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+The Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by
+Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Historia de Portugal: Tomo I
+
+Author: Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
+Release Date: November 21, 2010 [EBook #34387]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+
+ *Notas de transcrição:*
+
+ O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
+ em 1908.
+
+ Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido
+ corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a
+ leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.
+
+
+
+
+
+HISTORIA DE PORTUGAL
+
+TOMO I
+
+
+
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+J. P. OLIVEIRA MARTINS
+
+OBRAS COMPLETAS
+
+I. Historia nacional:
+
+HISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA, 4.ª ed. (1897), 1 vol., br. 700 rs.
+Enc. 900.
+
+HISTORIA DE PORTUGAL, 7.ª ed. (1908), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.
+
+O BRAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS, 4.ª ed. (1888). 1 vol., br. 700 rs.
+Enc. 900.
+
+PORTUGAL CONTEMPORANEO, 4.ª ed. (1907). 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.
+
+PORTUGAL NOS MARES, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.
+
+CAMÕES, OS LUSIADAS E A RENASCENÇA EM PORTUGAL, (1891). 1 vol., br. 600
+rs. Enc. 800.
+
+NAVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS PORTUGUESES, (_ed. do Ateneo de
+Madrid_, 1892). 1 vol. (não entrou no commercio.)
+
+A VIDA DE NUN'ALVARES, 2.ª ed. (1894). 1 vol., br. 2$000 rs. Cart.
+2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.
+
+OS FILHOS DE D. JOÃO I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.
+
+O PRINCIPE PERFEITO, (1895), 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas
+doiradas, 3$200.
+
+II. Historia geral:
+
+ELEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA, 4.ª ed. (1885), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.
+
+AS RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc.
+1$800.
+
+SYSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS, 3.ª ed. (1895), 1 vol., br. 800 rs. Enc.
+1$000.
+
+QUADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS, 2.ª ed. (1893), 1 vol., br. 800 rs.
+Enc. 1$000.
+
+O REGIME DAS RIQUEZAS, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.
+
+HISTORIA DA REPUBLICA ROMANA, 2.ª ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs. Enc.
+2$400.
+
+O HELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc.
+1$000.
+
+TABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA, (1884), 1 vol., br. 1$000
+rs. Encadernado 1$200.
+
+III. Varia:
+
+A CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.
+
+A REORGANISAÇÃO DO BANCO DE PORTUGAL, opusculo, (1877), br. 150 rs.
+
+O ARTIGO «BANCO», no _Diccionario Universal Portuguez_, (1877), 1 vol.,
+br. 500.
+
+POLITICA E ECONOMIA NACIONAL, (1885), 1 vol., br. 700 rs.
+
+PROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL, _apresentado á camara dos deputados na
+sessão de 1887_, 1 vol., br. 300 rs.
+
+ELOGIO HISTORICO DE ANSELMO J. BRAAMCAMP, _ed. part._ (1886), 1 vol.
+(esgotado).
+
+THEOPHILO BRAGA E O CANCIONEIRO, _opusculo_, (1869) (esgotado).
+
+O SOCIALISMO, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado)
+
+AS ELEIÇÕES, _opusculo_, (1878), br. 200 rs.
+
+CARTEIRA DE UM JORNALISTA: I. _Portugal em Africa_, (1891), 1 vol., br.
+400 rs.
+
+A INGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE, 2.ª ed., 1 vol., br. 600
+rs. Enc. 800.
+
+CARTAS PENINSULARES, (1895), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.
+
+
+
+
+ * * * * *
+
+ HISTORIA
+
+ DE
+
+ PORTUGAL
+
+ POR
+
+ J. P. Oliveira Martins
+
+ Setima edição
+
+
+ TOMO PRIMEIRO
+
+
+ 1908
+ PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
+ LIVRARIA EDITORA
+ _Rua Augusta--44 a 54_
+ LISBOA
+
+
+
+
+ * * * * *
+
+ Composto e impresso na typographia
+ DA
+ Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
+ _Rua Augusta, 44 a 54_
+ LISBOA
+
+
+
+
+
+
+MEMORIA
+
+DE
+
+ALEXANDRE HERCULANO
+
+mestre e amigo
+
+
+
+
+ADVERTENCIA
+
+ «Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião,
+ assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros porque se
+ delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos aos bõos
+ fezessem cobiça auer pera as semelhentes cousas faseram.»
+
+ _Coronica do Condestabre._
+
+
+A historia é sobre tudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso
+vêr, sáe de todos os eminentes progressos ultimamente realisados no fôro
+das sciencias sociaes. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a
+critica a melhor bussola da intelligencia: por isso a historia exige
+sobretudo observação directa das fontes primordiaes, pintura verdadeira
+dos sentimentos, descripção fiel dos acontecimentos, e, ao lado d'isto,
+a frieza impassivel do critico, para coordenar, comparar, de um modo
+impessoal ou objectivo, o systema dos sentimentos geradores e dos actos
+positivos.
+
+O desenvolvimento do criterio racional e o predominio crescente dos
+processos proprios das sciencias, baniram os modelos antigos e fizeram
+da historia um genero novo. Nem os discursos moraes ou litterarios
+_sobre_ a historia, á maneira do XVII seculo, nem o doutrinarismo secco
+do XVIII que sobre factos e instituições mal conhecidos construia
+systemas geraes chimericos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias,
+de considerar a historia unicamente nos seus phenomenos exteriores,
+averiguando eruditamente as epochas e as condições dos successos,
+merecem, a nosso vêr, imitação.
+
+Todos estes systemas, porém, ensaios successivos para determinar o
+genero de um modo definitivo, teem um lado de verdade aproveitavel. Os
+modelos classicos fizeram sentir o caracter moral da historia; os
+modelos abstractos, a necessidade de comprehender os phenomenos n'um
+systema de leis geraes; os modelos eruditos, finalmente, a condição
+imprescriptivel de um conhecimento real e positivo da chronologia e dos
+elementos que compõem o _meio_ externo ou phisico das sociedades.[1]
+
+Nada d'isto, porém, é ainda realmente a historia, embora todas essas
+condições sejam indispensaveis para a sua comprehensão. O intimo e
+essencial consiste no systema das instituições e no systema das idéas
+collectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos
+são para o individuo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos
+costumes o dos caracteres, na pintura animada dos logares e accessorios
+que formam o scenario do theatro historico.
+
+Estes dois aspectos são egualmente essenciaes; porque a coexistencia
+independente dos motivos collectivos e naturaes, e dos actos
+individuaes, é um facto incontestavel na vida das sociedades.
+
+Na _Historia da civilização iberica_ tratámos de estudar o systema de
+instituições e de idéas da sociedade peninsular, para expôr a sua vida
+collectiva, organica e moral. Tomámos ahi a sociedade como um individuo,
+e procurámos retratal-o phisica e moralmente. Agora o nosso proposito é
+diverso. Tratando da historia particular portugueza, somos levados a
+encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciaes da historia
+geral. A sociedade portugueza, como molecula que é do organismo social
+iberico, peninsular, ou hespanhol--estas tres expressões teem aqui um
+alcance equivalente--obedeceu, nos seus movimentos collectivos, ao
+systema de causas e condições proprias da historia geral da peninsula
+hispanica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo
+pelo qual as leis geraes se realisavam simultaneamente nas duas nações
+hespanholas: duas, porque a historia assim constituiu politicamente a
+Peninsula.
+
+Metade da historia portugueza está, portanto, escripta na _Historia da
+civilisação iberica_: a metade que trata da vida da sociedade, como um
+ser organico. Comprehender-se-ha, pois, que nos abstenhamos agora de
+repetir o que está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse
+livro; indicando, quando fôr necessario, o logar onde poderá encontrar a
+explicação das causas geraes a que no texto se tem de alludir.
+
+Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que ha de particular
+na historia portugueza; resta fazer viver os seus homens, e representar
+de um modo real a scena em que se agitam: tal é o programma d'este
+livro, cujas difficuldades de execução excedem em muito as do anterior.
+N'esse, bastavam o conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como
+foram as cousas, outro para nos indicar o principio e o systema da
+civilisação. Agora carece-se do faro especial da intuição historica, e
+d'um estylo que traduza a animação propria das cousas vivas. Toda a
+longanimidade do leitor será pois necessaria para desculpar as
+imperfeições da obra.
+
+É mistér indicar ainda outro assumpto e prevenir uma impressão, natural
+em quem ler successivamente as duas obras. A _Historia de Portugal_
+consiste n'uma serie de quadros, em que, na maxima parte das vezes, os
+caracteres dos homens, os seus actos, os motivos immediatos que os
+determinam e as condições e modo porque se realisam, merecem antes a
+nossa reprovação do que o nosso applauso. Crimes brutaes, paixões vis,
+abjecções e miserias, compõem, por via de regra, a existencia humana; e
+por isso mais de um moralista tem condemnado o estudo da historia como
+pernicioso para a educação.--Por outro lado, a _Historia da civilisação
+iberica_ respira um enthusiasmo optimista que, ao primeiro exame,
+pareceria contradictorio com o pessimo e mesquinho caracter que as
+acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para demonstrar este
+antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e asiaticas uma
+obra heroica, e agora veremos que montanha de ignominias foi o imperio
+portuguez no Oriente.
+
+Esta contradicção, real para o criterio abstracto, não existe, porém,
+para o criterio historico. Toda a boa philosophia nos diz que o homem
+real é a imagem rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo
+inconscientemente, e que todas as acções dos homens, maculadas de
+defeitos e vicios, obedecem a um systema de leis, idealmente sublimes. É
+esta verdade que o povo consagrou quando formulou o adagio: Deus escreve
+direito por linhas tortas.
+
+Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo
+cabal, vêr-se-ha como na historia de uma civilisação os caracteres
+particulares das acções dos homens, fundindo-se no systema geral de
+principios e leis que os determinam, perdem individualidade, e não valem
+senão como elementos componentes de um todo superior: que sejam
+humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos cumpre attender ao
+destino que os determina, e a moral é um criterio incompetente para a
+esphera ou categoria collectiva de que se trata.
+
+Na esphera dos movimentos de instituições e idéas, na categoria da vida
+social, as acções dos homens são sempre absolutamente excellentes;
+porque a supremacia da sociedade sobre o individuo consiste no facto da
+existencia de uma consciencia superior da Idéa, no organismo que se diz
+sociedade. Os poetas épicos, seres privilegiados cuja voz não é propria,
+senão collectiva, são os orgãos vivos da consciencia de uma civilisação:
+assim Camões sente e exprime a grandeza historica do imperio das Indias,
+que na propria opinião particular do poeta são uma Babylonia, um poço de
+ignominias.
+
+Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e
+rapido, resta-nos dizer que na segunda metade da historia, na que trata
+dos individuos e dos episodios, na que pinta os costumes e os
+pensamentos, o criterio é outro: por isso affirmámos que a historia é
+uma lição moral. Nos vicios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na
+perversidade e na nobreza dos individuos que foram, ha um exemplo
+excellente. Na sabedoria ou na loucura dos actos politicos e
+administrativos passados ha um meio de prevenir e encaminhar a direcção
+dos actos futuros. A historia é, n'esse sentido, a grande mestra da vida.
+
+Se os vicios, os erros, o crime e a loucura predominam sobre as
+virtudes, os acertos, a nobreza e a sabedoria dos homens, como sem
+duvida predominam, iremos por isso condemnar a historia por perniciosa?
+Não, decerto. Apresentar crua e realmente a verdade é o melhor modo de
+educar, se reconhecemos no homem uma fibra intima de aspirações ideaes e
+justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si
+proprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a principal condição da
+virtude.
+
+ [1] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
+ pp. VI-XXII.
+
+ * * * * *
+
+
+HISTORIA DE PORTUGAL
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+LIVRO PRIMEIRO
+
+Descripção de Portugal
+
+ «Onde a terra se acaba e o mar começa.»
+ CAMÕES, _Lusiadas_, III, 20
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+I
+
+Os lusitanos
+
+
+«O povo desde o qual os historiadores têem tecido a genealogia
+portugueza está achado: é o dos lusitanos. Na opinião d'esses
+escriptores, atravez de todas as phases politicas e sociaes da Hespanha,
+durante mais de tres mil annos, aquella raça de celtas soube sempre,
+como Anteu, erguer-se viva e forte: reproduzir-se, immortal na sua
+essencia; e nós os portuguezes do seculo XIX temos a honra de ser os
+seus legitimos herdeiros e representantes.»
+
+Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano[2] os
+seus predecessores, historiographos nacionaes, e, segurando com valor a
+férula magistral, castigava o povo culpado de acreditar n'uma tradição
+que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de ser recente. Só
+desde o fim do XV seculo o nome de _lusitani_ começa a substituir o do
+_portugalenses_, nos livros; mas essa innovação, perpetuando-se entre os
+eruditos, torna-se por fim uma crença nacional e quasi popular.
+
+Que valor merece a innovação? Nenhum; e por varios motivos. «Tudo falta:
+a conveniencia de limites territoriaes, a identidade da raça, a filiação
+da lingua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos
+barbaros e nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sabio
+historiador, não nos parece a nós--perdoe-se-nos o atrevimento--que o
+sejam. Outro tanto succede com todas as nações, ou quasi todas, desde
+que procuramos estabelecer a arvore genealogica, indo aos arcanos de um
+passado ignoto reconhecer a phisionomia dos mortos de muitos seculos e
+determinar d'entre elles os primeiros avós de uma nação. Seria absurdo
+exigir conveniencia de limites territoriaes, ou por outra, identidade de
+fronteiras, entre a localisação de uma tribu primitiva, e a de uma nação
+moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam,
+pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigencia. Se ha ou não identidade
+de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso,
+negal-o é proceder dogmatica e não scientificamente.
+
+Allega-se que são indecisas as noções de Strabão com respeito ás
+fronteiras dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que
+Augusto deu á provincia da Lusitania.[3] O geographo antigo, ora parece
+incluir os callaicos nos lusitanos, entendendo as fronteiras d'estes
+ultimos até á costa do norte da Peninsula; ora os separa, dando-lhes o
+Douro como divisoria. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda
+versão. As fronteiras orientaes extendiam-se, quer para o geographo,
+quer, depois, para a administração romana, muito além da raia
+portugueza, incluindo Salamanca, e subindo quasi até proximo de Toledo.
+D'alli para o sul, e depois para o nascente, seguindo o curso angular do
+Guadiana, os lusitanos de Strabão e a Lusitania de Augusto tinham como
+limite este rio, quasi desde as suas fontes, e até á sua foz, na costa
+do nosso Algarve.
+
+Se ligassemos, pois, um valor positivo ás resenhas dos antigos
+geographos, e um alcance social-historico á identidade das fronteiras
+primitivas e actuaes, parece-nos que poucas nações poderiam com melhores
+motivos achar na etimologia dos antigos o fundamento da sua vida
+moderna. Alargue-se a fronteira do norte ao Minho (conquista da
+Lusitania sobre a Gallecia) retráia-se a fronteira de leste ao Douro
+(conquista da Tarraconense sobre a Lusitania) e teremos feito coincidir
+os antigos com as actuaes limites. Qual é, dos primitivos, o povo que no
+decurso da sua vida historica deixou de conquistar e de ser conquistado?
+qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou d'outro, sobre ou
+para os visinhos?
+
+Se a maneira porque, a partir do seculo XV ou XVI, os historiographos
+nacionaes filiam o Portugal moderno na antiga Lusitania justifica as
+fundadas ironias do nosso grande historiador, não nos parece que o
+processo por elle seguido para negar a doutrina, seja conveniente, nem
+até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos nada haja
+de commum. Quando hoje vimos renascer de um modo erudito, e d'alli
+affirmar-se no espirito popular, a tradição nacional germanica, a
+italiana e até a romania: que valor tem o facto da tradição lusitana ter
+estado obliterada por seculos, para só resurgir n'uma epocha
+relativamente proxima e de um modo erudito? Se os portuguezes da
+Edade-media não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus
+avós, italos, romanos ou teutonicos, os piemonteses, os vallacos, ou os
+prussianos até ao XVIII seculo? Acaso, tambem, ser-lhes-ha mais possivel
+do que a nós estabelecer uma transição natural e uma historia
+ininterrupta desde as primeiras edades até ás modernas? Não, decerto. Se
+a erudição podesse demonstrar a unidade da raça iberica, então os
+lusitanos baixariam á condição de uma variedade sem autonomia; facto é,
+porém, que pouco ou nada sabemos, nem de iberos em geral, nem de
+lusitanos em particular, e por isso as fabulas dos velhos antiquarios
+não merecem a attenção moderna. Não haverá, porém, acaso outro caminho
+para atacar este problema? Á falta de monumentos escriptos, nada poderá
+valer-nos? Entre a fabula ingenua dos antiquarios e as exigencias seccas
+e formaes dos eruditos modernos, não estará outra via? Affigura-se-nos
+que sim.[4]
+
+Todos reconhecem hoje a indestructivel tenacidade das populações
+primitivas. Raizes profundas que nenhuma charrua destroe apesar de
+revolta a leiva pelo ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas
+e troncos pelo tropear dos cavallos de guerra, depois de queimados e
+reduzidos a cinzas pelos incendios das invasões: embora se lancem novas
+sementes á terra e nasçam vegetações novas, essas raizes profundas
+tornam a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal
+convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro,
+lento, mas invencivel as plantas intrusas.
+
+A permanencia dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje
+indiscutivel, permitte fazer--consinta-se-nos a expressão--a historia ao
+inverso: julgar de hoje para hontem, inferir do actual para o passado. A
+questão da raça lusitana apresenta-se-nos pois n'estes termos: ha uma
+originalidade collectiva no povo portuguez, em frente dos demais povos
+da Peninsula? Crêmos que a ha circumscripta porém a traços secundarios.
+Crêmos que as diversas populações da Hespanha, individualisadas sim,
+formam, comtudo, no seu conjuncto, um corpo ethnologico dotado de
+caracteres geraes communs a todas. A unidade da historia peninsular,
+apesar do dualismo politico dos tempos modernos, é a prova mais patente
+d'esta opinião.[5]
+
+Esse dualismo, porém, leva-nos tambem a crêr que entre as diversas
+tribus ibericas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais
+individualmente caracterisadas. Não esquecemos, decerto, a influencia
+posterior dos successos da historia particular portugueza: mas elles,
+por si só, não bastam para explicar o feitio diverso com que cousas
+identicas se representam ao nosso espirito nacional. Ha no genio
+portuguez o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a
+terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo lusitano uma
+nobreza que differe da furia dos nossos visinhos; ha nas nossas letras e
+no nosso pensamento uma nota profunda ou sentimental, ironica ou meiga,
+que em vão se buscaria na historia da civilisação castelhana, violenta
+sem profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas
+alheia a toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade,
+mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a
+entestar com as féras. Tragica e ardente sempre, a historia hespanhola
+differe da portugueza que é mais propriamente epica; e as differenças da
+historia traduzem as dessimilhanças do caracter.
+
+Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primaria
+d'este phenomeno? Decerto não. Ou sombras impenetraveis o encobrem, ou a
+escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendal-o. Como
+hypothese--e do nosso atrevimento será escusa a nossa modestia--somos
+levados a crêr que a individualidade do caracter dos lusitanos (quer
+n'elles incluamos os callaicos, quer não) provém de uma dose maior de
+sangue celtico ou celta (questionou-se outr'ora sobre isto) que gira em
+nossas veias, de mistura com o nosso sangue iberico. Os nomes proprios
+de logares, os nomes de pessoas e divindades, tirados das inscripções
+latinas da Lusitania e da Tarraconense, que constituem o nosso Portugal,
+provam a preponderancia de um elemento celtico. As vagas indicações dos
+antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e dão-nol-os na
+costa Occidental da Peninsula. Vale porém mais do que isso a analogia
+evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos
+gallegos, e aquella phisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas
+da França e da Irlanda teem determinado a estes ultimos.[6]
+Tentámos ha pouco esboçar a nossa phisionomia differencial: escusado é
+tornar agora ao assumpto. Se a idéa de uma filiação dos lusitanos foi
+expressa de um modo ridiculo pelos antiquarios classicos, a idéa de uma
+filiação celtica ou celta teve já a mesma sorte quando, quasi em nossos
+dias, houve quem pretendesse filiar directamente o portuguez na lingua
+dos bardos. Paz do esquecimento a todas as chimeras!
+
+ [2] V. o seu retrato no _Portugal Contemporaneo_ (2.ª ed.) II,
+ pp. 283 a 327.
+
+ [3] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 11-15 e
+ _Taboas de chronol._, pp. 256-7.
+
+ [4] V. ácerca dos lusitanos. _As raças humanas_, I, pp. 198-201,
+ e 209-11, _nota_.
+
+ [5] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. XXXIV-XLIV.
+
+ [6] V. _As raças humanas_, liv. II, p. 4.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+II
+
+Fundamentos da nacionalidade
+
+
+Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da
+independencia politica?
+
+Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento mais
+distante, circumstancias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram
+com que no nosso tempo se substituisse, ao principio do equilibrio
+internacional, o principio das nacionalidades, na organisação dos corpos
+politicos independentes da Europa.[7]
+
+Invasora como todas as doutrinas, e além d'isso habilmente explorada
+pelos estadistas, a das nacionalidades tentou--se não tenta
+ainda--predominar absoluta no triplo conjuncto de causas naturaes que de
+facto determinaram sempre, e sempre determinarão, a existencia das
+nações: a geographia, a raça, e as necessidades de ponderação: uma vez
+que a Europa é de facto uma amphictyonia. Sobre estes tres elementos
+naturaes, ou antes coarctado por elles, o egoismo das nações e a ambição
+dos imperantes talharam no mappa a delimitação das fronteiras. Por
+escasso que seja o conhecimento da historia, ninguem ignora que de todos
+tres o que mais impunemente tem sido e é atacado pela vontade dos
+homens, é o primeiro. A rebeldia dos dois segundos traduz-se de um modo
+mais immediato e efficaz nas guerras de equilibrio e nas guerras
+commerciaes ou estrategicas. Guerras, propria e exclusivamente de raça,
+são raras, se é que alguma houve; e os povos opprimidos por extranhos,
+quando teem o sentimento como que religioso da communidade de origem,
+extinguem-se, ou em revoltas estereis, ou emigrando. O equilibrio, o
+commercio, a estrategia, porém, muitas vezes aproveitam o sentimento da
+raça, fomentando-o, para dar com elle ás guerras a sancção que n'outros
+tempos se achava, de um modo analogo, nas crenças propriamente religiosas.
+
+Até hoje todas as successivas tentativas para descobrir a nossa _raça_
+teem falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal mosarabes, teem
+passado: ficam os portuguezes, cuja _raça_, se tal nome convém empregar,
+foi formada por sete seculos de historia. D'essa historia nasceu a idéa
+de uma patria, idéa culminante que exprime a cohesão acabada de um corpo
+social[8] e que, mais ou menos consciente, constitue como
+que a alma das nações, independentemente da maior ou menor homogeneidade
+das suas origens ethnicas. O patriotismo tanto póde, com effeito, provir
+das tradições de uma descendencia commum, como das consequencias da vida
+historica. Não ha duvida, porém, que, se assenta sobre a affinidade
+ethnogenica, resiste mais ao imperio extranho do que quando provém
+apenas de uma communidade de historia. No dia em que a independencia
+politica se perde, obliteram-se mais rapidamente os caracteres
+autonomicos, embora durante a lucta valham menos os elementos de força
+provenientes da homogeneidade ethnogenica. Assim tantas nações perderam
+na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem vestigios vivos da sua
+antiga independencia; ao passo que as individualidades ethnicas
+apparecem ainda hoje distinctas no seio de nações politicamente
+unificadas desde largos seculos: taes são o paiz basco, a Galliza e o
+Aragão, na Hespanha: a Irlanda e a Escocia, de raça celtica, na
+Inglaterra; a Provença, ou a Bretanha, em França: e, na Russia, a
+Finlandia que é scandinava, ou as provincias balticas que são
+germanicas.[9]
+
+O patriotismo portuguez não é pois argumento a favor nem contra o
+problema da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou.
+O jornalismo e a politica podem explorar rhetoricamente todas as cousas,
+confundindo-as; mas á sciencia impassivel e soberana fica mal deixar-se
+arrastar por motivos inferiores. O patriotismo é excellente, no seu
+logar. Negar que durante os tres seculos da dynastia de Aviz a nação
+portugueza viveu de um modo forte e positivo, animada por um sentimento
+arraigado da sua cohesão, seria um absurdo. Essa cohesão que fôra ganha
+nas luctas e campanhas da primeira dynastia, perde-se no XVI seculo, por
+causa das consequencias do imperio oriental e da educação dos jesuitas.
+Portugal acaba; os _Lusiadas_ são um epitaphio.
+
+Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que
+precederam a formação da monarchia portugueza. N'essa epocha, o Mondego
+divide em duas metades o territorio nacional e as differenças typicas da
+população deviam ser então ainda mais acentuadas do que o são hoje. Na
+metade do sul o typo vae confundir-se com os limitrophes de além da
+fronteira do reino: e na metade do norte, diz um nosso illustre
+escriptor[10], «a Galliza, que tem comnosco de commum a
+lingua, que é uma continuação natural da zona geographica portugueza,
+podia muito melhor formar com Portugal uma nação, do que Portugal com
+Castella». A Galliza, cuja lingua se tornou litteraria sob o nome de
+portuguez[11], vem com effeito até ao Mondego: o mosteiro
+de Lorvão dá-se em antigos documentos como situado _in finibus Galleciæ_.
+
+O fallecido Soromenho (_Or. da ling. port._) dizia que «entre a lingua
+usada na provincia de Entre-Douro-e-Minho e a que mais tarde apparece
+nas terras do Cima-Côa e na Estremadura ha uma differença bastante
+sensivel. Póde sem receio dizer-se que, á similhança do que succedia
+além dos Pyreneus, em Portugal havia tambem uma _langue d'oc_ e uma
+_langue d'oil_, a lingua do Norte e a lingua do Sul... O Mondego é a
+lingua divisoria... ainda um seculo depois de D. Diniz ter abandonado o
+latim como lingua official». Esta differença coincide singularmente com
+as differenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no
+caracter das populações do Norte e do Sul do nosso paiz. E a
+uniformidade posterior da lingua explica-se natural e comesinhamente
+pelo facto de sete seculos de unidade nacional. «A importancia que o
+portuguez adquiriu repentinamente, diz o sr. Ad. Coelho (_A lingua
+portugueza_), _resultou da introducção da cultura poetica na côrte
+portugueza_». É conhecido o papel da politica no sentido do unificar as
+linguas do uma nação; abundam os exemplos de linguas substituidas, e nem
+sempre a lingua denuncia a stirpe[12]. Os normandos perderam em França o
+seu idioma scandinavo, os burgundios o os lombardos, na França e na
+Italia, os seus idiomas germanicos; á maneira dos oseos e umbrios[13]
+que tinham trocado pelo latim as suas linguas.
+
+Não se pretenda por fórma alguma dizer, comtudo, que ao sul do Mondego
+houvesse uma lingua diversa: diga-se, porém, que o argumento da _unidade
+actual_ da lingua, depois de sete seculos de vida nacional, não tem
+valor. Todos vêem ainda hoje como é rara a população no sul, menos
+densos portanto os laços collectivos: e todos sabem como essas regiões,
+sujeitas por seculos a guerras exterminadoras habitadas por mosarabes,
+invadidas por berberes, taladas pelo fanatismo almoravide[14] passaram
+para sob o imperio da monarchia nascida na Galliza portugueza. Como não
+receberiam a lingua do vencedor? Não podia haver lucta entre duas
+linguas romanicas, porque a arabisação do sul fôra completa: podel-a-hia
+haver entre o arabe e o portuguez, quando a população captiva passava á
+condição de escrava? quando as novas terras conquistadas eram povoadas
+por colonias frankas, ou pelos cavalleiros hyerosalemitanos?
+
+Por taes motivos parece evidente a ausencia de uma causa ethnogenica no
+facto da formação da monarchia portugueza, cujas razões de existir são
+comesinhas, praticamente comprehensiveis, sem theorias subtis. A lingua
+vale decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a
+fala? Não se acham por esse mundo homens de uma mesma raça falando
+idiomas diversos, e populações de um mesmo idioma, pertencendo a raças
+differentes?[15] Ora quem trilhou Portugal e a Hespanha visinha observou
+decerto--ou não tem olhos para vêr--uma affinidade incontestavel do
+aspecto e do caracter, um parentesco evidente, entre as populações dos
+dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados da raia
+secca de leste. Se esses homens não falassem, ninguem distinguiria duas
+nações. E por outro lado, confundiu já alguem um algarvio, ou um
+alemtejano puro, com um puro minhoto? A historia commum funde, não
+scinde; e quando vêmos, depois de sete seculos, differenças tão
+marcadas, a observação dos homens leva-nos a crêr que com effeito em
+Portugal faltou uma unidade de raça, sobrando pelo contrario uma vontade
+energica e uma capacidade notavel nos seus principes e barões. Com um
+retalho da Galliza, outro retalho de Leão, outro da Hespanha meridional
+sarracena, esses principes compozeram para si um Estado.[16]
+
+ * * * * *
+
+A raça é de facto o mais tenue dos laços proprios para garantir a
+cohesão independente de um povo. E além d'isso a doutrina--se
+admittissemos a identidade d'ella e do facto--exigiria que á expressão
+de raça se ligassem sempre certos caracteres correspondentes á vastidão
+necessaria, á eminencia sempre crescente das funcções organicas, e á
+originalidade activa, das nações modernas. Mal de nós, pois, se ao facto
+de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros quaesquer, formos
+pedir argumentos para defender a nossa independencia nacional; porque
+esse facto não augmentará, nem a nossa força, nem as nossas razões:
+porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da
+monarchia leoneza.
+
+Não nos levantámos contra ella como lusitanos opprimidos: nós nem
+tinhamos a menor idéa de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra
+cousa. A população do condado portucalense, ibera, cruzada de celtas,
+romanisada, submettida ao governo dos godos, depois aos arabes, e
+finalmente ao monarcha leonez, não podia ter decerto um sentimento de
+cohesão collectiva ou nacional, incompativel com o estado da sua
+cultura, com a tradição, e com a situação social e politica: é isso o
+que todos os documentos historicos nos revelam. «Portugal, diz o snr.
+Herculano, nascido no XII seculo em um angulo da Galliza, dilatando-se
+pelo territorio do Al-Gharb sarraceno, e buscando até augmentar a sua
+população com as colonias trazidas de além dos Pyreneus, é uma nação
+inteiramente moderna.» É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha
+raizes antigas. Não confundamos esta questão com a da independencia, e
+teremos, cremos nós, pisado o verdadeiro e solido terreno da historia.
+
+A causa da separação de Portugal do corpo da monarchia leoneza não é
+obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de
+independencia do governador do condado, que o tinha do rei suzerano: é o
+afastamento d'esta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade
+de pulverisação da soberania, que a alliança d'esta idéa com a de
+propriedade, e a ignorancia de meios administrativos capazes de manter a
+ordem em terrenos dilatados, tornam inevitavel na Edade-media.[17]
+Portugal separava-se, da mesma fórma que o reino da Navarra
+se dividira em tres, e pelos mesmos motivos. Portugal defende a
+separação: o monarcha suzerano impugna-a. Debate-se mais de uma vez a
+questão com as armas: não porque se chocassem os sentimentos nacionaes,
+mas porque os principes defendiam o que era, ou julgavam ser,
+propriedade sua. Estas primeiras guerras portuguezas não depõem decerto
+de um modo particular em favor da independencia, porque eram a lei de
+toda a Hespanha, a lei de toda a Europa--podemos dizer assim. É um
+preconceito fazer do conde D. Henrique o fundador consciente da
+independencia de uma nação, quando o conde apenas cuidava da
+independencia pessoal e propria. O sentimento de independencia nacional,
+a idéa de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e não
+os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se
+póde dizer que só data da dynastia de Aviz, depois do dia memoravel de
+Aljubarrota.[18]
+
+No XII e XIII seculos Portugal é um certo territorio, propriedade de um
+certo principe: d'onde vem? quem é? pouco importa. O conde D. Henrique
+era francez. Assim, a epocha da primeira dynastia desmente por todos os
+lados, e de todas as fórmas, a idéa de uma raça, possuindo, de um modo
+mais ou menos definido, a consciencia da sua existencia collectiva.
+
+É essa consciencia que dá porém o caracter eminente á segunda dynastia,
+ou de Aviz, em cujas mãos Portugal desempenha um papel bem similhante ao
+dos phenicios da Antiguidade.[19] Como aos phenicios succedeu aos
+portugueses: no momento em que a razão de ser da sua acção na
+civilisação da Europa desappareceu, a nação definhou, sumiu-se, perdendo
+tudo até perder a independencia.
+
+É verdade que a nossa independencia restaura-se em 1640. Mas como, de
+que modo? Atrever-se-ha alguem a dizer que é uma resurreição? Não será a
+historia da Restauração a nova historia de um paiz, que, destruida a
+obra do imperio ultramarino, surge, no XVI seculo, como no nosso
+appareceu a Belgica, filho das necessidades do equilibrio europeu? Não
+vivemos desde 1641 sob o protectorado da Inglaterra? Não chegámos a ser
+positivamente uma feitoria britannica? E ainda no decurso d'esta
+historia o Brazil veiu, enchendo-nos de oiro, prestar-nos um ponto do
+apoio extra-europeu, e como que restaurar o antigo caracter do Portugal
+manuelino, capital europêa de um imperio ultramarino, á maneira da
+Hollanda. E que melhor prova póde haver da nossa desorganização do que a
+duração ephemera da obra do marquez de Pombal--o estadista que concebeu
+a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um momento a fazer
+d'elle outra vez uma nação independente? que melhor prova do que a
+reacção victoriosa de D. Maria I?
+
+A perda do Brazil, reduzindo o reino á miseria, veiu mostrar a
+fragilidade do nosso edificio politico. Os inglezes tiveram de nos
+tutelar para manter, como lhes convinha, a dynastia de Bragança; e
+passada, vencida a crise, appareceu com o liberalismo a impotencia
+manifesta de restaurar a vida historica de uma nação imperial ou
+colonial.[20]
+
+Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que ha sensato, o patriotismo
+com as questões e problemas scientificos das origens naturaes ethnicas.
+Tambem a Suissa, alleman, italiana, franceza, odiou o austriaco, á
+maneira por que nós _odiamos Castella_. Basta a historia, basta o
+interesse, para dar homogeneidade social e politica a um povo; e basta
+essa homogeneidade para crear um patriotismo. Ora o patriotismo das
+raças assim formadas exprime-se na acção, e não em miragens enganadoras
+de um passado que a historia acaba. Na sua lingua, nas suas tradições,
+no seu caracter, o celta da Irlanda encontra sempre um ponto de apoio
+vivo e positivo. Quereis uma prova da differença? Os pontos de apoio que
+nós buscamos são mortos ou negativos: morto o imperio maritimo e
+colonial, a India, e toda a historia que terminou com os _Lusiadas_ em
+1580: negativo, o _odio a Castella_, que nem nos opprime, nem nos odeia.
+
+ * * * * *
+
+Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece
+na sua formação ás ordens da geographia: os barões audazes, ávidos e
+turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de theorias e systemas. Vão
+até onde vae a ponta da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve,
+com tanto que alarguem o seu dominio.
+
+Por isso as fronteiras de Portugal oscillam durante os primeiros dois
+seculos á mercê dos azares das guerras, com Leão e Castella de um lado,
+com os sarracenos do outro; e Portugal vem a ser formado com dois
+fragmentos: do reino leonez, um, dos émirados sarracenos, outro.
+
+Quando Fernando-Magno de Castella, descendo do oriente, conquistou a
+moderna Beira aos musulmanos,[21] a Galliza encontrou em
+Coimbra e na linha de defeza do Mondego uma fronteira que a punha ao
+abrigo de futuras correrias, até ou além do valle do Douro. Pelo meiado
+do XI seculo a expressão geographica de Galliza ia, pois, até ao
+Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituidas pelo rei
+n'um governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a
+leste, uma linha passada por Lamego, Vizeu e Cêa, e que, descendo de
+novo á costa, acompanhava os pendores setentrionaes da serra da
+Estrella. Condado de Galliza ao norte, de Coimbra ao sul do Douro,
+sarracenos ao sul do Mondego: eis ahi a condição do territorio do
+moderno Portugal na segunda metade do XI seculo.
+
+Já, porém, n'esta epocha, uma expressão a que não correspondia valor
+politico, militar ou administrativo, apparece a designar o territorio de
+entre o Douro e o Minho e a moderna provincia de Traz-os-Montes: a essa
+parte do condado da Galliza chama-se já Portucale.
+
+Nos ultimos annos do XI seculo correrias felizes deram ao celebre
+Affonso VI a posse de Santarem, Lisboa e Cintra, alargando as fronteiras
+christans até á linha do Tejo. Os nossos territorios de entre Mondego e
+Tejo foram creados em condado ou governo, e confiados á guarda de
+Gonçalo Mendes da Maia, o nomeado _lidador_: e os tres governos que
+tinham por limites successivos o Douro, o Mondego e o Tejo, constituiram
+em favor do genro de Affonso VI, Raymundo de Borgonha, uma especie de
+vice-reino. Breve foi, porém, a duração d'este periodo; porque logo em
+1097, depois do desbarato do conde borguinhão e da perda da fronteira do
+Tejo, Affonso VI effectua uma nova divisão do territorio, dando
+autonomia politica á expressão geographica de Portucale ou Portugal, e
+annexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense, por
+tal fórma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galliza, e os
+seus dominios recuavam assim de golpe desde o Tejo até ao Minho. Esse
+primo era o conde D. Henrique, tambem genro do poderoso Affonso VI.
+
+Na primeira metade do XII seculo, o conde e a viuva sua herdeira levam
+as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para norte, por
+entre Minho e Bivey, até Tuy e Orense. As guerras civis dos Estados da
+Peninsula davam e tiravam assim, constantemente, territorios e
+povoações. A fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus
+actuaes limites de além-Douro; mas o governo de Affonso Henriques, o
+primeiro que ousou quebrar de todo os laços tenues da vassallagem a
+Leão, viu alargar-se do lado opposto a raia até á linha do Sado, desde
+que, no meiado do XII seculo, Lisboa, Santarem, Cintra, Almada e
+Palmella cairam definitivamente em seu poder, accrescentando novas
+terras ás do primitivo condado portucalense.
+
+As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da
+accessão de Sancho I ao throno, as mesmas de hoje: margem esquerda do
+Minho, por Melgaço a Lindoso, d'ahi a Bragança por Miranda, entestar com
+o Douro no ponto em que agora se extremam Portugal e a Hespanha. A
+fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Diniz se
+demarcou por onde hoje passa: no fim do XII seculo a raia seguia desde a
+foz do Coa, rio acima, até á confluencia do Pinhel, e, acompanhando-o,
+passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. D'ahi
+ao Tejo, então e agora, a fronteira é a mesma.
+
+Ao sul do Tejo é difficil, senão impossivel, determinar
+chronologicamente as fronteiras portuguesas. A nacionalidade do dominio
+nas cidades do Alemtejo permittiria traçar geographicamente a linha da
+fronteira com uma aproximação conveniente, tanto mais que os territorios
+de entre as cidades, devastados e ermos, eram posse de quem no momento
+os pisava armado. Mas as successivas correrias de lado a lado, a tomada,
+logo a queda; depois a reconquista de uma mesma cidade, ás vezes n'um
+periodo de mezes, tornam impossivel demarcar a fronteira antes da epocha
+em que definitivamente uma certa região passa para o dominio portuguez,
+para d'elle não mais saír. Assim, a tomada de Evora em 1166 dá á linha
+do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra as
+fortalezas sarracenas de Jerumenha, Elvas e Badajoz. Por ahi a raia
+portugueza iria até Marvão, acaso até Arronches.
+
+Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal.
+
+No primeiro quartel do XIII seculo, Alcacer do Sal, base estrategica da
+linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de leste,
+cáem em poder dos portuguezes; e á determinação final da nossa raia
+alemtejana vem juntar-se, até ao meiado do seculo, a conquista do
+Algarve, completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal.
+
+No ferir das guerras da conquista não são os musulmanos que põem um
+freio á ambição pessoal dos principes, porque a sorte do imperio do
+Islam estava lançada, e para a consummar concorriam todos os Estados
+christãos da Peninsula. Será porventura a raça que delimita as
+fronteiras da nova nação? Ocioso é já responder. Será a geographia? Não
+parece; desde que vêmos a raia cortar de lado a lado as planicies do
+Alemtejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair perpendicularmente sobre
+as cumiadas das montanhas em vez de lhes seguir a orientação. Qual dos
+tres elementos nos resta? O equilibrio. O equilibrio é com effeito o
+elemento ponderador: á ambição dos principes de Portugal oppõe-se a
+resistencia dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um
+dos antagonistas não tem força bastante para submetter o adversario, o
+outro tem de usar com prudencia de um poder limitado. Quando tenta
+passar além do Minho, ou adquirir para si Badajoz, a reacção mostra-lhe
+até onde póde ir a acção dos meios de que dispõe. Do equilibrio ou
+ponderação das duas forças antagonicas nasce a determinação geographica
+do Portugal moderno, para o qual só no extremo norte e no extremo sul,
+sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em admittir uma fronteira
+natural.
+
+Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expôr claramente o
+nosso pensamento. Ha ou não ha uma nacionalidade portugueza? Questão
+absurda, assim formulada. Evidentemente ha, se nacionalidade quer dizer
+nação. Se por nacionalidade se entende, porém, um corpo de população
+ethnogenicamente homogeneo, localisado n'uma região naturalmente
+delimitada, insistimos em dizer que tal cousa se não dá comnosco. Se por
+nacionalidade se entende, finalmente, essa unidade social que a historia
+imprime em povos submettidos ao regime de um governo, de uma lingua, de
+uma religião irmans, como nós o temos sido durante sete seculos,
+evidentemente a resposta só póde ser uma.
+
+ [7] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chron._,
+ pp., XXII e segg.
+
+ [8] V. _As raças humanas_, introd., pp. LXVII e segg.
+
+ [9] V. _Instit. primitivas_, pp. 290-306.
+
+ [10] O sr. F. Ad. Coelho.
+
+ [11] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), pp. 122-5.
+
+ [12] V. As raças humanas, I, pp. 20-5.
+
+ [13] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 117-45.
+
+ [14] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 81-111.
+
+ [15] V. _As raças humanas_, I, pp 20-5.
+
+ [16] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
+ pp. XXX-I.
+
+ [17] V. _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
+ pp. XXVI-VII e _Instit. primit._, pp. 222 e segg.
+
+ [18] V. _Instit. primitivas_, pp. 233-43.
+
+ [19] V. _Raças humanas_, I, IV, 2, 3.
+
+ [20] V. _Portugal contemporaneo_, II, pp. 119-37.
+
+ [21] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 116-7.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+III
+
+Geographia portugueza
+
+
+Quando se observa o retalho da Peninsula, de que a historia fez
+Portugal, separado do corpo geographico a que pertence, desde logo se vê
+como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendencias da natureza. Os
+rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa occidental,
+proseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para
+muito além das fronteiras, até ao coração do corpo peninsular. As
+cumiadas das montanhas e os valles extensos mudam de nacionalidade
+n'aquelle ponto convencional que aos homens aprouve fixar.
+
+Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso proprio territorio,
+motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto póde a
+obcecação doutrinaria! Diz um que essa separação dos litoraes é uma
+regra;[22] nega outro o caracter arbitrario da linha das
+fronteiras de leste, affirmando que essa linha coincide com os limites
+extremos até onde os nossos rios são navegaveis. Decerto nunca os viu
+quem tal affirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o
+rio é portuguez nas duas margens até Monsarás, formando a raia d'ahi até
+Elvas. O Douro para cima da Regoa é tão navegavel até Zamora como até á
+Barca-d'Alva. No Tejo, passando Abrantes, tanto se vae até Alcantara,
+como até Aranjuez. Onde está pois a concordancia da fronteira com a
+parte navegavel dos rios? A allegada _base geographica_ da nacionalidade
+desapparece pois, se é que uma tal expressão não quer apenas denunciar o
+destino maritimo, como que phenicio, da nação.
+
+As duas cousas não devem, porém, confundir-se, pois n'um caso
+encontramos a causa determinante da aggregação social, emquanto no outro
+se observa a consequencia do facto da existencia anterior d'essa
+aggregação, fortuitamente constituida n'um litoral. É evidente que o
+caracter maritimo e colonial da nação portugueza, na segunda dynastia,
+não podia ter influido no facto já secular da independencia. É sabido
+que D. Affonso Henriques, o author d'ella, não tinha navios, servindo-se
+dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcacer. A marinha foi uma creação
+da monarchia e um producto da nação, depois de constituida: o caracter
+maritimo é historico, não é primitivo em um povo rural, como era o
+portuguez dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o gallego. O movimento
+de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Diniz, as
+de D. Fernando, depois a empreza do Infante D. Henrique, são momentos
+successivos de uma historia que é o nervo intimo da vida portugueza.
+Desde a reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de
+Lisboa, desde a introducção dos genovezes, que vieram ensinar-nos a
+navegar, vê-se começar a formar-se essa nação cosmopolita, destinada á
+vida commercial, maritima e colonisadora.[23]
+
+É essa a nação que a historia fórma: e por isso mesmo que a vida
+portugueza foi maritima, e o destino da sua historia o mar: por isso
+mesmo avultam os elementos que diariamente tornam cosmopolitas as
+cidades maritimas de um paiz cuja capital é um dos melhores portos do
+mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido á força
+absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular.
+
+Erguido em frente do mar como um amphitheatro cujos primeiros degraus as
+ondas constantemente aspergem, o territorio portuguez, independente,
+adquiriu d'esta localisação um caracter seu: ao mesmo tempo que nos
+habitantes de Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia
+uma tendencia particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas,
+e, pelo coração dos valles, o curso dos nossos rios, são as veias e os
+tendões que nos ligam ao corpo peninsular; assim tambem no nosso sangue
+os elementos primitivos accusam o facto de uma origem e de uma raça irman.
+
+E se temos uma phisionomia moral, distincta sem ser diversa, tambem as
+condições do nosso territorio nos dão um genero de destino differente,
+mas encaminhado a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa
+gloria e a nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas,
+construimos; conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores,
+desvendámos todos os segredos dos Oceanos; mas o nosso imperio no
+Oriente foi um desastre, para o Oriente e para nós. A bordo fomos tudo;
+em terra apenas podémos demonstrar o heroismo do nosso caracter e a
+incapacidade do nosso dominio. Façanhas de homens que dirigem instinctos
+devotos e pensamentos de cubiça, eis ahi o que nós veremos ser o nosso
+imperio oriental. Epopêa do espirito indagador, audaz e paciente, as
+nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras, tornam-nos os
+genios d'esse elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma
+celtica nos attrahia. Quando á Europa humilhada o castelhano impõe a lei
+com a espada e o mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros,
+segurando o leme, ferrando as velas, alargamos mar em fóra a nau, com o
+olhar perscrutador fixado nos astros que nos guiam. Vamos de manso, ao
+longo das costas... Ninguem nos vê: só as ondas ouvem as melopêas
+monotonas dos marinheiros, cujo rithmo obedece ao rithmo do quebrar da
+vaga contra o costado.--Elles vão, emplumados e vestidos de aço,
+arrogantes e cheios de imperio, com o seu grito stridente e tragico,
+ensurdecer e estontear o mundo! Ninguem diria dois povos irmãos; e
+são-no, porque ambos obedecem a um motivo identico, a um pensamento
+egual, que está no fundo da sua alma inconsciente, como a chamma que
+arde no cerne da Terra, dando origem a rochas tão diversas no aspecto,
+na côr, na rigeza, na structura, no merito.
+
+Portugal é um amphitheatro levantado em frente do Atlantico que é uma
+arena. A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores,
+arrastando-os afinal á laboriosa empreza das navegações, que era para
+elles um destino desde que a politica os destacára do corpo da Peninsula.
+
+ * * * * *
+
+Quando se percorre de norte a sul a estreita facha da nação occidental
+da Hespanha, encontram-se os successivos prolongamentos das cordilheiras
+peninsulares, galgando uns até ao mar, terminando outros mais distante
+da costa. Entre elles abrem-se as bacias ou estuarios de rios parallelos
+que podem dividir-se em dois systemas: o do norte e o do sul,
+delimitados pela cordilheira da Estrella-Aire-Montejunto-Cintra.
+
+No systema do norte, o Douro é a arteria central d'uma região montuosa,
+coroada nos limites setentrionaes e austraes pelas duas cordilheiras
+culminantes da Galliza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou
+degraus successivos d'essa platéa de montanhas que se fecha áquem da
+fronteira portugueza, descem outras serras, entre cujas depressões se
+precipitam os rios nacionaes do norte: o Minho, que delimita a Galliza,
+o Lima, o Cávado e o Ave, ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o
+Mondego. As serras de entre Minho e Lima são as do Suajo; as de entre
+Lima e Douro, as do Gerez e do Marão, separadas pelo Tamega, confluente
+d'este ultimo; as d'entre Douro e Vouga, Montemuro; as d'entre Vouga e
+Mondego, Caramullo.
+
+No sul, as bahias do Tejo e Sado, divididas pela peninsula da Arrabida,
+constituem o centro de um systema de caudaes irradiantes que cortam a
+zona mais plana, limitada de um lado pela serra da Estrella, do opposto
+pela do Algarve. Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo,
+desinternando-se de Castella; destacando-se d'este, para sueste, o
+Sorraia, em plena planicie; e, mais pronunciadamente para o sul, o Sado,
+que vae nascer no pendor norte das montanhas algarvias.
+
+Se a metade norte de Portugal é fechada a leste por um systema de
+contrafortes avançados dos Pyreneus cantabricos, a metade sul, theatro
+das guerras castello-portuguezas, contradiz de um modo incontestavel a
+opinião dos que vêem na orographia a base necessaria da delimitação das
+fronteiras nacionaes.
+
+A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira andaluza penetrando no
+interior da Peninsula. Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana,
+depois de ter regado os nossos terrenos raianos, toma uma direcção leste
+atravez das largas campinas da Estremadura hespanhola que os tratados
+apenas dividiram do nosso Alemtejo. N'esta metade austral da nossa
+fronteira de leste, as planicies e as aguas do rio que as rega mudam de
+nação sem mudarem de natureza; e outro tanto succede aos contrafortes
+avançados que reunem n'um mesmo promontorio as serras de Guadalupe e a
+Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Evora ao sul.
+No troço de fronteira ao norte d'esta como que garra lançada pela
+ossatura da Hespanha no Portugal alemtejano, corre, primeiro, o amplo
+valle em cujo centro deslisa o Tejo, prolongando-se com elle,
+Estremadura em fóra, até Toledo; e seguem, depois, as cumiadas da
+Guardunha que dividem o Tejo do Zezere, apertando este rio contra a
+serra da Estrella.
+
+O pendor austral das serras do Algarve e a facha ou tapete de jardins
+sobre que pousa a sua base o throno d'esses montes, formam uma ultima e
+como que excepcional provincia geographica, vedeta sobre o continente
+fronteiro, cujo clima e producções partilha.
+
+ * * * * *
+
+Geognosticamente, o territorio portuguez póde dividir-se em tres regiões
+principaes: a das rochas igneas e paleozoicas, a dos terrenos
+secundarios, e a dos terrenos terciarios.
+
+Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da
+costa, se dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do
+Minho. D'ahi extende-se por toda a raia de leste até ás serras do
+Algarve, baixando-a em direcção poente, para a prolongar com a costa até
+Sines. Depois, interne-se a contornar a bacia do Sado, por Grandola,
+Cercal, Panoias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até Vendas-Novas; em
+seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte-de-Sôr, caíndo sobre o Tejo
+em Abrantes, e caminhando para norte por Thomar, Alvaiazere, Anadia--e
+ter-se-ha encerrado em Aveiro um perimetro que abrange cerca de tres
+quartas partes da superficie total da nação. É a região dos terrenos
+primitivos.
+
+A dos terrenos secundarios compõe-se de dois retalhos isolados. O
+primeiro extende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até
+á Barquinha; entestando d'ahi até Aveiro com a linha anteriormente
+traçada, e vindo ao longo da costa, a descer para o sul, circumscrever a
+serra de Cintra, chegando outra vez a Lisboa. O segundo é constituido
+pelo litoral do Algarve, no pendor sul das serras, até ao mar.
+
+A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciarios, desce pela
+costa, desde a ponta do Bogio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se
+pelas duas zonas divergentes dos valles do Sado e do Sorraia,
+contornados pela linha determinada antes ao delimitar a raia da primeira
+região.
+
+Esta ultima é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas
+provincias ao norte do Douro, a quasi totalidade das duas Beiras e do
+Alemtejo, e boa metade do Algarve. A Estremadura quasi por si só compõe
+as duas segundas regiões--uma ao norte, outra ao sul do Tejo[24].
+
+Na do norte predominam os terrenos cretaceos e jurassicos, formando
+tambem estes ultimos a quasi totalidade do retalho algarvio da segunda
+região. Uma pequena mancha de granitos em Cintra, os basaltos dos
+arredores de Lisboa, e as dunas da costa, desde a Marinha-grande até
+Aveiro, são os phenomenos esporadicos da geognosia d'esta parte de
+Portugal.
+
+Na região do sul do Tejo apenas a Arrabida e S. Thiago de Cacem
+apresentam breves nodoas de terrenos jurassicos; e estes, os terrenos
+modernos formados pelas alluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as
+margens, e os areaes da costa entre o Bogio e o cabo de Espichel, são as
+unicas excepções do vasto lençol da região dos terrenos terciarios.
+
+Na primeira e mais extensa das zonas geognosticas de Portugal tambem o
+Tejo póde dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões differentemente
+caracterisadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, schistosos
+quanto á structura, e primarios ou paleozoicos quanto á edade,
+predominam em massa, envolvendo as rochas eruptivas ou igneas. Porém ao
+norte do Tejo o volume d'estas rochas, exclusivamente graniticas, é
+proximamente egual á dos schistos; ao passo que ao sul, além d'estes
+ultimos predominarem, apparecem não só granitos mas porphyros e
+diorites.
+
+Entre Castello-de-Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o
+maior e mais compacto affloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois
+d'este vem o de Evora, bracejando de um modo irregular, para norte até
+Vimeiro, para nordeste até Lavre, e no lado opposto até Vianna, Aguiar e
+S. Manços. Afinal, as pequenas nodoas de Galveas, de Santa Eulalia, de
+Freia, de Reguengos, da Vidigueira, e de Valle-Vargo a nascente de
+Serpa, completam o systema de affloramentos graniticos da sub-região do
+sul do Tejo. Os porphyros e diorites constituem um longo dorso que vem
+de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcaçovas,
+terminar junto de Cabrella, quasi na raia da região terciaria. Além
+d'esta formação principal, encontram-se destacadas as manchas sporadicas
+de Alter, de Bonnavilla, de Monforte, e as duas mais consideraveis de
+Campo-maior e de Elvas, proximo da fronteira.
+
+Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas
+predomina sobre a dos schistos. Depois do macisso schistoso da
+Guardunha, entre Castello-Branco e o Fundão, transposto o valle do
+Zezere, encontra-se a base alastrada da serra da Estrella, e afinal os
+alicerces de Monte-muro. Os granitos vêem desde a fronteira, entre
+Alfaiates e a Barca d'Alva, pela Covilhan e Taboa ao sul, por Vizeu a
+poente, entestar no Douro, cuja margem esquerda sobe até á raia de Leão.
+Pequenas são as nodoas schistosas na área circumscripta: S.
+João-da-Pesqueira e Villa-nova-da-Foscoa, na margem do Douro:
+Villa-da-Egreja ás origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da
+serra da Estrella.
+
+Porém as abas occidentaes das serras da Guardunha, da Estrella e do
+Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de
+terrenos paleozoicos, uma cortada pelo Zezere, outra pelo Mondego e pelo
+Vouga: são estas zonas que vêem raiar com a região dos terrenos
+secundarios até Aveiro, e com o mar desde Aveiro até â foz do Douro,
+tendo de permeio a facha de dunas da costa.
+
+Ao norte do Douro os schistos predominam para cima da linha
+Regoa-Chaves, os granitos para baixo. Ao longo da costa, desde o Porto
+até á Povoa, encontra-se, destacado, um affloramento de rochas
+eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerez e do Suajo, a
+poente do Tamega, lançando junto a Braga um ramo que vae, por Barcellos,
+a Vianna e até Caminha.
+
+A leste da linha Chaves-Regoa são irregulares e dispersos os
+affloramentos eruptivos: acompanham a margem portugueza do Douro desde
+Bemposta até Miranda; apparecem em dois pontos da extrema fronteira do
+norte; vêem de Montalegre, por Chaves até Valpassos e Torre-de-D. Chama;
+e pela serra do Marão, desde Mondim e Ribeira-de-Pena, por Villa-Pouca e
+Villa-Real, morrer junto ao Douro em Villarinho. Todo o resto, o Marão,
+da Campean a Santa Martha, as alturas á esquerda do Corgo, a maxima
+parte do valle do Tua, e todo o valle do Sabor, são formados pelos
+terrenos paleozoicos.
+
+ [22] V. _As raças humanas_, introd., pp. XXXI-II.
+
+ [23] V. _O Brasil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 1-29.
+
+ [24] V. para a geologia terciaria do Tejo, os _Elem. de Anthropologia_
+ (3.ª ed.), pp. 212-17, podendo cotejar-se o estudo da região
+ portugueza com o da Peninsula no seu todo na _Hist. da
+ civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-XXI.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+IV
+
+A terra e o homem
+
+
+Conhecida a orographia e a geognosia do territorio, brevemente
+indicaremos o systema de caracteres agricolas e climatologicos, ambos
+subordinados aos anteriores, e todos solidariamente ligados para formar
+a phisionomia natural das diversas regiões do territorio portuguez.
+
+A sua antiga divisão em provincias obedecia mais a estas condições
+naturaes do que a moderna divisão em districtos: as causas determinantes
+de uma e de outra são o motivo d'esta differença. As provincias
+formaram-se historicamente em obediencia ás condições naturaes; os
+districtos actuaes foram creados administrativamente de um modo até
+certo ponto artificial. Umas provinham dos caracteres proprios das
+regiões, e a administração limitára-se a reconhecer factos naturaes:
+outros, determinados por motivos abstractos, nasceram de principios
+administrativos e estatisticos (área, quantidade de população, etc.),
+fazendo-os discordar o menos possivel dos limites naturaes, geographicos
+e climatologicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por
+provincias, e não por districtos, o territorio portuguez; deixando para
+o lugar competente o estudo das condições modernas da nação.[25]
+
+A divisão das provincias apoiava-se em factos phisicos de um valor
+eminente. Começando pelo norte, o territorio de além-Douro inscreve duas
+zonas separadas pelo Tamega: a leste, Traz-os-Montes, a oeste,
+Entre-Douro-e-Minho. Além de obedecer, como se vê, á geographia,
+buscando nos rios fronteiras naturaes, a divisão das duas provincias
+consagrava differenças essenciaes: as geognosticas já por nós observadas
+(rochas eruptivas dominando a oeste, schistos a leste do Tamega), e além
+d'ellas as climatericas. Portugal, segundo já se disse n'outro lugar, é
+em geral um amphitheatro de montanhas, levantado em frente do Oceano.
+Esta circumstancia caracterisa para logo as regiões de um modo tambem
+geral, dividindo-as em duas categorias: as maritimas e as interiores; as
+cis e as transmontanas; as que estão directamente expostas á acção das
+brisas maritimas, e os declives orientaes, os valles interiores, e os
+degraus ou socalcos das serras encobertas aos bafejos do mar por
+cumiadas occidentaes sobranceiras.
+
+Esta circumstancia dá caracteres inteiramente diversos ás duas
+provincias do Douro-Minho e de Traz-os-Montes, divididas pelas serranias
+do Gerez e do Marão, que roubam a ultima á acção das brisas maritimas.
+Quem alguma vez transpoz o Tamega, decerto observou a profunda
+differença da paizagem e do caracter e aspecto dos habitantes de áquem e
+de além d'esse rio. O transmontano, vivo, ágil, robusto, destaca-se para
+logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso, tenaz, persistente e
+ingenuo. Além do Tamega o clima é secco (40 a 60% de humidade relativa)
+poucas as chuvas (500 a 1:000 millim. e no estio 70 a 80 apenas), grande
+o calor no fundo dos valles apertados, mas temperado nas alturas;
+intensos os frios hibernaes, que coroam de neve as montanhas e gelam a
+agua pelas baixas (12 a 15° temp. média). Áquem, as brisas do mar,
+estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as
+chuvas copiosas: por isso no Minho o pendor occidental das serras de
+oriente é sarjado pelos numerosos e successivos rios parallelos, cujos
+valles, reunindo-se junto á costa, formam ao longo d'ella a primeira das
+planicies litoraes de Portugal. Habita essa região pingue uma população
+abundante, activa, mas sem distincção de caracter, nem elevação de
+espirito: consequencia necessaria da humidade e da fertilidade. Falta
+essa especie de tonificação propria do ar secco e dos largos horizontes
+recortados n'um céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma
+Attica. As chuvas precipitam-se abundantes (1:200 a 2:000 mill. annuaes,
+e no estio 80 a 200) sobre um chão lavrado de caudaes; a humidade (70 a
+100%) torna flaccidos os temperamentos e entorpece a vivacidade
+intellectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor excessivo
+faz fermentar, á maneira do que succede nas zonas genesiacas dos
+tropicos. Temperado o clima (12 a 15°), sem excessivos afastamentos
+hibernaes, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetaes e de
+ar humido, offerece a imagem de um exercito de laboriosas formigas sem
+cousa alguma de aládo e brilhante de um enxame dourado de abelhas.
+
+O clima determina a paizagem. Além Tamega as louras messes do trigo, os
+pampanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os
+pendores de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no
+inverno coroadas de neves, se recortam no fundo azul do firmamento,
+dando fixidez e nobreza ao quadro, e infundindo o quer que é de elevado
+no espirito. A natureza vive na luz, e a alma sente que os elementos
+teem dentro em si forças que os animam.
+
+Áquem Tamega o scenario muda: a humidade cria em toda a parte vegetações
+abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de
+plantas: mas como o solo é breve, como a rocha afflora por toda a parte,
+e os campos nascem do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do
+granito pelas folhas e ramos decompostos, e nos estuarios dos rios pelos
+sedimentos das cheias, a vegetação é rasteira e humilde, o pinho
+maritimo de uma constituição debil, o carvalho um pigmeu enleiado pelas
+varas das vides suspensas. A densidade da população completa a obra da
+natureza n'uma região onde o vinho não amadurece: o acido picante dá-lhe
+uma similhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou cerveja, e com
+ella, ao genio do povo, caracteres tambem similhantes aos de bretões e
+flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela mão
+dos homens: as necessidades implacaveis da população abundante produzem
+uma cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos,
+circumdados por pequeninos valles, orlados de carvalhos pigmeus,
+decotados, onde se penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto
+formiga a familia: o pae, a mãe, os filhos, immundos, atraz d'uns
+boisinhos anões que lavram uma amostra de campo, ou puxam a miniatura de
+um carro. Sob um céu ennuveado quasi sempre, pisando um chão quasi
+sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos, dominado em
+torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem
+abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não
+podendo despegar-se da terra, como que se confunde com ella; e, com os
+seus bois, os seus arados e enxadas, fórma um todo d'onde se não ergue
+uma voz de independencia moral, embora amiude se levante o grito de
+resistencia utilitaria.[26] A paizagem é rural, não é agricola; a poesia
+dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez
+subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas
+espessas de arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados
+de muros e renques de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausencia de
+um largo folego de ideal, e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e
+acolá, engastado na monotonia da côr dos milhos, um canto do verde
+alegre do linho vem lembrar que tambem no coração do minhoto ha um lugar
+para o idyllio infantil do amor.
+
+ * * * * *
+
+Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira
+litoral, dão-se differenças analogas ás que distinguem o Minho e
+Traz-os-Montes: analogas, dizemos, e não identicas, porque n'esta nova
+região começam a sentir-se as influencias de causas geraes, como são as
+da latitude. A zona anterior estanceia entre os parallelos de 41° e 42°;
+as Beiras descem até 39° 30'. Portugal, inscripto entre 37° e 42°, e
+lançado como uma estreita facha norte-sul, tem na latitude das regiões
+uma causa geral a concorrer sempre com as causas particulares, quaes são
+a altitude, a exposição e a constituição geognostica das montanhas, no
+sentido de determinar os caracteres das suas differentes provincias.
+
+N'esta de que agora nos occupamos, levanta-se ao centro a serra da
+Estrella, a cujo pendor maritimo se chamou Beira-alta, dando-se aos
+declives transmontanos oppostos, reunidos á Guardunha, o nome de
+Beira-baixa. Tres zonas compõem a região das duas provincias: o litoral
+formado pelos estuarios do Vouga e do Mondego, as serranias occidentaes
+ou maritimas, e as orientaes ou transmontanas.
+
+A serra da Estrella é a mais elevada das cordilheiras portuguezas; é o
+prolongamento da espinha dorsal da Peninsula; é a divisoria das duas
+metades de Portugal, tão diversas de phisionomia e temperamento; é
+finalmente como que o coração do paiz--e acaso nas suas quebradas e
+declives, pelos seus valles e encostas, demora ainda o genuino
+representante do lusitano antigo. Se ha um typo propriamente portuguez:
+se atravez dos acasos da historia permaneceu puro algum exemplar de uma
+raça ante-historica onde possamos filiar-nos, é ahi que o havemos de
+procurar, e não entre os gallegos ao norte do Douro, nem entre os
+turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas
+com o sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais
+variadas nações.
+
+O pastor quasi-barbaro d'essas cumiadas da serra a topetar com as nuvens
+(1:800 a 2:000m. de altit.), abordoado ao seu cajado, vestido de pelles,
+seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o descendente dos
+companheiros de Viriato. Por essas eminencias, tapetadas de relva no
+estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem a
+subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê
+gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro,
+rasteiro e roído pelo gado, circumda os altos nús; logo apparecem os
+piornos, as urzes brancas, os carvalhos; depois, já a meia altura da
+encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames de aldeias; afinal,
+na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas
+em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espalhar-se no labyrintho dos
+canaes.
+
+A serra da Estrella, reforçada ao norte pelo contraforte de Monte-muro,
+fecha, com o Marão e o Gerez, uma muralha natural, onde os ventos do mar
+estacam. Apenas cortada pelos valles do Douro e do Tua--duas
+fendas--essa barreira, cujos picos sobem até 2:000m., encerra e protege
+o Portugal do norte, sendo a principal causa das chuvas abundantes e do
+clima creador do litoral de além-Mondego.
+
+O beirão, habitante da encosta occidental onde o ar é mais humido do que
+em Traz-os-Montes (65 a 100%), as chuvas mais abundantes (700 a 1:200
+millim.) e a temperatura identica: onde o castanheiro colossal, o cedro,
+o carvalho e o pinheiro bravo põem na paizagem todos os tons e essa
+grandeza propria de arvores que vivem seculos: o beirão é menos vivo,
+mas mais robusto. Quem divagou por essas terras admirou decerto a
+structura herculea dos seus homens, cuja face, não luzindo com os
+brilhantes reflexos de vida interior, accusa todavia um pleno
+desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anachronicos
+representantes de uma independencia de outras edades,[27] a
+Beira é o viveiro de musculosos trabalhadores, que vão todos os annos,
+pelo estio, lavrar as glebas do sul do Tejo, levemente vestidos com as
+bragas curtas de linho, descalços, com a camisola de lan agasalhando o
+tronco, o barrete phrigio na cabeça, a manta e a enxada ao hombro.
+
+Descendo ao litoral, o beirão é amphibio: pescador e lavrador. A lavoura
+nasce do mar: os carros são barcos, adubos o _molisso_ de algas e
+mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar
+insinua-se pelos canaes retalhando a planicie, em cujo centro, como uma
+arteria, corre placidamente o Vouga. A tres leguas da costa vê-se
+fundeado um barco: as mulheres cozem as redes, ao lado, sobre a terra
+humida e negra, que os bois lavram, ou o cavador abre á enxada. O calor
+(15 a 16), a humidade permanente (65 a 80%), fazem germinar breve as
+sementes, multiplicam as colheitas, e as febres. Essa paizagem deliciosa
+e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche de vivo
+prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das
+montanhas, attrahe-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e
+veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens.
+
+A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrella e dos
+cerros subalternos da Guardunha dá á provincia da Beira-baixa um outro
+aspecto: ha maior seccura no ar, e as chuvas são menos abundantes: os
+olivaes medram melhor, e os hahitantes juntam á vida agricola a
+industrial, tecendo as lans dos rebanhos da serra com a força das
+torrentes que se despenham nas quebradas do valle do Zezere.
+
+Já similhante por muitos lados ao alto Alemtejo, a Beira-baixa é a
+transição da metade norte para a metade sul do paiz.
+
+Caminhemos de oriente para occidente. O Alto-Alemtejo tem o clima de
+Traz-os-Montes; a temperatura média é mais elevada (16 a 17.), porque a
+menor altura das montanhas dá frios menos intensos no inverno; as chuvas
+estivaes são menores tambem (30 a 50 mill.). Fronteira aberta da
+Hespanha, a raia apenas convencionalmente o divide da Estremadura
+castelhana. As mesmas planicies onduladas, as mesmas culturas
+cerealiferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas vinhas,
+os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e do outro da
+fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre,
+porte nobre e seguro, bizarro, folgasão, hospitaleiro e communicativo, o
+alemtejano exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre
+que vive. Não é decerto um grego de Athenas, mas é um grego da Beocia.
+Os seus campos são um granel, os seus montados um viveiro. Quando nas
+longas e alinhadas estradas, entre lençoes de mattas de azinho escuro,
+sob o calor de um sol dardejante, divisamos ao longe uma pequena nuvem
+de poeira, que a luz illumina, e ouvimos o tilintar alegre das
+campainhas e guizos nas colleiras dos machos--é o cazeiro, que a trote
+largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus calções
+de briche preto, vae á feira de Villa-Viçosa em maio, ou á de Evora em
+junho, tratar dos negocios da lavoura. A distancia, vem o arreeiro no
+seu carro toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de
+vinho: logo o pastor com o guarda-mato de pelle de cabra, o cajado ao
+hombro, conduzindo as ovelhas, a vara de porcos, gordos como texugos, ou
+a boiada loura de longas hastes. O sol ardente dá tom a todas as côres,
+vida a todos os movimentos: suffoca-se, a poeira céga, e as bagas de
+suor camarinham na testa. O alemtejano diz pouco, e raro canta; não é
+misanthropia, é indifferença. O idyllio não póde seduzir a quem vive em
+ampla communhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em
+fogo. Apenas, de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas,
+fazendo a vigilia aos seus santos favoritos, não para esquecer um
+trabalho que lhe não dóe, mas para dar largas aos seus amores de um
+momento.
+
+Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto
+á navegação, Guadiana em fóra até ao Algarve, terão sentido ao chegar á
+foz a impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim: de quem deixa
+uma gruta escura por uma planicie luminosa. Breve é a extensão do
+Algarve, desde Villa-Real até Lagos, abrigado pela ponta do cabo de S.
+Vicente; mas esse trajecto sombrio do Guadiana divide duas regiões
+caracteristicamente accentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrario
+do alemtejano, tudo o interessa, de tudo fala, agita-se em permanencia,
+com uma vivacidade quasi infantil. No Algarve não ha o silencio e a
+impassibilidade: ha o movimento constante, o falar, o cantar de uma
+população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados nos seus navios
+costeiros, ora occupados nos seus campos, que são jardins. Se a planicie
+e os longos horizontes das montanhas dão ao espirito a placidez solemne,
+tambem o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado como um
+eirado, está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente,
+meio-tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o
+estio, e no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o
+algarvio desconhece a aspereza da vida: nem os frios o obrigam á
+industria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada para
+comer. Emquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando,
+contrabandeando, crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a
+laranjeira, cuja seiva o sol se encarrega de transformar todos os annos
+em fructos. A alfarrobeira nas encostas da sua serra, a palma pelos
+vallados, pedem apenas que lhes colham os fructos e os ramos; e o
+mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as cargas, para as
+trocar por dinheiro.
+
+ * * * * *
+
+No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortiferas baixas do
+Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos n'essa região desolada; porque
+agora, regressando pela costa acima, o litoral do Alemtejo e a parte
+occidental da Estremadura transtagana partilham com ella os caracteres
+tristonhos e doentios. Entramos na região dos terrenos terciarios: as
+aguas estagnam e apodrecem nas baixas; as populações definham. Ou
+torradas pelo arido suão, que os areaes ardentes não podem suavisar, e
+sem montanhas que obriguem os vapores do mar a condensarem-se; ou
+envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe n'uma
+fermentação permanente, as populações amarellecidas e magras definham,
+curvadas pelo trabalho mortifero das marinhas de sal, ou da cultura
+pantanosa do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas
+baixas do sul. Além, copiosas chuvas e uma humidade creadora; aqui o ar
+secco (500 a 700 mil. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade, 30 a 80%)
+duro e carregado de emanações mephiticas. Além, uma temperatura branda;
+aqui um calor (med. 17°) excessivo. Além, uma população exuberante:
+aqui, as solidões e os areaes nús, matizados pela traiçoeira cevadilha,
+e pelo áloes orgulhoso, levantando com imperio o seu penacho côr de
+fogo. Além, homens laboriosos e familias; aqui tribus esfarrapadas em
+choupanas, tiritando com o frio das sezões n'uma atmosphera de lume:
+mulheres esqualidas, creanças verde-negras, homens na indifferenca de
+desolação, ou na vertigem do crime.
+
+ * * * * *
+
+Entre estas duas regiões litoraes extremas está porém a central, a
+vingar-nos da miseria de uma e da opulencia da outra. Quem desce, de
+Canha e Alcacer-do-Sal até Setubal na peninsula de entre Tejo e Sado, e
+domina, desde o promontorio da Arrabida, a paizagem circumdante, respira
+afinal a longos traços uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não ha
+no reino panorama nem mais bello, nem maior, nem mais nobre, nem mais
+variado. A nossos pés descem as anfractuosidades da serra vestidas de
+espessas matas: as giestas douradas, as bagas carmineas dos medronhos, o
+rosmaninho, a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes.
+Sobranceiros a Palmella, vemos-lhe os muros ameiados: Setubal desenha-se
+no valle encastoada n'um jardim de laranjaes; no fundo quebram-se as
+ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado opposto as collinas da
+fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhaes extendido
+até ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S.
+Vicente e o sul; para leste, Evora de um lado, as campinas do Riba-Tejo
+do outro; para norte, Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; além
+d'ella, Cintra e os montes da Estremadura cistagana, a qual, até ao
+Mondego, fórma a primeira zona extremenha, por onde vamos entrar no
+exame da ultima das regiões do nosso territorio.
+
+O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do
+paiz. Ahi o ar temperado pelas brisas maritimas mantém um grau de
+humidade, (60 a 85%), e as chuvas, regulares sem serem copiosas (700 a
+800 mil. annuaes, e 20 a 30 no estio), uma rega, que fertilisam os
+terrenos sem os tornar gordos, como os do norte. Nem o calor (15 a 16°)
+tisna de verão as vegetações, nem o frio do inverno as atrophia. Por
+tudo isto, a população abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o
+habitante reune á laboriosidade de uma vida agricola a liberdade de uma
+existencia mais ampla. Por tudo isto, além dos caracteres geognosticos
+da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro bravo e o manso, a
+vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o centeio. Desde os
+campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e Alcobaça
+vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e,
+transpondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o
+Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á idéa o typo d'essas
+raças da Africa setentrional, lybios ou mouros, cujo sangue anda
+misturado em nossas veias. A cavallo, de pampilho ao hombro, grossos
+sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os
+rebanhos de touros nas campinas humidas e vicejantes, é como um beduino
+do Nilo. A vasta planicie matizada de povoações e bosques de choupos, de
+salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumiadas das serras,
+tem o caracter das paizagens do Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo
+esqueleto giganteo do Atlas[28].
+
+Como o beirão, tambem o ribatejano reune á vida agricola a maritima ou
+fluvial: é elle quem vem nos seus barcos de _agua-acima_, até Lisboa,
+trazer o seu tributo de cereaes e fructas. Pelo Tejo, o Portugal
+maritimo abraça o Portugal agricola fundindo n'uma as duas phisionomias
+typicas da nação. Rio acima, o Alemtejo de um lado, a Beira do outro,
+por esta fórma se communicam com a população maritima do litoral.
+Lisboa, com Sines ao sul, Aveiro ao norte, eis os pontos cardeaes d'essa
+costa Occidental, d'onde tantas grandes aventuras, tão dilatadas viagens
+se emprehenderam. Capital geographica, Lisboa é tambem a nossa capital
+maritima; e se as viagens e descobertas são o coração da nossa historia
+particular nacional, Lisboa é tambem a nossa capital historica. As
+toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a costa do
+occidente; essas cantigas, monotonas como o ruido do mar, tristes como a
+vida dos nautas, desferidas á noute sobre o Vouga, sobre o Mondego,
+sobre o Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de
+alguma antiga raça, que, demorando-se na nossa costa, pozesse em nós as
+vagas esperanças de um futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a
+conquistar ao mar?
+
+Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos
+embalados pelo incessante murmurio do mar bretão e pelo ciciar das
+florestas druidicas; o carinho da natureza pelo homem, traduzido n'essas
+lendas piedosas em que os animaes falam, os passaros veem fazer ninhos
+na mão dos santos, e a voz das fadas se mistura com o ramalhar das
+arvores e o murmurar das aguas: esse vaporoso e encantador botão da alma
+celtica, porventura desabrochava no espirito nacional portuguez, quando
+a conclusão das guerras da independencia assim o ordenou.
+
+D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druida, o amor ingenuo da
+natureza: «Ó vergonha e grande cubiça dos homens, que por haver as
+desventuras dos metaes cavam tanto a terra que lhe tiram fóra as tripas,
+derribam grandes outeiros, abaixam asperas e altissimas serras no andar
+e olivel dos campos, e não contentes de _estragarem tanto a terra_,
+rompem e furam pelo mar por haverem uma perla--e para esculdrinhar uma
+obra maravilhosa da natureza são timidos e preguiçosos!»
+
+ [25] V. _Portugal contemporaneo_, pass.
+
+ [26] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 183-91.
+
+ [27] V. _Portugal contemporaneo_, (2.ª ed.) II, pp. 51-3.
+
+ [28] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.) p. 232.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+V
+
+A historia nacional
+
+
+D'esta viagem, breve, pallida, e incorrectamente esboçada,
+ficaria--ousamos crêl-o--no espirito do leitor uma impressão por isso
+mesmo verdadeira. Pallida e como que indeterminada, sem fortes côres nem
+linhas pronunciadas, é a phisionomia da nação, quer na paizagem, quer
+nos homens. Nenhum traço profundo distingue a nossa geographia; benigno,
+médio ou temperado é o nosso clima, e tambem o nosso caracter.
+
+Se alguma cousa de facto nos individualisa, é a falta de affirmação do
+nosso genio. Aquellas a que poderemos chamar qualidades peculiares
+nossas, consistem na facilidade com que recebemos e assimilamos as de
+extranhos. Navegadores--e só por si este caracter não imprime em nós um
+cunho distincto dos demais povos maritimos--a maneira por que nos
+aventurámos ao mar, retrata ainda a nossa phisionomia collectiva: fomos
+prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em
+ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando sempre, tenazes,
+mas jámais temerarios[29].
+
+Essa individualidade passiva do nosso genio traduz-se na nossa historia.
+Ninguem busque n'ella movimentos originaes e profundamente
+caracterisados por uma idéa nacional: esperal-o-hia o castigo reservado
+a todas as chimeras. Ninguem busque tampouco o systema de um
+desenvolvimento proprio e organico, obedecendo a leis particulares, e
+constituindo, no seu todo, aquillo a que se chama uma civilisação: por
+esse lado apparecemos indestructivelmente ligados ao corpo peninsular; e
+apesar de politicamente separados, obedecemos ás leis geraes que lhe
+determinam a vida historica. O conjuncto dos nossos pensamentos moraes,
+o caracter dos movimentos que compõem o systema do desenvolvimento das
+instituições, o das condições das classes, e até as linhas geraes da
+nossa vida politica, são apenas um aspecto do systema da historia da
+peninsula iberica. Por isso nós, que, em outro livro,[30]
+tratamos d'este assumpto, não voltaremos agora a occupar-nos d'elle,
+para não fatigarmos o leitor com repetições inuteis. Procuraremos n'esta
+obra determinar o modo particular, proprio ou nacional, com que
+realisámos um programma historico geral, definindo a nossa
+individualidade collectiva; procuraremos tambem indicar os movimentos
+politicos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e
+finalmente mostrar que, sendo a ausencia de caracter nacional
+affirmativo, e a malleabilidade com que recebemos e assimilamos as
+influencias extranhas, o que mais pronunciadamente nos individualisa
+como povo, a independencia da nação não proveiu de factos naturaes,
+porém sim dos actos de vontade dos seus homens. Causas de outra ordem
+houve de certo que vieram dar-lhes um apoio energico, e, não falando
+agora nas maritimas e coloniaes, referimo-nos ás influencias extranhas á
+Hespanha, que por momentos nos pozeram, a nós, seus filhos, n'um estado
+de antagonismo transitorio com o desenvolvimento da historia peninsular.
+É sabido que a nossa primeira dynastia procedia de Borgonha; nos
+primeiros tempos são numerosos os fidalgos e soldados estrangeiros entre
+nós: e as conquistas de Lisboa, de Alcacer, do Algarve, effectuam-se com
+o auxilio de exercitos e armadas forasteiros. Mais tarde veem combater
+ao lado de D. João I os inglezes, com quem já ao tempo de D. Diniz
+celebráramos tratados de commercio, e que, nossos alliados no tempo do
+D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e lettras. D'então
+data a generalisação dos nomes inglezes como Tristão, Jorge, Duarte, que
+se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e gothicos. As
+allianças inglezas repetem-se nos primeiros tempos da dynastia de Aviz,
+até que o desenvolvimento do nosso imperio colonial nos torna soberanos.
+Annexados á Hespanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da
+França, quando readquirimos a independencia. Generaes francezes
+commandam as campanhas da Restauração, patrocinada pela França; generaes
+inglezes, as guerras do principio do seculo subsidiadas pela Inglaterra.
+E duas vezes, quando se tentou chamar a nação á vida eminente da
+sciencia; duas vezes, quando D. João III e o marquez de Pombal
+reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres extrangeiros.
+
+De tudo o que deixamos escripto o leitor decerto comprehendeu já o
+systema de preceitos a que vae obedecer o nosso estudo; e
+affigura-se-nos ser este o caminho verdadeiramente scientifico de
+encarar a historia nacional, despindo-a de illusões patrioticas, e de
+phantasias chimericas. Mal de nós, se, amando do coração a nossa
+independencia, imaginarmos que ella póde manter-se firme sobre um
+alicerce de fabulas, contra a recta e indestructivel verdade da
+sciencia! A independencia dos povos assenta sobre tudo na vontade
+collectiva: tal foi a base da nossa, tal continuam a ser, se com a
+vontade tivermos o juizo correspondente. Sem elle, o querer é apenas um
+capricho.
+
+Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia patria em quatro
+periodos successivos. No primeiro, o da dynastia de Borgonha, não nos
+destacamos ainda bem do systema dos Estados peninsulares: somos um
+d'elles, e a independencia provém exclusivamente do espirito separatista
+da Edade-média personalisado no ciume absolutista dos reis e barões
+portuguezes.--Depois de Aljubarrota, porém, o sentimento de
+independencia nacional torna-se popular, desde que a revolução do Mestre
+d'Aviz o faz coincidir com o interesse particular da região portugueza.
+Entretanto a vida maritima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia
+obedece conquistando o litoral da Africa aos marroquinos, á corrente
+historica peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um
+movimento particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um
+momento Portugal esteve á testa da historia da Hespanha.
+
+A terceira epocha abrange, a nosso vêr, a infeliz empreza do Imperio
+oriental, onde o movimento maritimo nos levou. Os elementos de vida
+propria, formados na epocha anterior, produziram uma colonisação á
+antiga e uma litteratura néo-latina: n'estas duas circumstancias
+provavamos faltar-nos uma fibra de intima originalidade nacional. A
+perversão dos costumes, a vastidão das emprezas, o limitado dos nossos
+meios, os erros politicos, finalmente, condemnam-nos á perda da
+independencia.--Se na quarta e final das epochas da nossa historia
+voltamos a reganhal-a, a nossa vida apparece, comtudo, outra. Ao imperio
+oriental perdido, vem a exploração e colonisação do Brazil
+substituir-se, dando um ponto de apoio externo ao pequeno corpo europeu;
+e mais tarde, perdido a seu turno o Brazil, voltamo-nos agora, a vêr se
+a Africa póde dar-nos os meios de custearmos as despezas de um paiz
+pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os encargos cada
+vez maiores do machinismo nacional. Hollanda do extremo occidente,
+radicada no corpo da Hespanha, como ella o está no corpo germanico, só
+n'um ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma
+independencia excepcional; só á custa de recursos coloniaes poderemos
+talvez satisfazer as multiplas e dispendiosas exigencias da organisação
+economica, scientifica e moral, hoje inseparaveis e indispensaveis á
+existencia de uma nação.[31]
+
+ [29] V. _O Brazil e as colonias portuguezas_ (3.ª ed.) pp. 2-6.
+
+ [30] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.).
+
+ [31] V. _O Brazil e as colon. port._ liv. IV-V, e
+ _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.) liv. VI, 1, 3.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+LIVRO SEGUNDO
+
+HISTORIA DA INDEPENDENCIA
+
+(DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385)
+
+
+ «He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas
+ razõoes, per propria invençom achadas, mas come aiumtador em huum
+ breve moolho, dos ditos dalguns que nos prouguerom.»
+
+ F. LOPES, _Chr. de D. Pedro I_.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+I
+
+A separação de Portugal
+
+
+O condado portucalense, creado nos ultimos annos do XI seculo a favor do
+conde borguinhão D. Henrique, genro de Affonso VI, pouco tempo existiu
+sob o regime de uma vassallagem indiscutidamente reconhecida. Era essa a
+epocha em que a Hespanha tendia a constituir-se n'um systema de Estados
+independentes, á medida que successivas regiões iam saíndo de sob o
+dominio musulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos
+seus actuaes alliados;[32] e o condado portucalense obedecia a esta
+tendencia geral, no empenho que o seu conde não mais encobriu desde a
+morte do sogro.
+
+É com effeito da data do obito de Affonso VI que deve contar-se a éra da
+independencia de Portugal; embora por largos annos ella seja mais uma
+ambição do que um facto: embora essa ambição traduza um pensamento que
+os acontecimentos posteriores da historia impediram se realisasse.
+Qualquer que fosse o valor dado no XI seculo á expressão geographica de
+_Portucale_, é facto provado por todas as memorias e documentos d'esses
+tempos, que para ninguem deixava de considerar-se o territorio de entre
+Minho e Mondego como parte da Galliza. O facto da constituição do
+condado de nada vale contra esta opinião; porque demasiado se sabe que a
+formação dos Estados medievaes, na Peninsula e fóra d'ella, jámais
+obedecia ás prescripções geographicas ou etimologicas. Não se attribua
+pois a causas d'esta ordem, nem á consciencia de uma solidariedade
+nacional, o facto da desmembração da Galliza dos fins do XI seculo. A
+scisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem politica.
