mar</em>. Vinte e tres mezes teve +bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quasi tão poderosa +como esta, foi ainda<span class="pn"><a name="pag_179">{pg. 179}</a></span> ao +Mediterraneo, na seguinte guerra de Castella, para soffrer o desastre de Saltes +(1381) consequencia da temeridade do fanfarrão Affonso Tello.</p> + +<p>Agora, fundeada no Tejo, a armada, espera o rei e os principes para ir +conquistar Ceuta, em Africa.<span class="pn"><a name="pag_180">{pg. 180}</a></span> +</p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1195" href="#tex2html58"><sup>[58]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp. 96-9.</p> + + <p><a name="foot1196" href="#tex2html59"><sup>[59]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. <small>VII-VIII</small> e <em>Elem. de + Anthropol.</em> (3.ª ed.) pp. 126-7 e 215-17.</p> + + <p><a name="foot1197" href="#tex2html60"><sup>[60]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, liv. <small>IV</small>, 2.</p> + + <p><a name="foot1198" href="#tex2html61"><sup>[61]</sup></a> <em>Ibid.</em>, + pp. 111-18.</p> + + <p><a name="foot615" href="#tex2html62"><sup>[62]</sup></a> Seguiremos em + geral a orthographia de Kiepert nos seus Atlas, com referencia aos nomes + geographicos do Oriente, traduzidos nas nossas chronicas pelo ouvido dos + soldados da India.</p> + + <p><a name="foot1199" href="#tex2html63"><sup>[63]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp, 94-6 e <em>O Brazil e as colon. + port.</em>, (2.ª ed.), pp. 244-8.</p> + + <p><a name="foot1200" href="#tex2html64"><sup>[64]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, p. 184.</p> + + <p><a name="foot1201" href="#tex2html65"><sup>[65]</sup></a> V. A chronologia + particular das viagens de descoberta no <em>Brazil e as colonias + portuguezas</em> (2.ª ed.) pp. 2-3.</p> + + <p><a name="foot1202" href="#tex2html66"><sup>[66]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp. 116-7.</p> + + <p><a name="foot1203" href="#tex2html67"><sup>[67]</sup></a> V. <em>O Brazil + e as colon. port.</em>, (2.ª ed.), pp. 14-5.</p> + + <p><a name="foot1204" href="#tex2html68"><sup>[68]</sup></a> V. no + <em>Regimen das riquezas</em>, pp. 81-8, a evolução dos vehiculos maritimos. + </p> + + <p><a name="foot656" href="#tex2html69"><sup>[69]</sup></a> A dobra continha + 4 libras e 2 soldos; 50 dobras compunha o marco de ouro cojo valor moderno é + de 120$000 rs; a dobra equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da + Alfandega a de 84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o chronista, «400 a + 500 navios de carregação» e em Sacavem e no Montijo, a carga do vinho e do + sal, 60 ou 70 em cada logar, suppondo que esses navios se substituissem + quatro vezes, fazendo quatro viagens n'um anno, e sabendo nós que a sua + lotação média regularia por 100 toneladas—vemos que o movimento do porto + attingia mais de 200:000 toneladas de generos diversos. Comparando-a com o + rendimento da alfandega, faremos idéa do grau de franquia do porto.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002320">II<br> +Portugal em Africa</a> </h3> + +<p>Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento de +monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda, com a +peste, a rainha D. Philippa. Ninguem pozera na empreza melhor amor do que ella: +mandára fazer tres espadas cravadas de pedraria para os filhos, que em Ceuta +haviam de ser armados cavalleiros; mas o destino não lhe consentiu vêr +terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham acabado de arrancar das +paredes do convento de Odivellas os pannos de dó do enterro, quando a armada +partia. Morrera a 20; são hoje 25 do mez de julho de 1415.</p> + +<p>As pazes celebradas com Castella no anno anterior tinham dado o socego a uma +côrte onde fervia o desejo de praticar grandes cousas. Diz-se que o rei pensára +em abrir em Lisboa um torneio de um anno, onde viriam os mais celebres +cavalleiros da Europa medir-se com os portuguezes; mas esse plano extravagante +foi substituido pelo projecto mais sensato de ir a Ceuta. Para não prevenir os +inimigos, conservára-se um segredo absoluto sobre o destino da grossa frota que +se reunia em Lisboa. Todos temiam: o aragonez, e principalmente o mouro de +Granada. Vinham de varias partes soldados e navios. D. Duarte apparelhára em +Lisboa<span class="pn"><a name="pag_181">{pg. 181}</a></span> oito galeões, e D. +Henrique tinha chegado do Porto com uma divisão de cincoenta e dois navios de +toda a classe. Havia inglezes, francezes e allemães na armada, que, depois de +inteiramente reunida, contava 33 galeões grandes, 27 menores, de tres bancos de +remeiros, 32 galeras e 120 fustas, transportes, e outros vasos secundarios. Iam +embarcados cincoenta mil homens.</p> + +<p>Ao passarem á vista do cabo de S. Vicente os navios baixaram as velas +<em>por razam das reliquias que ali havia</em>. Ainda em Sagres não existia ao +tempo a eschola do infante, mas o preito dado ao logar sagrado para muitos +parecerá symbolico. Era esta a primeira grande empreza maritima de Portugal; ou +antes e melhor, era a primeira vez que as esquadras portuguezas saíam de Lisboa +com o fito de alargar o reino para além do mar. Inexperientes ainda os pilotos, +as correntes do estreito dispersam a poderosa armada, parte da qual é arrastada +até Malaga, indo o resto fundear em Ceuta.</p> + +<p>Não nos permittem as proporções d'esta obra narrar todas as batalhas e +cercos, nem isso importa; pois que, salvas excepções que temos tomado em conta, +todos se parecem entre si. Nenhum caracter novo, nem particular, apresentou a +tomada da cidade que, colhida de improviso, não pôde resistir. Os moradores +abandonaram-na depois de um combate em que obtiveram a prova da inutilidade da +defeza; e os christãos saquearam a cidade deserta, arrancando as columnas de +alabastro, os marmores das portas e janellas, os tectos lavrados em paineis +dourados, dos palacios da opulenta Ceuta. Emquanto a turba dos soldados se +espalhava pelos meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os +fugitivos, de longe, sobre as collinas, bradavam desesperados e miseraveis +n'um<span class="pn"><a name="pag_182">{pg. 182}</a></span> triste clamor de +perdidos. Ficavam-lhes além, dentro dos muros da cidade tomada, afóra tudo o +que possuiam, os cadaveres insepultos dos muitos que na vespera tinham morrido +no combate.</p> + +<p>Ceuta era portugueza; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam +desde logo para solemnisar a sagração da mesquita dos infieis. O infante D. +Henrique, principal author, denodado executor da empreza, recebeu o titulo de +duque, novo então em Portugal. Todos os tres irmãos foram armados +cavalleiros.</p> + +<p>Que se faria porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido, como +estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos designios do infante, ou os +não approvavam.</p> + +<p>Ceuta guardou-se como principio de mais dilatadas emprezas.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Vinte annos decorridos—em que o infante se déra principalmente aos seus +trabalhos de Sagres,—e vendo acaso que as descobertas das ilhas do Atlantico +não valiam assaz perante os sonhos da sua ambição, e que ao longo de Africa +pouco se adiantou por mar, torna a preoccupal-o a idea das conquistas +marroquinas, desde tempo postas de parte. A Atlantida mysteriosa teimava em não +apparecer; ou reduzia-se afinal á Madeira, ou ao archipelago açoriano, onde não +havia, nem encantos, nem muralhas d'ouro, nem estranhas gentes: só desertos +cerrados de florestas, bravios de abrir, e pouco remuneradores. O reino +encantado do Preste-Joham fugiria deante dos navios aventureiros, como uma +miragem enganadora?</p> + +<p>Já D. João I morrera a este tempo, e governava o reino o bom, infeliz D. +Duarte. O ambicioso irmão<span class="pn"><a name="pag_183">{pg. 183}</a></span> +levou-o a emprehender a conquista de Tanger, depois de ter convencido a que o +acompanhasse o infante D. Fernando. O rei, ou approvou, ou não teve energia +bastante para se oppôr á temeraria empreza. No conselho em que ella se debateu, +porém, o outro irmão, D. Pedro—cuja sensatez parece tel-o já a esta epocha +afastado de uma côrte, onde a irrequieta ambição de D. Henrique +governava—observa que tudo falta, para esperar um bom exito. Não havia +dinheiro para custear o exercito, e, sem grande cargo de sua consciencia, o rei +não o podia tomar aos povos. Mudar a moeda (enfraquecel-a) em proveito proprio, +não o devia: fallece-vos o principal cimento da passagem! Posto que Tanger se +tomasse, e Arzilla, e Azamor, que se lhes faria? Do reino, despovoado e +mingoado, era loucura enviar gente a guarnecel-as: seria trocar boa capa por +mau capello, perder Portugal sem por isso ganhar a Africa. O exemplo dos +castelhanos não colhia, porque dispunham de mais vastos recursos.—O infante +vira muito mundo, e aprendera a medir pelo seu justo peso a importancia +limitada da nação. A ignorancia, mãe de todas as temeridades e audacias, não o +cegava.</p> + +<p>D. Henrique, pertinaz, decidido e, por sobre isso, violento e sem carinho, +não perdoou decerto a sabia prudencia com que o irmão se oppunha aos seus +designios. As relações de ambos, já frias, azedaram-se talvez; e porventura +aqui esteja o motivo da indifferença com que D. Henrique ouviu os rogos do +irmão, quando mais tarde lhe pedia que o servisse perante o sobrinho, Affonso +V—indifferença que decerto concorreu para a morte de D. Pedro em Alfarrobeira, +se porventura a não causou.</p> + +<p>As advertencias do principe no conselho eram tanto mais graves, quanto os +seus argumentos eram<span class="pn"><a name="pag_184">{pg. 184}</a></span> +absolutamente fundados, positivos; e grandes os creditos da sua opinião, +merecido o respeito que todos tributavam ao seu caracter. Por isso, apesar da +nenhuma brecha que os argumentos, por via de regra, fazem nas teimas, o rei (ou +D. Henrique) julgou necessario escudar-se com o parecer do papa. Consultou-se, +pois, Roma; e a resposta, que de lá veiu honra o nome do que a deu: «Se as +terras foram christans e ha templos convertidos em mesquitas, a guerra é santa; +se o não foram, deve distinguir-se: são visinhos incommodos e põem em perigo os +christãos? admoestem-se, ameacem-se e só em ultimo caso se recorra ás armas. +Não é este, porém, o caso? então, deixem-nos em paz, porque a terra e a +abundancia d'ella é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os bons e os maus, e +dá de comer a todas as aves do céu.»</p> + +<p>Esta ultima das tres hypotheses indicadas pelo papa era a verdadeira, o que +não impediu o infante de proseguir na sua teima. «A gente do reino havia esta +ida por tão pesada, que a mais d'ella preferia pagar as multas (impostas aos +refractarios ao alistamento) a arriscar as vidas.» Nem as multas, nem o +dinheiro do rei, nem os emprestimos, bastavam, porém, para supprir o orçamento +da armada; e por isso lançou-se mão dos bens dos orfãos. Porém, apesar de tudo, +dos 14:000 homens com que se contava para a ida, apenas 6:000 se conseguiu +reunir.</p> + +<p>Partiram, afinal, os dois irmãos; mas logo um mau agoiro entristeceu os +soldados: o vento despedaçou a bandeira do infante, quando a desfraldava. Essa +bandeira, sobre que o mouro havia de cuspir affrontas, ia já rota de +Portugal...</p> + +<p>O resultado correspondeu ás previsões geraes: depois de batida, a expedição +portugueza teve de capitular sob os muros do Tanger (1437), deixando<span +class="pn"><a name="pag_185">{pg. 185}</a></span> D. Fernando em refens de Ceuta, +que era o preço da liberdade do exercito. Tristes lagrimas de desespero +orvalharam então as areias da costa africana: não seriam as ultimas, nem as +mais copiosas. D. Henrique voltava com as reliquias da sua expedição, deixando +o irmão preso. «Que el-rey se lembre de mim... roguem por minha alma, que é a +ultima vez que nos veremos!» dizia o infeliz ao despedir-se, em lagrimas. +D'alli os mouros levaram-no a Fez. Ia como Isaac para o altar, ou como Jesus +para o Calvario. Conduziram-no montado n'um sendeiro mui magro, desferrado, +tendo por freio umas tamiças, a sella esfarrapada, os arções despregados. +Deram-lhe tambem uma canna, para guiar a azemola. Atraz d'elle iam os outros +prisioneiros amarrados sobre as bestas de carga. A gente acudia ao caminho de +Fez, chamada pelo pregão: «Venham vêr o rei dos christãos!» E os apupos, as +pedradas, os escarros, caíam sobre os infelizes, chouteando, na sua paixão, +esmagados por um sol abrazador. Uns, com os apupos, remordiam-se colericos; o +infante, submisso e conformado, lembrava-se de que outro tanto, e mais ainda, +soffrera Jesus por elle. Antes, porém, ser de uma vez crucificado, do que +acabar lentamente nas lobregas estrebarias de Fez, varrendo as immundicies, +comido de bichos, devorado de febres, porque nem a lentidão do martyrio lhe +poupou o cadaver aos insultos da turba. Pendurado nú, pelos pés, nas ameias da +cidade, foi a sorte que lhe deram. Antes, pregado na cruz, tivesse expirado +como Christo. O pobre infante é o primeiro martyr da nossa epopêa; e se nos +honramos do muito que fizemos, é agora o momento de deixar aqui uma lagrima de +saudade e pena por esse infeliz precursor do nosso imperio!<span class="pn"><a +name="pag_186">{pg. 186}</a></span></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>De volta ao reino, e salvo, D. Henrique oppoz-se decididamente á entrega de +Ceuta. O rei, lavado em lagrimas pela sorte do irmão, morreu logo no anno +seguinte, triste e taciturno. Com a deshumanidade de um apostolo, D. Henrique +sacrificava tudo e todos á sua fé. Por cousa nenhuma consentiria que se +entregasse Ceuta: e os reinos do Preste-Johan? e o imperio do Oriente? Homens, +familia, palavra, tudo era vão, diante d'essa miragem que, desde tantos annos, +lhe punha a cabeça em delirio.</p> + +<p>Com o seu braço conquistára Ceuta: arrastára a Tanger o irmão; deixára-o lá +perdido, nas mãos féras dos inimigos: tudo isto eram holocaustos no altar da +sua idéa. Quem sabe se elle mesmo não choraria a sós a crueldade do seu +destino, e a desgraça do irmão que levára ao cepo do sacrificio? Não é, +comtudo, provavel. Pelo menos, a impressão que o leitor d'estas historias +recebe da narração dos seus actos consecutivos, é a de que no caracter do +infante não primava a humanidade.</p> + +<p>Voltou a encerrar-se em Sagres, com os seus livros, os seus mappas, os seus +cosmographos e mareantes: voltou a olhar para o mar—pois que, por largos +annos, para sempre talvez! estava perdida metade da sua empreza. Os seus +navegadores iam vogando e <em>resgatando</em><a name="tex2html70" +href="#foot1206"><sup>[70]</sup></a> ao longo da costa da Africa: e as ilhas +dos Açores iam successivamente saindo dos arcanos do Mar Tenebroso. O papa +(Nicolau V) dava-lhe o senhorio e dominio sobre todas as descobertas na Africa +(1454): e o infante, no meio das contrariedades, não desanimava na sua fé.</p> + +<p>Entretanto o reino passára, das mãos da rainha viuva, para as do infante D. +Pedro (1438) e d'estas,<span class="pn"><a name="pag_187">{pg. 187}</a></span> +finalmente, para as de Affonso V (1446); entretanto miseraveis intrigas, a que +D. Henrique não quiz oppor-se para salvar o irmão que lh'o pedia, tinham levado +á desgraça de Alfarrobeira (1449); e o infante, com a influencia que exercia no +curto espirito do sobrinho, facilmente o decide a lançar-se nas aventuras +africanas: já morrera D. Pedro, para vir repetir o que dissera nas vesperas de +Tanger. Quando, em 1460, morreu D. Henrique, esse principe tão funesto aos +seus, mas tão proveitoso para o reino, já Affonso V tinha conseguido tomar +Alcacer-Seguer (1458). Dez annos depois, a conquista de Arzilla importa a +rendição de Tanger. O dominio portuguez na costa de Marrocos chegava ao apogeu; +mas qual era o resultado d'essas emprezas? Vinha por ahi a Portugal o commercio +das Indias, como D. Henrique pensára? Não. Monopolisado pelos arabes no +Oriente, logo que Ceuta foi para elles perdida, desviou-se para outros portos +do Mediterraneo. Varrida essa illusão, que restava? Uma serie de praças fortes, +eschola de soldados, fonte de permanentes conflictos, esteril em proventos, +pasto para a van necessidade batalhadora da nação: precipicio aberto, que ia +tragando, improficua e ingloriamente, muitas forças vivas do paiz. A opinião do +sabio principe D. Pedro era absolutamente verdadeira: nós não tinhamos +recursos, no reino pequeno e pobre de gente, para povoar Marrocos; e mudar +parte de uma população escassa, de Portugal para a Africa, era trocar «uma boa +capa, por um mau capello». Á conquista de Ceuta movera ainda uma illusão: mas +agora, varrida ella, as campanhas de Africa eram uma serie de emprezas +quixotescas, que viriam a terminar pela doidice varrida de D. Sebastião.<span +class="pn"><a name="pag_188">{pg. 188}</a></span></p> + +<p>Contra uma opinião muito acceite, nós pensamos, pois, que a decisão de D. +João III, abandonando as praças africanas, só peccou por serodia; e que +Portugal nada tinha a esperar do seu dominio na Barberia—desde que o destino o +levava para o Oriente, e desde que era manifestamente provado não poder +chegar-se lá por via de Marrocos. Incidente na nossa vida nacional, o dominio +portuguez das praças do litoral d'Africa é apenas um episodio da grande +historia das descobertas e conquistas ultramarinas; e o seu melhor merecimento +foi de servir de eschola para os guerreiros da India, de posto de +acclimação—como hoje Malta ou Gibraltar, para os inglezes. Para padrão das +façanhas de Affonso V e das lançadas de Lopo Barriga, não valia a pena que +custou, ainda quando não fosse a causa da final catastrophe de D. +Sebastião.<span class="pn"><a name="pag_189">{pg. 189}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1206" href="#tex2html70"><sup>[70]</sup></a> <em>Regime das + Riquezas</em>, pp. 92 e 107-9.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002330">III<br> +O principe perfeito</a> </h3> + +<p>Perfeito não quer dizer sem nodoa, mas sim acabado, completo; não tem aqui +uma significação moral, tem um valor politico. D. João II é um exemplar +<em>perfeito</em> do genero dos principes da Renascença, para quem Machiavel +escreveu (um pouco depois) o cathecismo: é um mestre da moderna arte de +reinar.</p> + +<p>O exemplo mesquinho da pessoa do antecessor e pae, Affonso V, as desordens +do reino e a fraqueza do rei, tinham educado o espirito agudo e observador do +moço principe.</p> + +<p>A tragedia de Alfarrobeira (1449) começára com um crime o espectaculoso mas +triste reinado do <em>africano</em>; e o epitheto dado ao rei ajudou a formar a +tradição de um homem cheio de valor e tenacidade, coisa que o pobre Affonso V +jámais foi. Combater com denodo, n'um momento de furia, era uma qualidade +commum que lhe não faltava; mas d'ahi ao valor consummado vae uma distancia +enorme. O grande defeito da sua mocidade fôra a facilidade com que se deixava +lisongear. Tutelado na sua menoridade, pela mãe primeiro, pelo tio e sogro +depois, o pobre rei soffreu as consequencias communs a quasi todos os +principes, como elle acclamados em creanças. Em volta do rei, pupillo de futuro +imperante, formou-se um partido de adversarios<span class="pn"><a +name="pag_190">{pg. 190}</a></span> da regencia, ambiciosos a quem não satisfazia o +juizo do infante D. Pedro, cheios de esperanças na liberalidade e no caracter +desegual do moço rei. Exploravam-lhe as fraquezas, açulando-lhe os odios nos +momentos de colera, distrahindo-o com facecias e ditos nas horas de abatimento, +gabando-lhe tudo: os arremeços e as cobardias, a brandura e a colera, como +aduladores de officio. Da insensatez do rei esperavam colher uma farta ração de +beneficios e presentes. Apesar de o infante já ter feito entrega da regencia, +temiam-no ainda sobremaneira, e não cessavam de o malquistar no animo do +sobrinho e genro. D. Pedro em vão instava com o irmão, D. Henrique, para que +desmanchasse essas perfidias. Aborrecido de viver, desejoso de deixar o mundo, +o ex-regente via que tudo se conspirava para o perder. «Era grande principe, de +grande conselho, prudente, de viva memoria, bem latinado, e assaz mixtico em +sciencias e doutrinas de letras, e dado muito ao estudo.» Era um dos poucos, a +quem a sabedoria tornára realmente bons.</p> + +<p>Os seus brios offendidos, a perfidia dos validos, o tonto desvairamento do +rei, levaram ao encontro de Alfarrobeira, quando o principe vinha á côrte +justificar-se das calumnias: e vinha armado, por saber que no caminho o +esperavam para o matar. Effectivamente o mataram, a elle, e ao seu fiel +Achates, o nobre conde de Avranches, typo de lealdade cavalheiresca, sempre +rara, e agora de todo ausente em côrtes italianisadas. Morto o seu principe, o +conde prepara-se para morrer tambem, vingando-se: «Ó corpo! já sinto que não +podes mais; tu, minha alma, já tardas!» E com furia, defendia-se e matava. +Quando por fim o derrubaram, ferido, cruzou os braços, dizendo: «Fartar, +rapazes!<span class="pn"><a name="pag_191">{pg. 191}</a></span> vingar, vilanagem!» +E morreu, trespassado de lanças.</p> + +<p>Livre do importuno conselheiro, Affonso V e os fidalgos da sua roda, tão +simples e estouvados como o rei, puderam abandonar-se á vontade ao capricho das +suas loucuras e batalhas. Fatigando o povo com impostos, desbaratando com +prodigalidades o patrimonio da corôa, o rei, levado pela sua mania, sacrifica +tudo ás correrias africanas, que a decomposição interna do imperio marroquino +já tornava possiveis.</p> + +<p>Mais de vinte annos consumiu em taes emprezas que o envelheceram. Era +corpulento, e com os annos tornára-se gordo, a ponto de não poder já usar senão +vestiduras soltas. Tinha a barba espessa, e era calvo; os cabellos +ennegreciam-lhe as mãos, as orelhas, o nariz, accusando a vulgaridade e a +violencia bravia do seu temperamento. Apesar de bem proporcionado, era tão +commum no aspecto como no espirito. Brutal e vingativo, obtuso mas teimoso, e +até cruel, a sua phisionomia reproduzia a do commum dos homens d'armas; e +imprimiu o cunho a esses guerreiros de Africa, broncos, sem o menor requinte de +perversidade fina, nem ponta de elevação distincta: como touros que marram ás +cegas e qualquer destro bandarilheiro dóma.</p> + +<p>Foi isto mesmo que succedeu a Affonso V em França, onde Luiz XI se fartou de +rir do simples, illudindo-o com promessas, fatigando-o com viagens, picando-o +com ironias perdidas, carregando-lhe a nuca de lisonjas, cumprimentos e +attenções, como o bandarilheiro faz ao touro, quando o carrega de vistosas +farpas, bem aguçadas.</p> + +<p>Affonso V fôra a França pedir auxilio, porque o castelhano batera-o. Em +1474, Henrique IV de Castella<span class="pn"><a +name="pag_192">{pg. 192}</a></span> ao morrer, deixava por herdeira D. Joanna, a +<em>beltraneja</em> (assim os adulterios da mãe tinham denominado a filha) +confiando o governo do reino ao visinho de Portugal, e pedindo-lhe que casasse +com a sobrinha. Affonso V julgou que o reino de Castella era a nova Africa da +sua velhice, e poz-se em campo para conquistar a corôa testada; conquistar, +dizemos, porque os castelhanos invocavam contra a <em>beltraneja</em> os mesmos +argumentos que, um seculo antes, nós invocavamos contra a mulher de João I, D. +Beatriz. Castella offerecia o throno a Isabel, como nós o tinhamos dado ao +Mestre de Aviz.</p> + +<p>Affonso V poz-se em campo. Já ao seu lado se via a reservada figura do +filho. Receioso das loucuras do velho, arrancára da sua fraqueza um titulo +secreto, pelo qual o rei annullava todas as doações superiores a dez mil réis +de renda que fizesse durante a guerra. O pae dava e não dava, o filho dobrava +cuidadosamente o papel, guardando-o para o futuro...</p> + +<p>A batalha de Toro (1476) não foi propriamente uma derrota militar, mas foi +uma derrota para o rei e para as suas ambições. O pobre velho, gordo, estafado, +sem poder comsigo, foi correndo abrigar-se em Castro-Nuño, e deitou-se logo a +dormir. Avendaño, o fidalgo do lugar, declarára-se por elle: mas a mulher, +castelhana esperta, apontava-lhe o volume de carnes, para alli deitado a +resonar ruidosamente, como os gordos, e dizia ao marido:—«Olha lá por quem te +perdeste!»—Effectivamente o rei não valia para cousa alguma. Os castelhanos +rebeldes desde logo reconheceram o seu erro, e Affonso V tomou a resolução de +ir pedir a Luiz XI que lhe valesse.</p> + +<p>O principe herdeiro aprendia muito, porque<span class="pn"><a +name="pag_193">{pg. 193}</a></span> observava tudo, com o seu olhar profundo e +sagaz. Deixou ir o pae, e ficando a reger o reino, continuou, por amor da +honra, mas sem calor, uma guerra que elle decerto via não conduzir ao fim +desejado. Emquanto o pae andava por fóra, acclamaram-no, ou acclamou-se rei: +diz-se que de França lhe viera uma abdicação. Porém Affonso V, desilludido +afinal, decidiu-se a voltar; e o principe entregou-lhe immediatamente a corôa. +Guardal-a, para que? Se elle, de facto, continuava a reinar em nome do pae, +desfeiteado, vencido, quasi moribundo? Todas as maximas que Machiavel escreveu +no seu livro do <em>Principe</em>, tinha-as antecipadamente D. João II na +memoria:—É melhor ser louvado do que aborrecido, mas só quando isso não +prejudica; o bem é preferivel ao mal, quando se póde escolher entre ambos para +se conseguir um fim.—Por isso, como sabio principe, decidia-se a reinar sob o +nome do pae, já inteiramente docil e subjugado por tantas miserias, esperando o +momento proximo de outra vez tomar o nome de rei—méra formalidade.</p> + +<p>No decorrer de dois annos (1479-81) a paz, negociada pelo principe +<em>perfeito</em>, fazia da <em>beltraneja</em>, encerrada n'um convento, a +<em>excellente-senhora</em>, e do rei um cadaver, afogado n'uma agonia de +afflicções pungentes.</p> + +<p>O filho não tinha nada dos loucos desvarios do pae, e desde logo vira o +absurdo da guerra de Castella. Seria mais nobre e cavalleiroso proseguir +valentemente na defeza dos direitos da corôa, da honra do velho, e da vida e +sorte da infeliz princeza confiada á guarda de Portugal? Seria. Mas D. João II +pensava (Machiavel) que o principe não deve preoccupar-se com a infamia dos +seus actos, quando sejam necessarios á conservação do Estado; e que, depois de +tudo bem pesado, praticar uma<span class="pn"><a +name="pag_194">{pg. 194}</a></span> certa virtude póde muitas vezes trazer a ruina, +quando a infamia traria comsigo a segurança e a fortuna.</p> + +<p>Este era effectivamente o caso em 1479. Dizia o principe que tempos havia +para usar de coruja, tempos para voar como falcão. Não traduzia, porventura, +com uma concisão mais eloquente, as palavras do italiano?—«O principe deverá +imitar bem os brutos (porque ha duas maneiras de combater: com as leis e com a +força; a primeira dos homens, a segunda dos brutos) e saber empregar as artes +da raposa e do leão; pois o leão não se defende dos laços, nem a raposa dos +lobos: é portanto mistér ser raposa para conhecer as redes, e leão para +assustar os lobos.»—D. João II, menos classico ainda, recorria aos exemplos +venatorios da Edade-media; tempos havia para usar de coruja, tempos para voar +como falcão!</p> + +<p>Os filhos de D. João I, abrindo as portas da nação á cultura da Renascença, +chamando sabios, viajando, formando bibliothecas, tinham lançado á terra dura +do velho Portugal as sementes italianas. Affonso V rebentára do solo como um +cardo antigo, rijo e bravo, cheio de espinhos. Fôra um aborto, ou um +anachronismo medieval. D. João II nascia italianisado, com todos os vicios e +virtudes da cultura da Renascença. A sua côrte era um retrato das pequenas +côrtes de Italia; e o principe como um italiano, cheio de perfidias e ambições, +de lucidez e de manha, de instinctos sanguinarios e fortes decisões +politicas.</p> + +<p>Os tempos de coruja tinham acabado, porque não carecia mais de pactuar com +as tontices do pae; rei agora (1481), seria o falcão. Mas para ser +verdadeiramente rei, teria de vestir ainda muitas vezes o habito da ave +nocturna, até vêr por terra<span class="pn"><a name="pag_195">{pg. 195}</a></span> +o poder d'essa fidalguia que os erros do pae tinham ensoberbado. Isto, porém, +não satisfazia ainda as suas largas ambições. O <em>homem</em>, como Isabel de +Castella o designava com espanto, mirava mais longe. A possibilidade de vir a +sentar-se, elle ou os seus herdeiros, no throno de uma Hespanha unida, +affagára-lhe o espirito em moço, e chegou a esperar (antes de Toro) realisal-a. +Depois, rechaçado, mas não desesperado, fez de coruja em 1479; contando voar de +falcão no momento opportuno. Nem paravam ahi as suas ambições: lembrava-se do +fallecido infante D. Henrique, e dos vastos planos, abandonados, que tinham +fervido n'aquelle cerebro. A sua monarchia dilatava-se da Hespanha á India: e +com a Peninsula na Europa, com a Africa, a India, o encantado reino do +Preste-Joham, sonhou a monarchia de Philippe II...</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>N'uma só cousa o portuguez primava ao italiano: era sobrio, severo, +detestava o luxo—que prohibiu. A sua côrte apresentava o quer que é de funebre +e austero, sempre agradavel a portuguezes. A sua figura, tambem, nada tinha de +imponente, nem de graciosa. Os habitos de coruja davam-lhe mais caracter do que +os de falcão: ás duas aves, porém, pedia a côr que punha em tudo, o negro. De +maravilhoso engenho, subida agudeza, e <em>mixtico pera todalas cousas</em>, de +memoria viva e esperta, faltavam-lhe porém os dotes exteriores. Não tinha +elegancia, nem no corpo, nem no dizer: arrastava as palavras, falava a custo e +com uma voz fanhosa. Era alvo, mas com umas veias de sangue que o faziam «com +menencoria ser muy temido». Inspirava medo sem infundir amor. Aos 37 annos +já<span class="pn"><a name="pag_196">{pg. 196}</a></span> tinha cans na barba o nos +cabellos; só n'essa edade deixou de ser abstemio. A força muscular, dote +necessario aos principes dos bons tempos, tornava-o celebre: cortava com um +golpe de espada tres e quatro tochas de cera reunidas. «Muy grande astucioso e +acquiridor, sem deixar de ser inteiro e dadivoso, era muy manhoso em todalas +boas manhas que um principe deve ter.» A natureza não o ajudava, decerto; e +tambem, na sua educação de principe, deixava de obedecer á regra de Machiavel: +«Não é necessario ser-se dotado de todas as qualidades, mas é indispensavel +affectal-as;—possuil-as e servir-se d'ellas póde chegar a ser perigoso: +fingil-as é sempre util;—seja-se fiel, clemente, humano, religioso e integro; +mas de modo que, senhor de si, se possa e saiba fazer todo o contrario, quando +a isso o caso obrigue.»—D. João não era, nem clemente, nem humano, e não +julgava necessario ao seu papel fingil-o: isso fazia com que muitos o +detestassem, o que era um mal: fazendo com que, se a maior parte o temia, +ninguem o amasse, o que se tornava peior ainda. A perspicacia e authoridade não +eram n'elle bastantes para que soubesse envolvel-as n'uma simulada bonhomia, +porque doçura ou humanidade não as havia na sua alma. Não hesitava perante o +assassinato, á italiana, mas tinha a fraqueza portugueza de confessar como isso +se praticava. Lopo Vaz, a quem Affonso V fizera conde, levantou-se em Moura +defendendo o titulo revogado ou não confirmado, e o rei «por não fiar já +d'elle... determinou de o mandar matar... por certos cavalleiros que +manhosamente lá mandou e o mataram á traição, aos quaes o principe fez boas +mercês». Mas o cardeal D. Jorge da Costa, o <em>alpedrinha</em>, vendo-se +ameaçado, temeu e fugiu para Roma: o rei expozera-lhe um modo facil do +acabar<span class="pn"><a name="pag_197">{pg. 197}</a></span> com elle—mandal-o +tomar por quatro moços de esporas, afogal-o em um rio e dizer que caira e se +afogára por desastre.