+
+Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o
+principio da vitalidade da nação portugueza, durante estas primeiras e
+ainda indecisas epochas da sua existencia. A solidariedade nacional
+espontanea existia de facto para os gallegos; e desde que a Galliza fôra
+dividida pela politica em duas, áquem e além Minho, restava saber qual
+d'essas metades tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de
+independencia, commum a todos os membros ainda então disconnexos do
+corpo peninsular.
+
+Varias causas concorriam para attribuir este papel á metade portugueza
+da Galliza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal
+do conde portuguez. Circumstancias d'esta ordem eram decisivas n'uma
+epocha em que a anarchia systematica da constituição da sociedade fazia
+principalmente depender os destinos immediatos d'ella da perspicacia ou
+da bravura dos seus chefes. Nada ha de commum entre a vida d'estes
+tempos e a dos posteriores: e n'um certo sentido póde até dizer-se que
+os factos de ordem politica são independentes dos de ordem social,
+porque a sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por
+elle apenas) obedece ás consequencias do desordenado capricho dos actos
+e caracteres dos chefes militares que a governam, sem propriamente a
+representarem.
+
+Nos primeiros tres seculos, isto é, na primeira epocha da historia
+portuguesa, a independencia é um facto originado no merecimento pessoal
+dos chefes militares dos barões de áquem Minho. Nacionalidade
+propriamente dita, não a ha; ou pelo menos não nol-a revelam os
+monumentos historicos, unanimes, tambem, em revelar uma ambição
+collectiva ou social que se estende a toda a Galliza. Ao merecimento
+pessoal reune-se, nos primeiros monarchas portuguezes, a circumstancia
+de serem os interpretes d'este sentimento. Por isso a tendencia
+permanente e o principio claramente definido da politica portugueza, nos
+primeiros seculos, é unificar a Galliza, constituindo a noroeste da
+Peninsula um Estado tão homogeneo, como o Aragão ou a Navarra a
+nordeste.
+
+N'este proposito se filiam todas as guerras civis--se este nome convém
+ainda aos conflictos entre Portugal e Leão--e as repetidas allianças dos
+barões gallegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com
+que os reis portuguezes transpõem armados as aguas d'esse rio, o se
+apossam por varias vezes dos territorios da Galliza leoneza, são provas
+evidentes da opinião exposta.
+
+Não quiz a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento
+politico, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galliza, para
+usarmos de expressões modernas; antes ordenou que os limites
+convencionaes do condado portucalense apenas inscrevessem o ponto de
+partida da formação de uma nação, cujo caracter, ulteriormente definida,
+proveiu principalmente da phisionomia geographica da região; de uma
+nação, repetimos, que veiu a perder a tradição d'essa primitiva origem,
+desde que o genio das populações de entre Mondego e Tejo sobrepujou o
+das do norte, na direcção e impulso dados á vida collectiva portuguesa.
+
+Se n'esta primeira epocha da nossa historia o pensamento occulto que
+dirige com maior ou menor consciencia a politica, é incontestavelmente o
+da hegemonia de Portugal na Galliza, seria absurdo suppôr que, ao lado
+d'este principio, decadente desde certa epocha, se não fossem tambem
+manifestando de um modo correlativo, e cada vez mais pronunciado, os
+symptomas da deslocação do centro vital da nação.
+
+A circumstancia que mais decisivamente determina este caracter da nossa
+historia primitiva é a conquista dos territorios sarracenos de áquem
+Mondego, levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxilios do
+suzerano de Leão. É este movimento que, principiando por quebrar os
+laços de solidariedade entre os gallegos leonezes e os portugueses, vae
+gradualmente addicionando a estes ultimos os _Lusitanos_ (seja-nos
+licito dizer assim, para mais claramente definir o nosso pensamento) até
+ao ponto de os ultimos predominarem na phisionomia posterior da nação,
+transferindo de Guimarães e de Coimbra, para Lisboa, a capital do reino:
+fazendo substituir á vida rural, primeiro quasi exclusiva, a vida
+commercial e maritima depois predominante e quasi absoluta.
+
+A primeira epocha da historia portugueza offerece pois á observação do
+critico dois movimentos[33], oppostos n'um sentido, concordes em outro,
+que é o da affirmação positiva da independencia. Mas, se essa afirmação,
+terminante nas guerras leonezas, e tambem nas sarracenas, exprime de um
+lado a politica da hegemonia na Galliza, do outro exprime, de um modo
+todavia inteiramente inconsciente e espontaneo, uma tendencia contraria.
+É a da formação de uma nação _lusitana_, de que a Galliza portugueza
+desce á condição de provincia ao norte, como o Algarve, mais
+propriamente turdetano, vem a sel-o ao sul. O entre Douro e Guadiana,
+isto é, a espinha dorsal da Estrella, ladeada pelas Beiras ao norte,
+polo Alemtejo a sul, pela Estremadura a poente: eis ahi o que, logo
+desde o XIV seculo, começa a representar o corpo homogeneo da nação
+portugueza.
+
+ * * * * *
+
+No Portugal primitivo, a politica da hegemonia na Galliza não se
+fundava, porém, sómente em uma indeterminada ambição collectiva. Era um
+pensamento decisivo e fixo dos monarchas, e trazia origens tão antigas
+como a propria constituição do condado portucalense.
+
+Creado por uma desmembração da Galliza, o condado cedido ao borguinhão
+não é natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do principe. Como
+as almas que, desorientadas pelas extravagancias do barbaro
+christianismo medieval, viviam n'um estado de aspirações nebulosamente
+infinitas: assim a ausencia de um criterio fixo, intellectual ou moral,
+e a lei da pura força em que existiam, lançavam os barões n'uma vida de
+aventuras, cujo criterio unico era a sua ambição, cujo unico limite era
+o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonez era, para
+o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades.
+
+Logo porém que Affonso VI morreu, deixando um vasto espolio a dividir,
+D. Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a
+cadeia da vassallagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da
+gratidão para com um sogro que tanto favorecera o conde, é d'esta éra
+que, a nosso vêr, data a independencia de Portugal: e não da éra, de
+resto indecisa e impossivel de determinar, em que Affonso Henriques
+tomou para si o titulo de rei. É dar uma demasiada importancia ao facto
+exterior e secundario do titulo, o fazer d'elle o symbolo da
+independencia da nação. Apesar de rei, D. Affonso Henriques prestou
+vassallagem: e a sua monarchia não é, de facto, mais nem menos
+independente, como monarchia, do que o condado de D. Henrique, ou o
+infantado de D. Thereza. A força e não a definição de um dominio, só
+effectivo quando se estriba nas armas, eis ahi o que exclusivamente
+caracterisa os movimentos dos seculos XI e XII.
+
+Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o
+sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao dominio sobre os
+territorios herdados ou conquistados, levara-a Affonso VI comsigo para o
+tumulo; e entre os dois herdeiros rivaes, D. Urraca e o rei de Aragão, o
+conde portugalense tinha um logar bem preparado para exercer a sua
+astuciosa influencia, e para impôr condições e preço a uma alliança que
+ambos egualmente ambicionavam.
+
+Passemos longe d'essas chronicas de perfidias, de violencias, de
+adulterios e barbaridades que constituem a historia da herança de
+Affonso VI. Como os generaes de Alexandre, os principes da Peninsula
+retalham o manto do imperador: e a Edade-média, tão phantasiosamente
+pintada com traços de nobreza e galhardia, não é de facto menos corrupta
+e asquerosa do que a edade dos satrapas do Oriente. A ferocidade é mais
+violenta, a luxuria menos requintada, a perfidia mais ingenua, porque os
+homens são verdadeiramente barbaros, e não gregos barbarisados[34].
+
+Do pacto de alliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o
+engrandecimento do condado, para o norte na Galliza e para leste ao
+longo da bacia do Douro, abrangendo Tuy, Vigo, Santiago, por um lado,
+Zamora, Salamanca, Toro e até Valladolid pelo outro. A divisão e
+demarcação do novo Estado chegou a fazer-se com a possivel solemnidade,
+e com a concorrencia de barões leonezes e castelhanos. Era a definição
+de um Portugal que a historia não consentiu se mantivesse.
+
+N'este convenio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as
+pretenções dos soberanos portuguezes á posse da Galliza, e d'aquella
+parte da Castella-velha geographicamente denominada Terra-de-Campos:
+territorios que o conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da
+herança de Affonso VI. Tres annos apenas gosou o conde a posse d'esses
+seus dilatados dominios. Morrendo, a mesma historia de ignominias,
+adulterios e barbaridades ia assignalar o governo de sua viuva herdeira,
+como tinha assinalado o da viuva do conde Raymundo. Eram irmãs tambem,
+no caracter e nos appetites sensuaes, as duas filhas do D. Affonso VI.
+
+Morrendo, o velho conde portuguez, ao sitiar Astorga, chamou para junto
+de si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições: «Filho, toma esforço
+no meu coração! Toda a terra que eu deixo, que é d'Astorga até Leão e
+até Coimbra, não percas d'ella cousa nenhuma, que eu a tomei com muito
+trabalho. Filho, toma esforço no meu coração! e sê similhante a mim, e
+sê companheiro dos fidalgos e dá-lhes todos os seus direitos, aos
+concelhos. Filho, toma esforço no meu coração!»
+
+Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituida
+nas suas duas faces parallelas e correlativas: a nobreza, os concelhos.
+«E depois que houve castigado o filho d'estas cousas e outras muitas que
+aqui não dizemos, morreu.»
+
+ * * * * *
+
+A viuva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde gallego
+Fernando Peres, deu com os seus escandalos pretexto para uma revolta,
+que poz em risco a conservação dos vastos dominios herdados de seu
+marido. Assim tambem succedera a D. Urraca, perdida de amores pelo conde
+de Trava.
+
+Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente
+dissolutos da Edade-média a mancebia não era caso que offendesse o pudor
+particular nem publico: os amantes das princesas offendiam, porém, o
+ciume dos seus collegas em fidalguia; e o poder effectivo de que um
+d'elles dispunha, á sombra do amor que o preferira, enchia de inveja e
+odio os companheiros.
+
+As memorias do tempo retratam-nos D. Thereza como uma mulher sagaz, viva
+e bella. A astucia combinava-se no seu espirito com um amor que a levava
+a _comprometter-se_, como diriamos na nossa linguagem moderna. Uma vez,
+na cathedral de Vizeu, apresentou-se com o amante, no meio da egreja
+apinhada de povo, e em frente do prelado que prégava. A authoridade dos
+bispos corria então parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de
+Vizeu não duvidou dizer á rainha, em voz alta, do pulpito ou dos degraus
+do altar, que abandonasse o amante ou se casasse: era um escandalo
+aquella união, uma vergonha proceder de tal modo. A condessa, vermelha
+de colera e confusão, fugiu rapidamente da egreja seguida pelo amante.
+
+Porque não succederia ao escandalo a vingança, para não quebrar a
+constante alliança da impudicicia e da crueldade, dominantes na
+Edade-média? Porque naturalmente as invectivas do bispo traduziam a
+força do partido dos invejosos e rebeldes, que já faziam do moço filho
+de D. Henrique um pendão de revolta contra a viuva apaixonada. Nem por
+tão pouco se affligiria a consciencia do bispo, pois o clero demasiado
+ouvia tambem os conselhos da carne, e os amores sacrilegos eram tão
+frequentes como os amores livres ou adulterinos.
+
+A princeza não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais
+tarde a vingança. Beijos lascivos, perfidias indignas e barbaridades
+ferinas, eis os elementos que constituiam a mulher da Meia-Edade. Os
+dotes femininos eram naturalmente pervertidos por um ambiente de
+brutalidade anarchica nos sentimentos e nas acções; e, quando a mulher
+dispunha da aucthoridade e da força, ou como a Fredegonda dos Merowigues
+cevava em sangue a sua féra natureza, ou satisfazia n'uma impudicicia
+desesperada as necessidades sensuaes do seu temperamento. Nem a
+crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza
+que n'elles dá o predominio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos
+nas mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse
+subalternisada á ambição e aos calculos politicos, ou á bravura e ás
+façanhas guerreiras.
+
+Não se imagine, porém, a mulher da Edade-média um ser apenas formado de
+crueldade e amor; menos se supponha D. Thereza uma similhante creatura.
+A condessa, infanta ou rainha de Portugal--porque de todos estes titulos
+usou--era tambem sagaz e astuta, qualidades que o filho veiu a herdar
+com o sangue. Não tinha o animo varonil de uma amazona, mas tinha a
+perspicacia e o juizo proprios dos principes d'esses tempos. Sabia
+moderar a colera e engulir affrontas como a de Vizeu, quando não podia
+vingar-se d'ellas. O amor traduzia apenas uma exigencia dos sentidos,
+deixando livre e independente a acção da intelligencia. No meio das
+agitadas circumstancias do seu breve governo, não deixou abandonadas as
+conveniencias proprias, como dona e senhora do Estado portuguez.
+
+Muitas vezes se lêem descripções de uma vida sentimental e heroica, em
+que as mulheres andam loucas de paixões poeticas, e os homens, typos de
+nobreza e audacia, são victimas dos conflictos do amor e da honra. Não
+ha nada mais differente da verdadeira, do que essa Edade-média das
+operas. A carnalidade desenfreada, o cynismo e a perfidia, uma frieza
+sempre calculadora, uma ambição feroz, uma avareza sordida, uma
+corrupção de todas as fontes da vida moral: eis ahi o que de facto
+constitue a vida aristocratica da Edade-média. Onde está a causa de
+tamanhas desordens? Está na coexistencia e no conjuncto de condições
+barbaras e de tradições cultas. D'onde provém a illusão com que muitos
+suppozeram bellezas espontaneas nos caracteres, e nobres dedicações nos
+actos, creando com a phantasia um falso quadro de encantos? Da
+ingenuidade dos typos barbaros.
+
+Ha, com effeito, na natureza espontanea o quer que é de seductoramente
+bello, que nos chama para uma região de deleites inconscientes: assim
+todas as descripções das sociedades primitivas produzem em nós uma
+impressão vivificante, e desde logo somos levados a engrandecer e
+nobilitar os homens ainda não corrompidos pelas aberrações da
+civllisação. É mistér porém observar que taes homens primitivos não são
+os do XI seculo; que na Edade-média existem e vivem, principalmente por
+via da Egreja, todas as tradições da cultura antiga; e que a conjuncção
+da barbarie e do requinte lança nos caracteres uma semente de perversão,
+prompta a rebentar em actos monstruosos, tão corrompidos no principio,
+como barbaros na fórma. É popular o sentimento de tédio e nojo para com
+o imperio de Byzancio; pois as causas originarias d'essa repugnancia são
+tambem communs ás sociedades néo-latinas, ou néo-godas da Hespanha.[35]
+Só variam as proporções: os elementos combinados são os
+mesmos. No Oriente a cultura é maior, os costumes mais requintados: aqui
+é maior a rudeza, e a feição barbara predomina. Por isso os vicios
+procuravam, além, esconder-se sob o manto das convenções; e aqui se
+expandem ingenua e francamente, á luz de uma ignorancia quasi primitiva.
+
+ * * * * *
+
+Assim que D. Urraca morreu. Affonso VII, depois de reconquistadas ao
+visinho aragonez as cidades de Castella, olhou para oeste, afim de
+reconstituir de novo a monarchia leoneza, fazendo regressar ao seu
+dominio os territorios de Campos e da Galliza. A invasão e a guerra
+duraram apenas uma campanha; e a amorosa Thereza curvou-se ao imperio
+das condições, reconheceu o facto da conquista, e confessou com
+humildade a vassallagem ao sobrinho leonez.
+
+Portugal retrahia-se aos primeiros limites--do Minho ao Mondego--do
+condado creado por Affonso VI; e os calculos do conde borguinhão
+frustravam-se, depois de menos de vinte annos de indeciso dominio.
+
+Esse infortunio da _regina_ de Portugal acabou de decidir os invejosos
+do conde gallego, seu amante. As tendencias de sublevação, até ahi
+sopitadas ou mal definidas, tomaram corpo e unidade; e a revolta
+declarada dos barões achou nos desastres de 1127 motivo sufficiente para
+se erguer em campo aberto.
+
+Capitaneava a revolta o infante portuguez. Não é esta a unica occasião
+em que vemos erguerem-se em armas os filhos contra os paes, os irmãos
+contra os irmãos, como prova de que, se os sentimentos andavam
+pervertidos pelos instinctos brutaes, ou vinculos de familia eram apenas
+laços tenues que se rompiam ao impulso de qualquer exigencia da colera
+ou da ambição. Nem sentimentos, nem instituições fixas: uma anarchia
+total no individuo e na sociedade, uma desordem acabada na moral e no
+direito, eis ahi as bases historicas da Edade-média, cujo deus é a força.
+
+D. Affonso Henriques, o primeiro rei portuguez, ou capitaneava ou era o
+pendão apenas--hypothese que a sua curta edade justifica--da revolta que
+tinha por chefes o arcebispo de Braga D. Paio, Sueiro Mendes o _grosso_,
+Ermigio Moniz, Sancho Nunes, genro da _regina_ Thereza, e Garcia Soares.
+Aos pactos de Braga succedeu o encontro de Guimarães. A rainha, abraçada
+ao seu amante, vinha seguida por barões fieis de áquem, e pelos barões
+de além-Minho, que se tinham submettido a Affonso VII[36].
+A batalha decidiu-se pelo filho, e a rainha fugiu a esconder no condado
+do amante o desespero da derrota. De protectora, os acasos da guerra
+faziam-na agora protegida; e a historia deve ainda ao conde gallego a
+justiça de mencionar que a não abandonou, quando a viu despojada do
+poder e do titulo. Os prazeres da paixão acaso suavisariam á formosa
+filha do grande Affonso a infelicidade das armas, e porventura tambem o
+desespero maternal, se é que os vinculos de sangue tinham para a mãe um
+merecimento superior ao que tinham para o filho.
+
+No seio da barberie corrupta em que se revolvia, a Edade-média tinha,
+porém, não só o instincto dos deveres, innato nos homens, como o medo
+dos castigos divinos prégados por uma religião que até para o proprio
+clero baixára ás condições de um quasi fetichismo. As lendas contam que,
+vencedor, o filho encarcerára a mãe, e põem na bocca de D. Thereza este
+anathema terrivel: «Affonso Henriques, meu filho, prendeste-me e
+metteste-me em ferros e exherdaste-me da minha terra que me deixou meu
+padre, e quitaste-me de meu marido: rogo a Deus sejas assi como eu sou,
+e porque metteste ferros nos meus pés, quebradas sejam as tuas pernas
+com ferros. Mande Deus que isto assim seja!» E o anathema cumpriu-se em
+Badajoz, annos depois, porque Deus vingador não perdoava os crimes
+frequentes dos filhos contra os paes. Assim pensavam esses homens simples.
+
+Á batalha de Guimarães ligava-se, porém, um alcance maior do que o de
+uma simples questão de familia: era a ruptura de solidariedade entre as
+duas metades da Galliza, e a victoria da portugueza sobre a leoneza. Era
+o primeiro symptoma de uma direcção nova, que se ia imprimindo na vida
+historica nacional. Essa ruptura da solidariedade, e a força da
+monarchia leoneza sob Affonso VII, serão dois motivos concorrentes para
+impedir que as tentativas do primeiro rei portuguez tenham sobre o norte
+resultados efficazes.
+
+Logo depois de Guimarães, Affonso Henriques, preferindo o papel de
+invasor ao de atacado, procura reivindicar as fronteiras perdidas em
+1127 por D. Thereza. Duas vezes invade a Galliza transminhota: duas
+vezes é forçado a recuar, em 1130 e em 1132; mas depois de Guimarães,
+depois da lide de Val-de-Vez em que os portuguezes venceram, já a
+independencia de facto estava conquistada. Sellados os preliminares de
+paz, Affonso Henriques occupou-se em _acalmar_ as terras do seu senhorio
+afim que nunca «lhe acontecesse outro tal desavisamento,» e conquistou
+«todallas fortalezas de portugal assy como se fossem de mouros.»
+
+Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira
+porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as
+condições necessarias para consolidar uma independencia até ahi
+precaria. Era audaz, temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem
+tão commum no tempo, como a muitos acaso pareça. Fraco general, ao que
+se vê, porque as batalhas feridas com as tropas leonezas perdeu-as
+sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando um troço de soldados, caía
+de improviso sobre um logar, e a furia irresistivel do ataque deu-lhe a
+maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das emprezas o assustava,
+nem as distancias o impediam de acudir a um tempo, do extremo norte,
+quasi ao extremo sul no paiz. A estes dotes militares reunia outros não
+menos valiosos, na precaria situação em que se apossára do reino. Era
+secco, astuto, friamente ambicioso, sem chimeras, nem illusões. Era um
+espirito agudo e pratico, e isso fazia boa parte da sua força. Mal dos
+politicos ao mesmo tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais
+leve brisa do cannavial, assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia,
+logo que a sorte lhe era adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á
+facilidade astuta com que se humilhava, respondia logo a teima perfida
+com que se rebellava. Isto fazia-o indomavel. Tinha o quer que é de
+fugitivo, na sua politica e no modo porque fazia a guerra. Ubiquo
+militarmente, era nos negocios um proteu. Os seus amigos, leonezes,
+sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e humilde quando se
+achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava todas as
+durezas; para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os
+tratados, com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural, que
+chegavam a espantar a propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem
+sentimentos de familia, nem odios pessoaes, nem vinganças estupendas:
+nenhuma chimera, nenhuma grande ambição, nenhum sentimento poetico,
+enchiam a sua cabeça, estreita, e inteiramente occupada pela idéa fixa
+de consolidar a sua independencia. O predominio absoluto de uma idéa
+pratica, servida por uma intelligencia lucida, por um caracter sem
+grandeza, e por uma valentia provada, tornavam-no invencivel, ainda
+mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o similhante a uma lamina de
+aço, um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida
+quando livre, e impossivel de manter curvada desde que se acha solta. O
+seu pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rigeza do bronze nem
+o peso do chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu
+refoio: assaltado, investia, despedaçando tudo com as fortes prezas.
+Perseguido, fugia. Não tinha a nobreza do leão, nem a astucia ferina do
+tigre: possuia apenas a tenacidade brava e bronca do javali. Um fraco
+apenas lhe notam, embora os actos da sua vida não denunciem que esse
+defeito o prejudicasse muito: gostava de ser adulado.
+
+Affonso Henriques foi quem verdadeiramente consummou a separação de
+Portugal, não pelos meritos proprios apenas, mas porque a direcção
+politica do reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos factos no
+sentido de definir de um modo positivo a independencia da nação.
+
+Uma parte dos barões da Galliza leoneza, sublevados contra o suzerano,
+acolheu-se em 1137 sob a protecção de Affonso Henriques, prestando-lhe
+vassallagem, e, assim, de novo se levantou a questão das fronteiras do
+norte de Portugal. Affonso VII não pudera, nos annos anteriores, descer
+a rebater as invasões do turbulento visinho, occupado como estava a
+debellar o navarro; agora, porém, tinha já os movimentos livres, e
+apressou-se a submetter a Galliza. Por seu lado Affonso Henriques era
+solicitado a defender a fronteira austral, onde os sarracenos tinham
+vindo n'uma álgara feliz derrocar o castello de Leiria. É por estes
+annos que o destino de Portugal se debate entre a Lusitania e a Galliza,
+quando a actividade do guerreiro é solicitada, ora do norte contra os
+leonezes, ora do sul contra os sarracenos. Oscillante ainda e indeciso,
+breve assistiremos ao definitivo pender da balança no sentido do
+alargamento das fronteiras austraes.
+
+A simultaneidade do ataque leonez e sarraceno em 1137 obriga Affonso
+Henriques a curvar a cabeça, assignando as pazes de Tuy, nas quaes
+desiste das suas pretensões de além-Minho, confessando, ao mesmo tempo,
+vassallagem ao suzerano de Leão. _Ut arundo fragilis ferebatur_: vergava
+como o cannavial o principe, a este sopro da fortuna adversa! Desistia
+de tudo, da ambição e até da independencia. Quem se fia, porém, na
+palavra do pertinaz batalhador? Defendido o seu senhorio por norte, não
+se demora a persistir n'uma guerra leal mas perigosa. Espera melhor
+oocasião para a desforra; porque lhe não custa subscrever a um tratado,
+a que não pensa decerto submetter-se, senão emquanto a força das cousas
+a isso o violentar. Não assim os fronteiros de nordeste que, apesar das
+pazes de Tuy, continuam a guerra por conta propria: tão frageis eram
+ainda os laços, que reuniam os vassallos ao conde soberano de Portugal!
+De Tuy, o leonez, subindo pelo valle do Lima atravez da Galliza
+portugueza que assolára, vae encontrar as mesnadas dos ricos-homens
+sublevados nos Arcos-de-Val-de-Vez. Resam as tradições de um torneio ou
+_bufurdio_[37] em que os cavalleiros inimigos batalharam
+por seus exercitos, vencendo os portuguezes na estacada, onde numerosos
+combatentes ficaram mortos, segundo as regras da cavallaria. Apesar de
+victoriosos, porém, os portuguezes não podiam resistir a Affonso VII,
+tanto mais que D. Affonso Henriques desistira de continuar uma guerra
+improficua.
+
+Que fazia entretanto o principe? Tratava da desforra de Leiria; e em
+1139 levava a cabo o temerario fossado de Ourique, pagando uma estocada
+com outra; e preludiando esse duello de morte, entre Portugal e o
+Al-Gharb sarraceno, com um golpe que foi, com a rapidez penetrante do
+raio, ferir o corpo musulmano quasi junto a Chelb ou Silves, o coração
+da Hespanha austral. A esta aventura temeraria, mas feliz, ia succeder
+em curtos annos a empreza mais seria e importante da conquista da linha
+estrategica do Tejo: facto de um alcance capital, n'esse periodo em que
+o futuro destino da nação fluctuava ainda indeciso entre a Galliza e a
+Lusitania.
+
+ * * * * *
+
+Desde que o antigo condado portucalense, batido na sua tendencia de
+absorver a Galliza, conquistava a região de entre Mondego e Tejo,
+chegando a avançar padrastos ameaçadores para o sul, era evidente que um
+novo Estado se formava; e esse Estado nascia dos actos proprios do conde
+portuguez, não de concessões ou beneficios do suzerano. Esse Estado era
+pois um reino, uma vez que a esta palavra andava ligada, de um modo mais
+ou menos definido, a idéa da independencia, segundo o direito politico
+dos godos. Foi, portanto, quando o plano de se apossar do sul do reino
+começou a occupar o espirito do guerreiro, orgulhoso pela victoria de
+Ourique, isto é, em 1139 ou 1140 (a erudição não conseguiu determinar a
+éra) que Affonso Henriques tomou para si o titulo de rei. O caso não era
+novo, porque por vezes a mãe usára chamar-se rainha de Portugal;
+dava-se, porém, agora a circumstancia de que esse titulo, embora
+juridicamente usurpado, o era com tamanho fundamento, que nunca mais
+deixou de ser o dos soberanos portuguezes.
+
+A razão politica da independencia, evidente hoje para a critica, não o
+estava de certo para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a
+ambição, e o titulo a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não
+tinha de certo a consciencia de que isso importasse o primeiro passo no
+caminho da formação de uma nova nação peninsular. Ferido, tirára do
+sarraceno uma desforra completa; mas faltava ainda apagar a nodoa de
+Tuy, rasgar esses tratados que ligavam, como vassalla, á corôa soberana
+de Leão, a sua corôa ainda mal assente, o seu reino precario ainda. Uma
+volta da fortuna podia outra vez precipital-o, das eminencias onde as
+suas ambições o erguiam, na humilde condição de conde de Portugal.
+
+Em Val-de-Vez Affonso VII assignára os preliminares de uma paz que os
+acontecimentos dos annos posteriores não tinham consentido se traduzisse
+n'um tratado definitivo; e agora não era já licito ao leonez exigir, nem
+ao portuguez acceitar as duras condições de uma perfeita vassallagem.
+
+O papado exercia então na Europa uma especie de suzerania espiritual
+sobre os principes christãos; porque no meio d'esses guerreiros, bravios
+e timidos como selvagens, o sacerdote tinha verdadeiramente o poder de
+condemnar em nome de Deus.[38] Uma excommunhão valia muitas
+vezes mais do que um exercito. Assim, o cardeal Guido, legado do papa, é
+quem em 1143 dicta em Zamora, onde Affonso Henriques foi vêr-se com o
+imperador (d'esse titulo usava Affonso VII) as condições do tratado de
+paz. O portuguez desiste ahi das suas pretenções ás fronteiras cedidas
+por D. Urraca, e Affonso VII por seu turno reconhece a independencia do
+novo reino e o titulo do seu soberano. Esta soberania e independencia
+não eram, porém, absolutas. Na jerarchia feudal havia graus diversos de
+suzerania e vassallagem correspondente; e os tratados de Zamora
+alteravam a natureza, mas não quebravam de todo os laços que prendiam
+Portugal ao corpo da grande monarchia peninsular. Affonso Henriques
+ficava sendo um rei, mas o seu reino nem por isso deixava de fazer parte
+do imperio da Hespanha; nem elle proprio, por tal fórma, deixava de
+ficar n'uma situação subalterna perante o imperador. Era uma vassallagem
+politica, substituindo a pura vassallagem pessoal do regime anterior. O
+direito feodal não se obliterára, porém, ainda ao ponto de prescindir de
+uma obrigação pessoal; e por isso o soberano portuguez continuava a ser
+vassallo do visinho, não como soberano, mas como senhor de Astorga, para
+esse effeito doada a Affonso Henriques.[39]
+
+Estas subtilezas propriamente byzantinas, inspiradas pela politica
+ecclesiastica que imprimia o seu cunho ao feodalismo, formavam um
+systema de enganos reciprocos, de mentiras mais ou menos sinceras, com
+que se revestiam os actos brutaes da força, e os actos perfidos da astucia.
+
+Affonso Henriques, _regendi imperii jam bene sciolus_, mestre acabado na
+arte de enganar e na arte de combater, tinha já formado o seu plano, e
+por isso subscrevia sem reserva a todas as exigencias do tratado. A
+independencia e a soberania que elle lhe dava eram apenas pessoaes e
+vitalicias, e nas idéas aristocraticas a hereditariedade era inseparavel
+do dominio. O seu reino era pois um falso reino, desde que, não havendo
+no direito politico dos godos outra base para a successão, além da
+electiva, ou Portugal seria por sua morte absorvido no imperio
+hespanhol, em via de cristalisação, ou o filho de Affonso Henriques
+teria de recomeçar a debater com as armas a questão vital da
+independencia. Os termos do tratado decerto o não illudiam,
+garantindo-lhe apenas pessoalmente a independencia e a soberania; e se
+da parte do leonez houvera o intento perfido de o enganar, elle
+preparava uma licção ao mestre, e tão eloquente como fôra cruel a licção
+que dera ao sarraceno.
+
+Entre os dous litigantes o italiano perspicaz foi provavelmente o
+conselheiro de ambos. Guido, como o insecto artificioso e cheio de
+habilidades, teceu a trama. Ao leonez mostraria o modo de illudir o
+adversario: conceder-lhe tudo, deixando esse tenue cordão umbilical de
+Astorga, para no momento opportuno fazer reverter os territorios
+portuguezes ao corpo da monarchia soberana. Voltando-se depois, com um
+sorriso, diria baixo ao portuguez, que o tratado não valia nada de
+principio a fim, se elle quizesse seguir-lhe os conselhos. Todas as
+habilidades do imperador provariam inuteis: tinha um meio
+seguro!--Affonso Henriques devia ouvir com attenção tenaz as
+confidencias do cardeal. Havia um direito superior ao direito feodal:
+era o canonico. Havia um soberano, rei dos reis: o papa. Porque não
+seria Affonso Henriques vassallo do papa? Collocasse os seus reinos sob
+a suzerania papal, e nenhum imperador das Hespanhas ousaria tocar-lhes.
+Só assim a sua corôa ficaria segura na cabeça, d'elle e de seus
+descendentes. A suzerania do papa era de resto infinitamente menos
+incommoda. Reduzia-se a uma pequena somma de dinheiro. Um nada! Quatro
+onças de ouro por anno, nem mereciam a pena contar-se deante da
+independencia de facto. Se o rei acceitasse, elle proprio em pessoa
+redigiria a carta, elle que redigira o tratado; elle proprio seria
+portador da missiva ao papa. Se viera a Hespanha fazer a paz, iria de
+Hespanha com o coração contente, por ter conquistado mais um vassallo
+para a Egreja.--E mais um censo annual para o thesouro romano,
+accrescentaria mentalmente!
+
+Affonso Henriques desde logo acceitou. Pouco lhe importava o censo,
+porque não tinha sequer a certeza de ser fiel ao pagamento. O cardeal
+illudia-se, se suppunha que o rei tremia das excommunhões: um rei que
+não havia de hesitar em rasgar as bullas pontificias, e pôr e depôr
+bispos, como bem lhe approuvesse!
+
+O cardeal partiu levando a carta do rei; e emquanto este ia formando a
+tenção de supprimir o pagamento do censo, logo que lhe conviesse
+fazel-o, o cardeal foi pela viagem ruminando o modo de colher as onças
+de ouro, sem se inimisar com o leonez. Só annos depois Affonso VII veio
+a saber como o visinho e já quasi émulo illudira as disposições do
+tratado de Zamora. Insistindo com o papa para que recusasse a
+vassallagem, não o consegue; mas tampouco Affonso Henriques consegue
+aquillo por que pagára o preço de quatro onças de ouro annuaes; pois nas
+piedosas cartas que lhe escreve, como suzerano a vassallo, o papa
+cuidadosamente evita chamar-lhe _rei_, e _reino_ a Portugal.
+
+Em vão Affonso Henriques insta e exige. Por fim, já nos derradeiros
+annos do seu reinado, e á custa de um presente de mil morabitinos e do
+augmento do censo annual, Alexandre III decide-se, e sancciona-lhe o
+titulo, garantindo-lhe a hereditariedade, sob condição de preito e
+confirmação outorgada aos seus successores.
+
+ * * * * *
+
+Portugal, que já a esse tempo tinha uma razão de ser territorial
+independente da Galliza, achava agora um fundamento juridico de
+independencia de Leão. A suzerania do papa collocava o novo reino ao
+abrigo das pretenções da monarchia leoneza; e se Affonso Henriques não
+saía da condição subalterna de vassallo, porque apenas mudára de
+protector ou suzerano, o facto é que na mudança ganhava uma liberdade
+real, esperando o que de facto veiu a conseguir: que a vassallagem se
+tornasse nominal apenas.
+
+Ainda no tempo do primeiro rei portuguez de novo se ateia a guerra com
+Leão; mas basta um exame superficial dos monumentos historicos para vêr
+que o caracter e as condições d'essa nova campanha são já totalmente
+outros. Não é um vassallo rebelde pugnando pela independencia: é o
+choque de duas monarchias que reciprocamente se reconhecem como taes. A
+serie de guerras entre os diversos estados da Peninsula--caminho por
+onde ella chegou a determinar as condições definitivas das suas
+constituições politicas--tem na campanha de 1160 um episodio. Affonso
+Henriques, já rei de facto e de direito, já senhor da linha estrategica
+de Santarem, e possuindo além d'isso, como vedetas avançadas para o sul,
+varias praças do Alemtejo, dispunha de forças sufficientes para pesar
+com a sua espada no debate das questões politicas dos Estados
+peninsulares. Desde que se decidisse a fazel-o, é natural que a velha
+ambição das fronteiras dilatadas de norte e nordeste fosse a causa
+efficiente dos seus actos.
+
+Fernando II de Leão casára com uma filha do rei portuguez, mas nem ao
+genro nem á filha Affonso Henriques cedia os seus ambiciosos propositos.
+Raras vezes a politica tomou em consideração os vinculos de familia. O
+rei de Leão usurpára a corôa de Castella, e contava que a esposa lhe
+trouxesse a alliança do portuguez; porventura teria havido
+intelligencias positivas entre os dois monarchas. Quando com uma livre
+audacia se rompiam as pazes mais solemnes, que admira que se mentisse a
+convenios ou ajustes privados? Affonso Henriques era, como se sabe,
+mestre na arte de reinar. O facto é que, logo um anno depois do
+casamento da infanta, aproveita o momento em que o rei Fernando se
+achava a braços com a insurreição dos castelhanos, para mandar seu filho
+e herdeiro, Sancho, á batalha de Arganal, onde foi batido (1165).
+Invadindo em pessoa a Galliza, o rei apossára-se facilmente de Tuy e do
+districto de Toronho até ao Lerez, seguindo d'ahi para leste (1166).
+Essa nova occupação portugueza da Galliza dura até ao desastre de
+Badajoz (1169).
+
+Correndo então ao sul, Affonso Henriques decide-se a consolidar as suas
+possessões do Alemtejo, conquistando Badajoz aos sarracenos. Este acto,
+porém, era simultaneamente um episodio da guerra com Leão, porque o wali
+de Badajoz se collocára sob a suzerania de Fernando II, e porque a praça
+ficava para fóra dos limites de leste, marcados em Zamora ás futuras
+conquistas do rei de Portugal sobre os musulmanos.
+
+A cidade caiu sobre o ataque do portuguez. Colhidos por surpreza, os
+defensores encerraram-se na alcaçova, resistindo. Poz-se o cerco, mas
+entretanto o rei de Leão, avisado, correu a defender o que era seu; e
+Affonso Henriques foi colhido entre dois inimigos. De sitiante viu-se
+cercado.
+
+Afinal o temerario capitão caía em poder do adversario, afinal o caçador
+colhia-o fóra do refoio. Debate-se, estrebuxa e, ainda vencido, lucta
+desesperado; mas está pesado, velho e gasto. Faltam-lhe as forças para
+arremetter como d'antes, com a cabeça baixa e as presas activas, contra
+a matilha dos lebreus. Tropeça e cáe. É colhido. Cumpria-se o anathema:
+Deus castigava o filho que prendera sua mãe! Prisioneiro, curva-se
+submisso, recolhendo a colera e os dentes açulados, perante o seu nobre
+vencedor. Tal nome convem de facto a Fernando II, cuja magnanimidade
+perdoou as perfidias e ataques do visinho e sogro. «Restitua o que
+roubou, guarde o que é seu, e vá em paz!» Cabisbaixo, com o joelho
+ferido, a coxear, Affonso Henriques parte d'alli a Santarem, concluir o
+que lhe resta de vida. Não tem coleras, nem fundas magoas pela afronta
+que soffreu: só lamenta a virente Galliza, perdida para todo o sempre.
+
+Como o avarento, em cuja alma a paixão exclusiva absorveu todos os
+sentimentos e paixões humanas, assim na alma de Affonso Henriques a
+monomania da conquista, doença vulgar nos principes da Edade-média,
+atrophiára o desenvolvimento de tudo o mais. Mas, se entre os consocios
+de uma patria irman, se entre os herdeiros de uma historia commum, ha o
+amor por essa patria e a veneração pelos antepassados, nenhum merece na
+alma dos portuguezes respeito maior, do que o primeiro de todos aquelles
+a cujo braço esforçado se deve a obra da constituição politica da nação.
+N'este sentido as manias chegam a ser sublimes. Um salteador é, não
+raro, um verdadeiro heroe; a perfidia é uma virtude, a crueldade é um
+titulo de gloria, porque o espirito collectivo substitue o criterio
+moral e abstracto pelo criterio historico, o qual tem como base a
+consagração dos factos consummados.
+
+A separação de Portugal foi um facto consummado, graças ao valente
+mediocre, tenaz, brutal e perfido caracter de Affonso Henriques.
+
+ [32] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.), liv. III, 1.
+
+ [33] Resumimos á politica o campo das nossas observações, por
+ termos deixado na _Hist. da civil. iberica_ desenhados
+ os traços geraes dos movimentos propriamente sociaes. V.
+ Livro III; pass.
+
+ [34] V. _Hist. da repub. romana_, I, pp. 309-48.
+
+ [35] _V. Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 113 e segg.
+
+ [36] V. _Instit. primitiv._, p. 215.
+
+ [37] V. _Instit. primitivas_, p. 165.
+
+ [38] _Th. da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._, XXXII-III.
+
+ [39] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 267-75.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+II
+
+A conquista do Al-Gharb
+
+
+Nas suas emprezas contra Leão, Affonso Henriques, batido sempre como
+guerreiro, conseguira desforrar-se dos desbaratos com a astucia. Das
+duas faces que apresenta a historia da fundação da monarchia, vimos a
+primeira: resta-nos vêr a segunda. Assistimos aos actos do politico;
+vamos assistir agora ás fecundas emprezas do conquistador.
+
+O principe trazia para a guerra as manhas da côrte, sem prejudicar a
+firmeza necessaria, a bravura, o sangue-frio e a audacia. Com este
+conjuncto de elementos dava um caracter original á guerra (_novo genere
+pugnandi_). Ia de noute, ás escondidas (_furtim_), como um chefe de
+bandidos em assalto a algum villar, fortificado, no pendor de uma serra
+distante (_quasi per latrocinium_). Assim investiu e tomou Santarem.
+«Assim conquistou a maior parte dos castellos das provincias de Belatha
+e Al-Kassr, este inimigo de Deus!» diz o chronista arabe. O ponto de
+ataque era de antemão escolhido. Por uma noute escura e tempestuosa
+punha-se a caminho com um troço de homens resolutos: dir-se-hia uma
+quadrilha de salteadores. Galgavam rapidamente as distancias, e chegados
+ao destino, apeiavam-se, approximando-se caladamente dos muros. Affonso
+Henriques encostado á escada, era o primeiro a subir com o punhal preso
+entre os dentes. Parava, escutava, com o olhar agudo, a respiração
+suspensa: afinal pousava ancioso o pé entre as ameias, e apertando o
+punhal nas mãos, cozia-se com os muros. Na sombra não o distinguiam.
+Caía como um falcão sobre a sentinella, e apunhalava-a antes que ella
+podesse tugir um grito. Entretanto os companheiros iam subindo. O bando
+reunia-se na esplanada, armado e resoluto, o ao grito de «Santiago!»
+caía sobre a guarnição adormecida e trucidava-a. «Tal foi o modo por que
+este inimigo de Deus tomou a maior parte dos castellos das provincias de
+Belatha e Al-Kassr!»
+
+Havia porém ainda outra maneira de guerrear, cuja invenção não pertence
+a Affonso Henriques: era o systema de álgaras, fossados ou correrias,
+atravez dos extensos territorios fronteiros. De um lado e de outro,
+n'uma zona mais ou menos larga, conforme o ordenavam a constituição
+geographica e a estrategia, desdobravam-se as charnecas periodicamente
+assoladas. Aqui e além, apertadas em cintos de muralhas, ficavam as
+povoações, em cuja volta, como oasis, appareciam malhas de terrenos
+agricultados. Confiar ao nervo e á velocidade dos cavallos o transpôr as
+passagens perigosas d'esses desertos onde as sortidas dos castellos
+podiam cortar a retirada, e cair impetuosamente sobre as searas,
+incendiando-as, sobre os rebanhos, roubando-os, sobre os tardivagos,
+matando-os; talando os campos, cortando as arvores, incendiando as
+casas, e voltando rapidamente com as prezas feitas: tal era o processo
+egualmente seguido por christãos e sarracenos; reduzido já a um systema
+de invasões annuaes na epocha das colheitas, e contado como principal
+recurso financeiro da rude economia do tempo.
+
+Se a tomada de Santarem (1147) é um typo da primeira especie, a batalha
+de Ourique, ou Orik (1139), é o typo da segunda. A fortuna accendia a
+audacia de Affonso Henriques, que levou o fossado por entre as fortes
+posições de Santarem e Alcacer, deixando Palmella, Cintra e Lisboa na
+retaguarda; atravessando o Tejo, para ir talar os campos de Chelb ou
+Silves, emporio sarraceno da Hespanha lusitana. Poucas vezes, porém, um
+fossado era apenas uma correria e um saque. As guarnições dos castellos
+passavam signal, combinavam sortidas; e o episodio de uma batalha
+acompanhava quasi sempre a obra de depredação. A batalha de Ourique,
+qualquer que tivesse sido a importancia numerica dos combatentes, deu a
+Affonso Henriques uma victoria que o encheu de animo para entrar em
+campanhas mais regulares e fecundas.
+
+Os primeiros nove annos do governo do principe tinham sido absorvidos
+pelas questões leonezas, quando em 1137 uma invasão sarracena veiu
+destruir Leiria, que elle erguera para defender Coimbra das subitas
+investidas dos inimigos. Ourique desforrou-o do desastre, que o rei por
+outro lado remediava reconstruindo o castello, então fronteiro do
+extremo sul dos seus Estados. Mas logo o musulmano responde, voltando
+como uma onda que, alastrando o territorio christão, vae rolando até aos
+altos de Trancoso, deixando pela segunda vez derrubadas as muralhas de
+Leiria. Affonso Henriques consegue dominar a invasão, que retrocede ao
+abrigo da linha do Tejo; e retribue logo a visita com uma tentativa
+frustrada sobre Lisboa. Depois, alliado ao wali de Mertola contra o de
+Santarem, vae assolar os districtos de Merida e Beja. Nos intervallos
+d'estas correrias, o rei ferira as batalhas do tratado de Zamora, e
+ganhára a victoria que lhe preparou o cardeal Guido.
+
+O periodo de dez annos que está entre 1137 e 1147 offerece n'estas
+guerras o aspecto de um movimento que oscilla, como um pendulo suspenso
+de um ponto que é Lisboa: invasões sarracenas para o norte, portuguesas
+para o sul do Tejo, instabilidade de resultado de ambas. O eixo d'este
+movimento era evidentemente Lisboa e o systema das suas linhas de
+defeza--Cintra-Almada-Palmella-Santarem. A conquista da linha do Tejo
+tornava-se a condição indeclinavel, não já do alargamento, mas até da
+conservação da monarchia de Affonso Henriques.
+
+Demasiado, porém, sabia elle que os recursos militares de que dispunha,
+se chegavam para os fossados annuaes, se bastavam para conquistar _quasi
+per latrocinium_ os castellos isolados, eram demasiado escassos para
+tentar empreza tão vasta como a da conquista do systema de fortalezas
+que formavam o nucleo defensivo do centro do que foi depois o reino
+portuguez. Na tentativa frustrada que fizera sobre Lisboa em 1140 fôra
+ajudado por uma esquadra de Cruzados. As suas esperanças estribavam-se
+n'um auxilio d'essa ordem: até porque, sem forças navaes para entrar no
+Tejo--ainda então não havia marinha militar--seria absurdo tentar a
+empreza.
+
+Entretanto, sete annos iam passados depois d'essa primeira apparição dos
+Cruzados, sem que outros viessem proporcionar-lhe occasião para realisar
+os seus designios. Impaciente, orgulhoso ainda com o resultado da
+correria de Beja (1145), seguro do lado de Leão pelas pazes de Zamora,
+forte pela confirmação do seu titulo, confiado na protecção papal--o
+sangue pula-lhe nas veias, e decide tomar Santarem, (1147) _á sua moda_,
+isto é, por surpreza. Pela calada da noute appareceu á raiz das muralhas
+da villa. Pozeram-se escadas. Subiu um furtivamente e abafou uma _vela_
+(sentinella); depois subiu outro, depois terceiro, «e depois que todos
+tres foram em cima do muro, a vela que estava em cima do caramancham,
+quando sentiu Mem Moniz que se ia alongando, disse-lhe: «Manahu!» e elle
+respondeu-lhe em aravia e fel-o descer, e logo que foi em baixo
+cortou-lhe a cabeça e deitou-o aos de fóra. E então elles poseram outra
+escada e subiram por ambas o mais toste que poderam, e foram tantos que
+se apoderaram do muro e britaram as portas por onde entraram elrey e os
+que com elle foram. E d'esta guisa foi furtada a villa de Santarem aos
+mouros.» O resultado correspondeu pois ao plano, e quem sabe se a
+temeridade teria arrastado o rei a proseguir do mesmo modo contra
+Lisboa? Não foi, porém, necessario. Esse anno vieram os Cruzados[40] por
+quem suspirava, e com elles metteu hombros á empreza.
+
+A guerra toma desde então um caracter regular de cercos e campanhas. Os
+meios correspondem aos propositos, e estes á idéa da nação que começava
+a definir-se.
+
+ * * * * *
+
+A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portugueza, até
+ahi envolvida nos limbos da geração. O cerco affigura-se-nos como o
+concilio internacional, uma especie de congresso guerreiro, em que a
+Europa baptisa o recem-vindo á luz da historia. Creado pelos actos
+geradores da vontade de um homem, abrigado pela égide da Egreja,
+Portugal tem a existencia confirmada pela sancção dos exercitos cruzados
+da Europa. O caracter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior
+phisionomia politica, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um
+baptismo, quando, em frente d'essa piscina do Tejo, onde fundeiam
+duzentas naus coroadas pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se
+estende o cordão do exercito de flamengos, lotharingios, allemães e
+inglezes.
+
+As columnas dos cavalleiros cruzados combatem ao lado das mesnadas dos
+barões portuguezes, estendendo-se em meia lua, a investir o morro de
+Lisboa; e com as pontas apoiadas contra o rio, formam metade do cinto
+que a armada, fundeada no Tejo, encerra. Com os frankos e inglezes,
+colossaes de estatura, rubros de sangue, herculeos de musculos, vêem
+italianos sagazes, mestres consummados na arte das minas ou sapas. Sobre
+os navios e do lado da terra a arte acorre em auxilio da força. Os
+inglezes montavam as suas manganellas ou catapultas, os frankos as suas
+torres; e Affonso Henriques pasmava d'esses maravilhosos instrumentos
+deante dos quaes a escada e o punhal do salteador nocturno pareciam
+miseraveis. Acaso a comparação offendia a sua opinião, bem fundada, de
+atrevido; acaso achava mais rapido e simples confiar o resultado aos
+seus expedientes favoritos de condôr: o facto é que decidiu começar por
+um assalto. Foi no dia 3 de agosto que pela primeira vez rebombou a
+trovoada dos golpes do moganons, o stridente sibilar das settas
+despedidas do alto das torres, e das pedras soltas das fundas,[41]
+o clamor apocalyptico dos combatentes, erguendo um côro de
+imprecações ferozes, proferidas nas mais desvairadas linguas. Á tormenta
+dos sons respondiam os relampagos do pez, do azeite, da estopa
+incendiada, que os muros de Lisboa vomitavam sobre os assaltantes,
+ajudando o sol que, illuminando a scena, congestionava as cabeças dos
+filhos da algida Germania, da Britannia ou da Frankonia. Ás ondas de
+lume, ao lume do sol, veio juntar-se um novo clarão de chammas e de
+grossas voltas de fumo negro que subia cravejado de scentelhas a
+perder-se no ar: as torres ardiam! O assalto era repellido; a tentativa
+falhára.
+
+Começou o cerco. Em poucos dias a voracidade feroz dos homens louros do
+norte destruiu quanto havia em torno de Lisboa: hortas e pomares,
+villas, cazaes e granjas. Dentro da cidade escasseiavam os mantimentos,
+e bandos de soldados fugiam com fome: do alto dos muros, os que ficavam
+perseguiam-nos com surriadas de pedras. Os gastadores minavam, atulhando
+a sapa com lenha cortada nos arredores: no dia decisivo, o fogo,
+consumindo esses transitorios esteios, roubaria a base ás muralhas. Os
+italianos construiam uma grande torre, que ficou terminada em meiado de
+outubro, quando a resistencia de Lisboa tocava o extremo. Queimaram-se
+os robles da sapa, assestaram-se os tiros, prepararam-se as columnas de
+soldados, e deu-se o assalto, logo que se ouviu o estrondo de um panno
+inteiro das muralhas que se derrocava do lado do oriente.
+
+Lisboa capitulou. Os Cruzados cevaram o amor do ouro, da prata, e das
+mulheres formosas, (_auri et argenti et pulcherrimarum fæminarum
+volupias_) que os levava á Syria; e Affonso Henriques tomou posse da
+cidade. As fortalezas satellites de Lisboa não podiam resistir: Cintra,
+Palmella, e Almada Cairam em curto espaço nas mãos dos vencedores.
+
+A base geographico-maritima de Portugal estava ganha para não mais se
+perder; e se o rei fôra o author do facto da separação, era o rei quem
+todos os dias ia adiantando a obra de uma independencia positiva e
+formal. Lisboa não valia menos, para tal fim, do que a protecção de Roma.
+
+ * * * * *
+
+Esses dias de Zamora e de Lisboa (1143 e 47) marcaram o apogeu do
+reinado do primeiro monarcha portuguez. Batido em Badajoz pelo genro
+leonez (1169), foi-o tambem nas suas novas conquistas, pelo sarraceno
+(1161-71). Affonso Henriques não era já o mesmo homem: a edade
+quebrára-lhe o vigor de outros annos; e o perdão de Badajoz e as armadas
+dos Cruzados deviam ter quebrado tambem a cega confiança que punha nos
+seus recursos e habilidades. Via que no coração dos homens podia haver
+mais do que ambição e manha; e na arte da guerra processos mais valiosos
+do que a escada e o punhal, a _razzia_ e o assalto nocturno. Taes
+observações, acompanhadas pela ferida do joelho que o conservava tolhido
+roiam o velho capitão no seu antro de Santarem (1171).
+
+O enthusiasmo da tomada de Lisboa tinha-o impellido a proseguir,
+aproveitando a commoção triste dos vencidos e o apparecimento de novas
+frotas que agora, christan Lisboa, demandavam o Tejo, para refrescar,
+nas suas viagens para a Palestina.
+
+Al-Kassr, ou Alcacer-do-Sal, era, para além de Lisboa, o centro
+estrategico da linha de defeza do Alem-Tejo, que guardava Chelb ou
+Silves. Logo depois de rendida Palmella, Affonso Henriques, confiando
+demasiado nas proprias forças, investira, só e ao modo antigo, o
+castello de Alcacer, mas fôra cruelmente vencido (1151). Annos depois,
+vale-se do auxilio de uma frota ingleza, sem conseguir render a desejada
+praça (1157), que afinal cáe perante o ataque combinado das forças
+portuguezas e alliadas da Cruzada de 1158. Evora e Beja cedem tambem por
+essa occasião; e dir-se-hia que Silves, desguarnecida da sua linha de
+fortalezas fronteiras, ia cair rapidamente nas mãos do afortunado principe.
+
+Não era, porém, assim. Essas successivas conquistas das praças do
+Alemtejo não tinham a importancia decisiva que tivera a de Lisboa.
+Levantadas como pontas de rocha isoladas, no meio dos vastos campos
+desolados, as praças do Alemtejo offereciam aos guerreiros abundantes
+prezas; e por isto os Cruzados de tão boa vontade paravam aqui, a
+preludiar na Hespanha o programma feito para a Syria. Saqueadas,
+incendiadas, porém, ou arrazadas, o seu valor para o reino era por certo
+lado pequeno ou nullo. O rei não dispunha de forças bastantes para
+guarnecer tão numerosos castellos e tão dilatadas fronteiras. Já para
+conseguir manter a linha do Tejo, tivera de doar ás ordens
+monastico-militares estrangeiras (Hospital, Templo, Santiago) as praças
+rayanas de Thomar, de Palmella, de Leiria. Os territorios despovoados e
+nús não vinham augmentar-lhe o numero de soldados, nem a riqueza. Para
+que isso succedesse era mister que a paz e o tempo fomentassem o
+desenvolvimento natural das forças economicas. Assim, desde que as
+armadas dos Cruzados, abarrotadas de prezas, largavam a bahia do Tejo,
+Affonso Henriques, tornando a achar-se a sós com os seus recursos
+militares, era forçado a abandonar as conquistas avançadas do Alemtejo.
+Annos havia, tomára e deixára Beja: e agora (1158), das praças
+conquistadas, apenas guarnecia e conservava Alcacer.
+
+Estas campanhas do Alemtejo estão perante Silves como, antes, as da
+Estremadura perante Lisboa: emquanto o sarraceno pisar o Algarve, serão
+precarias todas as conquistas n'este largo trato de terreno devastado
+que não poderá nutrir-se e prosperar, emquanto não estiver ao abrigo das
+invasões. Porque não foi Affonso Henriques cair directamente sobre
+Silves, aproveitando-se de alguma esquadra de Cruzados, em vez de
+consumir as suas forças na empreza esteril das correrias, conquistas e
+saques das praças do Alemtejo? Porque evidentemente lhe faltava a larga
+vista das aguias dominadoras, tendo só o que é commum a todas as aves de
+rapina: o ataque fulminante, e a garra cheia de força e tenacidade.
+
+Depois de saquearem Alcacer, os Cruzados tinham partido; e a noticia dos
+successivos desastres dos ultimos onze annos decidira os almuhades[42]
+a tratar seriamente de pôr cobro aos progressos de Affonso
+Henriques. Invadem o Alemtejo; e junto de Alcacer, seis mil portuguezes
+mortos, o exercito desbaratado, decidem a perda de todo o Alemtejo
+(1161) pondo em perigo Lisboa. Os sarracenos chegaram a tomar Palmella e
+Almada, mas julgaram prudente abandonar esses pontos destacados na
+peninsula de entre o Tejo e Sado. Desde que outras emprezas obrigaram a
+retirar o exercito almuhade depois de fortificar Alcacer, já Affonso
+Henriques, e os seus discipulos em aventuras podiam á vontade recomeçar
+as correrias e assaltos. Effectivamente, em 1162, um troço de burguezes
+toma Beja por surpreza; e em 1166 um bando de salteadores, com Giraldo á
+frente, de escada ao hombro, punhal nos dentes, entra uma noute em
+Evora, que saqueia e atulha de cadaveres. Eram portugueses? eram
+sarracenos? eram de uns e d'outros; eram uma das muitas companhias de
+bandidos que batalhavam por conta propria, sem noção de patria a que
+pertencessem, nem de religião que seguissem. Tinham por culto apenas a
+ladroagem, e adoravam o deus do estupro, do saque, da matança. Eram de
+todas as nações; e falavam uma algaravia, mosarabe nos christãos,
+_most_'latina nos musulmanos--uma lingua franca.
+
+Affonso Henriques não podia socegar vendo essas façanhas. Eil-o outra
+vez a cavallo, Alemtejo em fóra, a correr charnecas e arremetter
+cidades: Moura, Serpa, Alconchel, e, internando-se pela Estremadura
+hespanhola, Caceres o Tordjala, ou Trujillo (1166). Essa era a sua
+paixão, o seu furor. Que importa, se, apenas voltava costas, logo se
+erguia de novo a bandeira musulmana nas muralhas que escalára á traição?
+Elle tambem voltaria, no verão seguinte, a repetir a sua façanha. E
+assim, por falta do genio militar do conquistador, as scenas
+repetiam-se, os castellos passavam successivamente de mão em mão, e
+portuguezes e sarracenos apenas podiam chamar seu ao terreno que
+actualmente pisavam. Se as forças proprias do portuguez lhe não
+consentiam outra cousa: se, sem o auxilio dos Cruzados, não podia
+abalançar-se á empreza de Silves, melhor fôra sacrificar a paixão ao
+interesse proprio, consolidando o dominio, do que pôr em perigo o
+Portugal cistagano, por consumir de um modo esteril as forças militares
+do novo reino nas correrias transtaganas. O rudo capitão não tinha porém
+intelligencia para tanto: a correria arrastava-o, a presa seduzia-o, e a
+guerra governava-o a elle, em vez de ser elle quem governava a guerra.
+Sem plano fixo, á toa, á aventura, internára-se até Trujillo e queria
+tomar Badajoz, invadindo territorios que, apesar de sarracenos, eram
+vassallos do visinho monarcha de Leão. A sua loucura teve a sorte de
+todas as loucuras; e já o vimos coxeando e duplamente ferido, no joelho
+e nos brios, caminhar a esconder a sua vergonha em Santarem (1169).
+
+O desastre de Badajoz devia ter soado por todo o Al-gharb, onde as
+correrias e façanhas do bando de Affonso Henriques espalhavam a angustia
+e o terror; e o musulmano, inimigo por patria e religião, não devia ao
+bulhento principe a generosidade magnanima do genro leonez. Um novo e
+poderoso exercito transpõe o Tejo, e vem cercar o ferido em Santarem
+(1171). Acode-lhe Fernando II que, como verdadeiro rei, sabia calar os
+resentimentos pessoaes, deante de um perigo commum para todos os
+principes christãos da Peninsula. Duas vezes salvo pelo genro que o
+vencera; humilhado, abatido, ferido e velho, Affonso Henriques já não é
+o irrequieto soldado de outros tempos. Santarem que ganhára por esforço
+proprio, escalando os muros, era o seu tumulo. Ahi n'um leito gemia
+dores de muitas especies: todo o Alemtejo estava perdido; e agora (1184)
+Jussuf, o grande émir de Marrocos, vinha em pessoa, dirigindo o
+exercito, cercal-o outra vez. Acudiria o genro outra vez a salval-o?
+Cinco annos havia que o exercito musulmano passeiava triumphante pelos
+seus reinos. Não pudera entrar em Abrantes, mas tinha destruido Coruche,
+que era para a defeza de Lisboa e da linha do Tejo, como fôra Leiria
+para Coimbra e para a linha do Mondego. Evora apenas resistiria ás
+invasões, que tinham levado Alcacer e Serpa, Beja, Moura, Jerumenha e
+todo o Alemtejo (1179-82). Como o javali, encerrado no covil e perdido,
+o guerreiro contava as horas, e antecipadamente sentia o penetrar das
+lanças nas suas carnes abatidas pela edade, e o quebrar dos seus ossos
+tão rijos ainda, mas mal governados pelos tendões flacidos. Chorava;
+talvez se arrependesse dos seus erros. Feliz porém mais uma vez, os
+acasos imprevistos concorriam para o salvar. Á magnanimidade do genro
+devera o não ter ido acabar n'alguma masmorra escondida nas montanhas
+das Asturias; e a esta circumstancia, verdadeiramente excepcional, de um
+principe generoso, devera tambem o salvar-se do primeiro cerco. Em vez
+de Fernando, que não acudiu agora, veiu em seu auxilio a sorte que matou
+o émir de Marrocos, e espalhou uma peste no meio do exercito almuhade.
+
+Levantou-se o cerco, Affonso Henriques pôde respirar ainda livre os
+ultimos annos da sua já acabada vida.
+
+ * * * * *
+
+O pensamento que elle não soubera ou não pudera realisar, coube ao filho
+e herdeiro pôr em pratica. O modo serio de conquistar o Alemtejo era ir
+com os Cruzados, por mar, investir Silves. Logo que Sancho I herdou o
+reino, e desde que appareceu no Tejo a primeira armada, decidiu-se levar
+a cabo a empreza. Já então havia uma frota portugueza; e se á
+constituição geographica do corpo da nação faltava a metade meridional,
+o coração, Lisboa, pulsava já independente e vivo; os navios da primeira
+expedição do Algarve são d'isso a prova. Abria-se agora uma segunda
+epocha; e, ou filha do genio do monarcha, ou proveniente da expansão
+natural das forças nacionaes, ou resultado das duas causas combinadas, o
+facto é que, entrados n'uma segunda edade, respiramos um ar diverso,
+observamos um typo differente e uma nova phisionomia da nação.
+
+Consolidam-se as conquistas, povoam-se e fortificam-se as villas, começa
+a esboçar-se a administração, abandona-se a guerra de escada e punhal.
+Ha um pensamento na politica e uma idéa nas campanhas. Sancho I é já um
+rei: Affonso Henriques fôra como um bandido, á imitação de Pelayo.
+
+O districto de Chenchir ou Al-faghar--assim os arabes denominavam o
+nosso moderno Algarve,--era o que é hoje ainda: um jardim estendido
+sobre a costa, e apoiado contra um muro de serras que o defendem dos
+ventos do norte. A guerra não conseguira mirral-o, como succedeu á costa
+da Berberia, fronteira. Retalho da Africa, scindido pelo mar do Calpe,
+no Algarve tinham os arabes achado um pedaço da sua patria. O clima, a
+flóra, não eram bem europeus; e quem, nos fins do XII seculo, visitasse
+Silves, ou Chelb, dir-se-hia transportado a uma cidade oriental. D'entre
+as varias raças que tinham vindo á Peninsula, foram os arabes do Yemen
+que principalmente a povoaram. Chelb ao sul, Hayrun (Faro) mais ao
+norte, eram as duas cidades principaes do Al-faghar; mas a primeira
+excedia em muito a segunda. Contava cerca de trinta mil habitantes, era
+opulenta em thesouros e formosa em construcções. Davam-lhe a primazia
+entre as cidades da Hespanha arabe. Vestida de palacios coroados pelos
+terraços de marmore, cortada de ruas com bazares recheiados de
+preciosidades orientaes, cercada de pomares viçosos e jardins, Chelb era
+a perola de Chenchir, onde os prodigos da Mauritania vinham gosar com as
+mulheres formosas, de puro sangue arabe, os seus ocios luxuosos. Era ao
+mesmo tempo uma praça temivelmente fortificada.
+
+Quando pela primeira vez as armadas combinadas, dos portuguezes e dos
+Cruzados, appareceram na costa de Al-faghar, Chelb intimidou os
+guerreiros frisios e dinamarquezes, a ponto de lhes dominar a avidez com
+que namoravam uma preza de tamanho quilate. Não se atreveram a atacar,
+limitando-se a tomar Albur (Alvôr), e retirando com um saque abundante.
+
+Para os Cruzados, homens louros do norte que, sob a ingenuidade azul dos
+olhos, escondem uma crueldade fria e pratica e um desvairado appetite
+dos gosos vedados aos climas setentrionaes, a empreza de Chelb tinha o
+valor da riqueza a roubar, das bellas mulheres, d'esse Oriente
+mysterioso e seductor, a gozar sobre os leitos de sedas da India ou nos
+fôfos tapetes da Persia. Eram voluptuosidades que antegostavam;
+calculando ao mesmo tempo os thesouros de pedrarias, os marfins, os
+estofos preciosos, a myrrha, o incenso, os metaes reluzentes, com que
+voltariam ás suas agrestes serras, ás suas costas algidas, deslumbrar as
+noutes veladas á luz baça da candeia, de azeite de phoca. Positivos e
+praticos ao mesmo tempo, mediam bem o impossivel da aventura, e por isso
+preferiram á temeridade de atacar Chelb, a modestia de saquear Albur.
+Bastava-lhes o que levavam.
+
+Não succedia outro tanto a Sancho I. A conquista do Al-faghar tinha para
+elle um alcance maior. E os portuguezes mais familiarisados com as
+seducções dos costumes arabes, menos sensiveis ás tentações da carne,
+mais abertos aos arrebatamentos da paixão, como todos os homens do sul,
+tinham um proposito mais firme e intenções diversas.
+
+Logo depois da primeira tentativa frustrada no proposito essencial,
+appareceu no Tejo uma segunda e mais poderosa armada de guerreiros do
+norte. Decidiu-se então a conquista de Silves. Sancho e as tropas
+portuguezas iriam por terra, atravez do Alemtejo, investir a cidade pelo
+norte, cortando os soccorros de Alcacer e das demais praças
+transtaganas: emquanto as armadas combinadas iriam por mar e, subindo a
+ria de Silves, poriam o cerco pelo sul, apoiando-se nos navios.
+
+Silves, collocada n'uma eminencia e defendida por fortes muralhas, em
+cujo recinto, no coração da cidade, se erguia a almedina ou alkassba,
+estava ligada a uma torre albarran por uma couraça. A torre defendia uma
+vasta cisterna que dava agua á cidade: conquistal-a seria, portanto, o
+preludio do cerco. Desembarcados, os Cruzados começaram por assolar os
+arrabaldes, destruindo quintas e casaes, trucidando os tardivagos,
+incendiando e roubando, segundo a regra invariavelmente seguida n'estas
+emprezas. Quando em torno dos muros não havia mais do que destroços,
+ruinas e cinzas, atacaram a torre albarran. Foi em 21 de julho de 1189,
+esta primeira tentativa frustrada. Em 29 chegou por terra el-rei Sancho,
+cerrou-se o cerco, e prepararam-se os meios do ataque decisivo. Os
+sitiados, no desespero, açulavam o furor e a cubiça dos inimigos com
+insultos e crueldades. Nas ameias da torre albarran penduravam pelos pés
+os prisioneiros christãos; e alli, em frente do exercito, como exemplo e
+ameaça, matavam-nos ás lançadas. Era ardente o furor, incansavel o
+trabalho. Estavam preparadas e promptas as machinas de guerra: começaram
+os assaltos. Os allemães tinham montado um vae-vem coberto, cujas pontas
+de ferro trabalhavam impunemente na derrocada dos muros: era a _origa_
+dos gregos, a _testudo_ de Vitruvio, o _ericius_ das guerras dos
+romanos, em portuguez _ouriço_--uma catapulta couraçada contra as massas
+de estopa a arder em azeite que sobre ella os defensores vasavam. Muitas
+torres, numerosos trons batiam os muros e levantavam os sitiadores á
+altura das ameias. A albarran caíu por fim, entulhou-se a cisterna. As
+fontes dos pateos ajardinados de Chelb deixaram de correr, e a sede veiu
+auxiliar as machinas e as armas dos christãos. Os musulmanos,
+fortificados na almedina, resistiam, comtudo.
+
+O cerco entrava desde esse momento n'uma phase nova. Os assaltos
+repetiam-se, infructiferos, e a alkassba parecia intomavel.
+Soccorreram-se ás artes dos mineiros de Italia; mas os arabes eram
+egualmente mestres na engenharia. As galerias subterraneas cruzavam-se,
+encontravam-se, rompiam-se. Fatigados de pelejar em vão, á luz de um sol
+abrazador, transferiram os combates para o coração da terra. Os
+gastadores eram soldados, e rijas batalhas eccoaram n'essas galerias. A
+lenha accumulada ardia presa do fogo; e á luz das chammas, buscavam-se,
+um a um, os inimigos, ferozes como tigres, punhal ou alfange em punho, e
+estrangulavam-se, despedaçavam-se, como feras. O crepitar do fogo
+acompanhava as imprecações roucas, e nos olhos havia mais chammas do que
+nos montes de troncos e ramos incendiados. O sangue corria dando á lama
+das galerias subterraneas a côr do barro com que em tempos mais felizes
+os arabes ladrilhavam os seus eirados alegres e os seus pateos ajardinados.
+
+A furia dos combates era excitada pelos calores da sêde. Os sitiados
+ardiam em febres. Viam-se nús estendidos sobre as lages das ruas, sobre
+os ladrilhos das casas, para refrescar a pelle. Comiam o barro do chão.
+Estorciam-se, desesperados, e morriam pelas esquinas. As ruas deixavam
+apodrecer os cadaveres, e as mães engeitavam os filhos, quebrando-lhes
+os craneos tenros contra as umbreiras das portas.
+
+Nos sitiantes a furia era outra. Durava já um mez o cerco, o não fôra
+para tão demorada campanha que os Cruzados tinham vindo. A alkassba não
+caía! os perros musulmanos não se rendiam! Entretanto elles, Cruzados,
+iam morrendo de feridas, de insolações; e o despojo promettido não
+chegava. Não podiam perder assim o seu tempo. Isto diziam uns; outros
+não queriam abandonar o trabalho gasto, e despedir-se de uma presa meio
+conquistada. Sancho I, desanimado, pensou em retirar. Então rebentaram
+as iras; porque a segunda opinião vencera no animo dos Cruzados. Quasi
+chegaram ás mãos, os portuguezes e os homens louros do norte. Finalmente
+a alkassba rendeu-se nos primeiros dias de setembro; mas isso deu logar
+a novas rixas. O rei queria uma cidade, e não um despojo. Os Cruzados
+queriam o contrario. Sancho offereceu pagar-lhes o valor da presa; os
+Cruzados recusaram. Havia uma cousa que o rei não podia pagar com ouro:
+era o delirio do saque, a orgia das matanças e dos estupros. Esses
+ferozes caçadores de mouros queriam retoiçar-se pelo interior das
+alcovas mysteriosas, e enterrar os braços nas arcas dos thesouros,
+ensopar em sangue as almofadas macias sobre que iam abraçar as morenas
+filhas do Yemen.
+
+Cevados, partiram logo. Sancho pedia-lhes que acabassem a empreza,
+tomando Hayrun. Recusaram; não queriam arriscar os lucros, e estavam
+turgidos de goso. Só ambicionavam tornar á patria, para contar os seus
+feitos, e depôr aos pés das louras e ingenuas donzellas do norte, de
+suas noivas e de suas filhas, os collares, os brincos, as manilhas de
+ouro arrendado, que tinham roubado nos leitos, com a honra e a vida, ás
+filhas de Mafoma.
+
+Sancho I, não podendo seduzil-os, nem convencel-os, desistiu da empreza;
+e deixando Silves guarnecida, e occupado o oeste do Algarve, retirou
+para o norte. Afim de consolidar a conquista, tomou Beja. Mas, emquanto
+o velho Faro se conservava em poder do sarraceno, não devia o rei
+portuguez considerar seu o Al-faghar.
+
+ * * * * *
+
+Effectivamente durou pouco o primeiro dominio portuguez no extremo sul
+do reino. Quando o filho de Jussuf, Jacub, chegou a soccorrer Chelb, já
+a cidade estava perdida; e elle não soube ou não pôde retomal-a.
+Vingou-se irrompendo pelo reino; e, galgando o Tejo, assolou a
+Estremadura toda, pondo cerco a Thomar. Tampouco soube ou pôde vencer, e
+retirou-se; mas para voltar no anno seguinte. Então Silves caíu de novo
+em poder do sarraceno (1191) que, victorioso, tomou Beja, e na sua
+_gaswat_ fulminante, veiu ameaçar Lisboa, desde os muros de Almada,
+conquistada.
+
+Portugal recuava outra vez aos limites do Tejo; porém Silves, embora
+perdida, indicava o futuro inevitavel d'este longo e mortifero duello. O
+rei occupava-se em consolidar os seus Estados, povoando, e organisando a
+administração. Na impossibilidade de levar a cabo a conquista do
+Al-faghar, enfraquecido militarmente o reino pelas correrias,
+desilludido sobre a efficacia do auxilio dos Cruzados, abandonou com
+razão o systema das álgaras e surprezas, com que, sem conseguir
+manter-se um dominio estavel, se extenuavam as forças vivas da nação. O
+seu governo sabio preparou as decisivas emprezas posteriores.
+
+A primeira d'essas foi a tomada de Alcacer em 1217. No tempo de Affonso
+II já os portuguezes se tinham achado na batalha das Navas de Tolosa
+(1212), em que os principes christãos da Peninsula, tomando uma cruel
+desforra do desastre de Alarcos, deram o ultimo golpe no dominio
+sarraceno. Affonso II não tinha amor pela guerra. O lado organisador e
+administrativo do governo de seu pae imprimira-lhe paixões pacificas.
+Instigava-o ainda mais a sua avareza natural, e a condição dura em que a
+fraqueza dos ultimos annos de Sancho I o collocara, por ter doado o
+reino inteiro, thesouros e castellos, aos nobres e ao clero. Affonso II
+não quiz tomar parte da empreza de Alcacer, porque andava occupado a
+reivindicar para si o reino.
+
+Kassr-al-Fetah, Castello-da-porta ou da entrada, se dizia essa chave do
+Alemtejo; e sem a posse de um tal ponto estrategico, eram vans as
+tentativas de consolidação do dominio portuguez ao sul do Tejo. Castello
+sobre todos nocivo, chamam-lhe as memorias coevas, (_Castrum super omnia
+castra nocivum_, GUSUINI CARMEN) porque d'ahi iam annualmente para
+Marrocos cem prisioneiros christãos, arrebatados aos territorios
+fronteiros até Lisboa, nas álgaras de todos os annos.
+
+Com o auxilio de uma forte esquadra de Cruzados, Alcacer ficou
+definitivamente em poder dos christãos no meiado de 1217. Nove annos
+depois, Sancho II, em quem renascia o espirito guerreiro dos avós,
+recomeçou a conquista do Algarve, caminhando ao longo da fronteira de
+leste, valle do Guadiana abaixo, e tomando successivamente Elvas, Serpa,
+Moura, Mertola, Ayamonte, Tavira e Cacella, que os arabes denominavam
+Hisn-Kastala (1226). As deploraveis pendencias que lhe roubaram a corôa
+não deixaram a Sancho II consummar a conquista do Algarve, que no meiado
+do XIII seculo cáe por fim (1249), obscuramente, em poder do usurpador
+da corôa fraterna, Affonso III.
+
+Consolidada a separação, constituido geographicamente o paiz, resta-nos
+agora observar os movimentos internos da nação; para vêrmos como dentro
+d'ella se affirma a independencia, só plena e cabalmente definida,
+porém, na crise que poz termo á dynastia de Borgonha.
+
+ [40] V. nas _Taboas de chronologia_, a das Cruzadas, a p. 219.
+
+ [41] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 251-5, a descripção
+ das machinas de guerra dos antigos, que eram as da Edade-média.
+
+ [42] _Taboas de chronologia_, pp. 43 e 271.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+III
+
+A monarchia e a justiça
+
+
+«D. Diniz foi um aváro. Affonso IV um homem de juizo, Pedro I um doido
+com intervallos lucidos de justiça e economia.» Assim A. Herculano
+caracterisa os tres monarchas, a quem já fôra concedido reinar sobre
+Portugal integralmente constituido, dentro dos limites das suas
+fronteiras actuaes. Mas que eram então um rei e um reino?
+
+Errada idéa formará d'essas epochas aquelle que não puder desprender-se
+das impressões resultantes de periodos mais proximos de nós. Foi só
+desde o XV seculo que o desenvolvimento das nações peninsulares
+permittiu aos reis começarem a ter consciencia do caracter
+juridico-social do seu cargo[43]. Até ao XIV seculo, os
+Estados peninsulares, ou--limitando-nos agora ao campo exclusivo das
+nossas observações--Portugal, não merece propriamente o nome de nação,
+se a este vocabulo dermos o valor moderno. As comparações illustram
+superiormente a historia: e em nossos dias temos exemplos de similhança
+quasi absoluta. Esses principados slavos, onde a occupação da Turquia
+jámais deixou de encontrar resistencias, são como foram a Hespanha. O
+Montenegro reproduz as tradições das Asturias, ninho dos bandidos de
+Pelayo; a Servia ou a Herzegovina, em cujas campinas, avassalladas pelo
+turco, as quadrilhas dos indomitos montanheses veem periodicamente fazer
+as suas razzias, são como foi Portugal. A historia repete-se ainda na
+independencia final, ganha pela irradiação do fóco de resistencia
+invencivel.
+
+Regiões fadadas a tal existencia não podem ser propriamente nações: não
+attingiram esse momento de existencia collectiva, não sairam dos
+periodos preparatorios da organisação. O processo tem, n'este caso, dois
+graus caracteristicos. Primeiro apparece o bando, depois a familia. O
+rei é o chefe dos bandidos, antes de ser o protector, o pae, dos seus
+subditos. Se a guerra é antes um systema de rapinas do que uma successão
+de campanhas, a justiça é tambem mais a expressão arbitraria de um
+instincto, do que a applicação regular de um principio. A sociedade que
+se desenvolve de um modo espontaneo, á lei da natureza, vae
+successivamente definindo as idéas collectivas, á maneira que progride
+na serie das fórmas evolutivas do seu organismo[44].
+
+A substituição do principio da justiça--no qual incluimos as relações
+entre individuos, e entre classes e instituições--principio militar,
+marca o momento da primeira transformação que é a passagem do organismo
+do bando para a fórma social primitiva: a familia nacional, cujo pae ou
+patriarcha é o rei.
+
+A loucura de D. Pedro I vale, portanto, a nosso vêr, tanto como o
+bandidismo de Affonso Henriques. Os dois reis são os dois typos--da
+guerra e da justiça. Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a
+segunda é irregular, cheia de caprichos e arbitraria. Mas se Affonso
+Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o _pae_ da familia
+portugueza.
+
+O seu furor justiceiro não é mais louco, do que o furor guerreiro do
+primeiro rei. Tentámos esboçar a phisionomia d'essa epocha primitiva:
+buscaremos agora, indo beber á fonte limpa das chronicas mais proximas,
+accentuar as feições do segundo periodo. Na guerra não havia regra, nem
+planos: era uma correria solta. Na justiça não ha processos, nem
+garantias: é o dominio livre do capricho. Mas se, n'um caso, a bravura
+engrandecia e a victoria exaltava os actos do bandido, no outro, a
+rectidão dava força, e a protecção paternal coroava as decisões do
+_kadi_. O rei é o grande Juiz da familia portugueza: a sua vontade é
+lei, as suas sentenças são oraculos[45].
+
+A justiça de Pedro I caracterisa-se, pois, para nós, com o merecimento
+de um typo, da mesma fórma que a guerra de Affonso Henriques. São tambem
+os dois individuos symbolicos, por isso mesmo que são como que doidos.
+As phisionomias dos outros reis esbatem-se mais no fundo do quadro,
+confundem-se de um modo mais ou menos completo na massa dos sentimentos
+do povo; e os seus actos acompanham o desenvolvimento das forças e
+instinctos collectivos, sem os dominarem de uma fórma superior e typica.
+O leitor perspicaz não esquece que estas apreciações excluem a do
+merecimento individual das pessoas. Sancho I tem uma bella vida
+tristemente rematada n'um torpor de fraqueza. Affonso II tem uma
+phisionomia commum e antipathica, sem nobreza, mas forte e penetrante.
+Sancho II possue muito do seu predecessor em nome. Affonso III
+destaca-se pela educação franceza, que lhe ensinara a dissimulação, a
+perfidia, de mãos dadas com o bom-senso governativo. Diniz é um aváro;
+Affonso IV é um homem de juizo, no dizer de Herculano. Todos reunidos,
+porém, n'um grupo, formam um corpo de phisionomias indecisas ou communs:
+são mais ou menos guerreiros, são pessoalmente melhores ou peiores, o
+que á historia importa pouco; são bons ou maus administradores da
+republica, seu patrimonio, cuja riqueza fomentam, acompanhando o
+desenvolvimento natural da sociedade.
+
+No principio e no fim d'esta serie estão, porém, os dois individuos
+typos, os dois loucos--um, phrenetico, brandindo o punhal mortifero;
+outro, carrancudo e fero, empunhando o latego do algoz e a vara de juiz,
+ou risonho e folgasão, dançando e cantando nas ruas no meio da sua
+familia, como um pae.
+
+Pedro I tinha a paixão da justiça; era n'elle uma mania, como em seu avô
+o fôra a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os
+criminosos vinham á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando
+algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da
+meza, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os
+algozes; indicava os expedientes e processos para obter a confissão dos
+réos. Nunca abandonava o açoute: enrolado á cinta em viagem, tomava
+d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe traziam.
+Os adulteros mereciam-lhe um odio especial: jámais lhes perdoava. D.
+Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, _luitador e trovador de
+grandes ligeirices_, a quem embora amasse _mais que se deve aqui dizer_,
+o rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse.--O rapaz
+engrossou e morreu depois da _sua natural door_. Certa mulher era infiel
+ao marido, que nem por isso se offendia: offendeu-se o rei, e mandando-a
+queimar, respondeu ao esposo desolado que lhe devia alviçaras pelo ter
+vingado. Havia um homem casado, com filhos, mas que antes da boda
+forçara a mulher. Roussou? morra. Enforcou-o, entre os choros e
+supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne
+perseguia com furor as alcouvetas; e as feiticeiras não lhe mereciam
+menos cuidados.
+
+Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda
+mais terrivel a expressão da sua phisionomia. A fala não lhe deixava
+traduzir bem as cóleras; e rubro, grosso, agitando o latego, n'um
+delirio, mettia espanto. Os gagos, porém, teem isto de particular: tanto
+o defeito accrescenta ao horror na furia, como põe nas horas mansas o
+quer que é de bonhomia quasi ironica. Era assim D. Pedro. Caçador tenaz,
+descansava do officio de juiz nas corridas do monte, seguido pelos moços
+com os nebris e falcões, e pelas matilhas de caens. Então o seu rosto
+aplacava-se, e era benigno, bemfazejo, liberal, folgasão. _Foi grande
+criador de fidalgos._ Glotão, passava horas esquecidas á meza, onde a
+vianda era em grande abastança.
+
+Punir os maus, enfrear os fortes, «querendo fazer graça e mercê ao nosso
+poboo» era o seu constante desvelo paternal. Nas côrtes que reuniu em
+Elvas (maio de 1361) vê-se pelas respostas aos capitulos dos povos como
+o seu governo era protector. Queixavam-se os conselhos de que as casas
+dos mestres das ordens, dos bispos e priores, dentro das villas, caíam
+em ruinas; e o rei decide de um modo simples: _filhem_ as nossas
+justiças aos proprietarios o que for necessario para as obras. Filhem
+mais, para as pôr em grangeio, as herdades e vinhas ermas. Os
+ricos-homens veem ao concelho e pousam em casa de mulheres honestas,
+perdendo-lhes a reputação; pousam nas adegas e nos celleiros de trigo, e
+fazem d'elles cavallariças, allega o povo--e o rei ameaça o fidalgo que
+assim fizer. O clero, isento como estava dos serviços militares da hoste
+ou do appellido, recusa-se a acudir na hora de um perigo imminente? Que
+os clerigos acudam com os leigos, diz o rei, quando haja fogo ou inimigos.
+
+Mas o «nosso poboo» ás vezes exige de mais, como uma creança que se
+sente adorada. Modere-se: o rei é um pae, mas o pae é um juiz, sempre
+benigno e amoravel porém. Quando recusa, não se vê arrogancia, apenas
+uma reserva prudente: «mostrem e declarem aquello em que lhis vam contra
+seus foros, graças e mercees que ham e que, nos lhas faremos guardar.»
+Exigir que as meretrizes e barregans andem estremadas pelo trajo, é
+querer muito n'essa Edade-média prostituta e adultera, faminta e
+leprosa, que vive de carnalidades, violencias e feiticerias: «Tragam
+suas vestiduras como as poderem aver, porque perderiam muito em os
+pannos que teem feitos e nos adubos que em elles tragem.» Mas quando o
+povo se queixa do que soffre com os serviços militares, obrigado o
+villão a ter cavallo e armas desde que possue uma certa _quantia_ de
+bens, o rei attende e ordena que não sejam quantiados a nenhum os pannos
+de seu vestir e de sua mulher até dois pares, nem as roupas de suas camas.
+
+Sobre a cabeça do povo humilde pesam duas ameaças constantes: o nobre
+com a sua violencia, o judeu com a sua manha. O fidalgo e o onzeneiro
+são a desgraça da gente, a perdição das filhas e a ruina das searas.
+Quem nos protegerá senão o rei? Se o judeu onzenar, responde este, «nós
+o mandaremos matar e lhe tomar quanto houver.» Mas ninguem se atreva com
+elle, a não ser a justiça, que anda sobranceira a todos, a tudo. De uma
+vez D. Pedro mandou matar dois escudeiros por terem roubado a um judeu;
+e se tambem cortou a cabeça a outro, dos bons, de Entre-Douro-e-Minho,
+por ter partido os arcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, foi
+elle o proprio que mandou degolar o sobrinho do alcaide de Lisboa por
+depennar as barbas a um porteiro.
+
+A justiça havia de ser tremenda quando os costumes eram barbaros,
+corruptos e ingenuos ao mesmo tempo; quando o incesto, o adulterio, o
+assassinato, o estupro, o roubo, e essa offensa extravagante da
+merdinbuca (_stercum in ore_), tão frequente nos foraes, acompanham as
+linhagens das familias e enchem as paginas das cartas dos
+concelhos.[46] O juiz não será um algoz, mas é mistér que
+seja um tyranno; e o symbolo da justiça não está na balança com o seu
+fiel sensivel, mas antes na espada e no latego, na furia e no amor, no
+capricho benevolente e na sanha vingadora de um rei temido como foi D.
+Pedro.