</p> + +<p>Assim que o pae morreu, D. João II convocou côrtes (1482) e mostrou quem +era. Mandou examinar as jurisdições dos donatarios da corôa, prescrevendo que +os corregedores entrassem nas terras de doação no cumprimento dos mandados +regios, abolindo o direito de asylo dos criminosos usurpado por muitos terrenos +não coutados; e ao mesmo tempo que assim coarctava as regalias historicas da +nobreza, punha cobro ás invasões anarchicas dos fidalgos no fôro dos concelhos, +prohibindo o lançamento de <em>pedidos</em>, o intrometterem-se na jurisdição +do crime e nas eleições e officios municipaes. O rei, inspirado pelas novas +idéas ácerca da authoridade soberana, começava por investir com a nobreza: +seria o successor, D. Manoel, que, reformando os foraes, atrophiaria a outra +face do systema duplo de instituições, cujo equilibrio mais ou menos estavel +formára a vida politica da Edade-media<a name="tex2html71" +href="#foot1207"><sup>[71]</sup></a>. Mas D. João II via-se tambem forçado a +emendar os erros do pae, como o segundo Affonso tivera tambem de fazer á morte +de Sancho I. O moço rei decidira formalmente revogar as doações do antecessor, +reivindicar para a corôa o que os fidalgos tinham pilhado ao pobre, gordo, +Affonso V. De todos esses fidalgos, o chefe era o poderoso duque de Bragança, +cujos dominios contavam cincoenta villas, cidades e castellos, além de +propriedades sem numero; cuja mesnada subia a 3:000 de cavallo e mais de 10:000 +infantes; um rei no reino, do qual possuia, pelo menos, a terça parte. +Costumado a considerar o rei como egual, da linhagem<span class="pn"><a +name="pag_198">{pg. 198}</a></span> de reis, e herdeiro do famoso condestavel, o +duque sincera e ingenuamente acreditava na justiça da sua rebeldia. «Deservia +muito grandemente o rei, fazendo-lhe guerra calada,» e carteava-se com o conde +de Athouguia, seu tio, então em Castella, homem prudente, que buscava +dissuadil-o, respondendo-lhe em enygmas ao gosto da epocha: «Tal não deveis +cuidar, quanto mais commetter... quereis abrir uma fonte para matar vossa +sede... achareis a agua tão quente que vos hão de lá ficar as unhas... +<em>tradiderunt quos deligebam</em>.» Com effeito, era atraiçoado, e o rei +tinha os seus espiões por toda a parte. Um certo Figueiredo vinha a escusas +referir tudo a D. João II, que lhe respondia, com a sua voz demorada, baixa e +fanhosa: «Guarda-te o melhor que puderes, e depois te farei mercê».—O espião +ia e tornava, e quando, afinal, o duque foi preso por surpresa e executado, o +rei deu a mão a beijar ao Figueiredo: «Até agora fiz que te não conhecia, d'ora +avante olharei por ti. Pede o que quizeres: ha tempos de coruja e tempos de +falcão...»</p> + +<p>O duque foi degollado publicamente no rocio de Evora (1483), depois de um +simulacro de processo. Effectivamente, em taes causas os processos são apenas +formulas. A força impera á solta nas demandas politicas, por isso mesmo que +ellas põem em questão os fundamentos organicos da sociedade, e portanto a lei +civil. O duque e o rei eram inimigos velhos; e aos odios antigos vinham +juntar-se agora as intenções, rebeldes em um, tyrannicas no outro. Entretanto, +o caracter desnaturado da politica dos reis na Renascença levava D. João II a +representar um papel repugnante, dando ao vencido uma palma como que de martyr; +ao passo que a sobranceria do fidalgo, quasi-rei, lhe mantinha<span +class="pn"><a name="pag_199">{pg. 199}</a></span> a dignidade altiva até sobre o +cadafalso. Recusa prestar-se a responder no tribunal, a tomar parte na comedia +que o indigna; e quando os carrascos, afflictos, lhe vestem o derradeiro trajo, +uma loba roçagante, capello e carapuça de dó, com os pollegares atados por uma +fita ao cinto, elle observa serenamente: «Soffrerei tudo, e mais um baraço ao +pescoço, se S. A. mandar!»</p> + +<p>A morte, tão digna, do duque de Bragança excitou ambições de vingança na +nobreza, e positivamente começou a tramar-se o assassinato do rei, que o sabia. +Os seus espiões andavam por toda a parte; e a politica dependia das intrigas de +alcova e dos serviços dos miseraveis. O rei usava de todos os instrumentos, e o +<em>sancta sanctis</em> da razão-d'Estado absolvia-o de todos os crimes. Havia +um Tinoco, privado do bispo d'Evora, o qual tinha por manceba uma irmã d'elle, +e que por isso lhe queria muito. O rei descobriu o caso, e comprou-o. Tinoco +veiu, disfarçado em frade, a Setubal, contar a conspiração em que o prelado +estava, e de que o duque de Vizeu era chefe; e recebeu cinco mil cruzados em +ouro e um beneficio de seiscentos mil réis, porque D. João II não regateava o +preço dos bons serviços. Estava compilada e tratada «a segunda e desleal +desaventura de que se causou a triste morte do duque de Vizeu». O rei chamou-o +a Setubal, e matou-o por suas mãos ás punhaladas. Prescindiu de processo, mas +não de um auto posthumo, com o fim de justificar o seu crime, e a perseguição +dos mais conjurados. O bispo de Evora foi mettido no fundo de uma cisterna, em +Palmella, onde com peçonha acabou a vida; os outros foram assassinados ou +justiçados, onde quer que os encontraram os algozes do rei; e um, que +conseguira fugir para França, nem por isso escapou<span class="pn"><a +name="pag_200">{pg. 200}</a></span> com vida, porque o rei mandou lá um sicario +matal-o.</p> + +<p>O principe <em>perfeito</em> mostrava-se consummado na arte de reinar, e +ninguem ousava já resistir-lhe. A primeira metade do seu programma estava +realisada—agora o falcão ia alargar os seus vôos amplos!</p> + +<p>Ninguem lhe resistia, mas no fundo da consciencia alguma cousa o denunciava +como assassino. Uma noute, em Santarem, acorda em sobresalto, ouvindo alguem +chamal-o. Quem era? Ninguem. Illusões! dizia-lhe a rainha no leito: era +<em>cousa má</em> que andava pelos vãos dos telhados.<a name="tex2html72" +href="#foot1208"><sup>[72]</sup></a> O rei não socegava, porém, e levantou-se, +vestiu um roupão, tomou a espada e a rodela, na mão esquerda uma tocha, e viu +que uma sombra o guiava. Quem era? Abria as portas diante do rei, e +mostrava-lhe o caminho. Foram assim até aos vãos dos telhados, a sombra e o +rei. Aos gritos da rainha acudiram todos, e acharam-no no sotão, despejado, +alegre e seguro, diz o chronista mentindo palacianamente. A coruja noctivaga +perseguia o ambicioso falcão: a educação do principe não conseguira apagar de +todo a consciencia do homem.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Fernando e Isabel, de Castella, que lhe haviam tomado o pulso, ainda em +tempo do pae, admiravam-lhe muito as qualidades e tinham-no em grande conta. +Elle, nem por ter tratado as pazes de 1479, desistira dos seus grandiosos +planos. Os reis castelhanos tinham uma filha, D. João II um filho: o casamento +de ambos seria talvez um meio, mais<span class="pn"><a +name="pag_201">{pg. 201}</a></span> simples e mais rapido do que uma guerra, para +dar ao herdeiro um grande throno. Tratou-se, ajustou-se e fez-se o casamento +(1490); e n'esse dia de grandes esperanças, o rei sombrio e fanhoso quiz +mostrar que tambem sabia ser magnifico. As bodas de Evora ficaram celebres, e +principalmente o banquete, uma <em>kermesse</em> formidanda. Na sala do jantar, +onde os noivos, o rei, e toda a côrte se achavam, appareceu uma vasta machina: +era um estrado com rodas, tendo em cima um carro com dois bois, á canga. Os +bois estavam assados inteiros, com as pontas e as patas doiradas; e o carro +carregado de carneiros tambem assados, tambem inteiros, com as armas doiradas. +Vinha um fidalgo, de aguilhada ao hombro a dirigir o carro, e moços empurrando +a machina. Deram a volta da sala, cumprimentando o castelhano, que gabou muito +a idéa; e entre os applausos de todos, o carro saiu, e bois e carneiros foram +dados ao povo, pasmado fóra. Terminado o idyllio culinario, foram-se todos á +comida, a côrte e o povo. Nos velhos tempos do rei D. Pedro essas festas eram +uma só: o rei comia na rua entre os seus, e bailava, ao som das +<em>longas</em>, com as raparigas da rua.</p> + +<p>Á noute houve <em>mômos</em>, que ficaram celebres.</p> + +<p> </p> + +<p><small class="SMALL">Entrou (el-rei) pelas portas da sala com nove bateis +grandes, em cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas +de panno de linho e pintadas de maneira que parecia agua. Com grande estrondo +de artilheria, que troava, e trombetas, atabales, e menistres altas, que +tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de muitos apitos de mestres, +contramestres e marinheiros, vestidos de brocados e sedas, com trajos de +allemães, em bateis cheios de tochas e muitas velas doiradas accesas, com +toldos de brocado e muitas e ricas bandeiras. </small></p> + +<p><small class="SMALL">E assim vinha uma nau á vela, cousa espantosa, com +muitos homens dentro e muitas bombardas, sem ninguem vêr o artificio como +andava, que era cousa maravilhosa. </small></p> + +<p><small class="SMALL">O toldo de brocado e as velas de tafetá branco e +roxo,<span class="pn"><a name="pag_202">{pg. 202}</a></span> a cordoada de ouro e +seda, e as ancoras doiradas. E assi a nau, como os bateis, com muitas velas de +cêra douradas todas accesas, e as bandeiras e estandartes eram das armas +d'el-rey e da princeza, todas de damasco e doiradas, e vinha diante do batel +d'el-rey, que era o primeiro sobre as ondas, um muito grande e formoso cysne +com as pennas brancas e doiradas, e apoz d'elle vinha na prôa do batel o seu +cavalleiro em pé, armado de ricas armas, e guiado d'elle, e em nome d'el-rey +saíu com sua falla e em joelhos deu á princesa um breve, conforme sua tenção, +que era querel-a servir nas festas do seu casamento; e sobre conclusão de +amores desafiou para justa de armas, com oito mantedores, a todos os que o +contrario quizessem combater. </small></p> + +<p><small class="SMALL">E por rei de armas, trombetas e officiaes para isso +ordenados, se publicou em alta voz o breve e desafio, com as condições das +justas e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia como para +quem melhor justasse. E acabado, os bateis botaram pranchas fóra, e saiu el-rey +com seus requissimos mômos, e a náu e bateis, que enchiam toda a sala, se +saíram com grandes gritos e estrondo de artilharia, trombetas, atabales, +charamellas e sacabuxas, que parecia que a sala tremia e queria caír em +terra.</small></p> + +<p><small class="SMALL">El-Rey dançou com a princeza, e os seus mantedores com +damas que tomaram, e logo veio o duque com fidalgos da sua casa, com outros +requissimos mômos. E veio outro entremez muito grande, em que vinham muitos +mômos mettidos em uma fortaleza, entre uma rocha e mata de muitas verdes +arvores e dois grandes selvagens á porta, com os quaes um homem de armas +pelejou e desbaratou, e cortou umas cadeas e cadeados que tinham cerradas as +portas do castello, que logo foram abertas, e por uma ponte levadiça sairam +muitos e mui ricos mômos; e em se abrindo as portas, saíram de dentro tantas +perdizes vivas e outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia de +aves que andavam voando por ella até que as tomavam. E saído este grande e +custoso entremez, veiu outro em que vinham vinte fidalgos, todos em trajos de +peregrinos, com bordões dourados nas mãos, e grandes ramaes de contas douradas +ao pescoço, e seus chapeus com muitas imagens, todos com manteos que os cobriam +até ao joelho, de brocados e por cima com remendos de veludo e setim... E assi +vieram muitos e ricos mômos que não digo... e dançaram todos até antemanhan; e +foi tamanha festa que, se não fôra vista de muitos, que ao presente são vivos, +eu a não ousara escrever. </small></p> + +<p> </p> + +<p>O principe <em>perfeito</em> sabia tambem ser magnifico, e qual um Medicis, +no momento opportuno. De facto, o casamento affagava-lhe as esperanças e +ambições, abrindo horizontes de novas grandezas.<span class="pn"><a +name="pag_203">{pg. 203}</a></span></p> + +<p>Ainda Colombo não descobrira a America, mas o futuro imperio do principe +Affonso alargava-se já por ignotas regiões. D. João II queria dar, em troca de +Castella, um bom dote ao herdeiro; queria-o, além de imperador da Hespanha +inteira, e da Italia hespanhola, imperador dos Estados orientaes do +Preste-Joham. As propostas de Colombo, apesar de recusadas, excitavam-no; e por +terra e mar enviava expedições em busca do lendario principe. A empreza +iniciada pelo infante D. Henrique proseguia nas mãos do rei, que tomára a peito +descobrir os mundos remotos. O seu poder naval era já tão grande, que o Tejo +via com pasmo o famoso galeão de mil tonneis, monstro boiando n'agua, erriçado +de canhões. Nunca os estaleiros tinham produzido navio tão grande; nunca até +ahi surgira a idéa que o rei teve de artilhar as caravelas, dando um alcance e +uma mobilidade desconhecida aos trons do mar. No seu pensamento havia um +proposito firme de o subjugar, desvendando-o até aos seus ultimos confins, +dissipando inteiramente as trevas e mysterios das ondas. Mandou aperfeiçoar as +bussolas, desenhar cartas maritimas para orientação das rotas; commettendo +esses estudos a uma Junta em que entraram os seus phisicos, mestre José e +mestre Rodrigo, ambos judeus, com o famoso allemão Behaim, discipulo de João +Monte-Regio, que em Vienna estudára astronomia com o celebre Purbach. Foi essa +junta que inventou as taboas da declinação do sol, permittindo aos navios +alongarem-se das costas, rumando seguros em alto mar. Traçavam-se como que +estradas sobre as ondas, estradas tão mysteriosas como as regiões da Mina, cuja +navegação costeira a astucia do rei envolvia em descripções terriveis para +afugentar rivaes—á maneira do que os phenicios tinham feito, quando<span +class="pn"><a name="pag_204">{pg. 204}</a></span> os romanos pretendiam seguil-os +nas suas viagens mediterraneas.<a name="tex2html73" +href="#foot1209"><sup>[73]</sup></a> A posse dos segredos das costas e dos +segredos das rotas enchia de confiança o animo do rei no futuro grandioso do +seu imperio. O cabo da extrema Africa, limite por tanto tempo invencivel, tinha +já recebido o nome de Boa-Esperança! (1486).</p> + +<p>Aladas esperanças eram todas essas que o rei afagava, olhando a cabeça do +filho. N'este momento, a que podemos e devemos chamar revelador, D. João II +teve a consciencia do famoso destino que se preparava á Hespanha: do seu +imperio universal, da extraordinaria vastidão do seu poder politico, e da sua +influencia moral. Symbolisava tudo isso na cabeça do filho amado; porque a +cegueira dos homens careceu sempre das lunetas de um symbolo para vêr de certo +modo a realidade das cousas. Os symbolos passam, as cousas ficam; e da mesma +fórma os homens morrem e as idéas vivem eternamente. E, na sua fraqueza, o +espirito humano amortece, desespera e cáe quando vê apagado ou destruido o +symbolo em que para elle estava, mesquinhamente, a realidade inteira.</p> + +<p>O funesto acaso da queda de um cavallo, matando o principe Affonso (1491), +foi para D. João II como o tiro do caçador, quando n'um instante precipita, ás +voltas, o passaro que de azas pandas vogava, inebriado, no oceano do ar e da +luz. O largo vôo do falcão estacou, e todas as illusões se apagaram deante do +cadaver gelado do principe, casado de um anno. Essa vida que se finára, levava +comsigo todos os sonhos doirados, todas as esperanças, todas as chimeras!</p> + +<p>Foi um choro universal. «El-rey por tamanha<span class="pn"><a +name="pag_205">{pg. 205}</a></span> perda, tamanho nojo e sentimento, se trosquiou. +E elle e a rainha se vestiram de muito baixo panno negro. E a princeza +trosquiou os seus bellos cabellos e se vestiu de almafega e cabeça coberta de +negro vaso.» Nas exequias, os homens, as mulheres, até as creanças, tomados de +vertigem, arrancavam as barbas e os cabellos, davam bofetadas nas faces, batiam +com as cabeças nas quinas da eça funeraria, e arranhavam o rosto a fazer +sangue. O luto era geral e desvairado. Á imitação do rei e da princeza viuva, +toda a gente andava tosquiada; o os que não podiam, por pobres, comprar o +burel, que encarecera excessivamente, adoptaram trajos extravagantes: as +mulheres vestiam as saias do avêsso, e os homens punham em cima de si os saccos +de forragens e os xaireis ou cobertas das bestas de carga.</p> + +<p>Este incidente imprevisto da morte do principe é um dos que obrigam a +meditar sobre o valor do acaso na historia. Tivesse-se consummado a união +dynastica de Portugal ao resto da Hespanha já unificado, e a historia da +Peninsula, a historia da Europa, seriam diversas.<a name="tex2html74" +href="#foot1210"><sup>[74]</sup></a> Que papel teria tido no mundo um imperio +exclusivamente senhor de todas as regiões descobertas? Que teria succedido, se +Carlos V e a dynastia austriaca não viessem reinar em Hespanha, pondo nas mãos +de um homem o imperio da Allemanha, da Italia e da Peninsula iberica? Acaso a +união, realisada no periodo ascencional da Hespanha, se tivesse consolidado +abafando o cristallisar da alma portugueza na éra classica e abastardando a +semente que nos deu Camões. Unido então, Portugal ficaria como se<span +class="pn"><a name="pag_206">{pg. 206}</a></span> nunca tivesse existido, por isso +que não chegára ainda a formular o seu pensamento historico, nem a consummar a +sua empreza...</p> + +<p>D. João II, humilhado, abatido, e rapado por dó, voltou a envergar o habito +da coruja, para morrer (1495). Agonisante, mal podendo articular já as +palavras, com uma voz arrastada e fanhosa que a proximidade da morte fazia +satanica, dizia, encostando a cabeça felina sobre a mão descamada: «Persigam-me +sem dó os filhos do Bragança!»<span class="pn"><a +name="pag_207">{pg. 207}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1207" href="#tex2html71"><sup>[71]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) p. 137-49.</p> + + <p><a name="foot1208" href="#tex2html72"><sup>[72]</sup></a> <em>V. Systema + dos mythos relig.</em>, p. 291.</p> + + <p><a name="foot1209" href="#tex2html73"><sup>[73]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, liv. <small>IV</small>, 3.</p> + + <p><a name="foot1210" href="#tex2html74"><sup>[74]</sup></a> V. <em>Theoria + da hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp. + <small>XXXII-III</small>.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002340">IV<br> +Em demanda do Preste-Joham das Indias</a> </h3> + +<p>No verão de 1486 tinha Bartholomeu Dias partido de Lisboa, para dobrar o +Cabo da Boa Esperança; o que de facto conseguiu, não podendo porém ir mais +ávante, porque lh'o não consentiram as tripulações assustadas. No mesmo anno +mandára o rei, por terra, para o Oriente, Antonio de Lisboa e Pero Montaroyo, +que não passaram de Jerusalem, por só ahi reconhecerem que, não sabendo falar o +arabe, não podiam intentar a viagem.</p> + +<p>No anno seguinte, portanto, escolhem-se dois homens que sabem arabe, para ir +por terra descobrir o Preste-Joham. A viagem por mar, ou se abandonava por +parecer impossivel, ou aprazava-se para mais tarde: quando houvesse informações +mais cabaes, colhidas nas expedições por terra. Affonso de Payva e Pero da +Covilhan partiram de Lisboa, via Napoles, com cartas de credito sobre o +principe banqueiro, Cosme de Medicis. D'ahi os viajantes embarcam para Rhodes, +depois para Alexandria, d'onde seguiram pelo Cairo para Tur, (Tor) na praia do +mar Vermelho ao sopé do Sinai, como mercadores, acompanhando as caravanas. De +Tur foram a Aden, onde se separaram: Covilhan para a India, Payva para Suâkin +(Suaquem) na costa da Abyssinia; aprazando o encontro, á volta, no Cairo.<span +class="pn"><a name="pag_208">{pg. 208}</a></span></p> + +<p>Covilhan, em Aden, embarcou para Kananor, no Malabar, e d'ahi foi a Kalikodu +(Calecut) e a Gôa. Atravessou, depois, o oceano indico, indo parar a Sofala, +onde colheu noticias sobre a costa oriental da Africa, e sobre a ilha da Lua +(Madagascar). Voltou logo ao Cairo, pressuroso de enviar a Lisboa as +importantes informações obtidas, e ahi soube da prematura morte de Payva. +Recebidas em Lisboa as cartas do viajante, D. João II recambiou logo os arabes +seus emissarios, com ordem de visitarem Hormuz e a costa da Persia. Executada +essa missão, Covilhan, cujo primeiro dever era obter noticias do Preste-Joham, +partiu para a Abyssinia. Já por esta epocha o encantado principe que, segundo +Marco Paolo, habitava a Asia central, fôra transferido para a Nubia: e a lenda +personalisava no obscuro Negus o extravagante monarcha, tão falado e admirado +em tempos anteriores. Covilhan, de quem não houve outras cartas, por largos +annos aprendêra no Oriente a verdade; mas não podia transmittil-a para +Portugal. Preso, sem ser maltratado, favorecido e rico pelo contrario, viveu +por trinta e tres annos na Ethiopia,<a name="tex2html75" +href="#foot1211"><sup>[75]</sup></a> onde acabou.</p> + +<p>Se a sua viagem não saciava a curiosidade principal do monarcha portuguez, +se o Preste-Joham continuava a ser um mytho, o facto é que mais valiosos +resultados se tinham obtido. A Covilhan cabe a honra de ter marcado o +itinerario da navegação da India, affirmando que pelo sul da Africa se chegaria +ao Oriente. Nas cartas que enviou do Cairo, dizia que os navios que navegassem +ao longo da costa da Guiné, chegariam, proseguindo, ao extremo<span +class="pn"><a name="pag_209">{pg. 209}</a></span> sul do continente africano: e +que, aproando ahi para leste, em direcção da ilha da Lua, por Sofala, se +encontrariam no caminho da India.</p> + +<p>D'estas e das mais informações recebidas se compoz o programma da atrevida +expedição do anno de 1497, cujo destino marcado era desde logo Kalikodu, ou +Calecut, como cá lhe chamavam, e onde Covilhan estivera. Vasco da Gama foi +escolhido por D. Manuel (já a esse tempo D. João II tinha tres annos de +fallecido) para commandar a expedição. Era um homem ousado mas prudente, e +reunia ás qualidades militares as de marinheiro, cousa então commum, e depois +ainda. Succedeu o mesmo a Affonso D'Albuquerque, a D. João de Castro, e a +muitos outros; e a esta circumstancia deve dar-se um merecido alcance. A +separação das aptidões não vinha embaraçar os planos; e havia uma unidade no +mando, porque o capitão era tambem o piloto.</p> + +<p>O maior juizo e prudencia dirigiam os preparos da expedição. Pesavam-se e +debatiam-se todas as noticias do Covilhan, commentando-as com os conhecimentos +anteriores. Examinavam-se os roteiros e cartas; e Bartholomeu Dias de viva voz +contava tudo o que lhe succedera, os embaraços com que havia a luctar, as +difficuldades a vencer. Com a sua larga experiencia dirigia a construcção dos +navios, banindo os exageros nas dimensões, recommendando a solidez dos +cavernames. O descobridor do Cabo devia acompanhar a expedição até S. Jorge da +Mina, e ficar ahi no <em>resgate</em> do ouro. Eram quatro náus pequenas, para +poderem entrar em todos os portos, visitar todas as angras, passar os baixios, +ao longo das costas. A sua construcção ia aprimorada e forte, como jámais se +vira: madeiras escolhidas, sans, e de exagerada grossura, pregadura<span +class="pn"><a name="pag_210">{pg. 210}</a></span> bem atacada, demorado e cuidadoso +calafeto. As attenções não eram menores com o equipamento: levavam tres +<em>esquipações</em> de velas armadas e mais apparelhos, cordoalha tres vezes +dobrada, e mantimentos, armaria e bombardas em abastança. Levavam seis padrões +de pedra lioz com o brazão portuguez e a esphera armillar, que o rei adoptara +por emblema, esculpidos. Um havia de ser collocado na bahia de S. Braz, outro +na foz do Zambeze, outro em Moçambique, outro em Melinde, outro em Calecut, +outro na ilha de Santa Maria. Iam dois capellães a bordo de cada navio; iam +linguas ou interpretes negros, cafres e arabes; iam dez condemnados para +qualquer sacrificio necessario, e finalmente iam cento e quarenta e oito +soldados. Tinham-se escolhido os melhores pilotos, e o rei não consentia que se +poupasse em cousa alguma. Vinha em pessoa examinar o estaleiro, e demorava-se a +conversar com os mestres, ouvindo as observações de Bartholomeu, de Pedro Dias, +e Vasco da Gama, que lhe mostrava o novo astrolabio de Behaim, tosco triangulo +de madeira, mas muito efficaz. Pelo modelo tinham-se mandado fazer outros, mais +pequenos, de latão.</p> + +<p>Tres dos navios levavam os nomes dos tres archanjos: <em>S. Gabriel</em>, +capitanea, de 120 toneis, <em>S. Miguel</em> (antigamente <em>Berrio</em>) e +<em>S. Raphael</em> de 100 toneis. O nome do quarto, de 200 toneis, +desconhece-se.</p> + +<p>No fim de junho estavam todos concluidos, promptos e fundeados no mar, em +frente da egreja de Restello, onde os capitães velaram a noute de 7 de julho. +No dia seguinte, depois da missa, acompanhados pelo rei e por todo o povo da +cidade, seguiram em procissão para a praia, cantando, com tochas nas mãos, e +embarcaram.<span class="pn"><a name="pag_211">{pg. 211}</a></span></p> + +<p>Diz Camões que, n'este momento,</p> + +<blockquote> + <p>... hum velho d'aspeito venerando,<br> + Que ficava nas praias entre a gente,<br> + .....................................<br> + C'hum saber só d'experiencias feito,<br> + Taes palavras tirou do experto peito:<br> + ......................................<br> + Oh maldito o primeiro que no mundo<br> + Nas ondas vela poz em sêcco lenho!</p> +</blockquote> + +<p>No peito de muitos havia, com effeito, uma condemnação formal por essa teima +persistente dos monarchas em sacrificar dinheiro e gente á chimera das +navegações.<a name="tex2html76" href="#foot1212"><sup>[76]</sup></a> A +prudencia de experiencias feita, ronceira e fria, não acreditava no exito, +depois de tantas tentativas falhadas. O resultado havia de votar contra ella; +mas as palavras do poeta prophetisavam as consequencias funebres d'um imperio, +que todos porém, os audazes e os prudentes, acclamaram quando Vasco da Gama +voltou. Camões, assistindo já ao declinar do sol, pôde contar as fomes +soffridas no mar, os temporaes e os naufragios, as peregrinações nos reinos +adustos do terrivel Adamastor, e o collar de esqueletos brancos estendidos ao +longo dos areaes das duas Africas—um rosario de tragedias funebres! Pôde +tambem contar as ondas de protervia e crimes, d'esse mar da India, que se +estirou até á Europa para afogar Portugal em vasa.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Com sete dias de viagem, a 15 (julho), chegam ás Canarias, onde um nevoeiro +dispersa a pequena frota, que, entre 23 e 27, se reunia outra vez em<span +class="pn"><a name="pag_212">{pg. 212}</a></span> Cabo-Verde, para d'ahi partir em +3 de agosto. Tres mezes gastaram para descer até Santa Helena (nov. 7), onde +refrescaram, porque tinham seguido ao largo, sem se internarem no golpho da +Guiné. Desembarcaram tambem para reconhecer a altura, com o astrolabio, porque +a bordo não lh'o consentiam os balanços dos navios; tiveram algumas escaramuças +com os indigenas, e partiram afinal no dia 16 de novembro. A 19 estavam á vista +do cabo Tormentoso ou da Boa-esperança, dois nomes que egualmente justificou +d'esta vez. Tres dias alli andaram, batidos pelos temporaes. O vento e o mar +eram tantos, que os navios mettiam as postiças debaixo de agua, e difficilmente +se diria se andavam sobre as ondas, ou de envolta com ellas. No alto dos +castellos, á pôpa, levavam as náus retabulos pintados, com a imagem dos santos +do seu nome; e quando o mar lançava com estrepito os paineis, sobre o tendal, +toda a tripulação das náus empallidecia de susto. Era um triste prognostico, e +parecia que o favor divino os queria desamparar. Mares crueis e espantosos +vinham pela pôpa arrebatando os bateis, arremeçando-os contra os costados das +náus, avariando os lemes. Amainavam as velas, cortavam os tendaes, começavam a +alijar carga ao mar... Por fim o tempo abonançou: «Nosso Senhor seja louvado, +que nas maiores fortunas soccorre com a sua infinita misericordia!»</p> + +<p>Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na bahia de S. Braz, onde as +calmarias os forçaram a demorar-se até 7 do mez seguinte. Navegando uma semana +ao longo da costa austral d'Africa chegam a 15 aos ilheus-Chãos, derradeiro +termo da viagem de Bartholomeu Dias. Começavam agora a seguir as instrucções do +Covilhan, o piloto ausente pelas terras do Preste-Joham, a quem +demandavam.<span class="pn"><a name="pag_213">{pg. 213}</a></span> Queriam seguir +ao longo da costa, mas as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos +para o pélago do sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente: +Vasco da Gama, como um destino, inexoravel e prudente na sua audacia, venceu as +revoltas e as correntes.</p> + +<p>Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o +temivel cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e o céu +de azul puro: á noute, por duas ou tres vezes, no topo dos mastros, brilhava a +luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de Lisboa. Tudo eram promessas de +bonança. Subiam aos mastros a vêr os signaes do milagre, e traziam, com +devoção, os pingos de cera verde que o santo lá deixára. Ás vezes chegavam a +brigar contra algum incredulo, e mais de um d'esses pagou <em>por ello</em>. Os +marinheiros recordavam-se piamente do seu santo, que ficára em Lisboa, e de +Xabregas, onde cada anno o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham, +pondo os seus ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, musicas, folias +e merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não +rebellavam, e alegres proseguiam, confiados tambem na pericia e valor do +capitão, que os domava com intrepidez.</p> + +<p>A 10 de janeiro tomavam terra em Inhambane, communicando com os cafres: a 22 +tinham subido até Quilimane, onde veem visital-os a bordo <em>fidalgos</em>, +com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez chegavam <em>á +India</em>. Viam gentes diversas, e signaes d'essa civilização distante, +demandada com tanto ardor. Emergiam do mar d'Africa e da obscura sombra do +continente negro. Esses <em>fidalgos</em>, para quem olhavam, porém, quasi com +amor, como irmãos, seriam os seus mais crueis inimigos.<span class="pn"><a +name="pag_214">{pg. 214}</a></span></p> + +<p>Ficam um mez em Quilimane, para reparar os navios e restaurar a saude, +porque o escrobuto começára a lavrar com força nas tripulações; e, partidos, +chegam em 2 de março a Moçambique. Os symptomas anteriores augmentam: veem +mais, muitos <em>fidalgos</em>: estão, decididamente, ás portas da India! vão +afinal chegar ao imperio do Preste!</p> + +<p>O que observavam augmentava-lhes o desejo, avivando-lhes a curiosidade. Tudo +era novo para elles, mas tudo avigorava as esperanças de virem a encher-se com +o saque dessas cousas brilhantes, marfins e sedas, ouros e pedras, que luziam +nos toucados e vestidos dos <em>fidalgos</em> de Moçambique. Em volta da +esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta nem pregaria: as +taboas cosidas a couro, e velas de esteiras de palma.<a name="tex2html77" +href="#foot1213"><sup>[77]</sup></a> Os mouros vinham mercadejar com elles. O +proprio sultão em pessoa quiz cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a +bordo. Pediu-lhe pilotos que o guiassem á India, á terra do Preste-Joham; +pediu-lhe informações ácerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe que o +Preste era um poderoso principe, com muitas cidades n'aquella costa, grandes +navios e muita copia de mercadores: foi, pelo menos, isso o que Vasco da Gama +percebeu, e taes novas encheram-no de alegria.