+
+Assim como a sua justiça era, pois, destituida de magestade, assim o
+eram as suas folganças. Dir-se-hia um rustico feito rei; e acaso por
+isso o povo o amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas, no
+sentimento, nem no trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz
+e o algoz, as suas festas eram _kermesses_ extravagantes e plebeias. Os
+instinctos aristocraticos e as fórmas da cortezia nobre, os torneios, as
+lanças, não tinham n'elle um amador. Era um democrata, um _tyranno_ á
+moda antiga, em cujo espirito encarnara toda a brutalidade popular: por
+isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis, passando de bocca em
+bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas continuas folganças
+populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos merece quem
+tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D.
+Pedro.
+
+Quando voltava em bateis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a
+recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba,
+dançando ao som das _longas_ (trombetas) como um rei David. Estas folias
+apaixonavam-no quasi tanto, como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava
+a fazer loucuras. Certas noites, no paço, a insomnia perseguia-o:
+levantava-se, chamava os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o
+pelas ruas, dançando e atroando tudo com os berros das longas. As
+gentes, que dormiam, saíam com espanto ás janellas, a vêr o que era. Era
+o rei. Ainda bem! ainda bem! que prazer vel-o assim tão
+ledo!--Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos de somno; e as
+ruas, um momento antes silenciosas e negras, brilhavam com as luzes, e
+tinham o clamor da multidão em vivas e o movimento das danças universaes.
+
+Era uma loucura? Seria. A Edade-média é uma vertigem. O povo, afflicto
+pelas miserias do mundo e pelos terrores do céo, vivia n'um sonho feito
+de dôres positivas e de medos transcendentes: rodopiava n'um _sabbath_.
+Deus abençoe o rei que nos defende por sua mão! que vem comnosco bailar
+ás noites por essas ruas lugubres! que persegue os incantadores e
+feiticeiras! É o nosso justo juiz, o nosso bom pae, o nosso amigo e
+irmão: adoremol-o!
+
+Não eram só justiça e festas que o rei lhes dava: era pão. Sabio
+administrador, juntava grandes thesouros; e esta noticia augmentava, ao
+medo e ao amor, o respeito por um rei tão bom. A brutalidade e o egoismo
+dos costumes medievaes traduzia-se a miude n'um flagello terrivel--a
+fome, de que o pobre povo soffria sempre mais ou menos. A fome e as
+guerras geravam pestes. A primeira metade do seculo XIV fôra uma cadeia
+de desgraças. «No anno do Senhor, de 1830, diz o livro de Ceiça, foi a
+pestilencia grande e morreram então em dois mezes cento e cincoenta
+religiosos. Os lazaros eram tantos e tão antigos que D. Diniz
+deixara-lhes em testamento duas mil libras. Em 1333 houve fome, e os
+mortos já não cabiam nos adros das egrejas, enterrados aos seis em cada
+cova. No dia de S. Bartholomeu do anno de 1346, tremera a terra a ponto
+de os sinos tocarem nas torres, pavorosamente, um dobre de finados,
+annunciando o acabar do mundo. Depois veiu a peste de 48; e em 55, dois
+annos antes da morte de Affonso IV, foi a secca, havendo outra fome
+medonha. Da gafaria para a cova, ameaçado por todos, na terra e no céo,
+o povo infeliz e faminto congregava-se em volta do throno protector,
+adorando o rei justiceiro e providente, inimigo das pestes, das guerras,
+das fomes, e sentia-se rico dos thesouros guardados nas torres do
+castello. Além d'isso, D. Pedro fartava-o. As suas folias não eram só
+danças e musicas. Quando Affonso Tello foi armado cavalleiro houve uma
+kermesse monumental. Durante a vigilia d'armas, cinco mil tochas
+illuminavam as ruas, desde S. Domingos até ao paço; e o rei, entre as
+alas de lumes, radioso e bom, na sua gaguez, dançou com o povo a noite
+inteira. Ao outro dia o Rocio estava coalhado de tendas e montanhas de
+pão e grandes tinas cheias de vinho. Nas fogueiras, em espetos
+collossaes, assavam-se vaccas inteiras. Havia de comer para toda Lisboa.
+O povo exultava, n'esses ágapes da monarchia.
+
+A velha tragedia dos seus amores e da sua rebellião augmentava-lhe ainda
+as sympathias. O tyranno apparecia, justiceiro e bondoso, sobre o fundo
+de um azul de amores infelizes que encantavam a alma popular. Ignez de
+Castro, a sombra de um anjo, coroava-o de além do tumulo. Mas esta
+piedosa recordação era, na alma do rei, um espinho que o mordia sem
+cessar. O seu genio cruel pedia vinganças. Entendeu-se com o visinho de
+Castella, e pôde haver ás mãos dois dos assassinos. O povo não approvou
+o escambo; e o rei muito perdeu de sua fama, diz o chronista. O castigo
+dos assassinos foi duro: D. Pedro estava fóra de si, as palavras
+atropellavam-se-lhe na garganta, e não podendo satisfazel-o as muitas
+injurias, deshonestas e feias, vingou-se a chicotear os infelizes na
+cara. A sua colera attingia a ironia soez. Queria cebola e vinagre, para
+comer o Coelho em molho-de-villão. Por fim mandou que lhes arrancassem,
+vivos, os corações, a um pelo peito, a outro pelas costas. Gozou-lhes a
+morte, e acabou vingado.
+
+Pedro I é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os
+vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis
+e as amisades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo onde acaso
+alguma lepra dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam
+o caracter d'esse rei que é verdadeiramente um symbolo. Por isso o povo,
+vendo-se n'elle retratado, o adorou.
+
+ * * * * *
+
+A politica da independencia puzera no seio da familia portugueza um
+membro, cujas arrogancias e pretenções ameaçavam desnortear o fiel da
+justiça social. O clero aspirava a usurpar a authoridade á monarchia.
+Além da força que as tradições juridicas lhe davam; além da authoridade
+espiritual e do espectro das bullas de excommunhão, pavor das almas
+ingenuamente crentes; além do poderio fundado n'uma riqueza excessiva e
+na machina absorvente da mão-morta, poço onde caíam as heranças e
+legados dos rudes batalhadores arrependidos; além de todas as causas
+geraes, o clero invocava em Portugal um argumento particular: o rei era
+vassallo, o papa suzerano. Por tal preço obtivera Affonso Henriques um
+simulacro de sancção juridica para a sua rebellião.
+
+A situação do clero catholico no seio da primitiva sociedade
+portugueza--e das coevas em geral--resulta de um tal concurso de
+elementos heterogeneos, que nenhuma das faces do systema dos costumes
+retrata, melhor do que esta, a confusão cahotica d'esse novo mundo que
+se formava sobre as ruinas e destroços do antigo. Politicamente, o facto
+de um poder, superior por ter um fundamento transcendente, estranho ao
+poder civil, é a primeira causa de conflictos.[47] Perante
+a Egreja, todos são egualmente subditos, desde o rei até ao infimo dos
+_viliores_. A base religiosa d'esse poder consolida-se com a força que
+dá a riqueza. Os barões, crendo de facto na verdade da revelação, e
+n'uma outra vida onde hão de ser julgados, teem uma religião feita de
+medo; e como no fundo são barbaros, vivem na terra á lei da força,
+remindo com esmolas e legados, á hora da morte, os longos rosarios de
+crimes. Julgando-se proximos a apparecer perante o supremo juiz,
+reconhecendo á hora da morte a inutilidade da força e da perfidia
+perante quem tudo póde e tudo vê, compram o perdão com o fructo das
+rapinas e dos crimes; e assim formam o alicerce de um poder real,
+verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que ficam teem de entender-se
+com o clero herdeiro; teem de debater por todos os meios a influencia e
+o poder, para outra vez, á hora da morte, repetirem os actos causadores
+das luctas que lhes encheram a vida. Por tal fórma se encerra um circulo
+vicioso que a politica não póde romper, porque a religião o não
+consente. Desde que as raças germanicas, avassallando o imperio antigo,
+não tinham podido desenvolver a sua independencia religiosa e acceitaram
+o christianismo, força era que assim fosse, emquanto os dogmas christãos
+governassem as consciencias.
+
+N'este sentido é perfeitamente legitima a influencia do clero; e não o é
+menos por virtude da authoridade que lhe dá o saber, com effeito já
+pervertido, mas ainda preponderante sobre reis e principes analphabetos.
+Legitima a sua influencia, historicamente legitima a sua força, o clero,
+porém, recebia por seu turno a acção reflexa do meio ambiente em que
+vivia. Era tão aváro, tão feroz, tão barbaro, tão vicioso, como os
+seculares; e a sua cultura accrescentava ainda, aos defeitos da
+brutalidade, os da civilisação. As perversidades requintadas, as
+perfidias subtís tinham n'elle os melhores mestres; e por sua via
+entravam no corpo de uma sociedade barbara. Os sacerdotes eram os
+educadores politicos dos principes, quando não eram os seus declarados
+adversarios. Ensinavam as manhas, a quem apenas sabia commetter os actos
+brutaes. Aos vicios do instincto sabiam juntar as perversidades da
+intelligencia.
+
+Se os principes da Egreja influiam de tal modo, a plebe ecclesiastica
+acompanhava as massas no rodopio lugubre e sanguinario da dança infernal
+da Edade-média. Os homens da Egreja commettiam todos os crimes.
+Sacerdotes, habitando os templos e os mosteiros, os seus erros eram
+outros tantos sacrilegios, pela qualidade dos delinquentes e pela
+condição do lugar. Roubavam, feriam, matavam, mentiam. Os casados
+andavam bigamos; os solteiros, publicamente amancebados. Davam o braço
+ás prostitutas, viviam com ellas, e desfloravam donzellas. Engeitavam os
+filhos, repudiavam as esposas. Além de criminosos, eram indignos.
+Faziam-se carniceiros em praça publica, matando e degollando as rezes,
+vendendo carnes. Eram jograes, tafues, bufões. Escondiam a corôa,
+deixavam crescer o cabello, e abandonavam o trajo ecclesiastico, para
+mais á solta poderem abandonar-se aos seus desvarios.
+
+E, obrando taes crimes, desvirtuando por tal modo os legitimos
+privilegios do sacerdocio e da illustração, não deixavam de reclamar o
+fôro de uma justiça especial. D'ahi resultava que o rei podia enforcar
+um réo, por ser secular, e o cumplice ecclesiastico ficava impune.
+Testemunhas seculares não valiam contra elles, e ecclesiasticas não
+appareciam, porque o vedava a solidariedade da classe. O desvario era
+tamanho, que havia quem chegasse a ordenar-se, unicamente para commetter
+crimes impunemente.
+
+Juntem-se estes costumes aos costumes bravios da epocha; junte-se mais a
+serie de conflictos politicos e economicos, levantados pela condição
+particular da Egreja; addicione-se a situação especial de vassallo em
+que Affonso Henriques collocára o throno portuguez--e desde logo se
+comprehenderão os motivos dos longos e pittorescos conflictos da
+primeira época da historia nacional.
+
+A erudição lançou para o campo das lendas os episodios tradicionaes do
+tempo de Affonso Henriques; mas a historia não póde desprezar esses
+traços pittorescos com que o povo retrata, infiel mas typicamente, as
+tendencias e os costumes. Sabe-se a historia do bispo negro de S. Cruz
+de Coimbra; e os monumentos remotos contam o que Affonso Henriques, se
+não fez, poderia ter feito ao legado que veiu de Roma excommungal-o por
+se ter levantado contra a mãe, pela ter mettido a ferros e não a querer
+soltar--segundo resa a chronica. Era homem «muy bravo de grande coraçom»
+o principe a quem a rebeldia do clero irritava. Foi esperar o legado ao
+Vimieiro, chegou-se a elle, travou-lhe do cabeção, sacou da espada e
+quizera cortar-lhe a cabeça. Os cavalleiros do rei acudiram: «Dirão em
+Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o rei de colera, mas
+baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja excommungado
+em todos os meus dias e que não leveis d'aqui ouro, nem prata, nem
+bestas, senão tres!» E proseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a
+posse «d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O
+sobrinho do cardeal ficaria em refens: teria a cabeça cortada se a carta
+não viesse em quatro mezes. O cardeal, diz-se, prometteu, annuindo a
+tudo; e o leitor sabe, pelo modo como lhe contámos os pactos de Zamora,
+qual é a verdade que esta scena pittoresca exprime. O rei que «em sua
+mancebia foi muito bravo e esquivo,» prosegue a lenda, feitas as pazes,
+disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E despindo-se,
+mostrou-lhe as feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas em que
+as tinha havido. Resolvida a contenda, satisfeita a cubiça, aplacada a
+colera, apparecia depois do guerreiro violento o homem timido e crente,
+com a visão do inferno e o terror da excommunhão.
+
+Por isso os prelados de Braga, Coimbra e Porto eram como tres reis no
+reino, cujos limites já para um unico provavam escassos. Se as guerras
+da separação, primeiro, depois a conquista do sul do reino e a
+deslocação do seu centro para Lisboa, marcam os momentos geographicos
+decisivos da historia da independencia, a resolução dos conflictos
+ecclesiasticos e a consolidação do poder monarchico marcam, decerto, o
+movimento tambem decisivo d'essa historia, sob o aspecto mais intimo e
+organico da justiça social.
+
+Dos tres reis mitrados, o do Porto foi o que mais trabalhos deu aos
+monarchas portuguezes. O reinado de D. Sancho I, tão brilhantemente
+iniciado pela conquista de Silves, e com tanta sabedoria dirigido para a
+consolidação do centro assolado do paiz, é dos mais notaveis na historia
+dos conflictos com o clero. O rei era tão irascivel como credulo:
+acompanhava-o sempre uma feiticeira, diariamente consultada. Não tinha o
+furor bellico do pae, nem a energia justiceira do neto: parece ter sido
+um homem commum, mas serio.
+
+Na primeira decada do XIII seculo governava o bispado do Porto Martinho
+Rodrigues, homem atrevido, ambicioso, cheio de força e vicios. A
+authoridade da corôa limitava-se por esses tempos ao velho Porto, hoje o
+suburbio de Gaya, e o bispo imperava na cidade. Exacções e tyrannias,
+communs a todos os senhorios feudaes, levaram os burguezes do Porto a
+rebellar-se contra o bispo, invocando o auxilio que o rei lhes não
+refusou. Acclamado pelo povo, Sancho I entra na cidade; arrombam-se as
+portas das egrejas, a turba invade e assola os templos, conspurca os
+altares; e o bispo fica cinco mezes preso no palacio episcopal, até que
+finge submetter-se ás exigencias, com o proposito, que realisa, de ir a
+Roma pedir desforra ao papa. Entretanto o de Coimbra encerrava os
+templos e negava os serviços religiosos aos fieis: era esse um dos meios
+ordinarios de combate. Sancho I vae a Coimbra, faz de bispo, obriga os
+padres, á força, a celebrarem os officios divinos, mandando arrancar os
+olhos aos recalcitrantes.
+
+Voltou a final (1210) Martinho Rodrigues, de Roma, com bullas de
+Innocencio III. O nuncio ou legado do papa devia em pessoa lel-as ao
+rei; porque o chanceller Julião, valendo-se da ignorancia do soberano,
+usava alterar o que lia. Sancho I ouviu com humildade a monitoria papal.
+Estava doente, já fatigado da vida, e na perspectiva da proximidade da
+viagem para o outro-mundo, memorava tudo o que tinha feito, os desacatos
+e sacrilegios. Os remorsos enchiam de terror o seu animo duro, obtuso e
+bravio. Curvou-se e penitenciou-se. Este era sempre o momento infallivel
+da victoria da Egreja: a superstição entregava-lhe, manietados e
+submissos, os seus terriveis inimigos, na hora da morte imminente.
+Sancho I pedia aos monges de Alcobaça que rezassem por sua alma esses
+lugubres psalmos, que pareciam aos infelizes como um ecco das terriveis
+symphonias da eternidade. Reclinado no leito da morte, o rei, apavorado,
+via a face medonha do supremo Juiz; e sentia-se já precipitado nos
+abysmos ardentes, no seio das chammas crepitantes, roído, macerado pelos
+monstros diabolicos, a gritar em dôres infernaes.
+
+Desistiu de tudo; abandonou á sua miseranda sorte os burguezes fieis,
+deu rendas, legados, terras, senhorios. Deu mais até do que possuia!
+Conseguiria por tal preço obter o perdão? Os padres diziam-lhe que sim,
+e abençoavam-no promettendo-lhe a salvação.
+
+Fóra da camara, onde o rei agonisava (1211), o herdeiro, Affonso II,
+vulgar e obeso, avarento e incapaz de perceber a situação cruel do pae,
+ruminava porém, com o chanceller Gonçalo Mendes, discipulo de Julião, o
+plano da desforra. Começou por confirmar tudo o que o fallecido doára ao
+clero, porque primeiro tinha que liquidar contas com os irmãos e com o
+seu partido. Sancho I deixára-lhes metade do reino. Affonso queria-o
+inteiro para si: e era muito bastante para vêr que não podia bater-se ao
+mesmo tempo com todos os adversarios. Faltava no caracter do filho a
+nobreza do caracter do pae. Nas côrtes de 1211 confirma ainda a isenção
+dos cargos publicos, mas prohibe ao mesmo tempo ao clero a compra de
+bens de raiz. O de Braga protesta, e Affonso II manda-lhe arrazar os
+campos, destruir as granjas e confiscar as rendas. Estava outra vez
+declarada a guerra entre a monarchia e o clero. O rei morre,
+impenitente, apesar das ameaças das bullas de Honorio III.
+
+O segundo Sancho tinha muito do caracter do primeiro: era sinceramente
+devoto, e na Edade-média a sinceridade implicava certeza de derrota. É
+verdade que já a este tempo o terror das excommunhões diminuira: tão
+excessivo uso o clero dellas tinha feito. Os interdictos e a denegação
+de sepultura em sagrado eram acompanhamento constante de todas as
+pretenções ecclesiasticas. Se, porém, a força das armas canonicas
+minguára, não tinha diminuido o poderio positivo do clero, que era a
+classe mais opulenta do reino. O que os bispos exigiam de Sancho era
+demasiado; e como lhes foi negado, depozeram o bom e valente rei (1245).
+Em França, o usurpador subscreveu a tudo; sentado no throno, o terceiro
+Affonso, soube defender-se como se defendera o segundo. Trazia de fóra a
+muita experiencia, a manha, e a pertinacia consummadas, que aprendera
+nas côrtes mais polidas da Europa central.
+
+Evidentemente o clero baixa n'esta longa e interessante batalha. O
+fundamento juridico das suas pretenções vae gradualmente fugindo, á
+medida que as tradições romanistas e o espirito secular inspiram as
+acções dos monarchas, primando sobre as maximas do direito canonico.
+Esta substituição traduz o aclaramento gradual que se dá nas
+consciencias, á maneira que as superstições infantis d'essas primeiras e
+obscuras alvoradas, se vão abrindo no dia claro do renascimento da
+cultura intellectual.
+
+D. Diniz (1279-325) já não é analphabeto, e mede bem o valor da
+sciencia: prova-o a fundação das Escholas. Por outro lado, vê que a
+principal causa da força do clero está no ultramontanismo, palavra então
+desconhecida ainda para exprimir a influencia e authoridade soberanas
+dos papas sobre as Egrejas nacionaes. Libertar-se d'essa perigosa
+intervenção era o meio de diminuir a gravidade dos conflictos. Acaso a
+tradição dos concilios da Hespanha visigothica influiu para a creação
+das assembléas de prelados, cujas _concordatas_, registrando os fóros da
+Egreja, a subtrahiam á influencia estrangeira, por tornarem nacional o
+clero e internas as suas questões. O rei, que assim fomentava a educação
+e nacionalisava a Egreja, cimentando por outro lado o desenvolvimento
+economico do paiz, tinha uma intuição dos caracteres modernos das
+nações. Portugal caminhava de facto, rapidamente, na estrada da sua
+independencia, isto é, da sua constituição organica. O povo costumou-se
+a dizer: «El-rei D. Diniz fez tudo o que quiz.»
+
+Pedro, o justiceiro, com a sua typica individualidade conclue de um modo
+terminante e brusco a velha questão da influencia de Roma, quando
+estabelece o _placito regito_: «Nenhumas bullas, nem lettras pontificias
+serão publicadas em Portugal sem consentimento meu.»
+
+Procedia summariamente: e a sua politica, toda pessoal, acclamada com
+enthusiasmo por um povo que o adorava, era a voz indomavel da nação que
+falava por sua bocca. A sua loucura era a synthese do pensamento
+collectivo. Quando o bispo do Porto reagiu, o rei foi lá em pessoa, diz
+a chronica, fechou-se com elle n'uma sala, despiu o gibão para ficar
+mais á vontade: trazia por baixo uma saia de escarlata. O bispo,
+transido de susto, esperava, sem ousar pedir soccorro. D. Pedro
+chegou-se e, placidamente, tirou-lhe a capa; desenrolou o latego, e
+correu-o a açoites, dizendo-lhe a rir, gaguejando: vae! anda! toma!
+
+Não podia conceber leis, a cuja sombra os criminosos ficassem impunes; e
+por isso dava-se-lhe pouco de enforcar os padres.--E as regalias da
+Egreja?--«Vam-no enforcando, respondia com bom humor e pausa, porque não
+podia falar depressa. Vam-no enforcando: por esse caminho lá vae para
+Jesus Christo, seu vigario, que no outro-mundo o julgará!»
+
+E ficava-se a rir, vendo o tonsurado espernear na forca.
+
+Tudo mudára. Os tempos eram diversos; as excommunhões, papeis
+rabiscados; as regalias da Egreja, uma tradição apenas. O rei parado,
+com os olhos na forca, ria!
+
+«E diziam as gentes que taes dez annos nunca ouve em Portugal como estes
+que reinara el-rei dom Pedro.(Fernão Lopes.)
+
+ * * * * *
+
+A fidalguia não tem uma historia tão grave como a do clero. As condições
+peculiares da constituição do reino portuguez augmentavam ainda os
+embaraços que em toda a Hespanha houve para a formação acabada de um
+feudalismo.[48] Todos os conflictos da nobreza com a Corôa
+proveem, não de uma questão de ambição politica, não de um pensamento
+definido de emancipação revolucionaria, como a do clero; mas da avareza,
+da cubiça, da brutalidade pessoal dos homens, nos quaes é mistér incluir
+tambem os reis.
+
+A não serem, por outro lado, as revoltas do Porto, e as guerras entre
+Bragança e outros concelhos transmontanos, por causa do senhorio de
+Lamas, nada se encontra em Portugal que dê idéa de uma descentralisação
+de dominio politico, similhante á que lavra para além das nossas
+fronteiras[49].
+
+Poucos são os conflictos entre o rei e os barões que não tenham por
+origem a _pilhagem_ dos realengos. Distante, e por isso mais fraca a
+acção da Corôa, o fidalgo do logar não receava chamar seu e apossar-se
+violentamente do terreno visinho, pertencente ao rei. Além d'isto, os
+nobres forjavam titulos, inventavam doações, para _honrarem_ territorios
+sujeitos á acção das justiças reaes. D'estas causas provinham confusões
+inextricaveis, que a força apenas decidia. Quando o mordomo do rei, ou o
+seu aguazil, appareciam a cobrar um tributo ou reclamar um preso, o
+fidalgo usurpador, ou, do terreno, ou do privilegio apenas, saía com os
+seus homens: «Ca por aqui é _honra_!» E enforcava-os. Enforcava-os, ou
+matava-os mais barbaramente ainda. Um porteiro, que ia fazer uma
+penhora, teve as mãos cortadas, e foi depois assassinado. Outro, atado á
+cauda de um cavallo, foi de rastos, levado a galope em volta de toda a
+_honra_. Um foi _pendurado pelos braços_. Outra vez o fidalgo _prendidit
+eos per gargantas_: os processos eram tão barbaros como o latim.
+
+Entretanto, embora destituidas de um alcance ou significação
+politico-feudal, não faltam nas primeiras epochas portuguezas revoltas e
+desordens oriundas das necessidades bulhentas da fidalguia. Batalhar era
+o unico meio de passar o tempo, ganhando fama e dinheiro ou terras. Mais
+pacifico o reino occidental da Peninsula, «em aquell tempo os fidallgos
+portuguezes hiam a Castella muitas vezes por se provarem pellos corpos
+quando em Portugall mesteres nom avia.» Mesteres eram desordens, como a
+que assolou o paiz no tempo de Sancho II e levou á deposição do rei. Eis
+aqui um episodio do livro das _Linhagens_: «E este Raymão Viegas de
+Portocarrero, sendo vassallo d'elrey D. Sancho de Portugal, veio uma
+noute a Coimbra com a companha de Martim Gil Soverosa, onde el-rey jazia
+dormindo na sua cama; e roubaram-lhe a rainha D. Mecia sua mulher de
+apar d'elle e levaram-na para Ourem. O rei lançou-se apoz d'elles e só
+os pôde alcançar em Ourem que era então muy forte. Disse-lhes que
+abrissem as portas, pois era elrey D. Sancho, e levava seu preponto
+vestido de seus signaes e seu escudo e seu pendão ante si, e deram-lhe
+muy grandes sétadas e muy grandes pedradas no seu escudo e no seu pendão
+e assim se houve ende (d'alli) a tornar.» Mesteres eram estas guerras
+civis frequentes; mesteres, porém, menos nobres, eram as vinganças
+crueis exercidas sobre o povo inerme, como a de um tal Martim Esteves,
+que matou os doze melhores homens de Alter-do-Chão «por deshonra que lhe
+ahi fizeram.»
+
+Mesteres ainda, são os desaggravos do thalamo tão a miude violado. Houve
+um Dom Rodrigo Gonsalves casado com Dona Ignez Sanchez; ella, estando no
+Castello de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e o marido,
+certo d'isto, chegou ahi, cercou as portas do castello, e queimou-a a
+ella e ao frade e homens e mulheres e bestas e caens e gatos e gallinhas
+e todas as cousas vivas, e queimou a camara e pannos de vestir e cama, e
+não deixou cousa movel.
+
+Nos mesteres amorosos tambem essa gente barbara se «provava pellos
+corpos» mas sem necessidade de ir a Castella. Quando em tão pouco se
+tinha a vida alheia, como se teria em muito a honra? De Affonso
+Henriques, o rei «muito bravo e esquivo em mancebo», conta a historia
+que foi um dia hospedar-se em Unhão, a casa de um homem-bom que havia
+nome Gonçalo de Sousa, e emquanto elle ia adubando o comer, foi elrey
+vêr-lhe a mulher que tinha por nome Dona Sancha Alvares e
+começou-lh'a... E Dom Gonçalo de Sousa entrou pela porta e viu assim ser
+e pesou-lhe d'ahi muito e disse-lhe: Senhor, levantae-vos, ca adubado o
+tendes. E o rei foi sentar-se, e comeu e partiu; e o marido pegou da
+esposa, montou-a n'um jumento com a cara para a cauda, e mandou-a assim
+á côrte entregar ao rei.
+
+Estes escrupulos do fidalgo não eram, porém, geraes, e fazem-lhe honra.
+A promiscuidade repugnante, o incesto, o sacrilegio são casos communs.
+Um fez um filho em Tereja Mendes, abbadessa de Lorvão e levou-o para a
+côrte, onde D. Diniz lhe deu muito bem e muita mercê. Outro «ouve um
+filho, Ruy, que foi privado d'elrey D. Diniz e ouvidor de sua caza.» Os
+reis, os nobres teem barregans publicas e legiões de bastardos. Quando
+D. Maria Paes, amazia de Sancho I, vinha do enterro do rei em Coimbra,
+encontrou em Avelans Gomes Lourenço, que lhe saíu ao caminho e a
+_filhou_ por força, roussando-a. Elvira Annes roussou-a Ruy Gomes de
+Briteiros. E D. Fernão Mendes, o bravo, «foi o que matou sua madre na
+pelle da ussa e pose-lhe os caens, porque lhe baralhara com a barregan.»
+A bestialidade nem respeita o sangue, nem um incesto impede o casamento
+das nobres damas. «Dona Thereza Gil foi de mau preço e ouve filhos de
+seu primo co-irmão»; Dom Pedro Garcia _jouve_ com sua irman e «fez em
+ella semel.» Dona Mor Garcia não foi casada, mas roussou a seu irmão
+Pedro e «fez em ella Martim Tavaya.» Outrotanto succedeu a uma Maria
+Mendes, que depois casou com Lourenço Soares de Valladares. É longa a
+lista das torpezas das _Linhagens_ da fidalguia. Taes são os poeticos
+amores da Edade-média, cujo brio é perfidia, cuja bravura é crueldade,
+cuja nobreza é astucia. A carne, o sangue e o ouro, a orgia bestial, a
+carniceria e o roubo são os elementos d'essas historias, em que a rudeza
+barbara apparece manchada de podridões asquerosas.
+
+O roubo e o assassinato compõem essa epopêa aristocratica, cujos amores
+são _roussos_, estupros, adulterios, cujo espirito é a avareza e a
+perfidia.[50] _Filhar_ as terras do rei, é a primeira das
+emprezas da _cavallaria_ em Portugal. E o rei não vale mais do que os
+cavalleiros. Quantas vezes, com effeito, não seria usurpadora a sua
+intervenção? quantas vezes a ira brutal do fidalgo não teria um
+fundamento justo? Affonso II leva metade do seu reinado a espoliar da
+herança os irmãos, e todo elle a _inquirir_ o fundamento legal da posse
+dos dominios aristocraticos: faz-se idéa da regularidade do segundo
+processo, depois de observada a primeira façanha. A confusão é tão
+grande, que D. Diniz (1309) decide abolir todas as _honras_ posteriores
+a 1290.
+
+É tambem no seu tempo que um outro acto de grande alcance vem diminuir o
+poder da nobreza, de um modo analogo ao que succedera ao clero. Assim
+como, fóra da nação, o clero tinha em Roma o seu chefe supremo; assim
+tambem as Ordens militares, estabelecidas em Portugal, tinham fóra do
+reino os seus mestrados. Nacionalisar as Ordens militares (1310)
+equivalia ao que se conseguira com as assembléas do clero. O _Templo_,
+poderosa machina destruida por Clemente V, legava os seus bens ao
+_Hospital_, mas os tres reis de Castella, Aragão e Portugal, _como todos
+tres fuessemos uno a catar nuestro drecho_, conseguem nacionalisar os
+bens dos templarios. É com elles que D. Diniz funda a ordem portugueza
+de Christo.
+
+ * * * * *
+
+Os monges militares[51] tinham representado um papel
+importante no movimento da reconstituição economica dos territorios
+portuguezes. Desde os primeiros tempos que ás Ordens jerosalemitanas
+fôra confiada a guarda de numerosas povoações. O Templo, o Hospital e o
+Sepulcro fruiam de abundantes doações; e Affonso Henriques concedera á
+primeira a terça parte de todas as conquistas ao sul do Tejo. Á inopia
+de forças para levar a cabo as grandes emprezas de Lisboa, Alcacer e
+Silves, pontos decisivos da conquista do sul do reino, remediavam os
+Cruzados; mas as esquadras partiam com o saque, e sósinhos os
+portuguezes não podiam conservar o adquirido. N'este motivo se fundára a
+concessão permanente de terras ás Ordens militares. Como vimos, Sancho
+II estendeu as fronteiras do reino pelo alto-Alemtejo; e sem recursos
+para conservar as conquistas, chamou para o reino os cavalleiros de
+Santiago e Calatrava, cujo mestrado era castelhano.
+
+Tal era o unico meio de guarnecer os castellos dispersos pelas vastas
+campinas assoladas do sul do reino. A instabilidade do dominio e a
+escassez da população--ainda hoje sentimos as consequencias d'essas
+prolongadas guerras--não permittiam que a cultura se estendesse; e á
+falta de productos da terra, christãos e sarracenos tinham de
+soccorrer-se ao systema de correrias e algaras permanentes. Como em
+nossos tempos na Servia, o lavrador trabalhava armado, na limitada área
+aproveitada em torno dos lugares fortificados. Além da occupação
+constante de _alancear mouros_, havia os grandes fossados annuaes, no
+tempo em que as searas estavam maduras; e isto fazia precaria e
+transitoria a agricultura. Todas estas causas reunidas produziam em
+resultado a devastação universal, já consummada na edade de que nos
+occupamos. Nos foraes dos primeiros seculos da monarchia, o alfoz dos
+concelhos é demarcado por uma certa penedia no alto da serra, pelo
+carvalho insulado, pela _velha_ estrada mourisca, por certa pedra de côr
+diversa; jámais por casas, villares ou granjas.
+
+O norte do reino, abrigado das invasões, defendido pelas linhas
+estrategicas do Tejo e do Mondego, não era, desde seculos, theatro da
+guerra santa. As depredações, menos geraes e menos frequentes, provinham
+ahi apenas das rixas dos senhores e das guerras civis. Affonso II mandou
+arrasar as propriedades do arcebispo de Braga. As guerras entre os
+filhos de Sancho I, as commoções que acompanharam a queda de Sancho II,
+a rebellião armada de Affonso (depois IV) contra seu pae, a do viuvo de
+Ignez de Castro, entre outras, trouxeram decerto ruinas e desastres, mas
+não para comparar com as assolações do sul, nem sequer com os males dos
+primeiros tempos, quando a ambição de conquistar a Galliza fazia do
+Minho o theatro das luctas quasi constantes com Leão.
+
+As guerras castelhanas do tempo de D. Fernando teem um novo theatro,
+porque o antigo condado portucalense descera já á condição de provincia
+portuguesa. O coração do reino está em Lisboa, a terra querida d'elrey
+Diniz, _ca hy nascera, hy fora criado y bautizado, e hy fora rey_. Nem o
+norte do Mondego, rico e populoso, nem o sul do Sado, demasiado bravio e
+inhospito, chamam a attenção administrativa dos governos. Toda ella se
+applica para o centro do reino, a renovar e agricultar, e para o
+desenvolvimento da navegação e do commercio pelo magnifico porto onde
+todos os navios, em viagem dos mares do norte para o Mediterraneo,
+vinham refrescar, desde que Lisboa era christan. D. Diniz lavrou o
+primeiro tratado mercantil com a Inglaterra (1308). Os armadores da
+Normandia, da Flandres e da Inglaterra, já no fim do XIII seculo
+demandavam o Tejo, para mercadejar; e os cuidados dos reis não se
+limitavam apenas a favorecer esse commercio, porque as plantações de
+vastos pinhaes nas costas teem como motivo proporcionar madeiras ás
+construcções navaes, e ao mesmo tempo defender as terras da invasão das
+dunas, no litoral de entre o Tejo e Mondego.
+
+O ultimo d'esta serie de phenomenos que demonstram a formação crescente
+de um organismo nacional, é o apparecimento de Lisboa, a cidade querida,
+como um centro de actividade maritima e commercial. Definitivamente
+separado de Leão, obliteradas as ambições da absorpção da Galliza,
+geographicamente completo até ao mar do Algarve, rota a dependencia
+feudal de Roma, nacionalisado o clero e as Ordens militares, fortalecido
+o poder dos reis, iniciada a organisação da justiça, da administração,
+do ensino--o corpo da nação portugueza, até ahi acephalo, achava em
+Lisboa a capital. A cidade do Tejo dava mais do que um centro de vida
+organica, dava um destino definido--o maritimo--a uma nação que na terra
+da Hespanha não tinha individualidade, nem por uma indole homogenea e
+particular dos habitantes, nem por uma conformação especial e autónoma
+do territorio.
+
+Corintho ou Veneza do occidente, Lisboa _grande cidade de muytas e
+desvairadas gentes_ era mais do que a capital do reino: era a razão de
+ser da sua independencia.
+
+ [43] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) liv. III, 4.
+
+ [44] V. _Instit. primit._, pp. 233 e segg.
+
+ [45] V. _Instit. primitivas_, pp. 137-47.
+
+ [46] V. para os usos judiciaes, etc., na Edade-média portuguesa,
+ o _Quadro das Instit. primit._, pp. 17-18, 154, 163-4, 170-1,
+ 175-8 e 181-205; e _Regime das Riquezas_, pp. 172-4.
+
+ [47] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 158 e segg.
+
+ [48] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 127-32 e 143-9.
+
+ [49] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. 135-43
+
+ [50] V. _Instit. primit._, pp. 98 e 157.
+
+ [51] V. _Instit. primit._, p. 263.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+IV
+
+A crise
+
+
+Quando Portugal se encaminhava, por fim, no sentido de uma rapida e
+definitiva constituição, quiz o acaso que o throno coubesse por herança
+a um principe de fracas, mas sympathicas qualidades.
+
+ Do justo e duro Pedro nasce o brando
+ (Vede da natureza o desconcerto!)
+ Remisso e sem cuidado algum Fernando.
+
+O filho de Pedro I era uma infeliz creatura, mal equilibrada nas suas
+qualidades e defeitos. Não era, decerto, aquelle homem de que a nação
+carecia para consolidar de um modo seguro a sua independencia; e n'um
+sentido póde dizer-se que as condições em que se achou foram a causa dos
+males de que muito soffreu. Faltava-lhe a firmeza necessaria para
+realisar os planos concebidos por uma intelligencia perspicaz. Era
+inventivo, mas era chimerico. Media o alcance dos actos e pensamentos,
+mas não sabia pesar o valor dos meios. O corpo de leis que promulgou
+para fomentar a navegação e o commercio, honrarão eternamente a sua
+intelligencia e a fina percepção com que via no desenvolvimento maritimo
+o futuro da patria. A obra consideravel das fortificações da capital
+(1377) concorre tambem a mostrar que reconhecia a verdade--cruamente por
+elle aprendida--de que Portugal era já, e seria sempre Lisboa.
+Accusam-no modernos sabios de ter defraudado a moeda: mas que outro
+remedio havia então contra a penuria do thesouro? que outros exemplos
+davam os demais principes? que outro exemplo damos nós ainda hoje,
+quando, para não cercear o peso ou diminuir o toque do ouro, cunhamos
+papel?--Accusam-no porque _hordenou almotaçaria em todallas cousas_
+(1375): e que outro remedio havia, na curta sciencia do tempo, contra os
+monopolios e agiotagens, mais funestos na paz do que as batalhas dos
+tempos de guerra? Tarifar os generos e os salarios foi medida applaudida
+quasi até nossos dias; obrigar os detentores á venda dos cereaes,
+determinar a partilha dos grãos, foram actos de salvação publica
+repetidos ainda depois de D. Fernando, e sempre que uma crise obriga a
+suspender as garantias, ou justiça civil. Mas o rei que cerceava as
+moedas e ordenava a almotaçaria em todas as cousas, era o que fundava a
+marinha mercante nacional: era o que, olhando para o mar, não se
+esquecia da terra, obrigando os proprietarios dos maninhos alemtejanos a
+cultival-os, ou a aforal-os. A administração de D. Fernando é um
+cesarismo. O desenvolvimento politico e economico da nação chegava a um
+momento de crise organica traduzida por uma crise militar e dynastica. A
+população e a riqueza tinham crescido de um modo notavel desde que,
+havia mais de um seculo, terminára a reconquista do territorio aos
+musulmanos. O censo que annos depois se fez (1417) dá ao reino 4:800
+besteiros de conto, ao Porto 8:500 habitantes, e a Lisboa 63:750.
+Pullulavam enxames de aldeias e casaes pelos campos agricultados, e
+muitas villas que depois definharam eram ainda importantes: Sines,
+Cezimbra e Mertola. Algumas cidades eram muito maiores do que são hoje:
+Evora e Beja, Santarem, Thomar, Leiria. D. Fernando herdou o reino
+robusto e forte.
+
+Mas o pobre rei, tão bom e tão sagaz, tinha porém um fraco, que
+estragava tudo: era doido por mulheres. Singular na edade-média, a
+pessoa de D. Fernando parece estar no fim de uma epocha historica, como
+um indicio e um typo mal esboçado de futuros personagens. Superior na
+intelligencia, acaso por isso mesmo era desmandado no modo de proceder.
+Talvez lhe conviesse o nome de sceptico, especie moral que o
+desenvolvimento da inteligencia, sem o desenvolvimento parallelo da
+vontade, ou do caracter, faz tão commum em nossos dias. Para Cesar, D.
+Fernando era, porém, bondoso de mais: tinha um fundo de sinceridade que
+o perdia, porque á indifferença não reunia o cynismo. Era, no fundo, um
+pobre homem de talento. Este genero de individuos é sempre sympathico; e
+por isso o povo, embora chegasse a mofar, nunca o odiou. As suas
+fraquezas, prazeres e amores sempre foram criticados com benevolencia. O
+povo sabia que no fundo o caracter do rei não era perverso. Não o podia
+respeitar nem temer, mas sorria-se amigavelmente das suas
+extravagancias. Era o filho prodigo da nação.
+
+Ás suas qualidades e vicios sympathicos reunia o ser formoso, agil,
+cavalleiro como os bons, caridoso, affavel, «gran criador de fidalgos e
+muito companheiro com elles, cavalgante, torneador, grande justador e
+lançador atavolado»--o jogo era uma das basofias do fidalgo
+medieval--dadivoso para com todos, e grande agasalhador de estrangeiros.
+A toda a gente queria bem, mas de um modo familiar e singelo, que não
+infundia respeito. Os reis de fóra, sabendo-o tão singularmente bom e
+simples, riam-se d'elle.
+
+Era um infeliz, no sentido que a expressão tem popularmente em
+castelhano. Dava tudo pela caça: uma paixão desenfreada. Só falcoeiros
+de besta contava quarenta e cinco, e não estava satisfeito: queria
+povoar com elles uma rua inteira em Santarem. Quando mandava por aves,
+nunca lhe trouxessem para menos de cincoenta, entre açores e falcões,
+gerifaltes e negris, todas _primas_. Tinha um regimento de mouros para
+apresarem as garças e outras aves, que iam buscar a caça nas lagôas. Não
+perdoava sequer os innocentes pombos. Eram ás legiões as matilhas de
+cães para coelhos, rapozas e lebres. Correr lebres ou atirar aos pombos
+era o seu _grande sabor e desenfadamento_. O do seu avô Henriques fôra
+correr mouros e atirar ás ameias dos castellos: os tempos, os
+temperamentos, eram já inteiramente diversos.
+
+Ainda assim, não era a caça que perdia o rei. Namorado sempre e
+mulherengo, «amador de mulheres o achegador a ellas,» diz F. Lopes,
+tinha um feitio terno, _amavioso_. A carnalidade arrastava-o aos maiores
+excessos, e é provavel que tivesse vicios ingenuos. Sua irman solteira,
+a infanta D. Beatriz, fôra cinco vezes offerecida, outras tantas
+recusada, a diversos principes, nas varias combinações politicas que a
+sua fertil imaginação creava, e que a sua indolencia invencivel punha
+logo de parte. A côrte d'essa irman era um viveiro de donas, onde o rei
+permanentemente satisfazia os seus gostos mulherengos. Foi n'essa côrte
+que viu e se perdeu de amores por Leonor Telles. Parece, comtudo, que
+antes d'isso não amava; porque é proprio dos temperamentos, como era o
+do rei, não ter paixões. A sua delicia era o gozar indolente dos
+carinhos e meiguices das mulheres, não era amar. Não é provavel, pois,
+«a suspeita deshonesta que alguns tinham da virgindade da infanta ser
+por elle minguada.» Bastavam ao rei «os jogos e fallas tão a meude
+misturadas com beijos e abraços e outros desenfados de similhante
+preço.» Só aos fortes corações é dado amar e enlouquecer. D. Fernando
+não tinha essa virilidade de caracter. Distincto, perspicaz, engenhoso
+de espirito, bom, affavel de genio, faltavam-lhe o valor que faz os
+homens, e a vontade que faz os reis. Era uma indolencia formada de
+espirito e sensualidade; uma creatura romantica e sympathica; uma
+mulher, fraca e intelligente, sentada no throno. Leonor Telles
+conquistou-o, porque tinha o genio de um Homem; e o segredo d'essa
+alliança tenaz não está n'uma paixão do rei, está na inversão das
+pessoas e dos sexos. Ella fez-se rei; elle tornou-se a amante, passiva,
+indolente, sensual.
+
+ * * * * *
+
+O tempo de D. Fernando foi uma serie de guerras com o visinho reino de
+Castella. As muitas desgraças d'essas emprezas loucas tiveram de bom o
+affirmar de um modo terminante a independencia formal e positiva da
+nação, como sáe da batalha de Aljubarrota. Á maneira de certas
+enfermidades agudas, quando atacam o homem de temperamento indeciso e
+constituição debil, na edade em que attinge a virilidade, e determinam
+uma revolução organica, fixando e consolidando a saude--assim as guerras
+castelhanas de D. Fernando. são, para Portugal, uma crise. O seu destino
+vacillante, os seus orgãos esboçados apenas, soffrem a prova de uma
+commoção violenta. Acordam outra vez as tentações antigas, já
+anachronicas, da conquista da Galliza; o reino é mais de uma vez
+invadido; a miseria, a ruina, as devastações e a penuria affligem, como
+uma febre ardente, o corpo da nação. Falta decerto um rei que a dirija,
+um homem forte que a represente e guie; mas isso mesmo concorre para
+caracterisar a crise, demonstrando que a vitalidade collectiva existia
+já, e não provinha apenas da imposição forte de um braço guerreiro. Em
+dois seculos Portugal tornara-se de um amalgama de populações ruraes,
+cuja unidade estava apenas no genio dos seus barões, em um organismo,
+cuja consciencia de uma vida collectiva era real e definida. Tal é, a
+nosso vêr, o merecimento d'essa revolução nacional, cujo supposto chefe,
+o Mestre de Aviz, é mais o instrumento do que o heroe.
+
+Não precipitemos, porém, a narrativa.
+
+D. Fernando julgára convir-lhe apoiar a usurpação do throno de Castella
+por Henrique de Trastamara, quando o poder do rei D. Pedro ainda chegava
+para bater o rival em Najera. Depois que o usurpador, voltando de França
+com o auxilio de Duguesclin, consegue desthronar o rei perdido, D.
+Fernando julga conveniente alliar-se ao do Aragão e ao mouro de Granada,
+contra o Trastamara victorioso. Formára o chimerico plano de bater o
+vencedor com o partido vencido que o invocava; esperando sentar-se no
+bello throno de Castella, de que promettia um retalho ao aragonez, outro
+ao granadino. A empreza não destoava dos antecedentes historicos; porque
+o regime politico da Hespanha, retalhada em varias monarchias, era um
+systema de conquistas successivas de reinos. Era, porém, chimerica por
+dous motivos, um ignorado então, outro evidente: a incapacidade do rei,
+e o destino que marcava á Hespanha a solução unitária. Se Portugal pôde
+escapar aos preceitos d'esse fado, deveu-o ao movimento que, por lhe dar
+Lisboa, fazia d'elle uma nação cosmopolita, commercial e maritima, e não
+propriamente hespanhola: outra Hollanda, no corpo de outra
+Allemanha[52].
+
+A politica de D. Fernando era, pois, historicamente insensata, falta que
+seria absurdo irrogar ao rei; mas era tambem pessoalmente absurda,
+porque os seus planos eram chimeras, tão breve nascidas como
+abandonadas. Haveria no espirito do rei o pensamento, mais ou menos
+definido, de se substituir ao castelhano na obra da unificação politica
+dos Estados peninsulares? Nada authorisa a suppol-o; e até porque tal
+pensamento não estava ainda cabalmente definido para os monarchas de
+Castella.
+
+O facto é que D. Fernando declarou a guerra e abriu a campanha,
+invadindo a Galliza (1369); «mas sua ida foi de tal guisa que mais sua
+honra fora não ir alla dessa vegada.» Muitos barões gallegos correram a
+recebel-o, a acclamal-o. Tradições de outras eras? Ambições, ainda
+vivas, de uma independencia, que mais de uma vez tinham considerado
+solidaria com a soberania de Portugal? É provavel; mas é tambem certo
+que a rapina era o motivo immediato da adhesão, porque «muytos vinham-se
+a ele e pediam-lhe os bees dos que se iam para D. Henrique, o que era
+dado ledamente.» O inimigo, de Castella, fazia outro tanto. O conde
+Andeiro foi o mais caloroso dos partidarios gallegos de D. Fernando.
+Saíu ao encontro do rei, alvoroçado, a gritar: «Hu vem aqui meu senhor
+Elrey D. Fernando?» E o rei, esporeando o cavallo, radioso e feliz por
+uma tão facil conquista, vendo-se já sentado no throno de Castella,
+avançou, respondendo: «Eu som! eu som!» A invasão tornava-se um passeio
+até á Corunha; mas pouco adivinhavam ambos, o conde e o rei, quanto
+haviam de pagar caro os prazeres desses dias breves.
+
+O castelhano corre sobre a Galliza, e D. Fernando foge a esconder-se em
+Coimbra. A resaca assoladora vem até Braga e Guimarães, atravez de todo
+o Minho. A provincia inteira gritava por soccorro: Aqui d'el-rei, contra
+o castelhano!--O rei, indeciso, indolente, esperava a realisação da sua
+chimera:--não é mister batalhar; Castella inteira vem entregar-se, como
+se entregára, de braços abertos, a Galliza!--Passeava-se, entretanto,
+com o exercito, entre Santarem e Lisboa. Ia, vinha, avançava e
+retrocedia, tão tonto que já o povo da capital ria d'esses passeios:
+_exvollo vae, exvollo vem!_[53]
+
+Afinal em Coimbra--cidade funesta aos dois Fernandos[54]--decidiu-se a
+acudir ao Minho, quando o rei de Castella, depois de assolar tudo, tinha
+já partido para além da fronteira. Pela raia, porém, o batalhar
+continuava, e tambem na costa andaluza o bloqueio maritimo: já Portugal
+tinha armadas. Mas a guerra dilatava-se; e Castella, decididamente, não
+o chamava para seu rei. Começou a _assentar-se del a covardice_,
+abandonou os alliados; e aborrecido e desilludido por esta vez, assignou
+as pazes de Alcoutim.
+
+A sua chimera só, porém, o deixou quieto por tres annos.
+
+D. Pedro tinha morrido em Montiel, assassinado ás mãos de Trastamara
+(1369); a filha mais velha do defunto era casada com o duque João de
+Lencastre, da casa de Inglaterra: d'ahi vinham as pretenções d'este á
+corôa castelhana e o bravo duello que a Inglaterra e a França debateram
+na Hespanha por muitos annos. A influencia franceza era dominante em
+Castella; e para logo, nas successivas e ulteriores convulsões, a
+alliança ingleza venceu em Portugal. D. Fernando, ou movido pelo desejo
+de desforra, ou pensando ainda nas suas velhas ambições, e esperando
+ludibriar o alliado, assigna em Braga (1372) o tratado de alliança com o
+inglez, contra o castelhano. Henrique de Trastamara, em cuja côrte
+andavam diversos fidalgos portuguezes, como os gallegos da invasão
+anterior andavam com D. Fernando, manda Pacheco (o terceiro assassino de
+D. Ignez de Castro) vêr se effectivamente o rei se dispunha á guerra.
+Era tão voluvel o seu caracter, que o castellão não acreditava ainda.
+Voltou Pacheco: sem duvida o rei estava disposto a entrar em campanha.
+Então D. Henrique, com bondade, lhe pede que abandone essa chimera, e
+insta pela paz. Elle, excitado pelas _hespanholadas_ de Affonso Tello,
+suppõe que a fraqueza era o motivo da insistencia. Inuteis as
+observações, o rei de Castella prefere invadir a ser invadido; e
+rapidamente entra pela Beira (1372), cáe sobre Lisboa, cujo cêrco uma
+esquadra, ao mesmo tempo partida de Sevilha, encerra por mar (1373).
+
+Que fazia D. Fernando? Do alto dos muros de Santarem, onde se fechára,
+via passar o exercito inimigo, sem ousar mover-se. Dois motivos lh'o
+impediam. Esperava a toda a hora o soccorro do inglez; e se o fructo
+d'essa guerra lhe era destinado a elle, bom seria que em pessoa o
+disputasse. Deixar, porém, invadir assim o reino, pôr cêrco á capital,
+abandonar o povo, abandonar Lisboa, era vergonhoso, decerto. Mas se
+n'esses dias Leonor Telles, enferma, estava de cama, com as dôres do
+parto? Como havia de o pobre rei acudir aos dois deveres? A quem
+obedecer primeiro: ao tyranno politico, a corôa, ou ao domestico, a
+rainha? Como todos os fracos, decidiu-se pelo mais proximo; tapou os
+ouvidos aos clamores da nação, para attender só aos ais da enferma. Não
+era por paixão que o fazia, era por indolencia: sempre esperava que
+Lisboa afinal havia de resistir, e saberia defender-se!
+
+Com effeito, não se enganava. A cidade valia muito mais do que o rei.
+Quando viu approximar-se o castelhano, chegou a ser temeraria; porque
+pretendeu defender com barricadas os arrabaldes, fóra dos muros. Lisboa
+tinha a homogeneidade na resistencia; e em vão D. Diniz (o infante que
+por condemnar o casamento de Leonor Telles fugira para Castella), em vão
+Pacheco e os mais portuguezes de D. Henrique buscavam convencer os
+lisbonenses da vantagem da rendição. Não estamos agora no norte, meio
+gallego, onde a idéa de nacionalidade vogava indecisa nos dois lados do
+Minho: estamos no coração do paiz, e n'uma terra sem tradições leonezas,
+que não foi _separada_, que nunca obedeceu a outro rei mais do que ao
+portuguez, a quem deve o que é. Inuteis as tentativas de D. Diniz, de
+Pacheco, e dos mais, o exercito approximou-se. Viu-se então a temeridade
+de defender os arrabaldes; e á pressa, recolheram-se todos para dentro
+dos muros. O enxame acudia ás portas, correndo curvado com o peso das
+trouxas, das arcas, onde salvára o que tinha mais precioso. Vinham as
+familias em grupos, as mães, carpindo, arrastando os cordões de
+creanças, espantadas de tudo aquillo. Já os castelhanos entravam pelos
+casaes e quintas dos arredores: o lume ardia ainda na lareira, a porta
+estava aberta, os quartos vasios. Arrazaram e queimaram tudo, desde as
+hervas até aos telhados.
+
+No rei assentára outra vez a covardice: e, como o inglez não acudia,
+acceitou a paz, e foi de Santarem a Vallada assignal-a (1373). «Quanto
+eu _haarricado_ venho!» dizia a rir, na volta. Effectivamente não queria
+mal algum a D. Henrique; e, se a empreza falhára, o melhor era fazer
+cara alegre, e acabar por uma vez com o muito que, do cêrco, padecia
+Lisboa. Além d'isso, agradára-lhe o trato do inimigo: agradára-lhe
+tanto, que lhe concedeu a irman, D. Beatriz, para casar com o irmão do
+castelhano, Sancho. Triste destino o d'esta princeza, que era, nas mãos
+do rei, como os joguetes que as creanças dão, tiram, voltam a dar, ao
+sabor do seu capricho infantil!
+
+Este mesmo modo de que usava com a irman, estava reservado á filha: a
+outra Beatriz nascida em Santarem durante a invasão precedente. Henrique
+de Trastamara tinha morrido; e o herdeiro, João I, na idéa de reunir as
+duas corôas de Castella e Portugal, pedira a D. Fernando (que não tinha
+outro filho) a mão da pequena D. Beatriz; ao que este annuira,
+celebrando-se tratados, porque para casamento era cedo ainda: a pequena
+teria oito annos, se tanto.
+
+Mas o rei, diz o chronista, trazia sempre sua fala com os inglezes, o
+mais encobertamente que podia. Que falas eram essas? Era a alliança de
+Lencaster, na qual D. Fernando via talvez ainda luzir a possibilidade de
+realisar a sua chimera. O conde Andeiro, que na primeira guerra abrira a
+Galliza ao portuguez, fôra desterrado para Inglaterra, na occasião de
+Alcoutim, por exigencia do castelhano. Era Andeiro o confidente do rei,
+e o seu agente para com Lencaster. Veiu de Inglaterra, escondido, a
+Extremoz, onde o rei, ao tempo, assistia: trazia novos tratos e
+combinações, com a promessa de uma esquadra. O rei acceitou com
+facilidade, e afiançou ao duque inglez a mão da filha promettida ao de
+Castella.
+
+D'esta vez decidiu-se a proceder com energia. O castelhano, porém, já
+conhecedor de tudo, mandára começar as escaramuças pelas fronteiras de
+entre Tejo e Guadiana, theatro das façanhas de Nunalvares (o futuro
+condestavel, que agora começa a sua epopêa) em quanto dispunha o grosso
+das forças para a campanha de Lisboa. A energia do portuguez consistiu
+em enviar a esquadra a Sevilha destruir a inimiga. Com effeito, em
+quanto mandasse no Tejo, Lisboa não podia ser efficazmente cercada. Mas
+a _sandia presumpção_ de Affonso Tello perdeu a esquadra em Saltes
+(1381). A armada castelhana, victoriosa, entrou no Tejo, trazendo a
+bordo o infante D. João, irmão do rei, filho de D. Pedro o crú, que se
+homisiára de cá por ter assassinado a mulher, Maria Telles, irman de
+Leonor. Tambem lhe tinham acenado com a mão da pequena D. Beatriz, e a
+ambição perdera-o! D. João repete as palavras de D. Diniz na campanha
+precedente; mas é recebido a tiro, o infeliz. As surriadas de trons e
+virotões exprimiram a eloquencia independente de Lisboa; e o infante,
+humilhado, levou para Castella o desmentido formal a todas as sedições
+que annunciára e promettera.
+
+Chegou, afinal, por mar o Lencaster com os seus, trazendo novo alimento
+á guerra, já accesa por todo o Alemtejo. Castella declarára-se pelo papa
+de Avinhão, Clemente VII: os inglezes e o rei D. Fernando pronunciam-se
+pelo papa de Roma. Urbano VI. A religião vinha azedar ainda mais os
+odios dos combatentes. E os inglezes do duque, mercenarios o barbaros do
+Norte duro, lançaram-se a este pedaço do Meio-dia, como lebreus famintos
+a um regabofe. Estas gentes dos inglezes, refere o chronista, não vinham
+como a defender a terra, mas para a destruir e buscar todo o mal,
+matando, roubando e forçando mulheres. Nem se limitavam a tão pouco. De
+uma guerra que lhes era indifferente, nas causas e motivos, entre povos
+inimigos que não distinguiam, inimigos eram para elles todos, e cevar-se
+o seu constante proposito. Guerreavam por conta propria, para saquearem.
+Tomam aos portuguezes Monsarás, o Redondo e Evora; e as populações, por
+fim desesperadas, acodem-se ao processo classicamente peninsular das
+surprezas e assassinatos. «As gentes começaram a matar muitos d'elles
+escusamente», a ponto de que mais de um terço ficou enterrado pelos
+campos e aldeias do Alemtejo. Na extraordinaria confusão em que a
+indolencia e as chimeras do rei punham o paiz, já cada um combatia por
+si proprio, com o proposito unico da defeza nacional.
+
+Se os inglezes deixaram em volta do Tejo alguma cousa a roubar, ou algum
+campo a queimar, os castelhanos da esquadra, desembarcando, quando o
+exercito anglo-luso tinha subido para Evora a encontrar o inimigo,
+acabaram a obra destruidora n'uma razzia monumental, a que não escapou
+eira nem beira, nem arvore, nem cousa viva. Em volta das muralhas de
+Lisboa ficou tudo um deserto morno e secco.
+
+Pela terceira vez assentou no rei a covardice; e sem combater, voltando
+as costas ao inglez logrado, assignou as pazes de Badajoz com o
+castelhano (1381). De novo a pequena infanta D. Beatriz torna a ser
+promettida a outro noivo: Fernando, de Castella, que não vem ainda,
+comtudo, a ser seu marido; porque, ao voltar para casa, o rei João,
+enviuvando, teima no antigo plano da fusão dos reinos. O casamento da
+filha com o valetudinario monarcha visinho, é o ultimo e o mais
+insensato dos actos de D. Fernando. Extinguia-se com elle a dynastia; e
+por herança legava, do leito da morte, a independencia em perigo ao povo
+que, apesar de tão dorido, ainda e sempre lhe queria.
+
+ * * * * *
+
+Fôra no viveiro feminino da côrte da irman que o rei Fernando vira
+Leonor Telles. Era a terceira Leonor que escolhia para companheira, e
+foi, desastradamente, a unica que veiu a ter. A primeira, de Aragão,
+recusou-lh'a o perspicaz pae, por vêr quanto era defeituoso e fraco o
+caracter do promettido genro. A segunda, de Castella, repudiou-a, desde
+que viu e se namorou da terceira.
+
+Maria Telles, irman de Leonor, era aia da infanta D. Beatriz. Leonor,
+casada, vivia no seu solar da Beira. Estava em Lisboa, de passagem, a
+visitar a irman, quando o rei a viu. Como começaram esses amores? Os
+antecedentes do rei e o caracter da futura rainha deixam vêr bem que não
+deveu ter havido uma d'estas paixões fulminantes, communs nos homens
+d'armas, mas de que D. Fernando era incapaz, e Leonor Telles tambem.
+
+A fria ambição calculadora era commum ás duas irmãs. A aia da infanta,
+por quem o infeliz e louco D. João se namorára com paixão, preparára-lhe
+cuidadosamente uma entrevista, á noute, no seu quarto. Quando o infante
+chega, soffrego de amor, vê um altar e um padre diante do leito.
+Casemo-nos primeiro, amaremos depois. O infante, coacto pela paixão,
+casou-se para amar; mas a aia pagou mais tarde, com a vida, o erro de
+brincar com um leão, como so fôra um rafeiro.
+
+Leonor Telles tinha em si o saber sufficiente para ensinar: não carecia
+das lições da irman. Percebeu que o rei, nas suas ligeirices, a preferia
+á propria infanta; mas o papel de amante não lhe convinha: queria o de
+rainha. Foi-se deixando ficar, e acirrava com tentações a inclinação do
+monarcha sensual e passivo. «Era louçan, aposta, e de bom corpo». D.
+Fernando costumou-se ás denguices da sereia: nos fracos, o costume gera
+necessidades imperiosas, a que tudo sacrificam. Com o tempo, a idéa de
+que Leonor era casada, naturalmente a insistencia com que ella, séria e
+affectando decóro, falaria na necessidade de voltar para casa, para o
+marido, fizeram sentir ao rei a impossibilidade de quebrar o habito dos
+seus amores innocentes e molles. A indolencia é muito mais teimosa nas
+suas exigencias do que a força; um habito sensual tem maior tenacidade
+do que uma paixão. Leonor Telles devia saber isto perfeitamente. O
+momento decisivo approximava-se: não podia continuar por mais tempo em
+Lisboa, o marido chamava-a, as más linguas podiam falar...
+
+O rei lembrou-se então de que para alguma cousa lhe podia servir sel-o:
+desmancharia esse casamento, porque uma dama tão senhoril e casta não
+podia ser sua amante. D. Fernando não tinha, o ingenuo, nem ponta de
+cynismo. Falou seriamente, em particular, á irman. Mulheril como era,
+este caso tinha maior gravidade do que uma guerra com Castella, pelo
+repudio da princeza que lhe estava promettida nos tratados de Alcoutim.
+«Melhor fizera elrey, dizia o povo, tel-a por tempo e depois casar com
+outra mulher.» Bons conselhos! para quem vivia todo na atmosphera
+feminina e molle da côrte de D. Beatriz, onde Maria Telles reinava. Como
+se Maria, Leonor, não fossem excellentes senhoras, recatadas, mas
+seductoras na sua terna dignidade!
+
+Maria poz por condição o casamento; Leonor Telles concordou em que muito
+queria ao rei, mas ainda mais ao seu nome. Combinaram tudo em segredo, e
+foram, ás escondidas, ao norte, casar-se (1371) a Leça do Bailio, junto
+ao Porto. Tinham, com effeito, medo de Lisboa. Quando regressaram á
+côrte e os rumores se confirmaram, as opiniões moveram-se na capital. O
+commum das gentes accusava o rei com odios apaixonados; mas não faltavam
+os experientes a observar placidamente, «que não era maravilha; já a
+outros acontecera cousa semelhante; todo o homem namorado tinha uma
+especie de sandice; o amor era como dôr que doe e não doe ao mesmo
+tempo». Muita gente se ria do marido infeliz que sensatamente fugira
+para Castella, e para prevenir os motejos mandára pôr no barrete dois
+cornos de ouro em fórma de plumas; muitos notavam a facilidade com que o
+papa fazia e desfazia casamentos; e esta cumplicidade da religião e do
+amor não augmentava em nada o respeito pela Egreja. Em summa, desde que
+o riso entrava na questão, o odio do povo não era muito; e Lisboa
+esperava para ver o resultado d'essa comedia, e tomar o pulso ao
+caracter da rainha. Ninguem sabia ainda de quantas manhas elle era formado.
+
+Mas nem em todos a longanimidade era tão grande; e uma parte da plebe
+decidiu-se a pedir contas, a reclamar garantias, e até a protestar.
+Esses adivinhavam a perversidade da rainha. No rei assentou a covardice,
+e Leonor Telles não podia ainda contar com partido proprio. Fugiram,
+pois, ás escondidas, para Santarem: e o povo, burlado, ficou em vão
+esperando o rei no atrio de S. Domingos, para onde o comicio fôra
+aprazado. Pelo caminho, na fuga, o rei carinhoso observava: «Olha
+aquelles villões traidores, como se juntavam: prendiam-me certamente, se
+lá vou.» E não podia esconder o susto, conchegando-se ao collo da
+rainha, no seio d'uma inclinação protectora. Leonor Telles sorria,
+calada. Era rainha, mas apupada: o plano da vingança acordava-lhe no
+animo, e tambem o desdem por esse pobre rei, perdido e fraco.
+
+Este primeiro acto da nova rainha foi decerto o seu primeiro erro. Desde
+logo, até os mais indulgentes viram que não havia remedio; e o partido
+dos seus inimigos cresceu em numero e ganhou forças e atrevimento. Ella
+prejudicára os seus planos por um acto precipitado; e todos os esforços
+que empenhava em ganhar sympathias eram vãos. «Era mui grada e liberal a
+quaesquer que lhe pediam, mas quanto fazia tudo damnava; e a sua
+caridade e as suas manhas não podiam encobrir os seus deshonestos feitos.»
+
+Com effeito, a rainha nem melhorava a fraqueza do rei, nem o afastava
+das suas loucuras e emprezas perdidas; e por sobre isto era
+reconhecidamente má. Accusavam-na de ter preparado o assassinato da
+irman pelo infante seu marido; e era publico que, no meio da agitação da
+terceira guerra castelhana, tentára matar o Mestre de Aviz, forjando
+para tanto um falso alvará. O povo já a descrevia como uma féra
+sangrenta; e o povo sabia quantos odios comprimidos ella guardava contra
+essa Lisboa miseravel que a insultava e a apupava. Toda a gente se
+sentia offendida, humilhada, com a humilhação do pobre rei. Contava-se
+como era com elle ousada e faladora; e como el-rei, submisso e
+indolente, curvava a cabeça e se calava. Era uma desgraça que entrára no
+palacio. Depois, além de cruel, sanguinaria, e descomposta no modo, era
+de uma deshonestidade publica. Todos sabiam que nas barbas do marido
+tinha o amante no paço. E o pobre rei não desconfiava, na sua cegueira.
+Quando o Andeiro viera de Inglaterra, escondido, com os tratos de
+Lencaster, el-rei recolheu-o na torre do seu paço de Extremoz. A sala da
+sesta era o quarto do conde; e o rei ia-se, e a rainha vinha passar
+horas esquecidas a sós com o amante. O rei, como homem de são coração,
+não via o que escandalisava a todos. Pouco se lhe dava d'isso a ella,
+chegando a fazer gala dos seus desvarios. O adulterio e a crueldade, o
+prazer e o sangue, alliavam-se bem n'esse genio perverso, mas
+intelligente e altivo, tão desdenhoso como impudico. Queria firmar sobre
+o odio uma força que não pudera conquistar pelo amor. Repellida,
+accusada, escarnecida por um povo, para quem talvez quiz ser boa,
+decidiu impôr-se-lhe pelo desabrido do odio e pelo desplante do
+comportamento. Vingava-se á maneira antiga, como uma Cleópatra.
+
+No outomno de 1383 falleceu D. Fernando; e logo que a tampa caiu sobre o
+caixão do defunto, rebentou a revolução.
+
+ * * * * *
+
+A revolução de 1383-5 tem um caracter de um Juizo-de-Deus. A dynastia
+mentira ao papel justiceiro: morra por ello! Por uma serie de
+extravagancias domesticas e politicas, D. Fernando levára a uma crise a
+obra lenta e demorada da independencia nacional, iniciada com uma espada
+por Affonso Henriques, assegurada com um açoite por Pedro o crú. É
+verdade que não deixára de fomentar a consistencia material interna do
+corpo da nação; mas de que valia isso, pois que a deixava outra vez a
+braços com o problema vital da successão, o problema da independencia?
+
+Logo que o rei morreu, os differentes actores da tragedia começaram a
+tomar os seus logares na scena.
+
+O castelhano immediatamente encarcera em Toledo o infante D. João, o
+mais perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido
+perante o povo pela nodoa do ataque de Lisboa, na esquadra inimiga.
+
+A rainha viuva, julgando o momento opportuno para conquistar sympathias,
+representa uma scena de prantos. Abandonára por um instante a sua
+politica de vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o
+respeito, ou o amor dos seus. Ella não queria entregar o reino a
+Castella: queria que a filha fosse acclamada rainha, e ella, como
+regente, rei de facto. Talvez pensasse em casar-se com o Andeiro, a quem
+parece amava do coração: seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por
+ser a causa da sua perdição?
+
+Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, «fingia-se
+mui desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma camara escura,
+coberta de dó, com lagrimas e soluços--que ás mulheres não faltam quando
+lhes servem--se lamentava, com as visitas, do seu desamparo,
+queixando-se do governo que o rei déra ao reino, agora pobre e infeliz.»
+(Fernão Lopes) Na sua dôr, na boa vontade que tem de servir a nação
+(para que ella a não expulse do throno) está por tudo. Com effeito, a
+morte do marido punha-a á mercê da vontade do povo. «Era em tudo
+obedecida, assim dos povos como dos grandes; mas bem via que essa
+obediencia nada tinha de pessoal, porque ninguem a amava, nem a
+respeitava. De um momento para outro podia perder tudo. Os de Lisboa
+queriam que se constituisse um conselho de governo composto de dois
+homens-bons de cada comarca: annuiu a essa tutela. Quando fôra a
+acclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observára os
+tumultos geraes e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a
+acclamação provocára rixas e conflictos; muita gente era pelo infante D.
+João ou pelo infante D. Diniz, que andavam por Castella; outros
+gritavam: _Arreal, arreal, cujo for o reino, leval-o-há!_ Em Santarem o
+infante D. João foi positivamente acclamado. Elvas, para não se decidir,
+no meio de tanta confusão, gritou: _Arreal, arreal, por Portugal!_
+
+Esse era effectivamente o grito da nação: por Portugal! Ninguem se
+recommendava bastante, no animo do povo, para merecer uma corôa
+disponivel, para se sentar n'um throno vago. O que Portugal não queria,
+era que n'esse throno viesse sentar-se o castelhano. A rainha não o
+queria tampouco; e era toda esforços para ganhar a si o povo, para
+herdar de facto o reino. Organisada a regencia, pensou desde logo na
+guerra; porque o rei de Castella já se preparava para vir occupar
+Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao Mestre de Aviz a zona
+de entre Tejo e Guadiana.
+
+Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam: Nunalvares e Alvaro
+Paes. O primeiro é a mais nobre, a mais bella figura que a Edade-média
+portugueza nos deixou. O typo cristallisado nos romances, o typo do
+cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro
+condestavel. «Usava muito de ouvir e lêr livros de historias, e
+especialmente usava mais lêr a historia de Galaaz, em que se continha a
+somma da tavola redonda.» Tinha a nobreza ideal do cavalleiro, e a
+castidade de um mystico. Era uma açucena na alma, e um leão na bravura e
+na generosidade. Resistira por muito tempo ao pae que o queria casar,
+porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o coração. Por tudo
+isto, a infamia da rainha abraçada ao amante, e as lagrimas fingidas
+pelo marido, córavam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação.
+Nunca a obra indispensavel de salvar Portugal podia levar-se a cabo com
+tal mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos, «Um dia,
+passeando só no paço, a cuidar no que havia de ser do reino»,
+occorreu-lhe a idéa de que só a morte do Andeiro podia pôr termo ás
+desgraças publicas.
+
+O cavalleiro tinha então 24 annos; e esse rapaz, typo ingenuo e puro de
+virtude, é a imagem de uma nação, tambem joven, e ainda crente n'um
+futuro proximo. Á indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria
+e o calculo experiente de Alvaro Paes, padrasto do futuro grão-doctor.
+Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para perder a rainha.--Era
+verdadeiramente o juizo de Deus, cuja sentença, logo que fosse publica,
+seria acclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de Aviz
+Alvaro Paes em Lisboa. Falava por sua bocca a cidade que Leonor Telles
+tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o author
+do plano do dia 6 de dezembro (1383) na fundação de uma nova dynastia?
+Queria acaso matar apenas o valido para aterrorisar a rainha; e
+entregal-a, assim, manietada, ao poder de uma oligarchia urbana, em que
+Lisboa se arrogasse o papel de defensora do reino, tendo á frente de um
+conselho de governo, com a regente vilipendiada e coacta, o Mestre,
+homem simples, por instrumento e chefe? Era um plano atrevido, mas mais
+de uma vez posto em pratica por diversas cidades opulentas da Hespanha.
+Não contava, porém, Alvaro Paes, nem com a arte que os annos
+desenvolveram no Mestre; nem com o generoso e nobre caracter de
+Nunalvares; nem com a força invencivel dos futuros textos e doutrinas do
+grão-doctor João das Regras.
+
+Combinado o programma do dia 6, Alvaro Paes abraçou e beijou o Mestre.
+N'esse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: partia para a sua
+fronteira do Alemtejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns
+fidalgos dos seus. A rainha, surprehendida, interrogou-o.--A fronteira
+era muito _grossa_, levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados,
+queria examinal-os...
+
+Leonor Telles estava então na sua camara, sentada no meio das suas
+damas, costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o
+Andeiro, de corpo bem disposto, _lustroso_, viril (40 annos), vestindo,
+apesar do luto, um gibão de setim cramesi e um tabardo de panno preto,
+sem o burel branco do estylo, falava manso com ella. Era um quadro de
+familia, e tudo parecia sereno, menos o tom e o aspecto do Mestre e dos
+seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na mente um crime.
+
+A rainha, inquieta, mas simulando indifferença e sangue frio, chamou o
+escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassallos da comarca:
+Escolhesse o Mestre os que quizesse. O escrivão de pé, com o livro
+aberto, ia lendo, indifferentemente _item_, _Dom_... etc, mas o Mestre
+não lhe prestava grande attenção. Uns perante outros, os personagens da
+tragedia adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o
+escrivão, no seu tabardo negro, com a voz monotona, era sincero. Andeiro
+levantou-se, saíu a outra sala, a avisar os seus sequazes: o que o
+Mestre vendo, receiou perder-se, ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o
+comsigo para fóra. A rainha, no meio das suas damas, sobre o estrado,
+costurava. O momento agudo da crise chegára: era mistér consummar o
+acto. O Mestre empurra então o conde para o vão de uma janella. Elle ia
+a fallar... «sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o ouvir»,
+deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia
+defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do
+Mestre acabou-o alli ás estocadas. Foi uma façanha arteiramente
+combinada, barbara e cobardemente executada. Nunalvares, quando a mesma
+solução lhe occorrera, pensou decerto n'um plano diverso.
+
+Consummado o assassinato, poz-se em scena a comedia do contra-regras,
+Alvaro Paes. Foi mandado um pagem a gritar pelas ruas que acudissem ao
+Mestre, que o matavam no paço. Entretanto, dentro d'elle, era grande o
+alvoroço. Uns fugiam pelas janellas, outros pelos telhados: todos
+corriam como doidos, cheios de susto, e se acotovellavam nos corredores
+e entre as portas. A rainha levantando-se, ao ouvir que lhe tinham
+matado o amante, rugiu de colera, como a fera a quem roubam os filhos:
+era a sua cruel fraqueza! Viu tambem a sua vida em perigo, e por ventura
+n'este momento desejou a morte[55]. Animosa, mandou perguntar ao Mestre,
+que n'um eirado do palacio, á vontade, descançava das commoções
+violentas, se tambem a queria matar. Elle voltou, respeitosamente, que
+não. Era um homem simples, costumado a vêr em Leonor Telles a mulher do
+rei: e por isso, além de ser muito novo (26 annos), não se atrevia a
+tanto. Era fogoso, brutal, e de instinctos pesados: um instrumento capaz
+de executar os planos manhosos do Alvaro Paes, prompto para tudo, porque
+não distinguia bem a linha que separa a nobreza da villania--como, de
+resto, succedia a quasi todos os homens d'armas da Edade-média. Foram a
+revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez d'elle na edade
+madura um sabio rei.
+
+Na rua, Alvaro Paes vinha a cavallo (por excepção rara, que era velho já
+e pesado) á frente da procissão de energumenos, bradando por desvairadas
+maneiras. A plebe, investindo com o palacio, quebrava os cancellos de
+ferro, trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar
+tudo. Era uma algazarra incrivel de improperios e nomes deshonestos,
+dirigidos á rainha. Já de dentro havia medo de que o fogo pegasse, e que
+o fim da tragedia fosse um incendio justiceiro. Extenuavam-se a gritar
+que o Mestre estava vivo, Andeiro morto; mas ninguem tinha ouvidos no
+meio do clamor da turba. Por fim, o Mestre de Aviz appareceu a uma
+janella e foi victoriado: «Vinde para nós, gritavam-lhe, e dáe ao démo
+esses paços!» Alli mesmo, ao pé do palacio, ficava a Sé; Era necessario
+solemnisar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o
+ordenava; mas os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que
+queriam d'elles: e por esse crime foram precipitados á rua o bispo e
+mais dois: e os cadaveres, arrastados ao Rocio, ahi ficaram para pasto
+dos caens.
+
+Tambem o Mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Alvaro
+Paes comer socegadamente. O homem cumprira o que tinha promettido: e, á
+mesa, na satisfação da victoria, instruiu o rapaz sobre o que lhe
+restava fazer: pedir perdão á rainha, depois de jantar. Quem sabe?
+dir-lhe-hia elle, mastigando, mais tarde... casar com ella... E o
+mestre, bastardo, pobre, ambicioso e simples, via abrirem-se-lhe
+horisontes seductores.
+
+Com effeito, depois de jantar, o Mestre de Aviz foi ao paço e, de
+joelhos, pediu perdão á rainha. Tamanha simplez encheu-a a ella de
+espanto. Estava calada, não sabia que responder: e como o pobre
+insistia, ella, afinal com desdem, voltou-lhe: Falemos de outras
+cousas... O Mestre saía desorientado e corrido, atraz d'elle as suas
+guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de chofre com o cadaver do
+conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho. Não pôde mais
+conter-se; e o seu animo, perdido, rebentou em duras queixa: «Enterrae-o
+ao menos, já que o mataste tão deshonradamente!» Elles não curaram
+d'isso, nem se doeram do adverbio da rainha, e foram para suas pousadas.
+Era tempo perdido.
+
+Ao outro dia a rainha partiu para Alemquer--suffocada em odios contra
+Lisboa: queria vel-a arrazada e queimada de mau fogo, queria uma
+tonelada de linguas das suas mulheres. Queria uma vingança, uma desforra
+que désse brado ao mundo. Que lhe importavam, á sua alma desvairada, a
+nação e a independencia? No egoismo absoluto de uma paixão, esquecia
+tudo; e por isso mudou de rumo á sua politica, e convidou o rei de
+Castella a vir tomar posse de Portugal. Perdia-se irremediavelmente.
+
+Entretanto a maxima parte da nobreza acompanhava-a, e a fidalguia era
+então o exercito. Uns não queriam pactuar com a revolta da plebe de
+Lisboa, nem curvar a cerviz ao imperio de Alvaro Paes. Outros eram fieis
+á legitimidade da regencia. O resto dos que não acompanhavam a rainha e
+grande parte das classes médias eram pelo infante D. João, preso em
+Toledo. O plano de Alvaro Paes e o partido do mestre de Aviz caiam
+tanto, que, desanimado, o ultimo decide-se a abandonar a empreza e a
+fugir para Inglaterra--como fez depois o seu successor na historia, o
+Prior do Crato. Poderam, porém, contel-o. Para que? Para o decidirem a
+uma segunda vergonha. Eram incapazes de nenhuma grande audacia, de
+nenhum plano temerario; e só um d'esses poderia dar a victoria. Não
+sentiam o palpitar violento de uma nação forte que aspirava á vida. Os
+seus meios eram mesquinhos, soezes e crueis. Conquistaram o castello em
+Lisboa, levando á frente de si as mulheres e os filhos dos que o
+defendiam pelo infante D. João. Angariavam sequazes, comprando-os a
+dinheiro, segundo a regra de Alvaro Paes: _dae o que não é vosso,
+promettei o que não tendes, e perdoae a quem vos errou._ A rapina e a
+impunidade eram o alicerce da força do partido, já ridiculamente
+alcunhado do _Mexias de Lisboa_. O segundo plano proposto, para evitar a
+fuga do _Mexias_, era a antiga idéa commum e soez de Alvaro Paes:
+casal-o com Leonor Telles. O Mestre accedeu; e propoz o caso á rainha,
+que respondeu com uma gargalhada. Podia-se acaso descer mais? Não podia.
+
+Quem faz, porém, os Messias é o povo. Valham pouco, valham nada, pouco
+importa. São um lábaro, onde a turba escreve um moto. Vão, mas não
+guiam. Portugal com effeito gerava uma revolução messianica; pedia em
+altos brados que o salvassem; tinha a consciencia de que podia e havia
+de ser salvo. Esta força latente e invencivel, era, porém, ignota para a
+simplez do Mestre e para o lerdo instincto de Alvaro Paes. Andavam ambos
+como cégos em torno de um pharol, sem o verem. Eram ambos como certos
+animaes das trevas, a quem a desnecessidade priva de olhos.
+
+Para vêr e para sentir a gravidade do momento, para conceber a audacia
+da revolução, era mistér, ou a ingenua candura dos fortes, ou a refinada
+sabedoria dos mestres. O de Aviz teve a fortuna de encontrar dois homens
+que o fizeram rei, e tornaram o seu titulo ridiculo de _Mexias_, no
+titulo verdadeiro e forte de Defensor-do-reino, positivo messias da
+nação (1384).
+
+Termina o reinado de Alvaro Paes, desde que o futuro condestavel e o
+grão-doctor tomam conta, um da guerra, outro da politica. Temerarias,
+audazes, quasi loucas ambas, exprimem ambas a suprema sabedoria; porque
+traduzem o até ahi indefinido querer do povo, e empregam os meios unicos
+de salvação. Nunalvares faz de toda a fronteira o theatro de incessantes
+campanhas, pouco ou nada attende ás ordens do Defensor-do-reino, por
+vezes desobedece formalmente. Á medida que o Mestre via o resultado das
+armas do nobre capitão, ia reconhecendo a propria inferioridade; e a
+simplez natural do seu genio tinha de bom o abrir-lhe os olhos á
+verdade. Nos actos alheios, aprendia a pesar os seus, ganhando com isso
+a attitude de um moderador prudente. Era sábia a arte com que ponderava
+os conflictos inevitaveis de Nunalvares com João das Regras: do
+cavalleiro idealista e heroico, e do habil, consummado politico: do
+representante ingenuo de douradas phantasias, com o frio calculador das
+cousas positivas; do ultimo homem da Edade-média, com o primeiro do novo
+Portugal monarchico. Entre ambos, o Mestre de Aviz era um pendulo
+regulador das duas forças em opposição.
+
+A politica ia buscar outra vez as allianças inglezas, acordando a antiga
+ambição castelhana da casa de Lencaster; e a guerra, ora terrivel em
+batalhas, ora fidalga em reptos e duellos, ia acordar por todo o paiz a
+revolução. Os grandes, os alcaides das terras, eram por Castella ou pelo
+infante D. João; mas o povo era pelo Messias: cria e esperava o milagre.
+Formavam-se _uniões_ espontaneas; e as levas de populares conquistavam
+para o Mestre os castellos e villas fortificados aos senhores e aos
+alcaides dos concelhos.
+
+Uma grande parte do reino obedecia ao governo de Lisboa; mas a rainha, o
+rei de Castella e o exercito invasor, na sua marcha sobre a capital,
+occupavam Coimbra. Leonor Telles acabou ahi. Arrependida de ter chamado
+o castelhano que a desprezava; reconhecendo que erradamente, por uma
+precipitação, forjára por suas proprias mãos as cadeias do seu
+captiveiro, vendo agora quanto se illudira, e que erro fôra o seu em não
+avaliar a justa vitalidade do paiz, tentou ainda urdir uma trama para se
+libertar, perdendo o genro e a filha. Os seus planos falharam; e anojada
+e cheia de desespero, seguiu a ordem do genro, que de Coimbra a mandou
+enterrar no mosteiro de Tordesillas. Como acabaria a sua vida? Quem
+sabe? talvez arrependida, santamente amortalhada no burel monastico?
+acaso roída de desespero, impenitente?
+
+O exercito castelhano desceu sobre Lisboa, e este segundo cêrco da
+capital (1384) foi mais cruel ainda do que o primeiro, no tempo de D.
+Fernando. Veiu a fome perseguir os heroicos lisbonenses, que andavam já
+doentes das cousas que comiam. Por fóra a peste alastrava, porém, de
+cadaveres os arrayaes castelhanos; e quando, um dia, a rainha de
+Castella, pretendente de Portugal, adoeceu tambem, os inimigos
+levantaram o cêrco. O povo encontrava n'isto motivos para crer n'uma
+protecção do céu.
+
+Por mais de um anno se prolongaram ainda as guerras pelas provincias
+afastadas; mas Lisboa, Coimbra e todo o centro do paiz era, já em 1385,
+pelo Mestre. Os ultimos actos da revolução iam consummar-se: as côrtes
+de Coimbra e a batalha de Aljubarrota.
+
+Em Coimbra o grão-doctor é o general e o chefe. Essa batalha de
+discursos era diversa, mas não menos brava de pelejar; porque uma grande
+parte da nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o
+estava a acclamar rei o Mestre de Aviz. Legitimista, considerava-se
+ligada ao infante D. João; e a união dos fidalgos, completa para a
+defeza, não existia, agora que se tratava de consolidar, com uma nova
+dynastia, a independencia e a constituição definitiva do reino.
+
+O rei de Castella era schismatico e excommungado por apoiar Clemente VII
+contra Urbano VI; e além d'isso os maus costumes de Leonor Telles não
+deixavam ter certeza sobre a legitimidade de D. Beatriz.--Todos apoiavam
+João das Regras, porque ninguem queria o castelhano.--D. João,
+continuava o doutor (e aqui principiavam os murmurios) é bastardo,
+porque el-rei D. Pedro jámais se casou com D. Ignez de Castro.--Um
+momento houve em que Nunalvares esteve a ponto de brigar com o
+_roncador_ Martim Vasques, o chefe dos _leaes_; e as côrtes por um triz
+se tornavam n'uma batalha. Interveiu o Mestre de Aviz, apasiguando o
+exaltado capitão, melhor no campo do que no conselho.
+
+Ahi reinava o _grão-doctor_. Além de illegitimos, continuava sem se
+perturbar, os filhos de D. Ignez de Castro tinham tomado armas contra a
+patria; e este argumento, proprio a impressionar os leaes, pesou, mas
+não os decidiu. Então o doutor lançou mão das reservas e venceu.