</p> + +<p>Mostrou-se depois o sultão perfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi +seguindo, costeiramente até Mombas (8 de abril), onde um acaso a salvou da +traição que <em>os mouros</em> lhe preparavam. Elles tinham descortinado já +perigosos concorrentes n'esses homens vindos por mar ás regiões que, desde a +Arabia, o Egypto e a Nubia, eram até ahi imperio seu e indisputado. Salvo por +um milagre, Vasco da<span class="pn"><a name="pag_215">{pg. 215}</a></span> Gama +seguiu a Malinda (15), onde o <em>sultão</em> o acolheu bem; mas não confiando +mais n'esses <em>fidalgos</em> do Zamgebar, aproveitou de um mouro que se +deixára ficar a bordo em Moçambique, e que succedeu conhecer a rota para +Kalikodu. Fizeram-se ao mar, e em vinte e seis dias (24 de abril a 19 de maio) +estavam na India. Durára a viagem dez mezes e onze dias.</p> + +<p>Foi então que o seu espanto chegou ao auge. Tudo o que já tinham visto não +dava uma idéa, nem distante, do que viam agora, desembarcados. O esplendor e o +fausto natural do Oriente enchiam-nos de admiração e cubiça; e na sua +ignorancia religiosa viam por toda a parte os christãos do Preste. Os indigenas +adoravam a Virgem Maria; e os nossos prostravam-se tambem deante de Nossa +Senhora na pessoa de Gauri, a deusa branca, Sakti de Shiva, o destruidor. Esta +confusão, augmentada ainda por não se entenderem no que diziam, dava logar a +scenas ingenuamente comicas. Alguns, duvidosos, observavam que, se os idolos +eram diabos, a sua reza era só para Deus; e com esta reserva mental ficavam +quietos na consciencia. Para augmentar o espanto, veiu ter com elles um +<em>mouro</em> a falar portuguez: «Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! +muitas esmeraldas!»</p> + +<p>E nada d'isto era um sonho, eram «sem mentir, puras verdades.» Os indigenas +abraçavam-nos, e os broncos alemtejanos, os beirões, os marinheiros do Tejo, +ingenuos e ignorantes, abraçavam-nos tambem, na effusão de um instincto humano, +como patricios. Dir-se-ia que se conheciam de muito, e que pouco ou nada os +distinguia: de Lisboa á India era uma curta distancia, porque o sentimento não +tem bitolas. Eram todos christãos, tambem tinham reis! o mundo era um só, e o +homem o<span class="pn"><a name="pag_216">{pg. 216}</a></span> mesmo em toda a +parte! A naturalidade ingenua com que se praticavam as maiores cousas, é a +grande prova da força heroica dos homens da Renascença.</p> + +<p>Por esse tempo, na India—e com este nome designamos todas as costas e ilhas +incluidas entre os meridianos de Suês e de Tidor, e entre 20° de latitude S. e +30° N., theatro das campanhas portuguezas—na India, dizemos, raças estranhas +impunham uma especie de dominio em tudo similhante ao que foi depois o dos +portuguezes: um monopolio commercial-maritimo, e como consequencia d'elle, +feitorias, colonias e Estados. Os povos que nós iamos despojar d'esse dominio +eram os arabes e os ethiopes, os persas, os turkomanos e os afghans, que, +descendo do mar Vermelho e do mar da Arabia, confundidos na onda religiosa do +islamismo, tinham avassalado a peninsula do Indo ao Ganges, e a Africa oriental +desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o extremo Oriente iam, como nós +fomos, até Kambodja e Tidor nas Molucas, atravez do Arakan e do Pegu, da +peninsula de Malaka e de Birma e Shan (Sião) no continente, atravez de Sumatra +e Borneo e pelo meio do archipelago de Sunda. A todas essas gentes chamaram os +portuguezes <em>mouros</em>,<a name="tex2html78" +href="#foot1214"><sup>[78]</sup></a> expressão generica já usada na Europa para +designar os sectarios do Islam, e por isso tambem adoptada agora que, tão longe +e atravez de tantos mares, iamos encontrar-nos de novo, frente a frente, com o +<em>turco</em>, antagonista do <em>christão</em> em todo o mundo.</p> + +<p>«Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?» assim um mouro de Tunis, em +Kalikodu, cumprimentava<span class="pn"><a name="pag_217">{pg. 217}</a></span> o +portuguez; e como em Moçambique e em Mombas, os <em>mouros</em> (usaremos d'ora +ávante d'esta expressão generica, já explicada) induzem ou obrigam o +Samudri-rajah (Çamorim), rei ou conde—a India vivia n'um regime +simili-feodal—de Kalikodu, a exterminar os portuguezes. Kalikodu era o emporio +commercial da costa do Malabar, e os dominios do seu rajah formavam o chamado +reino de Kanará.</p> + +<p>Facil seria, sem duvida, convencer o principe de que Vasco da Gama era um +pirata, o seu rei uma burla; e sem o pensarem, decerto, os mouros de Kalikodu +definiam antecipadamente o dominio portuguez, que só veiu a differençar-se +d'uma pirataria commum, em ser uma rapina organisada por um Estado politico. +Convencido ou violentado, o rajah manda perseguir os navegantes, que embarcam e +se defendem (agosto 30.) Depois de uma estação, de alguns mezes na ilha de +Anjediva, sobre a costa, Vasco da Gama decide voltar; e faz-se de vela para +Portugal em 10 de julho de 98. Um anno depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa. +Na viagem, separou-se da frota Nicolau Coelho em Cabo Verde, e Vasco da Gama +veiu pela Terceira, sepultar ahi o irmão que morrera no mar.</p> + +<p>O enthusiasmo foi grande em Lisboa, á chegada de Vasco da Gama: tambem D. +Manuel tinha as suas Indias, e Portugal o seu Colombo! E o Preste-Joham, que +noticias? E de Covilhan? Nada. O navegador conseguira vencer o Cabo e achar a +India, mas não conseguira decifrar o enigma, que a este tempo já contava tres +seculos de successivas indagações.</p> + +<p>Pouco viriam essas a importar para a historia. O essencial era a decifração +do outro enigma, ainda maior—o do Mar Tenebroso. Pouco faltava já;<span +class="pn"><a name="pag_218">{pg. 218}</a></span> e em vinte annos mais, não +haveria, na rotunda superficie do globo, um canto de terra incognita, nem um +palmo por explorar na vasta amplidão dos mares. «Debaixo das bravas ondas, por +saber os segredos da terra e os mysterios e enganos do oceano», os portuguezes, +com uma curiosidade heroica, tomaram em suas mãos o futuro da Europa, e do +mundo. No anno seguinte ao da descoberta da India, Pedro Alvares Cabral, que +para lá fôra mandado com uma imponente esquadra, não resiste á tentação da +curiosidade. Descendo no Atlantico, em direcção de leste, uma pergunta +incessante o persegue: que haverá para o poente? Para esse lado descobriu +Colombo umas Indias no hemispherio norte: acaso haverá mais Indias no +hemispherio do sul? Amarou para oeste, a indagar, a vêr... Mais uns mezes, na +longa viagem do Oriente, que importavam? Com effeito, descobriu o Brazil;<a +name="tex2html79" href="#foot1215"><sup>[79]</sup></a> a terra de oeste vinha, +desde o extremo norte até ao extremo sul, estendendo-se ao longo, nos dois +hemispherios. Só então a America se pôde dizer inteiramente descoberta.</p> + +<p>A noticia das novas terras encontradas impressionou pouco Lisboa; na côrte +ardia o desejo de descobrir o Preste, o encantado Preste-Joham; de fazer com +elle um bom tratado, para chamar a Portugal um pouco, ao menos, das tantas +cousas boas que Vasco da Gama vira por seus olhos, e, contadas, enchiam de +cubiça o espirito de toda a gente. Cabral fôra mandado a isso, e não a +descobrir terras: já eram demais as Cruzes, e os nomes do repertorio +escasseavam já para denominar ilhas e cabos, portos e bahias, costas e +continentes. Desejava-se outra cousa, ferviam outras esperanças:<span +class="pn"><a name="pag_219">{pg. 219}</a></span></p> + +<p>«Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas esmeraldas!»</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Tomarem-no por um pirata enchera de colera Vasco da Gama. Além da +necessidade de mostrar ao Çamorim perfido o poder do rei de Portugal, era +indispensavel desaggravar os brios do fidalgo offendido. Não podia ir d'esta +vez, mas para outra seria a sua vingança.</p> + +<p>Logo que Vasco da Gama chegou, decidiu-se, pois, enviar uma grande armada á +India; porque agora, sabido o caminho, não havia mais receios, nem motivos, +para reduzir o numero, nem a lotação dos navios. Pedro Alvares Cabral fôra +nomeado almirante da frota, que contava treze náus, e levava mil e duzentos +homens.</p> + +<p>A construcção dos navios tinha progredido com a frequencia e extenção das +viagens. Naus e galés, embarcações de vela e remo, tinham-se preparado melhor, +augmentando em dimensões. No primeiro quartel do <small>XVI</small> seculo, +porém, quando a avidez commercial não pervertia ainda a prudencia, a lotação +ordinaria não excedia 400 toneladas.<a name="tex2html80" +href="#foot1216"><sup>[80]</sup></a> A náu navegava á vela, jogando dos +costados a artilheria, no convez ou sob a coberta. Á pôpa e prôa, nos +castellos, luxuosamente ornados de lavores e douraduras, assentavam tambem +canhões; e nos cestos de gavea havia pequenas colubrinas. De um a outro +castello corria um baileu ou varanda volante, d'onde, nos combates, atiravam os +mosqueteiros, e se passava á abordagem dos navios inimigos. Muitas<span +class="pn"><a name="pag_220">{pg. 220}</a></span> náus andavam munidas de rostos ou +esporões de aço nas prôas, para a investida. As galés, navios de remo, +dividiam-se em <em>bastardas</em> e <em>subtis</em>: as primeiras de 27 bancos +a tres remeiros e 7 peças grossas; as segundas de 25 bancos e 5 peças apenas. A +artilheria grossa jogava sómente á prôa, nos costados: entre os remeiros, +collocavam-se, porém, umas peças menores, a que se chamava <em>berços</em>. +Havia, além d'isto, as <em>fustas</em>, galés pequenas de 16 ou 20 bancos de +dois remos, com duas peças grossas. As galés, comtudo, tambem velejavam: e para +isso tinham dois mastros, onde levavam latinos; as fustas um só. Havia, porém, +galés que, por se approximarem mais da armação das náus, se diziam +<em>bastardas</em>: armavam dois mastros, mas no do traquete tinham duas velas +redondas, e cestos de gavea, como as náus.</p> + +<p>A esquadra de Pedro Alvares Cabral levantou ferro do Tejo no dia 9 de março +do anno de 1500. Os gritos da marinhagem, para alar a um tempo os viradores nos +cabrestantes, melopêa triste e funebre como o mar; o surdo roçar das amarras +nos escovens; o apito dos mestres, dirigindo as manobras; as bandeiras +multicolores soltas ao vento; e as velas meio desdobradas nos mastros, formavam +o vivo quadro da nação que tambem partia, no anno de 500, já confessada e bem +disposta, para essa longa viagem de pouco mais de um seculo, cheia de +escrobutos e naufragios, ao cabo da qual a esperava um tumulo, vasto como é o +mar, mudo como elle é nas calmas funebres dos tropicos.</p> + +<p>Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não partiam +á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e queriam trazer para +Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o capitão levava cartas +solemnes do<span class="pn"><a name="pag_221">{pg. 221}</a></span> rei para o +Çamorim. Em troca d'ellas, da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam, +viriam os rubis e as esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo +turco, inimigo de Deus!</p> + +<p>Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa +religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta—os dois deuses que viviam +no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados, mas servidos +ambos de um modo egualmente barbaro.</p> + +<p>O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de Colombo, +que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na existencia do +lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se tinham feito. Não o +mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle queria tambem inscrever o +seu nome na lista dos que, durante o seculo anterior, tinham pouco a pouco +rasgado as trevas do mar mysterioso. A sua viagem, além de iniciar o dominio +portuguez na India, teve, com effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu +as duas lendas, a do Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu +dizer a D. Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei +preto, infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia.</p> + +<p>Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os +continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão, consummára +a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma miragem, e os homens +sombras levadas pelos sabios ventos do destino...</p> + +<p>Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente, +faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e dar-lhe a +volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas<span class="pn"><a +name="pag_222">{pg. 222}</a></span> mãos do homem: eis ahi o valor da viagem de +Magalhães, vinte annos mais tarde.</p> + +<p>Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova +empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo.</p> + +<p>Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral<a +name="tex2html81" href="#foot1217"><sup>[81]</sup></a>.<span class="pn"><a +name="pag_223">{pg. 223}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1211" href="#tex2html75"><sup>[75]</sup></a> V. <em>Regime + das riquezas</em>, p. 109.</p> + + <p><a name="foot1212" href="#tex2html76"><sup>[76]</sup></a> V. <em>Hist. da + repub. romana</em>, p. <small>I, XIX</small>, <em>intr.</em></p> + + <p><a name="foot1213" href="#tex2html77"><sup>[77]</sup></a> V. <em>Regime + das riquezas</em>, pp. 85-6.</p> + + <p><a name="foot1214" href="#tex2html78"><sup>[78]</sup></a> V. nas <em>Raças + humanas</em>, a ethnographia do Oriente a pp. 70-85, 90-105 e 122-41 do vol. + <small>I</small>.</p> + + <p><a name="foot1215" href="#tex2html79"><sup>[79]</sup></a> V. no <em>Brazil + e as colon. port.</em> p. 3 (2.ª ed.) a descoberta das costas brazileiras.</p> + + <p><a name="foot1216" href="#tex2html80"><sup>[80]</sup></a> V. no <em>Brazil + e as colonias port.</em> (2.ª ed.) a composição typo de uma nau da India, a + p. 34 <em>nota</em>.</p> + + <p><a name="foot1217" href="#tex2html81"><sup>[81]</sup></a> <em>Hist. da + republ. romana</em>, <small>I</small>, pp. 217-8.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h2><a name="SECTION002400"><big>LIVRO QUARTO</big><br> +A VIAGEM DA INDIA</a> </h2> + +<p> </p> + +<blockquote style="margin-left: 30%;"> + <p>Dês o primeiro dia que com a vista a experiencia propria me acabei de + desenganar do grande erro que até alli me trazia a fama das cousas da + India... me nasceu logo um desejo ardentissimo de fazer por esta via um + grande e extraordinario serviço.</p> + + <p style="margin-left:2em;">R<small>ODRIGUES DA + </small>S<small>ILVEIRA</small>, <em>Reformação da milicia e governo do + Estado da India oriental.</em></p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002410">I<br> +D. Francisco d'Almeida</a> </h3> + +<p>Em 13 de Setembro do anno de 500 chegou Cabral a Kalikodu. Não ia, como +Vasco da Gama fôra—como descobridor; ia como embaixador, á frente de uma +poderosa armada, para não ser tomado por pirata, mas sim pelo emissario, que +era, do nobre monarcha portuguez, portador das suas cartas e propostas de +alliança para o rajah de Kalikodu. Como tal foi effectivamente recebido, n'uma +audiencia solemne. Os portuguezes, vestindo as suas melhores roupas, as suas +armas mais bellas e polidas, pensavam impôr de ricos ao monarcha do Oriente; +mas os representantes da pobre e forte Europa iam ficar deslumbrados com as +magnificencias da India opulenta. O brilho das armaduras<span class="pn"><a +name="pag_224">{pg. 224}</a></span> era offuscado pelo rutilar da pedraria «cujas +chammas impediam a vista». O rajah vinha em um palanquim ou andor trazido aos +hombros pelos nobres, recostado sobre almofadas de seda, entre colchas lavradas +de fio de ouro caíndo em pregas franjadas com borlas cravejadas de pedras +preciosas, e pannos de carbaso de linho finissimo, cuja alvura sorria ao lado +da vermelhidão sanguinea das sedas e brocados. Corria a compasso o andor +coberto por um pallio de seda franjado de ouro, e dentro d'este duplo sacrario +via-se o rajah negro rutilante de pedras preciosas. Cegava olhal-o. Aos lados +do pallio iam pagens com leques de pennas de pavão agitando o ar, e á beira do +palanquim os que levavam as insignias da soberania: a espada e a adaga, e +estoque de ouro, a flor de liz symbolica, o gomil de agua, e finalmente a copa +onde o rei cuspia o betele, cujo mascar faz os dentes côr de rosa e dá «muito +bom bafo».</p> + +<p>Em toda a volta e prolongando-se na cauda da procissão, charangas de musicos +atroavam o ar com os seus tambores, com os tam-tams de prata e de ouro, +suspensos por cordeis em bambus altos, com as trombetas enormes, umas rectas, +outras curvas, levantadas para o ar, e que davam aos musicos o aspecto de +elephantes com trombas douradas, cujos pavilhões se viam cravejados de rubis e +esmeraldas. Vinha uma grande trompa de ouro levada por dois homens a cavallo! +Os musicos, negros, iam nús, com manilhas nos braços e nas pernas, e á cinta um +panno cobrindo as vergonhas. Nús iam os nayres e mais tropas do rajah, +esgrimindo aos saltos em pyrrhicas singulares, parecendo atacados de furia, com +as suas armas variadas: alfanges curvos para os golpes de cutilada, espadas +largas e ponteagudas para as estocadas,<span class="pn"><a +name="pag_225">{pg. 225}</a></span> espadas triangulares com o vertice nos copos e +na ponta a base espalmada, arcos e molhos de frechas de bambu delgados, lanças +com anneis tilintantes e guizos, correndo, saltando e gritando em brados: +«Cucuya!» como na hora das batalhas. Mais ao largo, o povo mudo, n'uma +impassibilidade de orientaes, olhava.</p> + +<p>A recepção do embaixador fez-se no <em>çarame</em> do rajah, á beira-mar, +pavilhão de fórma oitavada erguido sobre esteios, todo rendado de varandas e +lavores, marchetado de marfim, chapeado de prata e ouro em folhas, com +pinaculos e corucheos que se desenhavam levemente no fundo azul do ceu—tão +azul como o do mar onde fundeava a esquadra de Pedro Alvares Cabral. Na longa +praia apinhavam-se as choças dos pescadores e galeotes e por entre ellas a +multidão negra, espantada. Para o interior avistava-se a cidade, com os +palacios e jardins do rei, dos nobres e dos ricos, docemente abrigados contra o +sol inclemente pela sombra dos palmares e dos bosques de arvores aromaticas. No +meio de um turbilhão de gritos de guerra, de sons de trombetas, o cortejo +encaminhou-se para o palacio do rajah.</p> + +<p>Ahi o Çamorim estava sentado sobre o véllo preto, insignia da realeza, no +seu throno de prata com braços de ouro e as espaldas cravejadas de rubis, +diamantes e esmeraldas, no meio da sua côrte, recostado em macias almofadas de +seda, sobre fôfos tapetes da Persia, somnolento e immovel. Negro, nú, um véo de +linho branco descia-lhe em pregas desde o umbigo até aos joelhos, com a ponta +caída e n'ella enfiados anneis de ouro e rubis. Da extremidade pendia uma +perola enorme. Os dedos, braços, estavam cobertos de anneis e manilhas. Das +orelhas caíam arrecadas de ouro<span class="pn"><a +name="pag_226">{pg. 226}</a></span> cravejadas: á cintura trazia um cinto de ouro. +Ao pescoço collares roliços, de ouro tambem; e duas voltas de um fio de +perolas, grandes como avellans, que desciam até ao umbigo, suspendiam um enorme +coração de ouro encastoando a mais bella, a maior esmeralda. Nos cabellos +compridos e apanhados em nó no alto da cabeça havia perolas e pingentes, e a +corôa era um deslumbramento. O thesouro inteiro de Kalikodu saíra á luz. Ao +lado do rajah, em pé, viam-se os pagens nús com pannos de purpura, apresentando +as espadas e adagas de copos de ouro cravejados, e junto ao soberano o da copa +de ouro com a toalha a tiracollo, e o da boceta cravejada de brilhantes, com o +sal delido em agua de rosas, onde molhava as folhas de betele, antes de as dar +ao brahmane-mór, que detraz das espaldas do throno as passava religiosamente ao +rajah, para mascar. Outros pagens tinham as toalhas, perfumadas de almiscar, +com que nas occasiões devidas esfregavam os braços e as pernas núas do soberano +reluzentes de manilhas cravejadas de rubis. Em torno havia castellos de +alfaias: vasos e urnas de bronze, de prata, de ouro, e os lampadarios de metal +amarello sempre accesos, segundo os ritos ordenavam. Os escrivães, de pé, +tinham debaixo do braço as longas folhas de palmeira, seccas, onde se +registravam as leis e tratados, em sulcos abertos pelos estyletes de ferro, que +balouçavam entre os dedos. Em frente de Pedro Alvares Cabral, que, sentado, lia +a carta de D. Manoel em arabigo, estava a credencia com os presentes que +trazia: uma taça e duas massas de prata, quatro almofadas de brocado e dois +pannos de Arraz, de um desenho primoroso. A côrte, de pé, escutava em torno. +Mais longe agrupavam-se as mulheres do rajah, untadas de sandalo, e<span +class="pn"><a name="pag_227">{pg. 227}</a></span> núas da cintura para cima, com as +cabeças coroadas de flôres, e collares de contas de ouro, e pedraria, manilhas +grossas nas pernas, braceletes, e anneis fulgurantes. O rajah tinha mais de +mil, entre amantes e varredeiras, escravas e embostadoras. Para além das +columnatas de alabastro, nos pateos inundados de sol, viam-se os elephantes +submissos, com os seus collares de campainhas e guizos, cobertos por xaireis de +seda recamada de ouro; viam-se os pallios e leques do cortejo do soberano; os +truões e os fakires, rebolando-se no chão, desgrenhados, a uivar gritos. Depois +formavam alas, ou esgrimiam com tregeitos e cutiladas, os nayres, bucellarios +do rajah, casta singular e polyandra de quem disse o poeta: «geraes são as +mulheres porém sómente para os da geração de seus maridos.»<a name="tex2html82" +href="#foot1218"><sup>[82]</sup></a> Mas o que sobretudo enchia de espanto e +cubiça os portuguezes, envergonhados da sua pobreza, eram os rios luminosos da +pedraria que, destacando-se do fundo acobreado das pelles indigenas, os +cegavam: «As chammas que d'elles saíam impediam a vista!» Sobre o ouro de +Sofala, eram os rubis do Pegú, os diamantes do Dekkan e de Narsinga, as +saphiras de Simhala (Ceylão) e os seus topazios e turquezas, jacinthos e +amethistas. Eram as bellas esmeraldas de Babylonia!</p> + +<p>De parte a parte, comtudo, passada a recepção solemne, não se entendiam bem; +e os escrivães em balde mostravam as longas folhas de palmeira escriptas, +agitando os estyletes de ferro, a indicar as passagens das leis que julgavam +oppôr-se ao que pensavam serem os pedidos dos portuguezes. Estes, em tregeitos, +esforçavam-se por lhes<span class="pn"><a name="pag_228">{pg. 228}</a></span> fazer +perceber que queriam pôr alli feitorias, para trazerem por mar, para a Europa, +as preciosidades da India; e não cessavam de affirmar quante el-rey de Portugal +era poderoso e forte. Apesar de não ter tantos ouros nem pedrarias tinha o +bronze das suas peças e o ferro das suas granadas! accrescentavam com decidida +importancia. Os escrivães iam comprehendendo, desconfiados: e os portuguezes +desconfiavam tambem dos sorrisos do rajah. Apesar d'isto, porém, foi concedido +o que pediam; e Cabral fundou a primeira feitoria portugueza na India, em +Kalikodu.</p> + +<p>Logo os mouros vieram reclamar contra os intrusos que os despojavam: e +favorecidos pelo indigena, caíram sobre a feitoria, trucidando os portuguezes +que lá havia: cincoenta ao todo. Começava a historia da India. Seguiram-se logo +as terriveis represalias do almirante. Tomou dez náus de mercadores arabes, +passou á espada mais de 500 homens tripulantes, e, bombardeando a cidade, +poz-lhe fogo. O incendio de Kalikodu, em 16 de dezembro do anno 1500, era a +funebre aurora da historia oriental. Se as pedrarias tinham cegado os olhos dos +portuguezes, agora as chammas cegavam os olhos afflictos do rajah, n'essa noute +de cruel memoria.</p> + +<p>Incendiada Kalikodu, o almirante foi com a esquadra entrar em Katchi +(Cochim) um pouco ao sul, na mesma costa de Malabar, mas já para além dos +dominios do rajah perfido de Kalikodu. O terror da recente façanha abriu-lhe os +braços do pequeno soberano de Katchi; e fundou-se ahi, em boa paz e amizade, +uma feitoria, tomando o almirante, entretanto, refens, para segurança. +Triumphára; o brahmane rajah de Katchi, revoltára-se abertamente contra o +Çamorim seu suzerano. No<span class="pn"><a name="pag_229">{pg. 229}</a></span> +meiado de janeiro (1501) partiu Cabral para Kananor: ahi carregou as suas náus +de pimenta e canella, e regressou ao reino. Dos treze navios com que partira um +anno antes, apenas tres o acompanhavam: cinco, desgarrados, voltaram por +diversas vias, e outros cinco foram tragados pelo Mar Tenebroso. Esse inimigo +terrivel, embora vencido, não estava domado, e a primeira expedição da India, +este primeiro acto da tragedia de mais de um seculo, esboçava já todos os +elementos da acção: assassinatos e incendios, morticinios e naufragios; a +espada e a pimenta; as armas do guerreiro em uma das mãos, as balanças do +mercador na outra; uma Carthago moderna—e, no fundo, a voragem aberta do mar, +prompto a devorar homens, navios e riquezas; a fonte perenne do vicio, +entornando caudaes de torpezas!</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Da curta historia anterior da India resultavam dois factos: a inimisade +perfida do rajah de Kalikodu, e a feitoria de Katchi. Castigar terrivelmente o +primeiro e consolidar, fortificando-a, a ultima, foi o principal motivo da +segunda armada, que em 1502 (fevereiro) partiu de Lisboa para o Oriente, sob o +commando de Vasco da Gama, o capitão desapiedado, o fidalgo offendido nos brios +pelo miseravel <em>Çamorim</em>.</p> + +<p>A historia da viagem é um horror; e a desforra do capitão uma prova d'essa +frieza sanguinaria, impassivel e cruel, que effectivamente existe no +temperamento, quasi africano, do portuguez. Obliterada na sujeição ou na paz, +rebentou sempre com o dominio e com a victoria, na guerra. Se taes sentimentos, +vivos na alma do Gama, inspiram<span class="pn"><a +name="pag_230">{pg. 230}</a></span> os seus actos, a sua campanha não obedece a um +plano, nem no seu rude espirito cabem as largas vistas do estadista. Se algumas +levava, reduziam-se a espantar a India com a crueldade das suas façanhas, e a +dominal-a com o terror dos seus morticinios. Grande sobre as ondas, em lucta +com os temporaes, é a imagem da nação, cuja grandeza está na coragem e na teima +com que soube vencer o Mar Tenebroso. Um terramoto agitou o mar da India quando +o Gama pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do +povo portuguez, acreditou e disse que até as proprias ondas tremiam com medo +nosso—com medo d'elle!</p> + +<p>Navegando porém no mar das Indias, com toda a artilheria carregada de +metralha, para arrasar Kalikodu, encontra o Gama uma náu de mercadores arabes +que ia para Meka ou voltava, nas romarias constantes á santa Kaaba. Além da +tripulação, o navio trazia duzentos e quarenta homens passageiros, com suas +mulheres e filhos. Era isto no dia 1 de outubro de 1502, «de que me lembrarei +toda a minha vida!» escreve o piloto ainda horrorisado, ao recordar como a náu +foi cobardemente incendiada, com todos os que continha, e que morreram +desesperados no fogo ou no mar. Ia a bordo um flamengo, que assim refere a +occorrencia: «Tomámos uma náu de Meka, onde iam a bordo 300 passageiros, entre +elles mulheres e creanças; e depois do sacarmos mais de 12:000 ducados de +dinheiro e pelo menos 10:000 de fazenda, fizemol-a saltar com os passageiros +que continha, por meio de polvora, no 1.º de outubro.» Satisfeito de si, o +capitão rumou para Kalikodu. Mandou intimar ao rajah a expulsão de todos os +mouros, que eram cinco mil familias, das mais ricas da cidade: dizendo-lhe que +qualquer creado<span class="pn"><a name="pag_231">{pg. 231}</a></span> d'el-rey D. +Manuel valia mais do que elle, <em>Çamorim</em>; e que seu amo tinha poder para +fazer de cada palmeira um rei!—Como era de vêr, o rajah recusou; e o capitão +que, ao fundear, apresára um numero consideravel de mercadores no porto, mandou +cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados n'um barco, foram com a maré +varar na praia, levando a resposta do Gama á recusa do afflicto principe.<a +name="tex2html83" href="#foot1219"><sup>[83]</sup></a> Começou logo o +bombardeio (2 de novembro). A cidade ardia outra vez; e á população em choros, +respondiam as risadas ferozmente cynicas dos marinheiros, abrigados detraz das +amuradas dos navios, junto ás peças que vomitavam fogo. Era uma inepcia, uma +barbaridade e uma covardia; porque as curtas lanças e as settas dos indigenas +não podiam medir-se com as granadas, despedidas de longe, de bordo das +náus.<span class="pn"><a name="pag_232">{pg. 232}</a></span> O Gama, cada vez mais +satisfeito de si, foi-se a visitar o porto amigo de Katchi; e decidiu regressar +ao reino por Quilua, d'onde trouxe o ouro com que o rei D. Manuel fez uma +custodia para o seu templo dos Jeronymos. Vinha contente da brava desforra que +tomára: o <em>Çamorim</em> estava punido!</p> + +<p>Deixára o Gama na India uma parte da sua armada sob o commando de Vicente +Sodré, personagem tão eminentemente celebre como o proprio almirante, cujo tio +era. Fidalgo, este amava as façanhas brutaes e estrondosas; o outro queria mais +á pirataria e ao roubo. Com effeito, assim que o Gama partiu da costa do +Malabar, o de Kalikodu, invocando porventura direitos de suzerano sobre o +visinho de Katchi, exigiu d'elle a expulsão dos portuguezes da feitoria. Mas os +ataques repetidos ao poderoso rajah do Canará ensoberbeciam os seus vassallos, +e fomentavam a decomposição do systema politico de Hindustan. O de Katchi +resistiu, implorando o auxilio do Sodré, que pouco se lhe dava da feitoria, e a +abandonou para ir ao corso das náus de Meka: era trabalho de mais proveito e +menor risco piratear de parceria com a corôa portugueza nas costas de Adal e da +Arabia, á embocadura do mar Vermelho.<a name="tex2html84" +href="#foot1220"><sup>[84]</sup></a> O producto das náus de Meka pertencia, +metade ao rei de Portugal, metade<span class="pn"><a +name="pag_233">{pg. 233}</a></span> ás tripulações: cabendo aos soldados uma parte, +aos marinheiros duas, outras duas aos bombardeiros, quatro aos pilotos e outro +tanto ao mestre. Pilhavam todos, de braço dado com a Corôa.</p> + +<p>Vicente Sodré andava n'isto, ao mesmo tempo que Ruy Lourenço, por sua conta +e risco, varria a costa de Zamgebar, caçava navios e cobrava tributos aos +sultões.</p> + +<p>O dominio portuguez adquiria logo de começo o caracter duplo que jámais +perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularisação e de ordem. +Era no mar uma anarchia de roubos, na terra uma serie de depredações +sanguinarias. Vasco da Gama ensinára o modo de imperar com o fogo e o sangue; +Sodré indicava o modo de ceifar no mar, pela abordagem, as náus de Meka. A +pirataria e o saque foram os dois fundamentos do dominio portuguez, cujo nervo +eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.</p> + +<p>Na artilheria, effectivamente, estava o segredo do poder dos invasores da +India. Ao tempo em que o Gama voltava da sua segunda viagem, partia de Lisboa +uma terceira esquadra (1503, abril) com Affonso de Albuquerque e Duarte Pacheco +a bordo. Foram a Katchi acudir ao rajah, na sua guerra com o de Kalikodu, e +construiram a primeira fortaleza na India. Albuquerque voltou ao reino; Pacheco +ficou em Katchi com as tropas e navios preparados para o ataque. O +heroe—porque este bateu-se como uma féra, no seu covil de Kambalaan, nobre, +desinteressada e bravamente—desde logo disse que <em>toda a festa havia de ser +de artilheria</em>. De que serviam com effeito as armas brancas e de arremeço, +principal equipamento dos indigenas, que mal sabiam usar dos mosquetes e +bombardas, perante o vomitar distante da metralha? Isto explica<span +class="pn"><a name="pag_234">{pg. 234}</a></span> a possibilidade da resistencia +dos setenta homens de Pacheco, brandamente auxiliados pelos naturaes, contra os +cincoenta mil que se dão ao exercito do Samudri-rajah de Kalikodu. As surriadas +da mosquetaria auxiliavam decerto, mas a defeza decisiva consistia nas ondas de +metralha, que n'um instante varriam as jangadas cobertas de gente que vinham +por mar, e as columnas cerradas dos nayres armados de settas e lanças +investindo por terra. Mas nem por si só a artilheria seria capaz de resistir á +onda massiça das columnas inimigas, se a coragem, a rapidez fulminante das +marchas, a ubiquidade—póde dizer-se assim—do primeiro heroe soldado do +Oriente não animasse os poderosos meios de defeza. Quatro mezes durou o assedio +de Katchi, que terminou pela derrota do Samudri-rajah.