+Apresentou as bullas, nas quaes o papa recusára acceder aos pedidos do
+rei D. Pedro para a legitimação dos filhos. Podia haver prova mais
+solemne? Ousaria ainda alguem conservar duvidas? E apoz isto desenrolava
+todas as consequencias: a divisão das forças do reino perante o
+castelhano, inimigo commum; a impossibilidade de acclamar rei um
+principe preso em Castella, etc. O ataque era irresistivel; e tudo
+cedeu, declarando-se vago o throno, e elegendo-se para o occupar o
+Mestre de Aviz, D. João I.
+
+Que melhor prova podia dar-se da vitalidade da nação e da sua
+independencia já acabada, do que estas côrtes de 1385, em que ella
+exalta uma dynastia, sem base na tradição nem na herança, unicamente
+enraizada no querer absoluto, commum dos portuguezes? É só n'este
+momento que bem de facto se póde dizer terminada a historia da
+independencia; porque a dynastia de Borgonha trazia comsigo o peccado
+original da doação primitiva, segundo o direito feodal: o reino era um
+senhorio, sublevado, como por tantas vezes e por tão longos tempos o
+tinham sido, na propria Hespanha, a Galliza e a Biscaya.[56] Agora as
+cousas mudavam; e mudavam, porque a nação, alargando-se para o sul,
+recebendo novas gentes em seu seio, fomentando a actividade commercial e
+maritima em Lisboa, ao mesmo tempo que se constituia interna ou
+organicamente, era já um ser diverso do antigo, e um ser dotado de vida
+independente e propria. A crise, que temos vindo historiando--com um
+vagar desculpavel pela sua significação excepcional--parece ter, para a
+vida nacional portugueza, a importancia que a natureza dá ás crises que
+determinam a passagem de uns para outros dos seus typos organicos.[57]
+
+Não bastava porém uma acclamação, era necessario um baptismo, á nova
+monarchia. Aljubarrota respondeu com as armas á eloquencia das côrtes;
+e, victorioso no conselho e no campo, o throno de D. João I ficou
+inabalavel. Segundo o parecer dos inglezes, seus alliados e mestres na
+nova tactica militar com que vieram a esmagar em Azincourt a cavallaria
+franceza, o Mestre d'Aviz entrincheira o seu pequeno exercito.
+Nortberry, Hartcelle e d'Artherry, capitães, traçaram a _carriagem_.
+Cortaram-se ramos de arvores com os quaes se levantou uma estacada para
+paralysar as cargas da cavallaria; ao meio d'essa estacada um carreiro
+estreito, internamente bordado por archeiros e bésteiros de pé, estava
+aberto, como uma tentação e um laço ao ardor fidalgo dos inimigos.
+
+A desproporção do numero era grande entre os combatentes. O castelhano
+trazia comsigo vinte mil homens de cavallo, nos quaes entravam dois mil
+francezes, gascões e bearnezes: com a peonagem, o seu exercito ia a mais
+metade. Em volta de D. João I não havia mais de duas mil lanças,
+oitocentos bésteiros, e quatro mil peões: alguns elevam a dez mil o
+total. Evidentemente, só a força da arte podia vencer a desproporção do
+numero. Pelo meio dia appareceu o exercito inimigo, victoriosamente
+composto na galhardia das armas reluzentes com o sol, dos pendões e
+bandeiras blazonadas, das mesnadas dos ricos homens da Hespanha e da
+França meridional, montados nos seus cavallos de guerra. Os portuguezes,
+calados, humildes e obscuros, por detraz das suas trincheiras, esperavam
+o choque d'essa brilhante móle. Havia em muitos valentia e enthusiasmo,
+mas não faltava o temor, menos ainda a decisão firme de morrer vencidos,
+na desesperança de rebater um ataque tão poderoso. O condestavel e os
+cavalleiros excitavam o ardor bellico; os bispos, confessando,
+absolvendo, dando a commungar, distribuiam a paz ás consciencias,
+preparavam para a morte, accendendo a coragem com os odios religiosos.
+Havia exaltação, votos singulares, ditos agudos, mas sobradas duvidas
+sobre o resultado do dia. Os padres resavam no seu latim: _Verbum caro
+factum est_, e os soldados traduziam d'esta fórma o evangelho: muito
+caro feito é este: Havia até medo n'essas levas de gente bisonha do
+campo, soldados saídos de uma população rural; mas uns trinta peões que
+fugiram, apavorados, foram trucidados pelos castelhanos: o que nos
+prestou o serviço de evitar as deserções, consolidando o proposito da
+defeza.
+
+O exercito inimigo não se tinha decidido ainda sobre o modo de operar.
+Uns optavam pela prudencia: vinham de longe, cansados da viagem, não
+tinham comido ainda: esperassem, e os portuguezes, como javardos no seu
+covil, seriam forçados a saír por lhes faltar o mantimento. Outros
+achavam uma vergonha, para tão fidalgos cavalleiros, o parar deante
+d'uma estacada mal defendida por um punhado de soldados bisonhos. Apesar
+do rei vir em andas, doente com sezões, venceu a ultima opinião, e
+atacaram galhardamente. «Em esto os ginetes dos inimigos provavam a
+miude d'entrar na carriagem dos portuguezes, mas tudo achavam apercebido
+de guisa que lhes non podiam empecer. De fórma que os castellãos tiveram
+de apear e combater com armas curtas.» (F. Lopes).
+
+Realisava-se a previsão, e a batalha acabou por um destroço completo da
+cavallaria orgulhosa. O rei de Castella fugiu nas suas andas. Toda a
+bagagem do seu exercito caiu em poder dos vencedores. Eram carretas e
+azemolas sem numero e dezenas de milhar de cabeças de gado.
+
+Como para a Europa central foi depois Azincourt, assim Aljubarrota foi
+na Hespanha: o ultimo dia da cavallaria feodal, e o primeiro ensaio
+d'esses combates de pé, com que dois seculos mais tarde a infanteria
+castelhana de Carlos V havia de conquistar a Europa.
+
+A Edade-média portugueza acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira
+epoca da nação, com o periodo da sua formação trabalhosa e lenta. Novos
+horizontes, vastas ambições, pensamentos ainda inconscientes de um largo
+futuro, amadurecem encobertos, no seio da nação, formada, acclamada,
+baptizada em sangue. Chama-a de longe um dubio tentador--o Mar!
+
+ [52] V. _As raças humanas_, I, pp. XXXI-III.
+
+ [53] Curiosa coincidencia a repetição d'esta scena em 1834 na
+ guerra civil: (_Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 371).
+
+ D. Pedro vae
+ D. Pedro vem,
+ Mas não entra
+ Em Santarem!
+
+ O estribilho do tempo de D. Fernando acabava--_de Lisboa
+ a Santarem_.
+
+ [54] V. _Portugal contemporaneo_ (2.ª ed.), II, pp. 291.
+
+ [55] V. _Instit. primit._, p. 157.
+
+ [56] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) a pp. 118-21 os
+ quadros dos estados peninsulares.
+
+ [57] V. _Elem. de Anthropologia_ (3.ª ed.), pp. 13-20.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+LIVRO TERCEIRO
+
+A CONQUISTA DO MAR TENEBROSO
+
+(DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500)
+
+
+ ... quantas vezes estive mettido de baxo das bravas ondas por saber
+ o fundo das barras e para que parte endereçavam os canais, e entrada
+ dos rios até então nunqua lavrados cubertos de bravo mato; e asi
+ mesmo que para alcansar a verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e
+ remansos de rios, surgidouros de portos, abriguo de enseadas,
+ deferença das agulhas, altura das cidades, e fazer tavoas de cada
+ lugar e rio em que se contem a mostra da terra, baxos, restingas,
+ rotas, e como se devem de entrar, perdi muita parte da saude e
+ disposição natural.
+
+ DOM JOHAM DE CASTRO, _Primeiro roteiro da costa da India._
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+I
+
+O Infante D. Henrique
+
+
+Desde o miado do XII seculo que se propagára na Europa a noticia da
+existencia de um imperio christão no extremo Oriente. O nuncio da Egreja
+da Armenia falára ao papa (Eugenio III) em um principe, chamado João,
+cujos dominios estavam situados para além da Armenia e da Persia, e que
+reunia ao Imperio o sacerdocio: era um papa do extremo Oriente, e fizera
+numerosas conquistas, o Preste-Joham.[58] Esta lenda, espalhada na
+Europa, excitava tanto mais a pia curiosidade dos christãos, quanto
+essas distantes regiões se pintavam como paraizos carregados de ouro e
+encantos.
+
+Durante a Edade-média, vogavam tambem extravagantes lendas ácerca do
+Atlantico.[59] As tradições obliteradas pela ignorancia davam caracteres
+phantasticos ás antigas viagens dos carthaginezes ao longo das costas
+d'Africa, e ás ilhas do mar atlantico.[60] Esse infinito de aguas, onde
+mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de monstros e sombras
+extravagantes; era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que nas suas
+barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas
+costas da França, foram caindo para o sul; e já no XV seculo tinham
+chegado ás Canarias, já commerciavam ao longo da costa africana, para
+cima do cabo Bojador, onde tambem, por terra, chegavam os berberes de
+Marrocos.[61]
+
+As tradições dos geographos antigos, idealisadas pela imaginação bretan,
+tinham dado logar á formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era
+um oceano de luz, semeado de ilhas verdes onde havia cidades com
+muralhas de ouro resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens
+estava o paraizo terreal. Para os geographos arabes, menos fecundos em
+phantasias, o mar tenebroso era uma vasta e infinita campina, a acabar
+n'um cahos de nevoeiros e vapores aquosos; e, «ainda que os mareantes,
+diz Ibn-Khaldún, conheçam os rumos dos ventos, não havendo, para além,
+paiz algum habitado, perder-se-hão irremediavelmente, porque o limite do
+oceano não é outro, senão o proprio oceano».
+
+Além d'estas tentações maritimas, havia a ambição do Oriente e do seu
+commercio, accendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais
+particularmente na Hespanha, pelo contacto intimo em que a occupação
+arabe a puzera com os monopolisadores d'esse commercio, durante a
+Edade-média. Hormuz[62] era o emporio mercantil de todos os mercadas do
+oceano indico. D'ahi as carregações se dirigiam para a Europa e para a
+Asia do norte, seguindo derrotas diversas. As da Asia iam em cáfilas,
+caminho da Armenia, por Trebizonda, engolphar-se na Tartaria; as da
+Europa, ou vinham por mar a Suês, e d'ahi em caravanas, pelo Cairo, a
+Alexandria, ou seguiam por terra o valle do Euphrates a Bagdad, passando
+em Damasco, no seu caminho de Beirut, sobre o Mediterraneo.
+
+Tinha, porém, no começo do XV seculo, a empreza encetada com tamanho
+vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de
+chegar por mar--como veiu a chegar-se--ao imperio do Preste-Joham das
+Indias? Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das
+ilhas de que havia uma noticia mais ou menos vaga; reconhecer e ir
+occupando gradualmente a costa occidental da Africa--parecem ter sido
+emprezas ainda não ligadas n'esse tempo com a da viagem aos reinos do
+Preste-Joham. Esta viagem, comtudo, não occupava menos o espirito do
+principe, que pensava leval-a a cabo por um caminho differente: por
+terra. A conquista de Ceuta prende-se directa e principalmente a este
+pensamento. Architectos arabes da Hespanha tinham ido pelo interior da
+Africa até Timboktu, cujos palacios rivalizavam com os de Cordova ou de
+Granada. Ceuta era a chave maritima do imperio de Marrocos; e,
+porventura, atravez da Africa se poderia chegar ao dourado Oriente. Em
+todo o caso a terra offerecia um campo de exploração mais definido do
+que esse mar incognito, infinito, cheio de trevas.
+
+No ambicioso espirito do infante, cabiam as duas emprezas: conquistar o
+imperio marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o
+monopolio do commercio do Sudão;[63] e ao mesmo tempo conquistar ás
+trevas as ilhas d'esse mar desconhecido, seguindo tambem o longo das
+costas occidentaes para as visitar e explorar. Tenaz e até duro de
+caracter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empreza: nem
+o dobram as lagrimas do irmão infeliz sacrificado em Tanger, nem as
+supplicas do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto
+em Alfarrobeira. Ás conquistas da Africa immola os dois principes; ás
+navegações os seus ocios, as rendas da Ordem de Christo, e as vidas
+obscuras dos muitos que morreram ao longo das costas, ou na vasta
+amplidão dos mares terriveis. Dominado por um grande pensamento, é
+deshumano, como quasi todos os grandes-homens; mas, no limitado numero
+dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do primeiro
+Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o imperio ephemero
+do Oriente: entre ambos, D. Henrique foi o heroe pertinaz e duro, a cuja
+força Portugal deveu a honra de preceder as nações da Europa na obra do
+reconhecimento e vassallagem de todo o globo.
+
+ * * * * *
+
+A candida nobreza de Nunalvares, a sabedoria do grão-doctor João das
+Regras, a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quasi um
+heroe: os seus illustres filhos fazem d'elle o mais feliz dos paes.
+Ditoso homem mediocre a quem tudo favorece, deu-lhe a sorte uma esposa
+virtuosa e nobre na princeza, cuja lição e cujo exemplo põem a semente
+das suas grandes acções no coração dos infantes--D. Pedro, acaso o typo
+mais digno de toda a historia nacional; D. Fernando, cujos meritos
+desapparecem perante o do martyrio que o santificou; D. Duarte, o rei
+sabio e feliz: D. Henrique, finalmente, em cujo cerebro ferviam os
+destinos futuros de Portugal. É uma pleiade de homens celebres,
+presidindo a uma nação constituida e robusta. Com taes elementos
+consegue-se tudo no mundo. Bons guerreiros, á antiga, os infantes não se
+parecem, comtudo, já com os antigos personagens. A côrte apresenta uma
+phisionomia diversa: dir-se-hia uma Academia. D. Duarte occupa-se em
+cousas sábias, escreve o seu _Leal conselheiro_. D. Pedro, cujas
+dilatadas viagens chegaram a formar lenda, traz comsigo vasta lição,
+muitos livros, cartas, conhecimentos; a litteratura e a geographia
+occupam-no por egual, e tambem escreve: dedica ao irmão primogenito o
+seu tratado da _Virtuosa benfeitoria_. Á noute, nos serões, lêem-se,
+_pouco, passo, e bem apontado_, como D. Duarte manda na sua obra, as
+historias seductoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é uma côrte
+da Edade-média, é já uma côrte da Renascença, cheia de idéas novas e de
+uma cultura eminente. A educação transforma a politica, e as theorias
+monarchicas da Italia são applaudidas e adoptadas. Bole-se na
+legislação, limitam-se os privilegios aristocraticos e burguezes,
+adianta-se a obra da unidade organica do corpo nacional. Os principes,
+valentes e sabios, são estadistas, no moderno sentido da palavra; e o
+rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nunalvares, ás lições de
+João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe
+mostram, com os livros e os mappas, a conveniencia de ir tomar
+Ceuta--primeiro acto de uma longa e ambiciosa historia que desenrolavam
+perante os ouvidos soffregos do antigo Mestre de Aviz. A rainha,
+orgulhosa nos filhos, approva tanto, que, já moribunda, ainda obriga o
+marido a partir. D. João I, passivo agora e sempre, obedece; e, do
+principio ao fim da sua fecunda existencia, parece fadado a ornar-se com
+os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara que outro semeou. Tinha
+porém a habilidade propria dos homens de juizo--a de pesar, vêr, e
+julgar com rectidão.
+
+ * * * * *
+
+Os planos de D. Henrique mereciam a plena approvação do rei, que lhe
+dava ampla liberdade para proseguir; e até o incitaria, se o infante
+carecesse de estimulo. Já no proprio anno de Ceuta. D. Henrique fizera
+uma primeira tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa
+da Africa.
+
+Terminada a empreza de Ceuta, poz decididamente mãos á obra, e
+estabeleceu-se em Sagres. Era uma lingua de rocha cravada nas ondas e
+acoitada pelas ventanias do noroeste. Estava-se alli como a bordo; e a
+academia do infante parecia uma náu, em que vogavam os destinos ainda
+ignotos da nação. Os antigos tinham chamado _sacrum_, sagrado, a esse
+promontorio, e o nome de agora tambem traduzia, no pensamento e na
+linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no XV seculo, como fôra
+nos velhos tempos, o pedestal de um templo. Acreditavam os antigos
+celtas, do Guadiana espalhados até á costa,[64] que no templo circular
+do promontorio sacro, se reuniam ás noutes os deuses, em mysteriosas
+conversas com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho
+dos homens para os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas
+erguiam em Sagres um novo templo, onde tambem ás noutes, não deuses, mas
+homens, se entretinham em falas com os ignotos mares, com as regiões
+desconhecidas. O espirito era o mesmo, a religião era outra:--era a da
+Renascença--a sciencia, a tentação irresistivel que arrastava os homens
+para a natureza; que os fazia extenuarem-se a desflorar a virgindade dos
+mares, a interrogar a mudez das noutes, na sua ancia de saber, de
+dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes
+estive mettido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e
+para que parte endereçavam os canaes!»
+
+Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a
+cosmographia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens
+o manuscripto das peregrinações de Marco Paolo. Esses livros, os mappas
+de Valseca, as narrativas e roteiros dos pilotos, as rudes cartas
+maritimas, faziam vergar as mesas, a que o infante, tendo ao lado o seu
+cosmographo, Jayme de Mayorca, então celebre, rodeado de discipulos,
+passava os dias a discorrer, as noutes a interrogar, silenciosamente, os
+enygmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo Lullio, entre as
+drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o principio
+da vida, os corpos simples ou elementares da materia para obter o
+segredo da existencia physica e organica: assim o infante procurava
+desvendar os segredos das ilhas e dos continentes, dos golphos e
+enseadas, velados pelo manto azul-negro do Mar Tenebroso.
+
+Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa
+tenaz curiosidade scientifica, differia essencialmente do mysticismo
+religioso da Edade-média, eivado de phantasias kabbalisticas, e da
+ingenuidade das mythogenias primitivas. O homem já preferia a sciencia á
+imaginação: rejeitava as fabulas, e confiava tudo aos processos e aos
+meios positivos. «Ora manifesto é, diz, um seculo depois, Pedro Nunes,
+que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram
+indo a acertar; mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos
+de instrumentos e regras de astrologia e geographia, que são as cousas
+de que os cosmographos hão de andar apercebidos. Levavam cartas mui
+particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não
+tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A
+bussola, o astrolabio e o quadrante já guiavam as expedições maritimas
+enviadas annualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a
+descer a costa para o sul. Porto-Santo, a Madeira e os Açores foram por
+esta fórma arrancadas ás trevas do mar.[65] Mas, apesar das
+successivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador,
+limite extremo até onde a costa era conhecida: havia doze annos que os
+navios iam e voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a
+um muro de terrores phantasticos.
+
+Gil Eannes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo
+não acabava alli, sabia-se já; mas seria possivel ir além d'esse
+_finis-terrae_ da Africa? Gil Eannes voltou para responder
+affirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram
+seguindo, costa abaixo, por Cabo-Verde, a Guiné, onde, cheios de
+satisfação, os mareantes aprisionam os primeiros negros--os azenegues do
+Senegal.[66]
+
+Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os
+haviam de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensiveis, o
+dilatado das viagens, sem consequencias fecundas, esfriavam nos animos o
+enthusiasmo do principio. Não acabava, jámais, a costa da Africa! e o
+Preste-Joham e os encantos do Oriente traduziam-se apenas pela
+_malagueta_ da Guiné.[67]
+
+O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das
+navegações. A empreza, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para
+as forças da nação: não podiam ellas vencer de todo, nem o Mar, nem
+Marrocos; e o que se tinha conseguido, perante os resultados praticos,
+desanimava, e fazia sentir cansaço.
+
+ * * * * *
+
+Antes de nos alongarmos na historia d'essa empreza, cabe-nos o dever de
+registrar brevemente a da formação das forças navaes portuguezas,
+indispensaveis para o emprehendimento das viagens de descoberta e das
+expedições militares á costa da Berberia.
+
+Póde dizer-se que, até ao fim do XII seculo, não ha marinha na Hespanha
+occidental. As luctas da reconquista, então feridas, eram-no por terra
+exclusivamente; e a impericia maritima dos christãos, junta aos
+relativos progressos dos arabes concorriam para tornar difficil a
+conservação das praças litoraes conquistadas. Os primeiros dispunham
+apenas de pequenas lanchas costeiras; emquanto os segundos tinham navios
+regularmente armados e equipados, com que percorriam toda a costa
+occidental, refrescando nos seus portos, abastecendo-os de munições e
+gente quando estavam cercados, e desembarcando a miude, com o fim de
+talar os campos dos christãos e captivar os tardivagos ou indefesos. Já,
+porém, no XI seculo o bispo de Compostella tinha mandado vir de Genova
+pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que foram ás costas do
+Algarb sarraceno pagar em moeda egual antigas e grossas dividas. Os
+genovezes foram os nossos mestres na arte de navegar.
+
+Mas desde o meiado do XII seculo o exame das armadas de Cruzados, com
+cujo auxilio Lisboa e depois Alcacer foram tomadas, tinha vindo
+accrescentar os conhecimentos: demonstrando ao mesmo tempo que, sem o
+imperio no mar, jámais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do
+reino. Á empreza de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios
+portuguezes; e o que escrevemos sobre o caracter mais regular e
+systematico da politica e das campanhas d'esse reinado leva-nos a crêr
+que d'ahi deve datar-se a fundação da marinha militar portugueza. Com
+effeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Affonso III,
+como o provam as expedições maritimas que terminaram pela conquista
+definitiva do Algarve, e as façanhas do lendario Fuas Roupinho. Havia
+então já um corpo de tropas especiaes de embarque.
+
+Que eram esses navios, porém? O leitor de certo viu alguma vez, de
+tarde, ao cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas
+praias de Ovar ou da Povoa-de-Varzim. Viu a construcção e os typos
+d'esses navios primitivos, e as pittorescas physionomias dos seus
+tripulantes: eis ahi uma esquadra do XIII seculo.[68] Vel-a-ha, real e
+verdadeiramente, se, com a imaginação, substituir por armas os
+utensilios da pesca. E quando os barcos, encalhados na areia humida,
+descarregaram--hoje o peixe, então as presas, os mantimentos e a
+gente--homens e mulheres, fincadas as mãos sobre os joelhos, curvados,
+com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo d'elle,
+impellem-no, manobrando ao som de um canto rythmico, para o fazer rolar
+sobre toros até ficar em secco, distante dos perigos das ondas. Essa
+scena repetia-se para pôr a enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e
+Sancho II realisou um progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas
+praias de pescadores: mandou construir _debadoyras_ (cabrestantes) para
+encalhar, tirados por cabos, os navios. No tempo de Affonso III já o
+poder maritimo portuguez é de tal ordem, que os nossos navios vão em
+soccorro a Castella, e o papa nos convida a acompanhar as gentes do
+norte á Cruzada.
+
+O reinado de D. Diniz marca uma segunda éra na historia da marinha
+nacional. Reciprocamente indispensaveis a marinha mercante e a militar,
+os cuidados do rei administrador dirigem-se principalmente a fomentar a
+primeira, cuja importancia o tratado de commercio, feito em 1308 com a
+Inglaterra, accusa. Além d'isto o rei applica-se a melhorar o porto de
+Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o contra as
+dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo
+pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Tambem no seu tempo, por
+morte do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja familia esse cargo
+andára, vem tomar o almirantado da armada portugueza o genovez Pezzagna.
+Nacionalizada, a familia dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do
+mar, ou almirantado, como já, á moda arabe, se dizia então.
+
+Os progressos realisados no XIV seculo preparam os recursos poderosos,
+com que, no seguinte, o infante D. Henrique póde levar de frente as duas
+emprezas a que votára a sua existencia. D. Fernando, o _amavioso_ e
+infeliz rei, merece n'esta historia uma menção condigna. Apesar das
+chimeras da sua politica tornarem em derrotas as suas emprezas, a
+sabedoria e o alcance economico da sua legislação dão-lhe o direito de
+preeminencia na historia da formação do poder naval dos portuguezes. Já
+então a alfandega de Lisboa rendia, por anno, de 35 a 40 mil
+dobras:[69] o que demonstra o progresso commercial do reino,
+e comprova a opinião expressa no livro anterior, da deslocação do centro
+de gravidade nacional do norte para o sul, e da nova phisionomia
+adquirida depois do antigo caso da separação do condado portuguez do
+corpo da monarchia leoneza.
+
+O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietarios a detenção
+improductiva das terras, obrigando-os a lavral-as, ou a dal-as a quem
+por elles o fizesse, era o mesmo que, n'um corpo de leis, protegia e
+fomentava o commercio maritimo de Lisboa, já então uma cidade
+cosmopolita. Os genovezes, os lombardos, os aragonezes, os mayorquinos,
+milanezes, corsos, biscainhos, gentes de tão variadas partes--de toda a
+Hespanha e das costas circum-mediterraneas--fixavam-se em Lisboa a
+commerciar. Pelo Tejo saíam cada anno para cima de doze mil tonneis de
+vinho, sem contar o dos navios da segunda carregação, em março. Os
+navios eram já maiores e tinham coberta. O chronista chama á capital
+«grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza que se
+formava para succeder á antiga; e, como nas cidades republicanas da
+Italia, tambem o commercio era privilegio dos mercadores, prohibido aos
+nobres e clerigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fóra do
+porto-franco de Lisboa.
+
+O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potencia
+commercial e maritima: e o que fez em favor do seu progresso demonstra a
+lucidez do seu espirito. O rei em pessoa era armador e negociante de
+certos generos exclusivos. Creou _bolsas_ de seguros maritimos, mutuos,
+em Lisboa e no Porto, com o producto de uma taxa especial lançada sobre
+o commercio, instituindo o cadastro ou estatistica naval. Reduziu a
+metade os direitos de importação dos generos trazidos por navios
+nacionaes, estabelecendo assim um direito differencial de bandeira, a
+cuja sombra se multiplicou o numero dos navios mercantes portugueses.
+Deu, aos que desejassem construil-os, a faculdade de cortar madeiras nas
+mattas reaes. Isentou de direitos os materiaes de construcção naval, e
+os navios construidos fóra, por conta de nacionaes: e o mesmo concedeu á
+exportação dos generos do primeiro carregamento de navios novos. Por
+sobre esta protecção efficaz e energica, emprestava ainda aos armadores
+capitaes para commerciarem, ficando interessado com elles no dizimo dos
+lucros, que se liquidavam duas vezes ao anno.
+
+N'outro logar dissemos que o governo de D. Fernando fôra um cesarísmo, e
+com effeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento
+material da nação, na violencia das medidas de salvação publica, na
+desordem dos costumes da côrte, e no caracter bondoso e ingenuamente
+devasso do rei. Este Cesar do fim da Edade-média preparava o caminho á
+nação, cuja vida brilhante de dois seculos, afastada da estrada
+ordinaria da agricultura e da industria, ia ser a vida de uma Roma
+imperial, de uma Carthago, de uma Veneza: metropole acanhada de um
+imperio colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento
+individual dos governantes autocratas, mais do que á força espontanea de
+um espirito nacional, ao machinismo activo de um systema de instituições
+e classes, organicamente construido e funccionando normalmente. De todos
+os fundadores do Portugal maritimo D. Fernando é o maior; e se as
+queixas formuladas, ao decair do XVI seculo, contra os que afastaram os
+portuguezes do arado para o leme, do campo para o mar, teem razão
+absoluta--a sabedoria de D. Fernando foi como o peior dos erros. Camões
+fulminava, pela bocca do velho do Restello, os que arrastavam Portugal
+para o mar; como Plutarcho tambem condemnou Themistocles por ter lançado
+os athenienses no caminho das emprezas maritimas.
+
+Mas esses lamentos do espirito utilitario, se teem um cunho de verdade
+positiva, teem tambem um escasso merecimento historico. Não tivesse a
+Grecia sido colonisadora e maritima, e a sua voz educadora jámais se
+teria ouvido no mundo. Outrotanto diremos de nós. Não tivessemos
+alargado pelo mar um nome sem razão de ser na Europa, e, jungidos á
+Galliza virente e á Castella farta, teriamos tido menos fome e menos
+dôres, menos miserias decerto, mas nenhuma honra, tambem, na historia. O
+proprio nome de Portugal não teria existido, senão como lembrança
+erudita de um certo condado, que, nas mãos de principes astutos e
+atrevidos, conseguira viver alguns seculos separado do corpo da nação
+hespanhola.
+
+Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto.
+Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações,
+differe de absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer
+as necessidades organicas. Além d'isto, o destino, fatalidade,
+providencia, determinação, ou como se queira dizer--traduzido com as
+successivas palavras, antigas, actuaes ou futuras, um mysterio
+eterno--elege ou condemna--escolham tambem os sectarios entre as duas
+expressões--os homens e as nações a uma determinada obra. Nós fomos
+elegidos ou condemnados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que
+o enchia de vagas ambições ou de funebres terrores.
+
+Era este o momento opportuno de dizermos todo o nosso pensamento ácerca
+da empreza nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver
+melhor chamar-lhe. A viagem das Indias, que vamos contar--descrevendo
+previamente a derrota, por Ceuta e Tanger, e, no reino, pela
+consolidação do poder cesarêo dos reis--necessitava ser julgada: agora
+que, ainda no molhe os tripulantes, sobre a amarra os navios, se não
+desferrou o panno, nem se deram as salvas da partida.
+
+Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D.
+Fernando. Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam
+tambem a marinha de guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372)
+era, no dizer do chronista, _formosa campanha de ver_. Mice Lançarote
+Peçanha, da linhagem do genovez, ia de almirante; e o cosmopolitismo da
+nova patria portugueza vê-se bem no nome dos capitães: um João Focin
+castelhano, um Badasal de Spinola, um Brancaleon. Como Roma, Lisboa
+recebia no seu seio e nacionalisava gentes de toda a parte; e d'este
+agglomerado de caracteres, naturalmente inorganico, sairá, no momento
+culminante do XVI seculo, um espirito superior ao espirito
+nacional-natural e a noção de uma patria moral ou ideal, como foi a
+patria de Virgilio.
+
+A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta náus redondas,
+afóra as que vieram _per ella da costa do mar_. Vinte e tres mezes teve
+bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quasi tão
+poderosa como esta, foi ainda ao Mediterraneo, na seguinte guerra de
+Castella, para soffrer o desastre de Saltes (1381) consequencia da
+temeridade do fanfarrão Affonso Tello.
+
+Agora, fundeada no Tejo, a armada, espera o rei e os principes para ir
+conquistar Ceuta, em Africa.
+
+ [58] V. _As raças humanas_, I, pp. 96-9.
+
+ [59] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) pp. VII-VIII e
+ _Elem. de Anthropol._ (3.ª ed.) pp. 126-7 e 215-17.
+
+ [60] V. _As raças humanas_, liv. IV, 2.
+
+ [61] _Ibid._, pp. 111-18.
+
+ [62] Seguiremos em geral a orthographia de Kiepert nos seus Atlas,
+ com referencia aos nomes geographicos do Oriente, traduzidos
+ nas nossas chronicas pelo ouvido dos soldados da India.
+
+ [63] V. _As raças humanas_, I, pp, 94-6 e _O Brazil e as colon.
+ port._, (2.ª ed.), pp. 244-8.
+
+ [64] V. _As raças humanas_, I, p. 184.
+
+ [65] V. A chronologia particular das viagens de descoberta no
+ _Brazil e as colonias portuguezas_ (2.ª ed.) pp. 2-3.
+
+ [66] V. _As raças humanas_, I, pp. 116-7.
+
+ [67] V. _O Brazil e as colon. port._, (2.ª ed.), pp. 14-5.
+
+ [68] V. no _Regimen das riquezas_, pp. 81-8, a evolução dos
+ vehiculos maritimos.
+
+ [69] A dobra continha 4 libras e 2 soldos; 50 dobras compunha o
+ marco de ouro cojo valor moderno é de 120$000 rs; a dobra
+ equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da Alfandega a de
+ 84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o chronista,
+ «400 a 500 navios de carregação» e em Sacavem e no Montijo,
+ a carga do vinho e do sal, 60 ou 70 em cada logar, suppondo
+ que esses navios se substituissem quatro vezes, fazendo quatro
+ viagens n'um anno, e sabendo nós que a sua lotação média
+ regularia por 100 toneladas--vemos que o movimento do porto
+ attingia mais de 200:000 toneladas de generos diversos.
+ Comparando-a com o rendimento da alfandega, faremos idéa
+ do grau de franquia do porto.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+II
+
+Portugal em Africa
+
+
+Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento
+de monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda,
+com a peste, a rainha D. Philippa. Ninguem pozera na empreza melhor amor
+do que ella: mandára fazer tres espadas cravadas de pedraria para os
+filhos, que em Ceuta haviam de ser armados cavalleiros; mas o destino
+não lhe consentiu vêr terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham
+acabado de arrancar das paredes do convento de Odivellas os pannos de dó
+do enterro, quando a armada partia. Morrera a 20; são hoje 25 do mez de
+julho de 1415.
+
+As pazes celebradas com Castella no anno anterior tinham dado o socego a
+uma côrte onde fervia o desejo de praticar grandes cousas. Diz-se que o
+rei pensára em abrir em Lisboa um torneio de um anno, onde viriam os
+mais celebres cavalleiros da Europa medir-se com os portuguezes; mas
+esse plano extravagante foi substituido pelo projecto mais sensato de ir
+a Ceuta. Para não prevenir os inimigos, conservára-se um segredo
+absoluto sobre o destino da grossa frota que se reunia em Lisboa. Todos
+temiam: o aragonez, e principalmente o mouro de Granada. Vinham de
+varias partes soldados e navios. D. Duarte apparelhára em Lisboa oito
+galeões, e D. Henrique tinha chegado do Porto com uma divisão de
+cincoenta e dois navios de toda a classe. Havia inglezes, francezes e
+allemães na armada, que, depois de inteiramente reunida, contava 33
+galeões grandes, 27 menores, de tres bancos de remeiros, 32 galeras e
+120 fustas, transportes, e outros vasos secundarios. Iam embarcados
+cincoenta mil homens.
+
+Ao passarem á vista do cabo de S. Vicente os navios baixaram as velas
+_por razam das reliquias que ali havia_. Ainda em Sagres não existia ao
+tempo a eschola do infante, mas o preito dado ao logar sagrado para
+muitos parecerá symbolico. Era esta a primeira grande empreza maritima
+de Portugal; ou antes e melhor, era a primeira vez que as esquadras
+portuguezas saíam de Lisboa com o fito de alargar o reino para além do
+mar. Inexperientes ainda os pilotos, as correntes do estreito dispersam
+a poderosa armada, parte da qual é arrastada até Malaga, indo o resto
+fundear em Ceuta.
+
+Não nos permittem as proporções d'esta obra narrar todas as batalhas e
+cercos, nem isso importa; pois que, salvas excepções que temos tomado em
+conta, todos se parecem entre si. Nenhum caracter novo, nem particular,
+apresentou a tomada da cidade que, colhida de improviso, não pôde
+resistir. Os moradores abandonaram-na depois de um combate em que
+obtiveram a prova da inutilidade da defeza; e os christãos saquearam a
+cidade deserta, arrancando as columnas de alabastro, os marmores das
+portas e janellas, os tectos lavrados em paineis dourados, dos palacios
+da opulenta Ceuta. Emquanto a turba dos soldados se espalhava pelos
+meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os fugitivos, de
+longe, sobre as collinas, bradavam desesperados e miseraveis n'um triste
+clamor de perdidos. Ficavam-lhes além, dentro dos muros da cidade
+tomada, afóra tudo o que possuiam, os cadaveres insepultos dos muitos
+que na vespera tinham morrido no combate.
+
+Ceuta era portugueza; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam
+desde logo para solemnisar a sagração da mesquita dos infieis. O infante
+D. Henrique, principal author, denodado executor da empreza, recebeu o
+titulo de duque, novo então em Portugal. Todos os tres irmãos foram
+armados cavalleiros.
+
+Que se faria porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido,
+como estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos designios do
+infante, ou os não approvavam.
+
+Ceuta guardou-se como principio de mais dilatadas emprezas.
+
+ * * * * *
+
+Vinte annos decorridos--em que o infante se déra principalmente aos seus
+trabalhos de Sagres,--e vendo acaso que as descobertas das ilhas do
+Atlantico não valiam assaz perante os sonhos da sua ambição, e que ao
+longo de Africa pouco se adiantou por mar, torna a preoccupal-o a idea
+das conquistas marroquinas, desde tempo postas de parte. A Atlantida
+mysteriosa teimava em não apparecer; ou reduzia-se afinal á Madeira, ou
+ao archipelago açoriano, onde não havia, nem encantos, nem muralhas
+d'ouro, nem estranhas gentes: só desertos cerrados de florestas, bravios
+de abrir, e pouco remuneradores. O reino encantado do Preste-Joham
+fugiria deante dos navios aventureiros, como uma miragem enganadora?
+
+Já D. João I morrera a este tempo, e governava o reino o bom, infeliz D.
+Duarte. O ambicioso irmão levou-o a emprehender a conquista de Tanger,
+depois de ter convencido a que o acompanhasse o infante D. Fernando. O
+rei, ou approvou, ou não teve energia bastante para se oppôr á temeraria
+empreza. No conselho em que ella se debateu, porém, o outro irmão, D.
+Pedro--cuja sensatez parece tel-o já a esta epocha afastado de uma
+côrte, onde a irrequieta ambição de D. Henrique governava--observa que
+tudo falta, para esperar um bom exito. Não havia dinheiro para custear o
+exercito, e, sem grande cargo de sua consciencia, o rei não o podia
+tomar aos povos. Mudar a moeda (enfraquecel-a) em proveito proprio, não
+o devia: fallece-vos o principal cimento da passagem! Posto que Tanger
+se tomasse, e Arzilla, e Azamor, que se lhes faria? Do reino, despovoado
+e mingoado, era loucura enviar gente a guarnecel-as: seria trocar boa
+capa por mau capello, perder Portugal sem por isso ganhar a Africa. O
+exemplo dos castelhanos não colhia, porque dispunham de mais vastos
+recursos.--O infante vira muito mundo, e aprendera a medir pelo seu
+justo peso a importancia limitada da nação. A ignorancia, mãe de todas
+as temeridades e audacias, não o cegava.
+
+D. Henrique, pertinaz, decidido e, por sobre isso, violento e sem
+carinho, não perdoou decerto a sabia prudencia com que o irmão se
+oppunha aos seus designios. As relações de ambos, já frias, azedaram-se
+talvez; e porventura aqui esteja o motivo da indifferença com que D.
+Henrique ouviu os rogos do irmão, quando mais tarde lhe pedia que o
+servisse perante o sobrinho, Affonso V--indifferença que decerto
+concorreu para a morte de D. Pedro em Alfarrobeira, se porventura a não
+causou.
+
+As advertencias do principe no conselho eram tanto mais graves, quanto
+os seus argumentos eram absolutamente fundados, positivos; e grandes os
+creditos da sua opinião, merecido o respeito que todos tributavam ao seu
+caracter. Por isso, apesar da nenhuma brecha que os argumentos, por via
+de regra, fazem nas teimas, o rei (ou D. Henrique) julgou necessario
+escudar-se com o parecer do papa. Consultou-se, pois, Roma; e a
+resposta, que de lá veiu honra o nome do que a deu: «Se as terras foram
+christans e ha templos convertidos em mesquitas, a guerra é santa; se o
+não foram, deve distinguir-se: são visinhos incommodos e põem em perigo
+os christãos? admoestem-se, ameacem-se e só em ultimo caso se recorra ás
+armas. Não é este, porém, o caso? então, deixem-nos em paz, porque a
+terra e a abundancia d'ella é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os
+bons e os maus, e dá de comer a todas as aves do céu.»
+
+Esta ultima das tres hypotheses indicadas pelo papa era a verdadeira, o
+que não impediu o infante de proseguir na sua teima. «A gente do reino
+havia esta ida por tão pesada, que a mais d'ella preferia pagar as
+multas (impostas aos refractarios ao alistamento) a arriscar as vidas.»
+Nem as multas, nem o dinheiro do rei, nem os emprestimos, bastavam,
+porém, para supprir o orçamento da armada; e por isso lançou-se mão dos
+bens dos orfãos. Porém, apesar de tudo, dos 14:000 homens com que se
+contava para a ida, apenas 6:000 se conseguiu reunir.
+
+Partiram, afinal, os dois irmãos; mas logo um mau agoiro entristeceu os
+soldados: o vento despedaçou a bandeira do infante, quando a
+desfraldava. Essa bandeira, sobre que o mouro havia de cuspir affrontas,
+ia já rota de Portugal...
+
+O resultado correspondeu ás previsões geraes: depois de batida, a
+expedição portugueza teve de capitular sob os muros do Tanger (1437),
+deixando D. Fernando em refens de Ceuta, que era o preço da liberdade do
+exercito. Tristes lagrimas de desespero orvalharam então as areias da
+costa africana: não seriam as ultimas, nem as mais copiosas. D. Henrique
+voltava com as reliquias da sua expedição, deixando o irmão preso. «Que
+el-rey se lembre de mim... roguem por minha alma, que é a ultima vez que
+nos veremos!» dizia o infeliz ao despedir-se, em lagrimas. D'alli os
+mouros levaram-no a Fez. Ia como Isaac para o altar, ou como Jesus para
+o Calvario. Conduziram-no montado n'um sendeiro mui magro, desferrado,
+tendo por freio umas tamiças, a sella esfarrapada, os arções
+despregados. Deram-lhe tambem uma canna, para guiar a azemola. Atraz
+d'elle iam os outros prisioneiros amarrados sobre as bestas de carga. A
+gente acudia ao caminho de Fez, chamada pelo pregão: «Venham vêr o rei
+dos christãos!» E os apupos, as pedradas, os escarros, caíam sobre os
+infelizes, chouteando, na sua paixão, esmagados por um sol abrazador.
+Uns, com os apupos, remordiam-se colericos; o infante, submisso e
+conformado, lembrava-se de que outro tanto, e mais ainda, soffrera Jesus
+por elle. Antes, porém, ser de uma vez crucificado, do que acabar
+lentamente nas lobregas estrebarias de Fez, varrendo as immundicies,
+comido de bichos, devorado de febres, porque nem a lentidão do martyrio
+lhe poupou o cadaver aos insultos da turba. Pendurado nú, pelos pés, nas
+ameias da cidade, foi a sorte que lhe deram. Antes, pregado na cruz,
+tivesse expirado como Christo. O pobre infante é o primeiro martyr da
+nossa epopêa; e se nos honramos do muito que fizemos, é agora o momento
+de deixar aqui uma lagrima de saudade e pena por esse infeliz precursor
+do nosso imperio!
+
+ * * * * *
+
+De volta ao reino, e salvo, D. Henrique oppoz-se decididamente á entrega
+de Ceuta. O rei, lavado em lagrimas pela sorte do irmão, morreu logo no
+anno seguinte, triste e taciturno. Com a deshumanidade de um apostolo,
+D. Henrique sacrificava tudo e todos á sua fé. Por cousa nenhuma
+consentiria que se entregasse Ceuta: e os reinos do Preste-Johan? e o
+imperio do Oriente? Homens, familia, palavra, tudo era vão, diante
+d'essa miragem que, desde tantos annos, lhe punha a cabeça em delirio.
+
+Com o seu braço conquistára Ceuta: arrastára a Tanger o irmão; deixára-o
+lá perdido, nas mãos féras dos inimigos: tudo isto eram holocaustos no
+altar da sua idéa. Quem sabe se elle mesmo não choraria a sós a
+crueldade do seu destino, e a desgraça do irmão que levára ao cepo do
+sacrificio? Não é, comtudo, provavel. Pelo menos, a impressão que o
+leitor d'estas historias recebe da narração dos seus actos consecutivos,
+é a de que no caracter do infante não primava a humanidade.
+
+Voltou a encerrar-se em Sagres, com os seus livros, os seus mappas, os
+seus cosmographos e mareantes: voltou a olhar para o mar--pois que, por
+largos annos, para sempre talvez! estava perdida metade da sua empreza.
+Os seus navegadores iam vogando e _resgatando_[70] ao longo
+da costa da Africa: e as ilhas dos Açores iam successivamente saindo dos
+arcanos do Mar Tenebroso. O papa (Nicolau V) dava-lhe o senhorio e
+dominio sobre todas as descobertas na Africa (1454): e o infante, no
+meio das contrariedades, não desanimava na sua fé.
+
+Entretanto o reino passára, das mãos da rainha viuva, para as do infante
+D. Pedro (1438) e d'estas, finalmente, para as de Affonso V (1446);
+entretanto miseraveis intrigas, a que D. Henrique não quiz oppor-se para
+salvar o irmão que lh'o pedia, tinham levado á desgraça de Alfarrobeira
+(1449); e o infante, com a influencia que exercia no curto espirito do
+sobrinho, facilmente o decide a lançar-se nas aventuras africanas: já
+morrera D. Pedro, para vir repetir o que dissera nas vesperas de Tanger.
+Quando, em 1460, morreu D. Henrique, esse principe tão funesto aos seus,
+mas tão proveitoso para o reino, já Affonso V tinha conseguido tomar
+Alcacer-Seguer (1458). Dez annos depois, a conquista de Arzilla importa
+a rendição de Tanger. O dominio portuguez na costa de Marrocos chegava
+ao apogeu; mas qual era o resultado d'essas emprezas? Vinha por ahi a
+Portugal o commercio das Indias, como D. Henrique pensára? Não.
+Monopolisado pelos arabes no Oriente, logo que Ceuta foi para elles
+perdida, desviou-se para outros portos do Mediterraneo. Varrida essa
+illusão, que restava? Uma serie de praças fortes, eschola de soldados,
+fonte de permanentes conflictos, esteril em proventos, pasto para a van
+necessidade batalhadora da nação: precipicio aberto, que ia tragando,
+improficua e ingloriamente, muitas forças vivas do paiz. A opinião do
+sabio principe D. Pedro era absolutamente verdadeira: nós não tinhamos
+recursos, no reino pequeno e pobre de gente, para povoar Marrocos; e
+mudar parte de uma população escassa, de Portugal para a Africa, era
+trocar «uma boa capa, por um mau capello». Á conquista de Ceuta movera
+ainda uma illusão: mas agora, varrida ella, as campanhas de Africa eram
+uma serie de emprezas quixotescas, que viriam a terminar pela doidice
+varrida de D. Sebastião.
+
+Contra uma opinião muito acceite, nós pensamos, pois, que a decisão de
+D. João III, abandonando as praças africanas, só peccou por serodia; e
+que Portugal nada tinha a esperar do seu dominio na Barberia--desde que
+o destino o levava para o Oriente, e desde que era manifestamente
+provado não poder chegar-se lá por via de Marrocos. Incidente na nossa
+vida nacional, o dominio portuguez das praças do litoral d'Africa é
+apenas um episodio da grande historia das descobertas e conquistas
+ultramarinas; e o seu melhor merecimento foi de servir de eschola para
+os guerreiros da India, de posto de acclimação--como hoje Malta ou
+Gibraltar, para os inglezes. Para padrão das façanhas de Affonso V e das
+lançadas de Lopo Barriga, não valia a pena que custou, ainda quando não
+fosse a causa da final catastrophe de D. Sebastião.
+
+ [70] _Regime das Riquezas_, pp. 92 e 107-9.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+III
+
+O principe perfeito
+
+
+Perfeito não quer dizer sem nodoa, mas sim acabado, completo; não tem
+aqui uma significação moral, tem um valor politico. D. João II é um
+exemplar _perfeito_ do genero dos principes da Renascença, para quem
+Machiavel escreveu (um pouco depois) o cathecismo: é um mestre da
+moderna arte de reinar.
+
+O exemplo mesquinho da pessoa do antecessor e pae, Affonso V, as
+desordens do reino e a fraqueza do rei, tinham educado o espirito agudo
+e observador do moço principe.
+
+A tragedia de Alfarrobeira (1449) começára com um crime o espectaculoso
+mas triste reinado do _africano_; e o epitheto dado ao rei ajudou a
+formar a tradição de um homem cheio de valor e tenacidade, coisa que o
+pobre Affonso V jámais foi. Combater com denodo, n'um momento de furia,
+era uma qualidade commum que lhe não faltava; mas d'ahi ao valor
+consummado vae uma distancia enorme. O grande defeito da sua mocidade
+fôra a facilidade com que se deixava lisongear. Tutelado na sua
+menoridade, pela mãe primeiro, pelo tio e sogro depois, o pobre rei
+soffreu as consequencias communs a quasi todos os principes, como elle
+acclamados em creanças. Em volta do rei, pupillo de futuro imperante,
+formou-se um partido de adversarios da regencia, ambiciosos a quem não
+satisfazia o juizo do infante D. Pedro, cheios de esperanças na
+liberalidade e no caracter desegual do moço rei. Exploravam-lhe as
+fraquezas, açulando-lhe os odios nos momentos de colera, distrahindo-o
+com facecias e ditos nas horas de abatimento, gabando-lhe tudo: os
+arremeços e as cobardias, a brandura e a colera, como aduladores de
+officio. Da insensatez do rei esperavam colher uma farta ração de
+beneficios e presentes. Apesar de o infante já ter feito entrega da
+regencia, temiam-no ainda sobremaneira, e não cessavam de o malquistar
+no animo do sobrinho e genro. D. Pedro em vão instava com o irmão, D.
+Henrique, para que desmanchasse essas perfidias. Aborrecido de viver,
+desejoso de deixar o mundo, o ex-regente via que tudo se conspirava para
+o perder. «Era grande principe, de grande conselho, prudente, de viva
+memoria, bem latinado, e assaz mixtico em sciencias e doutrinas de
+letras, e dado muito ao estudo.» Era um dos poucos, a quem a sabedoria
+tornára realmente bons.
+
+Os seus brios offendidos, a perfidia dos validos, o tonto desvairamento
+do rei, levaram ao encontro de Alfarrobeira, quando o principe vinha á
+côrte justificar-se das calumnias: e vinha armado, por saber que no
+caminho o esperavam para o matar. Effectivamente o mataram, a elle, e ao
+seu fiel Achates, o nobre conde de Avranches, typo de lealdade
+cavalheiresca, sempre rara, e agora de todo ausente em côrtes
+italianisadas. Morto o seu principe, o conde prepara-se para morrer
+tambem, vingando-se: «Ó corpo! já sinto que não podes mais; tu, minha
+alma, já tardas!» E com furia, defendia-se e matava. Quando por fim o
+derrubaram, ferido, cruzou os braços, dizendo: «Fartar, rapazes! vingar,
+vilanagem!» E morreu, trespassado de lanças.
+
+Livre do importuno conselheiro, Affonso V e os fidalgos da sua roda, tão
+simples e estouvados como o rei, puderam abandonar-se á vontade ao
+capricho das suas loucuras e batalhas. Fatigando o povo com impostos,
+desbaratando com prodigalidades o patrimonio da corôa, o rei, levado
+pela sua mania, sacrifica tudo ás correrias africanas, que a
+decomposição interna do imperio marroquino já tornava possiveis.
+
+Mais de vinte annos consumiu em taes emprezas que o envelheceram. Era
+corpulento, e com os annos tornára-se gordo, a ponto de não poder já
+usar senão vestiduras soltas. Tinha a barba espessa, e era calvo; os
+cabellos ennegreciam-lhe as mãos, as orelhas, o nariz, accusando a
+vulgaridade e a violencia bravia do seu temperamento. Apesar de bem
+proporcionado, era tão commum no aspecto como no espirito. Brutal e
+vingativo, obtuso mas teimoso, e até cruel, a sua phisionomia reproduzia
+a do commum dos homens d'armas; e imprimiu o cunho a esses guerreiros de
+Africa, broncos, sem o menor requinte de perversidade fina, nem ponta de
+elevação distincta: como touros que marram ás cegas e qualquer destro
+bandarilheiro dóma.
+
+Foi isto mesmo que succedeu a Affonso V em França, onde Luiz XI se
+fartou de rir do simples, illudindo-o com promessas, fatigando-o com
+viagens, picando-o com ironias perdidas, carregando-lhe a nuca de
+lisonjas, cumprimentos e attenções, como o bandarilheiro faz ao touro,
+quando o carrega de vistosas farpas, bem aguçadas.
+
+Affonso V fôra a França pedir auxilio, porque o castelhano batera-o. Em
+1474, Henrique IV de Castella ao morrer, deixava por herdeira D. Joanna,
+a _beltraneja_ (assim os adulterios da mãe tinham denominado a filha)
+confiando o governo do reino ao visinho de Portugal, e pedindo-lhe que
+casasse com a sobrinha. Affonso V julgou que o reino de Castella era a
+nova Africa da sua velhice, e poz-se em campo para conquistar a corôa
+testada; conquistar, dizemos, porque os castelhanos invocavam contra a
+_beltraneja_ os mesmos argumentos que, um seculo antes, nós invocavamos
+contra a mulher de João I, D. Beatriz. Castella offerecia o throno a
+Isabel, como nós o tinhamos dado ao Mestre de Aviz.
+
+Affonso V poz-se em campo. Já ao seu lado se via a reservada figura do
+filho. Receioso das loucuras do velho, arrancára da sua fraqueza um
+titulo secreto, pelo qual o rei annullava todas as doações superiores a
+dez mil réis de renda que fizesse durante a guerra. O pae dava e não
+dava, o filho dobrava cuidadosamente o papel, guardando-o para o futuro...
+
+A batalha de Toro (1476) não foi propriamente uma derrota militar,
+mas foi uma derrota para o rei e para as suas ambições. O pobre
+velho, gordo, estafado, sem poder comsigo, foi correndo abrigar-se
+em Castro-Nuño, e deitou-se logo a dormir. Avendaño, o fidalgo do
+lugar, declarára-se por elle: mas a mulher, castelhana esperta,
+apontava-lhe o volume de carnes, para alli deitado a resonar
+ruidosamente, como os gordos, e dizia ao marido:--«Olha lá por quem te
+perdeste!»--Effectivamente o rei não valia para cousa alguma. Os
+castelhanos rebeldes desde logo reconheceram o seu erro, e Affonso V
+tomou a resolução de ir pedir a Luiz XI que lhe valesse.
+
+O principe herdeiro aprendia muito, porque observava tudo, com o seu
+olhar profundo e sagaz. Deixou ir o pae, e ficando a reger o reino,
+continuou, por amor da honra, mas sem calor, uma guerra que elle decerto
+via não conduzir ao fim desejado. Emquanto o pae andava por fóra,
+acclamaram-no, ou acclamou-se rei: diz-se que de França lhe viera uma
+abdicação. Porém Affonso V, desilludido afinal, decidiu-se a voltar; e o
+principe entregou-lhe immediatamente a corôa. Guardal-a, para que? Se
+elle, de facto, continuava a reinar em nome do pae, desfeiteado,
+vencido, quasi moribundo? Todas as maximas que Machiavel escreveu no seu
+livro do _Principe_, tinha-as antecipadamente D. João II na memoria:--É
+melhor ser louvado do que aborrecido, mas só quando isso não prejudica;
+o bem é preferivel ao mal, quando se póde escolher entre ambos para se
+conseguir um fim.--Por isso, como sabio principe, decidia-se a reinar
+sob o nome do pae, já inteiramente docil e subjugado por tantas
+miserias, esperando o momento proximo de outra vez tomar o nome de
+rei--méra formalidade.
+
+No decorrer de dois annos (1479-81) a paz, negociada pelo principe
+_perfeito_, fazia da _beltraneja_, encerrada n'um convento, a
+_excellente-senhora_, e do rei um cadaver, afogado n'uma agonia de
+afflicções pungentes.
+
+O filho não tinha nada dos loucos desvarios do pae, e desde logo vira o
+absurdo da guerra de Castella. Seria mais nobre e cavalleiroso proseguir
+valentemente na defeza dos direitos da corôa, da honra do velho, e da
+vida e sorte da infeliz princeza confiada á guarda de Portugal? Seria.
+Mas D. João II pensava (Machiavel) que o principe não deve preoccupar-se
+com a infamia dos seus actos, quando sejam necessarios á conservação do
+Estado; e que, depois de tudo bem pesado, praticar uma certa virtude
+póde muitas vezes trazer a ruina, quando a infamia traria comsigo a
+segurança e a fortuna.
+
+Este era effectivamente o caso em 1479. Dizia o principe que tempos
+havia para usar de coruja, tempos para voar como falcão. Não traduzia,
+porventura, com uma concisão mais eloquente, as palavras do
+italiano?--«O principe deverá imitar bem os brutos (porque ha duas
+maneiras de combater: com as leis e com a força; a primeira dos homens,
+a segunda dos brutos) e saber empregar as artes da raposa e do leão;
+pois o leão não se defende dos laços, nem a raposa dos lobos: é portanto
+mistér ser raposa para conhecer as redes, e leão para assustar os
+lobos.»--D. João II, menos classico ainda, recorria aos exemplos
+venatorios da Edade-media; tempos havia para usar de coruja, tempos para
+voar como falcão!
+
+Os filhos de D. João I, abrindo as portas da nação á cultura da
+Renascença, chamando sabios, viajando, formando bibliothecas, tinham
+lançado á terra dura do velho Portugal as sementes italianas. Affonso V
+rebentára do solo como um cardo antigo, rijo e bravo, cheio de espinhos.
+Fôra um aborto, ou um anachronismo medieval. D. João II nascia
+italianisado, com todos os vicios e virtudes da cultura da Renascença. A
+sua côrte era um retrato das pequenas côrtes de Italia; e o principe
+como um italiano, cheio de perfidias e ambições, de lucidez e de manha,
+de instinctos sanguinarios e fortes decisões politicas.
+
+Os tempos de coruja tinham acabado, porque não carecia mais de pactuar
+com as tontices do pae; rei agora (1481), seria o falcão. Mas para ser
+verdadeiramente rei, teria de vestir ainda muitas vezes o habito da ave
+nocturna, até vêr por terra o poder d'essa fidalguia que os erros do pae
+tinham ensoberbado. Isto, porém, não satisfazia ainda as suas largas
+ambições. O _homem_, como Isabel de Castella o designava com espanto,
+mirava mais longe. A possibilidade de vir a sentar-se, elle ou os seus
+herdeiros, no throno de uma Hespanha unida, affagára-lhe o espirito em
+moço, e chegou a esperar (antes de Toro) realisal-a. Depois, rechaçado,
+mas não desesperado, fez de coruja em 1479; contando voar de falcão no
+momento opportuno. Nem paravam ahi as suas ambições: lembrava-se do
+fallecido infante D. Henrique, e dos vastos planos, abandonados, que
+tinham fervido n'aquelle cerebro. A sua monarchia dilatava-se da
+Hespanha á India: e com a Peninsula na Europa, com a Africa, a India, o
+encantado reino do Preste-Joham, sonhou a monarchia de Philippe II...
+
+ * * * * *
+
+N'uma só cousa o portuguez primava ao italiano: era sobrio, severo,
+detestava o luxo--que prohibiu. A sua côrte apresentava o quer que é de
+funebre e austero, sempre agradavel a portuguezes. A sua figura, tambem,
+nada tinha de imponente, nem de graciosa. Os habitos de coruja davam-lhe
+mais caracter do que os de falcão: ás duas aves, porém, pedia a côr que
+punha em tudo, o negro. De maravilhoso engenho, subida agudeza, e
+_mixtico pera todalas cousas_, de memoria viva e esperta, faltavam-lhe
+porém os dotes exteriores. Não tinha elegancia, nem no corpo, nem no
+dizer: arrastava as palavras, falava a custo e com uma voz fanhosa. Era
+alvo, mas com umas veias de sangue que o faziam «com menencoria ser muy
+temido». Inspirava medo sem infundir amor. Aos 37 annos já tinha cans na
+barba o nos cabellos; só n'essa edade deixou de ser abstemio. A força
+muscular, dote necessario aos principes dos bons tempos, tornava-o
+celebre: cortava com um golpe de espada tres e quatro tochas de cera
+reunidas. «Muy grande astucioso e acquiridor, sem deixar de ser inteiro
+e dadivoso, era muy manhoso em todalas boas manhas que um principe deve
+ter.» A natureza não o ajudava, decerto; e tambem, na sua educação de
+principe, deixava de obedecer á regra de Machiavel: «Não é necessario
+ser-se dotado de todas as qualidades, mas é indispensavel
+affectal-as;--possuil-as e servir-se d'ellas póde chegar a ser perigoso:
+fingil-as é sempre util;--seja-se fiel, clemente, humano, religioso e
+integro; mas de modo que, senhor de si, se possa e saiba fazer todo o
+contrario, quando a isso o caso obrigue.»--D. João não era, nem
+clemente, nem humano, e não julgava necessario ao seu papel fingil-o:
+isso fazia com que muitos o detestassem, o que era um mal: fazendo com
+que, se a maior parte o temia, ninguem o amasse, o que se tornava peior
+ainda. A perspicacia e authoridade não eram n'elle bastantes para que
+soubesse envolvel-as n'uma simulada bonhomia, porque doçura ou
+humanidade não as havia na sua alma. Não hesitava perante o assassinato,
+á italiana, mas tinha a fraqueza portugueza de confessar como isso se
+praticava. Lopo Vaz, a quem Affonso V fizera conde, levantou-se em Moura
+defendendo o titulo revogado ou não confirmado, e o rei «por não fiar já
+d'elle... determinou de o mandar matar... por certos cavalleiros que
+manhosamente lá mandou e o mataram á traição, aos quaes o principe fez
+boas mercês». Mas o cardeal D. Jorge da Costa, o _alpedrinha_, vendo-se
+ameaçado, temeu e fugiu para Roma: o rei expozera-lhe um modo facil do
+acabar com elle--mandal-o tomar por quatro moços de esporas, afogal-o em
+um rio e dizer que caira e se afogára por desastre.
+
+Assim que o pae morreu, D. João II convocou côrtes (1482) e mostrou quem
+era. Mandou examinar as jurisdições dos donatarios da corôa,
+prescrevendo que os corregedores entrassem nas terras de doação no
+cumprimento dos mandados regios, abolindo o direito de asylo dos
+criminosos usurpado por muitos terrenos não coutados; e ao mesmo tempo
+que assim coarctava as regalias historicas da nobreza, punha cobro ás
+invasões anarchicas dos fidalgos no fôro dos concelhos, prohibindo o
+lançamento de _pedidos_, o intrometterem-se na jurisdição do crime e nas
+eleições e officios municipaes. O rei, inspirado pelas novas idéas
+ácerca da authoridade soberana, começava por investir com a nobreza:
+seria o successor, D. Manoel, que, reformando os foraes, atrophiaria a
+outra face do systema duplo de instituições, cujo equilibrio mais ou
+menos estavel formára a vida politica da Edade-media[71].
+Mas D. João II via-se tambem forçado a emendar os erros do pae, como o
+segundo Affonso tivera tambem de fazer á morte de Sancho I. O moço rei
+decidira formalmente revogar as doações do antecessor, reivindicar para
+a corôa o que os fidalgos tinham pilhado ao pobre, gordo, Affonso V. De
+todos esses fidalgos, o chefe era o poderoso duque de Bragança, cujos
+dominios contavam cincoenta villas, cidades e castellos, além de
+propriedades sem numero; cuja mesnada subia a 3:000 de cavallo e mais de
+10:000 infantes; um rei no reino, do qual possuia, pelo menos, a terça
+parte. Costumado a considerar o rei como egual, da linhagem de reis, e
+herdeiro do famoso condestavel, o duque sincera e ingenuamente
+acreditava na justiça da sua rebeldia. «Deservia muito grandemente o
+rei, fazendo-lhe guerra calada,» e carteava-se com o conde de Athouguia,
+seu tio, então em Castella, homem prudente, que buscava dissuadil-o,
+respondendo-lhe em enygmas ao gosto da epocha: «Tal não deveis cuidar,
+quanto mais commetter... quereis abrir uma fonte para matar vossa
+sede... achareis a agua tão quente que vos hão de lá ficar as unhas...
+_tradiderunt quos deligebam_.» Com effeito, era atraiçoado, e o rei
+tinha os seus espiões por toda a parte. Um certo Figueiredo vinha a
+escusas referir tudo a D. João II, que lhe respondia, com a sua voz
+demorada, baixa e fanhosa: «Guarda-te o melhor que puderes, e depois te
+farei mercê».--O espião ia e tornava, e quando, afinal, o duque foi
+preso por surpresa e executado, o rei deu a mão a beijar ao Figueiredo:
+«Até agora fiz que te não conhecia, d'ora avante olharei por ti. Pede o
+que quizeres: ha tempos de coruja e tempos de falcão...»
+
+O duque foi degollado publicamente no rocio de Evora (1483), depois de
+um simulacro de processo. Effectivamente, em taes causas os processos
+são apenas formulas. A força impera á solta nas demandas politicas, por
+isso mesmo que ellas põem em questão os fundamentos organicos da
+sociedade, e portanto a lei civil. O duque e o rei eram inimigos velhos;
+e aos odios antigos vinham juntar-se agora as intenções, rebeldes em um,
+tyrannicas no outro. Entretanto, o caracter desnaturado da politica dos
+reis na Renascença levava D. João II a representar um papel repugnante,
+dando ao vencido uma palma como que de martyr; ao passo que a
+sobranceria do fidalgo, quasi-rei, lhe mantinha a dignidade altiva até
+sobre o cadafalso. Recusa prestar-se a responder no tribunal, a tomar
+parte na comedia que o indigna; e quando os carrascos, afflictos, lhe
+vestem o derradeiro trajo, uma loba roçagante, capello e carapuça de dó,
+com os pollegares atados por uma fita ao cinto, elle observa
+serenamente: «Soffrerei tudo, e mais um baraço ao pescoço, se S. A.
+mandar!»
+
+A morte, tão digna, do duque de Bragança excitou ambições de vingança na
+nobreza, e positivamente começou a tramar-se o assassinato do rei, que o
+sabia. Os seus espiões andavam por toda a parte; e a politica dependia
+das intrigas de alcova e dos serviços dos miseraveis. O rei usava de
+todos os instrumentos, e o _sancta sanctis_ da razão-d'Estado absolvia-o
+de todos os crimes. Havia um Tinoco, privado do bispo d'Evora, o qual
+tinha por manceba uma irmã d'elle, e que por isso lhe queria muito. O
+rei descobriu o caso, e comprou-o. Tinoco veiu, disfarçado em frade, a
+Setubal, contar a conspiração em que o prelado estava, e de que o duque
+de Vizeu era chefe; e recebeu cinco mil cruzados em ouro e um beneficio
+de seiscentos mil réis, porque D. João II não regateava o preço dos bons
+serviços. Estava compilada e tratada «a segunda e desleal desaventura de
+que se causou a triste morte do duque de Vizeu». O rei chamou-o a
+Setubal, e matou-o por suas mãos ás punhaladas. Prescindiu de processo,
+mas não de um auto posthumo, com o fim de justificar o seu crime, e a
+perseguição dos mais conjurados. O bispo de Evora foi mettido no fundo
+de uma cisterna, em Palmella, onde com peçonha acabou a vida; os outros
+foram assassinados ou justiçados, onde quer que os encontraram os
+algozes do rei; e um, que conseguira fugir para França, nem por isso
+escapou com vida, porque o rei mandou lá um sicario matal-o.
+
+O principe _perfeito_ mostrava-se consummado na arte de reinar, e
+ninguem ousava já resistir-lhe. A primeira metade do seu programma
+estava realisada--agora o falcão ia alargar os seus vôos amplos!
+
+Ninguem lhe resistia, mas no fundo da consciencia alguma cousa o
+denunciava como assassino. Uma noute, em Santarem, acorda em sobresalto,
+ouvindo alguem chamal-o. Quem era? Ninguem. Illusões! dizia-lhe a rainha
+no leito: era _cousa má_ que andava pelos vãos dos telhados.[72]
+O rei não socegava, porém, e levantou-se, vestiu um roupão,
+tomou a espada e a rodela, na mão esquerda uma tocha, e viu que uma
+sombra o guiava. Quem era? Abria as portas diante do rei, e mostrava-lhe
+o caminho. Foram assim até aos vãos dos telhados, a sombra e o rei. Aos
+gritos da rainha acudiram todos, e acharam-no no sotão, despejado,
+alegre e seguro, diz o chronista mentindo palacianamente. A coruja
+noctivaga perseguia o ambicioso falcão: a educação do principe não
+conseguira apagar de todo a consciencia do homem.
+
+ * * * * *
+
+Fernando e Isabel, de Castella, que lhe haviam tomado o pulso, ainda em
+tempo do pae, admiravam-lhe muito as qualidades e tinham-no em grande
+conta. Elle, nem por ter tratado as pazes de 1479, desistira dos seus
+grandiosos planos. Os reis castelhanos tinham uma filha, D. João II um
+filho: o casamento de ambos seria talvez um meio, mais simples e mais
+rapido do que uma guerra, para dar ao herdeiro um grande throno.
+Tratou-se, ajustou-se e fez-se o casamento (1490); e n'esse dia de
+grandes esperanças, o rei sombrio e fanhoso quiz mostrar que tambem
+sabia ser magnifico. As bodas de Evora ficaram celebres, e
+principalmente o banquete, uma _kermesse_ formidanda. Na sala do jantar,
+onde os noivos, o rei, e toda a côrte se achavam, appareceu uma vasta
+machina: era um estrado com rodas, tendo em cima um carro com dois bois,
+á canga. Os bois estavam assados inteiros, com as pontas e as patas
+doiradas; e o carro carregado de carneiros tambem assados, tambem
+inteiros, com as armas doiradas. Vinha um fidalgo, de aguilhada ao
+hombro a dirigir o carro, e moços empurrando a machina. Deram a volta da
+sala, cumprimentando o castelhano, que gabou muito a idéa; e entre os
+applausos de todos, o carro saiu, e bois e carneiros foram dados ao
+povo, pasmado fóra. Terminado o idyllio culinario, foram-se todos á
+comida, a côrte e o povo. Nos velhos tempos do rei D. Pedro essas festas
+eram uma só: o rei comia na rua entre os seus, e bailava, ao som das
+_longas_, com as raparigas da rua.
+
+Á noute houve _mômos_, que ficaram celebres.
+
+
+ Entrou (el-rei) pelas portas da sala com nove bateis grandes, em
+ cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas de
+ panno de linho e pintadas de maneira que parecia agua. Com grande
+ estrondo de artilheria, que troava, e trombetas, atabales, e
+ menistres altas, que tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de
+ muitos apitos de mestres, contramestres e marinheiros, vestidos de
+ brocados e sedas, com trajos de allemães, em bateis cheios de tochas
+ e muitas velas doiradas accesas, com toldos de brocado e muitas e
+ ricas bandeiras.
+
+ E assim vinha uma nau á vela, cousa espantosa, com muitos homens
+ dentro e muitas bombardas, sem ninguem vêr o artificio como andava,
+ que era cousa maravilhosa.
+
+ O toldo de brocado e as velas de tafetá branco e roxo, a cordoada de
+ ouro e seda, e as ancoras doiradas. E assi a nau, como os bateis,
+ com muitas velas de cêra douradas todas accesas, e as bandeiras e
+ estandartes eram das armas d'el-rey e da princeza, todas de damasco
+ e doiradas, e vinha diante do batel d'el-rey, que era o primeiro
+ sobre as ondas, um muito grande e formoso cysne com as pennas
+ brancas e doiradas, e apoz d'elle vinha na prôa do batel o seu
+ cavalleiro em pé, armado de ricas armas, e guiado d'elle, e em nome
+ d'el-rey saíu com sua falla e em joelhos deu á princesa um breve,
+ conforme sua tenção, que era querel-a servir nas festas do seu
+ casamento; e sobre conclusão de amores desafiou para justa de armas,
+ com oito mantedores, a todos os que o contrario quizessem combater.
+
+ E por rei de armas, trombetas e officiaes para isso ordenados, se
+ publicou em alta voz o breve e desafio, com as condições das justas
+ e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia como
+ para quem melhor justasse. E acabado, os bateis botaram pranchas
+ fóra, e saiu el-rey com seus requissimos mômos, e a náu e bateis,
+ que enchiam toda a sala, se saíram com grandes gritos e estrondo de
+ artilharia, trombetas, atabales, charamellas e sacabuxas, que
+ parecia que a sala tremia e queria caír em terra.
+
+ El-Rey dançou com a princeza, e os seus mantedores com damas que
+ tomaram, e logo veio o duque com fidalgos da sua casa, com outros
+ requissimos mômos. E veio outro entremez muito grande, em que vinham
+ muitos mômos mettidos em uma fortaleza, entre uma rocha e mata de
+ muitas verdes arvores e dois grandes selvagens á porta, com os quaes
+ um homem de armas pelejou e desbaratou, e cortou umas cadeas e
+ cadeados que tinham cerradas as portas do castello, que logo foram
+ abertas, e por uma ponte levadiça sairam muitos e mui ricos mômos; e
+ em se abrindo as portas, saíram de dentro tantas perdizes vivas e
+ outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia de aves
+ que andavam voando por ella até que as tomavam. E saído este grande
+ e custoso entremez, veiu outro em que vinham vinte fidalgos, todos
+ em trajos de peregrinos, com bordões dourados nas mãos, e grandes
+ ramaes de contas douradas ao pescoço, e seus chapeus com muitas
+ imagens, todos com manteos que os cobriam até ao joelho, de brocados
+ e por cima com remendos de veludo e setim... E assi vieram muitos e
+ ricos mômos que não digo... e dançaram todos até antemanhan; e foi
+ tamanha festa que, se não fôra vista de muitos, que ao presente são
+ vivos, eu a não ousara escrever.
+
+
+O principe _perfeito_ sabia tambem ser magnifico, e qual um Medicis, no
+momento opportuno. De facto, o casamento affagava-lhe as esperanças e
+ambições, abrindo horizontes de novas grandezas.
+
+Ainda Colombo não descobrira a America, mas o futuro imperio do principe
+Affonso alargava-se já por ignotas regiões. D. João II queria dar, em
+troca de Castella, um bom dote ao herdeiro; queria-o, além de imperador
+da Hespanha inteira, e da Italia hespanhola, imperador dos Estados
+orientaes do Preste-Joham. As propostas de Colombo, apesar de recusadas,
+excitavam-no; e por terra e mar enviava expedições em busca do lendario
+principe. A empreza iniciada pelo infante D. Henrique proseguia nas mãos
+do rei, que tomára a peito descobrir os mundos remotos. O seu poder
+naval era já tão grande, que o Tejo via com pasmo o famoso galeão de mil
+tonneis, monstro boiando n'agua, erriçado de canhões. Nunca os
+estaleiros tinham produzido navio tão grande; nunca até ahi surgira a
+idéa que o rei teve de artilhar as caravelas, dando um alcance e uma
+mobilidade desconhecida aos trons do mar. No seu pensamento havia um
+proposito firme de o subjugar, desvendando-o até aos seus ultimos
+confins, dissipando inteiramente as trevas e mysterios das ondas. Mandou
+aperfeiçoar as bussolas, desenhar cartas maritimas para orientação das
+rotas; commettendo esses estudos a uma Junta em que entraram os seus
+phisicos, mestre José e mestre Rodrigo, ambos judeus, com o famoso
+allemão Behaim, discipulo de João Monte-Regio, que em Vienna estudára
+astronomia com o celebre Purbach. Foi essa junta que inventou as taboas
+da declinação do sol, permittindo aos navios alongarem-se das costas,
+rumando seguros em alto mar. Traçavam-se como que estradas sobre as
+ondas, estradas tão mysteriosas como as regiões da Mina, cuja navegação
+costeira a astucia do rei envolvia em descripções terriveis para
+afugentar rivaes--á maneira do que os phenicios tinham feito, quando os
+romanos pretendiam seguil-os nas suas viagens mediterraneas.[73]
+A posse dos segredos das costas e dos segredos das rotas
+enchia de confiança o animo do rei no futuro grandioso do seu imperio. O
+cabo da extrema Africa, limite por tanto tempo invencivel, tinha já
+recebido o nome de Boa-Esperança! (1486).
+
+Aladas esperanças eram todas essas que o rei afagava, olhando a cabeça
+do filho. N'este momento, a que podemos e devemos chamar revelador, D.
+João II teve a consciencia do famoso destino que se preparava á
+Hespanha: do seu imperio universal, da extraordinaria vastidão do seu
+poder politico, e da sua influencia moral. Symbolisava tudo isso na
+cabeça do filho amado; porque a cegueira dos homens careceu sempre das
+lunetas de um symbolo para vêr de certo modo a realidade das cousas. Os
+symbolos passam, as cousas ficam; e da mesma fórma os homens morrem e as
+idéas vivem eternamente. E, na sua fraqueza, o espirito humano amortece,
+desespera e cáe quando vê apagado ou destruido o symbolo em que para
+elle estava, mesquinhamente, a realidade inteira.
+
+O funesto acaso da queda de um cavallo, matando o principe Affonso
+(1491), foi para D. João II como o tiro do caçador, quando n'um instante
+precipita, ás voltas, o passaro que de azas pandas vogava, inebriado, no
+oceano do ar e da luz. O largo vôo do falcão estacou, e todas as
+illusões se apagaram deante do cadaver gelado do principe, casado de um
+anno. Essa vida que se finára, levava comsigo todos os sonhos doirados,
+todas as esperanças, todas as chimeras!
+
+Foi um choro universal. «El-rey por tamanha perda, tamanho nojo e
+sentimento, se trosquiou. E elle e a rainha se vestiram de muito baixo
+panno negro. E a princeza trosquiou os seus bellos cabellos e se vestiu
+de almafega e cabeça coberta de negro vaso.» Nas exequias, os homens, as
+mulheres, até as creanças, tomados de vertigem, arrancavam as barbas e
+os cabellos, davam bofetadas nas faces, batiam com as cabeças nas quinas
+da eça funeraria, e arranhavam o rosto a fazer sangue. O luto era geral
+e desvairado. Á imitação do rei e da princeza viuva, toda a gente andava
+tosquiada; o os que não podiam, por pobres, comprar o burel, que
+encarecera excessivamente, adoptaram trajos extravagantes: as mulheres
+vestiam as saias do avêsso, e os homens punham em cima de si os saccos
+de forragens e os xaireis ou cobertas das bestas de carga.
+
+Este incidente imprevisto da morte do principe é um dos que obrigam a
+meditar sobre o valor do acaso na historia. Tivesse-se consummado a
+união dynastica de Portugal ao resto da Hespanha já unificado, e a
+historia da Peninsula, a historia da Europa, seriam diversas.[74]
+Que papel teria tido no mundo um imperio exclusivamente
+senhor de todas as regiões descobertas? Que teria succedido, se Carlos V
+e a dynastia austriaca não viessem reinar em Hespanha, pondo nas mãos de
+um homem o imperio da Allemanha, da Italia e da Peninsula iberica? Acaso
+a união, realisada no periodo ascencional da Hespanha, se tivesse
+consolidado abafando o cristallisar da alma portugueza na éra classica e
+abastardando a semente que nos deu Camões. Unido então, Portugal ficaria
+como se nunca tivesse existido, por isso que não chegára ainda a
+formular o seu pensamento historico, nem a consummar a sua empreza...
+
+D. João II, humilhado, abatido, e rapado por dó, voltou a envergar o
+habito da coruja, para morrer (1495). Agonisante, mal podendo articular
+já as palavras, com uma voz arrastada e fanhosa que a proximidade da
+morte fazia satanica, dizia, encostando a cabeça felina sobre a mão
+descamada: «Persigam-me sem dó os filhos do Bragança!»
+
+ [71] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 137-49.
+
+ [72] _V. Systema dos mythos relig._, p. 291.
+
+ [73] V. _As raças humanas_, liv. IV, 3.
+
+ [74] V. _Theoria da hist. universal_, nas _Taboas de chronol._,
+ pp. XXXII-III.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+ IV
+
+ Em demanda do Preste-Joham das Indias
+
+
+No verão de 1486 tinha Bartholomeu Dias partido de Lisboa, para dobrar o
+Cabo da Boa Esperança; o que de facto conseguiu, não podendo porém ir
+mais ávante, porque lh'o não consentiram as tripulações assustadas. No
+mesmo anno mandára o rei, por terra, para o Oriente, Antonio de Lisboa e
+Pero Montaroyo, que não passaram de Jerusalem, por só ahi reconhecerem
+que, não sabendo falar o arabe, não podiam intentar a viagem.
+
+No anno seguinte, portanto, escolhem-se dois homens que sabem arabe,
+para ir por terra descobrir o Preste-Joham. A viagem por mar, ou se
+abandonava por parecer impossivel, ou aprazava-se para mais tarde:
+quando houvesse informações mais cabaes, colhidas nas expedições por
+terra. Affonso de Payva e Pero da Covilhan partiram de Lisboa, via
+Napoles, com cartas de credito sobre o principe banqueiro, Cosme de
+Medicis. D'ahi os viajantes embarcam para Rhodes, depois para
+Alexandria, d'onde seguiram pelo Cairo para Tur, (Tor) na praia do mar
+Vermelho ao sopé do Sinai, como mercadores, acompanhando as caravanas.
+De Tur foram a Aden, onde se separaram: Covilhan para a India, Payva
+para Suâkin (Suaquem) na costa da Abyssinia; aprazando o encontro, á
+volta, no Cairo.
+
+Covilhan, em Aden, embarcou para Kananor, no Malabar, e d'ahi foi a
+Kalikodu (Calecut) e a Gôa. Atravessou, depois, o oceano indico, indo
+parar a Sofala, onde colheu noticias sobre a costa oriental da Africa, e
+sobre a ilha da Lua (Madagascar). Voltou logo ao Cairo, pressuroso de
+enviar a Lisboa as importantes informações obtidas, e ahi soube da
+prematura morte de Payva. Recebidas em Lisboa as cartas do viajante, D.
+João II recambiou logo os arabes seus emissarios, com ordem de visitarem
+Hormuz e a costa da Persia. Executada essa missão, Covilhan, cujo
+primeiro dever era obter noticias do Preste-Joham, partiu para a
+Abyssinia. Já por esta epocha o encantado principe que, segundo Marco
+Paolo, habitava a Asia central, fôra transferido para a Nubia: e a lenda
+personalisava no obscuro Negus o extravagante monarcha, tão falado e
+admirado em tempos anteriores. Covilhan, de quem não houve outras
+cartas, por largos annos aprendêra no Oriente a verdade; mas não podia
+transmittil-a para Portugal. Preso, sem ser maltratado, favorecido e
+rico pelo contrario, viveu por trinta e tres annos na Ethiopia,[75]
+onde acabou.
+
+Se a sua viagem não saciava a curiosidade principal do monarcha
+portuguez, se o Preste-Joham continuava a ser um mytho, o facto é que
+mais valiosos resultados se tinham obtido. A Covilhan cabe a honra de
+ter marcado o itinerario da navegação da India, affirmando que pelo sul
+da Africa se chegaria ao Oriente. Nas cartas que enviou do Cairo, dizia
+que os navios que navegassem ao longo da costa da Guiné, chegariam,
+proseguindo, ao extremo sul do continente africano: e que, aproando ahi
+para leste, em direcção da ilha da Lua, por Sofala, se encontrariam no
+caminho da India.
+
+D'estas e das mais informações recebidas se compoz o programma da
+atrevida expedição do anno de 1497, cujo destino marcado era desde logo
+Kalikodu, ou Calecut, como cá lhe chamavam, e onde Covilhan estivera.
+Vasco da Gama foi escolhido por D. Manuel (já a esse tempo D. João II
+tinha tres annos de fallecido) para commandar a expedição. Era um homem
+ousado mas prudente, e reunia ás qualidades militares as de marinheiro,
+cousa então commum, e depois ainda. Succedeu o mesmo a Affonso
+D'Albuquerque, a D. João de Castro, e a muitos outros; e a esta
+circumstancia deve dar-se um merecido alcance. A separação das aptidões
+não vinha embaraçar os planos; e havia uma unidade no mando, porque o
+capitão era tambem o piloto.
+
+O maior juizo e prudencia dirigiam os preparos da expedição. Pesavam-se
+e debatiam-se todas as noticias do Covilhan, commentando-as com os
+conhecimentos anteriores. Examinavam-se os roteiros e cartas; e
+Bartholomeu Dias de viva voz contava tudo o que lhe succedera, os
+embaraços com que havia a luctar, as difficuldades a vencer. Com a sua
+larga experiencia dirigia a construcção dos navios, banindo os exageros
+nas dimensões, recommendando a solidez dos cavernames. O descobridor do
+Cabo devia acompanhar a expedição até S. Jorge da Mina, e ficar ahi no
+_resgate_ do ouro. Eram quatro náus pequenas, para poderem entrar em
+todos os portos, visitar todas as angras, passar os baixios, ao longo
+das costas. A sua construcção ia aprimorada e forte, como jámais se
+vira: madeiras escolhidas, sans, e de exagerada grossura, pregadura bem
+atacada, demorado e cuidadoso calafeto. As attenções não eram menores
+com o equipamento: levavam tres _esquipações_ de velas armadas e mais
+apparelhos, cordoalha tres vezes dobrada, e mantimentos, armaria e
+bombardas em abastança. Levavam seis padrões de pedra lioz com o brazão
+portuguez e a esphera armillar, que o rei adoptara por emblema,
+esculpidos. Um havia de ser collocado na bahia de S. Braz, outro na foz
+do Zambeze, outro em Moçambique, outro em Melinde, outro em Calecut,
+outro na ilha de Santa Maria. Iam dois capellães a bordo de cada navio;
+iam linguas ou interpretes negros, cafres e arabes; iam dez condemnados
+para qualquer sacrificio necessario, e finalmente iam cento e quarenta e
+oito soldados. Tinham-se escolhido os melhores pilotos, e o rei não
+consentia que se poupasse em cousa alguma. Vinha em pessoa examinar o
+estaleiro, e demorava-se a conversar com os mestres, ouvindo as
+observações de Bartholomeu, de Pedro Dias, e Vasco da Gama, que lhe
+mostrava o novo astrolabio de Behaim, tosco triangulo de madeira, mas
+muito efficaz. Pelo modelo tinham-se mandado fazer outros, mais
+pequenos, de latão.
+
+Tres dos navios levavam os nomes dos tres archanjos: _S. Gabriel_,
+capitanea, de 120 toneis, _S. Miguel_ (antigamente _Berrio_) e _S.
+Raphael_ de 100 toneis. O nome do quarto, de 200 toneis, desconhece-se.
+
+No fim de junho estavam todos concluidos, promptos e fundeados no mar,
+em frente da egreja de Restello, onde os capitães velaram a noute de 7
+de julho. No dia seguinte, depois da missa, acompanhados pelo rei e por
+todo o povo da cidade, seguiram em procissão para a praia, cantando, com
+tochas nas mãos, e embarcaram.
+
+Diz Camões que, n'este momento,
+
+ ... hum velho d'aspeito venerando,
+ Que ficava nas praias entre a gente,
+ .....................................
+ C'hum saber só d'experiencias feito,
+ Taes palavras tirou do experto peito:
+ ......................................
+ Oh maldito o primeiro que no mundo
+ Nas ondas vela poz em sêcco lenho!
+
+No peito de muitos havia, com effeito, uma condemnação formal por essa
+teima persistente dos monarchas em sacrificar dinheiro e gente á chimera
+das navegações.[76] A prudencia de experiencias feita, ronceira e fria,
+não acreditava no exito, depois de tantas tentativas falhadas. O
+resultado havia de votar contra ella; mas as palavras do poeta
+prophetisavam as consequencias funebres d'um imperio, que todos porém,
+os audazes e os prudentes, acclamaram quando Vasco da Gama voltou.
+Camões, assistindo já ao declinar do sol, pôde contar as fomes soffridas
+no mar, os temporaes e os naufragios, as peregrinações nos reinos
+adustos do terrivel Adamastor, e o collar de esqueletos brancos
+estendidos ao longo dos areaes das duas Africas--um rosario de tragedias
+funebres! Pôde tambem contar as ondas de protervia e crimes, d'esse mar
+da India, que se estirou até á Europa para afogar Portugal em vasa.