</p> + +<p>A esquadra de Lopo Soares de Albergaria trouxe para o reino (1505) Duarte +Pacheco: um homem simples que, por voltar carregado de feridas, mas leve de +dinheiro e diamantes, foi parar á capitania de S. Jorge da Mina, para de lá vir +em ferros por <em>capitulos</em> que d'elle deram; para jazer no carcere por +muito tempo, e acabar esquecido e pobre. A sorte d'este heroe, diz Goes, «foi +de calidade que se pode d'elle tirar exemplo para os homens se guardarem dos +revezes dos reis e principes e da pouca lembrança que muitas vezes tem +d'aquelles a que são em obrigação.» Pacheco voltou, pois, do Oriente, e na +India ficou, por capitão do mar, Telles Barreto com a missão de <em>correr as +náus de Meca</em>. A armada trazia para o reino, a bordo, Pacheco—um +infeliz!—e uma carga abundante de especiarias e cousas ricas. A côrte, o rei, +em Lisboa, quizeram muito mais ás segundas, do que ao primeiro.<span +class="pn"><a name="pag_235">{pg. 235}</a></span></p> + +<p>Entretanto a este devia D. Manuel a consolidação do seu imperio oriental, +incipiente ainda. Pacheco demonstrára aos naturaes e aos arabes que os +portuguezes não eram apenas piratas; e podiam fazer mais do que bombardear +impunemente uma cidade desarmada, ou tomar náus de indefesos mercadores e +romeiros. A façanha de Katchi fôra o baptismo de sangue do novo imperio; e o +baluarte, de pé, atestava a força dos novos dominadores.</p> + +<p>Mas já do principio, tambem, surgia a ultima das pragas da India: a inveja, +a sizania, os odios, a maledicencia, com que, uns aos outros, os homens do +ultramar se abocanhavam na côrte; e a inepcia do governo do rei, incapaz de +pesar o valor das palavras, de medir o alcance das accusações, e de ser justo e +sabio. A lisonja reinava, e sobre ella o favoritismo.</p> + +<p>Cinco annos tinham decorrido depois da viagem de Cabral; havia já uma +fortaleza em Katchi; estava batido o de Kalikodu; os navios portuguezes +pirateavam em liberdade no mar da India; e numerosas náus de Meka iam sendo +apresadas. Esboçava-se o futuro imperio, anarchicamente, mas já por fórma tão +decisiva, que era mistér organisal-o, dar-lhe uma lei e uma direcção.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>D. Francisco de Almeida foi o homem escolhido para governador da India, +constituida em vice-reino. Das tres successivas phisionomias que o imperio +portuguez no Oriente apresenta, é elle quem lhe imprime a primeira; dos tres +vice-reis mais notaveis, é elle o primeiro tambem. Sem o heroismo antigo de +Albuquerque, um Annibal;<a name="tex2html85" +href="#foot1221"><sup>[85]</sup></a> sem a<span class="pn"><a +name="pag_236">{pg. 236}</a></span> sympathica pureza ingenua de um Castro, +imitador fiel dos typos de Plutarcho; Francisco de Almeida, valente como +soldado, habil como almirante, é sobretudo um estadista.</p> + +<p>Pondo de parte o merecimento absoluto d'essa politica commercial, fecundo +systema de explorar uma região inteira, fielmente executado mais tarde e com +tamanho exito pelos hollandezes, o facto é que, para conseguir o fim desejado +de roubar aos arabes o imperio, e a venezianos e arabes o commercio do Oriente, +a politica de Francisco de Almeida, sem grandeza, é lucida, perspicaz e forte. +O governo da India formou tres grandes homens: Castro, que se póde dizer um +santo; Albuquerque, a quem melhor cabe o nome de heroe: Almeida, que é um sabio +administrador, um feitor intelligente.</p> + +<p>No seu caminho para a India, o primeiro viso-rei foi ajustar as contas +antigas com o sultão de Mombas, e arrazou-lhe a cidade (1505, agosto 14.) +Levava tambem ordens para construir fortalezas em Quilua, Kananor, Anjediva, +além da de Katchi, que seria augmentada e reparada, depois dos damnos soffridos +no anno anterior. Não iam então as ambições do governo, no reino, mais além +d'esse pedaço da costa oriental da Africa, com as estações fronteiras na costa +do Malabar. Entretanto no pensamento do viso-rei, maduro pela observação local +e pela prova de uma primeira guerra maritima com que o impenitente rajah de +Kalikodu o recebera, formulava-se já todo o seu plano de dominio. Não duvidou +expol-o a D. Manuel na carta que lhe escreveu, e que é um dos documentos mais +importantes da historia portugueza no Oriente.</p> + +<p>Toda a nossa força seja no mar, dizia; desistamos de nos apropriar da terra. +As tradições antigas<span class="pn"><a name="pag_237">{pg. 237}</a></span> de +conquista, o imperio sobre reinos tão distantes, não convém.<a +name="tex2html86" href="#foot1222"><sup>[86]</sup></a> Destruamos estas gentes +novas (os arabes, afghans, ethiopes, turkomanos) e assentemos as velhas e +naturaes d'esta terra e costa: depois iremos mais longe. Com as nossas +esquadras teremos seguro o mar e protegidos os indigenas, em cujo nome +reinaremos de facto sobre a India; e se o que queremos são os productos d'ella, +o nosso imperio maritimo assegurará o monopolio portuguez, contra o turco e o +veneziano. Imponhamos pesados tributos, exageremos o preço das licenças +(<em>cartazes</em>) para as náus dos mouros navegarem nos mares da India e isso +as expulsará: as nossas armadas darão corso aos contrabandos. Não é mal decerto +que tenhamos algumas fortalezas ao longo das costas, mas sómente para proteger +as feitorias de um golpe de mão; porque a verdadeira segurança d'ellas estará +na amisade dos rajahs indigenas, por nós collocados nos seus thronos, por +nossas armadas apoiados e defendidos. Substituamo-nos, pura e simplesmente, ao +turco; e abandonemos a idéa de conquistas, para não padecermos das molestias de +Alexandre. O que até agora se tem feito é uma anarchia e um esboço apenas; um +systema de matanças, de piratarias e desordens, a que é mistér pôr cobro.—A +primeira condição de um imperio seguro é um pensamento definido, e tal era o do +viso-rei.</p> + +<p>As difficuldades appareciam-lhe tanto mais fortes, quanto «as guerras +passadas eram com bestas, agora as temos com venezianos e turcos do Soldão». +Com effeito, a antiga impunidade, de que os nossos gosavam á sombra da +artilheria, desapparecia, desde que o veneziano e o do Egypto,<span +class="pn"><a name="pag_238">{pg. 238}</a></span> vendo em perigo o seu poder no +Oriente, tinham lançado ao mar Vermelho uma esquadra poderosa, e tão bem +artilhada como as nossas. A guerra tomava um caracter novo; e os portuguezes já +não se encontravam apenas a braços com as armas brancas do indigena. Apparecera +a polvora do lado dos inimigos; e a esta grave e nova phase das cousas veiu +juntar-se, no animo do viso-rei, o resultado cruel da temeridade do filho, que +em Tchala (Chaul) morrera batido pela esquadra egypcia: a armada de +<em>Mirocem, capitão-mór do Soldão do Gram Cairo e de Babylonia</em>—como se +dizia no tempo.</p> + +<p>Confirmando a doutrina com o exemplo, esporeado pelo desejo de vingar a +morte do filho,<a name="tex2html87" href="#foot1223"><sup>[87]</sup></a> e pela +necessidade de destruir essa armada que<span class="pn"><a +name="pag_239">{pg. 239}</a></span> ameaçava matar á nascença o dominio portuguez +na India.</p> + +<blockquote> + <p>... vem o pae com animo estupendo,<br> + Trazendo furia e magoa por antolhos.</p> +</blockquote> + +<p>Descendo pelo Mar Vermelho, a esquadra egypcia viera deitar ferro em Diu, na +costa do Gujerât (Guzarate), impondo ao indio a obrigação de ser defendido. +Entre <em>mouros</em> e portuguezes, que uns a outros disputavam a presa do +commercio do Oriente, os rajahs, perseguidos pela protecção de ambos, não +sabiam as mais das vezes por quem se decidir, incertos do lado para onde a +victoria final penderia. Os vencedores foram sempre os fieis alliados de todos +os fracos. Tal era a situação do indio de Diu. Não teve remedio senão +acompanhar os rumes, e aprisionar os portuguezes da esquadra batida de Lourenço +d'Almeida, guardando-os como penhor, e base de argumentos e desculpas para com +o viso-rei—caso este vencesse com a nova armada em que vinha.</p> + +<p>Effectivamente D. Francisco d'Almeida subia ao longo da costa, deixando apoz +si o rasto de cinzas e sangue, que por toda a parte annunciava a passagem dos +portuguezes. As faulhas do incendio de Deval (Dabul) e os lamentos da população +dispersa<span class="pn"><a name="pag_240">{pg. 240}</a></span> chegavam até á ria +onde fundeavam as esquadras do egypcio e do de Diu, já engrossadas com as +trezentas fustas que o de Kalikodu enviára tambem, para vêr se conseguia +exterminar por uma vez os incommodos visitantes.</p> + +<p>O egypcio, apesar de victorioso, temia o viso-rei; e fundeada a esquadra, +dispozera que picassem as amarras os navios assim que fossem abalroados, dando +á costa, e arrastando comsigo os portuguezes, sobre os quaes as lanchas e +fustas dos indios cairiam então desapiedadamente. Mas o viso-rei, percebendo o +ardil, mandou preparar as ancoras á pôpa, e os navios inimigos foram sosinhos +varar na praia. Era 3 de fevereiro (1509) festa de S. Braz, pelo meio dia. A +viração do mar soprava fresca pela pôpa dos navios portuguezes, quando a +<em>capitaina</em> desfraldou o guião azul á prôa e, toda empavezada, no meio +dos gritos de «Senhor Deus; misericordia! Santiago!» ao som das charangas de +trombetas, soltou a primeira banda de artilheria. Um clamor immenso de vozes, +de trompas, de tiros lhe respondeu, e a batalha generalisou-se com artilheria e +arma branca, á abordagem. A confusão de gentes que alli combatiam era +inextricavel; e os pavilhões da Cruz e do Crescente, erguidos nos mastros dos +navios, abrigavam os sentimentos mais extravagantes, as crenças mais +disparatadas. É que não se combatia, nem pela fé, nem pela patria: disputava-se +com furor o saque da India; e a cubiça torna irmãos os homens de todas as fés, +os filhos de todas as raças. Havia allemães e francezes por bombardeiros a +bordo das náus portuguezas; havia indios, brahmanes e até <em>mouros</em>. +Havia, do lado opposto, na confusão dos navios, desde o nubio até ao arabe, +desde o ethiope até ao afghan; havia musulmanos de toda a casta, persas,<span +class="pn"><a name="pag_241">{pg. 241}</a></span> e <em>rumes</em> do +Egypto—mercenarios de todas as partes, a que se dava este nome generico; havia +ao lado da multidão dos infieis, o veneziano, renegado ou catholico, mas +sobretudo mercador, que por ordem da sua republica vinha como artilheiro +defender, no mar da India, os interesses solidarios dos seus socios no +commercio oriental. Em volta da população confusa da esquadra dos +<em>rumes</em>, apinhava-se em seus juncos a massa obscura dos indios, de Diu +no Gujerât, de Kalikodu no Kanará.</p> + +<p>Os navios portuguezes eram poucos, mas solidos, e ainda bem construidos e +artilhados; as suas guarnições não excediam mil homens. Eram náus +principalmente; mas tambem galés, <em>bastardas</em> e <em>subtis</em>, e +<em>fustas</em>—os <em>avisos</em> d'essas antigas esquadras. As náus +vomitavam fogo das amuradas. Nos castellos de pôpa e prôa fusilava a artilharia +menor, baptisada com os nomes da monteria feodal, <em>aguias</em>, +<em>sacres</em> e <em>falcões</em>, <em>leões</em> e <em>serpes</em>, +<em>pedreiras</em> que arrojavam balas de granito, <em>berços</em>, +<em>camellos</em>, <em>colubrinas</em> e <em>esperas</em>. Nos bailéos, de pôpa +á prôa, os mosqueteiros despediam continuas surriadas de balas; e as xaretas de +corda, presas nas amuradas, defendiam as náus das abordagens dos juncos e +galeotas dos indios. A bordo das galés, o capitão sobre o chapiteu—Jesus! S. +Thomé! Ave-Maria!—excitava os soldados que, de espada e rodella, se juntavam á +prôa para a abordagem dos navios inimigos, ou da pôpa, a tiros, caçavam mouros. +As enxarcias appareciam crivadas de settas. Da prôa tambem, o castello das +galés vomitava fogo; e o ligeiro navio, caíndo perpendicularmente sobre o +contrario, rasgava-lhe o ventre com o esporão, despedaçava-lhe os remos, +crivava-o de balas. Sentados os forçados, nús e negros, acorrentados aos +bancos, remavam agil e poderosamente; obedecendo<span class="pn"><a +name="pag_242">{pg. 242}</a></span> aos gritos do comitre que, de espada em punho, +corria na coxia, entre as platéas dos bancos, distribuindo cutiladas. Sob a +coberta, junto ao paiol defendido por colchas e cobertores escorrendo agua, o +capitão-do-fogo distribuia a polvora, tirando-a ás gamellas dos caldeirões. E +os bombardeiros, com os murrões e bota-fogos a bom resguardo, obedeciam á ordem +de atirar. Os bailéus, d'onde a taifa dos soldados se lançava ás abordagens, +defendiam com a mosqueteria os remeiros; e as velas estavam carregadas nos +mastros, por causa dos incendios. O fogo punha um elemento novo n'este antigo +modo de batalhar no mar.<a name="tex2html88" +href="#foot1224"><sup>[88]</sup></a> No meio do enxame das galés e caravelas,<a +name="tex2html89" href="#foot1225"><sup>[89]</sup></a> correndo á caça dos +paráos fugitivos, os navios de vela, de typos novos, náus e galeões, urcas e +carracas, eram como fortalezas fluctuantes, vomitando lume, estrondos, fumo, +naufragios e morte.</p> + +<p>Tingiram-se mais uma vez de vermelho as aguas do mar das Indias; morreram +innumeros; boiavam feridos, pedindo misericordia e recebendo tiros: e<span +class="pn"><a name="pag_243">{pg. 243}</a></span> por fim, depois de todos os +episodios e scenas proprias d'estas tragedias, a victoria foi pelo vice-rei que +destruiu rumes e indios. Esta batalha naval tinha uma importancia superior +ainda á das victorias de Duarte Pacheco em Katchi: porque os indios, meditando +e observando, reconheciam que a phalange portugueza não era só invencivel para +elles: era-o tambem para os rumes do Egypto, e para a artilharia de +Veneza...</p> + +<p>O de Diu, que estivera sempre indeciso, ao vêr o resultado da batalha, veiu +pressuroso, desculpar-se, entregar logo os prisioneiros da empreza anterior. +Guardára-os para os salvar das garras ferozes dos rumes, a quem desejava todo o +mal, sem lhes ter podido resistir. Mandava-os carregados de presentes e +parabens, por tão grande victoria, que o libertava da odiosa tyrannia dos +rumes.</p> + +<p>No chapiteu da sua náu, o almirante e vice-rei contemplava a scena de +carnagem, agora muda, e os destroços que boiavam com os cadaveres no mar tinto +em sangue; e estava glorioso e contente no meio dos seus, que contavam com +verbosidade os episodios, o que tinham feito, como se tinham saído, cada qual +de seu lance... quando chegaram á borda, n'uma almadia, os prisioneiros forros, +gritando alegres, a pedir que os recebessem. O vice-rei lembrou-se então que +lhe faltava o filho, e «se foi assentar na tolda com um lenço na mão, que não +podia estancar as lagrimas que lhe corriam!» Acudiram todos a consolal-o; e +elle, tomando-lhe os animos, ergueu-se, e disse-lhes enxugando os olhos, e +tratando-os por filhos, que isso já passára e traspassára a sua alma, que se +alegrassem todos agora com a boa vingança que Nosso Senhor por sua misericordia +lhes dava!</p> + +<p>E regressando, conformado com a sua sorte, ao<span class="pn"><a +name="pag_244">{pg. 244}</a></span> passar em frente de Kananor, salvou á terra +para celebrar a victoria; mas, para acabar de vingar a morte do filho, mandou +amarrar prisioneiros ás boccas das bombardas, e as cabeças e membros +despedaçados dos infelizes iam cair na cidade como pelouros... A morte do filho +transtornára o seu lucido espirito, mudando as suas opiniões antigas de +estadista n'um furor carniceiro, attestado pela devastação da costa do Gujerât. +Cedêra tambem ás intrigas e maledicencias dos capitães que tinham vindo de +Hormuz, fugindo ao mando terrivel de Albuquerque, atemorisados pela loucura das +suas emprezas tytanicas. Bulhavam, o governador que acabava o praso do governo, +e Albuquerque já nomeado de Lisboa para lhe succeder; e á côrte haviam chegado +noticias perfidas de excessos commettidos pelo sabio vice-rei. Em paga dos seus +trabalhos esperava-o a masmorra de Duarte Pacheco; porém, na viagem para o +reino, deu á costa da Cafraria, o foi morto pelos negros ás pedradas e +zagunchadas.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>O seu plano de governo, por ser sabio, era chimerico, pois que a India era +uma loucura. Só homens de genio, como Albuquerque, poderiam tornar grande uma +empreza condemnada; só, como Castro, um santo podia resalvar o brio portuguez +da nodoa de uma ignominia formal.</p> + +<p>Para que o nosso dominio fosse maritimo e mercantil apenas, era necessario +que essas tradições estivessem na alma portugueza, como tinham estado, n'outras +edades, na alma de Carthago, e como agora estavam na de Veneza. Em Portugal, o +espirito patrio fôra formado pela religião e pela cavallaria; e exigir dos +soldados d'Africa que não<span class="pn"><a name="pag_245">{pg. 245}</a></span> +desembarcassem dos navios, convencel-os de que o verdadeiro modo de conquistar +fosse prescindir do governo, era querer uma cousa impossivel. Alargar, ao +contrario, os dominios portuguezes, avassallar territorios, fazer conquistas, e +crear um imperio á antiga, como o de Alexandre e o dos romanos, era o +pensamento commum—naturalmente deduzido dos antecedentes militares da nação, e +agora fomentado de um modo especial pela cultura classica, enlevo de todos os +bons espiritos da Europa. A idéa de que Portugal era uma Roma preoccupava os +reis e os escriptores, que se fatigavam a procurar origens e a indicar +analogias, de certo verdadeiras. Albuquerque fez vivo em si um tal pensamento, +e viu-se o Scipião d'essa Roma<a name="tex2html90" +href="#foot1226"><sup>[90]</sup></a>, ou antes o Alexandre da nova Grecia.</p> + +<p>Além dos motivos intimos que tornavam inacceitavel a politica commercial e +maritima do primeiro vice-rei da India, havia motivos mais praticos. Uma das +suas justas exigencias era a da prohibição do commercio aos soldados, +magistrados e capitães do Oriente. Com effeito, o dominio, tal como elle o +concebia, não era um saque: era uma protecção armada a um commercio, franco por +um lado, monopolio do Estado, ou apanagio da corôa, pelo outro. Os capitães e +governadores seriam simultaneamente agentes commerciaes de S. A., excelso +mercador da Pimenta. Isto exigia uma fleugma de que só os hollandezes foram +capazes, e ainda assim á custa de salarios que supprimem as tentações.</p> + +<p>Desde que o rei era o primeiro negociante, porque não seria o vice-rei o +segundo, os capitães das fortalezas e das armadas os terceiros, os +soldados<span class="pn"><a name="pag_246">{pg. 246}</a></span> os derradeiros? Só +isto era, evidentemente, logico; e, apesar de todas as confusões, quem bem +observa, descobre sempre que a historia obedece á logica. Ninguem distinguia +bem, na era de 500, entre a pessoa individual do rei e a pessoa abstracta ou +symbolica do monarcha. Não se separavam Rei e Estado; e só com esta perspicacia +moderna poderia convencer-se o rude soldado da India de que o commercio, bom +para o rei, era mau para elle; de que uma virtude podia ser um vicio, por +mudarem as condições. Além d'isto, os portuguezes lançavam-se, famintos, ao +banquete do Oriente, como seculos antes os povos do norte, ao banquete da +Gallia, da India, da Hespanha<a name="tex2html91" +href="#foot1227"><sup>[91]</sup></a>. Ninguem seria capaz de lhes arrancar dos +dentes essas carnes palpitantes, que devoravam com ancia; e eram inevitaveis as +consequencias funestas, que D. Francisco d'Almeida previa sabiamente.</p> + +<p>Fleugmatico e pontual no cumprimento dos seus deveres duplos de capitão e +caixeiro, o vice-rei, ao mesmo tempo que expunha para Lisboa os seus planos de +governo, mandava os seus relatorios commerciaes, como um correspondente ao seu +patrão de Genova ou de Veneza. O vice-rei estudára como geographo o Oriente; e +para fundamentar o seu plano de imperio maritimo dizia, com Barros, que a India +«tem entradas e saídas de que seu commercio vive, e que são como o corpo +animado, que, se lhe tiram a entrada e saída das cousas que o sustentam, não +tem mais vida.» O principal estado consiste na navegação, escrevia o vice-rei; +só com ella se governará no mar Vermelho e no golpho persico, essas duas +correntes da<span class="pn"><a name="pag_247">{pg. 247}</a></span> exportação da +India; só com ella na peninsula de Malaka, que é a transição da India para o +extremo Oriente; só com ella manteremos o privilegio da passagem do cabo da +Boa-Esperança, caminho que descobrimos para a Europa. Albuquerque em Hormuz, em +Goa, em Malaka, assentou na terra firme os limites do imperio que para o seu +antecessor devia vogar fluctuante sobre as ondas.</p> + +<p>Estadista e geographo, D. Francisco d'Almeida era ao mesmo tempo um mercador +cuidadoso e até habil. Dava ao rei minuciosas informações dos generos, preços e +pezos. «E o lacre que V. A. diz lhe mande, será maravilha haver-se, porque +estas náus (portadoras de cartas) partem cedo, e as náus que o trazem do Pegú e +Martamão (Martaban) veem tarde. Espero por uma boa somma d'elle, porque o tenho +mandado trazer... E assi V. A. me manda que a pimenta vá limpa e secca, e que o +pezo se faça com nossas balanças e pezos... e dá-se tal aviamento que, com duas +balanças, té vespora pesaram mil quintaes. Se os navios não chegassem tão +avariados, em vinte dias carregariam e partiriam. O baar de Cochim (Katchi) tem +tres quintaes e trinta arrateis de pezo velho, e custa o quintal mil e +quinhentos réis e meio.—Mandei noticiar com pregões que todos trouxessem +pimenta, e que logo se lhes pagaria á vista: é o meio de bater os mouros, que +são regatões e compram fiado. Acodem os gentios com pimenta, e levam o cobre +muito alegres.—Quanto á pimenta e drogas que vão ao Levante, são de Malaca, +Sumatra e Diu, onde nasce muita pimenta longa e redonda, e muito bem sei por +onde passa e em que tempo: falta-me o principal.—O aljofar e perolas que me +manda que lhe envie não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle (?); os +sinabafos,<span class="pn"><a name="pag_248">{pg. 248}</a></span> porcellanas e +mais cousas de jaez são de mais longe. As escravas que quer, tomam-se depressa: +que as gentias d'esta terra são pretas e mancebas do mundo, como chegam a dez +annos.—Tem cobre aqui para cinco annos, vermelhão sem numero, chumbo e +azougue, pannos de lan a apodrecer, escarlatas, espelhos, oculos, chapéus, e +sellas ginetas, que é mui certa mercadoria para cá.» E continúa assim, +misturando toda a especie de mercadoria, desde as escravas mancebas do mundo, +até ás perolas e aljofar.—Porque não manda S. A. papel? Seria um excellente +negocio.»</p> + +<p>Eis ahi o motivo intimo, o principio fundamental, o cuidado superior do rei +e dos seus governadores na India.<a name="tex2html92" +href="#foot1228"><sup>[92]</sup></a> D. Manuel perdoava tudo, os crimes e os +roubos, as carnificinas e as brutalidades, os incendios e as piratarias, com +tanto que lhe mandassem o que elle sobretudo ambicionava: curiosidades, +primores e riquezas para encher os seus paços de Lisboa, e deslumbrar o papa em +Roma com a sua magnifica embaixada. «Manda pimenta e deita-te a dormir», dizia +mais tarde, da côrte para a India, Tristão da Cunha, ao filho Nuno, governador. +O saque do Oriente—este é o nome que melhor convém ao nosso dominio—ia +ordenado de Lisboa.<span class="pn"><a name="pag_249">{pg. 249}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1218" href="#tex2html82"><sup>[82]</sup></a> V. <em>Quadro + das instit. primit.</em>, pp. 264-7.</p> + + <p><a name="foot1219" href="#tex2html83"><sup>[83]</sup></a> «Então mandou + aos bateis que fossem roubar os pageres (barcos) que eram dezeseis e as duas + náos, em que todos acharam arroz e muitas jarras de manteiga e muitos fardos + de roupa. Então tudo isto recolheram aos navios e a gente toda das náos + grandes, e mandou que recolhessem o arroz que quizessem, que tomaram quatro + pageres, que vasaram, que não quizeram mais. Então o Capitão-mór mandou a + toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo isto metter em um + pager, em o qual mandou metter o frade tambem sem orelhas, nem narizes, nem + mãos, que lhas mandou atar ao pescoço com uma ola (folha, carta) para el-rey + em que lhe dizia que mandasse fazer caril para comer do que lhe levava o seu + <em>frade</em>.</p> + + <p>E a todos os negros, assim justiçados, mandou atar os pés, porque não + tinham mãos para se desatarem, e porque se não desatassem com os dentes com + páos lhes mandou dar n'elles que nas bocas lh'os metteram por dentro, e foram + assim carregados uns sobre os outros embrulhados no sangue que d'elles corria + e mandou sobre elles deitar esteiras e ola secca e lhe mandou dar as vélas + para terra com o fogo posto, que eram mais de 800 mouros, e o pager do + <em>frade</em> com todas as mãos e orelhas tambem á véla para terra sem fogo, + com que foram logo ter a terra, onde acudiu muita gente a apagar o fogo e + tirar os que acharam vivos com que fizeram seus grandes prantos.» Gaspar + Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, p. 302.</p> + + <p><a name="foot1220" href="#tex2html84"><sup>[84]</sup></a> «... em que no + mar tomaram náos de Cambaya e Calecut que iam para Meka, a que roubaram o + melhor que acharam de que se carregaram os navios e caravellas quanto poderam + e mormente roupas de muito preço e muitos mantimentos e mouros para dar ás + bombas, e não se occuparam em carregar os navios de pimenta e drogas que + levavam as náos de Calecut que a todas, umas e outras, poseram fogo e + queimaram com toda a gente sem a nenhum darem vida, mas Vicente Sodré mandou + que os Mouros que tinham tomado para a bomba todos os tornaram com os outros + e todos forão mortos.» Gaspar Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, pp. + 365-6.</p> + + <p><a name="foot1221" href="#tex2html85"><sup>[85]</sup></a> V. <em>Hist. da + republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 215-80.</p> + + <p><a name="foot1222" href="#tex2html86"><sup>[86]</sup></a> V. <em>Hist. da + republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 211 e segg.</p> + + <p><a name="foot1223" href="#tex2html87"><sup>[87]</sup></a> «O Viso rey + estava assentado em uma janella que vinha sobre a praya com o Capitão e com + outros fidalgos, e vendo o geito da caravella e o capitão d'ella d'arte que + desembarcava, se tirou da janella e se assentou dentro em uma cadeira e poz o + braço na cadeira e sobre a mão encostou a face direita e disse:</p> + + <p>—Esta caravella me traz a nova que eu tenho no coração; pois que as náos + de Cochim vieram sem meu filho, é que elle é morto.</p> + + <p>Ao que o Camacho entrou com grande tristeza no rosto, o qual antes que + fallasse, o Viso rey lhe fallou dizendo:</p> + + <p>—Camacho, ainda que meu filho seja morto, porque não salvaste esta + fortaleza: pois não é do pae do morto? Que meu filho não era mais que um só + homem... Nem me fica outro.</p> + + <p>O Camacho não lhe respondeu, mas poz os joelhos no chão e com muitas + lagrimas disse:</p> + + <p>—Senhor, Nossa Senhora perdeu a seu bento filho posto na Cruz entre dois + ladrões, e vós perdestes o vosso filho pelejando com os turcos do Soldão.</p> + + <p>O Viso rey com o rosto muy seguro lhe disse:</p> + + <p>—Ora vos ide a descançar e mandae á caravella que faça sua costumada + salva e eu mandarei na Egreja fazer signal pelo defunto e acodirá gente e lhe + dirão paternosters pela alma, porque quem o frangão comeu hade comer o galo + ou pagal-o.</p> + + <p>Com o que se recolheu para uma ante-camara, onde assentado, o Capitão e + fidalgos moveram pratica de sustancias consolatorias para abrandar tamanha + dor como sentiam que o pae devia ter com a morte de tal filho. Ao que o Viso + rey lhes foi á mão, dizendo:</p> + + <p>—Eu não me posso escusar da dor que a carne me dá, como pae, de força da + natureza, mas espero em Nosso Senhor que me ajudará por sua misericordia, e + com a ajuda de meus amigos ma dará alegria n'esta dor que ora tenho, em que + acabando a vida será para mim o mór descanço. Vão-se Vossas Mercês embora, + que as palavras de conforto são das mulheres para suas amigas, quando + pranteam seus filhos mortos em acontecimentos como ora foi d'este meu.</p> + + <p>E lhes fazendo sua cortesia se recolheu á sua camara.» Gaspar Correia, + <em>Lendas</em>, <small>I</small>, 775.</p> + + <p><a name="foot1224" href="#tex2html88"><sup>[88]</sup></a> V. quadros das + batalhas navaes dos antigos, <em>Hist. da republ. romana</em>, + <small>I</small>, pp. 193-8.</p> + + <p><a name="foot1225" href="#tex2html89"><sup>[89]</sup></a> «Não tém cestos + de gavea (as caravelas) nem as vergas fazem angulos rectos com os mastros, + mas pendem obliquas d'uma alça que é triangular, roça quasi pelas amuradas. + As vergas que se amuram aos costados do navio são pela parte de baixo grossas + como mastareus, e adelgaçam até ao cimo da vela. De vasos d'esta feição se + servem na guerra maritima os portuguezes, pelo muito ligeiros que elles são, + sendo-lhes mui maneiro apontar á prôa ou á pôpa o conto d'estas vergas, e + ainda a meio costado do navio passalas da direita para a esquerda segundo + lhes faz feição, ferrar o panno ou disferillo das vergas, a que o atam pelo + cepo da entenna, com quem as velas abrem a base do angulo: e qual lhes sopra + o vento, tal lhe apresentam o bojo da vela não tardios. Todo o vento lhe fas + geito, de modo que com vento de ilharga bolinam em direitura, como se foram + arrazadas em pôpa, e para ir o mesmo navio em senso contrario não tem mais + que mudar o velame, o que muy prestes se prefaz.» Osorio, <em>Vida e feitos + d'el-rey D. Manuel</em> (tr. F. M. do Nascimento) I, p. 193.</p> + + <p><a name="foot1226" href="#tex2html90"><sup>[90]</sup></a> V. <em>Hist. da + republ. romana</em>, <small>I</small>, pp. 292 e segg.</p> + + <p><a name="foot1227" href="#tex2html91"><sup>[91]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pag. 358 e segg. e <em>Hist. da civilisação + iberica</em> (3.ª ed.), pag. 34 e segg.</p> + + <p><a name="foot1228" href="#tex2html92"><sup>[92]</sup></a> <em>V. Regime + das riquezas</em>, p. 90 e segg.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002420">II<br> +Affonso de Albuquerque</a> </h3> + +<p>«As cousas da India fazem grandes fumos!» costumava dizer o novo governador. +Mas que <em>fumos</em> eram esses? Eram a vaidade e os erros de tantos pigmeus +que o gigante via formigar activamente, encelleirar, e, depois de gordos e +ricos, pavonearem-se na côrte, allegando serviços, com a basofia de quem tudo +sabia das cousas do Oriente. Fumos, com effeito, eram todos esses para o +governador, que aprendera nas suas primeiras viagens, e agora levava já bem +definido o seu plano. Levava sem o saber os seus <em>fumos</em> tambem: porque +em fumo se havia de tornar o imperio ephemero que construia na mente...</p> + +<p>Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno, na +armada de Tristão da Cunha; mas o genio do guerreiro não se reprimia com isso, +nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando absoluto, para pôr +em pratica o seu plano gigantesco. Elle sabia demais que, no cháos da India, +cada qual trabalhava por sua conta e risco; e que, n'esse vasto campo de +batalha, as manobras não obedeciam ao mando de um general; iam ao acaso, +segundo a audacia e o<span class="pn"><a name="pag_250">{pg. 250}</a></span> genio +dos capitães. De Lisboa a Zamgebar uma armada era um exercito; no mar da India +o exercito fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era senhor +de proseguir, conforme o seu plano, na vasta empreza de saquear o Oriente. O +plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um imperio.</p> + +<p>A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introducção, arrasando, +queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava),<a name="tex2html93" +href="#foot1229"><sup>[93]</sup></a> na costa, acima de Zamgebar, dirigindo-se +a Sokotra—essa ilha que, junto á ponta extrema da Africa, pelo norte, o cabo +de Jar-Hafun (Guardafui), era a vedeta sobre a entrada do mar Vermelho, e a +estação onde os navios de corso ás náus de Meka se deviam abastecer e +refrescar. Os arabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os todos, sem +ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida. Feito isto, +dirigiu-se á India, destacando Albuquerque (impaciente quasi até á rebeldia, +durante a delonga da construcção do forte) com seis navios e quinhentos homens, +para a caça das náus, no Estreito.</p> + +<p>Afinal, o capitão commandava! Afinal dispunha de uma phalange sua! e +resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha +desappareceram, na sua viagem para a India, Albuquerque largou de Sokotra para +a costa da Arabia, ao longo da qual foi subindo vagarosamente,<span +class="pn"><a name="pag_251">{pg. 251}</a></span> assolando tudo. Formára o plano +de começar por Hormuz as suas conquistas, marcando primeiro o limite por norte +e occidente, para mais tarde ir ao oriente, pôr em Malaka o extremo do seu +imperio. Hormuz, Sofala e Malaka são tres quinas de um triangulo, cuja base +mede 70 graus em longitude, cuja altura, até ao vertice de Hormuz, conta 50 em +latitude.</p> + +<p>Foi a 10 de agosto do anno de 507 que Affonso de Albuquerque largou de +Sokotra, em direcção do golpho Persico. A sua esquadrilha compunha-se de seis +navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a poderosa unidade +que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança que todos tinham no seu +genio e na sua sabedoria, e tambem nos mosquetes e artilharia das náus, +tornavam poderosa como um ariête esta pequena divisão. Para nos servirmos da +expressão de Francisco d'Almeida, tratava-se apenas de combater <em>com +bestas</em>; e não havia ainda que temer em Hormuz a artilharia dos rumes, nem +os bombardeiros venezianos. A novidade de um engenho de guerra e a audacia de +um guerreiro á antiga, iam levar a cabo uma empreza, de facto espantosa, como +as de Alexandre ou de Cyro.</p> + +<p>Seguindo os exemplos d'esses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na +mente, punha em pratica os antigos meios orientaes. Avançava no meio de um côro +de afflições e mortes, precedido por uma columna de incendios, para que, ao +chegar, a vanguarda do terror precipitasse os animos na abjecção. Assim ia ao +longo da costa da Arabia assolando e devastando todos os logares vassallos do +suzerano de Hormuz. Primeiro arrazou Kalhât (Calayate) «que é feito de casas de +pedra, terradas e muitas cobertas de palha, casas espalhadas<span class="pn"><a +name="pag_252">{pg. 252}</a></span> e mal armadas e fóra do logar á mão direita um +palmar de palmeiras de tamaras, onde estavam uns poços de agua de que bebiam. O +logar assenta ao longo d'agua, e por detrás ha grandes serranias de pedra viva, +e no mar alguns zambucos e náus que vem aqui carregar cavallos e tamaras e +peixe salgado.» <small class="SMALL">(G. C., </small><em><small +class="SMALL">Lendas</small></em><small class="SMALL">)</small>.</p> + +<p>Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a todos +os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e mutilados, +annunciar por toda a parte a fama do seu poder. Em Khor-Fakhan (Orfacate) +reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou todos os prisioneiros. Entre +elles, porém, estava um velho letrado persa, de longas barbas brancas, que +vivia de admirar Alexandre, cujo livro possuia. O velho applaudia o portuguez, +commentando o livro com as façanhas do novo heroe; e applaudia-se a si por ter +ainda em vida assistido á resurreição do filho de Olympias. Acclamava o +portuguez, ou o grego, confundindo a realidade com a historia; e de joelhos, +adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.</p> + +<p>Em Makât (Mascate), já na entrada do golpho, e quasi fronteiro a Hormuz, +tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e +Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrivel d'esse heroe que se +approximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha appareceu diante +da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em resistir, por vêr que os +navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que cada um d'elles, com os seus +canhões escondidos por detraz das amuradas, era um vulcão prompto a rebentar em +lava, um inimigo perfido cuja força latente não podia medir-se. Maskât foi +bombardeada.<span class="pn"><a name="pag_253">{pg. 253}</a></span> A mesquita onde +os infelizes se tinham refugiado caíu a machado, e os captivos, mutilados, +foram fugindo, chorando, reunir-se á gente da cidade escondida nas serras. +Havia cadaveres em todas as ruas e o fogo posto começava a crepitar lavrando +nos armazens cheios de azeite e de melaço. As labaredas subiam, zumbia ao longe +o clamor dos desgraçados, e á maneira que o terribil heroe se alongava na praia +com os seus para regressar aos navios, os <em>mouros</em> vinham anciosos e +cheios de medo vêr se podiam ainda salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto +das chammas vivas. Era em vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque +proseguiu deixando um rasto de sangue e cinzas. Hormuz estava proximo, e +cumpria que a onda do terror, que fôra crescendo, estoirasse agora de um modo +pavoroso.</p> + +<p>Hormuz era então a joia mais preciosa da corôa da Persia. Chamavam-lhe <em>a +pedra do annel</em> das Indias. Era a Londres oriental, onde todos os productos +do Oriente vinham desembarcar; d'onde saíam nas longas caravanas que se +dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartaria e o Turquestan, por toda a Asia +do norte. Os armadores levavam por mar a Hormuz a pimenta, o cravo das Molucas, +o gengibre, o cardamomo, os paus de sandalo e brazil, os tamarinhos, o açafrão, +a cera, o ferro, as cargas do arroz de Dekkan, os côcos, as pedrarias, as +porcellanas, o benjoim, os pannos de Kambai, de Chala, de Deval, e os cinabasos +de Bengala. Ahi vinham, de Aden, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o +azougue, os brocados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da Europa, +pelo caminho de Alexandria, a Suês, via do mar Vermelho. Toda a Persia se +abastecia em Hormuz dos generos de fóra; por Hormuz toda ella mandava<span +class="pn"><a name="pag_254">{pg. 254}</a></span> importar os productos indigenas. +Os navios carregavam ahi a seda e o almiscar, rhuibarbo de Babylonia, e as +récuas de cavallos da Arabia, tão queridos no Dekkan, em Kambai e nos Estados +da contra-costa de Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. +Contra o arroz e os pannos que levavam, os commerciantes traziam de Hormuz as +tamaras, o sal das suas collinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljofar +grosso, muito procurado em Narsinga.</p> + +<p>A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e prazer, +uma côrte de mercadores. As casas, recheiadas de cousas preciosas, eram +thesoiros ou museus, com paredes forradas de marmores, columnatas, eirados, +pateos ajardinados e fontes preciosas. A vida custava ahi carissimo, porque o +luxo absorvia todos os recursos naturaes. A terra, uma salina, era esteril de +si: tudo vinha da Persia, da Arabia, da India: mas os mercadores tinham +defronte, além, na costa firme, as quintas e hortas, onde iam com frequencia. +Ahi o platano magestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cypreste +meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e jardins de +rosas, povoados de rouxinoes, abrigando nas encostas á sua sombra as vinhas +ferteis. Os pomares regados estavam coalhados de laranjeiras, de fructos de +ouro e flôres de neve perfumada; de macieiras, pecegos, albaquorques; de +figueiras de fórmas extravagantes e amplas folhas; de granadas, com os fructos +rebentados a sorrir nos seus grãos côr de rubi. No chão serpeavam as redes de +hastes dos meloaes, louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com +peso os cachos de uvas preciosas de todas as côres. Por entre os bastos pomares +e do seio dos jardins de<span class="pn"><a name="pag_255">{pg. 255}</a></span> +rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira, com o seu turbante de folhas +agudas, carregada de tamaras.</p> + +<p>Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a +defendiam da luz e do calor do sol, formigava uma população de varias raças, de +côres diversas, occupada em comprar, em vender; mais occupada ainda em gozar a +vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os perfumes inebriavam os +sentidos, e acordavam todos os instinctos sensuaes. Vinham ali vender neve, de +trinta leguas do interior da Persia. Amar era o primeiro de todos os commercios +de Hormuz; e o persa, alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os +desvairamentos da pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até +aborrecidas em Hormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os harens +dos ricos, e os bordeis para o commum dos mercadores. Era uma devassidão +abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam sempre +seguidos por pagens, com toalhas e jarras de prata e bacias com agua. Havia +musicas e festas por toda a parte e as bandas e orchestras andavam +constantemente nas ruas onde os mercadores expunham á venda o aljofar em +colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos estofos, e sobre as +camisas brancas de algodão finissimo vestiam-se tunicas de chamalote ou gran, +cingidas por almejares com grandes adagas ornadas de ouro e prata e pedras +preciosas. Os broqueis eram redondos, forrados de seda; os arcos acharoados, ou +de corno de bufalo com cordas de seda. Usavam, além do arco e da frecha, do +escudo e da adaga, machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e +tauxiadas de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um<span +class="pn"><a name="pag_256">{pg. 256}</a></span> annel e a pedra Hormuz. Só a +alfandega rendia meio milhão de xerafins.<a name="tex2html94" +href="#foot908"><sup>[94]</sup></a></p> + +<p>As noticias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de +terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delicias. No porto +havia, com effeito, uma poderosa armada que escondia as aguas: eram centenas de +náus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se arrestado os navios dos +mercadores e do seio da frota estava a náu de Cambaya, a <em>Meri</em>, de mil +toneis, com gente basta e numerosa artilharia. Havia o melhor de duzentos +galeões de remo com arrombadas de saccas de algodão tão altas que escondiam os +remeiros. O persa que vestia os laudeis, em vez de corpos de aço, couraçava +tambem de algodão os navios. As terradas alastravam o mar, carregadas de gente +armada, com estandartes garridos «que era cousa fermosa para ver». Na terra, ao +longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas musicas +de trombetas e anafis. «As gaitas do mar e terra eram tantas que parecia que se +fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça desesperados, contando como +os seis, seis navios apenas portuguezes! traziam no ventre uns monstros de fogo +destruidores! E o soldão persa, afflicto, não sabia de que modo receber a +visita de Albuquerque e dos seus navios, que já estavam, terriveis mas quietos +como um volcão em paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Hormuz. +Albuquerque exigia-lhe que abandonasse o persa, e se declarasse vassallo do +portuguez; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para<span +class="pn"><a name="pag_257">{pg. 257}</a></span> que deixassem em paz—quando o +capitão, enfadado com as delongas e subtilezas, rompeu inopinadamente o fogo. +Começou a varejar em torno o estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de +destroços, de naufragios e cadaveres que era horroroso de vêr. Estava como um +lobo no meio de um rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. +Os fugidos nadavam n'um mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que +os soldados matavam n'elles ás lançadas e cutiladas. Da amurada das náus os +grumetes e pagens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de +visceras fluctuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim oitenta +<em>mouros</em>. E emquanto a armada de Hormuz e as tropas do sultão eram +chacinadas, desmanchava-se o lançol de barcos como uma teia cujas malhas se +soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o mar sorvia uma +atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam fugindo em chammas, +como trombas de fogo correndo, vogando á mercê do vento «que era um grande +espectaculo para vêr». Ainda oito dias depois do sanguinario caso havia +cadaveres boiando no mar, e os portuguezes em lanchas occupavam-se n'essa +particular especie de pesca. A colheita era abundante, os cadaveres aos centos, +os trajos ricos, e muitos os anneis e alfinetes, as adagas e punhaes tauxiados +de ouro e prata com joias engastadas. Denudados, vinham a bordo as familias +reconhecer os cadaveres e leval-os piedosamente, em lagrimas, aos seus +sepulcros. A façanha fôra tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos +corpos mortos as chagas das frechas, não havendo similhante arma entre os +nossos? Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso +tristemente revelador<span class="pn"><a name="pag_258">{pg. 258}</a></span> da +confusão do combate com o novo Alexandre da India.</p> + +<p>O pobre sultão de Hormuz, afflicto, immediatamente accedeu a tudo: consentiu +que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil xerafins de +tributo. E d'este concerto se fizeram duas cartas, uma em folha de ouro, a modo +de livro, escripta em arabico com letras abertas a buril e suas brochas de ouro +com tres sellos de ouro dependurados por cadeias; a outra em parsi, que era a +linguagem commum da terra, e em papel com letras de ouro. E ambas estas cartas +mandou Affonso d'Albuquerque a el-rei D. Manuel.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Hormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque: mas isto mesmo +desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam, cubiçosos de +tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não comprehendia para que se +haviam de demorar alli, a construir uma fortaleza; quando, a não saquearem a +cidade, mais valia partirem para o rendoso corso das náos de Meka, na bocca do +Estreito. A intriga insinuava-se, dizendo que o capitão-mór queria construir a +fortaleza para si, e fazer-se rei de Hormuz, levantando-se contra o de +Portugal: na India não havia ainda mais tradição do que a do saque maritimo, e +o pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser comprehendido. Nem em +tres annos, diziam, voltariam á India, perdendo occasião de carregar as +quintaladas que tinham de ordenado. A cubiça de mãos dadas com a violencia e a +cegueira agitavam perigosamente as guarnições. Albuquerque, impassivel, +proseguia. De uma vez que lhe levaram um requerimento quando vigiava +pessoalmente a obra da<span class="pn"><a name="pag_259">{pg. 259}</a></span> +fortaleza, tomou-o assim dobrado como lh'o deram, e sem o ler metteu-o debaixo +de uma pedra do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava +cimentado com as queixas. Mas as lages não pesavam bastante para as abafar, e +recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20:000 +xerafins pagos pelo de Hormuz, que, esperançado n'estas desordens, confiado em +promessas de sedição, e nos auxilios que o persa lhe enviava, ousou romper as +hostilidades. Viera com effeito o cheik Yar (Xaquear) trazendo comsigo quatro +mil arabes. Albuquerque estava n'um serio perigo, e outro qualquer +perder-se-hia. Os capitães recusavam ir ao combate; mas elle, arrancando as +barbas, aos punhados, ao capitão Nova, levou diante de si os soldados, sósinho, +ás cutiladas. Dos seis navios, porém, fugiram-lhe tres, que vieram para a India +contar ao vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam +resistir ao seu mando <em>terribil</em>, só lhes era dado fugir! Albuquerque +retirou tambem de Hormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a +empreza, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a +Sokotra aprisionar as náus de Meka, e mais um navio o abandonou ahi: nenhum +podia supportar o ferreo mando do heroe.</p> + +<p>Em novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Hormuz, estava +de regresso á India, em Kananor, onde abriu a carta de Lisboa, que lhe confiava +o governo do Oriente. N'esse momento a violencia do seu genio furioso +arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados, queria sobretudo +terminar rapidamente o plano das suas conquistas; e foram necessarios os rogos +de D. Francisco de Almeida, a quem o filho acabava de morrer,<span +class="pn"><a name="pag_260">{pg. 260}</a></span> para consentir na expedição naval +de Diu. Só quando, mezes depois, chegou á India a fidalga armada de D. Fernando +Coutinho, poderam terminar as deploraveis contendas, entre o vice-rei e o seu +successor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu; e, cheio +de basofias, lançou-se na empreza em que achou a morte. Engolfados na matança e +no saque, no meio de parte da cidade incendiada, os portuguezes foram por sua +vez trucidados, quando os inimigos os colheram dispersos e sem armas.</p> + +<p>Só e livre, absoluto senhor do imperio nascente, Albuquerque entregou-se com +franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição d'elle era a fundação +de uma cidade, uma capital portugueza—cousa que até então não existira. +Katchi, cujo rajah desde o principio se abraçára aos novos invasores, era uma +cidade India, onde possuiamos apenas uma fortaleza, abrigo da feitoria e guarda +de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa para capital. Collocada a meia altura +da costa Occidental da peninsula, bom porto, a cidade reunia as condições +desejaveis. Fazia elle então parte do reino de Vijajapur (Bijapor) fracção que +no fim do XV seculo se separára do de Dekkan, declarando-se o seu khan +independente, sob o titulo de adil-shah (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-shah do +Vijajapur, ao tempo de Albuquerque, tinha por nome Yusuf. Por este governava em +Goa Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em fevereiro de 510 Albuquerque +tomou Goa por surpreza; e pela primeira vez houve no Oriente um Estado +portuguez. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um logar significava +apenas a substituição da suzerania indigena pela nossa; e o estabelecimento de +feitorias e a construcção de fortalezas, tinham<span class="pn"><a +name="pag_261">{pg. 261}</a></span> sómente em vista assegurar o commercio e a +cobrança das páreas ou tributos de vassallagem, segundo o plano do primeiro +vice-rei. Albuquerque iniciava um systema differente; creava uma cidade +propriamente portugueza; e com o novo governador, o nosso dominio desembarcava +dos navios para a terra firme. A um systema de colonias, como fôra em volta do +Mediterraneo o dos phenicios ou o dos gregos, substituia-se um imperio, como +Annibal o sonhára na Italia, e Alexandre o fundou na Asia. Albuquerque, porém, +não pensava em fazer de Goa uma cidade portugueza, no sentido de ser +exclusivamente habitada por europeus: seria chimerico. Faltava-lhe gente, e +para obviar a isto fomentou os cruzamentos de portuguezes com mulheres +indigenas, creando, tanto em Goa como depois em Malaka<a name="tex2html95" +href="#foot1230"><sup>[95]</sup></a>, uma população de mestiços, que mais tarde +se tornou um dos elementos de dissolução do nosso imperio. Sob o dominio +portuguez, os naturaes viveriam livremente na sua religião, com as propriedades +garantidas, mas sujeitos ao imperio protector e soberano de Portugal.<a +name="tex2html96" href="#foot1231"><sup>[96]</sup></a> Era um<span +class="pn"><a name="pag_262">{pg. 262}</a></span> plano correspondente ao que mais +tarde os inglezes pozeram em pratica, sem todavia cruzarem com os indigenas: da +mesma fórma que os hollandezes preferiram os planos maritimo-commerciaes de D. +Francisco d'Almeida.</p> + +<p>Goa occupou ao governador todo o anno de 510; porque o <em>Sabaio</em>, +tomado por surpreza em fevereiro, voltou no verão; e os soldados de Albuquerque +não quizeram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da furia e das +ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os planos de +Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da India, que além de lhes +não comprehenderem o alcance, se viam privados de saques, apenas fartos de +guerra. Goa perdeu-se em agosto; mas logo tornou para o dominio portuguez, +ganha por assalto em novembro. Os soldados obedeciam, porque o commando do +governador era <em>terribil</em>, desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa +a sua fé catholica. Alexandre cria-se um deus, Albuquerque <em>viu</em> mais de +uma vez os milagres do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um +cavalleiro de armas brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os +<em>mouros</em><a name="tex2html97" +href="#foot1232"><sup>[97]</sup></a>—conforme a tradição historica +portugueza. Nas cidades da costa da Arabia, viajando para Hormuz, as suas +crueldades tinham sido barbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impôr +pelo medo; aqui destruia como politico. Todos os <em>mouros</em> de ambos os +sexos, de todas as edades, mais de seis mil, foram mortos; e queimados vivos os +que se tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque +para socego d'ella só devia conter gentios. Era o<span class="pn"><a +name="pag_263">{pg. 263}</a></span> logar escolhido para capital do imperio dos +novos gregos pelo moderno Alexandre.</p> + +<p>Consolidada a posse da capital, no coração da India, Albuquerque voltou-se +rapido para as duas emprezas que rematariam o seu imperio: Malaka e Hormuz. +Embarcou, logo no principio de 511, e tocando em Ceylão, a terra encantada das +pedras preciosas, delicias do mundo, patria da canella e das perolas, +achamol-o, já em maio, em frente de Malaka, no extremo Oriente.</p> + +<p>Malaka, na ponta da peninsula da Indo-China, sobre o estreito a que dá o +nome, era para esta região, como Hormuz, a norte-leste, para a outra. Assim +como além se permutavam os generos da India com os da Arabia e da Persia, e em +Adem com os do Egypto; assim em Malaka se faziam todas as trocas dos productos +occidentaes da China e das Molucas, e de todo o extremo Oriente. De Malaka iam +as náus a Ternate e a Tidor, a Banda e a Ambon, em procura do precioso cravo; e +o estreito andava coalhado de <em>juncos</em> de Java, conduzindo á cidade o +arroz, as carnes, a caça e os <em>crizes</em> tauxiados de fino aço, em troca +dos damascos e brocados, que levavam de retorno para as ilhas do archipelago. +Amphibios, os malaios viviam no mar em permanencia, com a casa e a familia a +bordo; e os seus <em>juncos</em>, com enxarcias de verga, iam buscar a Malaka +os pannos de Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e +as drogarias de Kambai.</p> + +<p>Do saque de Malaka, o governador reservou para si apenas seis leões de +bronze, destinados ao seu tumulo. Sem se demorar, avassalou todo o archipelago +malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, segura a porta oriental +da India, voltou-se a Goa, de caminho para Hormuz e Aden,<span class="pn"><a +name="pag_264">{pg. 264}</a></span> a consolidar o imperio pelo occidente. Em +fevereiro de 513 sáe com uma armada para Aden, que não consegue tomar; viaja em +torno do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente +forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arabia, indo a Meka +despedaçar a santa Kaaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado +positivo, desde que Aden consegue resistir ás investidas do governador. Adiou +pois para outra vez esses planos, que eram a cupula do seu edificio e a chave +do imperio que vinha construindo. Conquistada Aden, as duas emprezas que +meditava eram relativamente faceis na sua simplicidade temeraria. Levaria +quatrocentos homens de cavallo em taforeas ou caravellas e iria desembarcar em +Liumbo, partindo n'um galope até Meka, logar santo mal guardado por gente +prostrada em adorações. Roubaria o thesouro sagrado e o proprio corpo do +propheta: com ambos se resgataria o Santo-Sepulcro de Jerusalem, captivo. +Consumar-se-hia a obra mallograda das Cruzadas, tradição piedosa que na +Renascença passara das nações do norte para a Italia e para a Hespanha, +arrastando mais tarde Portugal a Alcacerquibir. Ao mesmo tempo, e por outro +lado, a grande empreza do mar Vermelho descarregaria um golpe mortal no Egypto, +que era a joia do imperio dos turcos e o arsenal de onde vinham as armadas á +India. O seu plano consistia em «cortar uma serra muy pequena que corre ao +longo do rio Nilo, na terra do Preste Joham, para lançar as correntes d'elle +por outro cabo que não fossem regar as terras do Cairo».<a name="tex2html98" +href="#foot1233"><sup>[98]</sup></a> Desviando o Nilo seccaria o Egypto.<a +name="tex2html99" href="#foot1234"><sup>[99]</sup></a> Já pedira<span +class="pn"><a name="pag_265">{pg. 265}</a></span> a D. Manuel que lhe mandasse +officiaes da Madeira, onde os havia mestres no córte das serras para formar as +levadas de rega dos canaveaes. Tudo isto continha a empreza de Aden, cujo +mallogro cortou os vôos ás ambições grandiosas do heroe.</p> + +<p>Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse +fulgurado aos olhos do mystico e terrivel heroe uma cruz vermelha, Christo +abandonara-o na empreza. Quando o famoso milagre surgiu, Albuquerque e todos, +ingenuamente, crentes na missão divina em que andavam, caíram de rastos +adorando a cruz.<a name="tex2html100" href="#foot1235"><sup>[100]</sup></a> E o +capitão, para corresponder ao céu, mandou tanger os córos de trombetas, +responder com artilheria aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um +<em>estromento</em> assignado pelas guarnições, que veiu para D. Manuel, com a +carga de pimenta, afervorar a piedade mystica da côrte carthagineza.</p> + +<p>Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se +para Hormuz, cujo dominio não estava seguro. Outro Alexandre em Persepolis, o +heroe condemnou-se em Hormuz: a grandeza das suas façanhas tinha-lhe feito +nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. Orientalisado como o +imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam já a crueldade, nem a força: +appellava para a perfidia; e intromettendo-se nas miseraveis politicas dos +persas, chamou á sua tenda para uma festa o ministro que então governava o +principe idiota de Hormuz, e assassinou-o covarde e friamente, +substituindo-se-lhe. Estava proximo da cova: e a sorte não queria que á +historia d'este heroe faltasse o epilogo frequente da historia dos heroes: uma +abjecção. Tampouco<span class="pn"><a name="pag_266">{pg. 266}</a></span> a verdade +consente que se esconda um fraco de vaidade e fraqueza commum. Alexandre +mimoseava os litteratos de Athenas para que o exaltassem: Albuquerque mandava +anneis de pedras preciosas ao chronista Ruy de Pina «para escrever com melhor +vontade os memoraveis feitos da India».</p> + +<p>De volta de Hormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como fizera a +D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte Pacheco. A +côrte de Lisboa já o mandára substituir no governo por Lopo Soares de +Albergaria, que, chegando, começou por condemnar o seu predecessor, exaltando +todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, Albuquerque pegou da penna e +dirigiu uma carta ao rei—«quando esta escrevo a V. A. estou com um soluço que +é signal de morte!» E pedia-lhe que lhe honrasse a memoria e protegesse o +filho: o que o rei fez, honra lhe seja. Agonisando, via-se incomprehendido pela +tacanha côrte de Lisboa, e acceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens +por amor d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, á +vista de Goa. Era homem de mean estatura, rosto comprido e corado. Era avisado +latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui facil na +conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os mouros, +muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de uma familia de sangue +nobre, e educara-se na côrte militar de Affonso V, viveiro da geração dos +capitães da India amestrados nas guerras de Africa. Fôra em 1480 na esquadra +mandada a Napoles em auxilio do rei Fernando contra os turcos, e nove annos +depois partira para Africa a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, +contra os mouros. Era estribeiro-mór de D. João II<span class="pn"><a +name="pag_267">{pg. 267}</a></span> e já um grande fidalgo quando, em 1503, D. +Manuel o mandou á India pela primeira vez. Foi, voltou com bons creditos, mas +sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito, +levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de +Tristão da Cunha. D'essa ida começa a historia que narrámos e que termina agora +com a sua morte.</p> + +<p>Os soldados, a bordo, amortalharam-no no habito de Santiago com borzeguins e +esporas, espada á cinta, na cabeça uma carapuça de velludo e aos hombros uma +beca tambem de velludo. O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o +choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado +aos hombros dos soldados, sob o pallio, pelas ruas da cidade que conquistara; e +os gentios, vendo-o com os olhos meio abertos, a longa barba atada até á cinta, +fluctuando, não o criam morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! +Voltaria breve. E por muito tempo houve romarias ao sepulchro do heroe, vindo +os naturaes pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfidias dos portuguezes, +offerecendo-lhe boninas e azeite para a sua lampada. Do extremo Oriente, desde +o Pégu até á China, ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.<a name="tex2html101" +href="#foot1236"><sup>[101]</sup></a><span class="pn"><a +name="pag_268">{pg. 268}</a></span></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Hormuz, Goa, Malaka, os tres pontos cardeaes do imperio fundado por +Albuquerque no breve periodo de cinco annos (1507-11), valiam o dominio em todo +o mar das Indias e a vassallagem de todas as costas, desde Sofala, em Africa, +ao cabo de Jar-Hafun; desde Khor-Fakhan, na Arabia, até ao golpho Persico; +desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); d'ahi ás boccas do Ganges, e +descendo pelo Arakan e pelo Pégu, até Malaka—com as ilhas dispersas de +Madagascar e Sokotra, Anjediva, os archipelagos de Lakkha (Laquedivas) e de +Malaja (Maldivas), Sinhala (Ceylão),<a name="tex2html102" +href="#foot1237"><sup>[102]</sup></a> e Sumatra e Java, Bornéo e as Molucas, +até aos pontos extremos de Banda e Ambon. Com effeito, depois de Malaka e da +viagem temerosa mas esteril de 513 a Aden, todo o Oriente pasmava e tremia de +Albuquerque, o <em>terribil</em>. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e +tributos; todos os principes queriam a amisade do portuguez, e a seus pés +arrastavam a corôa os rajahs de Ahmednagar e de Kambai, de Vijajapur e de +Narsinga,<a name="tex2html103" href="#foot1238"><sup>[103]</sup></a> o shah da +Persia e os sultões de Sião, do Pégu, do Arakan; e até o proprio +<em>Hidalcão</em>, o adil-shah do Kanará, consentindo a fortaleza de Kalikodu, +comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do Gujerât, do Konkana, do +Karnataka e de Bengala. Desde o Indo até ao Ganges, pelo Cabo Kumari, desde +Kambai até Golkonda, o litoral da peninsula estava inteiramente submettido ao +jugo portuguez.</p> + +<p>Entretanto este imperio não podia dizer-se ainda construido: era um esboço +apenas. Como depois de uma victoria brilhante os timidos se curvam todos +perante o vencedor, assim acontecia no Oriente.<span class="pn"><a +name="pag_269">{pg. 269}</a></span> Lançado na politica de conquistas, o imperio +portuguez ganhava a primeira batalha; mas não podia decerto ensarilhar as +armas, emquanto a costa da Arabia e as margens do mar Vermelho se conservassem +em poder dos inimigos. Os naturaes da India, avassallados por uma corrupção +antiga, acceitavam o dominio de qualquer vencedor; mas era necessario, para o +manter, que a victoria fosse decisiva. Ora o inimigo, o <em>mouro</em>, fôra +batido, mas não fôra expulso. Como n'uma doença, tinham-se debellado muitos +symptomas, mas não se destruira o principio morbido. Aden continuava a ser o +emporio do dominio commercial maritimo dos arabes e egypcios no Oriente; o mar +Vermelho, o Suês, no extremo fundo d'esse estreito corredor, as boccas sempre +abertas, para vasar sobre a India navios, artilheria e soldados. O dominio, que +os portuguezes se propunham substituir, continuava; e do caracter dual ou mixto +que a occupação da India apresentava, resultaria um estado de guerra permanente +com os <em>mouros</em> e com os naturaes, que ora os preferiam a elles, ora a +nós. Ninguem, nação alguma seria capaz de resistir a um seculo inteiro de +similhante vida. O destino do imperio portuguez no Oriente dependia do +exclusivo do dominio, desde que era impossivel pactuar ou dividir a presa entre +os dois caçadores rivaes.</p> + +<p>O genio de Affonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez: Aden, +Meka, o mar Vermelho, eram a sua preoccupação: «Tres cousas, diz o filho e +commentador, ha na India que são escapolas de todo o commercio das mercadorias +d'aquellas partes, e chaves principaes d'ella. A primeira é Malaka, que está em +tres graus na entrada e sahida do estreito de Singapura; a segunda Aden, que +está em vinte e um graus de altura e<span class="pn"><a +name="pag_270">{pg. 270}</a></span> na entrada e saída do mar Rôxo; a terceira é +Hormuz, a qual está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da +Persia. Este Hormuz, a meu vêr, é a principal de todas. E se el-rey de Portugal +tivera senhoreado Aden podera chamar-se senhor de todo o mundo.» Dar um golpe +mortal no islamismo era, além de retribuir em Meka a affronta humilhante de +Jerusalem, mostrar aos musulmanos do Oriente que Jesus podia mais do que +Mafoma. Mas se o genio excepcional de Albuquerque não bastou para levar a +empreza ao fim, como poderiam bastar para isso os pigmeus que lhe succederam? +Valentes muitos ou quasi todos, incansaveis no mar e na terra, os governadores +da India foram extenuando em um seculo de guerra permanente as limitadas forças +da nação, sem pensamento politico, sem plano definido, á tôa e á mercê d'um +capricho, ou d'uma idéa a que o ciume imbecil da côrte limitava constantemente +os vôos. A primeira politica, a maritima, fôra abandonada com a queda de +Francisco de Almeida; a segunda politica, a imperial, condemnada com a +deposição e morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um +dominio estavel e seguro: uma tradição.</p> + +<p>Esta falta, comtudo, provinha de causas mais intimas, umas nacionaes, outras +chronologicas. O absurdo espirito da politica de Lisboa, e a já provada +incapacidade dominadora dos portuguezes, estão na primeira categoria: na +segunda estão os costumes e idéas de tempos relativamente barbaros. Os +portuguezes, ao pôr pé na India, faziam o mesmo que os povos germanicos, ao +descer dos Alpes sobre a Lombardia: cevavam-se. A historia de Affonso de +Albuquerque em Hormuz (1507) demonstra bem quanto era impossivel impôr +disciplina<span class="pn"><a name="pag_271">{pg. 271}</a></span> e ordem em +campanhas que tinham no saque o exclusivo motivo.</p> + +<blockquote> + <p>Fomos ao rio de Meca,<br> + Pelejámos e roubámos<br> + E muito risco passámos.</p> +</blockquote> + +<p>Estas palavras de Gil-Vicente resumem a historia da India; e com taes +elementos era possivel saqueal-a, era impossivel dominal-a.</p> + +<p>Por isso, n'esse seculo de 500 que a historia da India abrange, o conjuncto +dos caracteres da occupação portugueza fórma dois systemas: o da rapina, contra +o qual protesta e reage em vão a espada militar de Albuquerque; e depois o da +simonia, contra o qual, em vão tambem, reage a vara justiceira de D. João de +Castro.</p> + +<p>Estudemos agora o primeiro, a seu tempo estudaremos o segundo. Todos os +soldados de Antonio da Silveira, um capitão que andava pela costa, entre Chala +e Daman, trouxeram fato, escravos e dinheiro, com que foram contentes; e +assolaram tudo «em tanta maneira que se despovoaram todolos logares da fralda +do mar, que pela terra dentro dez leguas não havia gente». Em Barava, destruida +por Tristão da Cunha, os barbaros cortaram as mãos e as orelhas ás mulheres +para furtarem as manilhas e brincos de ouro. A tomada de Mangaluru ficou +celebre: «Foi entrada com muito valor, e dentro d'ella fizeram os nossos +espantosas cruezas, não perdoando a sexo nem a idade, nem ainda ás alimarias». +D. Paulo de Lima «deu na cidade de Johore (Jor)—escreve á esposa—e assolou-a +<em>com o favor divino</em>». N'outro logar os combatentes, empilhados contra +os muros, pedem aos da frente que, <em>por amor de Deus</em>, lhes deixem +matar<span class="pn"><a name="pag_272">{pg. 272}</a></span> um <em>mouro</em>. Á +approximação dos portuguezes, despovoam-se as cidades e fogem todos com terror: +assim aconteceu em Bintang. Albuquerque sustentou por tres annos, no mar da +Arabia, a sua armada com as presas das náus de Meka. Quando os portuguezes +occuparam as terras de Bardez «fizeram mui grandes males de roubos, tyrannias, +tirando as mulheres e filhas formosas a seus maridos, e outras corrompiam, e as +furtavam e tornavam a vender». O de Hormuz queixava-se de que, em paz, lhe +tiravam, a elle e aos seus, «parentas de que (os nossos) faziam uso, +tornando-as christans a seu pesar». O roubo e a luxuria, alliados aos inimigos, +davam lugar a interminaveis guerras: assim os capitães de Malaka originaram as +de Johore e do Atchim (Achem); e nas Molucas a cidade de Bachian, despovoada e +vasia, foi incendiada, indo-se os barbaros ás sepulturas dos reis furtar os +ossos, na esperança de receber por elles, mais tarde, um grosso resgate. +Roubando e pirateando á solta, o genio aventuroso dos portuguezes larga as +azas, e os exploradores vão até aos confins do mundo, fiados no seu +atrevimento. Dois heroes das <em>Peregrinações</em> teem uma historia +extravagante. Um, Antonio de Faria, vae á China roubar os sepulcros dos +imperadores; outro, Diogo Soares de Albergaria, obtém o titulo de irmão do rei +de Pégu, com duzentos mil cruzados de renda e o commando do exercito: é o rei, +mas morre assassinado, por ter furtado uma rapariga. Nem se julgue que só pelos +confins do mundo oriental portuguez, em Hormuz ou em Malaka, ou só pelas +costas, nos seus navios, a furia dos portuguezes se desmanda em ferocidades +anarchicas. Na propria Gôa, capital, a vida é um combate. Pelas ruas ha +batalhas e cadaveres insepultos. Um governador<span class="pn"><a +name="pag_273">{pg. 273}</a></span> prende certos salteadores portuguezes, manda-os +ferrar no rosto, junto á picota, e degredar para o Brazil: logo um pelotão de +amigos se amotina em armas para os libertar, e, não podendo conseguil-o, vae a +bandear-se para os mouros inimigos: o governador manda-os desorelhar e amarrar +aos bancos das galés; fogem e fortificam-se, e é necessario tomar á força o +reducto; prisioneiros, são, afinal, amarrados vivos a elephantes, e +esquartejados. É conhecida a tragedia em que a amante de D. Paulo de Lima, +precipitando-se das janellas do seu palacio de Pangin, morreu, e o seductor, de +espada e rodella, abriu caminho por entre a gente armada que acudia com o +marido.</p> + +<p>Até dentro das proprias egrejas havia rixas, a tiros: viam-se homens caír +assassinados no confessionario, e nos degraus dos altares, á meza da communhão; +e uma vez foi morto com um tiro o bispo quando levava a hostia, em procissão, +pelas ruas.</p> + +<p>Era uma anarchia barbara; e decerto os naturaes lamentavam a má-sorte que os +condemnava a supportar tantas crueldades ferozes. Antes o mouro indolente e +molle, e o antigo tempo que placidamente corria no seio de uma orgia podre mas +calma, nos braços do luxo, da opulencia e dos prazeres! Como demonios vomitando +fogo, negros nas suas armaduras, esses portuguezes eram enviados para os +desgraçar, para os punir talvez! E levas esfarrapadas de fugitivos, n'um côro +unisono de lagrimas e afflicções, acompanhavam por toda a parte a visita dos +terriveis forasteiros, que não sabiam fazer-se amar do indio, tão submisso, tão +bem disposto para obedecer e servir.</p> + +<p>Os <em>fumos</em> da India (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres +portuguezes, limitados na<span class="pn"><a name="pag_274">{pg. 274}</a></span> +Europa á porção congrua do bragal e do aço, sujeitos a uma forçada sobriedade e +a costumes mais presos. Na India o <em>fumo</em> desenfreava o animal, que se +retouçava delirante nas sedas e nos perfumes, nas fructas e nas mulheres, +coberto de diamantes, abarrotado de pardaus de oiro. Breve, porém, esse +<em>fumo</em> se dispersou no ar; e a desolação universal trouxe a miseria, o +luxo trouxe a fraqueza; e á violencia de barbaros, os portuguezes juntaram a +mesquinhez de chatins.<span class="pn"><a name="pag_275">{pg. 275}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1229" href="#tex2html93"><sup>[93]</sup></a> «Ao que se achou + presente Tristão Alvares, que era feitor do capitão-mór, que não consentiu + que ninguem tomasse nada e com João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram + tudo ao capitão-mór, o qual logo tudo mandou qubrar e ameaçar e deu ao + capitão e aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de prata e + a Affonso de Albuquerque tres, porque nunca estes capitães e fidalgos se + apartaram para ir roubar.» G. Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, + 677.</p> + + <p><a name="foot908" href="#tex2html94"><sup>[94]</sup></a> O xerafin (as + hrafi) = 12 rupia = 1 cruzado. Duarte Barbosa da-lhe a equivalencia de 300 + reis.</p> + + <p><a name="foot1230" href="#tex2html95"><sup>[95]</sup></a> V. <em>Raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp. <small>LX-I</small>.</p> + + <p><a name="foot1231" href="#tex2html96"><sup>[96]</sup></a> Não consentia o + governador A. de A. que os portuguezes tratassem (negociassem), dizendo que + onde tratassem haviam de querer ser poderosos e valorosos e não ser humildes + como mercadores, do que se recreceriam males de os matarem e perderem suas + fazendas... e tambem que, se os mouros vissem que lhes tomavamos seus tratos + nos teriam mór odio, e mais, que os homens, andando tratando, andavam fóra do + serviço de Deus e d'Elrey, de que elle daria muitas contas a Deus: pela qual + razão não consentia que nenhum homem andasse fóra do serviço d'Elrey. Com + esta pragmatica os portuguezes eram muito temidos por cavalleiros e não + mercadores, e tão temidos e obedecidos que ainda que um só portuguez fosse em + uma almadia, se o topassem naus de mouros, todas amainavam e lhe iam + obedecer, mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos eram + assignados por A. de A.»—Gaspar Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, + 518.</p> + + <p><a name="foot1232" href="#tex2html97"><sup>[97]</sup></a> V. <em>Systema + dos mythos relig.</em>, p. 331.</p> + + <p><a name="foot1233" href="#tex2html98"><sup>[98]</sup></a> V. <em>Hist. da + civil. iberica</em> (3.ª ed.) p. 243.</p> + + <p><a name="foot1234" href="#tex2html99"><sup>[99]</sup></a> V. <em>As raças + humanas</em>, <small>I</small>, pp. 106-10.</p> + + <p><a name="foot1235" href="#tex2html100"><sup>[100]</sup></a> V. <em>Syst. + dos mythos relig.</em>, p. 331.</p> + + <p><a name="foot1236" href="#tex2html101"><sup>[101]</sup></a> Ainda hoje os + indios chamam <em>Affonso d'Albuquerque</em> a um certo peixe, do tamanho da + corvina, e cujo nome zoologico não podemos apurar. Diz a lenda que o Leão do + Mar não morreu: afundou-se, e revive n'esses animaes marinhos. A maxilla + inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das figuras + portuguezas do seculo <small>XVI</small>: o barrete, as barbas ponteagudas e + longas, etc. Os indios pintam esses ossos, dando-lhes phisionomia humana e + guardam os <em>Affonsos de Albuquerques</em> como fetiches.</p> + + <p><a name="foot1237" href="#tex2html102"><sup>[102]</sup></a> V. <em>Inst. + primit.</em>, p. 3.</p> + + <p><a name="foot1238" href="#tex2html103"><sup>[103]</sup></a> V. + <em>Ibid.</em>, pag. 163.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002430">III<br> +D. João de Castro</a> </h3> + +<p>Morto Albuquerque, as cousas da India voltam ao estado anterior; e +abandonada a politica imperial, torna-se á politica maritima; ou antes o +dominio fluctua ao acaso, indeciso entre os dois planos. Lopo Soares proseguiu +ainda as guerras de conquista, acabando de avassallar Ceylão e as Molucas. +Vasco da Gama voltou pela terceira vez á India, como vice-rei, para vêr se +podia pôr cobro ás desordens e á corrupção interna das colonias: foi com elle +que se inaugurou o systema das successões, mandadas de Lisboa em cartas, que só +se abririam por ordem numerica, na falta de cada vice-rei, para prevenir as +frequentes desordens, a que dava lugar a transmissão do governo. O almirante +morreu tres mezes depois de chegado, succedendo-lhe D. Henrique de Menezes; a +este, Pero Mascarenhas, e o usurpador Lopo Vaz de Sampaio, tão celebre pelas +suas perfidias.</p> + +<p>Nuno da Cunha tomou posse do governo em 1528 em condições difficeis. As +torpezas dos governos anteriores tinham sublevado contra nós os monarchas do +Hindustan. O de Kambai, ao norte, com o de Kalikodu, inimigo antigo, ao sul, +estavam desde tempo em guerra aberta comnosco, de mãos dadas com os +<em>mouros</em>, nossos rivaes. O governador, em quem os dotes de guerreiro +primavam,<span class="pn"><a name="pag_276">{pg. 276}</a></span> decidiu reunir +todas as suas forças para ir tomar Diu, na costa do Gujerât, castigando por um +modo ruidoso a insubordinação do de Kambai.</p> + +<p>Quem via a esquadra com que Nuno da Cunha se foi a Diu, podia avaliar a +transformação que trinta annos apenas, ou menos ainda, tinham produzido no +caracter dos portuguezes. Ninguem os tomaria já pelos descendentes de +Pedralvares Cabral, envergonhados da sua pobreza em Kalikodu; nem sequer pelos +piratas domesticados com a disciplina de Albuquerque: pareciam já mouros, na +opulencia e nos costumes. A esquadra era das maiores, senão a maior de todas as +que se tinham reunido na India: constava de quatrocentas velas, entre as quaes +mais de quarenta vasos maiores, e multidão de bergantins, galeaças, fustas e +catures. Apoz ella vinham os juncos malaios com mantimentos, e um cardume de +zambucos e cotias de taverneiros, gente da terra, vendendo comestiveis e vinho. +Capitães e soldados tinham-se preparado como para uma funcção, luxuosamente +vestidos, carregados de pedras preciosas e ricas armas tauxiadas. As mulheres +enxameavam a bordo, esposas e amantes da gente da guarnição; e além das +mulheres os escravos eram numerosos. O governador tinha promettido premios de +1:000, 500 e 300 pardaus aos primeiros que successivamente subissem ás +muralhas. Era uma expedição mercenaria, e não uma aventura de bandidos. Isto +exprimia a transformação que já se tinha operado; e o governador, apesar dos +seus meritos, nada podia contra ella.</p> + +<p>Seguindo as boas tradições, a esquadra foi ao longo da costa deixando o seu +rasto de carnificinas e investidas covardes, contra os pontos indefesos; e +quando chegou em frente de Diu, rompeu<span class="pn"><a +name="pag_277">{pg. 277}</a></span> o bombardeio. Dentro da cidade era grande o +susto. Os commerciantes mouros agitavam-se, escondendo os seus thesouros e +preparando-se para a fuga. Os fakirs immundos, nús, e de rastos, estrebuxavam, +e, erguendo-se como doidos, acutilavam os braços e as pernas, ou batiam com +calhaus grossos na ossatura do peito, como a quererem matar-se n'um delirio de +visões santas. E o brahmine, com os seus longos cabellos enlaçados em turbante +no alto da cabeça coroada de flôres, perfumado de aloes e de agua de rosas, +untado de sandalo branco e açafrão, lançava-lhes uma esmola e palavras de paz, +para não juntar á desgraça da guerra novas desgraças de suicidios! Os senhores +de Diu, ricos do Gujerât, principes de Kambai, attonitos, vagueavam nas ruas +com as mulheres, a procurar refugio contra as bombardas que estalavam por toda +a parte. Com as caras rapadas á navalha e os longos bigodes negros caídos, +arrastavam pressurosos as compridas camisas de algodão e de seda, calçados nos +seus sapatos bicudos de cordovão lavrado: e os longos brincos de ouro +cravejados de pedras balouçavam e tilintavam nas orelhas, em quanto corriam +desafivelando, cansados, os cintos de ouro rutilantes de esmeraldas. Atraz +d'elles as mulheres, de uma raça delicada e formosa, com o rosto de um branco +de leite, meio encoberto em mantos de seda com que vestiam o tronco nú, corriam +descalças, mostrando nos dedos dos pés os ricos anneis, nas pernas as manilhas +de ouro e prata, os braços nús carregados de pulseiras, as mãos rutilantes de +pedras preciosas. Era um terror e uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o +ribombar da artilheria, e ao verem no ar a trajectoria de fogo das bombardas, +que vinham sem piedade rebentar em estilhas no meio da gente, crivando<span +class="pn"><a name="pag_278">{pg. 278}</a></span> de lascas o corpo côr de perola +das mulheres, e as carnes côr de barro dos fakires tisnados pelo sol, cobertos +de uma camada de lodo secco e de immundicies das estrebarias dos elephantes.</p> + +<p>As tropas de Kambai, nos seus postos das muralhas, esperavam o assalto, para +então se medirem com esses homens que, abrigados por detraz das suas peças, +distribuiam assim impunemente a devastação e a morte. Tremiam comtudo; e os +mouros, por entre os batalhões, lamentavam-se da falta dos artilheiros +venezianos e das esquadras dos rumes. Esperavam, porém, muito da tropa de +elephantes, que eram quinhentos com as prezas limadas e o pé triturador, com +que haviam de fazer em pastas humidas de sangue a phalange portugueza.<a +name="tex2html104" href="#foot1239"><sup>[104]</sup></a> As balas dos mosquetes +nada podiam contra a couraça da sua pelle, e esmagando com o peso, despedaçando +com as prezas, acabariam a obra começada pelos besteiros e fundibularios de +cima das torres. Mudos e immoveis, os quinhentos elephantes de Kambai estavam +na planicie, como ancora da salvação de Diu; e os soldados olhavam para elles +com amor. Além dos elephantes, tambem a cavallaria se achava formada, montando +á bastarda os leves cavallos da Persia, embraçados os seus escudos pequenos e +redondos forrados de seda, ao cinto duas espadas e uma adaga, ao hombro as +settas e o arco. Uns vinham defendidos com armaduras e cotas de malha de aço, +outros com laudeis, que eram mantos de algodão acolchoado, onde todos os golpes +morriam perdidos. Os cavallos traziam testeiras de aço. Porém, apesar de toda a +força reunida, a artilheria dos navios aterrorisava-os; e já por mais de uma +vez alguma<span class="pn"><a name="pag_279">{pg. 279}</a></span> bomba, caíndo no +meio dos elephantes, dispersára as montanhas de carne, a correr em rugidos, com +a tromba erguida, como um mastro, entre as prezas de marfim. Na cidade havia +tambem artilheria e mosquetes, mas que nada podiam contra os navios distantes: +os pelouros disparados recochetavam na agua.</p> + +<p>Parou afinal o bombardeio, e todos olhavam com ancia, porque esperavam +assistir ao desembarque e contavam com a peleja. Viram, porém, com surpreza que +as náus emmastreavam e as galés mudavam a prôa ao mar, afastando-se ao impulso +dos remos. Fôra medo? fôra fraqueza? Decerto; e a esquadra, atulhada de +escravos e mulheres, não tinha forças para uma batalha: apenas se arriscava a +um canhoneio sem perigos. Já era fóra de duvida que os deixava. As velas +desfraldadas impelliam os navios na volta do mar. A alegria e a assuada +substituiram então o pavor e o silencio. Todos pulavam contentes, desde o fakir +immundo, até ao grave e perfumado brahmine; desde os velhos e as creanças, até +ás mulheres, envolvidas nos seus mantos de seda, com os braços e as pernas +núas, a correr, agitando os longos brincos, preciosos, tão pesados que lhes +rasgavam as orelhas. Os commerciantes mouros abriam os bazares e desenterravam +os cofres; e todos vinham á praia vêr a armada que se afastava, despedindo-se +d'ella com vaias e gritos de zombaria, tangendo musicas, disparando tiros de +espingardas para o ar, e mandando, por cortezia, pelouros, a arranhar a +superficie azul das ondas. Diu estava salva das ameaças do portuguez.</p> + +<p>Porém quatro annos depois, intervindo nas questões internas dos sultões e +rajahs da peninsula, Nuno da Cunha obteve a permissão de construir a<span +class="pn"><a name="pag_280">{pg. 280}</a></span> fortaleza de Diu, celebre depois +pelo heroismo dos seus cercos. A politica do governador não desdenhava, +comtudo, o assassinato; e o pobre sultão de Kambai, convidado a uma entrevista, +foi trucidado, á maneira do que já succedera antes em Hormuz. D'ahi proveiu a +guerra e o primeiro cerco de Diu, sobre-humanamente defendido por Antonio da +Silveira.</p> + +<p>As chronicas chamam a Nuno da Cunha vencedor de Kambai, heroe de Bassaim, de +Kalikodu, e fundador de Diu. Basta esta enumeração dos lugares para demonstrar +que o dominio portuguez na India inclinava já, com trinta annos de vida apenas, +á decadencia. Os erros politicos originavam guerras permanentes; e o poder dos +invasores, que n'um relampago se alargára por todo o Oriente, não se +consolidava: agitava-se desordenadamente, no meio de questões sempre +renascentes, extenuando as forças defensivas, e corrompendo-se intimamente. Se +Nuno da Cunha merece dos coevos o nome de heroe, não é pelo valor ou alcance +dos meritos proprios, é pela absoluta incapacidade dos seus predecessores e dos +que lhe succederam. D. Garcia de Noronha, que veio apoz elle, era um fidalgo +pobre, sem merecimentos, além do da pobreza e das sympathias do rei, que o +mandou á India enriquecer. «Honra, eu a tenho: não venho mais que a levar +dinheiro», dizia mais de um governador. D. Estevam da Gama foi ninguem; e +Martim Affonso de Souza prégou com o exemplo, francamente cynico, a abjecção em +que a administração da India se tornára—agora que terminára o saque de todas +as costas, e as náus de Meka, mais raras e já artilhadas e preparadas para +rudos combates, não davam com que satisfazer a cubiça dos occupantes.<span +class="pn"><a name="pag_281">{pg. 281}</a></span></p> + +<p>A segunda epocha da historia da India, a da podridão, apparecia já +desenvolvida e accentuada por tal fórma, que o governo de Lisboa reconheceu a +necessidade de pôr cobro a tamanha desordem, e nomeou viso-rei D. João de +Castro, leitor assiduo de Plutarcho e decidido, por opinião, a ser um modelo de +virtude, e um typo de nobreza á antiga,—ou pelo menos á moda do que então se +julgava terem sido certos dos antigos heroes.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Effectivamente o estado das cousas exigia remedios energicos. Martim Affonso +de Souza deve abrir o rol, porque ninguem melhor e mais ingenuamente vivia no +seio da podridão e o confessava, nas cartas que enviava para Lisboa, ao rei. A +successão do governo de Vijajapur era debatida entre dois principes indigenas; +e o governador «tardou em se determinar, porque estava esperando quem levava a +melhor». Afinal decidiu-se pelo <em>Hidalcão</em>, que parecia ter mais justiça +e era <em>mais firme</em>, «ainda que vos certifico que da outra (parte) havia +tantas razões e contrarios que foi necessario <em>soccorrer-me a missas e +devoções</em>». Além das devoções, o vencedor deu-lhe 70:000 pardaus para +el-rey, 20:000 para elle proprio governador, e uma joia para sua esposa. Deus, +porém, não se contentando com ajudar o modo por que o governador vendia o seu +apoio, matou o rival vencido. Tudo corria para o melhor, quando, para coroar o +caso, vem um privado de Assud-Khan propôr-lhe a divisão do thesouro do +fallecido: 500:000 pardaus: «Mando 300 a el-rey, mas d'estes tomei 30:000 para +mi, que é o dizimo que lá mando a minha mulher: que em razão está que tenha +alguma<span class="pn"><a name="pag_282">{pg. 282}</a></span> parte d'isso, pois o +podera ter todo, que eu podera ter tomado este dinheiro sem o ninguem saber». +Esta pratica de vender o auxilio nas contendas indigenas não era, todavia, +privilegio de Martim Affonso. Em Hormuz, sob a tutela dos portuguezes, D. +Duarte de Menezes substitue a um governo amigo dos nossos, um outro que +preferia o mouro, porque este lhe deu «cem mil pardaus em xerafins novos, e em +conta ricas perolas e joias e aljofar». Gaspar Correia diz do governador, que +gostava de «boas peças e dadivas e alvitres de apanhar dinheiro, e banquetes e +prazeres, e com mulheres solteiras com que ia folgar no tanque de Tinoja, e em +tudo era mui devasso».</p> + +<p>Os capitães seguiam os exemplos dos governadores. De um de Hormuz, Diogo de +Mello, queixa-se o <em>rei</em>, porque o alguazil o ferira e quizera matar por +lhe não dar dinheiro e joias que exigia; pedindo soccorro, pois se lhe não +acudissem, despovoava-se a cidade. E nem só as fortalezas, ao lado dos +soberanos indigenas, eram rendosos meios de rapina: o mar produzia tambem +muito. Ruy Vaz vae por sua conta a Bengala <em>ás prezas</em>; e dois navios, +mandados expressamente de Lisboa á India com instrucções e cartas, para decidir +o pleito entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz, fogem para Madagascar <em>ás +prezas</em>, e ahi se perdem. A pirataria dos portuguezes era tão productiva +que excitava os estranhos; e de parceria, piratas francezes, guiados pelos +nossos, dão a volta d'Africa, e vão explorar a India. Não era tampouco raro vêr +nos mares do Oriente navios de arabes guarnecidos por portuguezes mercenarios; +os <em>mouros</em> pagavam melhor do que o rei. A guarnição da armada com que +Lopo Vaz foi ás ilhas de Sunda incendeia os navios por falta de pagamento do +soldo; e os naturaes<span class="pn"><a name="pag_283">{pg. 283}</a></span> +assaltam os portuguezes á pedrada, obrigando-os a pedir capitulação. +Effectivamente a sorte dos soldados era tão dura, que se recusavam a embarcar +em Goa, sem primeiro terem sido pagos. Os governadores eram obrigados a +mandal-os caçar pelas ruas e casas, levando-os algemados ao tronco, e da prisão +para a armada.</p> + +<p>A vida do soldado da India e a organisação militar eram com effeito +singulares. Desembarcando sem dinheiro em Goa, depois das doenças da viagem, os +que não tinham parentes ou amigos na capital da India, espalhavam-se pedindo +esmola em bandos pelas ruas, dormindo esfarrapados e semi-nús debaixo dos +alpendres das egrejas, ou nas galés e lanchas varadas na praia. Empenhavam o +que traziam: a capa, a espada; ou preferiam roubar para viver, esperando o +arrolamento da armada, que todos os annos ia varrer as costas do Malabar, +inçadas de piratas arabes cujo rei era o Cutiale (Kuuat-Ali).<a +name="tex2html105" href="#foot1240"><sup>[105]</sup></a> Chegada a epocha, +lançado o bando, nomeiavam-se os capitães dos navios—logo veremos porque artes +e maneiras o capitão tratava de angariar a sua gente. A <em>chusma</em> da +marinhagem compunha-se de negros captivos, agarrados a laço pelas ruas. Os +soldados recrutavam-se nos bandos já amestrados na rapina e que, de volta das +expedições, se pavoneavam nas ruas de Goa: era uma tropa de salteadores e +adulteros, malsins e alcoviteiros, que enchiam a cidade de roubos e +assassinatos nocturnos, occupando-se a beber nos lupanares e a matar por +officio e dinheiro. Os <em>reinoes</em> bisonhos entravam só nas faltas, até +que tivessem por seu turno aprendido como se era soldado<span class="pn"><a +name="pag_284">{pg. 284}</a></span> da India. O capitão dava dez xerafins a cada um +dos soldados para se prepararem e armarem. Cada qual escolhia as armas que bem +lhe agradavam, e muitos preferiam gastar o dinheiro em orgias, indo para bordo +esfarrapados e sem mosquete, nem lança, nem rodella, nem espada: com as mãos +vazias.</p> + +<p>A mesma anarchia se usava no ataque; desembarcavam em chusma, e +<em>davam-lhes de Santiago</em>, cada um conforme podia e sabia. Dispersavam-se +todos com a mira no que podiam roubar, porque esse era o verdadeiro soldo; os +dez xerafins um preparo apenas. Geralmente a primeira investida era +irresistivel: e logo ao ataque se seguiam o incendio, o roubo, a +matança—muitas vezes tambem a reacção dos inimigos. Dispersos, deixando as +armas ás portas das casas para irem mais leves a roubar, os soldados eram +mortos um a um: como succedera no grande desbarato de Kalikodu, onde morreu D. +Fernando Coutinho; como succedia a cada passo, por toda a parte. Com tal +systema, a guerra protrahia-se indefinidamente; mas era isso o que convinha a +todos, porque d'ella tiravam o melhor dos seus proventos.</p> + +<p>Os soldados roubavam, os capitães roubavam com elles, roubavam-nos a elles, +cerceando-lhes as rações de arroz avariado e podre. E depois da façanha, em que +muitos ficavam, depois de forçados a fugir em debandada, «os capitães-móres das +armadas recolhem-se com os focinhos quebrados e com alguns navios perdidos. E +ao entrar a barra de Goa, é tanta a bombardada que não ha quem se ouça, e ao +sahir em terra tanta pluma e bisarrice, como se deixaram destruido o mundo.<a +name="tex2html106" href="#foot1241"><sup>[106]</sup></a>—E<span class="pn"><a +name="pag_285">{pg. 285}</a></span> não é bem, accrescenta outra testemunha, a +facilidade com que os capitães da India entram em Gôa triumphando, +esbombardeando, cheios de plumas e pontas de ouro, deixando muitos companheiros +descabeçados nas praias de Calecut.»</p> + +<p>Não é bem, decerto; mas não podia ser de outra fórma; e ainda assim a +basofia, apesar de ser enorme, não era a peior das fraquezas dos capitães da +India. Pedro não obedecia a Gonçalo por não ser tão fidalgo como elle: eram +todos <em>pontinhos e biquinhos de honra</em>. Em tendo sido capitães de quatro +fustas, não queriam mais saír fóra sem bandeira na quadra; «e alguns não teem +mais noticia da guerra que passear ás damas.» O peior, o peior de tudo era que +uma vergonhosa corrupção apagava todos os brios. Nuno da Cunha dizia que os +homens da India eram como os doentes de colera, tinham os gostos damnados; e +outro accrescentava que os viso-reis, ao passarem o cabo da Boa-Esperança, +perdiam de todo o temor a Deus e ao rei, como perdem a memoria os que passam o +Lethes.