+
+ * * * * *
+
+Com sete dias de viagem, a 15 (julho), chegam ás Canarias, onde um
+nevoeiro dispersa a pequena frota, que, entre 23 e 27, se reunia outra
+vez em Cabo-Verde, para d'ahi partir em 3 de agosto. Tres mezes gastaram
+para descer até Santa Helena (nov. 7), onde refrescaram, porque tinham
+seguido ao largo, sem se internarem no golpho da Guiné. Desembarcaram
+tambem para reconhecer a altura, com o astrolabio, porque a bordo não
+lh'o consentiam os balanços dos navios; tiveram algumas escaramuças com
+os indigenas, e partiram afinal no dia 16 de novembro. A 19 estavam á
+vista do cabo Tormentoso ou da Boa-esperança, dois nomes que egualmente
+justificou d'esta vez. Tres dias alli andaram, batidos pelos temporaes.
+O vento e o mar eram tantos, que os navios mettiam as postiças debaixo
+de agua, e difficilmente se diria se andavam sobre as ondas, ou de
+envolta com ellas. No alto dos castellos, á pôpa, levavam as náus
+retabulos pintados, com a imagem dos santos do seu nome; e quando o mar
+lançava com estrepito os paineis, sobre o tendal, toda a tripulação das
+náus empallidecia de susto. Era um triste prognostico, e parecia que o
+favor divino os queria desamparar. Mares crueis e espantosos vinham pela
+pôpa arrebatando os bateis, arremeçando-os contra os costados das náus,
+avariando os lemes. Amainavam as velas, cortavam os tendaes, começavam a
+alijar carga ao mar... Por fim o tempo abonançou: «Nosso Senhor seja
+louvado, que nas maiores fortunas soccorre com a sua infinita
+misericordia!»
+
+Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na bahia de S. Braz, onde as
+calmarias os forçaram a demorar-se até 7 do mez seguinte. Navegando uma
+semana ao longo da costa austral d'Africa chegam a 15 aos ilheus-Chãos,
+derradeiro termo da viagem de Bartholomeu Dias. Começavam agora a seguir
+as instrucções do Covilhan, o piloto ausente pelas terras do
+Preste-Joham, a quem demandavam. Queriam seguir ao longo da costa, mas
+as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos para o pélago do
+sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente: Vasco da
+Gama, como um destino, inexoravel e prudente na sua audacia, venceu as
+revoltas e as correntes.
+
+Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o
+temivel cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e
+o céu de azul puro: á noute, por duas ou tres vezes, no topo dos
+mastros, brilhava a luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de
+Lisboa. Tudo eram promessas de bonança. Subiam aos mastros a vêr os
+signaes do milagre, e traziam, com devoção, os pingos de cera verde que
+o santo lá deixára. Ás vezes chegavam a brigar contra algum incredulo, e
+mais de um d'esses pagou _por ello_. Os marinheiros recordavam-se
+piamente do seu santo, que ficára em Lisboa, e de Xabregas, onde cada
+anno o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham, pondo os seus
+ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, musicas, folias e
+merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não
+rebellavam, e alegres proseguiam, confiados tambem na pericia e valor do
+capitão, que os domava com intrepidez.
+
+A 10 de janeiro tomavam terra em Inhambane, communicando com os cafres:
+a 22 tinham subido até Quilimane, onde veem visital-os a bordo
+_fidalgos_, com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez
+chegavam _á India_. Viam gentes diversas, e signaes d'essa civilização
+distante, demandada com tanto ardor. Emergiam do mar d'Africa e da
+obscura sombra do continente negro. Esses _fidalgos_, para quem olhavam,
+porém, quasi com amor, como irmãos, seriam os seus mais crueis inimigos.
+
+Ficam um mez em Quilimane, para reparar os navios e restaurar a saude,
+porque o escrobuto começára a lavrar com força nas tripulações; e,
+partidos, chegam em 2 de março a Moçambique. Os symptomas anteriores
+augmentam: veem mais, muitos _fidalgos_: estão, decididamente, ás portas
+da India! vão afinal chegar ao imperio do Preste!
+
+O que observavam augmentava-lhes o desejo, avivando-lhes a curiosidade.
+Tudo era novo para elles, mas tudo avigorava as esperanças de virem a
+encher-se com o saque dessas cousas brilhantes, marfins e sedas, ouros e
+pedras, que luziam nos toucados e vestidos dos _fidalgos_ de Moçambique.
+Em volta da esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta
+nem pregaria: as taboas cosidas a couro, e velas de esteiras de
+palma.[77] Os mouros vinham mercadejar com elles. O proprio
+sultão em pessoa quiz cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a bordo.
+Pediu-lhe pilotos que o guiassem á India, á terra do Preste-Joham;
+pediu-lhe informações ácerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe
+que o Preste era um poderoso principe, com muitas cidades n'aquella
+costa, grandes navios e muita copia de mercadores: foi, pelo menos, isso
+o que Vasco da Gama percebeu, e taes novas encheram-no de alegria.
+
+Mostrou-se depois o sultão perfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi
+seguindo, costeiramente até Mombas (8 de abril), onde um acaso a salvou
+da traição que _os mouros_ lhe preparavam. Elles tinham descortinado já
+perigosos concorrentes n'esses homens vindos por mar ás regiões que,
+desde a Arabia, o Egypto e a Nubia, eram até ahi imperio seu e
+indisputado. Salvo por um milagre, Vasco da Gama seguiu a Malinda (15),
+onde o _sultão_ o acolheu bem; mas não confiando mais n'esses _fidalgos_
+do Zamgebar, aproveitou de um mouro que se deixára ficar a bordo em
+Moçambique, e que succedeu conhecer a rota para Kalikodu. Fizeram-se ao
+mar, e em vinte e seis dias (24 de abril a 19 de maio) estavam na India.
+Durára a viagem dez mezes e onze dias.
+
+Foi então que o seu espanto chegou ao auge. Tudo o que já tinham visto
+não dava uma idéa, nem distante, do que viam agora, desembarcados. O
+esplendor e o fausto natural do Oriente enchiam-nos de admiração e
+cubiça; e na sua ignorancia religiosa viam por toda a parte os christãos
+do Preste. Os indigenas adoravam a Virgem Maria; e os nossos
+prostravam-se tambem deante de Nossa Senhora na pessoa de Gauri, a deusa
+branca, Sakti de Shiva, o destruidor. Esta confusão, augmentada ainda
+por não se entenderem no que diziam, dava logar a scenas ingenuamente
+comicas. Alguns, duvidosos, observavam que, se os idolos eram diabos, a
+sua reza era só para Deus; e com esta reserva mental ficavam quietos na
+consciencia. Para augmentar o espanto, veiu ter com elles um _mouro_ a
+falar portuguez: «Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas
+esmeraldas!»
+
+E nada d'isto era um sonho, eram «sem mentir, puras verdades.» Os
+indigenas abraçavam-nos, e os broncos alemtejanos, os beirões, os
+marinheiros do Tejo, ingenuos e ignorantes, abraçavam-nos tambem, na
+effusão de um instincto humano, como patricios. Dir-se-ia que se
+conheciam de muito, e que pouco ou nada os distinguia: de Lisboa á India
+era uma curta distancia, porque o sentimento não tem bitolas. Eram todos
+christãos, tambem tinham reis! o mundo era um só, e o homem o mesmo em
+toda a parte! A naturalidade ingenua com que se praticavam as maiores
+cousas, é a grande prova da força heroica dos homens da Renascença.
+
+Por esse tempo, na India--e com este nome designamos todas as costas e
+ilhas incluidas entre os meridianos de Suês e de Tidor, e entre 20° de
+latitude S. e 30° N., theatro das campanhas portuguezas--na India,
+dizemos, raças estranhas impunham uma especie de dominio em tudo
+similhante ao que foi depois o dos portuguezes: um monopolio
+commercial-maritimo, e como consequencia d'elle, feitorias, colonias e
+Estados. Os povos que nós iamos despojar d'esse dominio eram os arabes e
+os ethiopes, os persas, os turkomanos e os afghans, que, descendo do mar
+Vermelho e do mar da Arabia, confundidos na onda religiosa do islamismo,
+tinham avassalado a peninsula do Indo ao Ganges, e a Africa oriental
+desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o extremo Oriente iam,
+como nós fomos, até Kambodja e Tidor nas Molucas, atravez do Arakan e do
+Pegu, da peninsula de Malaka e de Birma e Shan (Sião) no continente,
+atravez de Sumatra e Borneo e pelo meio do archipelago de Sunda. A todas
+essas gentes chamaram os portuguezes _mouros_,[78] expressão generica já
+usada na Europa para designar os sectarios do Islam, e por isso tambem
+adoptada agora que, tão longe e atravez de tantos mares, iamos
+encontrar-nos de novo, frente a frente, com o _turco_, antagonista do
+_christão_ em todo o mundo.
+
+«Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?» assim um mouro de Tunis, em
+Kalikodu, cumprimentava o portuguez; e como em Moçambique e em Mombas,
+os _mouros_ (usaremos d'ora ávante d'esta expressão generica, já
+explicada) induzem ou obrigam o Samudri-rajah (Çamorim), rei ou conde--a
+India vivia n'um regime simili-feodal--de Kalikodu, a exterminar os
+portuguezes. Kalikodu era o emporio commercial da costa do Malabar, e os
+dominios do seu rajah formavam o chamado reino de Kanará.
+
+Facil seria, sem duvida, convencer o principe de que Vasco da Gama era
+um pirata, o seu rei uma burla; e sem o pensarem, decerto, os mouros de
+Kalikodu definiam antecipadamente o dominio portuguez, que só veiu a
+differençar-se d'uma pirataria commum, em ser uma rapina organisada por
+um Estado politico. Convencido ou violentado, o rajah manda perseguir os
+navegantes, que embarcam e se defendem (agosto 30.) Depois de uma
+estação, de alguns mezes na ilha de Anjediva, sobre a costa, Vasco da
+Gama decide voltar; e faz-se de vela para Portugal em 10 de julho de 98.
+Um anno depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa. Na viagem, separou-se da
+frota Nicolau Coelho em Cabo Verde, e Vasco da Gama veiu pela Terceira,
+sepultar ahi o irmão que morrera no mar.
+
+O enthusiasmo foi grande em Lisboa, á chegada de Vasco da Gama: tambem
+D. Manuel tinha as suas Indias, e Portugal o seu Colombo! E o
+Preste-Joham, que noticias? E de Covilhan? Nada. O navegador conseguira
+vencer o Cabo e achar a India, mas não conseguira decifrar o enigma, que
+a este tempo já contava tres seculos de successivas indagações.
+
+Pouco viriam essas a importar para a historia. O essencial era a
+decifração do outro enigma, ainda maior--o do Mar Tenebroso. Pouco
+faltava já; e em vinte annos mais, não haveria, na rotunda superficie do
+globo, um canto de terra incognita, nem um palmo por explorar na vasta
+amplidão dos mares. «Debaixo das bravas ondas, por saber os segredos da
+terra e os mysterios e enganos do oceano», os portuguezes, com uma
+curiosidade heroica, tomaram em suas mãos o futuro da Europa, e do
+mundo. No anno seguinte ao da descoberta da India, Pedro Alvares Cabral,
+que para lá fôra mandado com uma imponente esquadra, não resiste á
+tentação da curiosidade. Descendo no Atlantico, em direcção de leste,
+uma pergunta incessante o persegue: que haverá para o poente? Para esse
+lado descobriu Colombo umas Indias no hemispherio norte: acaso haverá
+mais Indias no hemispherio do sul? Amarou para oeste, a indagar, a
+vêr... Mais uns mezes, na longa viagem do Oriente, que importavam? Com
+effeito, descobriu o Brazil;[79] a terra de oeste vinha, desde o extremo
+norte até ao extremo sul, estendendo-se ao longo, nos dois hemispherios.
+Só então a America se pôde dizer inteiramente descoberta.
+
+A noticia das novas terras encontradas impressionou pouco Lisboa; na
+côrte ardia o desejo de descobrir o Preste, o encantado Preste-Joham; de
+fazer com elle um bom tratado, para chamar a Portugal um pouco, ao
+menos, das tantas cousas boas que Vasco da Gama vira por seus olhos, e,
+contadas, enchiam de cubiça o espirito de toda a gente. Cabral fôra
+mandado a isso, e não a descobrir terras: já eram demais as Cruzes, e os
+nomes do repertorio escasseavam já para denominar ilhas e cabos, portos
+e bahias, costas e continentes. Desejava-se outra cousa, ferviam outras
+esperanças:
+
+«Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas esmeraldas!»
+
+ * * * * *
+
+Tomarem-no por um pirata enchera de colera Vasco da Gama. Além da
+necessidade de mostrar ao Çamorim perfido o poder do rei de Portugal,
+era indispensavel desaggravar os brios do fidalgo offendido. Não podia
+ir d'esta vez, mas para outra seria a sua vingança.
+
+Logo que Vasco da Gama chegou, decidiu-se, pois, enviar uma grande
+armada á India; porque agora, sabido o caminho, não havia mais receios,
+nem motivos, para reduzir o numero, nem a lotação dos navios. Pedro
+Alvares Cabral fôra nomeado almirante da frota, que contava treze náus,
+e levava mil e duzentos homens.
+
+A construcção dos navios tinha progredido com a frequencia e extenção
+das viagens. Naus e galés, embarcações de vela e remo, tinham-se
+preparado melhor, augmentando em dimensões. No primeiro quartel do XVI
+seculo, porém, quando a avidez commercial não pervertia ainda a
+prudencia, a lotação ordinaria não excedia 400 toneladas.[80]
+A náu navegava á vela, jogando dos costados a artilheria, no
+convez ou sob a coberta. Á pôpa e prôa, nos castellos, luxuosamente
+ornados de lavores e douraduras, assentavam tambem canhões; e nos cestos
+de gavea havia pequenas colubrinas. De um a outro castello corria um
+baileu ou varanda volante, d'onde, nos combates, atiravam os
+mosqueteiros, e se passava á abordagem dos navios inimigos. Muitas náus
+andavam munidas de rostos ou esporões de aço nas prôas, para a
+investida. As galés, navios de remo, dividiam-se em _bastardas_ e
+_subtis_: as primeiras de 27 bancos a tres remeiros e 7 peças grossas;
+as segundas de 25 bancos e 5 peças apenas. A artilheria grossa jogava
+sómente á prôa, nos costados: entre os remeiros, collocavam-se, porém,
+umas peças menores, a que se chamava _berços_. Havia, além d'isto, as
+_fustas_, galés pequenas de 16 ou 20 bancos de dois remos, com duas
+peças grossas. As galés, comtudo, tambem velejavam: e para isso tinham
+dois mastros, onde levavam latinos; as fustas um só. Havia, porém, galés
+que, por se approximarem mais da armação das náus, se diziam
+_bastardas_: armavam dois mastros, mas no do traquete tinham duas velas
+redondas, e cestos de gavea, como as náus.
+
+A esquadra de Pedro Alvares Cabral levantou ferro do Tejo no dia 9 de
+março do anno de 1500. Os gritos da marinhagem, para alar a um tempo os
+viradores nos cabrestantes, melopêa triste e funebre como o mar; o surdo
+roçar das amarras nos escovens; o apito dos mestres, dirigindo as
+manobras; as bandeiras multicolores soltas ao vento; e as velas meio
+desdobradas nos mastros, formavam o vivo quadro da nação que tambem
+partia, no anno de 500, já confessada e bem disposta, para essa longa
+viagem de pouco mais de um seculo, cheia de escrobutos e naufragios, ao
+cabo da qual a esperava um tumulo, vasto como é o mar, mudo como elle é
+nas calmas funebres dos tropicos.
+
+Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não
+partiam á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e
+queriam trazer para Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o
+capitão levava cartas solemnes do rei para o Çamorim. Em troca d'ellas,
+da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam, viriam os rubis e as
+esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo turco, inimigo de
+Deus!
+
+Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa
+religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta--os dois deuses que
+viviam no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados,
+mas servidos ambos de um modo egualmente barbaro.
+
+O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de
+Colombo, que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na
+existencia do lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se
+tinham feito. Não o mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle
+queria tambem inscrever o seu nome na lista dos que, durante o seculo
+anterior, tinham pouco a pouco rasgado as trevas do mar mysterioso. A
+sua viagem, além de iniciar o dominio portuguez na India, teve, com
+effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu as duas lendas, a do
+Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu dizer a D.
+Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei preto,
+infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia.
+
+Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os
+continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão,
+consummára a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma
+miragem, e os homens sombras levadas pelos sabios ventos do destino...
+
+Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente,
+faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e
+dar-lhe a volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas mãos do
+homem: eis ahi o valor da viagem de Magalhães, vinte annos mais tarde.
+
+Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova
+empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo.
+
+Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral[81].
+
+ [75] V. _Regime das riquezas_, p. 109.
+
+ [76] V. _Hist. da repub. romana_, p. I, XIX, _intr._
+
+ [77] V. _Regime das riquezas_, pp. 85-6.
+
+ [78] V. nas _Raças humanas_, a ethnographia do Oriente a
+ pp. 70-85, 90-105 e 122-41 do vol. I.
+
+ [79] V. no _Brazil e as colon. port._ p. 3 (2.ª ed.) a descoberta
+ das costas brazileiras.
+
+ [80] V. no _Brazil e as colonias port._ (2.ª ed.) a composição
+ typo de uma nau da India, a p. 34 _nota_.
+
+ [81] _Hist. da republ. romana_, I, pp. 217-8.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+LIVRO QUARTO
+
+A VIAGEM DA INDIA
+
+
+ Dês o primeiro dia que com a vista a experiencia propria me acabei
+ de desenganar do grande erro que até alli me trazia a fama das
+ cousas da India... me nasceu logo um desejo ardentissimo de fazer
+ por esta via um grande e extraordinario serviço.
+
+ RODRIGUES DA SILVEIRA, _Reformação da milicia e governo do Estado da
+ India oriental._
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+I
+
+D. Francisco d'Almeida
+
+
+Em 13 de Setembro do anno de 500 chegou Cabral a Kalikodu. Não ia, como
+Vasco da Gama fôra--como descobridor; ia como embaixador, á frente de
+uma poderosa armada, para não ser tomado por pirata, mas sim pelo
+emissario, que era, do nobre monarcha portuguez, portador das suas
+cartas e propostas de alliança para o rajah de Kalikodu. Como tal foi
+effectivamente recebido, n'uma audiencia solemne. Os portuguezes,
+vestindo as suas melhores roupas, as suas armas mais bellas e polidas,
+pensavam impôr de ricos ao monarcha do Oriente; mas os representantes da
+pobre e forte Europa iam ficar deslumbrados com as magnificencias da
+India opulenta. O brilho das armaduras era offuscado pelo rutilar da
+pedraria «cujas chammas impediam a vista». O rajah vinha em um palanquim
+ou andor trazido aos hombros pelos nobres, recostado sobre almofadas de
+seda, entre colchas lavradas de fio de ouro caíndo em pregas franjadas
+com borlas cravejadas de pedras preciosas, e pannos de carbaso de linho
+finissimo, cuja alvura sorria ao lado da vermelhidão sanguinea das sedas
+e brocados. Corria a compasso o andor coberto por um pallio de seda
+franjado de ouro, e dentro d'este duplo sacrario via-se o rajah negro
+rutilante de pedras preciosas. Cegava olhal-o. Aos lados do pallio iam
+pagens com leques de pennas de pavão agitando o ar, e á beira do
+palanquim os que levavam as insignias da soberania: a espada e a adaga,
+e estoque de ouro, a flor de liz symbolica, o gomil de agua, e
+finalmente a copa onde o rei cuspia o betele, cujo mascar faz os dentes
+côr de rosa e dá «muito bom bafo».
+
+Em toda a volta e prolongando-se na cauda da procissão, charangas de
+musicos atroavam o ar com os seus tambores, com os tam-tams de prata e
+de ouro, suspensos por cordeis em bambus altos, com as trombetas
+enormes, umas rectas, outras curvas, levantadas para o ar, e que davam
+aos musicos o aspecto de elephantes com trombas douradas, cujos
+pavilhões se viam cravejados de rubis e esmeraldas. Vinha uma grande
+trompa de ouro levada por dois homens a cavallo! Os musicos, negros, iam
+nús, com manilhas nos braços e nas pernas, e á cinta um panno cobrindo
+as vergonhas. Nús iam os nayres e mais tropas do rajah, esgrimindo aos
+saltos em pyrrhicas singulares, parecendo atacados de furia, com as suas
+armas variadas: alfanges curvos para os golpes de cutilada, espadas
+largas e ponteagudas para as estocadas, espadas triangulares com o
+vertice nos copos e na ponta a base espalmada, arcos e molhos de frechas
+de bambu delgados, lanças com anneis tilintantes e guizos, correndo,
+saltando e gritando em brados: «Cucuya!» como na hora das batalhas. Mais
+ao largo, o povo mudo, n'uma impassibilidade de orientaes, olhava.
+
+A recepção do embaixador fez-se no _çarame_ do rajah, á beira-mar,
+pavilhão de fórma oitavada erguido sobre esteios, todo rendado de
+varandas e lavores, marchetado de marfim, chapeado de prata e ouro em
+folhas, com pinaculos e corucheos que se desenhavam levemente no fundo
+azul do ceu--tão azul como o do mar onde fundeava a esquadra de Pedro
+Alvares Cabral. Na longa praia apinhavam-se as choças dos pescadores e
+galeotes e por entre ellas a multidão negra, espantada. Para o interior
+avistava-se a cidade, com os palacios e jardins do rei, dos nobres e dos
+ricos, docemente abrigados contra o sol inclemente pela sombra dos
+palmares e dos bosques de arvores aromaticas. No meio de um turbilhão de
+gritos de guerra, de sons de trombetas, o cortejo encaminhou-se para o
+palacio do rajah.
+
+Ahi o Çamorim estava sentado sobre o véllo preto, insignia da realeza,
+no seu throno de prata com braços de ouro e as espaldas cravejadas de
+rubis, diamantes e esmeraldas, no meio da sua côrte, recostado em macias
+almofadas de seda, sobre fôfos tapetes da Persia, somnolento e immovel.
+Negro, nú, um véo de linho branco descia-lhe em pregas desde o umbigo
+até aos joelhos, com a ponta caída e n'ella enfiados anneis de ouro e
+rubis. Da extremidade pendia uma perola enorme. Os dedos, braços,
+estavam cobertos de anneis e manilhas. Das orelhas caíam arrecadas de
+ouro cravejadas: á cintura trazia um cinto de ouro. Ao pescoço collares
+roliços, de ouro tambem; e duas voltas de um fio de perolas, grandes
+como avellans, que desciam até ao umbigo, suspendiam um enorme coração
+de ouro encastoando a mais bella, a maior esmeralda. Nos cabellos
+compridos e apanhados em nó no alto da cabeça havia perolas e pingentes,
+e a corôa era um deslumbramento. O thesouro inteiro de Kalikodu saíra á
+luz. Ao lado do rajah, em pé, viam-se os pagens nús com pannos de
+purpura, apresentando as espadas e adagas de copos de ouro cravejados, e
+junto ao soberano o da copa de ouro com a toalha a tiracollo, e o da
+boceta cravejada de brilhantes, com o sal delido em agua de rosas, onde
+molhava as folhas de betele, antes de as dar ao brahmane-mór, que detraz
+das espaldas do throno as passava religiosamente ao rajah, para mascar.
+Outros pagens tinham as toalhas, perfumadas de almiscar, com que nas
+occasiões devidas esfregavam os braços e as pernas núas do soberano
+reluzentes de manilhas cravejadas de rubis. Em torno havia castellos de
+alfaias: vasos e urnas de bronze, de prata, de ouro, e os lampadarios de
+metal amarello sempre accesos, segundo os ritos ordenavam. Os escrivães,
+de pé, tinham debaixo do braço as longas folhas de palmeira, seccas,
+onde se registravam as leis e tratados, em sulcos abertos pelos
+estyletes de ferro, que balouçavam entre os dedos. Em frente de Pedro
+Alvares Cabral, que, sentado, lia a carta de D. Manoel em arabigo,
+estava a credencia com os presentes que trazia: uma taça e duas massas
+de prata, quatro almofadas de brocado e dois pannos de Arraz, de um
+desenho primoroso. A côrte, de pé, escutava em torno. Mais longe
+agrupavam-se as mulheres do rajah, untadas de sandalo, e núas da cintura
+para cima, com as cabeças coroadas de flôres, e collares de contas de
+ouro, e pedraria, manilhas grossas nas pernas, braceletes, e anneis
+fulgurantes. O rajah tinha mais de mil, entre amantes e varredeiras,
+escravas e embostadoras. Para além das columnatas de alabastro, nos
+pateos inundados de sol, viam-se os elephantes submissos, com os seus
+collares de campainhas e guizos, cobertos por xaireis de seda recamada
+de ouro; viam-se os pallios e leques do cortejo do soberano; os truões e
+os fakires, rebolando-se no chão, desgrenhados, a uivar gritos. Depois
+formavam alas, ou esgrimiam com tregeitos e cutiladas, os nayres,
+bucellarios do rajah, casta singular e polyandra de quem disse o poeta:
+«geraes são as mulheres porém sómente para os da geração de seus
+maridos.»[82] Mas o que sobretudo enchia de espanto e cubiça os
+portuguezes, envergonhados da sua pobreza, eram os rios luminosos da
+pedraria que, destacando-se do fundo acobreado das pelles indigenas, os
+cegavam: «As chammas que d'elles saíam impediam a vista!» Sobre o ouro
+de Sofala, eram os rubis do Pegú, os diamantes do Dekkan e de Narsinga,
+as saphiras de Simhala (Ceylão) e os seus topazios e turquezas,
+jacinthos e amethistas. Eram as bellas esmeraldas de Babylonia!
+
+De parte a parte, comtudo, passada a recepção solemne, não se entendiam
+bem; e os escrivães em balde mostravam as longas folhas de palmeira
+escriptas, agitando os estyletes de ferro, a indicar as passagens das
+leis que julgavam oppôr-se ao que pensavam serem os pedidos dos
+portuguezes. Estes, em tregeitos, esforçavam-se por lhes fazer perceber
+que queriam pôr alli feitorias, para trazerem por mar, para a Europa, as
+preciosidades da India; e não cessavam de affirmar quante el-rey de
+Portugal era poderoso e forte. Apesar de não ter tantos ouros nem
+pedrarias tinha o bronze das suas peças e o ferro das suas granadas!
+accrescentavam com decidida importancia. Os escrivães iam
+comprehendendo, desconfiados: e os portuguezes desconfiavam tambem dos
+sorrisos do rajah. Apesar d'isto, porém, foi concedido o que pediam; e
+Cabral fundou a primeira feitoria portugueza na India, em Kalikodu.
+
+Logo os mouros vieram reclamar contra os intrusos que os despojavam: e
+favorecidos pelo indigena, caíram sobre a feitoria, trucidando os
+portuguezes que lá havia: cincoenta ao todo. Começava a historia da
+India. Seguiram-se logo as terriveis represalias do almirante. Tomou dez
+náus de mercadores arabes, passou á espada mais de 500 homens
+tripulantes, e, bombardeando a cidade, poz-lhe fogo. O incendio de
+Kalikodu, em 16 de dezembro do anno 1500, era a funebre aurora da
+historia oriental. Se as pedrarias tinham cegado os olhos dos
+portuguezes, agora as chammas cegavam os olhos afflictos do rajah,
+n'essa noute de cruel memoria.
+
+Incendiada Kalikodu, o almirante foi com a esquadra entrar em Katchi
+(Cochim) um pouco ao sul, na mesma costa de Malabar, mas já para além
+dos dominios do rajah perfido de Kalikodu. O terror da recente façanha
+abriu-lhe os braços do pequeno soberano de Katchi; e fundou-se ahi, em
+boa paz e amizade, uma feitoria, tomando o almirante, entretanto,
+refens, para segurança. Triumphára; o brahmane rajah de Katchi,
+revoltára-se abertamente contra o Çamorim seu suzerano. No meiado de
+janeiro (1501) partiu Cabral para Kananor: ahi carregou as suas náus de
+pimenta e canella, e regressou ao reino. Dos treze navios com que
+partira um anno antes, apenas tres o acompanhavam: cinco, desgarrados,
+voltaram por diversas vias, e outros cinco foram tragados pelo Mar
+Tenebroso. Esse inimigo terrivel, embora vencido, não estava domado, e a
+primeira expedição da India, este primeiro acto da tragedia de mais de
+um seculo, esboçava já todos os elementos da acção: assassinatos e
+incendios, morticinios e naufragios; a espada e a pimenta; as armas do
+guerreiro em uma das mãos, as balanças do mercador na outra; uma
+Carthago moderna--e, no fundo, a voragem aberta do mar, prompto a
+devorar homens, navios e riquezas; a fonte perenne do vicio, entornando
+caudaes de torpezas!
+
+ * * * * *
+
+Da curta historia anterior da India resultavam dois factos: a inimisade
+perfida do rajah de Kalikodu, e a feitoria de Katchi. Castigar
+terrivelmente o primeiro e consolidar, fortificando-a, a ultima, foi o
+principal motivo da segunda armada, que em 1502 (fevereiro) partiu de
+Lisboa para o Oriente, sob o commando de Vasco da Gama, o capitão
+desapiedado, o fidalgo offendido nos brios pelo miseravel _Çamorim_.
+
+A historia da viagem é um horror; e a desforra do capitão uma prova
+d'essa frieza sanguinaria, impassivel e cruel, que effectivamente existe
+no temperamento, quasi africano, do portuguez. Obliterada na sujeição ou
+na paz, rebentou sempre com o dominio e com a victoria, na guerra. Se
+taes sentimentos, vivos na alma do Gama, inspiram os seus actos, a sua
+campanha não obedece a um plano, nem no seu rude espirito cabem as
+largas vistas do estadista. Se algumas levava, reduziam-se a espantar a
+India com a crueldade das suas façanhas, e a dominal-a com o terror dos
+seus morticinios. Grande sobre as ondas, em lucta com os temporaes, é a
+imagem da nação, cuja grandeza está na coragem e na teima com que soube
+vencer o Mar Tenebroso. Um terramoto agitou o mar da India quando o Gama
+pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do
+povo portuguez, acreditou e disse que até as proprias ondas tremiam com
+medo nosso--com medo d'elle!
+
+Navegando porém no mar das Indias, com toda a artilheria carregada de
+metralha, para arrasar Kalikodu, encontra o Gama uma náu de mercadores
+arabes que ia para Meka ou voltava, nas romarias constantes á santa
+Kaaba. Além da tripulação, o navio trazia duzentos e quarenta homens
+passageiros, com suas mulheres e filhos. Era isto no dia 1 de outubro de
+1502, «de que me lembrarei toda a minha vida!» escreve o piloto ainda
+horrorisado, ao recordar como a náu foi cobardemente incendiada, com
+todos os que continha, e que morreram desesperados no fogo ou no mar. Ia
+a bordo um flamengo, que assim refere a occorrencia: «Tomámos uma náu de
+Meka, onde iam a bordo 300 passageiros, entre elles mulheres e creanças;
+e depois do sacarmos mais de 12:000 ducados de dinheiro e pelo menos
+10:000 de fazenda, fizemol-a saltar com os passageiros que continha, por
+meio de polvora, no 1.º de outubro.» Satisfeito de si, o capitão rumou
+para Kalikodu. Mandou intimar ao rajah a expulsão de todos os mouros,
+que eram cinco mil familias, das mais ricas da cidade: dizendo-lhe que
+qualquer creado d'el-rey D. Manuel valia mais do que elle, _Çamorim_; e
+que seu amo tinha poder para fazer de cada palmeira um rei!--Como era de
+vêr, o rajah recusou; e o capitão que, ao fundear, apresára um numero
+consideravel de mercadores no porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as
+mãos, e amontoados n'um barco, foram com a maré varar na praia, levando
+a resposta do Gama á recusa do afflicto principe.[83] Começou logo o
+bombardeio (2 de novembro). A cidade ardia outra vez; e á população em
+choros, respondiam as risadas ferozmente cynicas dos marinheiros,
+abrigados detraz das amuradas dos navios, junto ás peças que vomitavam
+fogo. Era uma inepcia, uma barbaridade e uma covardia; porque as curtas
+lanças e as settas dos indigenas não podiam medir-se com as granadas,
+despedidas de longe, de bordo das náus. O Gama, cada vez mais satisfeito
+de si, foi-se a visitar o porto amigo de Katchi; e decidiu regressar ao
+reino por Quilua, d'onde trouxe o ouro com que o rei D. Manuel fez uma
+custodia para o seu templo dos Jeronymos. Vinha contente da brava
+desforra que tomára: o _Çamorim_ estava punido!
+
+Deixára o Gama na India uma parte da sua armada sob o commando de
+Vicente Sodré, personagem tão eminentemente celebre como o proprio
+almirante, cujo tio era. Fidalgo, este amava as façanhas brutaes e
+estrondosas; o outro queria mais á pirataria e ao roubo. Com effeito,
+assim que o Gama partiu da costa do Malabar, o de Kalikodu, invocando
+porventura direitos de suzerano sobre o visinho de Katchi, exigiu d'elle
+a expulsão dos portuguezes da feitoria. Mas os ataques repetidos ao
+poderoso rajah do Canará ensoberbeciam os seus vassallos, e fomentavam a
+decomposição do systema politico de Hindustan. O de Katchi resistiu,
+implorando o auxilio do Sodré, que pouco se lhe dava da feitoria, e a
+abandonou para ir ao corso das náus de Meka: era trabalho de mais
+proveito e menor risco piratear de parceria com a corôa portugueza nas
+costas de Adal e da Arabia, á embocadura do mar Vermelho.[84]
+O producto das náus de Meka pertencia, metade ao rei de
+Portugal, metade ás tripulações: cabendo aos soldados uma parte, aos
+marinheiros duas, outras duas aos bombardeiros, quatro aos pilotos e
+outro tanto ao mestre. Pilhavam todos, de braço dado com a Corôa.
+
+Vicente Sodré andava n'isto, ao mesmo tempo que Ruy Lourenço, por sua
+conta e risco, varria a costa de Zamgebar, caçava navios e cobrava
+tributos aos sultões.
+
+O dominio portuguez adquiria logo de começo o caracter duplo que jámais
+perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularisação e de
+ordem. Era no mar uma anarchia de roubos, na terra uma serie de
+depredações sanguinarias. Vasco da Gama ensinára o modo de imperar com o
+fogo e o sangue; Sodré indicava o modo de ceifar no mar, pela abordagem,
+as náus de Meka. A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do
+dominio portuguez, cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.
+
+Na artilheria, effectivamente, estava o segredo do poder dos invasores
+da India. Ao tempo em que o Gama voltava da sua segunda viagem, partia
+de Lisboa uma terceira esquadra (1503, abril) com Affonso de Albuquerque
+e Duarte Pacheco a bordo. Foram a Katchi acudir ao rajah, na sua guerra
+com o de Kalikodu, e construiram a primeira fortaleza na India.
+Albuquerque voltou ao reino; Pacheco ficou em Katchi com as tropas e
+navios preparados para o ataque. O heroe--porque este bateu-se como uma
+féra, no seu covil de Kambalaan, nobre, desinteressada e
+bravamente--desde logo disse que _toda a festa havia de ser de
+artilheria_. De que serviam com effeito as armas brancas e de arremeço,
+principal equipamento dos indigenas, que mal sabiam usar dos mosquetes e
+bombardas, perante o vomitar distante da metralha? Isto explica a
+possibilidade da resistencia dos setenta homens de Pacheco, brandamente
+auxiliados pelos naturaes, contra os cincoenta mil que se dão ao
+exercito do Samudri-rajah de Kalikodu. As surriadas da mosquetaria
+auxiliavam decerto, mas a defeza decisiva consistia nas ondas de
+metralha, que n'um instante varriam as jangadas cobertas de gente que
+vinham por mar, e as columnas cerradas dos nayres armados de settas e
+lanças investindo por terra. Mas nem por si só a artilheria seria capaz
+de resistir á onda massiça das columnas inimigas, se a coragem, a
+rapidez fulminante das marchas, a ubiquidade--póde dizer-se assim--do
+primeiro heroe soldado do Oriente não animasse os poderosos meios de
+defeza. Quatro mezes durou o assedio de Katchi, que terminou pela
+derrota do Samudri-rajah.
+
+A esquadra de Lopo Soares de Albergaria trouxe para o reino (1505)
+Duarte Pacheco: um homem simples que, por voltar carregado de feridas,
+mas leve de dinheiro e diamantes, foi parar á capitania de S. Jorge da
+Mina, para de lá vir em ferros por _capitulos_ que d'elle deram; para
+jazer no carcere por muito tempo, e acabar esquecido e pobre. A sorte
+d'este heroe, diz Goes, «foi de calidade que se pode d'elle tirar
+exemplo para os homens se guardarem dos revezes dos reis e principes e
+da pouca lembrança que muitas vezes tem d'aquelles a que são em
+obrigação.» Pacheco voltou, pois, do Oriente, e na India ficou, por
+capitão do mar, Telles Barreto com a missão de _correr as náus de Meca_.
+A armada trazia para o reino, a bordo, Pacheco--um infeliz!--e uma carga
+abundante de especiarias e cousas ricas. A côrte, o rei, em Lisboa,
+quizeram muito mais ás segundas, do que ao primeiro.
+
+Entretanto a este devia D. Manuel a consolidação do seu imperio
+oriental, incipiente ainda. Pacheco demonstrára aos naturaes e aos
+arabes que os portuguezes não eram apenas piratas; e podiam fazer mais
+do que bombardear impunemente uma cidade desarmada, ou tomar náus de
+indefesos mercadores e romeiros. A façanha de Katchi fôra o baptismo de
+sangue do novo imperio; e o baluarte, de pé, atestava a força dos novos
+dominadores.
+
+Mas já do principio, tambem, surgia a ultima das pragas da India: a
+inveja, a sizania, os odios, a maledicencia, com que, uns aos outros, os
+homens do ultramar se abocanhavam na côrte; e a inepcia do governo do
+rei, incapaz de pesar o valor das palavras, de medir o alcance das
+accusações, e de ser justo e sabio. A lisonja reinava, e sobre ella o
+favoritismo.
+
+Cinco annos tinham decorrido depois da viagem de Cabral; havia já uma
+fortaleza em Katchi; estava batido o de Kalikodu; os navios portuguezes
+pirateavam em liberdade no mar da India; e numerosas náus de Meka iam
+sendo apresadas. Esboçava-se o futuro imperio, anarchicamente, mas já
+por fórma tão decisiva, que era mistér organisal-o, dar-lhe uma lei e
+uma direcção.
+
+ * * * * *
+
+D. Francisco de Almeida foi o homem escolhido para governador da India,
+constituida em vice-reino. Das tres successivas phisionomias que o
+imperio portuguez no Oriente apresenta, é elle quem lhe imprime a
+primeira; dos tres vice-reis mais notaveis, é elle o primeiro tambem.
+Sem o heroismo antigo de Albuquerque, um Annibal;[85] sem a
+sympathica pureza ingenua de um Castro, imitador fiel dos typos de
+Plutarcho; Francisco de Almeida, valente como soldado, habil como
+almirante, é sobretudo um estadista.
+
+Pondo de parte o merecimento absoluto d'essa politica commercial,
+fecundo systema de explorar uma região inteira, fielmente executado mais
+tarde e com tamanho exito pelos hollandezes, o facto é que, para
+conseguir o fim desejado de roubar aos arabes o imperio, e a venezianos
+e arabes o commercio do Oriente, a politica de Francisco de Almeida, sem
+grandeza, é lucida, perspicaz e forte. O governo da India formou tres
+grandes homens: Castro, que se póde dizer um santo; Albuquerque, a quem
+melhor cabe o nome de heroe: Almeida, que é um sabio administrador, um
+feitor intelligente.
+
+No seu caminho para a India, o primeiro viso-rei foi ajustar as contas
+antigas com o sultão de Mombas, e arrazou-lhe a cidade (1505, agosto
+14.) Levava tambem ordens para construir fortalezas em Quilua, Kananor,
+Anjediva, além da de Katchi, que seria augmentada e reparada, depois dos
+damnos soffridos no anno anterior. Não iam então as ambições do governo,
+no reino, mais além d'esse pedaço da costa oriental da Africa, com as
+estações fronteiras na costa do Malabar. Entretanto no pensamento do
+viso-rei, maduro pela observação local e pela prova de uma primeira
+guerra maritima com que o impenitente rajah de Kalikodu o recebera,
+formulava-se já todo o seu plano de dominio. Não duvidou expol-o a D.
+Manuel na carta que lhe escreveu, e que é um dos documentos mais
+importantes da historia portugueza no Oriente.
+
+Toda a nossa força seja no mar, dizia; desistamos de nos apropriar da
+terra. As tradições antigas de conquista, o imperio sobre reinos tão
+distantes, não convém.[86] Destruamos estas gentes novas
+(os arabes, afghans, ethiopes, turkomanos) e assentemos as velhas e
+naturaes d'esta terra e costa: depois iremos mais longe. Com as nossas
+esquadras teremos seguro o mar e protegidos os indigenas, em cujo nome
+reinaremos de facto sobre a India; e se o que queremos são os productos
+d'ella, o nosso imperio maritimo assegurará o monopolio portuguez,
+contra o turco e o veneziano. Imponhamos pesados tributos, exageremos o
+preço das licenças (_cartazes_) para as náus dos mouros navegarem nos
+mares da India e isso as expulsará: as nossas armadas darão corso aos
+contrabandos. Não é mal decerto que tenhamos algumas fortalezas ao longo
+das costas, mas sómente para proteger as feitorias de um golpe de mão;
+porque a verdadeira segurança d'ellas estará na amisade dos rajahs
+indigenas, por nós collocados nos seus thronos, por nossas armadas
+apoiados e defendidos. Substituamo-nos, pura e simplesmente, ao turco; e
+abandonemos a idéa de conquistas, para não padecermos das molestias de
+Alexandre. O que até agora se tem feito é uma anarchia e um esboço
+apenas; um systema de matanças, de piratarias e desordens, a que é
+mistér pôr cobro.--A primeira condição de um imperio seguro é um
+pensamento definido, e tal era o do viso-rei.
+
+As difficuldades appareciam-lhe tanto mais fortes, quanto «as guerras
+passadas eram com bestas, agora as temos com venezianos e turcos do
+Soldão». Com effeito, a antiga impunidade, de que os nossos gosavam á
+sombra da artilheria, desapparecia, desde que o veneziano e o do Egypto,
+vendo em perigo o seu poder no Oriente, tinham lançado ao mar Vermelho
+uma esquadra poderosa, e tão bem artilhada como as nossas. A guerra
+tomava um caracter novo; e os portuguezes já não se encontravam apenas a
+braços com as armas brancas do indigena. Apparecera a polvora do lado
+dos inimigos; e a esta grave e nova phase das cousas veiu juntar-se, no
+animo do viso-rei, o resultado cruel da temeridade do filho, que em
+Tchala (Chaul) morrera batido pela esquadra egypcia: a armada de
+_Mirocem, capitão-mór do Soldão do Gram Cairo e de Babylonia_--como se
+dizia no tempo.
+
+Confirmando a doutrina com o exemplo, esporeado pelo desejo de vingar a
+morte do filho,[87] e pela necessidade de destruir essa
+armada que ameaçava matar á nascença o dominio portuguez na India.
+
+ ... vem o pae com animo estupendo,
+ Trazendo furia e magoa por antolhos.
+
+Descendo pelo Mar Vermelho, a esquadra egypcia viera deitar ferro em
+Diu, na costa do Gujerât (Guzarate), impondo ao indio a obrigação de ser
+defendido. Entre _mouros_ e portuguezes, que uns a outros disputavam a
+presa do commercio do Oriente, os rajahs, perseguidos pela protecção de
+ambos, não sabiam as mais das vezes por quem se decidir, incertos do
+lado para onde a victoria final penderia. Os vencedores foram sempre os
+fieis alliados de todos os fracos. Tal era a situação do indio de Diu.
+Não teve remedio senão acompanhar os rumes, e aprisionar os portuguezes
+da esquadra batida de Lourenço d'Almeida, guardando-os como penhor, e
+base de argumentos e desculpas para com o viso-rei--caso este vencesse
+com a nova armada em que vinha.
+
+Effectivamente D. Francisco d'Almeida subia ao longo da costa, deixando
+apoz si o rasto de cinzas e sangue, que por toda a parte annunciava a
+passagem dos portuguezes. As faulhas do incendio de Deval (Dabul) e os
+lamentos da população dispersa chegavam até á ria onde fundeavam as
+esquadras do egypcio e do de Diu, já engrossadas com as trezentas fustas
+que o de Kalikodu enviára tambem, para vêr se conseguia exterminar por
+uma vez os incommodos visitantes.
+
+O egypcio, apesar de victorioso, temia o viso-rei; e fundeada a
+esquadra, dispozera que picassem as amarras os navios assim que fossem
+abalroados, dando á costa, e arrastando comsigo os portuguezes, sobre os
+quaes as lanchas e fustas dos indios cairiam então desapiedadamente. Mas
+o viso-rei, percebendo o ardil, mandou preparar as ancoras á pôpa, e os
+navios inimigos foram sosinhos varar na praia. Era 3 de fevereiro (1509)
+festa de S. Braz, pelo meio dia. A viração do mar soprava fresca pela
+pôpa dos navios portuguezes, quando a _capitaina_ desfraldou o guião
+azul á prôa e, toda empavezada, no meio dos gritos de «Senhor Deus;
+misericordia! Santiago!» ao som das charangas de trombetas, soltou a
+primeira banda de artilheria. Um clamor immenso de vozes, de trompas, de
+tiros lhe respondeu, e a batalha generalisou-se com artilheria e arma
+branca, á abordagem. A confusão de gentes que alli combatiam era
+inextricavel; e os pavilhões da Cruz e do Crescente, erguidos nos
+mastros dos navios, abrigavam os sentimentos mais extravagantes, as
+crenças mais disparatadas. É que não se combatia, nem pela fé, nem pela
+patria: disputava-se com furor o saque da India; e a cubiça torna irmãos
+os homens de todas as fés, os filhos de todas as raças. Havia allemães e
+francezes por bombardeiros a bordo das náus portuguezas; havia indios,
+brahmanes e até _mouros_. Havia, do lado opposto, na confusão dos
+navios, desde o nubio até ao arabe, desde o ethiope até ao afghan; havia
+musulmanos de toda a casta, persas, e _rumes_ do Egypto--mercenarios de
+todas as partes, a que se dava este nome generico; havia ao lado da
+multidão dos infieis, o veneziano, renegado ou catholico, mas sobretudo
+mercador, que por ordem da sua republica vinha como artilheiro defender,
+no mar da India, os interesses solidarios dos seus socios no commercio
+oriental. Em volta da população confusa da esquadra dos _rumes_,
+apinhava-se em seus juncos a massa obscura dos indios, de Diu no
+Gujerât, de Kalikodu no Kanará.
+
+Os navios portuguezes eram poucos, mas solidos, e ainda bem construidos
+e artilhados; as suas guarnições não excediam mil homens. Eram náus
+principalmente; mas tambem galés, _bastardas_ e _subtis_, e _fustas_--os
+_avisos_ d'essas antigas esquadras. As náus vomitavam fogo das amuradas.
+Nos castellos de pôpa e prôa fusilava a artilharia menor, baptisada com
+os nomes da monteria feodal, _aguias_, _sacres_ e _falcões_, _leões_ e
+_serpes_, _pedreiras_ que arrojavam balas de granito, _berços_,
+_camellos_, _colubrinas_ e _esperas_. Nos bailéos, de pôpa á prôa, os
+mosqueteiros despediam continuas surriadas de balas; e as xaretas de
+corda, presas nas amuradas, defendiam as náus das abordagens dos juncos
+e galeotas dos indios. A bordo das galés, o capitão sobre o
+chapiteu--Jesus! S. Thomé! Ave-Maria!--excitava os soldados que, de
+espada e rodella, se juntavam á prôa para a abordagem dos navios
+inimigos, ou da pôpa, a tiros, caçavam mouros. As enxarcias appareciam
+crivadas de settas. Da prôa tambem, o castello das galés vomitava fogo;
+e o ligeiro navio, caíndo perpendicularmente sobre o contrario,
+rasgava-lhe o ventre com o esporão, despedaçava-lhe os remos, crivava-o
+de balas. Sentados os forçados, nús e negros, acorrentados aos bancos,
+remavam agil e poderosamente; obedecendo aos gritos do comitre que, de
+espada em punho, corria na coxia, entre as platéas dos bancos,
+distribuindo cutiladas. Sob a coberta, junto ao paiol defendido por
+colchas e cobertores escorrendo agua, o capitão-do-fogo distribuia a
+polvora, tirando-a ás gamellas dos caldeirões. E os bombardeiros, com os
+murrões e bota-fogos a bom resguardo, obedeciam á ordem de atirar. Os
+bailéus, d'onde a taifa dos soldados se lançava ás abordagens, defendiam
+com a mosqueteria os remeiros; e as velas estavam carregadas nos
+mastros, por causa dos incendios. O fogo punha um elemento novo n'este
+antigo modo de batalhar no mar.[88] No meio do enxame das galés e
+caravelas,[89] correndo á caça dos paráos fugitivos, os navios de vela,
+de typos novos, náus e galeões, urcas e carracas, eram como fortalezas
+fluctuantes, vomitando lume, estrondos, fumo, naufragios e morte.
+
+Tingiram-se mais uma vez de vermelho as aguas do mar das Indias;
+morreram innumeros; boiavam feridos, pedindo misericordia e recebendo
+tiros: e por fim, depois de todos os episodios e scenas proprias d'estas
+tragedias, a victoria foi pelo vice-rei que destruiu rumes e indios.
+Esta batalha naval tinha uma importancia superior ainda á das victorias
+de Duarte Pacheco em Katchi: porque os indios, meditando e observando,
+reconheciam que a phalange portugueza não era só invencivel para elles:
+era-o tambem para os rumes do Egypto, e para a artilharia de Veneza...
+
+O de Diu, que estivera sempre indeciso, ao vêr o resultado da batalha,
+veiu pressuroso, desculpar-se, entregar logo os prisioneiros da empreza
+anterior. Guardára-os para os salvar das garras ferozes dos rumes, a
+quem desejava todo o mal, sem lhes ter podido resistir. Mandava-os
+carregados de presentes e parabens, por tão grande victoria, que o
+libertava da odiosa tyrannia dos rumes.
+
+No chapiteu da sua náu, o almirante e vice-rei contemplava a scena de
+carnagem, agora muda, e os destroços que boiavam com os cadaveres no mar
+tinto em sangue; e estava glorioso e contente no meio dos seus, que
+contavam com verbosidade os episodios, o que tinham feito, como se
+tinham saído, cada qual de seu lance... quando chegaram á borda, n'uma
+almadia, os prisioneiros forros, gritando alegres, a pedir que os
+recebessem. O vice-rei lembrou-se então que lhe faltava o filho, e «se
+foi assentar na tolda com um lenço na mão, que não podia estancar as
+lagrimas que lhe corriam!» Acudiram todos a consolal-o; e elle,
+tomando-lhe os animos, ergueu-se, e disse-lhes enxugando os olhos, e
+tratando-os por filhos, que isso já passára e traspassára a sua alma,
+que se alegrassem todos agora com a boa vingança que Nosso Senhor por
+sua misericordia lhes dava!
+
+E regressando, conformado com a sua sorte, ao passar em frente de
+Kananor, salvou á terra para celebrar a victoria; mas, para acabar de
+vingar a morte do filho, mandou amarrar prisioneiros ás boccas das
+bombardas, e as cabeças e membros despedaçados dos infelizes iam cair na
+cidade como pelouros... A morte do filho transtornára o seu lucido
+espirito, mudando as suas opiniões antigas de estadista n'um furor
+carniceiro, attestado pela devastação da costa do Gujerât. Cedêra tambem
+ás intrigas e maledicencias dos capitães que tinham vindo de Hormuz,
+fugindo ao mando terrivel de Albuquerque, atemorisados pela loucura das
+suas emprezas tytanicas. Bulhavam, o governador que acabava o praso do
+governo, e Albuquerque já nomeado de Lisboa para lhe succeder; e á côrte
+haviam chegado noticias perfidas de excessos commettidos pelo sabio
+vice-rei. Em paga dos seus trabalhos esperava-o a masmorra de Duarte
+Pacheco; porém, na viagem para o reino, deu á costa da Cafraria, o foi
+morto pelos negros ás pedradas e zagunchadas.
+
+ * * * * *
+
+O seu plano de governo, por ser sabio, era chimerico, pois que a India
+era uma loucura. Só homens de genio, como Albuquerque, poderiam tornar
+grande uma empreza condemnada; só, como Castro, um santo podia resalvar
+o brio portuguez da nodoa de uma ignominia formal.
+
+Para que o nosso dominio fosse maritimo e mercantil apenas, era
+necessario que essas tradições estivessem na alma portugueza, como
+tinham estado, n'outras edades, na alma de Carthago, e como agora
+estavam na de Veneza. Em Portugal, o espirito patrio fôra formado pela
+religião e pela cavallaria; e exigir dos soldados d'Africa que não
+desembarcassem dos navios, convencel-os de que o verdadeiro modo de
+conquistar fosse prescindir do governo, era querer uma cousa impossivel.
+Alargar, ao contrario, os dominios portuguezes, avassallar territorios,
+fazer conquistas, e crear um imperio á antiga, como o de Alexandre e o
+dos romanos, era o pensamento commum--naturalmente deduzido dos
+antecedentes militares da nação, e agora fomentado de um modo especial
+pela cultura classica, enlevo de todos os bons espiritos da Europa. A
+idéa de que Portugal era uma Roma preoccupava os reis e os escriptores,
+que se fatigavam a procurar origens e a indicar analogias, de certo
+verdadeiras. Albuquerque fez vivo em si um tal pensamento, e viu-se o
+Scipião d'essa Roma[90], ou antes o Alexandre da nova Grecia.
+
+Além dos motivos intimos que tornavam inacceitavel a politica commercial
+e maritima do primeiro vice-rei da India, havia motivos mais praticos.
+Uma das suas justas exigencias era a da prohibição do commercio aos
+soldados, magistrados e capitães do Oriente. Com effeito, o dominio, tal
+como elle o concebia, não era um saque: era uma protecção armada a um
+commercio, franco por um lado, monopolio do Estado, ou apanagio da
+corôa, pelo outro. Os capitães e governadores seriam simultaneamente
+agentes commerciaes de S. A., excelso mercador da Pimenta. Isto exigia
+uma fleugma de que só os hollandezes foram capazes, e ainda assim á
+custa de salarios que supprimem as tentações.
+
+Desde que o rei era o primeiro negociante, porque não seria o vice-rei o
+segundo, os capitães das fortalezas e das armadas os terceiros, os
+soldados os derradeiros? Só isto era, evidentemente, logico; e, apesar
+de todas as confusões, quem bem observa, descobre sempre que a historia
+obedece á logica. Ninguem distinguia bem, na era de 500, entre a pessoa
+individual do rei e a pessoa abstracta ou symbolica do monarcha. Não se
+separavam Rei e Estado; e só com esta perspicacia moderna poderia
+convencer-se o rude soldado da India de que o commercio, bom para o rei,
+era mau para elle; de que uma virtude podia ser um vicio, por mudarem as
+condições. Além d'isto, os portuguezes lançavam-se, famintos, ao
+banquete do Oriente, como seculos antes os povos do norte, ao banquete
+da Gallia, da India, da Hespanha[91]. Ninguem seria capaz
+de lhes arrancar dos dentes essas carnes palpitantes, que devoravam com
+ancia; e eram inevitaveis as consequencias funestas, que D. Francisco
+d'Almeida previa sabiamente.
+
+Fleugmatico e pontual no cumprimento dos seus deveres duplos de capitão
+e caixeiro, o vice-rei, ao mesmo tempo que expunha para Lisboa os seus
+planos de governo, mandava os seus relatorios commerciaes, como um
+correspondente ao seu patrão de Genova ou de Veneza. O vice-rei estudára
+como geographo o Oriente; e para fundamentar o seu plano de imperio
+maritimo dizia, com Barros, que a India «tem entradas e saídas de que
+seu commercio vive, e que são como o corpo animado, que, se lhe tiram a
+entrada e saída das cousas que o sustentam, não tem mais vida.» O
+principal estado consiste na navegação, escrevia o vice-rei; só com ella
+se governará no mar Vermelho e no golpho persico, essas duas correntes
+da exportação da India; só com ella na peninsula de Malaka, que é a
+transição da India para o extremo Oriente; só com ella manteremos o
+privilegio da passagem do cabo da Boa-Esperança, caminho que descobrimos
+para a Europa. Albuquerque em Hormuz, em Goa, em Malaka, assentou na
+terra firme os limites do imperio que para o seu antecessor devia vogar
+fluctuante sobre as ondas.
+
+Estadista e geographo, D. Francisco d'Almeida era ao mesmo tempo um
+mercador cuidadoso e até habil. Dava ao rei minuciosas informações dos
+generos, preços e pezos. «E o lacre que V. A. diz lhe mande, será
+maravilha haver-se, porque estas náus (portadoras de cartas) partem
+cedo, e as náus que o trazem do Pegú e Martamão (Martaban) veem tarde.
+Espero por uma boa somma d'elle, porque o tenho mandado trazer... E assi
+V. A. me manda que a pimenta vá limpa e secca, e que o pezo se faça com
+nossas balanças e pezos... e dá-se tal aviamento que, com duas balanças,
+té vespora pesaram mil quintaes. Se os navios não chegassem tão
+avariados, em vinte dias carregariam e partiriam. O baar de Cochim
+(Katchi) tem tres quintaes e trinta arrateis de pezo velho, e custa o
+quintal mil e quinhentos réis e meio.--Mandei noticiar com pregões que
+todos trouxessem pimenta, e que logo se lhes pagaria á vista: é o meio
+de bater os mouros, que são regatões e compram fiado. Acodem os gentios
+com pimenta, e levam o cobre muito alegres.--Quanto á pimenta e drogas
+que vão ao Levante, são de Malaca, Sumatra e Diu, onde nasce muita
+pimenta longa e redonda, e muito bem sei por onde passa e em que tempo:
+falta-me o principal.--O aljofar e perolas que me manda que lhe envie
+não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle (?); os sinabafos,
+porcellanas e mais cousas de jaez são de mais longe. As escravas que
+quer, tomam-se depressa: que as gentias d'esta terra são pretas e
+mancebas do mundo, como chegam a dez annos.--Tem cobre aqui para cinco
+annos, vermelhão sem numero, chumbo e azougue, pannos de lan a
+apodrecer, escarlatas, espelhos, oculos, chapéus, e sellas ginetas, que
+é mui certa mercadoria para cá.» E continúa assim, misturando toda a
+especie de mercadoria, desde as escravas mancebas do mundo, até ás
+perolas e aljofar.--Porque não manda S. A. papel? Seria um excellente
+negocio.»
+
+Eis ahi o motivo intimo, o principio fundamental, o cuidado superior do
+rei e dos seus governadores na India.[92] D. Manuel perdoava tudo, os
+crimes e os roubos, as carnificinas e as brutalidades, os incendios e as
+piratarias, com tanto que lhe mandassem o que elle sobretudo
+ambicionava: curiosidades, primores e riquezas para encher os seus paços
+de Lisboa, e deslumbrar o papa em Roma com a sua magnifica embaixada.
+«Manda pimenta e deita-te a dormir», dizia mais tarde, da côrte para a
+India, Tristão da Cunha, ao filho Nuno, governador. O saque do
+Oriente--este é o nome que melhor convém ao nosso dominio--ia ordenado
+de Lisboa.
+
+ [82] V. _Quadro das instit. primit._, pp. 264-7.
+
+ [83] «Então mandou aos bateis que fossem roubar os pageres (barcos)
+ que eram dezeseis e as duas náos, em que todos acharam arroz e
+ muitas jarras de manteiga e muitos fardos de roupa. Então tudo
+ isto recolheram aos navios e a gente toda das náos grandes, e
+ mandou que recolhessem o arroz que quizessem, que tomaram quatro
+ pageres, que vasaram, que não quizeram mais. Então o Capitão-mór
+ mandou a toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo
+ isto metter em um pager, em o qual mandou metter o frade tambem
+ sem orelhas, nem narizes, nem mãos, que lhas mandou atar ao
+ pescoço com uma ola (folha, carta) para el-rey em que lhe dizia
+ que mandasse fazer caril para comer do que lhe levava o
+ seu _frade_.
+
+ E a todos os negros, assim justiçados, mandou atar os pés,
+ porque não tinham mãos para se desatarem, e porque se não
+ desatassem com os dentes com páos lhes mandou dar n'elles
+ que nas bocas lh'os metteram por dentro, e foram assim
+ carregados uns sobre os outros embrulhados no sangue que d'elles
+ corria e mandou sobre elles deitar esteiras e ola secca e lhe
+ mandou dar as vélas para terra com o fogo posto, que eram mais
+ de 800 mouros, e o pager do _frade_ com todas as mãos e orelhas
+ tambem á véla para terra sem fogo, com que foram logo ter a
+ terra, onde acudiu muita gente a apagar o fogo e tirar os que
+ acharam vivos com que fizeram seus grandes prantos.»
+ Gaspar Correia, _Lendas_, I, p. 302.
+
+ [84] «... em que no mar tomaram náos de Cambaya e Calecut que iam
+ para Meka, a que roubaram o melhor que acharam de que se
+ carregaram os navios e caravellas quanto poderam e mormente
+ roupas de muito preço e muitos mantimentos e mouros para dar
+ ás bombas, e não se occuparam em carregar os navios de pimenta
+ e drogas que levavam as náos de Calecut que a todas, umas e
+ outras, poseram fogo e queimaram com toda a gente sem a nenhum
+ darem vida, mas Vicente Sodré mandou que os Mouros que tinham
+ tomado para a bomba todos os tornaram com os outros e todos
+ forão mortos.» Gaspar Correia, _Lendas_, I, pp. 365-6.
+
+ [85] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 215-80.
+
+ [86] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 211 e segg.
+
+ [87] «O Viso rey estava assentado em uma janella que vinha sobre
+ a praya com o Capitão e com outros fidalgos, e vendo o geito
+ da caravella e o capitão d'ella d'arte que desembarcava, se
+ tirou da janella e se assentou dentro em uma cadeira e poz
+ o braço na cadeira e sobre a mão encostou a face direita e disse:
+
+ --Esta caravella me traz a nova que eu tenho no coração; pois
+ que as náos de Cochim vieram sem meu filho, é que elle é morto.
+
+ Ao que o Camacho entrou com grande tristeza no rosto, o qual
+ antes que fallasse, o Viso rey lhe fallou dizendo:
+
+ --Camacho, ainda que meu filho seja morto, porque não salvaste
+ esta fortaleza: pois não é do pae do morto? Que meu filho não
+ era mais que um só homem... Nem me fica outro.
+
+ O Camacho não lhe respondeu, mas poz os joelhos no chão e com
+ muitas lagrimas disse:
+
+ --Senhor, Nossa Senhora perdeu a seu bento filho posto na Cruz
+ entre dois ladrões, e vós perdestes o vosso filho pelejando com
+ os turcos do Soldão.
+
+ O Viso rey com o rosto muy seguro lhe disse:
+
+ --Ora vos ide a descançar e mandae á caravella que faça sua
+ costumada salva e eu mandarei na Egreja fazer signal pelo
+ defunto e acodirá gente e lhe dirão paternosters pela alma,
+ porque quem o frangão comeu hade comer o galo ou pagal-o.
+
+ Com o que se recolheu para uma ante-camara, onde assentado, o
+ Capitão e fidalgos moveram pratica de sustancias consolatorias
+ para abrandar tamanha dor como sentiam que o pae devia ter com
+ a morte de tal filho. Ao que o Viso rey lhes foi á mão, dizendo:
+
+ --Eu não me posso escusar da dor que a carne me dá, como pae,
+ de força da natureza, mas espero em Nosso Senhor que me ajudará
+ por sua misericordia, e com a ajuda de meus amigos ma dará
+ alegria n'esta dor que ora tenho, em que acabando a vida será
+ para mim o mór descanço. Vão-se Vossas Mercês embora, que as
+ palavras de conforto são das mulheres para suas amigas, quando
+ pranteam seus filhos mortos em acontecimentos como ora foi
+ d'este meu.
+
+ E lhes fazendo sua cortesia se recolheu á sua camara.»
+ Gaspar Correia, _Lendas_, I, 775.
+
+ [88] V. quadros das batalhas navaes dos antigos, _Hist. da republ.
+ romana_, I, pp. 193-8.
+
+ [89] «Não tém cestos de gavea (as caravelas) nem as vergas fazem
+ angulos rectos com os mastros, mas pendem obliquas d'uma alça
+ que é triangular, roça quasi pelas amuradas. As vergas que se
+ amuram aos costados do navio são pela parte de baixo grossas
+ como mastareus, e adelgaçam até ao cimo da vela. De vasos
+ d'esta feição se servem na guerra maritima os portuguezes,
+ pelo muito ligeiros que elles são, sendo-lhes mui maneiro
+ apontar á prôa ou á pôpa o conto d'estas vergas, e ainda a
+ meio costado do navio passalas da direita para a esquerda
+ segundo lhes faz feição, ferrar o panno ou disferillo das
+ vergas, a que o atam pelo cepo da entenna, com quem as velas
+ abrem a base do angulo: e qual lhes sopra o vento, tal lhe
+ apresentam o bojo da vela não tardios. Todo o vento lhe fas
+ geito, de modo que com vento de ilharga bolinam em direitura,
+ como se foram arrazadas em pôpa, e para ir o mesmo navio em
+ senso contrario não tem mais que mudar o velame, o que muy
+ prestes se prefaz.» Osorio, _Vida e feitos d'el-rey D. Manuel_
+ (tr. F. M. do Nascimento) I, p. 193.
+
+ [90] V. _Hist. da republ. romana_, I, pp. 292 e segg.
+
+ [91] V. _As raças humanas_, I, pag. 358 e segg. e _Hist. da
+ civilisação iberica_ (3.ª ed.), pag. 34 e segg.
+
+ [92] _V. Regime das riquezas_, p. 90 e segg.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+II
+
+Affonso de Albuquerque
+
+
+«As cousas da India fazem grandes fumos!» costumava dizer o novo
+governador. Mas que _fumos_ eram esses? Eram a vaidade e os erros de
+tantos pigmeus que o gigante via formigar activamente, encelleirar, e,
+depois de gordos e ricos, pavonearem-se na côrte, allegando serviços,
+com a basofia de quem tudo sabia das cousas do Oriente. Fumos, com
+effeito, eram todos esses para o governador, que aprendera nas suas
+primeiras viagens, e agora levava já bem definido o seu plano. Levava
+sem o saber os seus _fumos_ tambem: porque em fumo se havia de tornar o
+imperio ephemero que construia na mente...
+
+Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno,
+na armada de Tristão da Cunha; mas o genio do guerreiro não se reprimia
+com isso, nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando
+absoluto, para pôr em pratica o seu plano gigantesco. Elle sabia demais
+que, no cháos da India, cada qual trabalhava por sua conta e risco; e
+que, n'esse vasto campo de batalha, as manobras não obedeciam ao mando
+de um general; iam ao acaso, segundo a audacia e o genio dos capitães.
+De Lisboa a Zamgebar uma armada era um exercito; no mar da India o
+exercito fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era
+senhor de proseguir, conforme o seu plano, na vasta empreza de saquear o
+Oriente. O plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um imperio.
+
+A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introducção,
+arrasando, queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava),[93]
+na costa, acima de Zamgebar, dirigindo-se a Sokotra--essa
+ilha que, junto á ponta extrema da Africa, pelo norte, o cabo de
+Jar-Hafun (Guardafui), era a vedeta sobre a entrada do mar Vermelho, e a
+estação onde os navios de corso ás náus de Meka se deviam abastecer e
+refrescar. Os arabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os
+todos, sem ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida.
+Feito isto, dirigiu-se á India, destacando Albuquerque (impaciente quasi
+até á rebeldia, durante a delonga da construcção do forte) com seis
+navios e quinhentos homens, para a caça das náus, no Estreito.
+
+Afinal, o capitão commandava! Afinal dispunha de uma phalange sua! e
+resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha
+desappareceram, na sua viagem para a India, Albuquerque largou de
+Sokotra para a costa da Arabia, ao longo da qual foi subindo
+vagarosamente, assolando tudo. Formára o plano de começar por Hormuz as
+suas conquistas, marcando primeiro o limite por norte e occidente, para
+mais tarde ir ao oriente, pôr em Malaka o extremo do seu imperio.
+Hormuz, Sofala e Malaka são tres quinas de um triangulo, cuja base mede
+70 graus em longitude, cuja altura, até ao vertice de Hormuz, conta 50
+em latitude.
+
+Foi a 10 de agosto do anno de 507 que Affonso de Albuquerque largou de
+Sokotra, em direcção do golpho Persico. A sua esquadrilha compunha-se de
+seis navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a
+poderosa unidade que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança
+que todos tinham no seu genio e na sua sabedoria, e tambem nos mosquetes
+e artilharia das náus, tornavam poderosa como um ariête esta pequena
+divisão. Para nos servirmos da expressão de Francisco d'Almeida,
+tratava-se apenas de combater _com bestas_; e não havia ainda que temer
+em Hormuz a artilharia dos rumes, nem os bombardeiros venezianos. A
+novidade de um engenho de guerra e a audacia de um guerreiro á antiga,
+iam levar a cabo uma empreza, de facto espantosa, como as de Alexandre
+ou de Cyro.
+
+Seguindo os exemplos d'esses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na
+mente, punha em pratica os antigos meios orientaes. Avançava no meio de
+um côro de afflições e mortes, precedido por uma columna de incendios,
+para que, ao chegar, a vanguarda do terror precipitasse os animos na
+abjecção. Assim ia ao longo da costa da Arabia assolando e devastando
+todos os logares vassallos do suzerano de Hormuz. Primeiro arrazou
+Kalhât (Calayate) «que é feito de casas de pedra, terradas e muitas
+cobertas de palha, casas espalhadas e mal armadas e fóra do logar á mão
+direita um palmar de palmeiras de tamaras, onde estavam uns poços de
+agua de que bebiam. O logar assenta ao longo d'agua, e por detrás ha
+grandes serranias de pedra viva, e no mar alguns zambucos e náus que vem
+aqui carregar cavallos e tamaras e peixe salgado.» (G. C., _Lendas_).
+
+Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a
+todos os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e
+mutilados, annunciar por toda a parte a fama do seu poder. Em
+Khor-Fakhan (Orfacate) reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou
+todos os prisioneiros. Entre elles, porém, estava um velho letrado
+persa, de longas barbas brancas, que vivia de admirar Alexandre, cujo
+livro possuia. O velho applaudia o portuguez, commentando o livro com as
+façanhas do novo heroe; e applaudia-se a si por ter ainda em vida
+assistido á resurreição do filho de Olympias. Acclamava o portuguez, ou
+o grego, confundindo a realidade com a historia; e de joelhos,
+adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.
+
+Em Makât (Mascate), já na entrada do golpho, e quasi fronteiro a Hormuz,
+tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e
+Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrivel d'esse heroe
+que se approximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha
+appareceu diante da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em
+resistir, por vêr que os navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que
+cada um d'elles, com os seus canhões escondidos por detraz das amuradas,
+era um vulcão prompto a rebentar em lava, um inimigo perfido cuja força
+latente não podia medir-se. Maskât foi bombardeada. A mesquita onde os
+infelizes se tinham refugiado caíu a machado, e os captivos, mutilados,
+foram fugindo, chorando, reunir-se á gente da cidade escondida nas
+serras. Havia cadaveres em todas as ruas e o fogo posto começava a
+crepitar lavrando nos armazens cheios de azeite e de melaço. As
+labaredas subiam, zumbia ao longe o clamor dos desgraçados, e á maneira
+que o terribil heroe se alongava na praia com os seus para regressar aos
+navios, os _mouros_ vinham anciosos e cheios de medo vêr se podiam ainda
+salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto das chammas vivas. Era em
+vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque proseguiu deixando um
+rasto de sangue e cinzas. Hormuz estava proximo, e cumpria que a onda do
+terror, que fôra crescendo, estoirasse agora de um modo pavoroso.
+
+Hormuz era então a joia mais preciosa da corôa da Persia. Chamavam-lhe
+_a pedra do annel_ das Indias. Era a Londres oriental, onde todos os
+productos do Oriente vinham desembarcar; d'onde saíam nas longas
+caravanas que se dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartaria e o
+Turquestan, por toda a Asia do norte. Os armadores levavam por mar a
+Hormuz a pimenta, o cravo das Molucas, o gengibre, o cardamomo, os paus
+de sandalo e brazil, os tamarinhos, o açafrão, a cera, o ferro, as
+cargas do arroz de Dekkan, os côcos, as pedrarias, as porcellanas, o
+benjoim, os pannos de Kambai, de Chala, de Deval, e os cinabasos de
+Bengala. Ahi vinham, de Aden, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o
+azougue, os brocados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da
+Europa, pelo caminho de Alexandria, a Suês, via do mar Vermelho. Toda a
+Persia se abastecia em Hormuz dos generos de fóra; por Hormuz toda ella
+mandava importar os productos indigenas. Os navios carregavam ahi a seda
+e o almiscar, rhuibarbo de Babylonia, e as récuas de cavallos da Arabia,
+tão queridos no Dekkan, em Kambai e nos Estados da contra-costa de
+Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges. Contra o arroz
+e os pannos que levavam, os commerciantes traziam de Hormuz as tamaras,
+o sal das suas collinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljofar
+grosso, muito procurado em Narsinga.
+
+A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e
+prazer, uma côrte de mercadores. As casas, recheiadas de cousas
+preciosas, eram thesoiros ou museus, com paredes forradas de marmores,
+columnatas, eirados, pateos ajardinados e fontes preciosas. A vida
+custava ahi carissimo, porque o luxo absorvia todos os recursos
+naturaes. A terra, uma salina, era esteril de si: tudo vinha da Persia,
+da Arabia, da India: mas os mercadores tinham defronte, além, na costa
+firme, as quintas e hortas, onde iam com frequencia. Ahi o platano
+magestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cypreste
+meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e
+jardins de rosas, povoados de rouxinoes, abrigando nas encostas á sua
+sombra as vinhas ferteis. Os pomares regados estavam coalhados de
+laranjeiras, de fructos de ouro e flôres de neve perfumada; de
+macieiras, pecegos, albaquorques; de figueiras de fórmas extravagantes e
+amplas folhas; de granadas, com os fructos rebentados a sorrir nos seus
+grãos côr de rubi. No chão serpeavam as redes de hastes dos meloaes,
+louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com peso os cachos
+de uvas preciosas de todas as côres. Por entre os bastos pomares e do
+seio dos jardins de rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira,
+com o seu turbante de folhas agudas, carregada de tamaras.
+
+Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a
+defendiam da luz e do calor do sol, formigava uma população de varias
+raças, de côres diversas, occupada em comprar, em vender; mais occupada
+ainda em gozar a vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os
+perfumes inebriavam os sentidos, e acordavam todos os instinctos
+sensuaes. Vinham ali vender neve, de trinta leguas do interior da
+Persia. Amar era o primeiro de todos os commercios de Hormuz; e o persa,
+alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os desvairamentos da
+pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até aborrecidas em
+Hormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os harens dos
+ricos, e os bordeis para o commum dos mercadores. Era uma devassidão
+abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam
+sempre seguidos por pagens, com toalhas e jarras de prata e bacias com
+agua. Havia musicas e festas por toda a parte e as bandas e orchestras
+andavam constantemente nas ruas onde os mercadores expunham á venda o
+aljofar em colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos
+estofos, e sobre as camisas brancas de algodão finissimo vestiam-se
+tunicas de chamalote ou gran, cingidas por almejares com grandes adagas
+ornadas de ouro e prata e pedras preciosas. Os broqueis eram redondos,
+forrados de seda; os arcos acharoados, ou de corno de bufalo com cordas
+de seda. Usavam, além do arco e da frecha, do escudo e da adaga,
+machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e tauxiadas
+de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um annel e a pedra
+Hormuz. Só a alfandega rendia meio milhão de xerafins.[94]
+
+As noticias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de
+terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delicias. No
+porto havia, com effeito, uma poderosa armada que escondia as aguas:
+eram centenas de náus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se
+arrestado os navios dos mercadores e do seio da frota estava a náu de
+Cambaya, a _Meri_, de mil toneis, com gente basta e numerosa artilharia.
+Havia o melhor de duzentos galeões de remo com arrombadas de saccas de
+algodão tão altas que escondiam os remeiros. O persa que vestia os
+laudeis, em vez de corpos de aço, couraçava tambem de algodão os navios.
+As terradas alastravam o mar, carregadas de gente armada, com
+estandartes garridos «que era cousa fermosa para ver». Na terra, ao
+longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas
+musicas de trombetas e anafis. «As gaitas do mar e terra eram tantas que
+parecia que se fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça
+desesperados, contando como os seis, seis navios apenas portuguezes!
+traziam no ventre uns monstros de fogo destruidores! E o soldão persa,
+afflicto, não sabia de que modo receber a visita de Albuquerque e dos
+seus navios, que já estavam, terriveis mas quietos como um volcão em
+paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Hormuz. Albuquerque
+exigia-lhe que abandonasse o persa, e se declarasse vassallo do
+portuguez; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para que
+deixassem em paz--quando o capitão, enfadado com as delongas e
+subtilezas, rompeu inopinadamente o fogo. Começou a varejar em torno o
+estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de destroços, de naufragios
+e cadaveres que era horroroso de vêr. Estava como um lobo no meio de um
+rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem. Os fugidos
+nadavam n'um mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que os
+soldados matavam n'elles ás lançadas e cutiladas. Da amurada das náus os
+grumetes e pagens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de
+visceras fluctuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim
+oitenta _mouros_. E emquanto a armada de Hormuz e as tropas do sultão
+eram chacinadas, desmanchava-se o lançol de barcos como uma teia cujas
+malhas se soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o
+mar sorvia uma atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam
+fugindo em chammas, como trombas de fogo correndo, vogando á mercê do
+vento «que era um grande espectaculo para vêr». Ainda oito dias depois
+do sanguinario caso havia cadaveres boiando no mar, e os portuguezes em
+lanchas occupavam-se n'essa particular especie de pesca. A colheita era
+abundante, os cadaveres aos centos, os trajos ricos, e muitos os anneis
+e alfinetes, as adagas e punhaes tauxiados de ouro e prata com joias
+engastadas. Denudados, vinham a bordo as familias reconhecer os
+cadaveres e leval-os piedosamente, em lagrimas, aos seus sepulcros. A
+façanha fôra tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos
+corpos mortos as chagas das frechas, não havendo similhante arma entre
+os nossos? Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso
+tristemente revelador da confusão do combate com o novo Alexandre da India.
+
+O pobre sultão de Hormuz, afflicto, immediatamente accedeu a tudo:
+consentiu que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil
+xerafins de tributo. E d'este concerto se fizeram duas cartas, uma em
+folha de ouro, a modo de livro, escripta em arabico com letras abertas a
+buril e suas brochas de ouro com tres sellos de ouro dependurados por
+cadeias; a outra em parsi, que era a linguagem commum da terra, e em
+papel com letras de ouro. E ambas estas cartas mandou Affonso
+d'Albuquerque a el-rei D. Manuel.
+
+ * * * * *
+
+Hormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque: mas isto mesmo
+desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam,
+cubiçosos de tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não
+comprehendia para que se haviam de demorar alli, a construir uma
+fortaleza; quando, a não saquearem a cidade, mais valia partirem para o
+rendoso corso das náos de Meka, na bocca do Estreito. A intriga
+insinuava-se, dizendo que o capitão-mór queria construir a fortaleza
+para si, e fazer-se rei de Hormuz, levantando-se contra o de Portugal:
+na India não havia ainda mais tradição do que a do saque maritimo, e o
+pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser comprehendido. Nem
+em tres annos, diziam, voltariam á India, perdendo occasião de carregar
+as quintaladas que tinham de ordenado. A cubiça de mãos dadas com a
+violencia e a cegueira agitavam perigosamente as guarnições.
+Albuquerque, impassivel, proseguia. De uma vez que lhe levaram um
+requerimento quando vigiava pessoalmente a obra da fortaleza, tomou-o
+assim dobrado como lh'o deram, e sem o ler metteu-o debaixo de uma pedra
+do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava cimentado
+com as queixas. Mas as lages não pesavam bastante para as abafar, e
+recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20:000
+xerafins pagos pelo de Hormuz, que, esperançado n'estas desordens,
+confiado em promessas de sedição, e nos auxilios que o persa lhe
+enviava, ousou romper as hostilidades. Viera com effeito o cheik Yar
+(Xaquear) trazendo comsigo quatro mil arabes. Albuquerque estava n'um
+serio perigo, e outro qualquer perder-se-hia. Os capitães recusavam ir
+ao combate; mas elle, arrancando as barbas, aos punhados, ao capitão
+Nova, levou diante de si os soldados, sósinho, ás cutiladas. Dos seis
+navios, porém, fugiram-lhe tres, que vieram para a India contar ao
+vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam resistir
+ao seu mando _terribil_, só lhes era dado fugir! Albuquerque retirou
+tambem de Hormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a
+empreza, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a
+Sokotra aprisionar as náus de Meka, e mais um navio o abandonou ahi:
+nenhum podia supportar o ferreo mando do heroe.
+
+Em novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Hormuz,
+estava de regresso á India, em Kananor, onde abriu a carta de Lisboa,
+que lhe confiava o governo do Oriente. N'esse momento a violencia do seu
+genio furioso arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados,
+queria sobretudo terminar rapidamente o plano das suas conquistas; e
+foram necessarios os rogos de D. Francisco de Almeida, a quem o filho
+acabava de morrer, para consentir na expedição naval de Diu. Só quando,
+mezes depois, chegou á India a fidalga armada de D. Fernando Coutinho,
+poderam terminar as deploraveis contendas, entre o vice-rei e o seu
+successor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu;
+e, cheio de basofias, lançou-se na empreza em que achou a morte.
+Engolfados na matança e no saque, no meio de parte da cidade incendiada,
+os portuguezes foram por sua vez trucidados, quando os inimigos os
+colheram dispersos e sem armas.
+
+Só e livre, absoluto senhor do imperio nascente, Albuquerque entregou-se
+com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição d'elle era
+a fundação de uma cidade, uma capital portugueza--cousa que até então
+não existira. Katchi, cujo rajah desde o principio se abraçára aos novos
+invasores, era uma cidade India, onde possuiamos apenas uma fortaleza,
+abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa
+para capital. Collocada a meia altura da costa Occidental da peninsula,
+bom porto, a cidade reunia as condições desejaveis. Fazia elle então
+parte do reino de Vijajapur (Bijapor) fracção que no fim do XV seculo se
+separára do de Dekkan, declarando-se o seu khan independente, sob o
+titulo de adil-shah (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-shah do Vijajapur,
+ao tempo de Albuquerque, tinha por nome Yusuf. Por este governava em Goa
+Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em fevereiro de 510
+Albuquerque tomou Goa por surpreza; e pela primeira vez houve no Oriente
+um Estado portuguez. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um
+logar significava apenas a substituição da suzerania indigena pela
+nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construcção de fortalezas,
+tinham sómente em vista assegurar o commercio e a cobrança das páreas ou
+tributos de vassallagem, segundo o plano do primeiro vice-rei.
+Albuquerque iniciava um systema differente; creava uma cidade
+propriamente portugueza; e com o novo governador, o nosso dominio
+desembarcava dos navios para a terra firme. A um systema de colonias,
+como fôra em volta do Mediterraneo o dos phenicios ou o dos gregos,
+substituia-se um imperio, como Annibal o sonhára na Italia, e Alexandre
+o fundou na Asia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma
+cidade portugueza, no sentido de ser exclusivamente habitada por
+europeus: seria chimerico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto
+fomentou os cruzamentos de portuguezes com mulheres indigenas, creando,
+tanto em Goa como depois em Malaka[95], uma população de mestiços, que
+mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso imperio.
+Sob o dominio portuguez, os naturaes viveriam livremente na sua
+religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao imperio
+protector e soberano de Portugal.[96] Era um plano correspondente ao que
+mais tarde os inglezes pozeram em pratica, sem todavia cruzarem com os
+indigenas: da mesma fórma que os hollandezes preferiram os planos
+maritimo-commerciaes de D. Francisco d'Almeida.
+
+Goa occupou ao governador todo o anno de 510; porque o _Sabaio_, tomado
+por surpreza em fevereiro, voltou no verão; e os soldados de Albuquerque
+não quizeram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da furia
+e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os
+planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da India,
+que além de lhes não comprehenderem o alcance, se viam privados de
+saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em agosto; mas logo
+tornou para o dominio portuguez, ganha por assalto em novembro. Os
+soldados obedeciam, porque o commando do governador era _terribil_,
+desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé catholica.
+Alexandre cria-se um deus, Albuquerque _viu_ mais de uma vez os milagres
+do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavalleiro de armas
+brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os
+_mouros_[97]--conforme a tradição historica portugueza. Nas cidades da
+costa da Arabia, viajando para Hormuz, as suas crueldades tinham sido
+barbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impôr pelo medo; aqui
+destruia como politico. Todos os _mouros_ de ambos os sexos, de todas as
+edades, mais de seis mil, foram mortos; e queimados vivos os que se
+tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque
+para socego d'ella só devia conter gentios. Era o logar escolhido para
+capital do imperio dos novos gregos pelo moderno Alexandre.
+
+Consolidada a posse da capital, no coração da India, Albuquerque
+voltou-se rapido para as duas emprezas que rematariam o seu imperio:
+Malaka e Hormuz. Embarcou, logo no principio de 511, e tocando em
+Ceylão, a terra encantada das pedras preciosas, delicias do mundo,
+patria da canella e das perolas, achamol-o, já em maio, em frente de
+Malaka, no extremo Oriente.
+
+Malaka, na ponta da peninsula da Indo-China, sobre o estreito a que dá o
+nome, era para esta região, como Hormuz, a norte-leste, para a outra.
+Assim como além se permutavam os generos da India com os da Arabia e da
+Persia, e em Adem com os do Egypto; assim em Malaka se faziam todas as
+trocas dos productos occidentaes da China e das Molucas, e de todo o
+extremo Oriente. De Malaka iam as náus a Ternate e a Tidor, a Banda e a
+Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de
+_juncos_ de Java, conduzindo á cidade o arroz, as carnes, a caça e os
+_crizes_ tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que
+levavam de retorno para as ilhas do archipelago. Amphibios, os malaios
+viviam no mar em permanencia, com a casa e a familia a bordo; e os seus
+_juncos_, com enxarcias de verga, iam buscar a Malaka os pannos de
+Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as
+drogarias de Kambai.
+
+Do saque de Malaka, o governador reservou para si apenas seis leões de
+bronze, destinados ao seu tumulo. Sem se demorar, avassalou todo o
+archipelago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e,
+segura a porta oriental da India, voltou-se a Goa, de caminho para
+Hormuz e Aden, a consolidar o imperio pelo occidente. Em fevereiro de
+513 sáe com uma armada para Aden, que não consegue tomar; viaja em torno
+do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente
+forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arabia, indo a Meka
+despedaçar a santa Kaaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado
+positivo, desde que Aden consegue resistir ás investidas do governador.
+Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cupula do seu
+edificio e a chave do imperio que vinha construindo. Conquistada Aden,
+as duas emprezas que meditava eram relativamente faceis na sua
+simplicidade temeraria. Levaria quatrocentos homens de cavallo em
+taforeas ou caravellas e iria desembarcar em Liumbo, partindo n'um
+galope até Meka, logar santo mal guardado por gente prostrada em
+adorações. Roubaria o thesouro sagrado e o proprio corpo do propheta:
+com ambos se resgataria o Santo-Sepulcro de Jerusalem, captivo.
+Consumar-se-hia a obra mallograda das Cruzadas, tradição piedosa que na
+Renascença passara das nações do norte para a Italia e para a Hespanha,
+arrastando mais tarde Portugal a Alcacerquibir. Ao mesmo tempo, e por
+outro lado, a grande empreza do mar Vermelho descarregaria um golpe
+mortal no Egypto, que era a joia do imperio dos turcos e o arsenal de
+onde vinham as armadas á India. O seu plano consistia em «cortar uma
+serra muy pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste
+Joham, para lançar as correntes d'elle por outro cabo que não fossem
+regar as terras do Cairo».[98] Desviando o Nilo seccaria o Egypto.[99]
+Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse officiaes da Madeira, onde os
+havia mestres no córte das serras para formar as levadas de rega dos
+canaveaes. Tudo isto continha a empreza de Aden, cujo mallogro cortou os
+vôos ás ambições grandiosas do heroe.
+
+Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse
+fulgurado aos olhos do mystico e terrivel heroe uma cruz vermelha,
+Christo abandonara-o na empreza. Quando o famoso milagre surgiu,
+Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que
+andavam, caíram de rastos adorando a cruz.[100] E o capitão, para
+corresponder ao céu, mandou tanger os córos de trombetas, responder com
+artilheria aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um _estromento_
+assignado pelas guarnições, que veiu para D. Manuel, com a carga de
+pimenta, afervorar a piedade mystica da côrte carthagineza.
+
+Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se
+para Hormuz, cujo dominio não estava seguro. Outro Alexandre em
+Persepolis, o heroe condemnou-se em Hormuz: a grandeza das suas façanhas
+tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal.
+Orientalisado como o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam
+já a crueldade, nem a força: appellava para a perfidia; e
+intromettendo-se nas miseraveis politicas dos persas, chamou á sua tenda
+para uma festa o ministro que então governava o principe idiota de
+Hormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava
+proximo da cova: e a sorte não queria que á historia d'este heroe
+faltasse o epilogo frequente da historia dos heroes: uma abjecção.
+Tampouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e
+fraqueza commum. Alexandre mimoseava os litteratos de Athenas para que o
+exaltassem: Albuquerque mandava anneis de pedras preciosas ao chronista
+Ruy de Pina «para escrever com melhor vontade os memoraveis feitos da
+India».
+
+De volta de Hormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como
+fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte
+Pacheco. A côrte de Lisboa já o mandára substituir no governo por Lopo
+Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condemnar o seu
+predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar,
+Albuquerque pegou da penna e dirigiu uma carta ao rei--«quando esta
+escrevo a V. A. estou com um soluço que é signal de morte!» E pedia-lhe
+que lhe honrasse a memoria e protegesse o filho: o que o rei fez, honra
+lhe seja. Agonisando, via-se incomprehendido pela tacanha côrte de
+Lisboa, e acceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor
+d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, á
+vista de Goa. Era homem de mean estatura, rosto comprido e corado. Era
+avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui
+facil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar
+com os mouros, muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de
+uma familia de sangue nobre, e educara-se na côrte militar de Affonso V,
+viveiro da geração dos capitães da India amestrados nas guerras de
+Africa. Fôra em 1480 na esquadra mandada a Napoles em auxilio do rei
+Fernando contra os turcos, e nove annos depois partira para Africa a
+defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era
+estribeiro-mór de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D.
+Manuel o mandou á India pela primeira vez. Foi, voltou com bons
+creditos, mas sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e
+aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como
+capitão na esquadra de Tristão da Cunha. D'essa ida começa a historia
+que narrámos e que termina agora com a sua morte.
+
+Os soldados, a bordo, amortalharam-no no habito de Santiago com
+borzeguins e esporas, espada á cinta, na cabeça uma carapuça de velludo
+e aos hombros uma beca tambem de velludo. O enterro subiu em lanchas, e
+era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de
+Goa. Ao desembarcar, foi levado aos hombros dos soldados, sob o pallio,
+pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos
+meio abertos, a longa barba atada até á cinta, fluctuando, não o criam
+morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por
+muito tempo houve romarias ao sepulchro do heroe, vindo os naturaes
+pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfidias dos portuguezes,
+offerecendo-lhe boninas e azeite para a sua lampada. Do extremo Oriente,
+desde o Pégu até á China, ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.[101]
+
+ * * * * *
+
+Hormuz, Goa, Malaka, os tres pontos cardeaes do imperio fundado por
+Albuquerque no breve periodo de cinco annos (1507-11), valiam o dominio
+em todo o mar das Indias e a vassallagem de todas as costas, desde
+Sofala, em Africa, ao cabo de Jar-Hafun; desde Khor-Fakhan, na Arabia,
+até ao golpho Persico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); d'ahi
+ás boccas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pégu, até Malaka--com
+as ilhas dispersas de Madagascar e Sokotra, Anjediva, os archipelagos de
+Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Sinhala (Ceylão),[102] e
+Sumatra e Java, Bornéo e as Molucas, até aos pontos extremos de Banda e
+Ambon. Com effeito, depois de Malaka e da viagem temerosa mas esteril de
+513 a Aden, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o
+_terribil_. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os
+principes queriam a amisade do portuguez, e a seus pés arrastavam a
+corôa os rajahs de Ahmednagar e de Kambai, de Vijajapur e de
+Narsinga,[103] o shah da Persia e os sultões de Sião, do Pégu, do
+Arakan; e até o proprio _Hidalcão_, o adil-shah do Kanará, consentindo a
+fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do
+Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Bengala. Desde o Indo até ao
+Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da
+peninsula estava inteiramente submettido ao jugo portuguez.
+
+Entretanto este imperio não podia dizer-se ainda construido: era um
+esboço apenas. Como depois de uma victoria brilhante os timidos se
+curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na
+politica de conquistas, o imperio portuguez ganhava a primeira batalha;
+mas não podia decerto ensarilhar as armas, emquanto a costa da Arabia e
+as margens do mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os
+naturaes da India, avassallados por uma corrupção antiga, acceitavam o
+dominio de qualquer vencedor; mas era necessario, para o manter, que a
+victoria fosse decisiva. Ora o inimigo, o _mouro_, fôra batido, mas não
+fôra expulso. Como n'uma doença, tinham-se debellado muitos symptomas,
+mas não se destruira o principio morbido. Aden continuava a ser o
+emporio do dominio commercial maritimo dos arabes e egypcios no Oriente;
+o mar Vermelho, o Suês, no extremo fundo d'esse estreito corredor, as
+boccas sempre abertas, para vasar sobre a India navios, artilheria e
+soldados. O dominio, que os portuguezes se propunham substituir,
+continuava; e do caracter dual ou mixto que a occupação da India
+apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os _mouros_ e
+com os naturaes, que ora os preferiam a elles, ora a nós. Ninguem, nação
+alguma seria capaz de resistir a um seculo inteiro de similhante vida. O
+destino do imperio portuguez no Oriente dependia do exclusivo do
+dominio, desde que era impossivel pactuar ou dividir a presa entre os
+dois caçadores rivaes.
+
+O genio de Affonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez:
+Aden, Meka, o mar Vermelho, eram a sua preoccupação: «Tres cousas, diz o
+filho e commentador, ha na India que são escapolas de todo o commercio
+das mercadorias d'aquellas partes, e chaves principaes d'ella. A
+primeira é Malaka, que está em tres graus na entrada e sahida do
+estreito de Singapura; a segunda Aden, que está em vinte e um graus de
+altura e na entrada e saída do mar Rôxo; a terceira é Hormuz, a qual
+está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Persia.
+Este Hormuz, a meu vêr, é a principal de todas. E se el-rey de Portugal
+tivera senhoreado Aden podera chamar-se senhor de todo o mundo.» Dar um
+golpe mortal no islamismo era, além de retribuir em Meka a affronta
+humilhante de Jerusalem, mostrar aos musulmanos do Oriente que Jesus
+podia mais do que Mafoma. Mas se o genio excepcional de Albuquerque não
+bastou para levar a empreza ao fim, como poderiam bastar para isso os
+pigmeus que lhe succederam? Valentes muitos ou quasi todos, incansaveis
+no mar e na terra, os governadores da India foram extenuando em um
+seculo de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento
+politico, sem plano definido, á tôa e á mercê d'um capricho, ou d'uma
+idéa a que o ciume imbecil da côrte limitava constantemente os vôos. A
+primeira politica, a maritima, fôra abandonada com a queda de Francisco
+de Almeida; a segunda politica, a imperial, condemnada com a deposição e
+morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um dominio
+estavel e seguro: uma tradição.
+
+Esta falta, comtudo, provinha de causas mais intimas, umas nacionaes,
+outras chronologicas. O absurdo espirito da politica de Lisboa, e a já
+provada incapacidade dominadora dos portuguezes, estão na primeira
+categoria: na segunda estão os costumes e idéas de tempos relativamente
+barbaros. Os portuguezes, ao pôr pé na India, faziam o mesmo que os
+povos germanicos, ao descer dos Alpes sobre a Lombardia: cevavam-se. A
+historia de Affonso de Albuquerque em Hormuz (1507) demonstra bem quanto
+era impossivel impôr disciplina e ordem em campanhas que tinham no saque
+o exclusivo motivo.
+
+ Fomos ao rio de Meca,
+ Pelejámos e roubámos
+ E muito risco passámos.
+
+Estas palavras de Gil-Vicente resumem a historia da India; e com taes
+elementos era possivel saqueal-a, era impossivel dominal-a.
+
+Por isso, n'esse seculo de 500 que a historia da India abrange, o
+conjuncto dos caracteres da occupação portugueza fórma dois systemas: o
+da rapina, contra o qual protesta e reage em vão a espada militar de
+Albuquerque; e depois o da simonia, contra o qual, em vão tambem, reage
+a vara justiceira de D. João de Castro.
+
+Estudemos agora o primeiro, a seu tempo estudaremos o segundo. Todos os
+soldados de Antonio da Silveira, um capitão que andava pela costa, entre
+Chala e Daman, trouxeram fato, escravos e dinheiro, com que foram
+contentes; e assolaram tudo «em tanta maneira que se despovoaram todolos
+logares da fralda do mar, que pela terra dentro dez leguas não havia
+gente». Em Barava, destruida por Tristão da Cunha, os barbaros cortaram
+as mãos e as orelhas ás mulheres para furtarem as manilhas e brincos de
+ouro. A tomada de Mangaluru ficou celebre: «Foi entrada com muito valor,
+e dentro d'ella fizeram os nossos espantosas cruezas, não perdoando a
+sexo nem a idade, nem ainda ás alimarias». D. Paulo de Lima «deu na
+cidade de Johore (Jor)--escreve á esposa--e assolou-a _com o favor
+divino_». N'outro logar os combatentes, empilhados contra os muros,
+pedem aos da frente que, _por amor de Deus_, lhes deixem matar um
+_mouro_. Á approximação dos portuguezes, despovoam-se as cidades e fogem
+todos com terror: assim aconteceu em Bintang. Albuquerque sustentou por
+tres annos, no mar da Arabia, a sua armada com as presas das náus de
+Meka. Quando os portuguezes occuparam as terras de Bardez «fizeram mui
+grandes males de roubos, tyrannias, tirando as mulheres e filhas
+formosas a seus maridos, e outras corrompiam, e as furtavam e tornavam a
+vender». O de Hormuz queixava-se de que, em paz, lhe tiravam, a elle e
+aos seus, «parentas de que (os nossos) faziam uso, tornando-as christans
+a seu pesar». O roubo e a luxuria, alliados aos inimigos, davam lugar a
+interminaveis guerras: assim os capitães de Malaka originaram as de
+Johore e do Atchim (Achem); e nas Molucas a cidade de Bachian,
+despovoada e vasia, foi incendiada, indo-se os barbaros ás sepulturas
+dos reis furtar os ossos, na esperança de receber por elles, mais tarde,
+um grosso resgate. Roubando e pirateando á solta, o genio aventuroso dos
+portuguezes larga as azas, e os exploradores vão até aos confins do
+mundo, fiados no seu atrevimento. Dois heroes das _Peregrinações_ teem
+uma historia extravagante. Um, Antonio de Faria, vae á China roubar os
+sepulcros dos imperadores; outro, Diogo Soares de Albergaria, obtém o
+titulo de irmão do rei de Pégu, com duzentos mil cruzados de renda e o
+commando do exercito: é o rei, mas morre assassinado, por ter furtado
+uma rapariga. Nem se julgue que só pelos confins do mundo oriental
+portuguez, em Hormuz ou em Malaka, ou só pelas costas, nos seus navios,
+a furia dos portuguezes se desmanda em ferocidades anarchicas. Na
+propria Gôa, capital, a vida é um combate. Pelas ruas ha batalhas e
+cadaveres insepultos. Um governador prende certos salteadores
+portuguezes, manda-os ferrar no rosto, junto á picota, e degredar para o
+Brazil: logo um pelotão de amigos se amotina em armas para os libertar,
+e, não podendo conseguil-o, vae a bandear-se para os mouros inimigos: o
+governador manda-os desorelhar e amarrar aos bancos das galés; fogem e
+fortificam-se, e é necessario tomar á força o reducto; prisioneiros,
+são, afinal, amarrados vivos a elephantes, e esquartejados. É conhecida
+a tragedia em que a amante de D. Paulo de Lima, precipitando-se das
+janellas do seu palacio de Pangin, morreu, e o seductor, de espada e
+rodella, abriu caminho por entre a gente armada que acudia com o marido.
+
+Até dentro das proprias egrejas havia rixas, a tiros: viam-se homens
+caír assassinados no confessionario, e nos degraus dos altares, á meza
+da communhão; e uma vez foi morto com um tiro o bispo quando levava a
+hostia, em procissão, pelas ruas.
+
+Era uma anarchia barbara; e decerto os naturaes lamentavam a má-sorte
+que os condemnava a supportar tantas crueldades ferozes. Antes o mouro
+indolente e molle, e o antigo tempo que placidamente corria no seio de
+uma orgia podre mas calma, nos braços do luxo, da opulencia e dos
+prazeres! Como demonios vomitando fogo, negros nas suas armaduras, esses
+portuguezes eram enviados para os desgraçar, para os punir talvez! E
+levas esfarrapadas de fugitivos, n'um côro unisono de lagrimas e
+afflicções, acompanhavam por toda a parte a visita dos terriveis
+forasteiros, que não sabiam fazer-se amar do indio, tão submisso, tão
+bem disposto para obedecer e servir.
+
+Os _fumos_ da India (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres
+portuguezes, limitados na Europa á porção congrua do bragal e do aço,
+sujeitos a uma forçada sobriedade e a costumes mais presos. Na India o
+_fumo_ desenfreava o animal, que se retouçava delirante nas sedas e nos
+perfumes, nas fructas e nas mulheres, coberto de diamantes, abarrotado
+de pardaus de oiro. Breve, porém, esse _fumo_ se dispersou no ar; e a
+desolação universal trouxe a miseria, o luxo trouxe a fraqueza; e á
+violencia de barbaros, os portuguezes juntaram a mesquinhez de chatins.
+
+ [93] «Ao que se achou presente Tristão Alvares, que era feitor do
+ capitão-mór, que não consentiu que ninguem tomasse nada e com
+ João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram tudo ao capitão-mór,
+ o qual logo tudo mandou qubrar e ameaçar e deu ao capitão e
+ aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de
+ prata e a Affonso de Albuquerque tres, porque nunca estes
+ capitães e fidalgos se apartaram para ir roubar.»
+ G. Correia, _Lendas_, I, 677.
+
+ [94] O xerafin (as hrafi) = 12 rupia = 1 cruzado. Duarte Barbosa
+ da-lhe a equivalencia de 300 reis.
+
+ [95] V. _Raças humanas_, I, pp. LX-I.
+
+ [96] Não consentia o governador A. de A. que os portuguezes tratassem
+ (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser
+ poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do
+ que se recreceriam males de os matarem e perderem suas
+ fazendas... e tambem que, se os mouros vissem que lhes
+ tomavamos seus tratos nos teriam mór odio, e mais, que os
+ homens, andando tratando, andavam fóra do serviço de Deus e
+ d'Elrey, de que elle daria muitas contas a Deus: pela qual
+ razão não consentia que nenhum homem andasse fóra do serviço
+ d'Elrey. Com esta pragmatica os portuguezes eram muito temidos
+ por cavalleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos
+ que ainda que um só portuguez fosse em uma almadia, se o
+ topassem naus de mouros, todas amainavam e lhe iam obedecer,
+ mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos
+ eram assignados por A. de A.»--Gaspar Correia, _Lendas_, I, 518.
+
+ [97] V. _Systema dos mythos relig._, p. 331.
+
+ [98] V. _Hist. da civil. iberica_ (3.ª ed.) p. 243.
+
+ [99] V. _As raças humanas_, I, pp. 106-10.
+
+ [100] V. _Syst. dos mythos relig._, p. 331.
+
+ [101] Ainda hoje os indios chamam _Affonso d'Albuquerque_ a um
+ certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoologico
+ não podemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu:
+ afundou-se, e revive n'esses animaes marinhos. A maxilla
+ inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das
+ figuras portuguezas do seculo XVI: o barrete, as barbas
+ ponteagudas e longas, etc. Os indios pintam esses ossos,
+ dando-lhes phisionomia humana e guardam os _Affonsos de
+ Albuquerques_ como fetiches.
+
+ [102] V. _Inst. primit._, p. 3.
+
+ [103] V. _Ibid._, pag. 163.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+III
+
+D. João de Castro
+
+
+Morto Albuquerque, as cousas da India voltam ao estado anterior; e
+abandonada a politica imperial, torna-se á politica maritima; ou antes o
+dominio fluctua ao acaso, indeciso entre os dois planos. Lopo Soares
+proseguiu ainda as guerras de conquista, acabando de avassallar Ceylão e
+as Molucas. Vasco da Gama voltou pela terceira vez á India, como
+vice-rei, para vêr se podia pôr cobro ás desordens e á corrupção interna
+das colonias: foi com elle que se inaugurou o systema das successões,
+mandadas de Lisboa em cartas, que só se abririam por ordem numerica, na
+falta de cada vice-rei, para prevenir as frequentes desordens, a que
+dava lugar a transmissão do governo. O almirante morreu tres mezes
+depois de chegado, succedendo-lhe D. Henrique de Menezes; a este, Pero
+Mascarenhas, e o usurpador Lopo Vaz de Sampaio, tão celebre pelas suas
+perfidias.
+
+Nuno da Cunha tomou posse do governo em 1528 em condições difficeis. As
+torpezas dos governos anteriores tinham sublevado contra nós os
+monarchas do Hindustan. O de Kambai, ao norte, com o de Kalikodu,
+inimigo antigo, ao sul, estavam desde tempo em guerra aberta comnosco,
+de mãos dadas com os _mouros_, nossos rivaes. O governador, em quem os
+dotes de guerreiro primavam, decidiu reunir todas as suas forças para ir
+tomar Diu, na costa do Gujerât, castigando por um modo ruidoso a
+insubordinação do de Kambai.
+
+Quem via a esquadra com que Nuno da Cunha se foi a Diu, podia avaliar a
+transformação que trinta annos apenas, ou menos ainda, tinham produzido
+no caracter dos portuguezes. Ninguem os tomaria já pelos descendentes de
+Pedralvares Cabral, envergonhados da sua pobreza em Kalikodu; nem sequer
+pelos piratas domesticados com a disciplina de Albuquerque: pareciam já
+mouros, na opulencia e nos costumes. A esquadra era das maiores, senão a
+maior de todas as que se tinham reunido na India: constava de
+quatrocentas velas, entre as quaes mais de quarenta vasos maiores, e
+multidão de bergantins, galeaças, fustas e catures. Apoz ella vinham os
+juncos malaios com mantimentos, e um cardume de zambucos e cotias de
+taverneiros, gente da terra, vendendo comestiveis e vinho. Capitães e
+soldados tinham-se preparado como para uma funcção, luxuosamente
+vestidos, carregados de pedras preciosas e ricas armas tauxiadas. As
+mulheres enxameavam a bordo, esposas e amantes da gente da guarnição; e
+além das mulheres os escravos eram numerosos. O governador tinha
+promettido premios de 1:000, 500 e 300 pardaus aos primeiros que
+successivamente subissem ás muralhas. Era uma expedição mercenaria, e
+não uma aventura de bandidos. Isto exprimia a transformação que já se
+tinha operado; e o governador, apesar dos seus meritos, nada podia
+contra ella.
+
+Seguindo as boas tradições, a esquadra foi ao longo da costa deixando o
+seu rasto de carnificinas e investidas covardes, contra os pontos
+indefesos; e quando chegou em frente de Diu, rompeu o bombardeio. Dentro
+da cidade era grande o susto. Os commerciantes mouros agitavam-se,
+escondendo os seus thesouros e preparando-se para a fuga. Os fakirs
+immundos, nús, e de rastos, estrebuxavam, e, erguendo-se como doidos,
+acutilavam os braços e as pernas, ou batiam com calhaus grossos na
+ossatura do peito, como a quererem matar-se n'um delirio de visões
+santas. E o brahmine, com os seus longos cabellos enlaçados em turbante
+no alto da cabeça coroada de flôres, perfumado de aloes e de agua de
+rosas, untado de sandalo branco e açafrão, lançava-lhes uma esmola e
+palavras de paz, para não juntar á desgraça da guerra novas desgraças de
+suicidios! Os senhores de Diu, ricos do Gujerât, principes de Kambai,
+attonitos, vagueavam nas ruas com as mulheres, a procurar refugio contra
+as bombardas que estalavam por toda a parte. Com as caras rapadas á
+navalha e os longos bigodes negros caídos, arrastavam pressurosos as
+compridas camisas de algodão e de seda, calçados nos seus sapatos
+bicudos de cordovão lavrado: e os longos brincos de ouro cravejados de
+pedras balouçavam e tilintavam nas orelhas, em quanto corriam
+desafivelando, cansados, os cintos de ouro rutilantes de esmeraldas.
+Atraz d'elles as mulheres, de uma raça delicada e formosa, com o rosto
+de um branco de leite, meio encoberto em mantos de seda com que vestiam
+o tronco nú, corriam descalças, mostrando nos dedos dos pés os ricos
+anneis, nas pernas as manilhas de ouro e prata, os braços nús carregados
+de pulseiras, as mãos rutilantes de pedras preciosas. Era um terror e
+uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o ribombar da artilheria, e
+ao verem no ar a trajectoria de fogo das bombardas, que vinham sem
+piedade rebentar em estilhas no meio da gente, crivando de lascas o
+corpo côr de perola das mulheres, e as carnes côr de barro dos fakires
+tisnados pelo sol, cobertos de uma camada de lodo secco e de immundicies
+das estrebarias dos elephantes.
+
+As tropas de Kambai, nos seus postos das muralhas, esperavam o assalto,
+para então se medirem com esses homens que, abrigados por detraz das
+suas peças, distribuiam assim impunemente a devastação e a morte.
+Tremiam comtudo; e os mouros, por entre os batalhões, lamentavam-se da
+falta dos artilheiros venezianos e das esquadras dos rumes. Esperavam,
+porém, muito da tropa de elephantes, que eram quinhentos com as prezas
+limadas e o pé triturador, com que haviam de fazer em pastas humidas de
+sangue a phalange portugueza.[104] As balas dos mosquetes
+nada podiam contra a couraça da sua pelle, e esmagando com o peso,
+despedaçando com as prezas, acabariam a obra começada pelos besteiros e
+fundibularios de cima das torres. Mudos e immoveis, os quinhentos
+elephantes de Kambai estavam na planicie, como ancora da salvação de
+Diu; e os soldados olhavam para elles com amor. Além dos elephantes,
+tambem a cavallaria se achava formada, montando á bastarda os leves
+cavallos da Persia, embraçados os seus escudos pequenos e redondos
+forrados de seda, ao cinto duas espadas e uma adaga, ao hombro as settas
+e o arco. Uns vinham defendidos com armaduras e cotas de malha de aço,
+outros com laudeis, que eram mantos de algodão acolchoado, onde todos os
+golpes morriam perdidos. Os cavallos traziam testeiras de aço. Porém,
+apesar de toda a força reunida, a artilheria dos navios aterrorisava-os;
+e já por mais de uma vez alguma bomba, caíndo no meio dos elephantes,
+dispersára as montanhas de carne, a correr em rugidos, com a tromba
+erguida, como um mastro, entre as prezas de marfim. Na cidade havia
+tambem artilheria e mosquetes, mas que nada podiam contra os navios
+distantes: os pelouros disparados recochetavam na agua.
+
+Parou afinal o bombardeio, e todos olhavam com ancia, porque esperavam
+assistir ao desembarque e contavam com a peleja. Viram, porém, com
+surpreza que as náus emmastreavam e as galés mudavam a prôa ao mar,
+afastando-se ao impulso dos remos. Fôra medo? fôra fraqueza? Decerto; e
+a esquadra, atulhada de escravos e mulheres, não tinha forças para uma
+batalha: apenas se arriscava a um canhoneio sem perigos. Já era fóra de
+duvida que os deixava. As velas desfraldadas impelliam os navios na
+volta do mar. A alegria e a assuada substituiram então o pavor e o
+silencio. Todos pulavam contentes, desde o fakir immundo, até ao grave e
+perfumado brahmine; desde os velhos e as creanças, até ás mulheres,
+envolvidas nos seus mantos de seda, com os braços e as pernas núas, a
+correr, agitando os longos brincos, preciosos, tão pesados que lhes
+rasgavam as orelhas. Os commerciantes mouros abriam os bazares e
+desenterravam os cofres; e todos vinham á praia vêr a armada que se
+afastava, despedindo-se d'ella com vaias e gritos de zombaria, tangendo
+musicas, disparando tiros de espingardas para o ar, e mandando, por
+cortezia, pelouros, a arranhar a superficie azul das ondas. Diu estava
+salva das ameaças do portuguez.
+
+Porém quatro annos depois, intervindo nas questões internas dos sultões
+e rajahs da peninsula, Nuno da Cunha obteve a permissão de construir a
+fortaleza de Diu, celebre depois pelo heroismo dos seus cercos. A
+politica do governador não desdenhava, comtudo, o assassinato; e o pobre
+sultão de Kambai, convidado a uma entrevista, foi trucidado, á maneira
+do que já succedera antes em Hormuz. D'ahi proveiu a guerra e o primeiro
+cerco de Diu, sobre-humanamente defendido por Antonio da Silveira.
+
+As chronicas chamam a Nuno da Cunha vencedor de Kambai, heroe de
+Bassaim, de Kalikodu, e fundador de Diu. Basta esta enumeração dos
+lugares para demonstrar que o dominio portuguez na India inclinava já,
+com trinta annos de vida apenas, á decadencia. Os erros politicos
+originavam guerras permanentes; e o poder dos invasores, que n'um
+relampago se alargára por todo o Oriente, não se consolidava: agitava-se
+desordenadamente, no meio de questões sempre renascentes, extenuando as
+forças defensivas, e corrompendo-se intimamente. Se Nuno da Cunha merece
+dos coevos o nome de heroe, não é pelo valor ou alcance dos meritos
+proprios, é pela absoluta incapacidade dos seus predecessores e dos que
+lhe succederam. D. Garcia de Noronha, que veio apoz elle, era um fidalgo
+pobre, sem merecimentos, além do da pobreza e das sympathias do rei, que
+o mandou á India enriquecer. «Honra, eu a tenho: não venho mais que a
+levar dinheiro», dizia mais de um governador. D. Estevam da Gama foi
+ninguem; e Martim Affonso de Souza prégou com o exemplo, francamente
+cynico, a abjecção em que a administração da India se tornára--agora que
+terminára o saque de todas as costas, e as náus de Meka, mais raras e já
+artilhadas e preparadas para rudos combates, não davam com que
+satisfazer a cubiça dos occupantes.
+
+A segunda epocha da historia da India, a da podridão, apparecia já
+desenvolvida e accentuada por tal fórma, que o governo de Lisboa
+reconheceu a necessidade de pôr cobro a tamanha desordem, e nomeou
+viso-rei D. João de Castro, leitor assiduo de Plutarcho e decidido, por
+opinião, a ser um modelo de virtude, e um typo de nobreza á antiga,--ou
+pelo menos á moda do que então se julgava terem sido certos dos antigos
+heroes.
+
+ * * * * *
+
+Effectivamente o estado das cousas exigia remedios energicos. Martim
+Affonso de Souza deve abrir o rol, porque ninguem melhor e mais
+ingenuamente vivia no seio da podridão e o confessava, nas cartas que
+enviava para Lisboa, ao rei. A successão do governo de Vijajapur era
+debatida entre dois principes indigenas; e o governador «tardou em se
+determinar, porque estava esperando quem levava a melhor». Afinal
+decidiu-se pelo _Hidalcão_, que parecia ter mais justiça e era _mais
+firme_, «ainda que vos certifico que da outra (parte) havia tantas
+razões e contrarios que foi necessario _soccorrer-me a missas e
+devoções_». Além das devoções, o vencedor deu-lhe 70:000 pardaus para
+el-rey, 20:000 para elle proprio governador, e uma joia para sua esposa.
+Deus, porém, não se contentando com ajudar o modo por que o governador
+vendia o seu apoio, matou o rival vencido. Tudo corria para o melhor,
+quando, para coroar o caso, vem um privado de Assud-Khan propôr-lhe a
+divisão do thesouro do fallecido: 500:000 pardaus: «Mando 300 a el-rey,
+mas d'estes tomei 30:000 para mi, que é o dizimo que lá mando a minha
+mulher: que em razão está que tenha alguma parte d'isso, pois o podera
+ter todo, que eu podera ter tomado este dinheiro sem o ninguem saber».
+Esta pratica de vender o auxilio nas contendas indigenas não era,
+todavia, privilegio de Martim Affonso. Em Hormuz, sob a tutela dos
+portuguezes, D. Duarte de Menezes substitue a um governo amigo dos
+nossos, um outro que preferia o mouro, porque este lhe deu «cem mil
+pardaus em xerafins novos, e em conta ricas perolas e joias e aljofar».
+Gaspar Correia diz do governador, que gostava de «boas peças e dadivas e
+alvitres de apanhar dinheiro, e banquetes e prazeres, e com mulheres
+solteiras com que ia folgar no tanque de Tinoja, e em tudo era mui
+devasso».
+
+Os capitães seguiam os exemplos dos governadores. De um de Hormuz, Diogo
+de Mello, queixa-se o _rei_, porque o alguazil o ferira e quizera matar
+por lhe não dar dinheiro e joias que exigia; pedindo soccorro, pois se
+lhe não acudissem, despovoava-se a cidade. E nem só as fortalezas, ao
+lado dos soberanos indigenas, eram rendosos meios de rapina: o mar
+produzia tambem muito. Ruy Vaz vae por sua conta a Bengala _ás prezas_; e
+dois navios, mandados expressamente de Lisboa á India com instrucções e
+cartas, para decidir o pleito entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz,
+fogem para Madagascar _ás prezas_, e ahi se perdem. A pirataria dos
+portuguezes era tão productiva que excitava os estranhos; e de parceria,
+piratas francezes, guiados pelos nossos, dão a volta d'Africa, e vão
+explorar a India. Não era tampouco raro vêr nos mares do Oriente navios
+de arabes guarnecidos por portuguezes mercenarios; os _mouros_ pagavam
+melhor do que o rei. A guarnição da armada com que Lopo Vaz foi ás ilhas
+de Sunda incendeia os navios por falta de pagamento do soldo; e os
+naturaes assaltam os portuguezes á pedrada, obrigando-os a pedir
+capitulação. Effectivamente a sorte dos soldados era tão dura, que se
+recusavam a embarcar em Goa, sem primeiro terem sido pagos. Os
+governadores eram obrigados a mandal-os caçar pelas ruas e casas,
+levando-os algemados ao tronco, e da prisão para a armada.
+
+A vida do soldado da India e a organisação militar eram com effeito
+singulares. Desembarcando sem dinheiro em Goa, depois das doenças da
+viagem, os que não tinham parentes ou amigos na capital da India,
+espalhavam-se pedindo esmola em bandos pelas ruas, dormindo esfarrapados
+e semi-nús debaixo dos alpendres das egrejas, ou nas galés e lanchas
+varadas na praia. Empenhavam o que traziam: a capa, a espada; ou
+preferiam roubar para viver, esperando o arrolamento da armada, que
+todos os annos ia varrer as costas do Malabar, inçadas de piratas arabes
+cujo rei era o Cutiale (Kuuat-Ali).[105] Chegada a epocha,
+lançado o bando, nomeiavam-se os capitães dos navios--logo veremos
+porque artes e maneiras o capitão tratava de angariar a sua gente. A
+_chusma_ da marinhagem compunha-se de negros captivos, agarrados a laço
+pelas ruas. Os soldados recrutavam-se nos bandos já amestrados na rapina
+e que, de volta das expedições, se pavoneavam nas ruas de Goa: era uma
+tropa de salteadores e adulteros, malsins e alcoviteiros, que enchiam a
+cidade de roubos e assassinatos nocturnos, occupando-se a beber nos
+lupanares e a matar por officio e dinheiro. Os _reinoes_ bisonhos
+entravam só nas faltas, até que tivessem por seu turno aprendido como se
+era soldado da India. O capitão dava dez xerafins a cada um dos soldados
+para se prepararem e armarem. Cada qual escolhia as armas que bem lhe
+agradavam, e muitos preferiam gastar o dinheiro em orgias, indo para
+bordo esfarrapados e sem mosquete, nem lança, nem rodella, nem espada:
+com as mãos vazias.
+
+A mesma anarchia se usava no ataque; desembarcavam em chusma, e
+_davam-lhes de Santiago_, cada um conforme podia e sabia. Dispersavam-se
+todos com a mira no que podiam roubar, porque esse era o verdadeiro
+soldo; os dez xerafins um preparo apenas. Geralmente a primeira
+investida era irresistivel: e logo ao ataque se seguiam o incendio, o
+roubo, a matança--muitas vezes tambem a reacção dos inimigos. Dispersos,
+deixando as armas ás portas das casas para irem mais leves a roubar, os
+soldados eram mortos um a um: como succedera no grande desbarato de
+Kalikodu, onde morreu D. Fernando Coutinho; como succedia a cada passo,
+por toda a parte. Com tal systema, a guerra protrahia-se
+indefinidamente; mas era isso o que convinha a todos, porque d'ella
+tiravam o melhor dos seus proventos.
+
+Os soldados roubavam, os capitães roubavam com elles, roubavam-nos a
+elles, cerceando-lhes as rações de arroz avariado e podre. E depois da
+façanha, em que muitos ficavam, depois de forçados a fugir em debandada,
+«os capitães-móres das armadas recolhem-se com os focinhos quebrados e
+com alguns navios perdidos. E ao entrar a barra de Goa, é tanta a
+bombardada que não ha quem se ouça, e ao sahir em terra tanta pluma e
+bisarrice, como se deixaram destruido o mundo.[106]--E não
+é bem, accrescenta outra testemunha, a facilidade com que os capitães da
+India entram em Gôa triumphando, esbombardeando, cheios de plumas e
+pontas de ouro, deixando muitos companheiros descabeçados nas praias de
+Calecut.»
+
+Não é bem, decerto; mas não podia ser de outra fórma; e ainda assim a
+basofia, apesar de ser enorme, não era a peior das fraquezas dos
+capitães da India. Pedro não obedecia a Gonçalo por não ser tão fidalgo
+como elle: eram todos _pontinhos e biquinhos de honra_. Em tendo sido
+capitães de quatro fustas, não queriam mais saír fóra sem bandeira na
+quadra; «e alguns não teem mais noticia da guerra que passear ás damas.»
+O peior, o peior de tudo era que uma vergonhosa corrupção apagava todos
+os brios. Nuno da Cunha dizia que os homens da India eram como os
+doentes de colera, tinham os gostos damnados; e outro accrescentava que
+os viso-reis, ao passarem o cabo da Boa-Esperança, perdiam de todo o
+temor a Deus e ao rei, como perdem a memoria os que passam o Lethes.
+
+Vimos ha pouco o modo por que se guarnecia uma armada; resta dizer que
+as capitanias do mar e as das fortalezas eram compradas por dinheiro aos
+viso-reis: um rapaz imberbe pagou uma d'essas por um serviço de mãos e
+um saleiro de prata; e duzentos pardaus eram _as ordinarias_, isto é, o
+preço usual de uma capitania. Providos no seu lugar, os capitães, que o
+tinham comprado, faziam-se mercadores e contrabandistas, conluiando-se
+com os empregados fiscaes, e associando-se com os mouros e judeus. Os
+capitães de Malaka tinham náus para irem de sua conta, á China, de um
+lado; a Diu, Chala, Daman, Bassaim, do outro. Os de Hormuz commerciavam
+por mar com Bengala, com os portos da costa occidental da peninsula, e
+com o Zamgebar. Como negociantes, á imagem do rei, exigiam tambem em
+favor proprio um monopolio; e d'ahi vinham as desordens e violencias
+brutaes exercidas sobre os indigenas. «A guarda do _cartaz_
+(salvo-conducto que os navios _mouros_ pagavam para navegar no mar da
+India) é o credito do nosso Estado», diziam os homens-bons do Oriente;
+mas por cima de tudo o mais, os capitães, para fazerem prezas, buscavam
+_bicos_ no exame dos passaportes e roubavam os navios e as cargas. Os
+lucros do commercio não lhes bastavam, e o roubo vinha engrossar o
+rendimento das capitanias. Hormuz era, sobre todas, celebre n'esta
+especie. Arrolamentos de guarnições ficticias, matriculas de praças
+mortas, para embolsarem o soldo de suppostos soldados, eram casos
+ordinarios e communs a todas: só d'esta verba um capitão de Hormuz fazia
+30:000 cruzados em tres annos. Com os navios succedia outro tanto:
+fundeados, a apodrecer nas aguas, ou varados na praia, custavam ao
+thesouro da India o preço de guarnições que só existiam no papel. E
+estes roubos eram tão vulgares que não havia pejo em os confessar. Um
+capitão de Hormuz declarava alto e bom som, que não perdoaria um real da
+somma que se tinha decidido a ganhar--300:000 cruzados.
+
+Um certo Alvaro de Noronha, na mesma praça, accusado, responde que outro
+tanto fizera o seu antecessor, «que sendo _apenas um Lima_ levára
+140:000 pardaus: elle _como Noronha_, havia de levar mais». O brazão da
+sua casa ficaria manchado, seus avós corariam, se gente menos nobre lhe
+passasse adiante em qualquer cousa--até no roubo.
+
+E os crimes dos capitães não podiam ser punidos, porque os viso-reis
+faziam outro tanto e mais: quando o exemplo vinha de cima, como se havia
+de condemnar a copia? O governador Lopo Vaz de Sampaio, que era pobre e
+tinha muitos parentes a proteger, foi a Hormuz _para fazer proveito_,
+com doze navios, cujos capitães eram todos seus proximos e afilhados.
+Diogo de Mello era seu cunhado, e isso o deixou impune dos roubos e
+males extraordinarios que tinha commettido. Nas deploraveis intrigas com
+que empolgou o governo a Pero de Mascarenhas, Lopo Vaz, para crear
+partidarios, usou de todos os meios. Pagaram-se todos os _alcances_ por
+meio de folhas de suppostos soldos vencidos; e n'esta _agoa envôlta_
+muitos enriqueceram. A um certo Nuno Redondo, eximio em _falsar sinaes_,
+deveu o governador o alvará com que espoliou o seu émulo.
+
+As principaes rendas dos governadores provinham de diversas especies de
+peculato: as _peitas_, ou luvas que recebiam por todos os empregos; as
+heranças jacentes que roubavam; os cabedaes do indio ou judeu queimado
+pela Inquisição de Goa; os conluios com os _contadores_, para
+extorquirem dinheiro aos funccionarios e litigantes; a falsificação da
+moda; o roubo do cofre dos orfãos; o fornecimento de material de guerra;
+as matriculas de soldados mortos ou nunca arrolados; a amortisação dos
+titulos de divida do governo, comprados no mercado por vil preço, e que
+nas contas iam mettidos pelo seu valor nominal.
+
+A turbulencia e devassidão dos soldados provinham dos crimes dos
+commandantes, ficando por isso impunes; os roubos dos governadores
+authorisavam os dos capitães: mas se o governador fosse punido, não
+poderia acaso varrer-se o lodo e moralisar-se o dominio? Poderia; mas os
+governadores tinham a favor da sua corrupção argumentos muito valiosos,
+e podiam contar com a impunidade. Em Lisboa, salvas momentaneas
+excepções, considerava-se a India como uma vasta seara a colher. «Cartas
+se liam pelas portas, em ajuntamentos de cadeiras, que era uma vergonha
+os descreditos que n'ellas vinham.» Desde o rei até ao mais infimo dos
+moços da chusma, todos eram commerciantes; e o commercio, cuja mira é o
+lucro apenas, tolera tudo, pactua com todas as devassidões. Contam que
+D. Manuel em pessoa achava graça ás manhas e expedientes vis, com que se
+explorava a India, quando os que de lá vinham justificavam as artes com
+a riqueza, augmentando a opulencia faustuosa da côrte. Bastante dinheiro
+e um pedaço de lisonja venciam tudo. Diogo de Mello, de quem já falamos
+como heroe, foi condemnado á morte pela Relação de Lisboa; mas _fiqou_
+em morte civil para S. Thomé; depois para Africa; e, por fim, com dar
+500 cruzados para a Arca-da-Piedade, casando suas filhas com as muitas
+riquezas dos roubos que n'este mundo não pagou.
+
+Pagal-os-hia no outro? Não era de crer; porque o jesuitismo tinha
+descoberto que a simonia não era peccado, sempre que se seguissem umas
+certas regras. O furto deixava de provocar escrupulos de consciencia,
+desde que os casuistas tinham averiguado ser licito cobrar por qualquer
+modo, o que se não póde haver por demanda, de pessoa poderosa. Ora quem
+mais poderoso do que o rei, dono do thesouro da India? Por isso, uma vez
+os conegos de Goa fecharam a sua egreja e suspenderam o culto, quando o
+viso-rei, distante em Katchi, deixou atrazar-se-lhes as pagas. E além
+d'esta justificação de todos os expedientes, os padres confessores da
+_Companhia_, defendendo os que recebiam _luvas_, diziam que o nome de
+_peita_ se entende só do que se toma da parte antes de a despachar, ou
+de concerto que se faça para o negocio[107]. Mas se a parte
+fôr despachada, póde muito bem gratificar depois: é um agradecimento, e
+não uma peita.
+
+Não deixaria, por certo, de valer para muitos esta boa paz em que se
+achavam com o céu; mas é fóra de duvida que os escrupulos religiosos não
+incommodavam a maxima parte, senão quando, na volta para o reino, os
+assaltavam os temporaes da costa d'Africa. A cumplicidade de Deus era
+muito; mas era melhor ainda a cumplicidade das justiças, que na terra
+podiam confiscar, prender e matar. Um chronista erudito escrevia: «O
+imperio romano não se começou a perder, senão depois que se começaram a
+vender os magistrados; e assim eu dou a India por acabada». Não eram só
+venaes, eram tambem analphabetos, os juizes: fazia-se um desembargador
+com _dois debrums de latim_. As testemunhas custavam em Goa a pardau por
+cabeça «e se a um ladrão ou salteador, por conhecido que seja, não
+faltam 4 ou 6 testemunhas que o abonem, como faltarão a um viso-rei?»
+Além d'isso, de que valeriam rigores contra os «roubos, injurias,
+mortes, forças, adulterios com as casadas, viuvas, virgens, orfans... se
+dizem que elrey N. S. é tão cheio de misericordia, que por males que lhe
+façam, tudo perdoa e quita?» Gaspar Correia achava, entretanto,
+indispensavel que se mandasse cortar a cabeça de um viso-rei no caes de
+Goa.
+
+A misericordia de S. A. não consentia isso, mas o povo esteve por um
+nada a fazel-o. Quando o conde da Vidigueira, ex-governador, partia para
+o reino, as turbas derribaram da porta da cidade de Goa a estatua do bis
+avô (Vasco da Gama), enforcaram-no em effigie na verga de uma náo, e
+envenenaram ao neto o pasto dos animaes que levava de vitualha para a
+viagem[108].
+
+Mais graves e decisivos symptomas de desaggregação do ephemero imperio
+da India rebentavam constantemente, e por toda a parte. Ferviam as
+deserções; e grupos de soldados iam arrolar-se nas tropas indigenas, ou
+nos navios arabes, por miseria, por cubiça, por homizio, arrastados pela
+fome ou pelas _moraxas_ infieis, espalhando-se em Kambai, no
+Balutchistân, no Afghanistân e na Persia, de um lado; em Bengala, do
+opposto; alastrando-se pelo Arakan, por Pegú, por Malaka, e Kamboja, até
+á China. Os que militavam debaixo das insignias dos reis e principes
+infieis eram tantos, «que sem muitas lagrimas não se poderá considerar,
+quanto mais escrever... e muitos se põem por soldados em navios de
+chatins, onde, posto que o soldo não seja tão honrado como o d'elrey, é
+mais proveitoso, por ser melhor pago». Em tempo d'elrey D. Sebastião
+havia na India 16:000 portuguezes, e não se poderam mandar 800 homens a
+soccorrer Malaka.
+
+Já em Chala, no tempo de D. Francisco de Almeida, logo no começo da
+occupação da India, 50 marinheiros da armada do viso-rei, perante o
+inimigo, conspiravam para se passar aos _mouros_, que pagavam melhor.
+Estes phenomenos, pois, não provinham directamente da decadencia,
+manifesta agora; mas tinham causas intimas, e logo evidentes no começo
+da empreza.
+
+Além dos que desertavam, outros iam por conta propria estabelecer
+feitorias, ninhos de piratas «buscando pão para comer, por não haver
+armadas ou fortalezas em que lh'o deem». Assim em Tchitâgan, assim em
+Ugoli de Bengala, em Nagapatan na costa oriental da India, em Macau e em
+infinitos lugares.[109]
+
+ * * * * *
+
+Para engrenar esta roda de miserias, foi do reino enviado D. João de
+Castro. O quarto viso-rei da India[110] era, havia muito,
+conhecido pela candida nobreza do seu caracter, pela sua experiencia de
+navegador e guerreiro, e pela vastidão do seu saber, pelo seu amor ás
+boas lettras. Esse amor punha na sombra os dotes ingenuos do seu
+espirito; e esse asceta e amante mystico da natureza, qual o descobrimos
+nos seus escriptos, vestia a toga dos heroes antigos, para apparecer em
+publico na attitude classica do estylo dos seus papeis de Estado e do
+cortejo do seu triumpho em Goa. A preoccupação romana do XVI seculo em
+Portugal tinha em D. João de Castro um fervoroso sectario; e como o
+genio do viso-rei era de uma sinceridade candida, a affectação antiga
+tomava para elle as proporções de um culto. As suas phrases e gestos,
+copiados dos antigos heroes, não eram decerto uma mascara postiça,
+embora a nós se affigurem taes. Affonso de Albuquerque, porém, tinha no
+sangue a força de Alexandre; e a D. João de Castro só a imaginação fazia
+um Numa, e um Cincinnato. Mas a imaginação governava-o tanto, que lhe
+moldou o genio, tornando-o um exemplo vivo do poder que a educação moral
+é capaz de exercer sobre o temperamento. Esta construcção artificial do
+caracter produzia, comtudo, contradicções necessarias. O amor litterario
+da phrase, e o enthusiasmo da copia, arrastavam-no a cousas, senão
+ridiculas, extravagantes. Não ter em casa uma gallinha para comer,
+enfermo, e confessal-o com orgulho, era de certo misturar á honradez
+natural uma ponta de affectação. Quando pediu a Goa trinta mil pardaus
+para levantar a fortaleza de Diu, mandou os cabellos das barbas por
+penhor; mas, com o symbolo, era forçado a dar tambem uma provisão para o
+thesoureiro de Goa, adjudicando ao pagamento do emprestimo o rendimento
+dos cavallos. Todos os casos da sua vida sympathica demonstram a nobreza
+ingenita de um caracter, cunhado artificialmente pela educação litteraria.
+
+Era este o homem capaz de engrenar a roda da decomposição do imperio
+oriental? Não, decerto. A sua propria grandeza na honra valia pouco, por
+ser affectada, embora não fosse fingida. Os homens positivos e
+corrompidos da India sorriam d'esse espectaculoso heroe; e, vendo ao
+mesmo tempo a ingenuidade candida e pura do seu espirito, confiavam
+descansados em que não lhes viria d'ahi mal algum para os seus
+interesses. A propria affectação _antiga_ do viso-rei demonstrava a
+fraqueza do estadista; porque só uma alma ingenua podia ligar tamanho
+amor ás fórmas, e a ingenuidade jámais venceu nos governos. Integro,
+forte, e piedoso no seu fôro intimo, D. João de Castro era um heroe e um
+santo; mas nem essa fórma subjectiva do heroismo, nem a santidade, foram
+nunca os meios de travar o movimento de decomposição de uma sociedade,
+ou de a impellir no caminho do progresso. Para tanto, exigem-se as almas
+duras, os espiritos frios, sem escrupulos, de um João II, ou de um Pombal.
+
+D. João de Castro não tinha em si os dotes de nenhum d'esses; e o seu
+governo ficou inutil como uma bella pagina de moral: á maneira do livro
+em que lhe escreveram a vida, e que é uma boa pagina de rhetorica.[111]
+Ficou, porém, como um sincero protesto: esse é o seu valor
+social-historico. Ficou como um exemplo de bravura temeraria, attestada
+nos cercos de Diu--quando o sultão da Turquia (Soliman II) mandou de
+reforço quatro mil janisaros, ou _rumes_ sob o commando do pacha do
+Cairo, em auxilio de Khuajeh Safar (Cogeçofar), o ministro do rei do
+Gujerât--mas d'esses exemplos abundavam; ficou, por fim, como um typo,
+ao mesmo tempo nobre e interessante, do caracter de um santo e da
+influencia da litteratura no genio dos individuos, ou antes nas suas
+acções.
+
+Se é que alguem havia em Portugal capaz de governar a India, o governo
+de D. João III demonstrou cegueira, escolhendo-o; ainda que, por
+distinctos que fossem os dotes de qualquer outro, é tambem facto que a
+empreza de levantar da anarchia o imperio do Oriente excedia as forças
+humanas, porque os vicios d'elle eram congenitos da sua existencia.
+
+Ao terminar este rapido esboço da vida politica de Portugal no Oriente,
+convém mencionar a opinião do quarto viso-rei e as suas observações,
+transmittidas para Lisboa, em cartas ao monarcha. «Cá está tudo,
+escrevia, em estado que não ha mouro que cuyde haveis de ser de ferro
+para o seu ouro, nem christão que o creio.» E passava a enumerar o
+estendal das miserias. As armadas ficavam podres, que se desfaziam com
+as mãos; e não escapariam ao inverno, sem irem ao fundo. Nenhum dos
+soberanos do Oriente confiaria nem uma palha a um portuguez: a tanto
+chegára o descredito. Fôra um milagre trazer do reino á India, a
+salvamento, a esquadra em que viera. Todos os dias havia em Goa
+lançadas, revoltas e desafios, capazes de maravilhar até a propria
+Italia. Não havia soldado que não tivesse uma ou mais mancebas. Todos
+desobedeciam aos capitães, e cada qual se arvorava em chefe. Por causa
+das mancebas dos soldados havia revoltas e desastres em todas as náus.
+Nas Molucas, os nossos, depois de saquearem e roubarem as casas de um
+certo rei, pozeram-no a ferros e «forçaram suas mulheres com tamanhas
+desonestidades, que se não póde dizer a V. A.--Todos são ladrões, todos,
+sem excepção, chatins. As cobiças e vicios teem cobrado tamanha posse e
+authoridade, que nenhuma cousa já se póde fazer por feia e torpe, que
+dos homens seja estranha. E são mais as almas perdidas dos portuguezes
+que veem á India, do que se salvam as dos gentios que os prégadores
+religiosos convertem á nossa santa fé.»
+
+ [104] V. _Hist. da republica romana_, I, pp. 161-2 e 275-6.
+
+ [105] V. na _Hist. da repub. romana_, I, pp. 188-95, a descripção
+ da pirataria mediterranea: causas identicas produzem
+ resultados eguaes.
+
+ [106] V. _Hist. da republica romana_, I, p. 274.
+
+ [107] _Hist. da rep. romana_, II, p. 187.
+
+ [108] V. _Hist. da rep. romana_, I, p. 356
+
+ [109] V. nas _Raças humanas_, a p. LX-I do vol. I, o estado actual
+ dos restos da colonia portugueza de Malaka; tambem I,
+ pp. 75 e segg.
+
+ [110] 1 D. Francisco d'Almeida 1505 1.º viso-rei
+
+ 2 Affonso de Albuquerque 1509
+
+ 3 Lopo Soares de Albergaria 1515
+
+ 4 Diogo Lopes de Sequeira 1518
+
+ 5 D. Duarte de Menezes 1521
+
+ 6 Vasco da Gama 1524 2.º viso-rei
+
+ 7 D. Henrique de Menezes 1524
+
+ 8 Lopo Vaz de Sampaio 1526
+
+ 9 Nuno da Cunha 1529
+
+ 10 D. Garcia de Noronha 1539 3.º viso-rei
+
+ 11 D. Estevam da Gama 1540
+
+ 12 Martim Affonso de Sousa 1542
+
+ 13 D. João de Castro 1545 4.º viso-rei
+
+ 14 Garcia de Sá 1548
+
+ 15 Jorge Cabral 1549
+
+ 16 D. Affonso de Noronha 1550 5.º viso-rei
+
+ 17 D. Pedro Mascarenhas 1554 6.º viso-rei
+
+ 18 Francisco Barreto 1555
+
+ 19 D. Constantino de Bragança 1558 7.º viso-rei
+
+ 20 D. Francisco Coutinho 1561 8.º viso-rei
+
+ 21 João de Mendonça 1564
+
+ 22 D. Antão de Noronha 1564 9.º viso-rei
+
+ 23 D. Luiz de Athayde 1569 10.º viso-rei
+
+ 24 D. Antonio de Noronha 1571 11.º viso-rei
+
+ 25 Antonio Moniz Barreto 1573
+
+ 26 D. Diogo de Menezes 1576
+
+ 27 D. Luiz de Athayde 1578 12.º viso-rei
+
+ 28 Fernão Telles de Menezes 1581
+
+ 29 D. Francisco Mascarenhas 1581 13.º viso-rei
+
+ 30 D. Duarte de Menezes 1584 14.º viso-rei
+
+ 31 Manuel de Sousa Coutinho 1588
+
+ 32 Mathias de Albuquerque 1591 15.º viso-rei
+
+ 33 D. Francisco da Gama 1597 16.º viso-rei
+
+ Pela constituição do vice reino da India o mandato dos
+ governadores durava tres annos, findos os quaes podiam ser
+ reconduzidos por novo triennio, conforme succedeu a muitos,
+ e se vê do rol supra. Com a nomeação do vice-rei iam, em
+ cartas fechadas e numeradas, as dos substitutos; e quando
+ occorria a morte do governador abria-se a primeira _successão_,
+ na falta do individuo ahi indicado, a segunda, etc. As datas
+ acima inscriptas e a ausencia do titulo do viso-rei mostram
+ quem governou por _successão_. O titulo de vice-rei, excepcional
+ a principio, tornou-se inherente ao cargo de governador
+ desde 1550.
+
+ [111] J. Freire de Andrade, _Vida de João de Castro_.
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+IV
+
+Summario da derrota. Volta ao reino
+
+
+Anarchicamente iniciada, a occupação da India foi, de principio a fim,
+uma exploração anarchica. A politica maritima e commercial de D.
+Francisco de Almeida, o imperio de Affonso de Albuquerque, o virtuoso
+reinado de D. João de Castro, provaram egualmente impotentes para
+organisar o dominio portuguez no Oriente, de um modo regular e
+duradouro. Nem a arte, nem a força, nem o santo exemplo, poderam
+disciplinar a turba dos invasores da India.
+
+Causas intimas, a que de passagem temos alludido, o impediam. A
+Renascença, apresentando aos homens um sem numero de idéas e impressões
+novas, desorganisando os systemas, as crenças, as instituições e todo o
+organismo das sociedades medievaes, abandonou o individuo aos impulsos
+desordenados da natureza, pondo ao mesmo tempo nos seus actos uma
+energia affirmativa até alli desconhecida. Heroismo pessoal e
+naturalista, uma grande explosão de força, a devassidão nos costumes e a
+anarchia nas idéas, eis ahi em que se resume, por este lado, a
+Renascença. A França, a Italia, a Hespanha, a Inglaterra e a Allemanha,
+isto é, a Europa inteira, offerecem ao observador caracteres de
+phisionomia bastantes para suppôr que, se a qualquer d'ellas tivesse
+cabido o destino de occupar as Indias, o seu imperio não teria sido
+melhor nem peior do que foi o nosso.
+
+Porventura, porém, ás nações protestantes que nos succederam com
+superior fortuna no Oriente poderia a rigidez fanatica ter cohibido um
+tanto, e o genio mercantil ter mostrado mais depressa os meios efficazes
+de explorar a India, sem a saquear. A nós faltavam-nos os dois
+requisitos. O catholicismo não era então--como o era a religião
+protestante--uma fé intima e absorvente: era uma convicção para uns, uma
+convenção para outros, uma conveniencia para muitos, e um desvairamento
+para os defensores intolerantes da fé. Havia decerto uma affirmação
+religiosa unanime e violenta; mas desapparecera a unanimidade ingenua e
+espontanea da crença, que radica as religiões. O catholicismo
+atravessára uma crise, de que saíra malferido; e a violencia com que se
+impunha, estava denunciando que ficára sendo, antes uma expressão de
+authoridade, do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia com
+que o povo, sem renegar o catholicismo, fosse caíndo n'um relaxamento; e
+que, ficando com a religião, deixasse de lhe dar significação ou
+importancia moral. Muita devoção e muita devassidão; eis ahi a
+concomitancia resultante, e universalmente provada pelos costumes das
+nações catholicas depois da Renascença.
+
+Apesar do catholicismo, podemos, pois, dizer que não havia no dominio da
+India uma religião capaz de moralisar o imperio, embora houvesse
+exemplos de uma santidade heroica como a de Antonio Galvão, o apostolo
+das Molucas. Mas taes exemplos eram excepções, e faltando o primeiro
+elemento de ordem, quando os motivos sociaes não se tinham definido
+ainda de um modo sufficiente, o individualismo naturalista do tempo
+arrastava os homens a todas as desordens, precipitava-os em todos os
+crimes; e umas e outros cresciam tanto mais, quanto maior era a força
+intima, o arrojo, a temeridade dos guerreiros. Sobre isto, a influencia
+dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental, veiu lançar a
+sua semente de corrupção; e o individuo, desarmado, sem crenças nem
+leis, vivendo ao bel-prazer dos seus instinctos e paixões, caíu n'um
+poço de ignominias, perdendo inteiramente a noção do proprio brio, da
+força, e tornando-se, de um pirata, em um chatim.
+
+A estas causas geraes é necessario addicionar as causas particulares,
+provenientes da incapacidade fortuita dos governos em Lisboa; e
+porventura, se a India se tivesse descoberto meio seculo mais cedo, o
+genio politico de D. João II teria desde o começo evitado graves
+transtornos. D. Manoel e os seus conselheiros tinham para a India um
+plano só: exploral-a, e arrastar a Lisboa, por quaesquer meios, as
+riquezas do Oriente. Systema e programma de governo foram cousas
+desconhecidas; e assim vemos que a occupação muda de caracter com os
+successivos governadores, e ao sabor das idéas ou das inclinações de
+cada um d'elles. A India soffre de todos os inconvenientes dos governos
+electivos e temporarios, sem gozar das vantagens dos governos
+hereditarios; e é n'isso que se fundará sempre a accusação de
+incapacidade que a historia formula contra o nosso dominio.
+
+Porém essa incapacidade trazia raizes de mais fundo. Explorar o Oriente
+commercialmente á hollandeza, era cousa para que o nosso genio nos não
+chamava. Nos estadistas não houve a perspicacia bastante para medirem as
+differenças que distinguiam Portugal de Veneza, e as condições do
+commercio anterior do Oriente das condições em que elle ia achar-se,
+desde que nós chegámos por mar, armados, á India. A geographia dera aos
+arabes o dominio indisputado dos mares das Indias; e era ella tambem que
+fazia dos venezianos os alliados do Turco, e de Veneza o emporio do
+commercio oriental. Para nos substituirmos na India aos arabes, na
+Europa a Veneza, tinhamos contra nós, não só a geographia, mas ainda e
+principalmente outra circumstancia. Indo despojar os arabes da sua
+preza, deviamos commerciar de armas na mão, manter poderosas esquadras
+n'esses mares longinquos outr'ora avassallados pacificamente por visinhos.
+
+Estas causas naturaes, alliadas ás causas egualmente naturaes da falta
+de tirocinio commercial, produziram um genero de exploração, até certo
+ponto novo na historia; porque não é propriamente uma _razzia_, como as
+conquistas dos antigos persas ou assyrios, pois pretende ser um
+commercio; mas, como o commercio só póde fazer-se á sombra da fortaleza
+ou á vista da esquadra, as transacções andam sempre misturadas com
+pilhagens e mortes, com roubos e violencias. Isto dá aos nossos capitães
+da India uma phisionomia original na sua dualidade. Vê-se de um lado um
+mercador, como foram outr'ora os carthaginezes ou phenicios; mas vê-se
+no mesmo homem um soldado, como os de Cyro, ou Assurbanipal.[112]
+
+Uma tal confusão de cousas, um tão grande cahos de elementos oppostos e
+idéas contradictorias, bastavam para arruinar breve e necessariamente o
+imperio; ainda quando, por sobre tudo isto, o caracter do portuguez,
+pouco vivo na sua audacia, bronco, cheio de orgulho ingenuo, mais
+temerario ainda que valente, presumpçoso e fanfarrão, não viesse
+accrescentar difficuldades; ainda quando o ar inebriante, os venenos
+adormentadores, as seducções perigosas, os vicios extenuantes do
+encantado Oriente, não viessem entorpecer os braços e perverter o
+espirito dos occupadores.
+
+ * * * * *
+
+O padre Manuel Godinho, que estava na India pelo meiado do XVII seculo,
+dividia em quatro epochas a historia do nosso dominio oriental. A
+primeira eram os 24 annos do reinado de D. Manuel; a segunda os 35 do de
+D. João III; a terceira vinha do 1557 a 1600; e a quarta, finalmente,
+até á epocha em que elle viajava no Oriente.
+
+Logo na primeira, o dominio portuguez conseguira alargar-se por todas as
+costas e ilhas, desde Sofala até Malaka; isto é, pela Africa Oriental,
+pela Persia, por todo o Hindustan, do Indo ao Ganges, e pela Indo-China.
+Algumas, poucas, cidades propriamente portuguezas, feitorias e
+fortalezas espalhadas por toda a parte, e a vassallagem dos soberanos em
+cujos Estados assentavam: eis ahi a fórma do nosso dominio. Goa e Malaka
+eram nossas; e tributarios da corôa portugueza os soberanos
+(independentes ou subalternos, porque o regime politico indigena era
+feodal)--o de Hormuz, na Persia; o de Tidore, nas Molucas;[113]
+o de Simhala; o das ilhas Malajas; o de Batukala (Batecalá),
+no Kanará; o de Kollan, em Karnataka, na extremidade austral da
+peninsula da India; e na costa de Africa, os de Malinda e de Quilua.
+Além d'estas suzeranias, algumas dellas consignadas apenas nos tratados,
+varias fortalezas garantiam a vassallagem de outros territorios. A de
+Sofala era a primeira, para quem vinha do reino pelo Cabo; depois a de
+Sokotra na ilha d'esse nome, junto ao Jar-Hafun, dominando a embocadura
+do mar Vermelho; d'ahi Hormuz, na garganta do golpho persico; depois, na
+costa occidental da India, descendo para o sul, Chala, Anjediva,
+fronteira a Goa; Kananor, Kalikodu, onde Vasco da Gama primeiro aportou;
+Kadunguluru (Cranganor); Katchi, theatro das façanhas de Duarte Pacheco;
+e Kollam (Coulão), proximo do cabo Kumâri. Sobre as ilhas do oceano
+indico havia a fortaleza de Malaia (Maldiva), e a de Kola-ambu (Colombo)
+em Ceylão; e finalmente, lá para os confins orientaes, Persaim (Pacem)
+no Pégu,[114] e Ternate nas Molucas.
+
+Os annos do segundo periodo viram consolidar-se estes dilatados dominios
+por meio de numerosas fortalezas que, completando o systema esboçado
+pelas antigas, bordavam de feitorias todas as costas. Na oriental da
+peninsula hindustanica, ou de Cholamandalam (Coromandel), levantaram-se
+os presidios de Nagapatan e de Mahabalipurum (Meliapor, S. Thomé).
+Completou-se a occupação da ilha de Ceylão por meio de fortalezas e
+colonias-feitorias[115] de Jafanapatan, de Negombo, de Kalitura
+(Calaturé) e de Galla, na costa occidental; e de Pattikalo (Baticaloa) e
+Trinkonomali (Triquimalé), na oriental. Bassaim, Daman e Diu, além de
+outros pontos fortificados, asseguraram a costa de Kambai. Incessantes
+guerras, bem succedidas, abateram as revoltas, consolidaram dominios
+antigos, ou alargaram o imperio portuguez. Assim, a derrota final do
+Samudri de Kalikodu, do sultão de Kambai, do Shah de Vijajapur
+(Hidalcão), do Nizam de Ahmednagar (Melique, Isamaluco, Nisamaluco, ou
+Nisamoxá), garantiram a posse pacifica de toda a costa occidental da
+India, no Gujerât, em Kontana, no Kanará. As guerras da Indo-China
+firmaram o poder portuguez em Jadithani (Ujantama), no reino de Annam, e
+em Johor: em Bintang (Bintão), na ponta extrema da peninsula de Malaka;
+em Atchim (Achem), na ilha de Sumatra; e a submissão de todo o
+archipelago de Sunda até ás Molucas completou, por oriente, o
+imperio colonial portuguez, reproducção do velho typo grego e
+liby-phenicio.[116] Por occidente, os resultados eram menos decisivos; e
+se as duas costas que levam ao estreito de Bab-el-Mandeb se confessavam
+tributarias de Portugal, nem em Aden ao norte, nem ao sul, na costa de
+Adal, o nosso dominio era positivo. O musulmano guardava com ciume a
+porta do mar santo de Meka; e os mercadores arabes sabiam que, mais ou
+menos embaraçados, jámais seriam de todo expulsos do commercio da India,
+emquanto possuissem o mar Vermelho, onde os inimigos iam, sim, mas não
+conseguiam fixar-se. De arma ao hombro, na sua ilha de Sokotra, e a
+bordo das armadas que cruzavam no golpho do mar da Arabia, o portuguez
+espiava o armamento das esquadras de rumes e os comboyos das náus de
+Meka; mas não faltavam opportunidades para que umas e outras, astuta ou
+violentamente, conseguissem atravessar o estreito, entrando ou saíndo
+para mercadejar ou combater.
+
+No terceiro periodo conserva-se, não se alarga o dominio da corôa; ainda
+que na Africa oriental e na costa do Malabar apparecem novos presidios.
+São, no Kanará, Barkuluru (Barcelor), Mangaluru (Mangalor), e Hanavare
+(Onor). Na Africa, pela derrota e morte do _rei_ de Laum, a fortaleza de
+Patta; mais ao sul a de Mombas, e a da ilha de Pemba; e além do
+Zamgebar, já avassallado, Monomotapa, na costa de Moçambique. Afóra
+isto, funda-se ainda Sirian, no Pégu; e Hugli (Golim), em Bengala, sobre
+o delta do Ganges.
+
+Porém o acontecimento mais grave d'este periodo foi a guerra simultanea
+do Adil-Shah contra Goa, do de Ahmednagar contra Chala, do Samudri
+contra Kalikodu. Os principes indigenas da India Occidental, collocados
+contra o portuguez, foram porém batidos; ao mesmo tempo que o era o de
+Atchin (Achem) atacando Malaka; e que um pirata incommodo e celebre nos
+mares da India, o _Cunhalle_ (Kunji-Ali-Markar), era degollado em Goa
+depois de tomado o seu forte de Pudepatan, d'onde saía ás prezas.
+
+Apesar dos symptomas de decomposição, o imperio commercial portuguez
+attingia, no fim do XVI seculo, o seu apogeu. As frotas singravam,
+carregadas de preciosidades, até aos mares do Japão e da China, d'onde
+traziam a prata e o ouro, sedas e almiscar. Das Molucas vinha o cravo,
+de Sunda a massa e a noz, de Bengala toda a sorte de finissimos tecidos,
+do Pégu os rubis, de Ceylão a canella, de Mausalipatam os diamantes. Na
+pequena ilha de Manaar, junto a Ceylão, carregavam-se as perolas e
+aljofares; em Atchin, na Sumatra, o benjoim; das ilhas Malajas trazia-se
+o ambar; e Ceylão exportava elephantes, por Jafanapatan. Katchi
+contribuia com os angelins, tekas e couramas; toda a costa com a
+pimenta, e com o gengibre o Kanará. Nas ilhas de Sunda, Madurá fornecia
+o salitre, Solor o pau, e Bornéo dava a camphora. De Kambai vinham o
+anil, o lacar, os tecidos; e Chala era celebre pelas suas baetas. Hormuz
+vendia os cavallos da Arabia, e as sedas e alcatifas da Persia: e, do
+outro lado do mar da India, a Africa dava em Sokotra o azebre, em Sofala
+o ouro, em Moçambique o marfim, o ebano e o ambar. Além dos preciosos
+carregamentos, além dos lastros de arroz do Kanará para mantimentos, e
+de pimenta que era um estanco régio, as náus da corôa levavam, de Diu,
+de Hormuz e de Malaka, as grossas quantias de dinheiro que n'esses tres
+pontos estrategicos se cobravam, pelos _cartazes_ que ahi compravam os
+navios mercantes.
+
+As causas de decadencia, tão antigas como a descoberta, mas avolumadas
+todos os dias, precipitaram porém a queda, logo que, pela união a
+Castella, Portugal se achou envolvido nas guerras com a Inglaterra e a
+Hollanda. Mais tarde ou mais cedo, de um ou de outro lado, é, porém,
+fóra de duvida que o dominio portuguez na India, corroido de tão grandes
+lepras, cairia, desde que os protestantes, maritimos e mercadores,
+seguissem caminho do Oriente, pelo cabo da Boa-Esperança, na esteira das
+náus portuguezas. Já por vezes piratas francezes tinham ido por ahi á
+India; e se, com o inglez, nem o hollandez lá fôra ainda, era porque
+lh'o impediam as condições e embaraços que, a religião para um, para o
+outro a independencia, levantavam na Europa. Batida a Hespanha pela
+Inglaterra protestante e pelas Provincias-unidas independentes, ambas
+estas nações, alliadas, iam batel-a na India, com a facilidade com que
+se vence um inimigo doente, mal apercebido, cheio de vicios e molestias.
+
+Os que no meiado do XVII seculo observavam o imperio portuguez, diziam
+no estylo pretencioso do tempo: «Está o estado da India tão velho que só
+o temos _por estado_. Se foi gigante é pigmeu. Se foi muito, não é já
+nada.» Era apenas Goa e Macau, Bassaim, Daman, Diu, Moçambique e Mombas.
+Já não havia armadas nos mares; e os hollandezes e inglezes, fomentando
+a rebellião dos naturaes, e auxiliando-os, substituiam-nos, como nós
+tinhamos substituido os arabes--mas com outra arte e muito juizo.
+
+Uns preferiram a Indo-China, outros as partes occidentaes; e em
+cincoenta annos varreram das costas e ilhas os presidios e feitorias
+portuguezas. O inglez combateu ao lado do persa em Hormuz para nos
+expulsar, e o exito levantou todos os naturaes. O soberano do Arakan
+lança-nos fóra do Pégu, o de Bengala despede-nos de Hugli, perdemos
+assim Mahabalipurum e na contra-costa, Mangaluru, Barkuru, Hanavare,
+Chala, Kalikodu. A perda de Hormuz arrastou comsigo Maskat, com a qual
+se foram todos os estabelecimentos no litoral da Arabia até ao mar
+Vermelho; e desguarnecida a costa do norte, inutil era conservar Sokotra
+e os pontos fronteiros no Adal, que foram abandonados com Quilua em
+Africa, as ilhas de Malaja e Anjediva, e Passir (Pacem) em Sumatra.
+
+Os hollandezes herdavam, do nosso imperio do extremo Oriente, tudo o que
+não voltava a caír no poder dos naturaes. Outro tanto succedia na India.
+Da Africa, Arabia, e Persia, isto é, das fronteiras occidentaes,
+ficavam-nos Mombas e Moçambique;[117] das fronteiras orientaes, o ponto
+isolado de Macau, já na China, e Solor; do centro, restavam apenas uma
+cidade e quatro fortes--memoria, mais do que dominio, em frente d'esses
+mares, onde já se não via tremular a bandeira portugueza em poderosas
+esquadras como as de outro tempo.
+
+Ambon, Tidor, Ternate nas Molucas, Malaka na sua peninsula, Madura e
+toda a Sunda, eram hollandezas; os nossos antigos pontos de
+Ceylão--Kola-ambu e Kalitura, Negombo e Battikalo, Trinkonomali, Galla e
+Jafnapatan, com a ilha de Manaar visinha--pertenciam-lhe tambem; e nas
+duas costas da peninsula hindustanica tinham-nos tomado egualmente
+Negapatan de um lado, Kollam, Kadunguluru, Kananor, e Katchi, do outro.
+Abertamente se proclamava a queda do imperio portuguez, e até os mais
+infimos blasonavam. Um regulo do Arrakan escrevia nos seus estandartes:
+«Fatekan, senhor de Sundiva, derramador do sangue dos christãos e
+destruidor da nação portugueza!»
+
+Tudo estava perdido, e a viagem terminada. Não havia outra cousa a
+fazer, senão voltar a casa: embarcar para o reino, com o producto das
+rapinas, dando a pôpa a esse mundo, onde a nossa missão terminára.
+
+Cada capitão que, nos bons tempos, regressava da India, fazia outro
+tanto: cerrava as arcas atulhadas de ouro e pedrarias, arrumava a
+bagagem no porão, e largava as velas á náu, dizendo adeus para sempre ao
+Oriente!
+
+ * * * * *
+
+Assim aconteceu em 1589 a D. Paulo de Lima, o que assolára Johor, na
+Malasia.[118] Foi em janeiro d'esse anno funesto que embarcou em Goa.
+Vinha rico; e a náu gemia com o peso do carregamento, abarrotada com um
+lastro de pimenta a granel, o convez atulhado de arcas, fardos e
+escravos. O capitão trazia comsigo a esposa e domesticos; e embarcaram
+com elle, de passageiros, numerosas pessoas: soldados de retorno,
+frades, clerigos e mulheres.
+
+Como na India não havia estaleiros onde os navios podessem vêr o fundo e
+passar o calafeto, a náu, já velha e demasiadamente grande, voltava em
+mau estado. Ao embarque benziam-se todos e imploravam a protecção dos
+frades, lembrando-se dos muitos naufragios que o tamanho e má condição
+das náus multipticava todos os dias. Este contava que da esquadra de
+Kalikodu, no anno anterior, tinham desapparecido quatro náus com toda a
+gente, vindo um mastro com a cordoalha da enxarcia entrar pelo rio de
+Daman. Aquelle, que já tres vezes fôra á India, narrava o naufragio
+celebre da _Flamenga_, e chamava ás náus sepultura de homens, e vasos de
+desastres: e um, persignando-se, contrito, dizia que as náus iam e
+vinham tão alastradas de peccados, que nas tormentas se ouviam falar os
+demonios claramente. Os religiosos não declaravam que fosse impossivel,
+mas recommendavam resignação e esperança no auxilio divino; intercalando
+nos seus discursos phrases breves, n'um latim sagrado.[119]
+
+Entretanto a viagem seguia feliz com um mar bonançoso. Todos confiavam
+em que Deus não deixaria de proteger um capitão piedoso como era D.
+Paulo de Lima. Isto, porém, não impedia que fossem commentando as
+tristes cousas do mar; e com tanta maior liberdade, que começavam a
+crer-se salvos d'esses perigos, á medida que viam irem-se approximando
+do terrivel cabo da Africa. Asseguravam que nem um terço dos que
+embarcavam em Lisboa chegavam á India, e isto ninguem impugnava, por ser
+verdade reconhecida; e que a volta ao reino acabava os que as doenças da
+terra, a miseria e a guerra tinham poupado no Oriente. Era um sorvedouro
+de homens, era... De 700 a 800 que cada náu levava, só metade vinha a
+servir. Depois, queixavam-se dos calafates que lançavam os navios ao
+mar, mal feitos e mal vedados; e referiam os numerosos casos de
+agua-aberta, dentro do Tejo, em navios novos. Outros accusavam o modo
+deshumano com que se arrumava a bordo muita mais gente do que a lotação
+permittia: iam como carneiros, a monte, nas toldas, expostos ao sereno
+mortifero das noutes, sem camas nem para os enfermos, respirando o ar
+podre das cobertas: por estas causas havia o escrobuto, as febres
+podres, as dysenterias... como se não bastassem os perigos do mar e dos
+ventos! Na náu em que fôra á India D. Antonio de Noronha iam 900
+pessoas: metade morreu na viagem. Além d'isso os capitães--era
+sabido--roubavam nos mantimentos, e para poupar, escolhiam generos da
+peior especie. Tudo ia avariado e podre, a agua corrompida. N'uma viagem
+de seis mezes, como a da India, abasteciam-se para cinco apenas: d'ahi
+resultavam fomes.
+
+Estas conversas exaltavam muitas vezes os animos. Como punham nos crimes
+o nome dos réus, levantavam-se os partidos; e mais de uma vez houve
+rixas tão bravas, que o capitão se viu forçado a leval-os de roldão,
+para debaixo do castello de prôa; e os frades, atraz, de crucifixos nas
+mãos, prégavam paz e amor, com orações pausadas em latim.
+
+Os fidalgos e religiosos, no chapiteu da pôpa, commentavam as queixas
+dos soldados, reconhecendo que, em verdade, tinham razão; e como eram
+mais letrados, ligavam os effeitos ás causas.
+
+A abundancia da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as
+dimensões dos navios, ainda por cima aggravada pelo excesso das cargas.
+Era funesta uma cubiça, causa de tantas victimas; mas o mal vinha de
+longe, desde o reinado de D. João III. Os navios, mal desenhados, de
+muito porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e
+eram ronceiros... Verdade seja dita, os antigos não tinham podido
+admirar as monstruosas carracas de sete e oito cobertas, com alojamento
+para dois mil homens e porões para mil tonelladas de carga. Cada um
+d'esses navios parecia um reino! Armavam peças de vinte tonelladas de
+peso e calavam mais de dez braças. O costado media cincoenta palmos
+acima do lume de agua á meia náu, e chegava a oitenta nos castellos á
+pôpa e á prôa. Os baileus, que os ligavam, tinham dois andares: e nos
+cestos de gavea cabiam dez ou doze homens, para manobrar os canhões
+pequenos: berços e sacres. Mas as carracas, observavam tambem, eram
+pessimas no mar: boiavam, não andavam. E um dos fidalgos velhos contava
+como era o _S. João_, o _Botafogo_ em que fôra, em 1535, com a divisão
+portugueza, a Tunis, na expedição de Carlos V.
+
+E por fim, esquecidos de males distantes, todos concordavam em admirar a
+grandeza de Portugal, onde havia sempre para mais de 400 navios de
+alto-bordo, além de perto de 2:000 caravelas e vasos menores... porque o
+tempo ia bonança, e o vento fresco levava-os rapidamente, pelo canal de
+Moçambique, direito ao Cabo.
+
+Estavam em 26° quando, porém, quasi á vista da ponta austral de S.
+Lourenço (Madagascar), deram por uma agua que a náu fazia. Tudo correu
+aos porões, clamando contra os calafates, por cuja causa as náus se
+perdiam, andando pelo mar a Deus misericordia, por pouparem quatro
+cruzados. Afastando a carga, viram que a agua era na prôa, abaixo das
+escôas, ás primeiras picas: cuspia as estopas e as pastas de chumbo do
+fôrro, jorrando no porão, d'um torno tamanho que por elle cabia um
+punho. Mas, como o tempo estava bonança, não se affligiram demasiado,
+depois de terem vedado o rombo com saccas de arroz; e foram rumando para
+o sul, até 32°, a oitenta leguas da terra do Natal. Já levavam tres
+mezes de viagem.
+
+Foi então que o vento rondou a sudoeste, o que os forçou a fazerem-se na
+volta do norte. O mar crescia, e com o quebrar das vagas a náu
+desconjuntava-se, e o torno da prôa, vedado com arroz, cedeu. Agua
+aberta e temporal desfeito: era um dia de juizo! Começaram a ouvir-se os
+demonios, e as mulheres a gritar em ais. Cada qual implorava o seu
+santo, a sua Nossa-Senhora, com uma fé simples e espontanea, beijando os
+relicarios e bentinhos, resando em voz alta, confessando em grita os
+seus peccados, arrepellando os cabellos, estorcendo-se nas ancias do
+medo da morte e do inferno. Decorriam os expedientes devotos e pediam-se
+milagres. O capitão levava a bordo uma cruz de ouro com uma particula do
+Santo-Lenho engastada: reliquia, fetiche, em que todos punham as maiores
+esperanças. Amarraram-na com um fio de retroz, ataram-na piedosamente a
+uma espia, lançaram-na pela pôpa, a vêr se moderavam a sanha do mar. A
+náu rolava com as ondas, o Santo-Lenho, seguro na pôpa, com um prégo
+para o afundar, seguia os balanços do navio. Milagre! milagre!
+exclamaram quando o céu aclarou, amainando o vento, parecendo socegar as
+ondas. Os homens--fidalgos, soldados e escravos, brancos, pretos,
+mulatos e amarellos, pozeram mãos á obra, confiando ainda na salvação.
+Havia seis palmos de agua no porão; mas apesar da ancia, revezando-se
+nos aldropes das bombas, não conseguiam vencel-a. Alijaram ao mar toda a
+carga do convez, para libertar as escotilhas e alliviar a náu que vinha
+abarrotada. Nos porões a carga nadava, e as pranchas de brazil, as pipas
+da aguada, e mais volumes, boiando, eram lançados pelos balanços do mar
+contra o costado, batido por fôra com violencia pelas ondas. O temporal
+recrescia; o Santo-Lenho não queria protegel-os! Era um inferno e um
+desespero de estrondos, com o assobiar sinistro do sudoeste na cordoalha
+das enxarcias. Como as bombas não vasavam os porões, estabeleceram
+forcas nas escotilhas, e por ahi tiravam a agua em barris, como de um
+poço. D. Paulo de Lima não fugia ao trabalho, puxando á corda como os
+escravos. Nem comer podiam; e os frades iam de uns a outros, com agua e
+biscoitos, matando-lhes a fome e a sede, combatendo o cansaço com
+exhortações, e recommendando contra a desesperança que confiassem na
+providencia de Deus...
+
+Tres dias, desde 12 a 14 de março, conservaram a fé e os brios. Ao
+quarto viram que trabalhavam debalde. A agua já inundava a coberta, e só
+no convez se podia estar. As bombas não trabalhavam, entupidas com a
+pimenta a granel do porão; e só á custa do muito que iam alijando--todo
+o fructo das rapinas da India!--conseguiam que o navio não sossobrasse.
+Já tinham resolvido varar na terra; mas o temporal crescia sempre, e no
+meio da cerração plumbea, não podiam governar-se. Para mais, uma vaga
+partiu o leme. O vento sudoeste vinha batido em salseiros rijos, que
+despedaçavam o panno. A pobre náu era um destroço, com que as ondas
+brincavam na sua furia. Assim estiveram, perdidos e já sem esperança,
+duas noites e um dia. De 14 para 16, os transes foram medonhos. Em
+montes, estendidos no convez, os homens, ou blasphemavam, ou se
+confessavam em voz alta, accusando todos os seus crimes, os roubos, as
+violencias, os estupros, as matanças da India, e pedindo em lagrimas,
+aos clerigos, que os salvassem das penas do inferno! As mulheres,
+pranteando-se, levantavam um choro de resas, lembravam-se dos seus
+santos favoritos, as _nossa-senhoras_ particulares da sua devoção,
+fazendo votos e promessas. Os frades ouviam as confissões, absolviam,
+deixando semi-mortos, na confiança do perdão, os que antes clamavam em
+desespero, movidos pelo terror. E por sobre tudo isto os salseiros rijos
+do vento assobiavam nas cordas, bradando: morte! morte! «D. Paulo havia
+que aquelle castigo era por seus peccados.»
+
+No dia 16 o tempo clareou um pouco: e no rumo de nor-nordeste que
+levavam, descobriram terra á prôa. A noute de 17 passou-se em afflicções
+e esperanças; mas quando amanheceu, e os olhos ávidos não poderam tornar
+a vêr a costa, decidiram formalmente deitar o batel ao mar. Logo todos
+se precipitaram no barco, ainda suspenso nos apparelhos. A ancia de
+viver enlouquecia-os; e D. Paulo em pé sobre o batel, com a espada e a
+adaga em punho, defendia-o, acutilando os invasores, como n'uma
+abordagem. O seu abatimento, a sua fraqueza, a sua desesperança,
+apagavam-se, varridos pela aurora derradeira. Repellidos os homens, o
+batel desceu e poisou no mar. Depois veiu remando, pela pôpa da náu,
+para receber pela varanda os fidalgos, suas mulheres, e os frades: o
+commum dos infelizes tinha a bordo um tumulo feito. Com os balanços da
+náu e o impulso da vaga, o batel ameaçava despedaçar-se a cada momento
+contra o costado; e as mulheres desciam, penduradas em cordas de lançoes
+e pannos, até ao mar, onde as apanhavam.
+
+Os do batel gritavam, desesperados por partir, porque a gente era demais
+e o barco afogava-se; os da náu gesticulavam, bradando em furia para que
+os salvassem. Uma escrava, com o filho da senhora nos braços, mostrava-o
+de bordo á mãe que lh'o pedia, exigindo que a salvassem, se queriam
+salvar da morte a creança. E os marinheiros condemnavam, em altos gritos
+e phrases insultuosas e obscenas, D. Paulo e os fidalgos, pelos
+abandonarem cruamente a uma morte miseravel. Mais difficil fôra o
+naufragio da nau _Santiago_, no baixo da India, e tinham-se salvado
+todos em jangadas. Não abandonassem os infelizes, lembrando-se apenas de
+si, os fidalgos malditos! Havia tempo para formar uma jangada, onde
+todos iriam, guiados pelo batel.
+
+N'este desespero infernal e no meio da explosão de egoismo feroz houve
+um unico heroe: um frade que não saiu de bordo, sem ter confessado todos
+os condemnados. Absolvidos, lançou-se ao mar, e foi a nado agarrar-se ao
+batel que se afastava pesadamente: o habito salvou-o, porque os do barco
+não ousavam repellir o sacerdote, como repelliam a golpes os mais que
+vinham a nado. Na imminencia da morte, escrupulisavam de matar um padre.
+
+Por toda essa noute de angustias, o batel vogou nas aguas da náu: os
+remos não podiam vencer a força das ondas, e o vento arrojava-o para o
+mar. A carga era demasisada, e reconhecendo isto, deitaram fóra seis
+homens; depois mais seis, ficando de 110, em 98, ao todo. A bordo da náu
+havia mais de outro tanto.
+
+Condemnados a uma morte inevitavel, já confessados e absolvidos, estavam
+resignados. Ainda tinham formado duas jangadas, que o mar logo devorou:
+e depois d'isso unanimemente resolveram morrer, a bem com Deus. Os do
+batel viam no escuro da noute as luzes das velas accesas ao retabulo da
+_nossa-senhora_ do castello da pôpa,[120] diante do qual,
+prostradas de rastos, com os cabellos desgrenhados, chorando, as
+escravas resavam. Os homens faziam procissões sobre o convez, cantando
+ladainhas e hymnos. Pela manhã viram o batel tão perto que chegaram á
+fala; e pediam ainda que os salvassem com vozes tão profundas e
+piedosas, que mettiam medo e terror.
+
+Finalmente, n'um clamor de gritos e n'uma columna de fumo, espadanando a
+agua, a náu sossobrou: no alto do capitel da pôpa a escrava, com a
+creança nos braços, mostrava-a á mãe, desolada no batel. A náu
+sossobrou, enterrando comsigo os homens, as mulheres e «as cousas da
+India, adquiridas pelos meios que Deus sabe».
+
+ * * * * *
+
+A viagem da India não terminou aqui. O imperio submergiu-se, mas os
+salvados foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miseria
+e perdição...
+
+O batel foi dar á terra em 27°20' sul, na terra dos _fumos_, a que os
+cafres chamam Macomata, a Zuluandia. Desembarcaram, os restos da náu da
+India; e achou-se que tinham 5 espingardas, 5 espadas e um barril de
+polvora. Eram ao todo 98. Dos remos fizeram contos de lanças, e ferros
+das verrumas dos carpinteiros. Formaram em columna, seguindo costa em
+fóra, em demanda de Lourenço Marques.
+
+Á frente ia um frade com a cruz alçada; depois D. Pedro de Lima com
+metade da gente e das armas, na cauda o capitão da náu com o resto; e,
+entre ambos, as mulheres, umas de pé, outras em andores levados por
+marinheiros e grumetes, e feitos com os remos e velas do batel. Seguiam
+a columna bandos de cafres, com quem por vezes tinham de pelejar, e que
+fugiam rebolando-se no chão e em gatinhas, como bogios aos saltos.
+Dormiam na areia ao relento; comiam alguma cousa que apanhavam,
+principalmente os caranguejos da praia; levavam os pés empolados e em
+chagas... Em tamanha miseria se tornára o antigo imperio com que tinham
+andado pela India, pela Arabia e por Johor, em Malaka!
+
+Na altura de 26°30' depararam com os restos das jangadas da náo
+_Santiago_; uma sorte commum esperava, no regresso, todos os que vinham
+da India; e esses desastres eram os da nação, que em massa embarcára, e
+agora em massa tambem naufragava. «Estas desventuras e outras, diz o
+chronista, que cada dia se vêem por esta carreira da India poderam
+servir de balizas aos homens, principalmente aos capitães de fortalezas,
+para n'ellas se moderarem com o que Deus á boa mente lhes dá, e deixarem
+viver os pobres».
+
+Os naufragos, miseraveis e famintos, internaram-se em Manhica, achando
+nos cafres a protecção e carinho que negavam no Oriente aos naturaes.
+Dispersaram-se em varias direcções, indo uns por mar a Inhambane; e na
+ilha de Inhaca, D. Paulo «caío em cama, ou para melhor dizer, no chão»,
+e morreu...
+
+Não eram, porém, sómente as ondas que, punindo a desordem e a avidez,
+tragavam os navios podres e abarrotados; eram tambem os nossos inimigos,
+cruzando nos mares da India, que apresavam as náus portuguezas, como
+outr'ora nós tinhamos apresado as dos arabes e egypcios.
+
+Cornelio Honteman, perseguido pela Inquisição de Portugal, fôra para
+Amsterdam, e publicára o que sabia das viagens da India, incitando os
+hollandezes com as perspectivas de grossos lucros. Em 1595 partiu de
+Texel a primeira frota hollandeza que dobrou o cabo da Boa-Esperança; e
+já em 1591 os inglezes tinham feito uma viagem á India. Em 1602
+fundou-se a companhia hollandeza das Indias orientaes: foi no primeiro
+quartel do XVII seculo que o imperio portuguez caíu.
+
+Tudo se desmoronava de um modo simples e rapido. As esquadras perdiam-se
+inteiras; e tantas desgraças abatiam os animos antigos, a ponto de
+tornarem a covardia tão vulgar, como eram de antes a audacia e a
+bravura. Entre outros casos, conta-se o de um philippebote hollandez
+tomando um galeão que montava dobrada artilheria e guarnição. Em 1591 e
+92, de 22 navios de alto bordo saídos da India, só duas náus chegaram ao
+Tejo, porque vinham vasias por velhas. Quer á ida, quer á volta, os
+cruzeiros inimigos caçavam as nossas frotas; e a destruição do poder
+maritimo portuguez garantiu para todo o sempre a destruição consummada
+do imperio do Oriente.
+
+Essa louca viagem, sem pilotos habeis, terminava por um breve naufragio;
+e os mares que, no seculo XV nós vencemos com tamanha audacia,
+vingavam-se, no XVI, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar
+Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos
+nevoeiros prognosticados pelos geographos arabes, no meio das trevas da
+nossa perversidade. A natureza offendida punia-nos com a morte; e o
+destino implacavel retribuia-nos todos os males com que tinhamos
+flagellado o proximo.
+
+ [112] V. _Raças humanas_, II, pp. 185-91, e _Taboas de Chronol._,
+ pp. 45-9.
+
+ [113] V. ácerca dos costumes dos indigenas. _Quadro das instit.
+ primit._, pp. 14-5, 158, 160-1, 174; e _Regime das riquezas_,
+ pp. 56, 65, 85, 109.
+
+ [114] V. _Regime das riquezas_, p. 109.
+
+ [115] V. _O Brazil e as col. port._, L. IV, 3.
+
+ [116] V. _Hist. da rep. romana_, I, pp. 183-91.
+
+ [117] V. _O Brazil e as colon. Port._ (2.ª ed.), p. 36.
+
+ [118] V. _Hist. da republica romana_, II, p. 185.
+
+ [119] V. a estatistica dos naufragios no _Brazil e as colonias
+ port._ (2.ª ed.), p. 34, _nota_.
+
+ [120] V. _Hist. da republ. romana_, I. pag. 194.
+
+
+FIM DO TOMO PRIMEIRO
+
+ * * * * *
+
+
+
+
+INDICE
+
+DO
+
+TOMO PRIMEIRO
+
+
+ ADVERTENCIA
+ LIVRO PRIMEIRO
+ Descripção de Portugal
+ I. Os lusitanos
+ II. Fundamentos da nacionalidade
+ III. Geographia portugueza
+ IV. A terra e o homem
+ V. A historia nacional
+ LIVRO SEGUNDO
+ HISTORIA DA INDEPENDENCIA
+ (DYNASTIA DE BORGONHA: 1109-1385)
+ I. A separação de Portugal
+ II. A conquista do Al-Gharb
+ III. A monarchia e a justiça
+ IV. A crise
+ LIVRO TERCEIRO
+ A conquista do Mar Tenebroso
+ (DYNASTIA DE AVIZ: 1385-1500)
+ I. O Infante D. Henrique
+ II. Portugal em Africa
+ III. O principe perfeito
+ IV. Em demanda do Preste-Joham das Indias
+ LIVRO QUARTO
+ A viagem da India
+ (1500-1640)
+ I. D. Francisco d'Almeida
+ II. Affonso de Albuquerque
+ III. D. João de Castro
+ IV. Summario da derrota. Volta ao reino
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by
+Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
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+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
+and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
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+Foundation
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+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
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+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
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+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
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+information can be found at the Foundation's web site and official
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+Literary Archive Foundation
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+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
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+
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+ <title>História de Portugal, volume 1, por Oliveira Martins</title>
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+
+<pre>
+
+The Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by
+Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
+This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
+almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
+re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
+with this eBook or online at www.gutenberg.org
+
+
+Title: Historia de Portugal: Tomo I
+
+Author: Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
+Release Date: November 21, 2010 [EBook #34387]
+
+Language: Portuguese
+
+Character set encoding: ISO-8859-1
+
+*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I ***
+
+
+
+
+Produced by Pedro Saborano
+
+
+
+
+
+</pre>
+
+<p> </p>
+
+<div class="ntransc">
+<p><b>Notas de transcrição:</b></p>
+
+<p>O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1908.</p>
+
+<p>Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido corrigidos
+apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que
+por isso não foram assinalados.</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.8em;">HISTORIA DE PORTUGAL</p>
+
+<hr style="width: 15%">
+
+<p style="font-size: 1.2em;">TOMO I</p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center; font-size: 1.6em;">J. P. OLIVEIRA MARTINS</p>
+
+<hr style="width: 15%">
+
+<p style="text-align:center; font-size: 1.2em;">OBRAS COMPLETAS</p>
+
+<p style="margin-left:2em;">I. Historia nacional:</p>
+
+<p class="list">H<small>ISTORIA DA CIVILISAÇÃO IBERICA</small>, 4.ª ed. (1897),
+1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p>
+
+<p class="list">H<small>ISTORIA DE </small>P<small>ORTUGAL</small>, 7.ª ed.
+(1908), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p>
+
+<p class="list">O B<small>RAZIL E AS COLONIAS PORTUGUEZAS</small>, 4.ª ed.
+(1888). 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p>
+
+<p class="list">P<small>ORTUGAL CONTEMPORANEO</small>, 4.ª ed. (1907). 2 vol.,
+br. 2$000 rs. Enc. 2$400.</p>
+
+<p class="list">P<small>ORTUGAL NOS MARES</small>, (1889), 1 vol., br. 700 rs.
+Enc. 900.</p>
+
+<p class="list">C<small>AMÕES, OS </small>L<small>USIADAS E A
+</small>R<small>ENASCENÇA EM </small>P<small>ORTUGAL</small>, (1891). 1 vol.,
+br. 600 rs. Enc. 800.</p>
+
+<p class="list">N<small>AVEGACIONES Y DESCUBRIMIENTOS DE LOS
+PORTUGUESES</small>, (<em>ed. do Ateneo de Madrid</em>, 1892). 1 vol. (não
+entrou no commercio.)</p>
+
+<p class="list">A V<small>IDA DE
+</small>N<small>UN'</small>A<small>LVARES</small>, 2.ª ed. (1894). 1 vol., br.
+2$000 rs. Cart. 2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.</p>
+
+<p class="list">O<small>S </small>F<small>ILHOS DE </small>D. J<small>OÃO
+</small>I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p>
+
+<p class="list">O P<small>RINCIPE </small>P<small>ERFEITO</small>, (1895), 1
+vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas doiradas, 3$200.</p>
+
+<p style="margin-left:2em;">II. Historia geral:</p>
+
+<p class="list">E<small>LEMENTOS DE ANTHROPOLOGIA</small>, 4.ª ed. (1885), 1
+vol., br. 700 rs. Enc. 900.</p>
+
+<p class="list">A<small>S RAÇAS HUMANAS E A CIVILISAÇÃO PRIMITIVA</small>, 2
+vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.</p>
+
+<p class="list">S<small>YSTEMA DOS MYTHOS RELIGIOSOS</small>, 3.ª ed. (1895), 1
+vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p>
+
+<p class="list">Q<small>UADRO DAS INSTITUIÇÕES PRIMITIVAS</small>, 2.ª ed.
+(1893), 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p>
+
+<p class="list">O <small>REGIME DAS RIQUEZAS</small>, 2.ª ed. (1894), 1 vol.,
+br. 600 rs. Enc. 800.</p>
+
+<p class="list">H<small>ISTORIA DA REPUBLICA ROMANA</small>, 2.ª ed., 1897, 2
+vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.</p>
+
+<p class="list">O H<small>ELLENISMO E A CIVILISAÇÃO CHRISTÃ</small>, 2.ª ed., 1
+vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.</p>
+
+<p class="list">T<small>ABOAS DE CHRONOLOGIA E GEOGRAPHIA HISTORICA</small>,
+(1884), 1 vol., br. 1$000 rs. Encadernado 1$200.</p>
+
+<p style="margin-left:2em;">III. Varia:</p>
+
+<p class="list">A <small>CIRCULAÇÃO FIDUCIARIA</small>, 2.ª ed., 1 vol., br.
+800 rs. Enc. 1$000.</p>
+
+<p class="list">A <small>REORGANISAÇÃO DO BANCO DE
+</small>P<small>ORTUGAL</small>, opusculo, (1877), br. 150 rs.</p>
+
+<p class="list">O <small>ARTIGO «</small>B<small>ANCO»</small>, no
+<em>Diccionario Universal Portuguez</em>, (1877), 1 vol., br. 500.</p>
+
+<p class="list">P<small>OLITICA E ECONOMIA NACIONAL</small>, (1885), 1 vol.,
+br. 700 rs.</p>
+
+<p class="list">P<small>ROJECTO DE LEI DE FOMENTO RURAL</small>,
+<em>apresentado á camara dos deputados na sessão de 1887</em>, 1 vol., br. 300
+rs.</p>
+
+<p class="list">E<small>LOGIO HISTORICO DE </small>A<small>NSELMO </small>J.
+B<small>RAAMCAMP</small>, <em>ed. part.</em> (1886), 1 vol. (esgotado).</p>
+
+<p class="list">T<small>HEOPHILO </small>B<small>RAGA E O
+</small>C<small>ANCIONEIRO</small>, <em>opusculo</em>, (1869) (esgotado).</p>
+
+<p class="list">O S<small>OCIALISMO</small>, (1872-3), 2 vol., br. 1$200.
+(Esgotado)</p>
+
+<p class="list">A<small>S ELEIÇÕES</small>, <em>opusculo</em>, (1878), br. 200
+rs.</p>
+
+<p class="list">C<small>ARTEIRA DE UM JORNALISTA</small>: I. <em>Portugal em
+Africa</em>, (1891), 1 vol., br. 400 rs.</p>
+
+<p class="list">A I<small>NGLATERRA DE HOJE, CARTAS DE UM VIAJANTE</small>, 2.ª
+ed., 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.</p>
+
+<p class="list">C<small>ARTAS </small>P<small>ENINSULARES</small>, (1895), 1
+vol., br. 600 rs. Enc. 800.<span class="pn"><a
+name="pag_III">{pg. III}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p style="font-size: 1.6em;">HISTORIA</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">DE</p>
+
+<p style="font-size: 2.2em;">PORTUGAL</p>
+
+<p>POR</p>
+
+<p style="font-size: 1.6em;">J. P. Oliveira Martins</p>
+
+<p style="font-size: 1.2em;">Setima edição</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="font-size: 1.4em;">TOMO PRIMEIRO</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p>1908<br>
+P<small>ARCERIA </small>A<small>NTONIO </small>M<small>ARIA
+</small>P<small>EREIRA</small><br>
+<small>LIVRARIA EDITORA</small><br>
+Rua Augusta&mdash;44 a 54<br>
+LISBOA<span class="pn"><a name="pag_IV">{pg. IV}</a></span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<hr>
+
+<div style="text-align:center;">
+<p>Composto e impresso na typographia<br>
+<small>DA</small><br>
+Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA<br>
+<small>Rua Augusta, 44 a 54</small><br>
+LISBOA<span class="pn"><a name="pag_V">{pg. V}</a></span></p>
+</div>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<p style="text-align:center;">Á<br>
+MEMORIA<br>
+<small>DE</small><br>
+<big>ALEXANDRE HERCULANO</big><br>
+mestre e amigo<span class="pn"><a name="pag_VI">{pg. VI}</a><br>
+<a name="pag_VII">{pg. VII}</a></span></p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<div id="corpo">
+<h2><a name="SECTION001000">ADVERTENCIA</a></h2>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p>«Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi
+ erradas, como dos valentes &amp; nobres feytos. Dos erros porque se delles
+ soubessem guardar: &amp; dos valentes &amp; nobres feytos aos bõos fezessem
+ cobiça auer pera as semelhentes cousas faseram.»</p>
+
+ <p style="margin-left:2em;"><em>Coronica do Condestabre.</em></p>
+</blockquote>
+
+<p> </p>
+
+<p>A historia é sobre tudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso vêr,
+sáe de todos os eminentes progressos ultimamente realisados no fôro das
+sciencias sociaes. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a critica a
+melhor bussola da intelligencia: por isso a historia exige sobretudo observação
+directa das fontes primordiaes, pintura verdadeira dos sentimentos, descripção
+fiel dos acontecimentos, e, ao lado d'isto, a frieza impassivel do critico,
+para coordenar, comparar, de um modo impessoal ou objectivo, o systema dos
+sentimentos geradores e dos actos positivos.</p>
+
+<p>O desenvolvimento do criterio racional e o predominio crescente dos
+processos proprios das sciencias, baniram os modelos antigos e fizeram da
+historia um genero novo. Nem os discursos moraes ou litterarios <em>sobre</em>
+a historia, á maneira do <small>XVII</small><span class="pn"><a
+name="pag_VIII">{pg. VIII}</a></span> seculo, nem o doutrinarismo secco do
+<small>XVIII</small> que sobre factos e instituições mal conhecidos construia
+systemas geraes chimericos, nem a opinião, muito seguida em nossos dias, de
+considerar a historia unicamente nos seus phenomenos exteriores, averiguando
+eruditamente as epochas e as condições dos successos, merecem, a nosso vêr,
+imitação.</p>
+
+<p>Todos estes systemas, porém, ensaios successivos para determinar o genero de
+um modo definitivo, teem um lado de verdade aproveitavel. Os modelos classicos
+fizeram sentir o caracter moral da historia; os modelos abstractos, a
+necessidade de comprehender os phenomenos n'um systema de leis geraes; os
+modelos eruditos, finalmente, a condição imprescriptivel de um conhecimento
+real e positivo da chronologia e dos elementos que compõem o <em>meio</em>
+externo ou phisico das sociedades.<a name="tex2html1"
+href="#foot1129"><sup>[1]</sup></a></p>
+
+<p>Nada d'isto, porém, é ainda realmente a historia, embora todas essas
+condições sejam indispensaveis para a sua comprehensão. O intimo e essencial
+consiste no systema das instituições e no systema das idéas collectivas, que
+são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o individuo,
+consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes o dos caracteres, na
+pintura animada dos logares e accessorios que formam o scenario do theatro
+historico.</p>
+
+<p>Estes dois aspectos são egualmente essenciaes; porque a coexistencia
+independente dos motivos collectivos e naturaes, e dos actos individuaes, é um
+facto incontestavel na vida das sociedades.</p>
+
+<p>Na <em>Historia da civilização iberica</em> tratámos de estudar o systema de
+instituições e de idéas da sociedade peninsular, para expôr a sua vida
+collectiva,<span class="pn"><a name="pag_IX">{pg. IX}</a></span> organica e moral.
+Tomámos ahi a sociedade como um individuo, e procurámos retratal-o phisica e
+moralmente. Agora o nosso proposito é diverso. Tratando da historia particular
+portugueza, somos levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos
+essenciaes da historia geral. A sociedade portugueza, como molecula que é do
+organismo social iberico, peninsular, ou hespanhol&mdash;estas tres expressões teem
+aqui um alcance equivalente&mdash;obedeceu, nos seus movimentos collectivos, ao
+systema de causas e condições proprias da historia geral da peninsula
+hispanica. Por isso procurámos sempre, na obra referida, indicar o modo pelo
+qual as leis geraes se realisavam simultaneamente nas duas nações hespanholas:
+duas, porque a historia assim constituiu politicamente a Peninsula.</p>
+
+<p>Metade da historia portugueza está, portanto, escripta na <em>Historia da
+civilisação iberica</em>: a metade que trata da vida da sociedade, como um ser
+organico. Comprehender-se-ha, pois, que nos abstenhamos agora de repetir o que
+está dito, e que nos limitemos a enviar o leitor para esse livro; indicando,
+quando fôr necessario, o logar onde poderá encontrar a explicação das causas
+geraes a que no texto se tem de alludir.</p>
+
+<p>Resta fazer a segunda metade: resta caracterizar o que ha de particular na
+historia portugueza; resta fazer viver os seus homens, e representar de um modo
+real a scena em que se agitam: tal é o programma d'este livro, cujas
+difficuldades de execução excedem em muito as do anterior. N'esse, bastavam o
+conhecimento e o pensamento: um para nos dizer como foram as cousas, outro para
+nos indicar o principio e o systema da civilisação. Agora carece-se do faro
+especial da intuição historica, e d'um estylo que traduza a animação
+propria<span class="pn"><a name="pag_X">{pg. X}</a></span> das cousas vivas. Toda a
+longanimidade do leitor será pois necessaria para desculpar as imperfeições da
+obra.</p>
+
+<p>É mistér indicar ainda outro assumpto e prevenir uma impressão, natural em
+quem ler successivamente as duas obras. A <em>Historia de Portugal</em>
+consiste n'uma serie de quadros, em que, na maxima parte das vezes, os
+caracteres dos homens, os seus actos, os motivos immediatos que os determinam e
+as condições e modo porque se realisam, merecem antes a nossa reprovação do que
+o nosso applauso. Crimes brutaes, paixões vis, abjecções e miserias, compõem,
+por via de regra, a existencia humana; e por isso mais de um moralista tem
+condemnado o estudo da historia como pernicioso para a educação.&mdash;Por outro
+lado, a <em>Historia da civilisação iberica</em> respira um enthusiasmo
+optimista que, ao primeiro exame, pareceria contradictorio com o pessimo e
+mesquinho caracter que as acções dos homens apresentam. Um exemplo bastará para
+demonstrar este antagonismo: além considerámos as conquistas americanas e
+asiaticas uma obra heroica, e agora veremos que montanha de ignominias foi o
+imperio portuguez no Oriente.</p>
+
+<p>Esta contradicção, real para o criterio abstracto, não existe, porém, para o
+criterio historico. Toda a boa philosophia nos diz que o homem real é a imagem
+rude de um homem ideal, que essa imagem vive no mundo inconscientemente, e que
+todas as acções dos homens, maculadas de defeitos e vicios, obedecem a um
+systema de leis, idealmente sublimes. É esta verdade que o povo consagrou
+quando formulou o adagio: Deus escreve direito por linhas tortas.</p>
+
+<p>Pesada esta consideração, que não podemos agora desenvolver de um modo
+cabal, vêr-se-ha como na<span class="pn"><a name="pag_XI">{pg. XI}</a></span>
+historia de uma civilisação os caracteres particulares das acções dos homens,
+fundindo-se no systema geral de principios e leis que os determinam, perdem
+individualidade, e não valem senão como elementos componentes de um todo
+superior: que sejam humanamente bons ou maus, importa nada, porque só nos
+cumpre attender ao destino que os determina, e a moral é um criterio
+incompetente para a esphera ou categoria collectiva de que se trata.</p>
+
+<p>Na esphera dos movimentos de instituições e idéas, na categoria da vida
+social, as acções dos homens são sempre absolutamente excellentes; porque a
+supremacia da sociedade sobre o individuo consiste no facto da existencia de
+uma consciencia superior da Idéa, no organismo que se diz sociedade. Os poetas
+épicos, seres privilegiados cuja voz não é propria, senão collectiva, são os
+orgãos vivos da consciencia de uma civilisação: assim Camões sente e exprime a
+grandeza historica do imperio das Indias, que na propria opinião particular do
+poeta são uma Babylonia, um poço de ignominias.</p>
+
+<p>Esclarecido este lado do problema, embora de um modo incompleto e rapido,
+resta-nos dizer que na segunda metade da historia, na que trata dos individuos
+e dos episodios, na que pinta os costumes e os pensamentos, o criterio é outro:
+por isso affirmámos que a historia é uma lição moral. Nos vicios e nas
+virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos individuos
+que foram, ha um exemplo excellente. Na sabedoria ou na loucura dos actos
+politicos e administrativos passados ha um meio de prevenir e encaminhar a
+direcção dos actos futuros. A historia é, n'esse sentido, a grande mestra da
+vida.<span class="pn"><a name="pag_XII">{pg. XII}</a></span></p>
+
+<p>Se os vicios, os erros, o crime e a loucura predominam sobre as virtudes, os
+acertos, a nobreza e a sabedoria dos homens, como sem duvida predominam, iremos
+por isso condemnar a historia por perniciosa? Não, decerto. Apresentar crua e
+realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no homem uma
+fibra intima de aspirações ideaes e justas, sempre viva, embora mais ou menos
+obliterada. Conhecer-se a si proprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a
+principal condição da virtude.<span class="pn"><a
+name="pag_1">{pg. 1}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1129" href="#tex2html1"><sup>[1]</sup></a> V. <em>Th. da
+ hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp.
+ <small>VI-XXII</small>.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h1><big>HISTORIA DE PORTUGAL</big></h1>
+<hr>
+<p>&nbsp;</p>
+
+<h2><a name="SECTION002100"><big>LIVRO PRIMEIRO</big><br>
+Descripção de Portugal</a> </h2>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p>«Onde a terra se acaba e o mar começa.»<br>
+                    C<small>AMÕES</small>, <em>Lusiadas</em>,
+ <small>III</small>, 20</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002110">I<br>
+Os lusitanos</a> </h3>
+
+<p>«O povo desde o qual os historiadores têem tecido a genealogia portugueza
+está achado: é o dos lusitanos. Na opinião d'esses escriptores, atravez de
+todas as phases politicas e sociaes da Hespanha, durante mais de tres mil
+annos, aquella raça de celtas soube sempre, como Anteu, erguer-se viva e forte:
+reproduzir-se, immortal na sua essencia; e nós os portuguezes do seculo
+<small>XIX</small> temos a honra de ser os seus legitimos herdeiros e
+representantes.»</p>
+
+<p>Com esta ironia encoberta mas grave, fustigava Alexandre Herculano<a
+name="tex2html2" href="#foot1130"><sup>[2]</sup></a> os seus predecessores,
+historiographos nacionaes, e, segurando com valor a<span class="pn"><a
+name="pag_2">{pg. 2}</a></span> férula magistral, castigava o povo culpado de
+acreditar n'uma tradição que tem para o erudito, além de outros defeitos, o de
+ser recente. Só desde o fim do <small>XV</small> seculo o nome de
+<em>lusitani</em> começa a substituir o do <em>portugalenses</em>, nos livros;
+mas essa innovação, perpetuando-se entre os eruditos, torna-se por fim uma
+crença nacional e quasi popular.</p>
+
+<p>Que valor merece a innovação? Nenhum; e por varios motivos. «Tudo falta: a
+conveniencia de limites territoriaes, a identidade da raça, a filiação da
+lingua, para estabelecermos uma transição natural entre os povos barbaros e
+nós.» Ora estes argumentos, decisivos para o sabio historiador, não nos parece
+a nós&mdash;perdoe-se-nos o atrevimento&mdash;que o sejam. Outro tanto succede com todas
+as nações, ou quasi todas, desde que procuramos estabelecer a arvore
+genealogica, indo aos arcanos de um passado ignoto reconhecer a phisionomia dos
+mortos de muitos seculos e determinar d'entre elles os primeiros avós de uma
+nação. Seria absurdo exigir conveniencia de limites territoriaes, ou por outra,
+identidade de fronteiras, entre a localisação de uma tribu primitiva, e a de
+uma nação moderna: nem aos povos que hoje mais indiscutivelmente representam,
+pura, uma raça, poderia fazer-se tal exigencia. Se ha ou não identidade de
+raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negal-o é
+proceder dogmatica e não scientificamente.</p>
+
+<p>Allega-se que são indecisas as noções de Strabão com respeito ás fronteiras
+dos lusitanos; diz-se mais que não coincidem com as que Augusto deu á provincia
+da Lusitania.<a name="tex2html3" href="#foot1131"><sup>[3]</sup></a> O
+geographo antigo,<span class="pn"><a name="pag_3">{pg. 3}</a></span> ora parece
+incluir os callaicos nos lusitanos, entendendo as fronteiras d'estes ultimos
+até á costa do norte da Peninsula; ora os separa, dando-lhes o Douro como
+divisoria. A demarcação de Augusto adoptou esta segunda versão. As fronteiras
+orientaes extendiam-se, quer para o geographo, quer, depois, para a
+administração romana, muito além da raia portugueza, incluindo Salamanca, e
+subindo quasi até proximo de Toledo. D'alli para o sul, e depois para o
+nascente, seguindo o curso angular do Guadiana, os lusitanos de Strabão e a
+Lusitania de Augusto tinham como limite este rio, quasi desde as suas fontes, e
+até á sua foz, na costa do nosso Algarve.</p>
+
+<p>Se ligassemos, pois, um valor positivo ás resenhas dos antigos geographos, e
+um alcance social-historico á identidade das fronteiras primitivas e actuaes,
+parece-nos que poucas nações poderiam com melhores motivos achar na etimologia
+dos antigos o fundamento da sua vida moderna. Alargue-se a fronteira do norte
+ao Minho (conquista da Lusitania sobre a Gallecia) retráia-se a fronteira de
+leste ao Douro (conquista da Tarraconense sobre a Lusitania) e teremos feito
+coincidir os antigos com as actuaes limites. Qual é, dos primitivos, o povo que
+no decurso da sua vida historica deixou de conquistar e de ser conquistado?
+qual é o que não ganhou ou não perdeu, de um lado ou d'outro, sobre ou para os
+visinhos?</p>
+
+<p>Se a maneira porque, a partir do seculo <small>XV</small> ou
+<small>XVI</small>, os historiographos nacionaes filiam o Portugal moderno na
+antiga Lusitania justifica as fundadas ironias do nosso grande historiador, não
+nos parece que o processo por elle seguido para negar a doutrina, seja
+conveniente, nem até verdadeira a opinião de que entre portugueses e lusitanos
+nada<span class="pn"><a name="pag_4">{pg. 4}</a></span> haja de commum. Quando hoje
+vimos renascer de um modo erudito, e d'alli affirmar-se no espirito popular, a
+tradição nacional germanica, a italiana e até a romania: que valor tem o facto
+da tradição lusitana ter estado obliterada por seculos, para só resurgir n'uma
+epocha relativamente proxima e de um modo erudito? Se os portuguezes da
+Edade-media não sabiam de seus avós lusitanos, acaso saberiam de seus avós,
+italos, romanos ou teutonicos, os piemonteses, os vallacos, ou os prussianos
+até ao <small>XVIII</small> seculo? Acaso, tambem, ser-lhes-ha mais possivel do
+que a nós estabelecer uma transição natural e uma historia ininterrupta desde
+as primeiras edades até ás modernas? Não, decerto. Se a erudição podesse
+demonstrar a unidade da raça iberica, então os lusitanos baixariam á condição
+de uma variedade sem autonomia; facto é, porém, que pouco ou nada sabemos, nem
+de iberos em geral, nem de lusitanos em particular, e por isso as fabulas dos
+velhos antiquarios não merecem a attenção moderna. Não haverá, porém, acaso
+outro caminho para atacar este problema? Á falta de monumentos escriptos, nada
+poderá valer-nos? Entre a fabula ingenua dos antiquarios e as exigencias seccas
+e formaes dos eruditos modernos, não estará outra via? Affigura-se-nos que
+sim.<a name="tex2html4" href="#foot1132"><sup>[4]</sup></a></p>
+
+<p>Todos reconhecem hoje a indestructivel tenacidade das populações primitivas.
+Raizes profundas que nenhuma charrua destroe apesar de revolta a leiva pelo
+ferro das conquistas, depois de esmagadas as folhas e troncos pelo tropear dos
+cavallos de guerra, depois de queimados e reduzidos a cinzas pelos incendios
+das invasões: embora<span class="pn"><a name="pag_5">{pg. 5}</a></span> se lancem
+novas sementes á terra e nasçam vegetações novas, essas raizes profundas tornam
+a reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu, e afinal convertem ou
+esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas invencivel
+as plantas intrusas.</p>
+
+<p>A permanencia dos caracteres primitivos dos povos, facto hoje indiscutivel,
+permitte fazer&mdash;consinta-se-nos a expressão&mdash;a historia ao inverso: julgar de
+hoje para hontem, inferir do actual para o passado. A questão da raça lusitana
+apresenta-se-nos pois n'estes termos: ha uma originalidade collectiva no povo
+portuguez, em frente dos demais povos da Peninsula? Crêmos que a ha
+circumscripta porém a traços secundarios. Crêmos que as diversas populações da
+Hespanha, individualisadas sim, formam, comtudo, no seu conjuncto, um corpo
+ethnologico dotado de caracteres geraes communs a todas. A unidade da historia
+peninsular, apesar do dualismo politico dos tempos modernos, é a prova mais
+patente d'esta opinião.<a name="tex2html5" href="#foot1133"><sup>[5]</sup></a>
+</p>
+
+<p>Esse dualismo, porém, leva-nos tambem a crêr que entre as diversas tribus
+ibericas, a lusitana era, senão a mais, uma das mais individualmente
+caracterisadas. Não esquecemos, decerto, a influencia posterior dos successos
+da historia particular portugueza: mas elles, por si só, não bastam para
+explicar o feitio diverso com que cousas identicas se representam ao nosso
+espirito nacional. Ha no genio portuguez o que quer que é de vago e fugitivo,
+que contrasta com a terminante affirmativa do castelhano; ha no heroismo
+lusitano uma nobreza que differe da furia dos nossos visinhos; ha nas nossas
+letras e no nosso pensamento uma nota<span class="pn"><a
+name="pag_6">{pg. 6}</a></span> profunda ou sentimental, ironica ou meiga, que em
+vão se buscaria na historia da civilisação castelhana, violenta sem
+profundidade, apaixonada mas sem entranhas, capaz de invectivas mas alheia a
+toda a ironia, amante sem meiguice, magnanima sem caridade, mais que humana
+muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a entestar com as féras.
+Tragica e ardente sempre, a historia hespanhola differe da portugueza que é
+mais propriamente epica; e as differenças da historia traduzem as
+dessimilhanças do caracter.</p>
+
+<p>Poderemos regressar agora ao passado, e perguntar-lhe a causa primaria
+d'este phenomeno? Decerto não. Ou sombras impenetraveis o encobrem, ou a
+escassez do nosso saber nos não deixou ainda desvendal-o. Como hypothese&mdash;e do
+nosso atrevimento será escusa a nossa modestia&mdash;somos levados a crêr que a
+individualidade do caracter dos lusitanos (quer n'elles incluamos os callaicos,
+quer não) provém de uma dose maior de sangue celtico ou celta (questionou-se
+outr'ora sobre isto) que gira em nossas veias, de mistura com o nosso sangue
+iberico. Os nomes proprios de logares, os nomes de pessoas e divindades,
+tirados das inscripções latinas da Lusitania e da Tarraconense, que constituem
+o nosso Portugal, provam a preponderancia de um elemento celtico. As vagas
+indicações dos antigos falam-nos dos celtas das margens do Guadiana, e
+dão-nol-os na costa Occidental da Peninsula. Vale porém mais do que isso a
+analogia evidente entre as manifestações particulares dos lusitanos e dos
+gallegos, e aquella phisionomia que os estudos eruditos sobre os celtas da
+França e da Irlanda teem determinado a estes ultimos.<a name="tex2html6"
+href="#foot1134"><sup>[6]</sup></a> Tentámos<span class="pn"><a
+name="pag_7">{pg. 7}</a></span> ha pouco esboçar a nossa phisionomia differencial:
+escusado é tornar agora ao assumpto. Se a idéa de uma filiação dos lusitanos
+foi expressa de um modo ridiculo pelos antiquarios classicos, a idéa de uma
+filiação celtica ou celta teve já a mesma sorte quando, quasi em nossos dias,
+houve quem pretendesse filiar directamente o portuguez na lingua dos bardos.
+Paz do esquecimento a todas as chimeras!<span class="pn"><a
+name="pag_8">{pg. 8}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1130" href="#tex2html2"><sup>[2]</sup></a> V. o seu retrato
+ no <em>Portugal Contemporaneo</em> (2.ª ed.) <small>II</small>, pp. 283 a
+ 327.</p>
+
+ <p><a name="foot1131" href="#tex2html3"><sup>[3]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 11-15 e <em>Taboas de chronol.</em>, pp.
+ 256-7.</p>
+
+ <p><a name="foot1132" href="#tex2html4"><sup>[4]</sup></a> V. ácerca dos
+ lusitanos. <em>As raças humanas</em>, <small>I</small>, pp. 198-201, e
+ 209-11, <em>nota</em>.</p>
+
+ <p><a name="foot1133" href="#tex2html5"><sup>[5]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. <small>XXXIV-XLIV</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1134" href="#tex2html6"><sup>[6]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, liv. <small>II</small>, p. 4.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002120">II<br>
+Fundamentos da nacionalidade</a> </h3>
+
+<p>Que valor tem o problema da nacionalidade perante a questão da independencia
+politica?</p>
+
+<p>Causas complexas, de ordem a mais diversa, e de merecimento mais distante,
+circumstancias que não vêm agora ao caso desenvolver, fizeram com que no nosso
+tempo se substituisse, ao principio do equilibrio internacional, o principio
+das nacionalidades, na organisação dos corpos politicos independentes da
+Europa.<a name="tex2html7" href="#foot1135"><sup>[7]</sup></a></p>
+
+<p>Invasora como todas as doutrinas, e além d'isso habilmente explorada pelos
+estadistas, a das nacionalidades tentou&mdash;se não tenta ainda&mdash;predominar
+absoluta no triplo conjuncto de causas naturaes que de facto determinaram
+sempre, e sempre determinarão, a existencia das nações: a geographia, a raça, e
+as necessidades de ponderação: uma vez que a Europa é de facto uma
+amphictyonia. Sobre estes tres elementos naturaes, ou antes coarctado por
+elles, o egoismo das nações e a ambição dos imperantes talharam no mappa a
+delimitação das fronteiras. Por escasso que seja o conhecimento da historia,
+ninguem ignora que de todos tres o que mais impunemente tem sido e é atacado
+pela vontade dos homens, é o primeiro. A rebeldia dos<span class="pn"><a
+name="pag_9">{pg. 9}</a></span> dois segundos traduz-se de um modo mais immediato e
+efficaz nas guerras de equilibrio e nas guerras commerciaes ou estrategicas.
+Guerras, propria e exclusivamente de raça, são raras, se é que alguma houve; e
+os povos opprimidos por extranhos, quando teem o sentimento como que religioso
+da communidade de origem, extinguem-se, ou em revoltas estereis, ou emigrando.
+O equilibrio, o commercio, a estrategia, porém, muitas vezes aproveitam o
+sentimento da raça, fomentando-o, para dar com elle ás guerras a sancção que
+n'outros tempos se achava, de um modo analogo, nas crenças propriamente
+religiosas.</p>
+
+<p>Até hoje todas as successivas tentativas para descobrir a nossa
+<em>raça</em> teem falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal mosarabes, teem
+passado: ficam os portuguezes, cuja <em>raça</em>, se tal nome convém empregar,
+foi formada por sete seculos de historia. D'essa historia nasceu a idéa de uma
+patria, idéa culminante que exprime a cohesão acabada de um corpo social<a
+name="tex2html8" href="#foot1136"><sup>[8]</sup></a> e que, mais ou menos
+consciente, constitue como que a alma das nações, independentemente da maior ou
+menor homogeneidade das suas origens ethnicas. O patriotismo tanto póde, com
+effeito, provir das tradições de uma descendencia commum, como das
+consequencias da vida historica. Não ha duvida, porém, que, se assenta sobre a
+affinidade ethnogenica, resiste mais ao imperio extranho do que quando provém
+apenas de uma communidade de historia. No dia em que a independencia politica
+se perde, obliteram-se mais rapidamente os caracteres autonomicos, embora
+durante a lucta valham menos os elementos de força provenientes da
+homogeneidade<span class="pn"><a name="pag_10">{pg. 10}</a></span> ethnogenica.
+Assim tantas nações perderam na Europa moderna a sua autonomia, sem que restem
+vestigios vivos da sua antiga independencia; ao passo que as individualidades
+ethnicas apparecem ainda hoje distinctas no seio de nações politicamente
+unificadas desde largos seculos: taes são o paiz basco, a Galliza e o Aragão,
+na Hespanha: a Irlanda e a Escocia, de raça celtica, na Inglaterra; a Provença,
+ou a Bretanha, em França: e, na Russia, a Finlandia que é scandinava, ou as
+provincias balticas que são germanicas.<a name="tex2html9"
+href="#foot1137"><sup>[9]</sup></a></p>
+
+<p>O patriotismo portuguez não é pois argumento a favor nem contra o problema
+da unidade de sangue das populações com que Portugal se formou. O jornalismo e
+a politica podem explorar rhetoricamente todas as cousas, confundindo-as; mas á
+sciencia impassivel e soberana fica mal deixar-se arrastar por motivos
+inferiores. O patriotismo é excellente, no seu logar. Negar que durante os tres
+seculos da dynastia de Aviz a nação portugueza viveu de um modo forte e
+positivo, animada por um sentimento arraigado da sua cohesão, seria um absurdo.
+Essa cohesão que fôra ganha nas luctas e campanhas da primeira dynastia,
+perde-se no <small>XVI</small> seculo, por causa das consequencias do imperio
+oriental e da educação dos jesuitas. Portugal acaba; os <em>Lusiadas</em> são
+um epitaphio.</p>
+
+<p>Deixemos pois celtas e lusitanos em paz, e aproximemo-nos dos tempos que
+precederam a formação da monarchia portugueza. N'essa epocha, o Mondego divide
+em duas metades o territorio nacional e as differenças typicas da população
+deviam<span class="pn"><a name="pag_11">{pg. 11}</a></span> ser então ainda mais
+acentuadas do que o são hoje. Na metade do sul o typo vae confundir-se com os
+limitrophes de além da fronteira do reino: e na metade do norte, diz um nosso
+illustre escriptor<a name="tex2html10" href="#foot135"><sup>[10]</sup></a>, «a
+Galliza, que tem comnosco de commum a lingua, que é uma continuação natural da
+zona geographica portugueza, podia muito melhor formar com Portugal uma nação,
+do que Portugal com Castella». A Galliza, cuja lingua se tornou litteraria sob
+o nome de portuguez<a name="tex2html11" href="#foot1138"><sup>[11]</sup></a>,
+vem com effeito até ao Mondego: o mosteiro de Lorvão dá-se em antigos
+documentos como situado <em>in finibus Galleciæ</em>.</p>
+
+<p>O fallecido Soromenho <small class="SMALL">(</small><em><small
+class="SMALL">Or. da ling. port.</small></em><small class="SMALL">)</small>
+dizia que «entre a lingua usada na provincia de Entre-Douro-e-Minho e a que
+mais tarde apparece nas terras do Cima-Côa e na Estremadura ha uma differença
+bastante sensivel. Póde sem receio dizer-se que, á similhança do que succedia
+além dos Pyreneus, em Portugal havia tambem uma <em>langue d'oc</em> e uma
+<em>langue d'oil</em>, a lingua do Norte e a lingua do Sul... O Mondego é a
+lingua divisoria... ainda um seculo depois de D. Diniz ter abandonado o latim
+como lingua official». Esta differença coincide singularmente com as
+differenças, evidentes para todos, no clima, na vegetação, no caracter das
+populações do Norte e do Sul do nosso paiz. E a uniformidade posterior da
+lingua explica-se natural e comesinhamente pelo facto de sete seculos de
+unidade nacional. «A importancia que o portuguez adquiriu repentinamente, diz o
+sr. Ad. Coelho <small class="SMALL">(</small><em><small class="SMALL">A lingua
+portugueza</small></em><small class="SMALL">)</small>, <em>resultou da
+introducção da cultura poetica na côrte portugueza</em>». É conhecido o
+papel<span class="pn"><a name="pag_12">{pg. 12}</a></span> da politica no sentido
+do unificar as linguas do uma nação; abundam os exemplos de linguas
+substituidas, e nem sempre a lingua denuncia a stirpe<a name="tex2html12"
+href="#foot1139"><sup>[12]</sup></a>. Os normandos perderam em França o seu
+idioma scandinavo, os burgundios o os lombardos, na França e na Italia, os seus
+idiomas germanicos; á maneira dos oseos e umbrios<a name="tex2html13"
+href="#foot1140"><sup>[13]</sup></a> que tinham trocado pelo latim as suas
+linguas.</p>
+
+<p>Não se pretenda por fórma alguma dizer, comtudo, que ao sul do Mondego
+houvesse uma lingua diversa: diga-se, porém, que o argumento da <em>unidade
+actual</em> da lingua, depois de sete seculos de vida nacional, não tem valor.
+Todos vêem ainda hoje como é rara a população no sul, menos densos portanto os
+laços collectivos: e todos sabem como essas regiões, sujeitas por seculos a
+guerras exterminadoras habitadas por mosarabes, invadidas por berberes, taladas
+pelo fanatismo almoravide<a name="tex2html14"
+href="#foot1141"><sup>[14]</sup></a> passaram para sob o imperio da monarchia
+nascida na Galliza portugueza. Como não receberiam a lingua do vencedor? Não
+podia haver lucta entre duas linguas romanicas, porque a arabisação do sul fôra
+completa: podel-a-hia haver entre o arabe e o portuguez, quando a população
+captiva passava á condição de escrava? quando as novas terras conquistadas eram
+povoadas por colonias frankas, ou pelos cavalleiros hyerosalemitanos?</p>
+
+<p>Por taes motivos parece evidente a ausencia de uma causa ethnogenica no
+facto da formação da monarchia portugueza, cujas razões de existir são
+comesinhas, praticamente comprehensiveis, sem theorias subtis. A lingua vale
+decerto muito, como argumento: mas não valerá nada o homem que a<span
+class="pn"><a name="pag_13">{pg. 13}</a></span> fala? Não se acham por esse mundo
+homens de uma mesma raça falando idiomas diversos, e populações de um mesmo
+idioma, pertencendo a raças differentes?<a name="tex2html15"
+href="#foot1142"><sup>[15]</sup></a> Ora quem trilhou Portugal e a Hespanha
+visinha observou decerto&mdash;ou não tem olhos para vêr&mdash;uma affinidade
+incontestavel do aspecto e do caracter, um parentesco evidente, entre as
+populações dos dois lados do Minho, dos dois lados do Guadiana, dos dois lados
+da raia secca de leste. Se esses homens não falassem, ninguem distinguiria duas
+nações. E por outro lado, confundiu já alguem um algarvio, ou um alemtejano
+puro, com um puro minhoto? A historia commum funde, não scinde; e quando vêmos,
+depois de sete seculos, differenças tão marcadas, a observação dos homens
+leva-nos a crêr que com effeito em Portugal faltou uma unidade de raça,
+sobrando pelo contrario uma vontade energica e uma capacidade notavel nos seus
+principes e barões. Com um retalho da Galliza, outro retalho de Leão, outro da
+Hespanha meridional sarracena, esses principes compozeram para si um Estado.<a
+name="tex2html16" href="#foot1143"><sup>[16]</sup></a></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A raça é de facto o mais tenue dos laços proprios para garantir a cohesão
+independente de um povo. E além d'isso a doutrina&mdash;se admittissemos a
+identidade d'ella e do facto&mdash;exigiria que á expressão de raça se ligassem
+sempre certos caracteres correspondentes á vastidão necessaria, á eminencia
+sempre crescente das funcções organicas, e<span class="pn"><a
+name="pag_14">{pg. 14}</a></span> á originalidade activa, das nações modernas. Mal
+de nós, pois, se ao facto de termos ou não termos sido os lusitanos, ou outros
+quaesquer, formos pedir argumentos para defender a nossa independencia
+nacional; porque esse facto não augmentará, nem a nossa força, nem as nossas
+razões: porque esse facto nem sequer chega para motivar a nossa separação da
+monarchia leoneza.</p>
+
+<p>Não nos levantámos contra ella como lusitanos opprimidos: nós nem tinhamos a
+menor idéa de que fossemos lusitanos, ou qualquer outra cousa. A população do
+condado portucalense, ibera, cruzada de celtas, romanisada, submettida ao
+governo dos godos, depois aos arabes, e finalmente ao monarcha leonez, não
+podia ter decerto um sentimento de cohesão collectiva ou nacional, incompativel
+com o estado da sua cultura, com a tradição, e com a situação social e
+politica: é isso o que todos os documentos historicos nos revelam. «Portugal,
+diz o snr. Herculano, nascido no <small>XII</small> seculo em um angulo da
+Galliza, dilatando-se pelo territorio do Al-Gharb sarraceno, e buscando até
+augmentar a sua população com as colonias trazidas de além dos Pyreneus, é uma
+nação inteiramente moderna.» É decerto; sem isso, porém, impedir que tenha
+raizes antigas. Não confundamos esta questão com a da independencia, e teremos,
+cremos nós, pisado o verdadeiro e solido terreno da historia.</p>
+
+<p>A causa da separação de Portugal do corpo da monarchia leoneza não é
+obscura, nem carece de largas divagações para definir-se: é a ambição de
+independencia do governador do condado, que o tinha do rei suzerano: é o
+afastamento d'esta nova região roubada aos sarracenos; é a necessidade de
+pulverisação da soberania, que a alliança d'esta idéa com a de propriedade, e a
+ignorancia de<span class="pn"><a name="pag_15">{pg. 15}</a></span> meios
+administrativos capazes de manter a ordem em terrenos dilatados, tornam
+inevitavel na Edade-media.<a name="tex2html17"
+href="#foot1144"><sup>[17]</sup></a> Portugal separava-se, da mesma fórma que o
+reino da Navarra se dividira em tres, e pelos mesmos motivos. Portugal defende
+a separação: o monarcha suzerano impugna-a. Debate-se mais de uma vez a questão
+com as armas: não porque se chocassem os sentimentos nacionaes, mas porque os
+principes defendiam o que era, ou julgavam ser, propriedade sua. Estas
+primeiras guerras portuguezas não depõem decerto de um modo particular em favor
+da independencia, porque eram a lei de toda a Hespanha, a lei de toda a
+Europa&mdash;podemos dizer assim. É um preconceito fazer do conde D. Henrique o
+fundador consciente da independencia de uma nação, quando o conde apenas
+cuidava da independencia pessoal e propria. O sentimento de independencia
+nacional, a idéa de que os reis são os chefes e representantes de uma nação, e
+não os donos de uma propriedade que defendem e tratam de alargar, bem se póde
+dizer que só data da dynastia de Aviz, depois do dia memoravel de
+Aljubarrota.<a name="tex2html18" href="#foot1145"><sup>[18]</sup></a></p>
+
+<p>No <small>XII</small> e <small>XIII</small> seculos Portugal é um certo
+territorio, propriedade de um certo principe: d'onde vem? quem é? pouco
+importa. O conde D. Henrique era francez. Assim, a epocha da primeira dynastia
+desmente por todos os lados, e de todas as fórmas, a idéa de uma raça,
+possuindo, de um modo mais ou menos definido, a consciencia da sua existencia
+collectiva.</p>
+
+<p>É essa consciencia que dá porém o caracter<span class="pn"><a
+name="pag_16">{pg. 16}</a></span> eminente á segunda dynastia, ou de Aviz, em cujas
+mãos Portugal desempenha um papel bem similhante ao dos phenicios da
+Antiguidade.<a name="tex2html19" href="#foot1146"><sup>[19]</sup></a> Como aos
+phenicios succedeu aos portugueses: no momento em que a razão de ser da sua
+acção na civilisação da Europa desappareceu, a nação definhou, sumiu-se,
+perdendo tudo até perder a independencia.</p>
+
+<p>É verdade que a nossa independencia restaura-se em 1640. Mas como, de que
+modo? Atrever-se-ha alguem a dizer que é uma resurreição? Não será a historia
+da Restauração a nova historia de um paiz, que, destruida a obra do imperio
+ultramarino, surge, no <small>XVI</small> seculo, como no nosso appareceu a
+Belgica, filho das necessidades do equilibrio europeu? Não vivemos desde 1641
+sob o protectorado da Inglaterra? Não chegámos a ser positivamente uma feitoria
+britannica? E ainda no decurso d'esta historia o Brazil veiu, enchendo-nos de
+oiro, prestar-nos um ponto do apoio extra-europeu, e como que restaurar o
+antigo caracter do Portugal manuelino, capital europêa de um imperio
+ultramarino, á maneira da Hollanda. E que melhor prova póde haver da nossa
+desorganização do que a duração ephemera da obra do marquez de Pombal&mdash;o
+estadista que concebeu a verdadeira restauração de Portugal, chegando por um
+momento a fazer d'elle outra vez uma nação independente? que melhor prova do
+que a reacção victoriosa de D. Maria I?</p>
+
+<p>A perda do Brazil, reduzindo o reino á miseria, veiu mostrar a fragilidade
+do nosso edificio politico. Os inglezes tiveram de nos tutelar para manter,
+como lhes convinha, a dynastia de Bragança; e passada, vencida a crise,
+appareceu com o liberalismo<span class="pn"><a name="pag_17">{pg. 17}</a></span> a
+impotencia manifesta de restaurar a vida historica de uma nação imperial ou
+colonial.<a name="tex2html20" href="#foot1147"><sup>[20]</sup></a></p>
+
+<p>Não confundamos, pois, pelo amor de tudo o que ha sensato, o patriotismo com
+as questões e problemas scientificos das origens naturaes ethnicas. Tambem a
+Suissa, alleman, italiana, franceza, odiou o austriaco, á maneira por que nós
+<em>odiamos Castella</em>. Basta a historia, basta o interesse, para dar
+homogeneidade social e politica a um povo; e basta essa homogeneidade para
+crear um patriotismo. Ora o patriotismo das raças assim formadas exprime-se na
+acção, e não em miragens enganadoras de um passado que a historia acaba. Na sua
+lingua, nas suas tradições, no seu caracter, o celta da Irlanda encontra sempre
+um ponto de apoio vivo e positivo. Quereis uma prova da differença? Os pontos
+de apoio que nós buscamos são mortos ou negativos: morto o imperio maritimo e
+colonial, a India, e toda a historia que terminou com os <em>Lusiadas</em> em
+1580: negativo, o <em>odio a Castella</em>, que nem nos opprime, nem nos
+odeia.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na
+sua formação ás ordens da geographia: os barões audazes, ávidos e turbulentos
+são ao mesmo tempo ignorantes de theorias e systemas. Vão até onde vae a ponta
+da sua espada: tudo lhes convém, tudo lhes serve, com tanto que alarguem o seu
+dominio.</p>
+
+<p>Por isso as fronteiras de Portugal oscillam durante<span class="pn"><a
+name="pag_18">{pg. 18}</a></span> os primeiros dois seculos á mercê dos azares das
+guerras, com Leão e Castella de um lado, com os sarracenos do outro; e Portugal
+vem a ser formado com dois fragmentos: do reino leonez, um, dos émirados
+sarracenos, outro.</p>
+
+<p>Quando Fernando-Magno de Castella, descendo do oriente, conquistou a moderna
+Beira aos musulmanos,<a name="tex2html21" href="#foot1148"><sup>[21]</sup></a>
+a Galliza encontrou em Coimbra e na linha de defeza do Mondego uma fronteira
+que a punha ao abrigo de futuras correrias, até ou além do valle do Douro. Pelo
+meiado do <small>XI</small> seculo a expressão geographica de Galliza ia, pois,
+até ao Mondego; porém, as novas conquistas tinham sido constituidas pelo rei
+n'um governo, ou condado, cujos limites eram, pelo norte, o Douro; e a leste,
+uma linha passada por Lamego, Vizeu e Cêa, e que, descendo de novo á costa,
+acompanhava os pendores setentrionaes da serra da Estrella. Condado de Galliza
+ao norte, de Coimbra ao sul do Douro, sarracenos ao sul do Mondego: eis ahi a
+condição do territorio do moderno Portugal na segunda metade do
+<small>XI</small> seculo.</p>
+
+<p>Já, porém, n'esta epocha, uma expressão a que não correspondia valor
+politico, militar ou administrativo, apparece a designar o territorio de entre
+o Douro e o Minho e a moderna provincia de Traz-os-Montes: a essa parte do
+condado da Galliza chama-se já Portucale.</p>
+
+<p>Nos ultimos annos do <small>XI</small> seculo correrias felizes deram ao
+celebre Affonso VI a posse de Santarem, Lisboa e Cintra, alargando as
+fronteiras christans até á linha do Tejo. Os nossos territorios de entre
+Mondego e Tejo foram creados em condado ou governo, e confiados á guarda de
+Gonçalo Mendes da<span class="pn"><a name="pag_19">{pg. 19}</a></span> Maia, o
+nomeado <em>lidador</em>: e os tres governos que tinham por limites successivos
+o Douro, o Mondego e o Tejo, constituiram em favor do genro de Affonso VI,
+Raymundo de Borgonha, uma especie de vice-reino. Breve foi, porém, a duração
+d'este periodo; porque logo em 1097, depois do desbarato do conde borguinhão e
+da perda da fronteira do Tejo, Affonso VI effectua uma nova divisão do
+territorio, dando autonomia politica á expressão geographica de Portucale ou
+Portugal, e annexando-lhe o antigo condado de Coimbra. O condado portucalense,
+por tal fórma engrandecido, foi dado a um primo do conde da Galliza, e os seus
+dominios recuavam assim de golpe desde o Tejo até ao Minho. Esse primo era o
+conde D. Henrique, tambem genro do poderoso Affonso VI.</p>
+
+<p>Na primeira metade do <small>XII</small> seculo, o conde e a viuva sua
+herdeira levam as fronteiras do seu Estado, para leste, até Zamora, e para
+norte, por entre Minho e Bivey, até Tuy e Orense. As guerras civis dos Estados
+da Peninsula davam e tiravam assim, constantemente, territorios e povoações. A
+fronteira norte-leste breve regressa, porém, aos seus actuaes limites de
+além-Douro; mas o governo de Affonso Henriques, o primeiro que ousou quebrar de
+todo os laços tenues da vassallagem a Leão, viu alargar-se do lado opposto a
+raia até á linha do Sado, desde que, no meiado do <small>XII</small> seculo,
+Lisboa, Santarem, Cintra, Almada e Palmella cairam definitivamente em seu
+poder, accrescentando novas terras ás do primitivo condado portucalense.</p>
+
+<p>As fronteiras do norte e leste, no além-Douro, eram já, ao tempo da accessão
+de Sancho I ao throno, as mesmas de hoje: margem esquerda do Minho, por Melgaço
+a Lindoso, d'ahi a Bragança por Miranda, entestar com o Douro no ponto em<span
+class="pn"><a name="pag_20">{pg. 20}</a></span> que agora se extremam Portugal e a
+Hespanha. A fronteira de leste, entre Douro e Tejo, só no tempo de D. Diniz se
+demarcou por onde hoje passa: no fim do <small>XII</small> seculo a raia seguia
+desde a foz do Coa, rio acima, até á confluencia do Pinhel, e, acompanhando-o,
+passava entre Sabugal e Sortelha, em demanda das fontes do Elga. D'ahi ao Tejo,
+então e agora, a fronteira é a mesma.</p>
+
+<p>Ao sul do Tejo é difficil, senão impossivel, determinar chronologicamente as
+fronteiras portuguesas. A nacionalidade do dominio nas cidades do Alemtejo
+permittiria traçar geographicamente a linha da fronteira com uma aproximação
+conveniente, tanto mais que os territorios de entre as cidades, devastados e
+ermos, eram posse de quem no momento os pisava armado. Mas as successivas
+correrias de lado a lado, a tomada, logo a queda; depois a reconquista de uma
+mesma cidade, ás vezes n'um periodo de mezes, tornam impossivel demarcar a
+fronteira antes da epocha em que definitivamente uma certa região passa para o
+dominio portuguez, para d'elle não mais saír. Assim, a tomada de Evora em 1166
+dá á linha do Sado, pouco antes conquistada, um ponto de apoio a leste contra
+as fortalezas sarracenas de Jerumenha, Elvas e Badajoz. Por ahi a raia
+portugueza iria até Marvão, acaso até Arronches.</p>
+
+<p>Tal é a linha das primeiras fronteiras do moderno Portugal.</p>
+
+<p>No primeiro quartel do <small>XIII</small> seculo, Alcacer do Sal, base
+estrategica da linha sarracena ao sul, e Elvas, padrasto avançado da linha de
+leste, cáem em poder dos portuguezes; e á determinação final da nossa raia
+alemtejana vem juntar-se, até ao meiado do seculo, a conquista do Algarve,
+completando, entre o Guadiana e o mar, o moderno Portugal.<span class="pn"><a
+name="pag_21">{pg. 21}</a></span></p>
+
+<p>No ferir das guerras da conquista não são os musulmanos que põem um freio á
+ambição pessoal dos principes, porque a sorte do imperio do Islam estava
+lançada, e para a consummar concorriam todos os Estados christãos da Peninsula.
+Será porventura a raça que delimita as fronteiras da nova nação? Ocioso é já
+responder. Será a geographia? Não parece; desde que vêmos a raia cortar de lado
+a lado as planicies do Alemtejo, as bacias do Tejo e do Douro, e cair
+perpendicularmente sobre as cumiadas das montanhas em vez de lhes seguir a
+orientação. Qual dos tres elementos nos resta? O equilibrio. O equilibrio é com
+effeito o elemento ponderador: á ambição dos principes de Portugal oppõe-se a
+resistencia dos reis de Leão; as armas, invocadas, demonstram que, se um dos
+antagonistas não tem força bastante para submetter o adversario, o outro tem de
+usar com prudencia de um poder limitado. Quando tenta passar além do Minho, ou
+adquirir para si Badajoz, a reacção mostra-lhe até onde póde ir a acção dos
+meios de que dispõe. Do equilibrio ou ponderação das duas forças antagonicas
+nasce a determinação geographica do Portugal moderno, para o qual só no extremo
+norte e no extremo sul, sobre o Minho e sobre o Guadiana, se assentou em
+admittir uma fronteira natural.</p>
+
+<p>Estas já longas explicações bastarão, parece-nos, a expôr claramente o nosso
+pensamento. Ha ou não ha uma nacionalidade portugueza? Questão absurda, assim
+formulada. Evidentemente ha, se nacionalidade quer dizer nação. Se por
+nacionalidade se entende, porém, um corpo de população ethnogenicamente
+homogeneo, localisado n'uma região naturalmente delimitada, insistimos em dizer
+que tal cousa se não dá comnosco. Se por nacionalidade<span class="pn"><a
+name="pag_22">{pg. 22}</a></span> se entende, finalmente, essa unidade social que a
+historia imprime em povos submettidos ao regime de um governo, de uma lingua,
+de uma religião irmans, como nós o temos sido durante sete seculos,
+evidentemente a resposta só póde ser uma.<span class="pn"><a
+name="pag_23">{pg. 23}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1135" href="#tex2html7"><sup>[7]</sup></a> V. <em>Th. da
+ hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chron.</em>, pp., <small>XXII</small>
+ e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1136" href="#tex2html8"><sup>[8]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, introd., pp. <small>LXVII</small> e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1137" href="#tex2html9"><sup>[9]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primitivas</em>, pp. 290-306.</p>
+
+ <p><a name="foot135" href="#tex2html10"><sup>[10]</sup></a> O sr. F. Ad.
+ Coelho.</p>
+
+ <p><a name="foot1138" href="#tex2html11"><sup>[11]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.), pp. 122-5.</p>
+
+ <p><a name="foot1139" href="#tex2html12"><sup>[12]</sup></a> V. As raças
+ humanas, <small>I</small>, pp. 20-5.</p>
+
+ <p><a name="foot1140" href="#tex2html13"><sup>[13]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 117-45.</p>
+
+ <p><a name="foot1141" href="#tex2html14"><sup>[14]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 81-111.</p>
+
+ <p><a name="foot1142" href="#tex2html15"><sup>[15]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp 20-5.</p>
+
+ <p><a name="foot1143" href="#tex2html16"><sup>[16]</sup></a> V. <em>Th. da
+ hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp.
+ <small>XXX-I</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1144" href="#tex2html17"><sup>[17]</sup></a> V. <em>Th. da
+ hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp.
+ <small>XXVI-VII</small> e <em>Instit. primit.</em>, pp. 222 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1145" href="#tex2html18"><sup>[18]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primitivas</em>, pp. 233-43.</p>
+
+ <p><a name="foot1146" href="#tex2html19"><sup>[19]</sup></a> V. <em>Raças
+ humanas</em>, I, <small>IV</small>, 2, 3.</p>
+
+ <p><a name="foot1147" href="#tex2html20"><sup>[20]</sup></a> V. <em>Portugal
+ contemporaneo</em>, <small>II</small>, pp. 119-37.</p>
+
+ <p><a name="foot1148" href="#tex2html21"><sup>[21]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 116-7.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002130">III<br>
+Geographia portugueza</a> </h3>
+
+<p>Quando se observa o retalho da Peninsula, de que a historia fez Portugal,
+separado do corpo geographico a que pertence, desde logo se vê como a vontade
+dos homens pôde sobrepujar as tendencias da natureza. Os rios e as serranias
+descem, perpendiculares sobre a costa occidental, proseguindo uma derrota e
+provindo de uma origem que se dilatam para muito além das fronteiras, até ao
+coração do corpo peninsular. As cumiadas das montanhas e os valles extensos
+mudam de nacionalidade n'aquelle ponto convencional que aos homens aprouve
+fixar.</p>
+
+<p>Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso proprio territorio,
+motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto póde a
+obcecação doutrinaria! Diz um que essa separação dos litoraes é uma regra;<a
+name="tex2html22" href="#foot1149"><sup>[22]</sup></a> nega outro o caracter
+arbitrario da linha das fronteiras de leste, affirmando que essa linha coincide
+com os limites extremos até onde os nossos rios são navegaveis. Decerto nunca
+os viu quem tal affirma. No Guadiana apenas se navega até Serpa, e entretanto o
+rio é portuguez nas duas margens até Monsarás, formando a raia d'ahi até Elvas.
+O Douro para cima da Regoa é tão navegavel até Zamora como até á Barca-d'Alva.
+No Tejo, passando Abrantes, tanto se vae<span class="pn"><a
+name="pag_24">{pg. 24}</a></span> até Alcantara, como até Aranjuez. Onde está pois
+a concordancia da fronteira com a parte navegavel dos rios? A allegada <em>base
+geographica</em> da nacionalidade desapparece pois, se é que uma tal expressão
+não quer apenas denunciar o destino maritimo, como que phenicio, da nação.</p>
+
+<p>As duas cousas não devem, porém, confundir-se, pois n'um caso encontramos a
+causa determinante da aggregação social, emquanto no outro se observa a
+consequencia do facto da existencia anterior d'essa aggregação, fortuitamente
+constituida n'um litoral. É evidente que o caracter maritimo e colonial da
+nação portugueza, na segunda dynastia, não podia ter influido no facto já
+secular da independencia. É sabido que D. Affonso Henriques, o author d'ella,
+não tinha navios, servindo-se dos dos Cruzados para tomar Lisboa e Alcacer. A
+marinha foi uma creação da monarchia e um producto da nação, depois de
+constituida: o caracter maritimo é historico, não é primitivo em um povo rural,
+como era o portuguez dos primeiros tempos, e ainda hoje o é o gallego. O
+movimento de deslocação da capital do reino para o sul, as medidas de D. Diniz,
+as de D. Fernando, depois a empreza do Infante D. Henrique, são momentos
+successivos de uma historia que é o nervo intimo da vida portugueza. Desde a
+reunião das esquadras cruzadas no Tejo para a conquista de Lisboa, desde a
+introducção dos genovezes, que vieram ensinar-nos a navegar, vê-se começar a
+formar-se essa nação cosmopolita, destinada á vida commercial, maritima e
+colonisadora.<a name="tex2html23" href="#foot1150"><sup>[23]</sup></a></p>
+
+<p>É essa a nação que a historia fórma: e por isso mesmo que a vida portugueza
+foi maritima, e o<span class="pn"><a name="pag_25">{pg. 25}</a></span> destino da
+sua historia o mar: por isso mesmo avultam os elementos que diariamente tornam
+cosmopolitas as cidades maritimas de um paiz cuja capital é um dos melhores
+portos do mundo. Portugal foi Lisboa, e sem Lisboa não teria resistido á força
+absorvente do movimento de unificação do corpo peninsular.</p>
+
+<p>Erguido em frente do mar como um amphitheatro cujos primeiros degraus as
+ondas constantemente aspergem, o territorio portuguez, independente, adquiriu
+d'esta localisação um caracter seu: ao mesmo tempo que nos habitantes de
+Portugal acaso uma diversa combinação de sangue favorecia uma tendencia
+particular. Assim como, porém, as cristas das montanhas, e, pelo coração dos
+valles, o curso dos nossos rios, são as veias e os tendões que nos ligam ao
+corpo peninsular; assim tambem no nosso sangue os elementos primitivos accusam
+o facto de uma origem e de uma raça irman.</p>
+
+<p>E se temos uma phisionomia moral, distincta sem ser diversa, tambem as
+condições do nosso territorio nos dão um genero de destino differente, mas
+encaminhado a um mesmo fim. As navegações e descobertas são a nossa gloria e a
+nossa maior façanha. Mareando a interrogar as mudas ondas, construimos;
+conquistando, derrocámos. Navegadores e não conquistadores, desvendámos todos
+os segredos dos Oceanos; mas o nosso imperio no Oriente foi um desastre, para o
+Oriente e para nós. A bordo fomos tudo; em terra apenas podémos demonstrar o
+heroismo do nosso caracter e a incapacidade do nosso dominio. Façanhas de
+homens que dirigem instinctos devotos e pensamentos de cubiça, eis ahi o que
+nós veremos ser o nosso imperio oriental. Epopêa do espirito indagador, audaz e
+paciente, as nossas navegações, as nossas explorações colonisadoras,<span
+class="pn"><a name="pag_26">{pg. 26}</a></span> tornam-nos os genios d'esse
+elemento mysterioso, para o qual, porventura, a nossa alma celtica nos
+attrahia. Quando á Europa humilhada o castelhano impõe a lei com a espada e o
+mosquete, nós, amarrados ao banco dos remeiros, segurando o leme, ferrando as
+velas, alargamos mar em fóra a nau, com o olhar perscrutador fixado nos astros
+que nos guiam. Vamos de manso, ao longo das costas... Ninguem nos vê: só as
+ondas ouvem as melopêas monotonas dos marinheiros, cujo rithmo obedece ao
+rithmo do quebrar da vaga contra o costado.&mdash;Elles vão, emplumados e vestidos
+de aço, arrogantes e cheios de imperio, com o seu grito stridente e tragico,
+ensurdecer e estontear o mundo! Ninguem diria dois povos irmãos; e são-no,
+porque ambos obedecem a um motivo identico, a um pensamento egual, que está no
+fundo da sua alma inconsciente, como a chamma que arde no cerne da Terra, dando
+origem a rochas tão diversas no aspecto, na côr, na rigeza, na structura, no
+merito.</p>
+
+<p>Portugal é um amphitheatro levantado em frente do Atlantico que é uma arena.
+A vastidão do circo desafia e provoca tentações nos espectadores, arrastando-os
+afinal á laboriosa empreza das navegações, que era para elles um destino desde
+que a politica os destacára do corpo da Peninsula.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Quando se percorre de norte a sul a estreita facha da nação occidental da
+Hespanha, encontram-se os successivos prolongamentos das cordilheiras
+peninsulares, galgando uns até ao mar, terminando outros mais distante da
+costa. Entre elles abrem-se as bacias ou estuarios de rios parallelos que
+podem<span class="pn"><a name="pag_27">{pg. 27}</a></span> dividir-se em dois
+systemas: o do norte e o do sul, delimitados pela cordilheira da
+Estrella-Aire-Montejunto-Cintra.</p>
+
+<p>No systema do norte, o Douro é a arteria central d'uma região montuosa,
+coroada nos limites setentrionaes e austraes pelas duas cordilheiras
+culminantes da Galliza e da Beira. De uma e de outra, como socalcos ou degraus
+successivos d'essa platéa de montanhas que se fecha áquem da fronteira
+portugueza, descem outras serras, entre cujas depressões se precipitam os rios
+nacionaes do norte: o Minho, que delimita a Galliza, o Lima, o Cávado e o Ave,
+ao norte do Douro, e ao sul o Vouga e o Mondego. As serras de entre Minho e
+Lima são as do Suajo; as de entre Lima e Douro, as do Gerez e do Marão,
+separadas pelo Tamega, confluente d'este ultimo; as d'entre Douro e Vouga,
+Montemuro; as d'entre Vouga e Mondego, Caramullo.</p>
+
+<p>No sul, as bahias do Tejo e Sado, divididas pela peninsula da Arrabida,
+constituem o centro de um systema de caudaes irradiantes que cortam a zona mais
+plana, limitada de um lado pela serra da Estrella, do opposto pela do Algarve.
+Ao norte, na raiz austral da primeira, corre o Tejo, desinternando-se de
+Castella; destacando-se d'este, para sueste, o Sorraia, em plena planicie; e,
+mais pronunciadamente para o sul, o Sado, que vae nascer no pendor norte das
+montanhas algarvias.</p>
+
+<p>Se a metade norte de Portugal é fechada a leste por um systema de
+contrafortes avançados dos Pyreneus cantabricos, a metade sul, theatro das
+guerras castello-portuguezas, contradiz de um modo incontestavel a opinião dos
+que vêem na orographia a base necessaria da delimitação das fronteiras
+nacionaes.</p>
+
+<p>A começar do sul, o Guadiana fende a cordilheira<span class="pn"><a
+name="pag_28">{pg. 28}</a></span> andaluza penetrando no interior da Peninsula.
+Curvando a sua orientação em Badajoz, o Guadiana, depois de ter regado os
+nossos terrenos raianos, toma uma direcção leste atravez das largas campinas da
+Estremadura hespanhola que os tratados apenas dividiram do nosso Alemtejo.
+N'esta metade austral da nossa fronteira de leste, as planicies e as aguas do
+rio que as rega mudam de nação sem mudarem de natureza; e outro tanto succede
+aos contrafortes avançados que reunem n'um mesmo promontorio as serras de
+Guadalupe e a Morena, e onde em Portugal assentam Portalegre ao norte, Evora ao
+sul. No troço de fronteira ao norte d'esta como que garra lançada pela ossatura
+da Hespanha no Portugal alemtejano, corre, primeiro, o amplo valle em cujo
+centro deslisa o Tejo, prolongando-se com elle, Estremadura em fóra, até
+Toledo; e seguem, depois, as cumiadas da Guardunha que dividem o Tejo do
+Zezere, apertando este rio contra a serra da Estrella.</p>
+
+<p>O pendor austral das serras do Algarve e a facha ou tapete de jardins sobre
+que pousa a sua base o throno d'esses montes, formam uma ultima e como que
+excepcional provincia geographica, vedeta sobre o continente fronteiro, cujo
+clima e producções partilha.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Geognosticamente, o territorio portuguez póde dividir-se em tres regiões
+principaes: a das rochas igneas e paleozoicas, a dos terrenos secundarios, e a
+dos terrenos terciarios.</p>
+
+<p>Tracemos uma linha que, partindo de Aveiro para norte, ao longo da costa, se
+dobre para nascente acompanhando a fronteira marginal do Minho. D'ahi
+extende-se por toda a raia de leste até<span class="pn"><a
+name="pag_29">{pg. 29}</a></span> ás serras do Algarve, baixando-a em direcção
+poente, para a prolongar com a costa até Sines. Depois, interne-se a contornar
+a bacia do Sado, por Grandola, Cercal, Panoias, Aljustrel, Ferreira, Torrão até
+Vendas-Novas; em seguida a do Sorraia, por Lavre, Mora, Ponte-de-Sôr, caíndo
+sobre o Tejo em Abrantes, e caminhando para norte por Thomar, Alvaiazere,
+Anadia&mdash;e ter-se-ha encerrado em Aveiro um perimetro que abrange cerca de tres
+quartas partes da superficie total da nação. É a região dos terrenos
+primitivos.</p>
+
+<p>A dos terrenos secundarios compõe-se de dois retalhos isolados. O primeiro
+extende-se ao longo da margem direita do Tejo, desde Lisboa até á Barquinha;
+entestando d'ahi até Aveiro com a linha anteriormente traçada, e vindo ao longo
+da costa, a descer para o sul, circumscrever a serra de Cintra, chegando outra
+vez a Lisboa. O segundo é constituido pelo litoral do Algarve, no pendor sul
+das serras, até ao mar.</p>
+
+<p>A terceira região, finalmente, a dos terrenos terciarios, desce pela costa,
+desde a ponta do Bogio, ao sul do Tejo, até Sines, alargando-se pelas duas
+zonas divergentes dos valles do Sado e do Sorraia, contornados pela linha
+determinada antes ao delimitar a raia da primeira região.</p>
+
+<p>Esta ultima é, como se viu, a mais extensa e importante. Abrange as duas
+provincias ao norte do Douro, a quasi totalidade das duas Beiras e do Alemtejo,
+e boa metade do Algarve. A Estremadura quasi por si só compõe as duas segundas
+regiões&mdash;uma ao norte, outra ao sul do Tejo<a name="tex2html24"
+href="#foot1151"><sup>[24]</sup></a>.<span class="pn"><a
+name="pag_30">{pg. 30}</a></span></p>
+
+<p>Na do norte predominam os terrenos cretaceos e jurassicos, formando tambem
+estes ultimos a quasi totalidade do retalho algarvio da segunda região. Uma
+pequena mancha de granitos em Cintra, os basaltos dos arredores de Lisboa, e as
+dunas da costa, desde a Marinha-grande até Aveiro, são os phenomenos
+esporadicos da geognosia d'esta parte de Portugal.</p>
+
+<p>Na região do sul do Tejo apenas a Arrabida e S. Thiago de Cacem apresentam
+breves nodoas de terrenos jurassicos; e estes, os terrenos modernos formados
+pelas alluviões do Tejo e Sado e que lhes bordam as margens, e os areaes da
+costa entre o Bogio e o cabo de Espichel, são as unicas excepções do vasto
+lençol da região dos terrenos terciarios.</p>
+
+<p>Na primeira e mais extensa das zonas geognosticas de Portugal tambem o Tejo
+póde dar lugar a uma divisão em duas sub-regiões differentemente
+caracterisadas. Tomadas ambas como um todo, os terrenos, schistosos quanto á
+structura, e primarios ou paleozoicos quanto á edade, predominam em massa,
+envolvendo as rochas eruptivas ou igneas. Porém ao norte do Tejo o volume
+d'estas rochas, exclusivamente graniticas, é proximamente egual á dos schistos;
+ao passo que ao sul, além d'estes ultimos predominarem, apparecem não só
+granitos mas porphyros e diorites.</p>
+
+<p>Entre Castello-de-Vide, Portalegre, Niza e o Crato, inscreve-se acaso o
+maior e mais compacto affloramento de granitos ao sul do Tejo. Depois d'este
+vem o de Evora, bracejando de um modo irregular, para norte até Vimeiro, para
+nordeste até Lavre, e no lado opposto até Vianna, Aguiar e S. Manços. Afinal,
+as pequenas nodoas de Galveas, de Santa Eulalia, de Freia, de Reguengos, da
+Vidigueira, e de<span class="pn"><a name="pag_31">{pg. 31}</a></span> Valle-Vargo a
+nascente de Serpa, completam o systema de affloramentos graniticos da
+sub-região do sul do Tejo. Os porphyros e diorites constituem um longo dorso
+que vem de sueste a nordeste, desde Serpa, por Beja, Alvito, Torrão, Alcaçovas,
+terminar junto de Cabrella, quasi na raia da região terciaria. Além d'esta
+formação principal, encontram-se destacadas as manchas sporadicas de Alter, de
+Bonnavilla, de Monforte, e as duas mais consideraveis de Campo-maior e de
+Elvas, proximo da fronteira.</p>
+
+<p>Ao norte do Tejo as condições variam. A massa de rochas eruptivas predomina
+sobre a dos schistos. Depois do macisso schistoso da Guardunha, entre
+Castello-Branco e o Fundão, transposto o valle do Zezere, encontra-se a base
+alastrada da serra da Estrella, e afinal os alicerces de Monte-muro. Os
+granitos vêem desde a fronteira, entre Alfaiates e a Barca d'Alva, pela
+Covilhan e Taboa ao sul, por Vizeu a poente, entestar no Douro, cuja margem
+esquerda sobe até á raia de Leão. Pequenas são as nodoas schistosas na área
+circumscripta: S. João-da-Pesqueira e Villa-nova-da-Foscoa, na margem do Douro:
+Villa-da-Egreja ás origens do Vouga; Pinhel e Valhelhas no pendor sul da serra
+da Estrella.</p>
+
+<p>Porém as abas occidentaes das serras da Guardunha, da Estrella e do
+Montemuro, ladeadas ao sul pelo Tejo, formam duas vastas zonas de terrenos
+paleozoicos, uma cortada pelo Zezere, outra pelo Mondego e pelo Vouga: são
+estas zonas que vêem raiar com a região dos terrenos secundarios até Aveiro, e
+com o mar desde Aveiro até â foz do Douro, tendo de permeio a facha de dunas da
+costa.</p>
+
+<p>Ao norte do Douro os schistos predominam para<span class="pn"><a
+name="pag_32">{pg. 32}</a></span> cima da linha Regoa-Chaves, os granitos para
+baixo. Ao longo da costa, desde o Porto até á Povoa, encontra-se, destacado, um
+affloramento de rochas eruptivas; e, para leste, um outro nas serras do Gerez e
+do Suajo, a poente do Tamega, lançando junto a Braga um ramo que vae, por
+Barcellos, a Vianna e até Caminha.</p>
+
+<p>A leste da linha Chaves-Regoa são irregulares e dispersos os affloramentos
+eruptivos: acompanham a margem portugueza do Douro desde Bemposta até Miranda;
+apparecem em dois pontos da extrema fronteira do norte; vêem de Montalegre, por
+Chaves até Valpassos e Torre-de-D. Chama; e pela serra do Marão, desde Mondim e
+Ribeira-de-Pena, por Villa-Pouca e Villa-Real, morrer junto ao Douro em
+Villarinho. Todo o resto, o Marão, da Campean a Santa Martha, as alturas á
+esquerda do Corgo, a maxima parte do valle do Tua, e todo o valle do Sabor, são
+formados pelos terrenos paleozoicos.<span class="pn"><a
+name="pag_33">{pg. 33}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1149" href="#tex2html22"><sup>[22]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, introd., pp. <small>XXXI-II</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1150" href="#tex2html23"><sup>[23]</sup></a> V. <em>O Brasil
+ e as colonias portuguezas</em> (2.ª ed.) pp. 1-29.</p>
+
+ <p><a name="foot1151" href="#tex2html24"><sup>[24]</sup></a> V. para a
+ geologia terciaria do Tejo, os <em>Elem. de Anthropologia</em> (3.ª ed.), pp.
+ 212-17, podendo cotejar-se o estudo da região portugueza com o da Peninsula
+ no seu todo na <em>Hist. da civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp.
+ <small>VII-XXI</small>.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002140">IV<br>
+A terra e o homem</a> </h3>
+
+<p>Conhecida a orographia e a geognosia do territorio, brevemente indicaremos o
+systema de caracteres agricolas e climatologicos, ambos subordinados aos
+anteriores, e todos solidariamente ligados para formar a phisionomia natural
+das diversas regiões do territorio portuguez.</p>
+
+<p>A sua antiga divisão em provincias obedecia mais a estas condições naturaes
+do que a moderna divisão em districtos: as causas determinantes de uma e de
+outra são o motivo d'esta differença. As provincias formaram-se historicamente
+em obediencia ás condições naturaes; os districtos actuaes foram creados
+administrativamente de um modo até certo ponto artificial. Umas provinham dos
+caracteres proprios das regiões, e a administração limitára-se a reconhecer
+factos naturaes: outros, determinados por motivos abstractos, nasceram de
+principios administrativos e estatisticos (área, quantidade de população,
+etc.), fazendo-os discordar o menos possivel dos limites naturaes, geographicos
+e climatologicos. Por estes motivos nós agora estudaremos por provincias, e não
+por districtos, o territorio portuguez; deixando para o lugar competente o
+estudo das condições modernas da nação.<a name="tex2html25"
+href="#foot1152"><sup>[25]</sup></a><span class="pn"><a
+name="pag_34">{pg. 34}</a></span></p>
+
+<p>A divisão das provincias apoiava-se em factos phisicos de um valor eminente.
+Começando pelo norte, o territorio de além-Douro inscreve duas zonas separadas
+pelo Tamega: a leste, Traz-os-Montes, a oeste, Entre-Douro-e-Minho. Além de
+obedecer, como se vê, á geographia, buscando nos rios fronteiras naturaes, a
+divisão das duas provincias consagrava differenças essenciaes: as geognosticas
+já por nós observadas (rochas eruptivas dominando a oeste, schistos a leste do
+Tamega), e além d'ellas as climatericas. Portugal, segundo já se disse n'outro
+lugar, é em geral um amphitheatro de montanhas, levantado em frente do Oceano.
+Esta circumstancia caracterisa para logo as regiões de um modo tambem geral,
+dividindo-as em duas categorias: as maritimas e as interiores; as cis e as
+transmontanas; as que estão directamente expostas á acção das brisas maritimas,
+e os declives orientaes, os valles interiores, e os degraus ou socalcos das
+serras encobertas aos bafejos do mar por cumiadas occidentaes sobranceiras.</p>
+
+<p>Esta circumstancia dá caracteres inteiramente diversos ás duas provincias do
+Douro-Minho e de Traz-os-Montes, divididas pelas serranias do Gerez e do Marão,
+que roubam a ultima á acção das brisas maritimas. Quem alguma vez transpoz o
+Tamega, decerto observou a profunda differença da paizagem e do caracter e
+aspecto dos habitantes de áquem e de além d'esse rio. O transmontano, vivo,
+ágil, robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e
+laborioso, tenaz, persistente e ingenuo. Além do Tamega o clima é secco <small
+class="SMALL">(40 a 60% de humidade relativa)</small> poucas as chuvas <small
+class="SMALL">(500 a 1:000 millim. e no estio 70 a 80 apenas)</small>, grande o
+calor no fundo dos valles apertados, mas temperado nas alturas; intensos os
+frios hibernaes, que coroam de neve as<span class="pn"><a
+name="pag_35">{pg. 35}</a></span> montanhas e gelam a agua pelas baixas <small
+class="SMALL">(12 a 15° temp. média)</small>. Áquem, as brisas do mar,
+estacadas na sua passagem pelas serras, condensam-se e produzem as chuvas
+copiosas: por isso no Minho o pendor occidental das serras de oriente é sarjado
+pelos numerosos e successivos rios parallelos, cujos valles, reunindo-se junto
+á costa, formam ao longo d'ella a primeira das planicies litoraes de Portugal.