</p> + +<p>Vimos ha pouco o modo por que se guarnecia uma armada; resta dizer que as +capitanias do mar e as das fortalezas eram compradas por dinheiro aos +viso-reis: um rapaz imberbe pagou uma d'essas por um serviço de mãos e um +saleiro de prata; e duzentos pardaus eram <em>as ordinarias</em>, isto é, o +preço usual de uma capitania. Providos no seu lugar, os capitães, que o tinham +comprado, faziam-se mercadores e contrabandistas, conluiando-se com os +empregados fiscaes, e associando-se com os mouros e judeus. Os capitães de +Malaka tinham náus para irem de sua conta, á China, de um lado; a Diu, Chala, +Daman, Bassaim, do outro. Os de Hormuz commerciavam por mar<span class="pn"><a +name="pag_286">{pg. 286}</a></span> com Bengala, com os portos da costa occidental +da peninsula, e com o Zamgebar. Como negociantes, á imagem do rei, exigiam +tambem em favor proprio um monopolio; e d'ahi vinham as desordens e violencias +brutaes exercidas sobre os indigenas. «A guarda do <em>cartaz</em> +(salvo-conducto que os navios <em>mouros</em> pagavam para navegar no mar da +India) é o credito do nosso Estado», diziam os homens-bons do Oriente; mas por +cima de tudo o mais, os capitães, para fazerem prezas, buscavam <em>bicos</em> +no exame dos passaportes e roubavam os navios e as cargas. Os lucros do +commercio não lhes bastavam, e o roubo vinha engrossar o rendimento das +capitanias. Hormuz era, sobre todas, celebre n'esta especie. Arrolamentos de +guarnições ficticias, matriculas de praças mortas, para embolsarem o soldo de +suppostos soldados, eram casos ordinarios e communs a todas: só d'esta verba um +capitão de Hormuz fazia 30:000 cruzados em tres annos. Com os navios succedia +outro tanto: fundeados, a apodrecer nas aguas, ou varados na praia, custavam ao +thesouro da India o preço de guarnições que só existiam no papel. E estes +roubos eram tão vulgares que não havia pejo em os confessar. Um capitão de +Hormuz declarava alto e bom som, que não perdoaria um real da somma que se +tinha decidido a ganhar—300:000 cruzados.</p> + +<p>Um certo Alvaro de Noronha, na mesma praça, accusado, responde que outro +tanto fizera o seu antecessor, «que sendo <em>apenas um Lima</em> levára +140:000 pardaus: elle <em>como Noronha</em>, havia de levar mais». O brazão da +sua casa ficaria manchado, seus avós corariam, se gente menos nobre lhe +passasse adiante em qualquer cousa—até no roubo.</p> + +<p>E os crimes dos capitães não podiam ser punidos,<span class="pn"><a +name="pag_287">{pg. 287}</a></span> porque os viso-reis faziam outro tanto e mais: +quando o exemplo vinha de cima, como se havia de condemnar a copia? O +governador Lopo Vaz de Sampaio, que era pobre e tinha muitos parentes a +proteger, foi a Hormuz <em>para fazer proveito</em>, com doze navios, cujos +capitães eram todos seus proximos e afilhados. Diogo de Mello era seu cunhado, +e isso o deixou impune dos roubos e males extraordinarios que tinha commettido. +Nas deploraveis intrigas com que empolgou o governo a Pero de Mascarenhas, Lopo +Vaz, para crear partidarios, usou de todos os meios. Pagaram-se todos os +<em>alcances</em> por meio de folhas de suppostos soldos vencidos; e n'esta +<em>agoa envôlta</em> muitos enriqueceram. A um certo Nuno Redondo, eximio em +<em>falsar sinaes</em>, deveu o governador o alvará com que espoliou o seu +émulo.</p> + +<p>As principaes rendas dos governadores provinham de diversas especies de +peculato: as <em>peitas</em>, ou luvas que recebiam por todos os empregos; as +heranças jacentes que roubavam; os cabedaes do indio ou judeu queimado pela +Inquisição de Goa; os conluios com os <em>contadores</em>, para extorquirem +dinheiro aos funccionarios e litigantes; a falsificação da moda; o roubo do +cofre dos orfãos; o fornecimento de material de guerra; as matriculas de +soldados mortos ou nunca arrolados; a amortisação dos titulos de divida do +governo, comprados no mercado por vil preço, e que nas contas iam mettidos pelo +seu valor nominal.</p> + +<p>A turbulencia e devassidão dos soldados provinham dos crimes dos +commandantes, ficando por isso impunes; os roubos dos governadores authorisavam +os dos capitães: mas se o governador fosse punido, não poderia acaso varrer-se +o lodo e moralisar-se o dominio? Poderia; mas os governadores<span +class="pn"><a name="pag_288">{pg. 288}</a></span> tinham a favor da sua corrupção +argumentos muito valiosos, e podiam contar com a impunidade. Em Lisboa, salvas +momentaneas excepções, considerava-se a India como uma vasta seara a colher. +«Cartas se liam pelas portas, em ajuntamentos de cadeiras, que era uma vergonha +os descreditos que n'ellas vinham.» Desde o rei até ao mais infimo dos moços da +chusma, todos eram commerciantes; e o commercio, cuja mira é o lucro apenas, +tolera tudo, pactua com todas as devassidões. Contam que D. Manuel em pessoa +achava graça ás manhas e expedientes vis, com que se explorava a India, quando +os que de lá vinham justificavam as artes com a riqueza, augmentando a +opulencia faustuosa da côrte. Bastante dinheiro e um pedaço de lisonja venciam +tudo. Diogo de Mello, de quem já falamos como heroe, foi condemnado á morte +pela Relação de Lisboa; mas <em>fiqou</em> em morte civil para S. Thomé; depois +para Africa; e, por fim, com dar 500 cruzados para a Arca-da-Piedade, casando +suas filhas com as muitas riquezas dos roubos que n'este mundo não pagou.</p> + +<p>Pagal-os-hia no outro? Não era de crer; porque o jesuitismo tinha descoberto +que a simonia não era peccado, sempre que se seguissem umas certas regras. O +furto deixava de provocar escrupulos de consciencia, desde que os casuistas +tinham averiguado ser licito cobrar por qualquer modo, o que se não póde haver +por demanda, de pessoa poderosa. Ora quem mais poderoso do que o rei, dono do +thesouro da India? Por isso, uma vez os conegos de Goa fecharam a sua egreja e +suspenderam o culto, quando o viso-rei, distante em Katchi, deixou +atrazar-se-lhes as pagas. E além d'esta justificação de todos os expedientes, +os padres<span class="pn"><a name="pag_289">{pg. 289}</a></span> confessores da +<em>Companhia</em>, defendendo os que recebiam <em>luvas</em>, diziam que o +nome de <em>peita</em> se entende só do que se toma da parte antes de a +despachar, ou de concerto que se faça para o negocio<a name="tex2html107" +href="#foot1242"><sup>[107]</sup></a>. Mas se a parte fôr despachada, póde +muito bem gratificar depois: é um agradecimento, e não uma peita.</p> + +<p>Não deixaria, por certo, de valer para muitos esta boa paz em que se achavam +com o céu; mas é fóra de duvida que os escrupulos religiosos não incommodavam a +maxima parte, senão quando, na volta para o reino, os assaltavam os temporaes +da costa d'Africa. A cumplicidade de Deus era muito; mas era melhor ainda a +cumplicidade das justiças, que na terra podiam confiscar, prender e matar. Um +chronista erudito escrevia: «O imperio romano não se começou a perder, senão +depois que se começaram a vender os magistrados; e assim eu dou a India por +acabada». Não eram só venaes, eram tambem analphabetos, os juizes: fazia-se um +desembargador com <em>dois debrums de latim</em>. As testemunhas custavam em +Goa a pardau por cabeça «e se a um ladrão ou salteador, por conhecido que seja, +não faltam 4 ou 6 testemunhas que o abonem, como faltarão a um viso-rei?» Além +d'isso, de que valeriam rigores contra os «roubos, injurias, mortes, forças, +adulterios com as casadas, viuvas, virgens, orfans... se dizem que elrey N. S. +é tão cheio de misericordia, que por males que lhe façam, tudo perdoa e quita?» +Gaspar Correia achava, entretanto, indispensavel que se mandasse cortar a +cabeça de um viso-rei no caes de Goa.</p> + +<p>A misericordia de S. A. não consentia isso, mas o povo esteve por um nada a +fazel-o. Quando o<span class="pn"><a name="pag_290">{pg. 290}</a></span> conde da +Vidigueira, ex-governador, partia para o reino, as turbas derribaram da porta +da cidade de Goa a estatua do bis avô (Vasco da Gama), enforcaram-no em effigie +na verga de uma náo, e envenenaram ao neto o pasto dos animaes que levava de +vitualha para a viagem<a name="tex2html108" +href="#foot1243"><sup>[108]</sup></a>.</p> + +<p>Mais graves e decisivos symptomas de desaggregação do ephemero imperio da +India rebentavam constantemente, e por toda a parte. Ferviam as deserções; e +grupos de soldados iam arrolar-se nas tropas indigenas, ou nos navios arabes, +por miseria, por cubiça, por homizio, arrastados pela fome ou pelas +<em>moraxas</em> infieis, espalhando-se em Kambai, no Balutchistân, no +Afghanistân e na Persia, de um lado; em Bengala, do opposto; alastrando-se pelo +Arakan, por Pegú, por Malaka, e Kamboja, até á China. Os que militavam debaixo +das insignias dos reis e principes infieis eram tantos, «que sem muitas +lagrimas não se poderá considerar, quanto mais escrever... e muitos se põem por +soldados em navios de chatins, onde, posto que o soldo não seja tão honrado +como o d'elrey, é mais proveitoso, por ser melhor pago». Em tempo d'elrey D. +Sebastião havia na India 16:000 portuguezes, e não se poderam mandar 800 homens +a soccorrer Malaka.</p> + +<p>Já em Chala, no tempo de D. Francisco de Almeida, logo no começo da +occupação da India, 50 marinheiros da armada do viso-rei, perante o inimigo, +conspiravam para se passar aos <em>mouros</em>, que pagavam melhor. Estes +phenomenos, pois, não provinham directamente da decadencia, manifesta agora; +mas tinham causas intimas, e logo evidentes no começo da empreza.<span +class="pn"><a name="pag_291">{pg. 291}</a></span></p> + +<p>Além dos que desertavam, outros iam por conta propria estabelecer feitorias, +ninhos de piratas «buscando pão para comer, por não haver armadas ou fortalezas +em que lh'o deem». Assim em Tchitâgan, assim em Ugoli de Bengala, em Nagapatan +na costa oriental da India, em Macau e em infinitos lugares.<a +name="tex2html109" href="#foot1244"><sup>[109]</sup></a></p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Para engrenar esta roda de miserias, foi do reino enviado D. João de Castro. +O quarto viso-rei da India<a name="tex2html110" +href="#foot1245"><sup>[110]</sup></a> era, havia muito, conhecido pela +candida<span class="pn"><a name="pag_292">{pg. 292}</a></span> nobreza do seu +caracter, pela sua experiencia de navegador e guerreiro, e pela vastidão do seu +saber, pelo seu amor ás boas lettras. Esse amor punha na sombra os dotes +ingenuos do seu espirito; e esse asceta e amante mystico da natureza, qual o +descobrimos nos seus escriptos, vestia a toga dos heroes antigos, para +apparecer em publico na attitude classica do estylo dos seus papeis de Estado e +do cortejo do seu triumpho em Goa. A preoccupação romana do <small>XVI</small> +seculo em Portugal tinha em D. João de Castro um fervoroso sectario; e como o +genio do viso-rei era de uma sinceridade candida, a affectação antiga tomava +para elle as proporções de um culto. As suas phrases e gestos, copiados dos +antigos heroes, não eram decerto uma mascara postiça, embora a nós se affigurem +taes. Affonso de Albuquerque, porém, tinha no sangue a força de Alexandre; e a +D. João de Castro só a imaginação fazia um Numa, e um Cincinnato. Mas a +imaginação governava-o tanto, que lhe moldou o genio, tornando-o um exemplo +vivo do poder que a educação moral é capaz de exercer sobre o temperamento. +Esta construcção artificial do caracter produzia, comtudo, contradicções +necessarias. O amor litterario da phrase, e o enthusiasmo da copia, +arrastavam-no a cousas, senão ridiculas, extravagantes. Não ter em casa uma +gallinha para<span class="pn"><a name="pag_293">{pg. 293}</a></span> comer, +enfermo, e confessal-o com orgulho, era de certo misturar á honradez natural +uma ponta de affectação. Quando pediu a Goa trinta mil pardaus para levantar a +fortaleza de Diu, mandou os cabellos das barbas por penhor; mas, com o symbolo, +era forçado a dar tambem uma provisão para o thesoureiro de Goa, adjudicando ao +pagamento do emprestimo o rendimento dos cavallos. Todos os casos da sua vida +sympathica demonstram a nobreza ingenita de um caracter, cunhado +artificialmente pela educação litteraria.</p> + +<p>Era este o homem capaz de engrenar a roda da decomposição do imperio +oriental? Não, decerto. A sua propria grandeza na honra valia pouco, por ser +affectada, embora não fosse fingida. Os homens positivos e corrompidos da India +sorriam d'esse espectaculoso heroe; e, vendo ao mesmo tempo a ingenuidade +candida e pura do seu espirito, confiavam descansados em que não lhes viria +d'ahi mal algum para os seus interesses. A propria affectação <em>antiga</em> +do viso-rei demonstrava a fraqueza do estadista; porque só uma alma ingenua +podia ligar tamanho amor ás fórmas, e a ingenuidade jámais venceu nos governos. +Integro, forte, e piedoso no seu fôro intimo, D. João de Castro era um heroe e +um santo; mas nem essa fórma subjectiva do heroismo, nem a santidade, foram +nunca os meios de travar o movimento de decomposição de uma sociedade, ou de a +impellir no caminho do progresso. Para tanto, exigem-se as almas duras, os +espiritos frios, sem escrupulos, de um João II, ou de um Pombal.</p> + +<p>D. João de Castro não tinha em si os dotes de nenhum d'esses; e o seu +governo ficou inutil como uma bella pagina de moral: á maneira do livro em que +lhe escreveram a vida, e que é uma boa pagina<span class="pn"><a +name="pag_294">{pg. 294}</a></span> de rhetorica.<a name="tex2html111" +href="#foot1246"><sup>[111]</sup></a> Ficou, porém, como um sincero protesto: +esse é o seu valor social-historico. Ficou como um exemplo de bravura +temeraria, attestada nos cercos de Diu—quando o sultão da Turquia (Soliman II) +mandou de reforço quatro mil janisaros, ou <em>rumes</em> sob o commando do +pacha do Cairo, em auxilio de Khuajeh Safar (Cogeçofar), o ministro do rei do +Gujerât—mas d'esses exemplos abundavam; ficou, por fim, como um typo, ao mesmo +tempo nobre e interessante, do caracter de um santo e da influencia da +litteratura no genio dos individuos, ou antes nas suas acções.</p> + +<p>Se é que alguem havia em Portugal capaz de governar a India, o governo de D. +João III demonstrou cegueira, escolhendo-o; ainda que, por distinctos que +fossem os dotes de qualquer outro, é tambem facto que a empreza de levantar da +anarchia o imperio do Oriente excedia as forças humanas, porque os vicios +d'elle eram congenitos da sua existencia.</p> + +<p>Ao terminar este rapido esboço da vida politica de Portugal no Oriente, +convém mencionar a opinião do quarto viso-rei e as suas observações, +transmittidas para Lisboa, em cartas ao monarcha. «Cá está tudo, escrevia, em +estado que não ha mouro que cuyde haveis de ser de ferro para o seu ouro, nem +christão que o creio.» E passava a enumerar o estendal das miserias. As armadas +ficavam podres, que se desfaziam com as mãos; e não escapariam ao inverno, sem +irem ao fundo. Nenhum dos soberanos do Oriente confiaria nem uma palha a um +portuguez: a tanto chegára o descredito. Fôra um milagre trazer do reino á +India, a salvamento, a esquadra em que viera. Todos os dias havia em<span +class="pn"><a name="pag_295">{pg. 295}</a></span> Goa lançadas, revoltas e +desafios, capazes de maravilhar até a propria Italia. Não havia soldado que não +tivesse uma ou mais mancebas. Todos desobedeciam aos capitães, e cada qual se +arvorava em chefe. Por causa das mancebas dos soldados havia revoltas e +desastres em todas as náus. Nas Molucas, os nossos, depois de saquearem e +roubarem as casas de um certo rei, pozeram-no a ferros e «forçaram suas +mulheres com tamanhas desonestidades, que se não póde dizer a V. A.—Todos são +ladrões, todos, sem excepção, chatins. As cobiças e vicios teem cobrado tamanha +posse e authoridade, que nenhuma cousa já se póde fazer por feia e torpe, que +dos homens seja estranha. E são mais as almas perdidas dos portuguezes que veem +á India, do que se salvam as dos gentios que os prégadores religiosos convertem +á nossa santa fé.»<span class="pn"><a name="pag_296">{pg. 296}</a></span></p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1239" href="#tex2html104"><sup>[104]</sup></a> V. <em>Hist. + da republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 161-2 e 275-6.</p> + + <p><a name="foot1240" href="#tex2html105"><sup>[105]</sup></a> V. na + <em>Hist. da repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 188-95, a descripção + da pirataria mediterranea: causas identicas produzem resultados eguaes.</p> + + <p><a name="foot1241" href="#tex2html106"><sup>[106]</sup></a> V. <em>Hist. + da republica romana</em>, <small>I</small>, p. 274.</p> + + <p><a name="foot1242" href="#tex2html107"><sup>[107]</sup></a> <em>Hist. da + rep. romana</em>, <small>II</small>, p. 187.</p> + + <p><a name="foot1243" href="#tex2html108"><sup>[108]</sup></a> V. <em>Hist. + da rep. romana</em>, <small>I</small>, p. 356</p> + + <p><a name="foot1244" href="#tex2html109"><sup>[109]</sup></a> V. nas + <em>Raças humanas</em>, a p. <small>LX-I</small> do vol. <small>I</small>, o + estado actual dos restos da colonia portugueza de Malaka; tambem + <small>I</small>, pp. 75 e segg.</p> + + <p><a name="foot1245" href="#tex2html110"><sup>[110]</sup></a> 1 D. Francisco + d'Almeida 1505 1.º viso-rei</p> + + <p>2 Affonso de Albuquerque 1509</p> + + <p>3 Lopo Soares de Albergaria 1515</p> + + <p>4 Diogo Lopes de Sequeira 1518</p> + + <p>5 D. Duarte de Menezes 1521</p> + + <p>6 Vasco da Gama 1524 2.º viso-rei</p> + + <p>7 D. Henrique de Menezes 1524</p> + + <p>8 Lopo Vaz de Sampaio 1526</p> + + <p>9 Nuno da Cunha 1529</p> + + <p>10 D. Garcia de Noronha 1539 3.º viso-rei</p> + + <p>11 D. Estevam da Gama 1540</p> + + <p>12 Martim Affonso de Sousa 1542</p> + + <p>13 D. João de Castro 1545 4.º viso-rei</p> + + <p>14 Garcia de Sá 1548</p> + + <p>15 Jorge Cabral 1549</p> + + <p>16 D. Affonso de Noronha 1550 5.º viso-rei</p> + + <p>17 D. Pedro Mascarenhas 1554 6.º viso-rei</p> + + <p>18 Francisco Barreto 1555</p> + + <p>19 D. Constantino de Bragança 1558 7.º viso-rei</p> + + <p>20 D. Francisco Coutinho 1561 8.º viso-rei</p> + + <p>21 João de Mendonça 1564</p> + + <p>22 D. Antão de Noronha 1564 9.º viso-rei</p> + + <p>23 D. Luiz de Athayde 1569 10.º viso-rei</p> + + <p>24 D. Antonio de Noronha 1571 11.º viso-rei</p> + + <p>25 Antonio Moniz Barreto 1573</p> + + <p>26 D. Diogo de Menezes 1576</p> + + <p>27 D. Luiz de Athayde 1578 12.º viso-rei</p> + + <p>28 Fernão Telles de Menezes 1581</p> + + <p>29 D. Francisco Mascarenhas 1581 13.º viso-rei</p> + + <p>30 D. Duarte de Menezes 1584 14.º viso-rei</p> + + <p>31 Manuel de Sousa Coutinho 1588</p> + + <p>32 Mathias de Albuquerque 1591 15.º viso-rei</p> + + <p>33 D. Francisco da Gama 1597 16.º viso-rei</p> + + <p>Pela constituição do vice reino da India o mandato dos governadores durava + tres annos, findos os quaes podiam ser reconduzidos por novo triennio, + conforme succedeu a muitos, e se vê do rol supra. Com a nomeação do vice-rei + iam, em cartas fechadas e numeradas, as dos substitutos; e quando occorria a + morte do governador abria-se a primeira <em>successão</em>, na falta do + individuo ahi indicado, a segunda, etc. As datas acima inscriptas e a + ausencia do titulo do viso-rei mostram quem governou por <em>successão</em>. + O titulo de vice-rei, excepcional a principio, tornou-se inherente ao cargo + de governador desde 1550.</p> + + <p><a name="foot1246" href="#tex2html111"><sup>[111]</sup></a> J. Freire de + Andrade, <em>Vida de João de Castro</em>.</p> +</blockquote> +<hr style="width: 15%"> + +<h3><a name="SECTION002440">IV<br> +Summario da derrota. Volta ao reino</a> </h3> + +<p>Anarchicamente iniciada, a occupação da India foi, de principio a fim, uma +exploração anarchica. A politica maritima e commercial de D. Francisco de +Almeida, o imperio de Affonso de Albuquerque, o virtuoso reinado de D. João de +Castro, provaram egualmente impotentes para organisar o dominio portuguez no +Oriente, de um modo regular e duradouro. Nem a arte, nem a força, nem o santo +exemplo, poderam disciplinar a turba dos invasores da India.</p> + +<p>Causas intimas, a que de passagem temos alludido, o impediam. A Renascença, +apresentando aos homens um sem numero de idéas e impressões novas, +desorganisando os systemas, as crenças, as instituições e todo o organismo das +sociedades medievaes, abandonou o individuo aos impulsos desordenados da +natureza, pondo ao mesmo tempo nos seus actos uma energia affirmativa até alli +desconhecida. Heroismo pessoal e naturalista, uma grande explosão de força, a +devassidão nos costumes e a anarchia nas idéas, eis ahi em que se resume, por +este lado, a Renascença. A França, a Italia, a Hespanha, a Inglaterra e a +Allemanha, isto é, a Europa inteira, offerecem ao observador caracteres de +phisionomia bastantes para suppôr que, se a qualquer d'ellas tivesse cabido o +destino de<span class="pn"><a name="pag_297">{pg. 297}</a></span> occupar as +Indias, o seu imperio não teria sido melhor nem peior do que foi o nosso.</p> + +<p>Porventura, porém, ás nações protestantes que nos succederam com superior +fortuna no Oriente poderia a rigidez fanatica ter cohibido um tanto, e o genio +mercantil ter mostrado mais depressa os meios efficazes de explorar a India, +sem a saquear. A nós faltavam-nos os dois requisitos. O catholicismo não era +então—como o era a religião protestante—uma fé intima e absorvente: era uma +convicção para uns, uma convenção para outros, uma conveniencia para muitos, e +um desvairamento para os defensores intolerantes da fé. Havia decerto uma +affirmação religiosa unanime e violenta; mas desapparecera a unanimidade +ingenua e espontanea da crença, que radica as religiões. O catholicismo +atravessára uma crise, de que saíra malferido; e a violencia com que se +impunha, estava denunciando que ficára sendo, antes uma expressão de +authoridade, do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia com que o +povo, sem renegar o catholicismo, fosse caíndo n'um relaxamento; e que, ficando +com a religião, deixasse de lhe dar significação ou importancia moral. Muita +devoção e muita devassidão; eis ahi a concomitancia resultante, e +universalmente provada pelos costumes das nações catholicas depois da +Renascença.</p> + +<p>Apesar do catholicismo, podemos, pois, dizer que não havia no dominio da +India uma religião capaz de moralisar o imperio, embora houvesse exemplos de +uma santidade heroica como a de Antonio Galvão, o apostolo das Molucas. Mas +taes exemplos eram excepções, e faltando o primeiro elemento de ordem, quando +os motivos sociaes não se tinham definido ainda de um modo sufficiente, o +individualismo naturalista do tempo arrastava os<span class="pn"><a +name="pag_298">{pg. 298}</a></span> homens a todas as desordens, precipitava-os em +todos os crimes; e umas e outros cresciam tanto mais, quanto maior era a força +intima, o arrojo, a temeridade dos guerreiros. Sobre isto, a influencia +dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental, veiu lançar a sua +semente de corrupção; e o individuo, desarmado, sem crenças nem leis, vivendo +ao bel-prazer dos seus instinctos e paixões, caíu n'um poço de ignominias, +perdendo inteiramente a noção do proprio brio, da força, e tornando-se, de um +pirata, em um chatim.</p> + +<p>A estas causas geraes é necessario addicionar as causas particulares, +provenientes da incapacidade fortuita dos governos em Lisboa; e porventura, se +a India se tivesse descoberto meio seculo mais cedo, o genio politico de D. +João II teria desde o começo evitado graves transtornos. D. Manoel e os seus +conselheiros tinham para a India um plano só: exploral-a, e arrastar a Lisboa, +por quaesquer meios, as riquezas do Oriente. Systema e programma de governo +foram cousas desconhecidas; e assim vemos que a occupação muda de caracter com +os successivos governadores, e ao sabor das idéas ou das inclinações de cada um +d'elles. A India soffre de todos os inconvenientes dos governos electivos e +temporarios, sem gozar das vantagens dos governos hereditarios; e é n'isso que +se fundará sempre a accusação de incapacidade que a historia formula contra o +nosso dominio.</p> + +<p>Porém essa incapacidade trazia raizes de mais fundo. Explorar o Oriente +commercialmente á hollandeza, era cousa para que o nosso genio nos não chamava. +Nos estadistas não houve a perspicacia bastante para medirem as differenças que +distinguiam Portugal de Veneza, e as condições do commercio anterior do Oriente +das condições em que<span class="pn"><a name="pag_299">{pg. 299}</a></span> elle ia +achar-se, desde que nós chegámos por mar, armados, á India. A geographia dera +aos arabes o dominio indisputado dos mares das Indias; e era ella tambem que +fazia dos venezianos os alliados do Turco, e de Veneza o emporio do commercio +oriental. Para nos substituirmos na India aos arabes, na Europa a Veneza, +tinhamos contra nós, não só a geographia, mas ainda e principalmente outra +circumstancia. Indo despojar os arabes da sua preza, deviamos commerciar de +armas na mão, manter poderosas esquadras n'esses mares longinquos outr'ora +avassallados pacificamente por visinhos.</p> + +<p>Estas causas naturaes, alliadas ás causas egualmente naturaes da falta de +tirocinio commercial, produziram um genero de exploração, até certo ponto novo +na historia; porque não é propriamente uma <em>razzia</em>, como as conquistas +dos antigos persas ou assyrios, pois pretende ser um commercio; mas, como o +commercio só póde fazer-se á sombra da fortaleza ou á vista da esquadra, as +transacções andam sempre misturadas com pilhagens e mortes, com roubos e +violencias. Isto dá aos nossos capitães da India uma phisionomia original na +sua dualidade. Vê-se de um lado um mercador, como foram outr'ora os +carthaginezes ou phenicios; mas vê-se no mesmo homem um soldado, como os de +Cyro, ou Assurbanipal.<a name="tex2html112" +href="#foot1247"><sup>[112]</sup></a></p> + +<p>Uma tal confusão de cousas, um tão grande cahos de elementos oppostos e +idéas contradictorias, bastavam para arruinar breve e necessariamente o +imperio; ainda quando, por sobre tudo isto, o caracter do portuguez, pouco vivo +na sua audacia, bronco, cheio de orgulho ingenuo, mais temerario<span +class="pn"><a name="pag_300">{pg. 300}</a></span> ainda que valente, presumpçoso e +fanfarrão, não viesse accrescentar difficuldades; ainda quando o ar inebriante, +os venenos adormentadores, as seducções perigosas, os vicios extenuantes do +encantado Oriente, não viessem entorpecer os braços e perverter o espirito dos +occupadores.</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>O padre Manuel Godinho, que estava na India pelo meiado do +<small>XVII</small> seculo, dividia em quatro epochas a historia do nosso +dominio oriental. A primeira eram os 24 annos do reinado de D. Manuel; a +segunda os 35 do de D. João III; a terceira vinha do 1557 a 1600; e a quarta, +finalmente, até á epocha em que elle viajava no Oriente.</p> + +<p>Logo na primeira, o dominio portuguez conseguira alargar-se por todas as +costas e ilhas, desde Sofala até Malaka; isto é, pela Africa Oriental, pela +Persia, por todo o Hindustan, do Indo ao Ganges, e pela Indo-China. Algumas, +poucas, cidades propriamente portuguezas, feitorias e fortalezas espalhadas por +toda a parte, e a vassallagem dos soberanos em cujos Estados assentavam: eis +ahi a fórma do nosso dominio. Goa e Malaka eram nossas; e tributarios da corôa +portugueza os soberanos (independentes ou subalternos, porque o regime politico +indigena era feodal)—o de Hormuz, na Persia; o de Tidore, nas Molucas;<a +name="tex2html113" href="#foot1248"><sup>[113]</sup></a> o de Simhala; o das +ilhas Malajas; o de Batukala (Batecalá), no Kanará; o de Kollan, em Karnataka, +na extremidade austral da peninsula da India; e na costa de Africa, os de +Malinda e de Quilua. Além d'estas suzeranias, algumas dellas consignadas apenas +nos<span class="pn"><a name="pag_301">{pg. 301}</a></span> tratados, varias +fortalezas garantiam a vassallagem de outros territorios. A de Sofala era a +primeira, para quem vinha do reino pelo Cabo; depois a de Sokotra na ilha +d'esse nome, junto ao Jar-Hafun, dominando a embocadura do mar Vermelho; d'ahi +Hormuz, na garganta do golpho persico; depois, na costa occidental da India, +descendo para o sul, Chala, Anjediva, fronteira a Goa; Kananor, Kalikodu, onde +Vasco da Gama primeiro aportou; Kadunguluru (Cranganor); Katchi, theatro das +façanhas de Duarte Pacheco; e Kollam (Coulão), proximo do cabo Kumâri. Sobre as +ilhas do oceano indico havia a fortaleza de Malaia (Maldiva), e a de Kola-ambu +(Colombo) em Ceylão; e finalmente, lá para os confins orientaes, Persaim +(Pacem) no Pégu,<a name="tex2html114" href="#foot1249"><sup>[114]</sup></a> e +Ternate nas Molucas.</p> + +<p>Os annos do segundo periodo viram consolidar-se estes dilatados dominios por +meio de numerosas fortalezas que, completando o systema esboçado pelas antigas, +bordavam de feitorias todas as costas. Na oriental da peninsula hindustanica, +ou de Cholamandalam (Coromandel), levantaram-se os presidios de Nagapatan e de +Mahabalipurum (Meliapor, S. Thomé). Completou-se a occupação da ilha de Ceylão +por meio de fortalezas e colonias-feitorias<a name="tex2html115" +href="#foot1250"><sup>[115]</sup></a> de Jafanapatan, de Negombo, de Kalitura +(Calaturé) e de Galla, na costa occidental; e de Pattikalo (Baticaloa) e +Trinkonomali (Triquimalé), na oriental. Bassaim, Daman e Diu, além de outros +pontos fortificados, asseguraram a costa de Kambai. Incessantes guerras, bem +succedidas, abateram as revoltas, consolidaram dominios antigos, ou alargaram o +imperio portuguez. Assim, a<span class="pn"><a name="pag_302">{pg. 302}</a></span> +derrota final do Samudri de Kalikodu, do sultão de Kambai, do Shah de Vijajapur +(Hidalcão), do Nizam de Ahmednagar (Melique, Isamaluco, Nisamaluco, ou +Nisamoxá), garantiram a posse pacifica de toda a costa occidental da India, no +Gujerât, em Kontana, no Kanará. As guerras da Indo-China firmaram o poder +portuguez em Jadithani (Ujantama), no reino de Annam, e em Johor: em Bintang +(Bintão), na ponta extrema da peninsula de Malaka; em Atchim (Achem), na ilha +de Sumatra; e a submissão de todo o archipelago de Sunda até ás Molucas +completou, por oriente, o imperio colonial portuguez, reproducção do velho typo +grego e liby-phenicio.<a name="tex2html116" +href="#foot1251"><sup>[116]</sup></a> Por occidente, os resultados eram menos +decisivos; e se as duas costas que levam ao estreito de Bab-el-Mandeb se +confessavam tributarias de Portugal, nem em Aden ao norte, nem ao sul, na costa +de Adal, o nosso dominio era positivo. O musulmano guardava com ciume a porta +do mar santo de Meka; e os mercadores arabes sabiam que, mais ou menos +embaraçados, jámais seriam de todo expulsos do commercio da India, emquanto +possuissem o mar Vermelho, onde os inimigos iam, sim, mas não conseguiam +fixar-se. De arma ao hombro, na sua ilha de Sokotra, e a bordo das armadas que +cruzavam no golpho do mar da Arabia, o portuguez espiava o armamento das +esquadras de rumes e os comboyos das náus de Meka; mas não faltavam +opportunidades para que umas e outras, astuta ou violentamente, conseguissem +atravessar o estreito, entrando ou saíndo para mercadejar ou combater.</p> + +<p>No terceiro periodo conserva-se, não se alarga o dominio da corôa; ainda que +na Africa oriental e<span class="pn"><a name="pag_303">{pg. 303}</a></span> na +costa do Malabar apparecem novos presidios. São, no Kanará, Barkuluru +(Barcelor), Mangaluru (Mangalor), e Hanavare (Onor). Na Africa, pela derrota e +morte do <em>rei</em> de Laum, a fortaleza de Patta; mais ao sul a de Mombas, e +a da ilha de Pemba; e além do Zamgebar, já avassallado, Monomotapa, na costa de +Moçambique. Afóra isto, funda-se ainda Sirian, no Pégu; e Hugli (Golim), em +Bengala, sobre o delta do Ganges.</p> + +<p>Porém o acontecimento mais grave d'este periodo foi a guerra simultanea do +Adil-Shah contra Goa, do de Ahmednagar contra Chala, do Samudri contra +Kalikodu. Os principes indigenas da India Occidental, collocados contra o +portuguez, foram porém batidos; ao mesmo tempo que o era o de Atchin (Achem) +atacando Malaka; e que um pirata incommodo e celebre nos mares da India, o +<em>Cunhalle</em> (Kunji-Ali-Markar), era degollado em Goa depois de tomado o +seu forte de Pudepatan, d'onde saía ás prezas.</p> + +<p>Apesar dos symptomas de decomposição, o imperio commercial portuguez +attingia, no fim do <small>XVI</small> seculo, o seu apogeu. As frotas +singravam, carregadas de preciosidades, até aos mares do Japão e da China, +d'onde traziam a prata e o ouro, sedas e almiscar. Das Molucas vinha o cravo, +de Sunda a massa e a noz, de Bengala toda a sorte de finissimos tecidos, do +Pégu os rubis, de Ceylão a canella, de Mausalipatam os diamantes. Na pequena +ilha de Manaar, junto a Ceylão, carregavam-se as perolas e aljofares; em +Atchin, na Sumatra, o benjoim; das ilhas Malajas trazia-se o ambar; e Ceylão +exportava elephantes, por Jafanapatan. Katchi contribuia com os angelins, tekas +e couramas; toda a costa com a pimenta, e com o gengibre o Kanará. Nas ilhas de +Sunda, Madurá fornecia o salitre,<span class="pn"><a +name="pag_304">{pg. 304}</a></span> Solor o pau, e Bornéo dava a camphora. De +Kambai vinham o anil, o lacar, os tecidos; e Chala era celebre pelas suas +baetas. Hormuz vendia os cavallos da Arabia, e as sedas e alcatifas da Persia: +e, do outro lado do mar da India, a Africa dava em Sokotra o azebre, em Sofala +o ouro, em Moçambique o marfim, o ebano e o ambar. Além dos preciosos +carregamentos, além dos lastros de arroz do Kanará para mantimentos, e de +pimenta que era um estanco régio, as náus da corôa levavam, de Diu, de Hormuz e +de Malaka, as grossas quantias de dinheiro que n'esses tres pontos estrategicos +se cobravam, pelos <em>cartazes</em> que ahi compravam os navios mercantes.</p> + +<p>As causas de decadencia, tão antigas como a descoberta, mas avolumadas todos +os dias, precipitaram porém a queda, logo que, pela união a Castella, Portugal +se achou envolvido nas guerras com a Inglaterra e a Hollanda. Mais tarde ou +mais cedo, de um ou de outro lado, é, porém, fóra de duvida que o dominio +portuguez na India, corroido de tão grandes lepras, cairia, desde que os +protestantes, maritimos e mercadores, seguissem caminho do Oriente, pelo cabo +da Boa-Esperança, na esteira das náus portuguezas. Já por vezes piratas +francezes tinham ido por ahi á India; e se, com o inglez, nem o hollandez lá +fôra ainda, era porque lh'o impediam as condições e embaraços que, a religião +para um, para o outro a independencia, levantavam na Europa. Batida a Hespanha +pela Inglaterra protestante e pelas Provincias-unidas independentes, ambas +estas nações, alliadas, iam batel-a na India, com a facilidade com que se vence +um inimigo doente, mal apercebido, cheio de vicios e molestias.</p> + +<p>Os que no meiado do <small>XVII</small> seculo observavam o<span +class="pn"><a name="pag_305">{pg. 305}</a></span> imperio portuguez, diziam no +estylo pretencioso do tempo: «Está o estado da India tão velho que só o temos +<em>por estado</em>. Se foi gigante é pigmeu. Se foi muito, não é já nada.» Era +apenas Goa e Macau, Bassaim, Daman, Diu, Moçambique e Mombas. Já não havia +armadas nos mares; e os hollandezes e inglezes, fomentando a rebellião dos +naturaes, e auxiliando-os, substituiam-nos, como nós tinhamos substituido os +arabes—mas com outra arte e muito juizo.</p> + +<p>Uns preferiram a Indo-China, outros as partes occidentaes; e em cincoenta +annos varreram das costas e ilhas os presidios e feitorias portuguezas. O +inglez combateu ao lado do persa em Hormuz para nos expulsar, e o exito +levantou todos os naturaes. O soberano do Arakan lança-nos fóra do Pégu, o de +Bengala despede-nos de Hugli, perdemos assim Mahabalipurum e na contra-costa, +Mangaluru, Barkuru, Hanavare, Chala, Kalikodu. A perda de Hormuz arrastou +comsigo Maskat, com a qual se foram todos os estabelecimentos no litoral da +Arabia até ao mar Vermelho; e desguarnecida a costa do norte, inutil era +conservar Sokotra e os pontos fronteiros no Adal, que foram abandonados com +Quilua em Africa, as ilhas de Malaja e Anjediva, e Passir (Pacem) em +Sumatra.</p> + +<p>Os hollandezes herdavam, do nosso imperio do extremo Oriente, tudo o que não +voltava a caír no poder dos naturaes. Outro tanto succedia na India. Da Africa, +Arabia, e Persia, isto é, das fronteiras occidentaes, ficavam-nos Mombas e +Moçambique;<a name="tex2html117" href="#foot1252"><sup>[117]</sup></a> das +fronteiras orientaes, o ponto isolado de Macau, já na China, e Solor; do +centro, restavam apenas uma cidade e quatro fortes—memoria, mais do<span +class="pn"><a name="pag_306">{pg. 306}</a></span> que dominio, em frente d'esses +mares, onde já se não via tremular a bandeira portugueza em poderosas esquadras +como as de outro tempo.</p> + +<p>Ambon, Tidor, Ternate nas Molucas, Malaka na sua peninsula, Madura e toda a +Sunda, eram hollandezas; os nossos antigos pontos de Ceylão—Kola-ambu e +Kalitura, Negombo e Battikalo, Trinkonomali, Galla e Jafnapatan, com a ilha de +Manaar visinha—pertenciam-lhe tambem; e nas duas costas da peninsula +hindustanica tinham-nos tomado egualmente Negapatan de um lado, Kollam, +Kadunguluru, Kananor, e Katchi, do outro. Abertamente se proclamava a queda do +imperio portuguez, e até os mais infimos blasonavam. Um regulo do Arrakan +escrevia nos seus estandartes: «Fatekan, senhor de Sundiva, derramador do +sangue dos christãos e destruidor da nação portugueza!»</p> + +<p>Tudo estava perdido, e a viagem terminada. Não havia outra cousa a fazer, +senão voltar a casa: embarcar para o reino, com o producto das rapinas, dando a +pôpa a esse mundo, onde a nossa missão terminára.</p> + +<p>Cada capitão que, nos bons tempos, regressava da India, fazia outro tanto: +cerrava as arcas atulhadas de ouro e pedrarias, arrumava a bagagem no porão, e +largava as velas á náu, dizendo adeus para sempre ao Oriente!</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>Assim aconteceu em 1589 a D. Paulo de Lima, o que assolára Johor, na +Malasia.<a name="tex2html118" href="#foot1253"><sup>[118]</sup></a> Foi em +janeiro d'esse anno funesto que embarcou em Goa. Vinha rico; e a náu gemia com +o peso do carregamento,<span class="pn"><a name="pag_307">{pg. 307}</a></span> +abarrotada com um lastro de pimenta a granel, o convez atulhado de arcas, +fardos e escravos. O capitão trazia comsigo a esposa e domesticos; e embarcaram +com elle, de passageiros, numerosas pessoas: soldados de retorno, frades, +clerigos e mulheres.</p> + +<p>Como na India não havia estaleiros onde os navios podessem vêr o fundo e +passar o calafeto, a náu, já velha e demasiadamente grande, voltava em mau +estado. Ao embarque benziam-se todos e imploravam a protecção dos frades, +lembrando-se dos muitos naufragios que o tamanho e má condição das náus +multipticava todos os dias. Este contava que da esquadra de Kalikodu, no anno +anterior, tinham desapparecido quatro náus com toda a gente, vindo um mastro +com a cordoalha da enxarcia entrar pelo rio de Daman. Aquelle, que já tres +vezes fôra á India, narrava o naufragio celebre da <em>Flamenga</em>, e chamava +ás náus sepultura de homens, e vasos de desastres: e um, persignando-se, +contrito, dizia que as náus iam e vinham tão alastradas de peccados, que nas +tormentas se ouviam falar os demonios claramente. Os religiosos não declaravam +que fosse impossivel, mas recommendavam resignação e esperança no auxilio +divino; intercalando nos seus discursos phrases breves, n'um latim sagrado.<a +name="tex2html119" href="#foot1254"><sup>[119]</sup></a></p> + +<p>Entretanto a viagem seguia feliz com um mar bonançoso. Todos confiavam em +que Deus não deixaria de proteger um capitão piedoso como era D. Paulo de Lima. +Isto, porém, não impedia que fossem commentando as tristes cousas do mar; e com +tanta maior liberdade, que começavam a crer-se<span class="pn"><a +name="pag_308">{pg. 308}</a></span> salvos d'esses perigos, á medida que viam +irem-se approximando do terrivel cabo da Africa. Asseguravam que nem um terço +dos que embarcavam em Lisboa chegavam á India, e isto ninguem impugnava, por +ser verdade reconhecida; e que a volta ao reino acabava os que as doenças da +terra, a miseria e a guerra tinham poupado no Oriente. Era um sorvedouro de +homens, era... De 700 a 800 que cada náu levava, só metade vinha a servir. +Depois, queixavam-se dos calafates que lançavam os navios ao mar, mal feitos e +mal vedados; e referiam os numerosos casos de agua-aberta, dentro do Tejo, em +navios novos. Outros accusavam o modo deshumano com que se arrumava a bordo +muita mais gente do que a lotação permittia: iam como carneiros, a monte, nas +toldas, expostos ao sereno mortifero das noutes, sem camas nem para os +enfermos, respirando o ar podre das cobertas: por estas causas havia o +escrobuto, as febres podres, as dysenterias... como se não bastassem os perigos +do mar e dos ventos! Na náu em que fôra á India D. Antonio de Noronha iam 900 +pessoas: metade morreu na viagem. Além d'isso os capitães—era sabido—roubavam +nos mantimentos, e para poupar, escolhiam generos da peior especie. Tudo ia +avariado e podre, a agua corrompida. N'uma viagem de seis mezes, como a da +India, abasteciam-se para cinco apenas: d'ahi resultavam fomes.</p> + +<p>Estas conversas exaltavam muitas vezes os animos. Como punham nos crimes o +nome dos réus, levantavam-se os partidos; e mais de uma vez houve rixas tão +bravas, que o capitão se viu forçado a leval-os de roldão, para debaixo do +castello de prôa; e os frades, atraz, de crucifixos nas mãos, prégavam paz e +amor, com orações pausadas em latim.<span class="pn"><a +name="pag_309">{pg. 309}</a></span></p> + +<p>Os fidalgos e religiosos, no chapiteu da pôpa, commentavam as queixas dos +soldados, reconhecendo que, em verdade, tinham razão; e como eram mais +letrados, ligavam os effeitos ás causas.</p> + +<p>A abundancia da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as +dimensões dos navios, ainda por cima aggravada pelo excesso das cargas. Era +funesta uma cubiça, causa de tantas victimas; mas o mal vinha de longe, desde o +reinado de D. João <small>III</small>. Os navios, mal desenhados, de muito +porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e eram +ronceiros... Verdade seja dita, os antigos não tinham podido admirar as +monstruosas carracas de sete e oito cobertas, com alojamento para dois mil +homens e porões para mil tonelladas de carga. Cada um d'esses navios parecia um +reino! Armavam peças de vinte tonelladas de peso e calavam mais de dez braças. +O costado media cincoenta palmos acima do lume de agua á meia náu, e chegava a +oitenta nos castellos á pôpa e á prôa. Os baileus, que os ligavam, tinham dois +andares: e nos cestos de gavea cabiam dez ou doze homens, para manobrar os +canhões pequenos: berços e sacres. Mas as carracas, observavam tambem, eram +pessimas no mar: boiavam, não andavam. E um dos fidalgos velhos contava como +era o <em>S. João</em>, o <em>Botafogo</em> em que fôra, em 1535, com a divisão +portugueza, a Tunis, na expedição de Carlos <small>V</small>.</p> + +<p>E por fim, esquecidos de males distantes, todos concordavam em admirar a +grandeza de Portugal, onde havia sempre para mais de 400 navios de alto-bordo, +além de perto de 2:000 caravelas e vasos menores... porque o tempo ia bonança, +e o vento fresco levava-os rapidamente, pelo canal de Moçambique, direito ao +Cabo.<span class="pn"><a name="pag_310">{pg. 310}</a></span></p> + +<p>Estavam em 26° quando, porém, quasi á vista da ponta austral de S. Lourenço +(Madagascar), deram por uma agua que a náu fazia. Tudo correu aos porões, +clamando contra os calafates, por cuja causa as náus se perdiam, andando pelo +mar a Deus misericordia, por pouparem quatro cruzados. Afastando a carga, viram +que a agua era na prôa, abaixo das escôas, ás primeiras picas: cuspia as +estopas e as pastas de chumbo do fôrro, jorrando no porão, d'um torno tamanho +que por elle cabia um punho. Mas, como o tempo estava bonança, não se +affligiram demasiado, depois de terem vedado o rombo com saccas de arroz; e +foram rumando para o sul, até 32°, a oitenta leguas da terra do Natal. Já +levavam tres mezes de viagem.</p> + +<p>Foi então que o vento rondou a sudoeste, o que os forçou a fazerem-se na +volta do norte. O mar crescia, e com o quebrar das vagas a náu +desconjuntava-se, e o torno da prôa, vedado com arroz, cedeu. Agua aberta e +temporal desfeito: era um dia de juizo! Começaram a ouvir-se os demonios, e as +mulheres a gritar em ais. Cada qual implorava o seu santo, a sua Nossa-Senhora, +com uma fé simples e espontanea, beijando os relicarios e bentinhos, resando em +voz alta, confessando em grita os seus peccados, arrepellando os cabellos, +estorcendo-se nas ancias do medo da morte e do inferno. Decorriam os +expedientes devotos e pediam-se milagres. O capitão levava a bordo uma cruz de +ouro com uma particula do Santo-Lenho engastada: reliquia, fetiche, em que +todos punham as maiores esperanças. Amarraram-na com um fio de retroz, +ataram-na piedosamente a uma espia, lançaram-na pela pôpa, a vêr se moderavam a +sanha do mar. A náu rolava com as ondas, o Santo-Lenho, seguro na pôpa, com um +prégo para o afundar, seguia<span class="pn"><a name="pag_311">{pg. 311}</a></span> +os balanços do navio. Milagre! milagre! exclamaram quando o céu aclarou, +amainando o vento, parecendo socegar as ondas. Os homens—fidalgos, soldados e +escravos, brancos, pretos, mulatos e amarellos, pozeram mãos á obra, confiando +ainda na salvação. Havia seis palmos de agua no porão; mas apesar da ancia, +revezando-se nos aldropes das bombas, não conseguiam vencel-a. Alijaram ao mar +toda a carga do convez, para libertar as escotilhas e alliviar a náu que vinha +abarrotada. Nos porões a carga nadava, e as pranchas de brazil, as pipas da +aguada, e mais volumes, boiando, eram lançados pelos balanços do mar contra o +costado, batido por fôra com violencia pelas ondas. O temporal recrescia; o +Santo-Lenho não queria protegel-os! Era um inferno e um desespero de estrondos, +com o assobiar sinistro do sudoeste na cordoalha das enxarcias. Como as bombas +não vasavam os porões, estabeleceram forcas nas escotilhas, e por ahi tiravam a +agua em barris, como de um poço. D. Paulo de Lima não fugia ao trabalho, +puxando á corda como os escravos. Nem comer podiam; e os frades iam de uns a +outros, com agua e biscoitos, matando-lhes a fome e a sede, combatendo o +cansaço com exhortações, e recommendando contra a desesperança que confiassem +na providencia de Deus...</p> + +<p>Tres dias, desde 12 a 14 de março, conservaram a fé e os brios. Ao quarto +viram que trabalhavam debalde. A agua já inundava a coberta, e só no convez se +podia estar. As bombas não trabalhavam, entupidas com a pimenta a granel do +porão; e só á custa do muito que iam alijando—todo o fructo das rapinas da +India!—conseguiam que o navio não sossobrasse. Já tinham resolvido varar na +terra; mas o temporal crescia sempre, e no<span class="pn"><a +name="pag_312">{pg. 312}</a></span> meio da cerração plumbea, não podiam +governar-se. Para mais, uma vaga partiu o leme. O vento sudoeste vinha batido +em salseiros rijos, que despedaçavam o panno. A pobre náu era um destroço, com +que as ondas brincavam na sua furia. Assim estiveram, perdidos e já sem +esperança, duas noites e um dia. De 14 para 16, os transes foram medonhos. Em +montes, estendidos no convez, os homens, ou blasphemavam, ou se confessavam em +voz alta, accusando todos os seus crimes, os roubos, as violencias, os +estupros, as matanças da India, e pedindo em lagrimas, aos clerigos, que os +salvassem das penas do inferno! As mulheres, pranteando-se, levantavam um choro +de resas, lembravam-se dos seus santos favoritos, as <em>nossa-senhoras</em> +particulares da sua devoção, fazendo votos e promessas. Os frades ouviam as +confissões, absolviam, deixando semi-mortos, na confiança do perdão, os que +antes clamavam em desespero, movidos pelo terror. E por sobre tudo isto os +salseiros rijos do vento assobiavam nas cordas, bradando: morte! morte! «D. +Paulo havia que aquelle castigo era por seus peccados.»</p> + +<p>No dia 16 o tempo clareou um pouco: e no rumo de nor-nordeste que levavam, +descobriram terra á prôa. A noute de 17 passou-se em afflicções e esperanças; +mas quando amanheceu, e os olhos ávidos não poderam tornar a vêr a costa, +decidiram formalmente deitar o batel ao mar. Logo todos se precipitaram no +barco, ainda suspenso nos apparelhos. A ancia de viver enlouquecia-os; e D. +Paulo em pé sobre o batel, com a espada e a adaga em punho, defendia-o, +acutilando os invasores, como n'uma abordagem. O seu abatimento, a sua +fraqueza, a sua desesperança, apagavam-se, varridos pela aurora derradeira. +Repellidos os homens, o batel desceu e<span class="pn"><a +name="pag_313">{pg. 313}</a></span> poisou no mar. Depois veiu remando, pela pôpa +da náu, para receber pela varanda os fidalgos, suas mulheres, e os frades: o +commum dos infelizes tinha a bordo um tumulo feito. Com os balanços da náu e o +impulso da vaga, o batel ameaçava despedaçar-se a cada momento contra o +costado; e as mulheres desciam, penduradas em cordas de lançoes e pannos, até +ao mar, onde as apanhavam.</p> + +<p>Os do batel gritavam, desesperados por partir, porque a gente era demais e o +barco afogava-se; os da náu gesticulavam, bradando em furia para que os +salvassem. Uma escrava, com o filho da senhora nos braços, mostrava-o de bordo +á mãe que lh'o pedia, exigindo que a salvassem, se queriam salvar da morte a +creança. E os marinheiros condemnavam, em altos gritos e phrases insultuosas e +obscenas, D. Paulo e os fidalgos, pelos abandonarem cruamente a uma morte +miseravel. Mais difficil fôra o naufragio da nau <em>Santiago</em>, no baixo da +India, e tinham-se salvado todos em jangadas. Não abandonassem os infelizes, +lembrando-se apenas de si, os fidalgos malditos! Havia tempo para formar uma +jangada, onde todos iriam, guiados pelo batel.</p> + +<p>N'este desespero infernal e no meio da explosão de egoismo feroz houve um +unico heroe: um frade que não saiu de bordo, sem ter confessado todos os +condemnados. Absolvidos, lançou-se ao mar, e foi a nado agarrar-se ao batel que +se afastava pesadamente: o habito salvou-o, porque os do barco não ousavam +repellir o sacerdote, como repelliam a golpes os mais que vinham a nado. Na +imminencia da morte, escrupulisavam de matar um padre.</p> + +<p>Por toda essa noute de angustias, o batel vogou nas aguas da náu: os remos +não podiam vencer a força das ondas, e o vento arrojava-o para o mar. A carga +era demasisada, e reconhecendo isto, deitaram<span class="pn"><a +name="pag_314">{pg. 314}</a></span> fóra seis homens; depois mais seis, ficando de +110, em 98, ao todo. A bordo da náu havia mais de outro tanto.</p> + +<p>Condemnados a uma morte inevitavel, já confessados e absolvidos, estavam +resignados. Ainda tinham formado duas jangadas, que o mar logo devorou: e +depois d'isso unanimemente resolveram morrer, a bem com Deus. Os do batel viam +no escuro da noute as luzes das velas accesas ao retabulo da +<em>nossa-senhora</em> do castello da pôpa,<a name="tex2html120" +href="#foot1255"><sup>[120]</sup></a> diante do qual, prostradas de rastos, com +os cabellos desgrenhados, chorando, as escravas resavam. Os homens faziam +procissões sobre o convez, cantando ladainhas e hymnos. Pela manhã viram o +batel tão perto que chegaram á fala; e pediam ainda que os salvassem com vozes +tão profundas e piedosas, que mettiam medo e terror.</p> + +<p>Finalmente, n'um clamor de gritos e n'uma columna de fumo, espadanando a +agua, a náu sossobrou: no alto do capitel da pôpa a escrava, com a creança nos +braços, mostrava-a á mãe, desolada no batel. A náu sossobrou, enterrando +comsigo os homens, as mulheres e «as cousas da India, adquiridas pelos meios +que Deus sabe».</p> +<hr style="width: 15%"> + +<p>A viagem da India não terminou aqui. O imperio submergiu-se, mas os salvados +foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miseria e +perdição...</p> + +<p>O batel foi dar á terra em 27°20' sul, na terra dos <em>fumos</em>, a que os +cafres chamam Macomata, a Zuluandia. Desembarcaram, os restos da náu da<span +class="pn"><a name="pag_315">{pg. 315}</a></span> India; e achou-se que tinham 5 +espingardas, 5 espadas e um barril de polvora. Eram ao todo 98. Dos remos +fizeram contos de lanças, e ferros das verrumas dos carpinteiros. Formaram em +columna, seguindo costa em fóra, em demanda de Lourenço Marques.</p> + +<p>Á frente ia um frade com a cruz alçada; depois D. Pedro de Lima com metade +da gente e das armas, na cauda o capitão da náu com o resto; e, entre ambos, as +mulheres, umas de pé, outras em andores levados por marinheiros e grumetes, e +feitos com os remos e velas do batel. Seguiam a columna bandos de cafres, com +quem por vezes tinham de pelejar, e que fugiam rebolando-se no chão e em +gatinhas, como bogios aos saltos. Dormiam na areia ao relento; comiam alguma +cousa que apanhavam, principalmente os caranguejos da praia; levavam os pés +empolados e em chagas... Em tamanha miseria se tornára o antigo imperio com que +tinham andado pela India, pela Arabia e por Johor, em Malaka!</p> + +<p>Na altura de 26°30' depararam com os restos das jangadas da náo +<em>Santiago</em>; uma sorte commum esperava, no regresso, todos os que vinham +da India; e esses desastres eram os da nação, que em massa embarcára, e agora +em massa tambem naufragava. «Estas desventuras e outras, diz o chronista, que +cada dia se vêem por esta carreira da India poderam servir de balizas aos +homens, principalmente aos capitães de fortalezas, para n'ellas se moderarem +com o que Deus á boa mente lhes dá, e deixarem viver os pobres».</p> + +<p>Os naufragos, miseraveis e famintos, internaram-se em Manhica, achando nos +cafres a protecção e carinho que negavam no Oriente aos naturaes. +Dispersaram-se em varias direcções, indo uns por<span class="pn"><a +name="pag_316">{pg. 316}</a></span> mar a Inhambane; e na ilha de Inhaca, D. Paulo +«caío em cama, ou para melhor dizer, no chão», e morreu...</p> + +<p>Não eram, porém, sómente as ondas que, punindo a desordem e a avidez, +tragavam os navios podres e abarrotados; eram tambem os nossos inimigos, +cruzando nos mares da India, que apresavam as náus portuguezas, como outr'ora +nós tinhamos apresado as dos arabes e egypcios.</p> + +<p>Cornelio Honteman, perseguido pela Inquisição de Portugal, fôra para +Amsterdam, e publicára o que sabia das viagens da India, incitando os +hollandezes com as perspectivas de grossos lucros. Em 1595 partiu de Texel a +primeira frota hollandeza que dobrou o cabo da Boa-Esperança; e já em 1591 os +inglezes tinham feito uma viagem á India. Em 1602 fundou-se a companhia +hollandeza das Indias orientaes: foi no primeiro quartel do <small>XVII</small> +seculo que o imperio portuguez caíu.</p> + +<p>Tudo se desmoronava de um modo simples e rapido. As esquadras perdiam-se +inteiras; e tantas desgraças abatiam os animos antigos, a ponto de tornarem a +covardia tão vulgar, como eram de antes a audacia e a bravura. Entre outros +casos, conta-se o de um philippebote hollandez tomando um galeão que montava +dobrada artilheria e guarnição. Em 1591 e 92, de 22 navios de alto bordo saídos +da India, só duas náus chegaram ao Tejo, porque vinham vasias por velhas. Quer +á ida, quer á volta, os cruzeiros inimigos caçavam as nossas frotas; e a +destruição do poder maritimo portuguez garantiu para todo o sempre a destruição +consummada do imperio do Oriente.</p> + +<p>Essa louca viagem, sem pilotos habeis, terminava por um breve naufragio; e +os mares que, no seculo <small>XV</small> nós vencemos com tamanha audacia, +vingavam-se,<span class="pn"><a name="pag_317">{pg. 317}</a></span> no +<small>XVI</small>, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar +Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos +nevoeiros prognosticados pelos geographos arabes, no meio das trevas da nossa +perversidade. A natureza offendida punia-nos com a morte; e o destino +implacavel retribuia-nos todos os males com que tinhamos flagellado o +proximo.</p> + +<blockquote> + <p><a name="foot1247" href="#tex2html112"><sup>[112]</sup></a> V. <em>Raças + humanas</em>, <small>II</small>, pp. 185-91, e <em>Taboas de Chronol.</em>, + pp. 45-9.</p> + + <p><a name="foot1248" href="#tex2html113"><sup>[113]</sup></a> V. ácerca dos + costumes dos indigenas. <em>Quadro das instit. primit.</em>, pp. 14-5, 158, + 160-1, 174; e <em>Regime das riquezas</em>, pp. 56, 65, 85, 109. </p> + + <p><a name="foot1249" href="#tex2html114"><sup>[114]</sup></a> V. <em>Regime + das riquezas</em>, p. 109.</p> + + <p><a name="foot1250" href="#tex2html115"><sup>[115]</sup></a> V. <em>O + Brazil e as col. port.</em>, L. <small>IV</small>, 3.</p> + + <p><a name="foot1251" href="#tex2html116"><sup>[116]</sup></a> V. <em>Hist. + da rep. romana</em>, <small>I</small>, pp. 183-91.</p> + + <p><a name="foot1252" href="#tex2html117"><sup>[117]</sup></a> V. <em>O + Brazil e as colon. Port.</em> (2.ª ed.), p. 36.</p> + + <p><a name="foot1253" href="#tex2html118"><sup>[118]</sup></a> V. <em>Hist. + da republica romana</em>, <small>II</small>, p. 185.</p> + + <p><a name="foot1254" href="#tex2html119"><sup>[119]</sup></a> V. a + estatistica dos naufragios no <em>Brazil e as colonias port.</em> (2.ª ed.), + p. 34, <em>nota</em>.</p> + + <p><a name="foot1255" href="#tex2html120"><sup>[120]</sup></a> V. <em>Hist. + da republ. romana</em>, <small>I</small>. pag. 194.</p> +</blockquote> +</div> + +<p style="text-align:center;"> FIM DO TOMO PRIMEIRO</p> + +<p><span class="pn"><a name="pag_318">{pg. 318}</a></span></p> + +<p> </p> + +<p><span class="pn"><a name="pag_319">{pg. 319}</a></span></p> + +<p> </p> + +<div style="font-size: small; margin: 15%;"> +<p style="text-align:center;">INDICE</p> + +<p style="text-align:center;">DO</p> + +<p style="text-align:center;">TOMO PRIMEIRO</p> +<!—Table of Contents—> + +<p><a name="tex2html146" href="#SECTION001000">ADVERTENCIA</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html148" href="#SECTION002100">LIVRO +PRIMEIRO</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1481" href="#SECTION002100" +id="tex2html1481">Descripção de Portugal</a></p> + +<p><a name="tex2html149" href="#SECTION002110">I. Os lusitanos</a></p> + +<p><a name="tex2html150" href="#SECTION002120">II. Fundamentos da +nacionalidade</a></p> + +<p><a name="tex2html151" href="#SECTION002130">III. Geographia +portugueza</a></p> + +<p><a name="tex2html152" href="#SECTION002140">IV. A terra e o homem</a></p> + +<p><a name="tex2html153" href="#SECTION002150">V. A historia nacional</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html154" href="#SECTION002200">LIVRO +SEGUNDO</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1541" href="#SECTION002200" +id="tex2html1541">HISTORIA DA INDEPENDENCIA</a></p> + +<p style="text-align:center;">(<small>DYNASTIA DE +</small>B<small>ORGONHA</small>: 1109-1385)</p> + +<p><a name="tex2html155" href="#SECTION002210">I. A separação de +Portugal</a></p> + +<p><a name="tex2html156" href="#SECTION002220">II. A conquista do +Al-Gharb</a></p> + +<p><a name="tex2html157" href="#SECTION002230">III. A monarchia e a +justiça</a></p> + +<p><a name="tex2html158" href="#SECTION002240">IV. A crise</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html159" href="#SECTION002300">LIVRO +TERCEIRO</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1591" href="#SECTION002300" +id="tex2html1591">A conquista do Mar Tenebroso</a></p> + +<p style="text-align:center;">(<small>DYNASTIA DE </small>A<small>VIZ</small>: +1385-1500)</p> + +<p><a name="tex2html160" href="#SECTION002310">I. O Infante D. Henrique</a></p> + +<p><a name="tex2html161" href="#SECTION002320">II. Portugal em Africa</a></p> + +<p><a name="tex2html162" href="#SECTION002330">III. O principe perfeito</a></p> + +<p><a name="tex2html163" href="#SECTION002340">IV. Em demanda do Preste-Joham +das Indias</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html164" href="#SECTION002400">LIVRO +QUARTO</a></p> + +<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1641" href="#SECTION002400" +id="tex2html1641">A viagem da India</a></p> + +<p style="text-align:center;"><small>(1500-1640)</small></p> + +<p><a name="tex2html165" href="#SECTION002410" id="tex2html165">I. D. Francisco +d'Almeida</a></p> + +<p><a name="tex2html166" href="#SECTION002420">II. Affonso de +Albuquerque</a></p> + +<p><a name="tex2html167" href="#SECTION002430">III. D. João de Castro</a></p> + +<p><a name="tex2html168" href="#SECTION002440">IV. Summario da derrota. Volta +ao reino</a></p> + +<p> </p> +</div> + + + + + + + +<pre> + + + + + +End of the Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by +Joaquim Pedro de Oliveira Martins + +*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I *** + +***** This file should be named 34387-h.htm or 34387-h.zip ***** +This and all associated files of various formats will be found in: + https://www.gutenberg.org/3/4/3/8/34387/ + +Produced by Pedro Saborano + +Updated editions will replace the previous one--the old editions +will be renamed. + +Creating the works from public domain print editions means that no +one owns a United States copyright in these works, so the Foundation +(and you!) can copy and distribute it in the United States without +permission and without paying copyright royalties. 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Information about the Project Gutenberg Literary Archive +Foundation + +The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit +501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the +state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal +Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification +number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at +https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg +Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent +permitted by U.S. federal laws and your state's laws. + +The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. +Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered +throughout numerous locations. Its business office is located at +809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email +business@pglaf.org. 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Thus, we do not necessarily +keep eBooks in compliance with any particular paper edition. + + +Most people start at our Web site which has the main PG search facility: + + https://www.gutenberg.org + +This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, +including how to make donations to the Project Gutenberg Literary +Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to +subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks. + + +</pre> + +</body> +</html> diff --git a/LICENSE.txt b/LICENSE.txt new file mode 100644 index 0000000..6312041 --- /dev/null +++ b/LICENSE.txt @@ -0,0 +1,11 @@ +This eBook, including all associated images, markup, improvements, +metadata, and any other content or labor, has been confirmed to be +in the PUBLIC DOMAIN IN THE UNITED STATES. + +Procedures for determining public domain status are described in +the "Copyright How-To" at https://www.gutenberg.org. + +No investigation has been made concerning possible copyrights in +jurisdictions other than the United States. 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