+Habita essa região pingue uma população abundante, activa, mas sem distincção
+de caracter, nem elevação de espirito: consequencia necessaria da humidade e da
+fertilidade. Falta essa especie de tonificação propria do ar secco e dos largos
+horizontes recortados n'um céu luminoso e puro. O Minho é uma Flandres, não uma
+Attica. As chuvas precipitam-se abundantes <small class="SMALL">(1:200 a 2:000
+mill. annuaes, e no estio 80 a 200)</small> sobre um chão lavrado de caudaes; a
+humidade <small class="SMALL">(70 a 100%)</small> torna flaccidos os
+temperamentos e entorpece a vivacidade intellectual, que nem um frio demasiado
+irrita, nem um calor excessivo faz fermentar, á maneira do que succede nas
+zonas genesiacas dos tropicos. Temperado o clima <small class="SMALL">(12 a
+15°)</small>, sem excessivos afastamentos hibernaes, a população satisfeita,
+feliz, e bem nutrida de vegetaes e de ar humido, offerece a imagem de um
+exercito de laboriosas formigas sem cousa alguma de aládo e brilhante de um
+enxame dourado de abelhas.</p>
+
+<p>O clima determina a paizagem. Além Tamega as louras messes do trigo, os
+pampanos rasteiros, o carvalho nobre e o castanheiro gigante vestem os pendores
+de elevadas serras, cujas cristas dentadas de rochas, no inverno coroadas de
+neves, se recortam no fundo azul do firmamento, dando fixidez e nobreza ao
+quadro, e infundindo o quer que é de elevado no espirito. A natureza vive
+na<span class="pn"><a name="pag_36">{pg. 36}</a></span> luz, e a alma sente que os
+elementos teem dentro em si forças que os animam.</p>
+
+<p>Áquem Tamega o scenario muda: a humidade cria em toda a parte vegetações
+abundantes; não ha um palmo de terra d'onde não brote um enxame de plantas: mas
+como o solo é breve, como a rocha afflora por toda a parte, e os campos nascem
+do terreno vegetal formado nas anfractuosidades do granito pelas folhas e ramos
+decompostos, e nos estuarios dos rios pelos sedimentos das cheias, a vegetação
+é rasteira e humilde, o pinho maritimo de uma constituição debil, o carvalho um
+pigmeu enleiado pelas varas das vides suspensas. A densidade da população
+completa a obra da natureza n'uma região onde o vinho não amadurece: o acido
+picante dá-lhe uma similhança das bebidas fermentadas do norte, cidra ou
+cerveja, e com ella, ao genio do povo, caracteres tambem similhantes aos de
+bretões e flamengos. A vegetação, de si mesquinha, é amesquinhada ainda pela
+mão dos homens: as necessidades implacaveis da população abundante produzem uma
+cultura que é mais horticola do que agricola: pequeninos campos, circumdados
+por pequeninos valles, orlados de carvalhos pigmeus, decotados, onde se
+penduram os cachos das uvas verdes. No meio d'isto formiga a familia: o pae, a
+mãe, os filhos, immundos, atraz d'uns boisinhos anões que lavram uma amostra de
+campo, ou puxam a miniatura de um carro. Sob um céu ennuveado quasi sempre,
+pisando um chão quasi sempre alagado, encerrado n'um valle abafado em milhos,
+dominado em torno por florestas de pinheiros sombrios, sem ar vivificante, nem
+abundante luz, nem largos horizontes, o formigueiro dos minhotos, não podendo
+despegar-se da terra, como que se confunde com ella; e, com<span class="pn"><a
+name="pag_37">{pg. 37}</a></span> os seus bois, os seus arados e enxadas, fórma um
+todo d'onde se não ergue uma voz de independencia moral, embora amiude se
+levante o grito de resistencia utilitaria.<a name="tex2html26"
+href="#foot1155"><sup>[26]</sup></a> A paizagem é rural, não é agricola; a
+poesia dos campos é naturalista, não é idealmente pantheista. Quem uma vez
+subiu a qualquer das montanhas do Minho e dominou d'ahi as lombadas espessas de
+arvoredo, sem contornos definidos, e os valles quadriculados de muros e renques
+de carvalhos recortados, sentiu decerto a ausencia de um largo folego de ideal,
+e de uma viva inspiração de luz. Apenas aqui e acolá, engastado na monotonia da
+côr dos milhos, um canto do verde alegre do linho vem lembrar que tambem no
+coração do minhoto ha um lugar para o idyllio infantil do amor.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Descendo para o sul do Douro, entre a Beira montanhosa e a Beira litoral,
+dão-se differenças analogas ás que distinguem o Minho e Traz-os-Montes:
+analogas, dizemos, e não identicas, porque n'esta nova região começam a
+sentir-se as influencias de causas geraes, como são as da latitude. A zona
+anterior estanceia entre os parallelos de 41<small class="SMALL">°</small> e
+42<small class="SMALL">°</small>; as Beiras descem até 39<small
+class="SMALL">°</small> 30'. Portugal, inscripto entre 37<small
+class="SMALL">°</small> e 42<small class="SMALL">°</small>, e lançado como uma
+estreita facha norte-sul, tem na latitude das regiões uma causa geral a
+concorrer sempre com as causas particulares, quaes são a altitude, a exposição
+e a constituição geognostica das montanhas, no sentido de determinar os
+caracteres das suas differentes provincias.<span class="pn"><a
+name="pag_38">{pg. 38}</a></span></p>
+
+<p>N'esta de que agora nos occupamos, levanta-se ao centro a serra da Estrella,
+a cujo pendor maritimo se chamou Beira-alta, dando-se aos declives
+transmontanos oppostos, reunidos á Guardunha, o nome de Beira-baixa. Tres zonas
+compõem a região das duas provincias: o litoral formado pelos estuarios do
+Vouga e do Mondego, as serranias occidentaes ou maritimas, e as orientaes ou
+transmontanas.</p>
+
+<p>A serra da Estrella é a mais elevada das cordilheiras portuguezas; é o
+prolongamento da espinha dorsal da Peninsula; é a divisoria das duas metades de
+Portugal, tão diversas de phisionomia e temperamento; é finalmente como que o
+coração do paiz&mdash;e acaso nas suas quebradas e declives, pelos seus valles e
+encostas, demora ainda o genuino representante do lusitano antigo. Se ha um
+typo propriamente portuguez: se atravez dos acasos da historia permaneceu puro
+algum exemplar de uma raça ante-historica onde possamos filiar-nos, é ahi que o
+havemos de procurar, e não entre os gallegos ao norte do Douro, nem entre os
+turdetanos da costa do sul, nem entre as populações do litoral cruzadas com o
+sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais variadas
+nações.</p>
+
+<p>O pastor quasi-barbaro d'essas cumiadas da serra a topetar com as nuvens
+<small class="SMALL">(1:800 a 2:000m. de altit.)</small>, abordoado ao seu
+cajado, vestido de pelles, seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o
+descendente dos companheiros de Viriato. Por essas eminencias, tapetadas de
+relva no estio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem
+a subir: só o pastor nómada as habita. Do alto do seu throno de rochas vê
+gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas: primeiro o zimbro,<span
+class="pn"><a name="pag_39">{pg. 39}</a></span> rasteiro e roído pelo gado,
+circumda os altos nús; logo apparecem os piornos, as urzes brancas, os
+carvalhos; depois, já a meia altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, e
+os enxames de aldeias; afinal, na extrema baixa, o lençol de lagunas, tapete de
+esmeraldas engastadas em fios de brilhantes, que o sol faceta ao espalhar-se no
+labyrintho dos canaes.</p>
+
+<p>A serra da Estrella, reforçada ao norte pelo contraforte de Monte-muro,
+fecha, com o Marão e o Gerez, uma muralha natural, onde os ventos do mar
+estacam. Apenas cortada pelos valles do Douro e do Tua&mdash;duas fendas&mdash;essa
+barreira, cujos picos sobem até 2:000m., encerra e protege o Portugal do norte,
+sendo a principal causa das chuvas abundantes e do clima creador do litoral de
+além-Mondego.</p>
+
+<p>O beirão, habitante da encosta occidental onde o ar é mais humido do que em
+Traz-os-Montes <small class="SMALL">(65 a 100%)</small>, as chuvas mais
+abundantes <small class="SMALL">(700 a 1:200 millim.) </small>e a temperatura
+identica: onde o castanheiro colossal, o cedro, o carvalho e o pinheiro bravo
+põem na paizagem todos os tons e essa grandeza propria de arvores que vivem
+seculos: o beirão é menos vivo, mas mais robusto. Quem divagou por essas terras
+admirou decerto a structura herculea dos seus homens, cuja face, não luzindo
+com os brilhantes reflexos de vida interior, accusa todavia um pleno
+desenvolvimento da vida animal. Berço dos audazes bandidos, anachronicos
+representantes de uma independencia de outras edades,<a name="tex2html27"
+href="#foot1161"><sup>[27]</sup></a> a Beira é o viveiro de musculosos
+trabalhadores, que vão todos os annos, pelo estio, lavrar as glebas do sul do
+Tejo, levemente vestidos com as bragas curtas de<span class="pn"><a
+name="pag_40">{pg. 40}</a></span> linho, descalços, com a camisola de lan
+agasalhando o tronco, o barrete phrigio na cabeça, a manta e a enxada ao
+hombro.</p>
+
+<p>Descendo ao litoral, o beirão é amphibio: pescador e lavrador. A lavoura
+nasce do mar: os carros são barcos, adubos o <em>molisso</em> de algas e
+mariscos. Ao lado de um talhão de milho está uma marinha de sal. O mar
+insinua-se pelos canaes retalhando a planicie, em cujo centro, como uma
+arteria, corre placidamente o Vouga. A tres leguas da costa vê-se fundeado um
+barco: as mulheres cozem as redes, ao lado, sobre a terra humida e negra, que
+os bois lavram, ou o cavador abre á enxada. O calor <small class="SMALL">(15 a
+16)</small>, a humidade permanente <small class="SMALL">(65 a 80%)</small>,
+fazem germinar breve as sementes, multiplicam as colheitas, e as febres. Essa
+paizagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche
+de vivo prazer, quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das
+montanhas, attrahe-nos como a sombra da manzanilha, cheia de frescura e veneno.
+Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos homens.</p>
+
+<p>A exposição oriental ou transmontana das abas da serra da Estrella e dos
+cerros subalternos da Guardunha dá á provincia da Beira-baixa um outro aspecto:
+ha maior seccura no ar, e as chuvas são menos abundantes: os olivaes medram
+melhor, e os hahitantes juntam á vida agricola a industrial, tecendo as lans
+dos rebanhos da serra com a força das torrentes que se despenham nas quebradas
+do valle do Zezere.</p>
+
+<p>Já similhante por muitos lados ao alto Alemtejo, a Beira-baixa é a transição
+da metade norte para a metade sul do paiz.<span class="pn"><a
+name="pag_41">{pg. 41}</a></span></p>
+
+<p>Caminhemos de oriente para occidente. O Alto-Alemtejo tem o clima de
+Traz-os-Montes; a temperatura média é mais elevada <small class="SMALL">(16 a
+17.)</small>, porque a menor altura das montanhas dá frios menos intensos no
+inverno; as chuvas estivaes são menores tambem <small class="SMALL">(30 a 50
+mill.)</small>. Fronteira aberta da Hespanha, a raia apenas convencionalmente o
+divide da Estremadura castelhana. As mesmas planicies onduladas, as mesmas
+culturas cerealiferas, as mesmas florestas de sobros e azinhos, as mesmas
+vinhas, os mesmos costumes, os mesmos homens, estão de um lado e do outro da
+fronteira. Torrada pelo sol a face barbeada, de olhar vivo, gesto livre, porte
+nobre e seguro, bizarro, folgasão, hospitaleiro e communicativo, o alemtejano
+exprime no seu todo a grandeza um tanto austera do chão sobre que vive. Não é
+decerto um grego de Athenas, mas é um grego da Beocia. Os seus campos são um
+granel, os seus montados um viveiro. Quando nas longas e alinhadas estradas,
+entre lençoes de mattas de azinho escuro, sob o calor de um sol dardejante,
+divisamos ao longe uma pequena nuvem de poeira, que a luz illumina, e ouvimos o
+tilintar alegre das campainhas e guizos nas colleiras dos machos&mdash;é o cazeiro,
+que a trote largo, com a cara redonda e alegre, o ventre apertado nos seus
+calções de briche preto, vae á feira de Villa-Viçosa em maio, ou á de Evora em
+junho, tratar dos negocios da lavoura. A distancia, vem o arreeiro no seu carro
+toldado, guiando a récua de machos carregados de odres de vinho: logo o pastor
+com o guarda-mato de pelle de cabra, o cajado ao hombro, conduzindo as ovelhas,
+a vara de porcos, gordos como texugos, ou a boiada loura de longas hastes. O
+sol ardente dá tom a todas as côres, vida a todos os movimentos: suffoca-se, a
+poeira céga, e as bagas<span class="pn"><a name="pag_42">{pg. 42}</a></span> de
+suor camarinham na testa. O alemtejano diz pouco, e raro canta; não é
+misanthropia, é indifferença. O idyllio não póde seduzir a quem vive em ampla
+communhão com o campo largo, o céu sempre azul, o sol sempre em fogo. Apenas,
+de verão, baila ao som da guitarra nas noites calmosas, fazendo a vigilia aos
+seus santos favoritos, não para esquecer um trabalho que lhe não dóe, mas para
+dar largas aos seus amores de um momento.</p>
+
+<p>Os que uma vez embarcaram abaixo de Serpa, onde as cataratas põem ponto á
+navegação, Guadiana em fóra até ao Algarve, terão sentido ao chegar á foz a
+impressão de quem entra, de um sertão, em um jardim: de quem deixa uma gruta
+escura por uma planicie luminosa. Breve é a extensão do Algarve, desde
+Villa-Real até Lagos, abrigado pela ponta do cabo de S. Vicente; mas esse
+trajecto sombrio do Guadiana divide duas regiões caracteristicamente
+accentuadas. O algarvio é um andaluz. Ao contrario do alemtejano, tudo o
+interessa, de tudo fala, agita-se em permanencia, com uma vivacidade quasi
+infantil. No Algarve não ha o silencio e a impassibilidade: ha o movimento
+constante, o falar, o cantar de uma população como a dos gregos das ilhas, ora
+embarcados nos seus navios costeiros, ora occupados nos seus campos, que são
+jardins. Se a planicie e os longos horizontes das montanhas dão ao espirito a
+placidez solemne, tambem o arrulhar constante da onda, sobre a qual, debruçado
+como um eirado, está o Algarve, põe no pensamento uma agitação permanente,
+meio-tonta, mas encantadora. Ao calor de um sol já africano, durante o estio, e
+no seio de uma constante primavera, durante o inverno, o algarvio desconhece a
+aspereza da vida: nem os frios<span class="pn"><a name="pag_43">{pg. 43}</a></span>
+o obrigam á industria para se vestir, nem a fome ao duro trabalho da enxada
+para comer. Emquanto voga sobre o mar, mercadejando, pescando, contrabandeando,
+crescem-lhe no campo a figueira, a amendoeira, a laranjeira, cuja seiva o sol
+se encarrega de transformar todos os annos em fructos. A alfarrobeira nas
+encostas da sua serra, a palma pelos vallados, pedem apenas que lhes colham os
+fructos e os ramos; e o mercador, no seu barco, ao longo da costa, espera as
+cargas, para as trocar por dinheiro.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>No decurso da nossa viagem deixámos em claro as mortiferas baixas do
+Guadiana: nem vale a pena demorarmo-nos n'essa região desolada; porque agora,
+regressando pela costa acima, o litoral do Alemtejo e a parte occidental da
+Estremadura transtagana partilham com ella os caracteres tristonhos e doentios.
+Entramos na região dos terrenos terciarios: as aguas estagnam e apodrecem nas
+baixas; as populações definham. Ou torradas pelo arido suão, que os areaes
+ardentes não podem suavisar, e sem montanhas que obriguem os vapores do mar a
+condensarem-se; ou envenenadas pelos miasmas dos paúes que o sol de fogo põe
+n'uma fermentação permanente, as populações amarellecidas e magras definham,
+curvadas pelo trabalho mortifero das marinhas de sal, ou da cultura pantanosa
+do arroz. São o contraste das baixas do norte do paiz, estas baixas do sul.
+Além, copiosas chuvas e uma humidade creadora; aqui o ar secco <small
+class="SMALL">(500 a 700 mil. annuaes, 30 a 50 no estio; humidade, 30 a
+80%)</small> duro e carregado de emanações mephiticas. Além, uma temperatura
+branda; aqui um calor <small class="SMALL">(med. 17°)</small> excessivo. Além,
+uma população exuberante: aqui, as solidões e os<span class="pn"><a
+name="pag_44">{pg. 44}</a></span> areaes nús, matizados pela traiçoeira cevadilha,
+e pelo áloes orgulhoso, levantando com imperio o seu penacho côr de fogo. Além,
+homens laboriosos e familias; aqui tribus esfarrapadas em choupanas, tiritando
+com o frio das sezões n'uma atmosphera de lume: mulheres esqualidas, creanças
+verde-negras, homens na indifferenca de desolação, ou na vertigem do crime.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Entre estas duas regiões litoraes extremas está porém a central, a
+vingar-nos da miseria de uma e da opulencia da outra. Quem desce, de Canha e
+Alcacer-do-Sal até Setubal na peninsula de entre Tejo e Sado, e domina, desde o
+promontorio da Arrabida, a paizagem circumdante, respira afinal a longos traços
+uma plena vida e uma doce alegria. Acaso não ha no reino panorama nem mais
+bello, nem maior, nem mais nobre, nem mais variado. A nossos pés descem as
+anfractuosidades da serra vestidas de espessas matas: as giestas douradas, as
+bagas carmineas dos medronhos, o rosmaninho, a alfazema, misturando todos os
+seus aromas inebriantes. Sobranceiros a Palmella, vemos-lhe os muros ameiados:
+Setubal desenha-se no valle encastoada n'um jardim de laranjaes; no fundo
+quebram-se as ondas contra as rochas do Cabo; e para o lado opposto as collinas
+da fidalga Azeitão ondulam por sobre o espesso tapete de pinhaes extendido até
+ao Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a ponta de S. Vicente e o sul;
+para leste, Evora de um lado, as campinas do Riba-Tejo do outro; para norte,
+Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; além d'ella, Cintra e os montes da
+Estremadura cistagana, a qual, até ao Mondego, fórma a primeira<span
+class="pn"><a name="pag_45">{pg. 45}</a></span> zona extremenha, por onde vamos
+entrar no exame da ultima das regiões do nosso territorio.</p>
+
+<p>O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do
+paiz. Ahi o ar temperado pelas brisas maritimas mantém um grau de humidade,
+<small class="SMALL">(60 a 85%)</small>, e as chuvas, regulares sem serem
+copiosas <small class="SMALL">(700 a 800 mil. annuaes, e 20 a 30 no
+estio)</small>, uma rega, que fertilisam os terrenos sem os tornar gordos, como
+os do norte. Nem o calor <small class="SMALL">(15 a 16°)</small> tisna de verão
+as vegetações, nem o frio do inverno as atrophia. Por tudo isto, a população
+abunda, sem exorbitar, como no Minho; e o habitante reune á laboriosidade de
+uma vida agricola a liberdade de uma existencia mais ampla. Por tudo isto, além
+dos caracteres geognosticos da região, a flora é variada, reunindo o pinheiro
+bravo e o manso, a vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o
+centeio. Desde os campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e
+Alcobaça vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo; e,
+transpondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o
+Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á idéa o typo d'essas raças da
+Africa setentrional, lybios ou mouros, cujo sangue anda misturado em nossas
+veias. A cavallo, de pampilho ao hombro, grossos sapatos ferrados, gorro
+vermelho na cabeça, o ribatejano, pastoreando os rebanhos de touros nas
+campinas humidas e vicejantes, é como um beduino do Nilo. A vasta planicie
+matizada de povoações e bosques de choupos, de salgueiros e de álamos,
+contornada ao longe pelas cumiadas das serras, tem o caracter das paizagens do
+Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo esqueleto giganteo do Atlas<a
+name="tex2html28" href="#foot1164"><sup>[28]</sup></a>.<span class="pn"><a
+name="pag_46">{pg. 46}</a></span></p>
+
+<p>Como o beirão, tambem o ribatejano reune á vida agricola a maritima ou
+fluvial: é elle quem vem nos seus barcos de <em>agua-acima</em>, até Lisboa,
+trazer o seu tributo de cereaes e fructas. Pelo Tejo, o Portugal maritimo
+abraça o Portugal agricola fundindo n'uma as duas phisionomias typicas da
+nação. Rio acima, o Alemtejo de um lado, a Beira do outro, por esta fórma se
+communicam com a população maritima do litoral. Lisboa, com Sines ao sul,
+Aveiro ao norte, eis os pontos cardeaes d'essa costa Occidental, d'onde tantas
+grandes aventuras, tão dilatadas viagens se emprehenderam. Capital geographica,
+Lisboa é tambem a nossa capital maritima; e se as viagens e descobertas são o
+coração da nossa historia particular nacional, Lisboa é tambem a nossa capital
+historica. As toadas plangentes que ao som da guitarra se ouvem por toda a
+costa do occidente; essas cantigas, monotonas como o ruido do mar, tristes como
+a vida dos nautas, desferidas á noute sobre o Vouga, sobre o Mondego, sobre o
+Tejo e sobre o Sado, traduzirão lembranças inconscientes de alguma antiga raça,
+que, demorando-se na nossa costa, pozesse em nós as vagas esperanças de um
+futuro mundo a descobrir, de perdidas terras a conquistar ao mar?</p>
+
+<p>Os sonhos cheios de encanto e melancolia, por tão longos tempos embalados
+pelo incessante murmurio do mar bretão e pelo ciciar das florestas druidicas; o
+carinho da natureza pelo homem, traduzido n'essas lendas piedosas em que os
+animaes falam, os passaros veem fazer ninhos na mão dos santos, e a voz das
+fadas se mistura com o ramalhar das arvores e o murmurar das aguas: esse
+vaporoso e encantador botão da alma celtica, porventura desabrochava no
+espirito nacional portuguez,<span class="pn"><a name="pag_47">{pg. 47}</a></span>
+quando a conclusão das guerras da independencia assim o ordenou.</p>
+
+<p>D. João de Castro, o marinheiro, tem, como um druida, o amor ingenuo da
+natureza: «Ó vergonha e grande cubiça dos homens, que por haver as desventuras
+dos metaes cavam tanto a terra que lhe tiram fóra as tripas, derribam grandes
+outeiros, abaixam asperas e altissimas serras no andar e olivel dos campos, e
+não contentes de <em>estragarem tanto a terra</em>, rompem e furam pelo mar por
+haverem uma perla&mdash;e para esculdrinhar uma obra maravilhosa da natureza são
+timidos e preguiçosos!»<span class="pn"><a name="pag_48">{pg. 48}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1152" href="#tex2html25"><sup>[25]</sup></a> V. <em>Portugal
+ contemporaneo</em>, pass.</p>
+
+ <p><a name="foot1155" href="#tex2html26"><sup>[26]</sup></a> V. <em>Portugal
+ contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 183-91.</p>
+
+ <p><a name="foot1161" href="#tex2html27"><sup>[27]</sup></a> V. <em>Portugal
+ contemporaneo</em>, (2.ª ed.) <small>II</small>, pp. 51-3.</p>
+
+ <p><a name="foot1164" href="#tex2html28"><sup>[28]</sup></a> V. <em>Elem. de
+ Anthropologia</em> (3.ª ed.) p. 232.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002150">V<br>
+A historia nacional</a> </h3>
+
+<p>D'esta viagem, breve, pallida, e incorrectamente esboçada, ficaria&mdash;ousamos
+crêl-o&mdash;no espirito do leitor uma impressão por isso mesmo verdadeira. Pallida
+e como que indeterminada, sem fortes côres nem linhas pronunciadas, é a
+phisionomia da nação, quer na paizagem, quer nos homens. Nenhum traço profundo
+distingue a nossa geographia; benigno, médio ou temperado é o nosso clima, e
+tambem o nosso caracter.</p>
+
+<p>Se alguma cousa de facto nos individualisa, é a falta de affirmação do nosso
+genio. Aquellas a que poderemos chamar qualidades peculiares nossas, consistem
+na facilidade com que recebemos e assimilamos as de extranhos. Navegadores&mdash;e
+só por si este caracter não imprime em nós um cunho distincto dos demais povos
+maritimos&mdash;a maneira por que nos aventurámos ao mar, retrata ainda a nossa
+phisionomia collectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das costas
+africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando
+sempre, tenazes, mas jámais temerarios<a name="tex2html29"
+href="#foot1165"><sup>[29]</sup></a>.</p>
+
+<p>Essa individualidade passiva do nosso genio traduz-se na nossa historia.
+Ninguem busque n'ella<span class="pn"><a name="pag_49">{pg. 49}</a></span>
+movimentos originaes e profundamente caracterisados por uma idéa nacional:
+esperal-o-hia o castigo reservado a todas as chimeras. Ninguem busque tampouco
+o systema de um desenvolvimento proprio e organico, obedecendo a leis
+particulares, e constituindo, no seu todo, aquillo a que se chama uma
+civilisação: por esse lado apparecemos indestructivelmente ligados ao corpo
+peninsular; e apesar de politicamente separados, obedecemos ás leis geraes que
+lhe determinam a vida historica. O conjuncto dos nossos pensamentos moraes, o
+caracter dos movimentos que compõem o systema do desenvolvimento das
+instituições, o das condições das classes, e até as linhas geraes da nossa vida
+politica, são apenas um aspecto do systema da historia da peninsula iberica.
+Por isso nós, que, em outro livro,<a name="tex2html30"
+href="#foot1166"><sup>[30]</sup></a> tratamos d'este assumpto, não voltaremos
+agora a occupar-nos d'elle, para não fatigarmos o leitor com repetições
+inuteis. Procuraremos n'esta obra determinar o modo particular, proprio ou
+nacional, com que realisámos um programma historico geral, definindo a nossa
+individualidade collectiva; procuraremos tambem indicar os movimentos
+politicos, em que resolutamente defendemos a nossa autonomia; e finalmente
+mostrar que, sendo a ausencia de caracter nacional affirmativo, e a
+malleabilidade com que recebemos e assimilamos as influencias extranhas, o que
+mais pronunciadamente nos individualisa como povo, a independencia da nação não
+proveiu de factos naturaes, porém sim dos actos de vontade dos seus homens.
+Causas de outra ordem houve de certo que vieram dar-lhes um apoio energico, e,
+não falando agora nas maritimas e coloniaes, referimo-nos ás<span class="pn"><a
+name="pag_50">{pg. 50}</a></span> influencias extranhas á Hespanha, que por
+momentos nos pozeram, a nós, seus filhos, n'um estado de antagonismo
+transitorio com o desenvolvimento da historia peninsular. É sabido que a nossa
+primeira dynastia procedia de Borgonha; nos primeiros tempos são numerosos os
+fidalgos e soldados estrangeiros entre nós: e as conquistas de Lisboa, de
+Alcacer, do Algarve, effectuam-se com o auxilio de exercitos e armadas
+forasteiros. Mais tarde veem combater ao lado de D. João I os inglezes, com
+quem já ao tempo de D. Diniz celebráramos tratados de commercio, e que, nossos
+alliados no tempo do D. Fernando, nos impressionavam com os seus costumes e
+lettras. D'então data a generalisação dos nomes inglezes como Tristão, Jorge,
+Duarte, que se começam a encontrar ao lado dos antigos nomes romanos e
+gothicos. As allianças inglezas repetem-se nos primeiros tempos da dynastia de
+Aviz, até que o desenvolvimento do nosso imperio colonial nos torna soberanos.
+Annexados á Hespanha depois, voltamos a depender da Inglaterra ou da França,
+quando readquirimos a independencia. Generaes francezes commandam as campanhas
+da Restauração, patrocinada pela França; generaes inglezes, as guerras do
+principio do seculo subsidiadas pela Inglaterra. E duas vezes, quando se tentou
+chamar a nação á vida eminente da sciencia; duas vezes, quando D. João III e o
+marquez de Pombal reformaram a Universidade; duas vezes se importaram mestres
+extrangeiros.</p>
+
+<p>De tudo o que deixamos escripto o leitor decerto comprehendeu já o systema
+de preceitos a que vae obedecer o nosso estudo; e affigura-se-nos ser este o
+caminho verdadeiramente scientifico de encarar a historia nacional, despindo-a
+de illusões patrioticas, e de phantasias chimericas. Mal de nós,<span
+class="pn"><a name="pag_51">{pg. 51}</a></span> se, amando do coração a nossa
+independencia, imaginarmos que ella póde manter-se firme sobre um alicerce de
+fabulas, contra a recta e indestructivel verdade da sciencia! A independencia
+dos povos assenta sobre tudo na vontade collectiva: tal foi a base da nossa,
+tal continuam a ser, se com a vontade tivermos o juizo correspondente. Sem
+elle, o querer é apenas um capricho.</p>
+
+<p>Obedecendo pois ao enunciado, dividimos a historia patria em quatro periodos
+successivos. No primeiro, o da dynastia de Borgonha, não nos destacamos ainda
+bem do systema dos Estados peninsulares: somos um d'elles, e a independencia
+provém exclusivamente do espirito separatista da Edade-média personalisado no
+ciume absolutista dos reis e barões portuguezes.&mdash;Depois de Aljubarrota, porém,
+o sentimento de independencia nacional torna-se popular, desde que a revolução
+do Mestre d'Aviz o faz coincidir com o interesse particular da região
+portugueza. Entretanto a vida maritima fôra-se desenvolvendo: e a nova dynastia
+obedece conquistando o litoral da Africa aos marroquinos, á corrente historica
+peninsular: e inicia, com as navegações e descobertas, um movimento
+particularmente nacional. Póde então dizer-se que por um momento Portugal
+esteve á testa da historia da Hespanha.</p>
+
+<p>A terceira epocha abrange, a nosso vêr, a infeliz empreza do Imperio
+oriental, onde o movimento maritimo nos levou. Os elementos de vida propria,
+formados na epocha anterior, produziram uma colonisação á antiga e uma
+litteratura néo-latina: n'estas duas circumstancias provavamos faltar-nos uma
+fibra de intima originalidade nacional. A perversão dos costumes, a vastidão
+das emprezas, o limitado dos nossos meios, os erros politicos, finalmente,<span
+class="pn"><a name="pag_52">{pg. 52}</a></span> condemnam-nos á perda da
+independencia.&mdash;Se na quarta e final das epochas da nossa historia voltamos a
+reganhal-a, a nossa vida apparece, comtudo, outra. Ao imperio oriental perdido,
+vem a exploração e colonisação do Brazil substituir-se, dando um ponto de apoio
+externo ao pequeno corpo europeu; e mais tarde, perdido a seu turno o Brazil,
+voltamo-nos agora, a vêr se a Africa póde dar-nos os meios de custearmos as
+despezas de um paiz pequeno e mediocremente abastado, sobre o qual pesam os
+encargos cada vez maiores do machinismo nacional. Hollanda do extremo
+occidente, radicada no corpo da Hespanha, como ella o está no corpo germanico,
+só n'um ponto de apoio externo podemos fundar o alicerce de uma independencia
+excepcional; só á custa de recursos coloniaes poderemos talvez satisfazer as
+multiplas e dispendiosas exigencias da organisação economica, scientifica e
+moral, hoje inseparaveis e indispensaveis á existencia de uma nação.<a
+name="tex2html31" href="#foot1167"><sup>[31]</sup></a><span class="pn"><a
+name="pag_53">{pg. 53}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1165" href="#tex2html29"><sup>[29]</sup></a> V. <em>O Brazil
+ e as colonias portuguezas</em> (3.ª ed.) pp. 2-6.</p>
+
+ <p><a name="foot1166" href="#tex2html30"><sup>[30]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.).</p>
+
+ <p><a name="foot1167" href="#tex2html31"><sup>[31]</sup></a> V. <em>O Brazil
+ e as colon. port.</em> liv. <small>IV-V</small>, e <em>Portugal
+ contemporaneo</em> (2.ª ed.) liv. <small>VI</small>, 1, 3.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h2><a name="SECTION002200"><big>LIVRO SEGUNDO</big><br>
+HISTORIA DA INDEPENDENCIA</a> </h2>
+
+<p style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">(DYNASTIA DE
+BORGONHA: 1109-1385)</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p>«He nossa entençon curtamente fallar, nom come buscador de novas razõoes,
+ per propria invençom achadas, mas come aiumtador em huum breve moolho, dos
+ ditos dalguns que nos prouguerom.»</p>
+
+ <p style="text-align:right;margin-left:auto;margin-right:0;">F.
+ L<small>OPES</small>, <em>Chr. de D. Pedro I</em>.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002210">I<br>
+A separação de Portugal</a> </h3>
+
+<p>O condado portucalense, creado nos ultimos annos do <small>XI</small> seculo
+a favor do conde borguinhão D. Henrique, genro de Affonso VI, pouco tempo
+existiu sob o regime de uma vassallagem indiscutidamente reconhecida. Era essa
+a epocha em que a Hespanha tendia a constituir-se n'um systema de Estados
+independentes, á medida que successivas regiões iam saíndo de sob o dominio
+musulmano para o dos descendentes dos godos asturianos, ou dos seus actuaes
+alliados;<a name="tex2html32" href="#foot1168"><sup>[32]</sup></a> e o condado
+portucalense obedecia a esta tendencia geral, no empenho que o seu conde não
+mais encobriu desde a morte do sogro.</p>
+
+<p>É com effeito da data do obito de Affonso VI<span class="pn"><a
+name="pag_54">{pg. 54}</a></span> que deve contar-se a éra da independencia de
+Portugal; embora por largos annos ella seja mais uma ambição do que um facto:
+embora essa ambição traduza um pensamento que os acontecimentos posteriores da
+historia impediram se realisasse. Qualquer que fosse o valor dado no
+<small>XI</small> seculo á expressão geographica de <em>Portucale</em>, é facto
+provado por todas as memorias e documentos d'esses tempos, que para ninguem
+deixava de considerar-se o territorio de entre Minho e Mondego como parte da
+Galliza. O facto da constituição do condado de nada vale contra esta opinião;
+porque demasiado se sabe que a formação dos Estados medievaes, na Peninsula e
+fóra d'ella, jámais obedecia ás prescripções geographicas ou etimologicas. Não
+se attribua pois a causas d'esta ordem, nem á consciencia de uma solidariedade
+nacional, o facto da desmembração da Galliza dos fins do <small>XI</small>
+seculo. A scisão que o Minho demarcou obedeceu apenas a motivos de ordem
+politica.</p>
+
+<p>Isto mesmo, porém, deu causa a uma ambição, na qual devemos reconhecer o
+principio da vitalidade da nação portugueza, durante estas primeiras e ainda
+indecisas epochas da sua existencia. A solidariedade nacional espontanea
+existia de facto para os gallegos; e desde que a Galliza fôra dividida pela
+politica em duas, áquem e além Minho, restava saber qual d'essas metades
+tomaria sobre si o papel de representar um sentimento de independencia, commum
+a todos os membros ainda então disconnexos do corpo peninsular.</p>
+
+<p>Varias causas concorriam para attribuir este papel á metade portugueza da
+Galliza; e porventura acima de todas o facto do merecimento pessoal do conde
+portuguez. Circumstancias d'esta ordem eram decisivas n'uma epocha em que a
+anarchia<span class="pn"><a name="pag_55">{pg. 55}</a></span> systematica da
+constituição da sociedade fazia principalmente depender os destinos immediatos
+d'ella da perspicacia ou da bravura dos seus chefes. Nada ha de commum entre a
+vida d'estes tempos e a dos posteriores: e n'um certo sentido póde até dizer-se
+que os factos de ordem politica são independentes dos de ordem social, porque a
+sociedade é como um elemento passivo que por este lado (mas por elle apenas)
+obedece ás consequencias do desordenado capricho dos actos e caracteres dos
+chefes militares que a governam, sem propriamente a representarem.</p>
+
+<p>Nos primeiros tres seculos, isto é, na primeira epocha da historia
+portuguesa, a independencia é um facto originado no merecimento pessoal dos
+chefes militares dos barões de áquem Minho. Nacionalidade propriamente dita,
+não a ha; ou pelo menos não nol-a revelam os monumentos historicos, unanimes,
+tambem, em revelar uma ambição collectiva ou social que se estende a toda a
+Galliza. Ao merecimento pessoal reune-se, nos primeiros monarchas portuguezes,
+a circumstancia de serem os interpretes d'este sentimento. Por isso a tendencia
+permanente e o principio claramente definido da politica portugueza, nos
+primeiros seculos, é unificar a Galliza, constituindo a noroeste da Peninsula
+um Estado tão homogeneo, como o Aragão ou a Navarra a nordeste.</p>
+
+<p>N'este proposito se filiam todas as guerras civis&mdash;se este nome convém ainda
+aos conflictos entre Portugal e Leão&mdash;e as repetidas allianças dos barões
+gallegos das duas zonas divididas pelo Minho. A facilidade com que os reis
+portuguezes transpõem armados as aguas d'esse rio, o se apossam por varias
+vezes dos territorios da Galliza leoneza, são provas evidentes da opinião
+exposta.<span class="pn"><a name="pag_56">{pg. 56}</a></span></p>
+
+<p>Não quiz a sorte que chegasse a realizar-se este primeiro pensamento
+politico, a que chamaremos hegemonia de Portugal na Galliza, para usarmos de
+expressões modernas; antes ordenou que os limites convencionaes do condado
+portucalense apenas inscrevessem o ponto de partida da formação de uma nação,
+cujo caracter, ulteriormente definida, proveiu principalmente da phisionomia
+geographica da região; de uma nação, repetimos, que veiu a perder a tradição
+d'essa primitiva origem, desde que o genio das populações de entre Mondego e
+Tejo sobrepujou o das do norte, na direcção e impulso dados á vida collectiva
+portuguesa.</p>
+
+<p>Se n'esta primeira epocha da nossa historia o pensamento occulto que dirige
+com maior ou menor consciencia a politica, é incontestavelmente o da hegemonia
+de Portugal na Galliza, seria absurdo suppôr que, ao lado d'este principio,
+decadente desde certa epocha, se não fossem tambem manifestando de um modo
+correlativo, e cada vez mais pronunciado, os symptomas da deslocação do centro
+vital da nação.</p>
+
+<p>A circumstancia que mais decisivamente determina este caracter da nossa
+historia primitiva é a conquista dos territorios sarracenos de áquem Mondego,
+levada a cabo pelos barões portugueses, sem os auxilios do suzerano de Leão. É
+este movimento que, principiando por quebrar os laços de solidariedade entre os
+gallegos leonezes e os portugueses, vae gradualmente addicionando a estes
+ultimos os <em>Lusitanos</em> (seja-nos licito dizer assim, para mais
+claramente definir o nosso pensamento) até ao ponto de os ultimos predominarem
+na phisionomia posterior da nação, transferindo de Guimarães e de Coimbra, para
+Lisboa, a capital do reino: fazendo substituir á vida rural, primeiro quasi
+exclusiva,<span class="pn"><a name="pag_57">{pg. 57}</a></span> a vida commercial e
+maritima depois predominante e quasi absoluta.</p>
+
+<p>A primeira epocha da historia portugueza offerece pois á observação do
+critico dois movimentos<a name="tex2html33"
+href="#foot1169"><sup>[33]</sup></a>, oppostos n'um sentido, concordes em
+outro, que é o da affirmação positiva da independencia. Mas, se essa afirmação,
+terminante nas guerras leonezas, e tambem nas sarracenas, exprime de um lado a
+politica da hegemonia na Galliza, do outro exprime, de um modo todavia
+inteiramente inconsciente e espontaneo, uma tendencia contraria. É a da
+formação de uma nação <em>lusitana</em>, de que a Galliza portugueza desce á
+condição de provincia ao norte, como o Algarve, mais propriamente turdetano,
+vem a sel-o ao sul. O entre Douro e Guadiana, isto é, a espinha dorsal da
+Estrella, ladeada pelas Beiras ao norte, polo Alemtejo a sul, pela Estremadura
+a poente: eis ahi o que, logo desde o <small>XIV</small> seculo, começa a
+representar o corpo homogeneo da nação portugueza.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>No Portugal primitivo, a politica da hegemonia na Galliza não se fundava,
+porém, sómente em uma indeterminada ambição collectiva. Era um pensamento
+decisivo e fixo dos monarchas, e trazia origens tão antigas como a propria
+constituição do condado portucalense.</p>
+
+<p>Creado por uma desmembração da Galliza, o condado cedido ao borguinhão não é
+natural que satisfizesse os desejos ambiciosos do principe. Como<span
+class="pn"><a name="pag_58">{pg. 58}</a></span> as almas que, desorientadas pelas
+extravagancias do barbaro christianismo medieval, viviam n'um estado de
+aspirações nebulosamente infinitas: assim a ausencia de um criterio fixo,
+intellectual ou moral, e a lei da pura força em que existiam, lançavam os
+barões n'uma vida de aventuras, cujo criterio unico era a sua ambição, cujo
+unico limite era o limite imposto por uma força adversa. O poder do rei leonez
+era, para o conde borguinhão, o limite forçado das suas temeridades.</p>
+
+<p>Logo porém que Affonso VI morreu, deixando um vasto espolio a dividir, D.
+Henrique exigiu para si um largo quinhão. Quebrada pela morte a cadeia da
+vassallagem a um rei poderoso, e acaso desobrigado já da gratidão para com um
+sogro que tanto favorecera o conde, é d'esta éra que, a nosso vêr, data a
+independencia de Portugal: e não da éra, de resto indecisa e impossivel de
+determinar, em que Affonso Henriques tomou para si o titulo de rei. É dar uma
+demasiada importancia ao facto exterior e secundario do titulo, o fazer d'elle
+o symbolo da independencia da nação. Apesar de rei, D. Affonso Henriques
+prestou vassallagem: e a sua monarchia não é, de facto, mais nem menos
+independente, como monarchia, do que o condado de D. Henrique, ou o infantado
+de D. Thereza. A força e não a definição de um dominio, só effectivo quando se
+estriba nas armas, eis ahi o que exclusivamente caracterisa os movimentos dos
+seculos <small>XI</small> e <small>XII</small>.</p>
+
+<p>Ora essa força era já para D. Henrique um facto, desde que lhe morrera o
+sogro. A unidade que o seu valente braço dava ao dominio sobre os territorios
+herdados ou conquistados, levara-a Affonso VI comsigo para o tumulo; e entre os
+dois herdeiros rivaes, D. Urraca e o rei de Aragão, o conde portugalense tinha
+um logar bem preparado para<span class="pn"><a name="pag_59">{pg. 59}</a></span>
+exercer a sua astuciosa influencia, e para impôr condições e preço a uma
+alliança que ambos egualmente ambicionavam.</p>
+
+<p>Passemos longe d'essas chronicas de perfidias, de violencias, de adulterios
+e barbaridades que constituem a historia da herança de Affonso VI. Como os
+generaes de Alexandre, os principes da Peninsula retalham o manto do imperador:
+e a Edade-média, tão phantasiosamente pintada com traços de nobreza e
+galhardia, não é de facto menos corrupta e asquerosa do que a edade dos
+satrapas do Oriente. A ferocidade é mais violenta, a luxuria menos requintada,
+a perfidia mais ingenua, porque os homens são verdadeiramente barbaros, e não
+gregos barbarisados<a name="tex2html34"
+href="#foot1170"><sup>[34]</sup></a>.</p>
+
+<p>Do pacto de alliança de D. Henrique e D. Urraca resultou o engrandecimento
+do condado, para o norte na Galliza e para leste ao longo da bacia do Douro,
+abrangendo Tuy, Vigo, Santiago, por um lado, Zamora, Salamanca, Toro e até
+Valladolid pelo outro. A divisão e demarcação do novo Estado chegou a fazer-se
+com a possivel solemnidade, e com a concorrencia de barões leonezes e
+castelhanos. Era a definição de um Portugal que a historia não consentiu se
+mantivesse.</p>
+
+<p>N'este convenio ou tratado vieram posteriormente fundando-se todas as
+pretenções dos soberanos portuguezes á posse da Galliza, e d'aquella parte da
+Castella-velha geographicamente denominada Terra-de-Campos: territorios que o
+conde D. Henrique soubera ganhar para si na disputa da herança de Affonso VI.
+Tres annos apenas gosou o conde a posse d'esses seus dilatados dominios.
+Morrendo, a mesma historia de ignominias, adulterios e barbaridades<span
+class="pn"><a name="pag_60">{pg. 60}</a></span> ia assignalar o governo de sua
+viuva herdeira, como tinha assinalado o da viuva do conde Raymundo. Eram irmãs
+tambem, no caracter e nos appetites sensuaes, as duas filhas do D. Affonso
+VI.</p>
+
+<p>Morrendo, o velho conde portuguez, ao sitiar Astorga, chamou para junto de
+si o filho, em cujo peito borbulhavam ambições: «Filho, toma esforço no meu
+coração! Toda a terra que eu deixo, que é d'Astorga até Leão e até Coimbra, não
+percas d'ella cousa nenhuma, que eu a tomei com muito trabalho. Filho, toma
+esforço no meu coração! e sê similhante a mim, e sê companheiro dos fidalgos e
+dá-lhes todos os seus direitos, aos concelhos. Filho, toma esforço no meu
+coração!»</p>
+
+<p>Tal era o testamento do conde; já deixava ao filho uma nação constituida nas
+suas duas faces parallelas e correlativas: a nobreza, os concelhos. «E depois
+que houve castigado o filho d'estas cousas e outras muitas que aqui não
+dizemos, morreu.»</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A viuva de D. Henrique, publicamente amancebada com o conde gallego Fernando
+Peres, deu com os seus escandalos pretexto para uma revolta, que poz em risco a
+conservação dos vastos dominios herdados de seu marido. Assim tambem succedera
+a D. Urraca, perdida de amores pelo conde de Trava.</p>
+
+<p>Dissemos pretexto e não motivo, porque nos costumes ingenuamente dissolutos
+da Edade-média a mancebia não era caso que offendesse o pudor particular nem
+publico: os amantes das princesas offendiam, porém, o ciume dos seus collegas
+em fidalguia;<span class="pn"><a name="pag_61">{pg. 61}</a></span> e o poder
+effectivo de que um d'elles dispunha, á sombra do amor que o preferira, enchia
+de inveja e odio os companheiros.</p>
+
+<p>As memorias do tempo retratam-nos D. Thereza como uma mulher sagaz, viva e
+bella. A astucia combinava-se no seu espirito com um amor que a levava a
+<em>comprometter-se</em>, como diriamos na nossa linguagem moderna. Uma vez, na
+cathedral de Vizeu, apresentou-se com o amante, no meio da egreja apinhada de
+povo, e em frente do prelado que prégava. A authoridade dos bispos corria então
+parelhas com a rudeza das suas liberdades; e o de Vizeu não duvidou dizer á
+rainha, em voz alta, do pulpito ou dos degraus do altar, que abandonasse o
+amante ou se casasse: era um escandalo aquella união, uma vergonha proceder de
+tal modo. A condessa, vermelha de colera e confusão, fugiu rapidamente da
+egreja seguida pelo amante.</p>
+
+<p>Porque não succederia ao escandalo a vingança, para não quebrar a constante
+alliança da impudicicia e da crueldade, dominantes na Edade-média? Porque
+naturalmente as invectivas do bispo traduziam a força do partido dos invejosos
+e rebeldes, que já faziam do moço filho de D. Henrique um pendão de revolta
+contra a viuva apaixonada. Nem por tão pouco se affligiria a consciencia do
+bispo, pois o clero demasiado ouvia tambem os conselhos da carne, e os amores
+sacrilegos eram tão frequentes como os amores livres ou adulterinos.</p>
+
+<p>A princeza não era menos sagaz do que voluptuosa, e adiava para mais tarde a
+vingança. Beijos lascivos, perfidias indignas e barbaridades ferinas, eis os
+elementos que constituiam a mulher da Meia-Edade. Os dotes femininos eram
+naturalmente pervertidos por um ambiente de brutalidade<span class="pn"><a
+name="pag_62">{pg. 62}</a></span> anarchica nos sentimentos e nas acções; e, quando
+a mulher dispunha da aucthoridade e da força, ou como a Fredegonda dos
+Merowigues cevava em sangue a sua féra natureza, ou satisfazia n'uma
+impudicicia desesperada as necessidades sensuaes do seu temperamento. Nem a
+crueldade, nem a sensualidade eram menores nos homens: mas a natureza que
+n'elles dá o predominio aos pensamentos, como o dá aos sentimentos nas
+mulheres, fazia com que a rudeza dos primeiros andasse subalternisada á ambição
+e aos calculos politicos, ou á bravura e ás façanhas guerreiras.</p>
+
+<p>Não se imagine, porém, a mulher da Edade-média um ser apenas formado de
+crueldade e amor; menos se supponha D. Thereza uma similhante creatura. A
+condessa, infanta ou rainha de Portugal&mdash;porque de todos estes titulos
+usou&mdash;era tambem sagaz e astuta, qualidades que o filho veiu a herdar com o
+sangue. Não tinha o animo varonil de uma amazona, mas tinha a perspicacia e o
+juizo proprios dos principes d'esses tempos. Sabia moderar a colera e engulir
+affrontas como a de Vizeu, quando não podia vingar-se d'ellas. O amor traduzia
+apenas uma exigencia dos sentidos, deixando livre e independente a acção da
+intelligencia. No meio das agitadas circumstancias do seu breve governo, não
+deixou abandonadas as conveniencias proprias, como dona e senhora do Estado
+portuguez.</p>
+
+<p>Muitas vezes se lêem descripções de uma vida sentimental e heroica, em que
+as mulheres andam loucas de paixões poeticas, e os homens, typos de nobreza e
+audacia, são victimas dos conflictos do amor e da honra. Não ha nada mais
+differente da verdadeira, do que essa Edade-média<span class="pn"><a
+name="pag_63">{pg. 63}</a></span> das operas. A carnalidade desenfreada, o cynismo
+e a perfidia, uma frieza sempre calculadora, uma ambição feroz, uma avareza
+sordida, uma corrupção de todas as fontes da vida moral: eis ahi o que de facto
+constitue a vida aristocratica da Edade-média. Onde está a causa de tamanhas
+desordens? Está na coexistencia e no conjuncto de condições barbaras e de
+tradições cultas. D'onde provém a illusão com que muitos suppozeram bellezas
+espontaneas nos caracteres, e nobres dedicações nos actos, creando com a
+phantasia um falso quadro de encantos? Da ingenuidade dos typos barbaros.</p>
+
+<p>Ha, com effeito, na natureza espontanea o quer que é de seductoramente
+bello, que nos chama para uma região de deleites inconscientes: assim todas as
+descripções das sociedades primitivas produzem em nós uma impressão
+vivificante, e desde logo somos levados a engrandecer e nobilitar os homens
+ainda não corrompidos pelas aberrações da civllisação. É mistér porém observar
+que taes homens primitivos não são os do <small>XI</small> seculo; que na
+Edade-média existem e vivem, principalmente por via da Egreja, todas as
+tradições da cultura antiga; e que a conjuncção da barbarie e do requinte lança
+nos caracteres uma semente de perversão, prompta a rebentar em actos
+monstruosos, tão corrompidos no principio, como barbaros na fórma. É popular o
+sentimento de tédio e nojo para com o imperio de Byzancio; pois as causas
+originarias d'essa repugnancia são tambem communs ás sociedades néo-latinas, ou
+néo-godas da Hespanha.<a name="tex2html35" href="#foot1171"><sup>[35]</sup></a>
+Só variam as proporções: os elementos combinados são os mesmos. No Oriente<span
+class="pn"><a name="pag_64">{pg. 64}</a></span> a cultura é maior, os costumes mais
+requintados: aqui é maior a rudeza, e a feição barbara predomina. Por isso os
+vicios procuravam, além, esconder-se sob o manto das convenções; e aqui se
+expandem ingenua e francamente, á luz de uma ignorancia quasi primitiva.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Assim que D. Urraca morreu. Affonso VII, depois de reconquistadas ao visinho
+aragonez as cidades de Castella, olhou para oeste, afim de reconstituir de novo
+a monarchia leoneza, fazendo regressar ao seu dominio os territorios de Campos
+e da Galliza. A invasão e a guerra duraram apenas uma campanha; e a amorosa
+Thereza curvou-se ao imperio das condições, reconheceu o facto da conquista, e
+confessou com humildade a vassallagem ao sobrinho leonez.</p>
+
+<p>Portugal retrahia-se aos primeiros limites&mdash;do Minho ao Mondego&mdash;do condado
+creado por Affonso VI; e os calculos do conde borguinhão frustravam-se, depois
+de menos de vinte annos de indeciso dominio.</p>
+
+<p>Esse infortunio da <em>regina</em> de Portugal acabou de decidir os
+invejosos do conde gallego, seu amante. As tendencias de sublevação, até ahi
+sopitadas ou mal definidas, tomaram corpo e unidade; e a revolta declarada dos
+barões achou nos desastres de 1127 motivo sufficiente para se erguer em campo
+aberto.</p>
+
+<p>Capitaneava a revolta o infante portuguez. Não é esta a unica occasião em
+que vemos erguerem-se em armas os filhos contra os paes, os irmãos contra os
+irmãos, como prova de que, se os sentimentos andavam pervertidos pelos
+instinctos<span class="pn"><a name="pag_65">{pg. 65}</a></span> brutaes, ou
+vinculos de familia eram apenas laços tenues que se rompiam ao impulso de
+qualquer exigencia da colera ou da ambição. Nem sentimentos, nem instituições
+fixas: uma anarchia total no individuo e na sociedade, uma desordem acabada na
+moral e no direito, eis ahi as bases historicas da Edade-média, cujo deus é a
+força.</p>
+
+<p>D. Affonso Henriques, o primeiro rei portuguez, ou capitaneava ou era o
+pendão apenas&mdash;hypothese que a sua curta edade justifica&mdash;da revolta que tinha
+por chefes o arcebispo de Braga D. Paio, Sueiro Mendes o <em>grosso</em>,
+Ermigio Moniz, Sancho Nunes, genro da <em>regina</em> Thereza, e Garcia Soares.
+Aos pactos de Braga succedeu o encontro de Guimarães. A rainha, abraçada ao seu
+amante, vinha seguida por barões fieis de áquem, e pelos barões de além-Minho,
+que se tinham submettido a Affonso VII<a name="tex2html36"
+href="#foot1172"><sup>[36]</sup></a>. A batalha decidiu-se pelo filho, e a
+rainha fugiu a esconder no condado do amante o desespero da derrota. De
+protectora, os acasos da guerra faziam-na agora protegida; e a historia deve
+ainda ao conde gallego a justiça de mencionar que a não abandonou, quando a viu
+despojada do poder e do titulo. Os prazeres da paixão acaso suavisariam á
+formosa filha do grande Affonso a infelicidade das armas, e porventura tambem o
+desespero maternal, se é que os vinculos de sangue tinham para a mãe um
+merecimento superior ao que tinham para o filho.</p>
+
+<p>No seio da barberie corrupta em que se revolvia, a Edade-média tinha, porém,
+não só o instincto dos deveres, innato nos homens, como o medo dos castigos
+divinos prégados por uma religião que até para o proprio clero baixára ás
+condições de<span class="pn"><a name="pag_66">{pg. 66}</a></span> um quasi
+fetichismo. As lendas contam que, vencedor, o filho encarcerára a mãe, e põem
+na bocca de D. Thereza este anathema terrivel: «Affonso Henriques, meu filho,
+prendeste-me e metteste-me em ferros e exherdaste-me da minha terra que me
+deixou meu padre, e quitaste-me de meu marido: rogo a Deus sejas assi como eu
+sou, e porque metteste ferros nos meus pés, quebradas sejam as tuas pernas com
+ferros. Mande Deus que isto assim seja!» E o anathema cumpriu-se em Badajoz,
+annos depois, porque Deus vingador não perdoava os crimes frequentes dos filhos
+contra os paes. Assim pensavam esses homens simples.</p>
+
+<p>Á batalha de Guimarães ligava-se, porém, um alcance maior do que o de uma
+simples questão de familia: era a ruptura de solidariedade entre as duas
+metades da Galliza, e a victoria da portugueza sobre a leoneza. Era o primeiro
+symptoma de uma direcção nova, que se ia imprimindo na vida historica nacional.
+Essa ruptura da solidariedade, e a força da monarchia leoneza sob Affonso VII,
+serão dois motivos concorrentes para impedir que as tentativas do primeiro rei
+portuguez tenham sobre o norte resultados efficazes.</p>
+
+<p>Logo depois de Guimarães, Affonso Henriques, preferindo o papel de invasor
+ao de atacado, procura reivindicar as fronteiras perdidas em 1127 por D.
+Thereza. Duas vezes invade a Galliza transminhota: duas vezes é forçado a
+recuar, em 1130 e em 1132; mas depois de Guimarães, depois da lide de
+Val-de-Vez em que os portuguezes venceram, já a independencia de facto estava
+conquistada. Sellados os preliminares de paz, Affonso Henriques occupou-se em
+<em>acalmar</em> as terras do seu senhorio afim que nunca «lhe acontecesse
+outro tal desavisamento,» e conquistou «todallas fortalezas<span class="pn"><a
+name="pag_67">{pg. 67}</a></span> de portugal assy como se fossem de mouros.»</p>
+
+<p>Quem era Affonso Henriques? Já amestrado no officio de reinar, á maneira
+porque então se entendia um tal officio, o moço principe reunia as condições
+necessarias para consolidar uma independencia até ahi precaria. Era audaz,
+temerario até, pessoalmente bravo, qualidade nem tão commum no tempo, como a
+muitos acaso pareça. Fraco general, ao que se vê, porque as batalhas feridas
+com as tropas leonezas perdeu-as sempre, era feliz guerrilheiro. Capitaneando
+um troço de soldados, caía de improviso sobre um logar, e a furia irresistivel
+do ataque deu-lhe a maior parte das suas victorias. Nem a grandeza das emprezas
+o assustava, nem as distancias o impediam de acudir a um tempo, do extremo
+norte, quasi ao extremo sul no paiz. A estes dotes militares reunia outros não
+menos valiosos, na precaria situação em que se apossára do reino. Era secco,
+astuto, friamente ambicioso, sem chimeras, nem illusões. Era um espirito agudo
+e pratico, e isso fazia boa parte da sua força. Mal dos politicos ao mesmo
+tempo apostolos! Como a tenra haste que verga á mais leve brisa do cannavial,
+assim Affonso Henriques, sem rebuços obedecia, logo que a sorte lhe era
+adversa. Passada a tormenta erguia-se; e á facilidade astuta com que se
+humilhava, respondia logo a teima perfida com que se rebellava. Isto fazia-o
+indomavel. Tinha o quer que é de fugitivo, na sua politica e no modo porque
+fazia a guerra. Ubiquo militarmente, era nos negocios um proteu. Os seus
+amigos, leonezes, sarracenos, não achavam por onde prendel-o. Submisso e
+humilde quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, acceitava
+todas as durezas; para logo mentir<span class="pn"><a
+name="pag_68">{pg. 68}</a></span> a todas as promessas, rasgar todos os tratados,
+com uma franqueza ingenua, uma simplicidade natural, que chegavam a espantar a
+propria Edade-média. Nem brios cavalleirosos, nem sentimentos de familia, nem
+odios pessoaes, nem vinganças estupendas: nenhuma chimera, nenhuma grande
+ambição, nenhum sentimento poetico, enchiam a sua cabeça, estreita, e
+inteiramente occupada pela idéa fixa de consolidar a sua independencia. O
+predominio absoluto de uma idéa pratica, servida por uma intelligencia lucida,
+por um caracter sem grandeza, e por uma valentia provada, tornavam-no
+invencivel, ainda mesmo quando era batido. A sua teima fazia-o similhante a uma
+lamina de aço, um instante vergada por um esforço momentaneo, logo estendida
+quando livre, e impossivel de manter curvada desde que se acha solta. O seu
+pensamento tinha a tenacidade da mola, e não a rigeza do bronze nem o peso do
+chumbo. Vivia dentro do seu Portugal como um javardo no seu refoio: assaltado,
+investia, despedaçando tudo com as fortes prezas. Perseguido, fugia. Não tinha
+a nobreza do leão, nem a astucia ferina do tigre: possuia apenas a tenacidade
+brava e bronca do javali. Um fraco apenas lhe notam, embora os actos da sua
+vida não denunciem que esse defeito o prejudicasse muito: gostava de ser
+adulado.</p>
+
+<p>Affonso Henriques foi quem verdadeiramente consummou a separação de
+Portugal, não pelos meritos proprios apenas, mas porque a direcção politica do
+reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos factos no sentido de definir
+de um modo positivo a independencia da nação.</p>
+
+<p>Uma parte dos barões da Galliza leoneza, sublevados contra o suzerano,
+acolheu-se em 1137 sob a protecção de Affonso Henriques, prestando-lhe<span
+class="pn"><a name="pag_69">{pg. 69}</a></span> vassallagem, e, assim, de novo se
+levantou a questão das fronteiras do norte de Portugal. Affonso VII não pudera,
+nos annos anteriores, descer a rebater as invasões do turbulento visinho,
+occupado como estava a debellar o navarro; agora, porém, tinha já os movimentos
+livres, e apressou-se a submetter a Galliza. Por seu lado Affonso Henriques era
+solicitado a defender a fronteira austral, onde os sarracenos tinham vindo
+n'uma álgara feliz derrocar o castello de Leiria. É por estes annos que o
+destino de Portugal se debate entre a Lusitania e a Galliza, quando a
+actividade do guerreiro é solicitada, ora do norte contra os leonezes, ora do
+sul contra os sarracenos. Oscillante ainda e indeciso, breve assistiremos ao
+definitivo pender da balança no sentido do alargamento das fronteiras
+austraes.</p>
+
+<p>A simultaneidade do ataque leonez e sarraceno em 1137 obriga Affonso
+Henriques a curvar a cabeça, assignando as pazes de Tuy, nas quaes desiste das
+suas pretensões de além-Minho, confessando, ao mesmo tempo, vassallagem ao
+suzerano de Leão. <em>Ut arundo fragilis ferebatur</em>: vergava como o
+cannavial o principe, a este sopro da fortuna adversa! Desistia de tudo, da
+ambição e até da independencia. Quem se fia, porém, na palavra do pertinaz
+batalhador? Defendido o seu senhorio por norte, não se demora a persistir n'uma
+guerra leal mas perigosa. Espera melhor oocasião para a desforra; porque lhe
+não custa subscrever a um tratado, a que não pensa decerto submetter-se, senão
+emquanto a força das cousas a isso o violentar. Não assim os fronteiros de
+nordeste que, apesar das pazes de Tuy, continuam a guerra por conta propria:
+tão frageis eram ainda os laços, que reuniam os vassallos ao conde soberano de
+Portugal!<span class="pn"><a name="pag_70">{pg. 70}</a></span> De Tuy, o leonez,
+subindo pelo valle do Lima atravez da Galliza portugueza que assolára, vae
+encontrar as mesnadas dos ricos-homens sublevados nos Arcos-de-Val-de-Vez.
+Resam as tradições de um torneio ou <em>bufurdio</em><a name="tex2html37"
+href="#foot1173"><sup>[37]</sup></a> em que os cavalleiros inimigos batalharam
+por seus exercitos, vencendo os portuguezes na estacada, onde numerosos
+combatentes ficaram mortos, segundo as regras da cavallaria. Apesar de
+victoriosos, porém, os portuguezes não podiam resistir a Affonso VII, tanto
+mais que D. Affonso Henriques desistira de continuar uma guerra improficua.</p>
+
+<p>Que fazia entretanto o principe? Tratava da desforra de Leiria; e em 1139
+levava a cabo o temerario fossado de Ourique, pagando uma estocada com outra; e
+preludiando esse duello de morte, entre Portugal e o Al-Gharb sarraceno, com um
+golpe que foi, com a rapidez penetrante do raio, ferir o corpo musulmano quasi
+junto a Chelb ou Silves, o coração da Hespanha austral. A esta aventura
+temeraria, mas feliz, ia succeder em curtos annos a empreza mais seria e
+importante da conquista da linha estrategica do Tejo: facto de um alcance
+capital, n'esse periodo em que o futuro destino da nação fluctuava ainda
+indeciso entre a Galliza e a Lusitania.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Desde que o antigo condado portucalense, batido na sua tendencia de absorver
+a Galliza, conquistava a região de entre Mondego e Tejo, chegando a avançar
+padrastos ameaçadores para o sul,<span class="pn"><a
+name="pag_71">{pg. 71}</a></span> era evidente que um novo Estado se formava; e
+esse Estado nascia dos actos proprios do conde portuguez, não de concessões ou
+beneficios do suzerano. Esse Estado era pois um reino, uma vez que a esta
+palavra andava ligada, de um modo mais ou menos definido, a idéa da
+independencia, segundo o direito politico dos godos. Foi, portanto, quando o
+plano de se apossar do sul do reino começou a occupar o espirito do guerreiro,
+orgulhoso pela victoria de Ourique, isto é, em 1139 ou 1140 (a erudição não
+conseguiu determinar a éra) que Affonso Henriques tomou para si o titulo de
+rei. O caso não era novo, porque por vezes a mãe usára chamar-se rainha de
+Portugal; dava-se, porém, agora a circumstancia de que esse titulo, embora
+juridicamente usurpado, o era com tamanho fundamento, que nunca mais deixou de
+ser o dos soberanos portuguezes.</p>
+
+<p>A razão politica da independencia, evidente hoje para a critica, não o
+estava de certo para o rei, a quem as conquistas apenas satisfaziam a ambição,
+e o titulo a vaidade. Via-se mais poderoso e grande; mas não tinha de certo a
+consciencia de que isso importasse o primeiro passo no caminho da formação de
+uma nova nação peninsular. Ferido, tirára do sarraceno uma desforra completa;
+mas faltava ainda apagar a nodoa de Tuy, rasgar esses tratados que ligavam,
+como vassalla, á corôa soberana de Leão, a sua corôa ainda mal assente, o seu
+reino precario ainda. Uma volta da fortuna podia outra vez precipital-o, das
+eminencias onde as suas ambições o erguiam, na humilde condição de conde de
+Portugal.</p>
+
+<p>Em Val-de-Vez Affonso VII assignára os preliminares de uma paz que os
+acontecimentos dos annos posteriores não tinham consentido se traduzisse<span
+class="pn"><a name="pag_72">{pg. 72}</a></span> n'um tratado definitivo; e agora
+não era já licito ao leonez exigir, nem ao portuguez acceitar as duras
+condições de uma perfeita vassallagem.</p>
+
+<p>O papado exercia então na Europa uma especie de suzerania espiritual sobre
+os principes christãos; porque no meio d'esses guerreiros, bravios e timidos
+como selvagens, o sacerdote tinha verdadeiramente o poder de condemnar em nome
+de Deus.<a name="tex2html38" href="#foot1174"><sup>[38]</sup></a> Uma
+excommunhão valia muitas vezes mais do que um exercito. Assim, o cardeal Guido,
+legado do papa, é quem em 1143 dicta em Zamora, onde Affonso Henriques foi
+vêr-se com o imperador (d'esse titulo usava Affonso VII) as condições do
+tratado de paz. O portuguez desiste ahi das suas pretenções ás fronteiras
+cedidas por D. Urraca, e Affonso VII por seu turno reconhece a independencia do
+novo reino e o titulo do seu soberano. Esta soberania e independencia não eram,
+porém, absolutas. Na jerarchia feudal havia graus diversos de suzerania e
+vassallagem correspondente; e os tratados de Zamora alteravam a natureza, mas
+não quebravam de todo os laços que prendiam Portugal ao corpo da grande
+monarchia peninsular. Affonso Henriques ficava sendo um rei, mas o seu reino
+nem por isso deixava de fazer parte do imperio da Hespanha; nem elle proprio,
+por tal fórma, deixava de ficar n'uma situação subalterna perante o imperador.
+Era uma vassallagem politica, substituindo a pura vassallagem pessoal do regime
+anterior. O direito feodal não se obliterára, porém, ainda ao ponto de
+prescindir de uma obrigação pessoal; e por isso o soberano portuguez continuava
+a ser vassallo do visinho, não<span class="pn"><a name="pag_73">{pg. 73}</a></span>
+como soberano, mas como senhor de Astorga, para esse effeito doada a Affonso
+Henriques.<a name="tex2html39" href="#foot1175"><sup>[39]</sup></a></p>
+
+<p>Estas subtilezas propriamente byzantinas, inspiradas pela politica
+ecclesiastica que imprimia o seu cunho ao feodalismo, formavam um systema de
+enganos reciprocos, de mentiras mais ou menos sinceras, com que se revestiam os
+actos brutaes da força, e os actos perfidos da astucia.</p>
+
+<p>Affonso Henriques, <em>regendi imperii jam bene sciolus</em>, mestre acabado
+na arte de enganar e na arte de combater, tinha já formado o seu plano, e por
+isso subscrevia sem reserva a todas as exigencias do tratado. A independencia e
+a soberania que elle lhe dava eram apenas pessoaes e vitalicias, e nas idéas
+aristocraticas a hereditariedade era inseparavel do dominio. O seu reino era
+pois um falso reino, desde que, não havendo no direito politico dos godos outra
+base para a successão, além da electiva, ou Portugal seria por sua morte
+absorvido no imperio hespanhol, em via de cristalisação, ou o filho de Affonso
+Henriques teria de recomeçar a debater com as armas a questão vital da
+independencia. Os termos do tratado decerto o não illudiam, garantindo-lhe
+apenas pessoalmente a independencia e a soberania; e se da parte do leonez
+houvera o intento perfido de o enganar, elle preparava uma licção ao mestre, e
+tão eloquente como fôra cruel a licção que dera ao sarraceno.</p>
+
+<p>Entre os dous litigantes o italiano perspicaz foi provavelmente o
+conselheiro de ambos. Guido, como o insecto artificioso e cheio de habilidades,
+teceu a trama. Ao leonez mostraria o modo de illudir o adversario: conceder-lhe
+tudo, deixando esse tenue cordão umbilical de Astorga, para no<span
+class="pn"><a name="pag_74">{pg. 74}</a></span> momento opportuno fazer reverter os
+territorios portuguezes ao corpo da monarchia soberana. Voltando-se depois, com
+um sorriso, diria baixo ao portuguez, que o tratado não valia nada de principio
+a fim, se elle quizesse seguir-lhe os conselhos. Todas as habilidades do
+imperador provariam inuteis: tinha um meio seguro!&mdash;Affonso Henriques devia
+ouvir com attenção tenaz as confidencias do cardeal. Havia um direito superior
+ao direito feodal: era o canonico. Havia um soberano, rei dos reis: o papa.
+Porque não seria Affonso Henriques vassallo do papa? Collocasse os seus reinos
+sob a suzerania papal, e nenhum imperador das Hespanhas ousaria tocar-lhes. Só
+assim a sua corôa ficaria segura na cabeça, d'elle e de seus descendentes. A
+suzerania do papa era de resto infinitamente menos incommoda. Reduzia-se a uma
+pequena somma de dinheiro. Um nada! Quatro onças de ouro por anno, nem mereciam
+a pena contar-se deante da independencia de facto. Se o rei acceitasse, elle
+proprio em pessoa redigiria a carta, elle que redigira o tratado; elle proprio
+seria portador da missiva ao papa. Se viera a Hespanha fazer a paz, iria de
+Hespanha com o coração contente, por ter conquistado mais um vassallo para a
+Egreja.&mdash;E mais um censo annual para o thesouro romano, accrescentaria
+mentalmente!</p>
+
+<p>Affonso Henriques desde logo acceitou. Pouco lhe importava o censo, porque
+não tinha sequer a certeza de ser fiel ao pagamento. O cardeal illudia-se, se
+suppunha que o rei tremia das excommunhões: um rei que não havia de hesitar em
+rasgar as bullas pontificias, e pôr e depôr bispos, como bem lhe
+approuvesse!</p>
+
+<p>O cardeal partiu levando a carta do rei; e emquanto este ia formando a
+tenção de supprimir o<span class="pn"><a name="pag_75">{pg. 75}</a></span>
+pagamento do censo, logo que lhe conviesse fazel-o, o cardeal foi pela viagem
+ruminando o modo de colher as onças de ouro, sem se inimisar com o leonez. Só
+annos depois Affonso VII veio a saber como o visinho e já quasi émulo illudira
+as disposições do tratado de Zamora. Insistindo com o papa para que recusasse a
+vassallagem, não o consegue; mas tampouco Affonso Henriques consegue aquillo
+por que pagára o preço de quatro onças de ouro annuaes; pois nas piedosas
+cartas que lhe escreve, como suzerano a vassallo, o papa cuidadosamente evita
+chamar-lhe <em>rei</em>, e <em>reino</em> a Portugal.</p>
+
+<p>Em vão Affonso Henriques insta e exige. Por fim, já nos derradeiros annos do
+seu reinado, e á custa de um presente de mil morabitinos e do augmento do censo
+annual, Alexandre III decide-se, e sancciona-lhe o titulo, garantindo-lhe a
+hereditariedade, sob condição de preito e confirmação outorgada aos seus
+successores.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Portugal, que já a esse tempo tinha uma razão de ser territorial
+independente da Galliza, achava agora um fundamento juridico de independencia
+de Leão. A suzerania do papa collocava o novo reino ao abrigo das pretenções da
+monarchia leoneza; e se Affonso Henriques não saía da condição subalterna de
+vassallo, porque apenas mudára de protector ou suzerano, o facto é que na
+mudança ganhava uma liberdade real, esperando o que de facto veiu a conseguir:
+que a vassallagem se tornasse nominal apenas.</p>
+
+<p>Ainda no tempo do primeiro rei portuguez de<span class="pn"><a
+name="pag_76">{pg. 76}</a></span> novo se ateia a guerra com Leão; mas basta um
+exame superficial dos monumentos historicos para vêr que o caracter e as
+condições d'essa nova campanha são já totalmente outros. Não é um vassallo
+rebelde pugnando pela independencia: é o choque de duas monarchias que
+reciprocamente se reconhecem como taes. A serie de guerras entre os diversos
+estados da Peninsula&mdash;caminho por onde ella chegou a determinar as condições
+definitivas das suas constituições politicas&mdash;tem na campanha de 1160 um
+episodio. Affonso Henriques, já rei de facto e de direito, já senhor da linha
+estrategica de Santarem, e possuindo além d'isso, como vedetas avançadas para o
+sul, varias praças do Alemtejo, dispunha de forças sufficientes para pesar com
+a sua espada no debate das questões politicas dos Estados peninsulares. Desde
+que se decidisse a fazel-o, é natural que a velha ambição das fronteiras
+dilatadas de norte e nordeste fosse a causa efficiente dos seus actos.</p>
+
+<p>Fernando II de Leão casára com uma filha do rei portuguez, mas nem ao genro
+nem á filha Affonso Henriques cedia os seus ambiciosos propositos. Raras vezes
+a politica tomou em consideração os vinculos de familia. O rei de Leão usurpára
+a corôa de Castella, e contava que a esposa lhe trouxesse a alliança do
+portuguez; porventura teria havido intelligencias positivas entre os dois
+monarchas. Quando com uma livre audacia se rompiam as pazes mais solemnes, que
+admira que se mentisse a convenios ou ajustes privados? Affonso Henriques era,
+como se sabe, mestre na arte de reinar. O facto é que, logo um anno depois do
+casamento da infanta, aproveita o momento em que o rei Fernando se achava a
+braços com a insurreição dos castelhanos, para mandar seu filho<span
+class="pn"><a name="pag_77">{pg. 77}</a></span> e herdeiro, Sancho, á batalha de
+Arganal, onde foi batido (1165). Invadindo em pessoa a Galliza, o rei
+apossára-se facilmente de Tuy e do districto de Toronho até ao Lerez, seguindo
+d'ahi para leste (1166). Essa nova occupação portugueza da Galliza dura até ao
+desastre de Badajoz (1169).</p>
+
+<p>Correndo então ao sul, Affonso Henriques decide-se a consolidar as suas
+possessões do Alemtejo, conquistando Badajoz aos sarracenos. Este acto, porém,
+era simultaneamente um episodio da guerra com Leão, porque o wali de Badajoz se
+collocára sob a suzerania de Fernando II, e porque a praça ficava para fóra dos
+limites de leste, marcados em Zamora ás futuras conquistas do rei de Portugal
+sobre os musulmanos.</p>
+
+<p>A cidade caiu sobre o ataque do portuguez. Colhidos por surpreza, os
+defensores encerraram-se na alcaçova, resistindo. Poz-se o cerco, mas
+entretanto o rei de Leão, avisado, correu a defender o que era seu; e Affonso
+Henriques foi colhido entre dois inimigos. De sitiante viu-se cercado.</p>
+
+<p>Afinal o temerario capitão caía em poder do adversario, afinal o caçador
+colhia-o fóra do refoio. Debate-se, estrebuxa e, ainda vencido, lucta
+desesperado; mas está pesado, velho e gasto. Faltam-lhe as forças para
+arremetter como d'antes, com a cabeça baixa e as presas activas, contra a
+matilha dos lebreus. Tropeça e cáe. É colhido. Cumpria-se o anathema: Deus
+castigava o filho que prendera sua mãe! Prisioneiro, curva-se submisso,
+recolhendo a colera e os dentes açulados, perante o seu nobre vencedor. Tal
+nome convem de facto a Fernando II, cuja magnanimidade perdoou as perfidias e
+ataques do visinho e sogro. «Restitua o que roubou, guarde o que é seu, e vá em
+paz!» Cabisbaixo, com o joelho ferido, a coxear, Affonso Henriques<span
+class="pn"><a name="pag_78">{pg. 78}</a></span> parte d'alli a Santarem, concluir o
+que lhe resta de vida. Não tem coleras, nem fundas magoas pela afronta que
+soffreu: só lamenta a virente Galliza, perdida para todo o sempre.</p>
+
+<p>Como o avarento, em cuja alma a paixão exclusiva absorveu todos os
+sentimentos e paixões humanas, assim na alma de Affonso Henriques a monomania
+da conquista, doença vulgar nos principes da Edade-média, atrophiára o
+desenvolvimento de tudo o mais. Mas, se entre os consocios de uma patria irman,
+se entre os herdeiros de uma historia commum, ha o amor por essa patria e a
+veneração pelos antepassados, nenhum merece na alma dos portuguezes respeito
+maior, do que o primeiro de todos aquelles a cujo braço esforçado se deve a
+obra da constituição politica da nação. N'este sentido as manias chegam a ser
+sublimes. Um salteador é, não raro, um verdadeiro heroe; a perfidia é uma
+virtude, a crueldade é um titulo de gloria, porque o espirito collectivo
+substitue o criterio moral e abstracto pelo criterio historico, o qual tem como
+base a consagração dos factos consummados.</p>
+
+<p>A separação de Portugal foi um facto consummado, graças ao valente mediocre,
+tenaz, brutal e perfido caracter de Affonso Henriques.<span class="pn"><a
+name="pag_79">{pg. 79}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1168" href="#tex2html32"><sup>[32]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.), liv. <small>III</small>, 1.</p>
+
+ <p><a name="foot1169" href="#tex2html33"><sup>[33]</sup></a> Resumimos á
+ politica o campo das nossas observações, por termos deixado na <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> desenhados os traços geraes dos movimentos propriamente
+ sociaes. V. Livro <small>III</small>; pass.</p>
+
+ <p><a name="foot1170" href="#tex2html34"><sup>[34]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 309-48.</p>
+
+ <p><a name="foot1171" href="#tex2html35"><sup>[35]</sup></a> <em>V. Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 113 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1172" href="#tex2html36"><sup>[36]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primitiv.</em>, p. 215.</p>
+
+ <p><a name="foot1173" href="#tex2html37"><sup>[37]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primitivas</em>, p. 165.</p>
+
+ <p><a name="foot1174" href="#tex2html38"><sup>[38]</sup></a> <em>Th. da hist.
+ universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, <small>XXXII-III</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1175" href="#tex2html39"><sup>[39]</sup></a> V. <em>Quadro
+ das instit. primit.</em>, pp. 267-75.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002220">II<br>
+A conquista do Al-Gharb</a> </h3>
+
+<p>Nas suas emprezas contra Leão, Affonso Henriques, batido sempre como
+guerreiro, conseguira desforrar-se dos desbaratos com a astucia. Das duas faces
+que apresenta a historia da fundação da monarchia, vimos a primeira: resta-nos
+vêr a segunda. Assistimos aos actos do politico; vamos assistir agora ás
+fecundas emprezas do conquistador.</p>
+
+<p>O principe trazia para a guerra as manhas da côrte, sem prejudicar a firmeza
+necessaria, a bravura, o sangue-frio e a audacia. Com este conjuncto de
+elementos dava um caracter original á guerra (<em>novo genere pugnandi</em>).
+Ia de noute, ás escondidas (<em>furtim</em>), como um chefe de bandidos em
+assalto a algum villar, fortificado, no pendor de uma serra distante (<em>quasi
+per latrocinium</em>). Assim investiu e tomou Santarem. «Assim conquistou a
+maior parte dos castellos das provincias de Belatha e Al-Kassr, este inimigo de
+Deus!» diz o chronista arabe. O ponto de ataque era de antemão escolhido. Por
+uma noute escura e tempestuosa punha-se a caminho com um troço de homens
+resolutos: dir-se-hia uma quadrilha de salteadores. Galgavam rapidamente as
+distancias, e chegados ao destino, apeiavam-se, approximando-se caladamente dos
+muros. Affonso Henriques encostado á escada, era o primeiro a subir com o<span
+class="pn"><a name="pag_80">{pg. 80}</a></span> punhal preso entre os dentes.
+Parava, escutava, com o olhar agudo, a respiração suspensa: afinal pousava
+ancioso o pé entre as ameias, e apertando o punhal nas mãos, cozia-se com os
+muros. Na sombra não o distinguiam. Caía como um falcão sobre a sentinella, e
+apunhalava-a antes que ella podesse tugir um grito. Entretanto os companheiros
+iam subindo. O bando reunia-se na esplanada, armado e resoluto, o ao grito de
+«Santiago!» caía sobre a guarnição adormecida e trucidava-a. «Tal foi o modo
+por que este inimigo de Deus tomou a maior parte dos castellos das provincias
+de Belatha e Al-Kassr!»</p>
+
+<p>Havia porém ainda outra maneira de guerrear, cuja invenção não pertence a
+Affonso Henriques: era o systema de álgaras, fossados ou correrias, atravez dos
+extensos territorios fronteiros. De um lado e de outro, n'uma zona mais ou
+menos larga, conforme o ordenavam a constituição geographica e a estrategia,
+desdobravam-se as charnecas periodicamente assoladas. Aqui e além, apertadas em
+cintos de muralhas, ficavam as povoações, em cuja volta, como oasis, appareciam
+malhas de terrenos agricultados. Confiar ao nervo e á velocidade dos cavallos o
+transpôr as passagens perigosas d'esses desertos onde as sortidas dos castellos
+podiam cortar a retirada, e cair impetuosamente sobre as searas,
+incendiando-as, sobre os rebanhos, roubando-os, sobre os tardivagos,
+matando-os; talando os campos, cortando as arvores, incendiando as casas, e
+voltando rapidamente com as prezas feitas: tal era o processo egualmente
+seguido por christãos e sarracenos; reduzido já a um systema de invasões
+annuaes na epocha das colheitas, e contado como principal recurso financeiro da
+rude economia do tempo.<span class="pn"><a name="pag_81">{pg. 81}</a></span></p>
+
+<p>Se a tomada de Santarem (1147) é um typo da primeira especie, a batalha de
+Ourique, ou Orik (1139), é o typo da segunda. A fortuna accendia a audacia de
+Affonso Henriques, que levou o fossado por entre as fortes posições de Santarem
+e Alcacer, deixando Palmella, Cintra e Lisboa na retaguarda; atravessando o
+Tejo, para ir talar os campos de Chelb ou Silves, emporio sarraceno da Hespanha
+lusitana. Poucas vezes, porém, um fossado era apenas uma correria e um saque.
+As guarnições dos castellos passavam signal, combinavam sortidas; e o episodio
+de uma batalha acompanhava quasi sempre a obra de depredação. A batalha de
+Ourique, qualquer que tivesse sido a importancia numerica dos combatentes, deu
+a Affonso Henriques uma victoria que o encheu de animo para entrar em campanhas
+mais regulares e fecundas.</p>
+
+<p>Os primeiros nove annos do governo do principe tinham sido absorvidos pelas
+questões leonezas, quando em 1137 uma invasão sarracena veiu destruir Leiria,
+que elle erguera para defender Coimbra das subitas investidas dos inimigos.
+Ourique desforrou-o do desastre, que o rei por outro lado remediava
+reconstruindo o castello, então fronteiro do extremo sul dos seus Estados. Mas
+logo o musulmano responde, voltando como uma onda que, alastrando o territorio
+christão, vae rolando até aos altos de Trancoso, deixando pela segunda vez
+derrubadas as muralhas de Leiria. Affonso Henriques consegue dominar a invasão,
+que retrocede ao abrigo da linha do Tejo; e retribue logo a visita com uma
+tentativa frustrada sobre Lisboa. Depois, alliado ao wali de Mertola contra o
+de Santarem, vae assolar os districtos de Merida e Beja. Nos intervallos
+d'estas correrias, o rei ferira<span class="pn"><a
+name="pag_82">{pg. 82}</a></span> as batalhas do tratado de Zamora, e ganhára a
+victoria que lhe preparou o cardeal Guido.</p>
+
+<p>O periodo de dez annos que está entre 1137 e 1147 offerece n'estas guerras o
+aspecto de um movimento que oscilla, como um pendulo suspenso de um ponto que é
+Lisboa: invasões sarracenas para o norte, portuguesas para o sul do Tejo,
+instabilidade de resultado de ambas. O eixo d'este movimento era evidentemente
+Lisboa e o systema das suas linhas de defeza&mdash;Cintra-Almada-Palmella-Santarem.
+A conquista da linha do Tejo tornava-se a condição indeclinavel, não já do
+alargamento, mas até da conservação da monarchia de Affonso Henriques.</p>
+
+<p>Demasiado, porém, sabia elle que os recursos militares de que dispunha, se
+chegavam para os fossados annuaes, se bastavam para conquistar <em>quasi per
+latrocinium</em> os castellos isolados, eram demasiado escassos para tentar
+empreza tão vasta como a da conquista do systema de fortalezas que formavam o
+nucleo defensivo do centro do que foi depois o reino portuguez. Na tentativa
+frustrada que fizera sobre Lisboa em 1140 fôra ajudado por uma esquadra de
+Cruzados. As suas esperanças estribavam-se n'um auxilio d'essa ordem: até
+porque, sem forças navaes para entrar no Tejo&mdash;ainda então não havia marinha
+militar&mdash;seria absurdo tentar a empreza.</p>
+
+<p>Entretanto, sete annos iam passados depois d'essa primeira apparição dos
+Cruzados, sem que outros viessem proporcionar-lhe occasião para realisar os
+seus designios. Impaciente, orgulhoso ainda com o resultado da correria de Beja
+(1145), seguro do lado de Leão pelas pazes de Zamora, forte pela confirmação do
+seu titulo, confiado na protecção papal&mdash;o sangue pula-lhe nas veias, e decide
+tomar<span class="pn"><a name="pag_83">{pg. 83}</a></span> Santarem, (1147) <em>á
+sua moda</em>, isto é, por surpreza. Pela calada da noute appareceu á raiz das
+muralhas da villa. Pozeram-se escadas. Subiu um furtivamente e abafou uma
+<em>vela</em> (sentinella); depois subiu outro, depois terceiro, «e depois que
+todos tres foram em cima do muro, a vela que estava em cima do caramancham,
+quando sentiu Mem Moniz que se ia alongando, disse-lhe: «Manahu!» e elle
+respondeu-lhe em aravia e fel-o descer, e logo que foi em baixo cortou-lhe a
+cabeça e deitou-o aos de fóra. E então elles poseram outra escada e subiram por
+ambas o mais toste que poderam, e foram tantos que se apoderaram do muro e
+britaram as portas por onde entraram elrey e os que com elle foram. E d'esta
+guisa foi furtada a villa de Santarem aos mouros.» O resultado correspondeu
+pois ao plano, e quem sabe se a temeridade teria arrastado o rei a proseguir do
+mesmo modo contra Lisboa? Não foi, porém, necessario. Esse anno vieram os
+Cruzados<a name="tex2html40" href="#foot1176"><sup>[40]</sup></a> por quem
+suspirava, e com elles metteu hombros á empreza.</p>
+
+<p>A guerra toma desde então um caracter regular de cercos e campanhas. Os
+meios correspondem aos propositos, e estes á idéa da nação que começava a
+definir-se.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A tomada de Lisboa lavra a acta do nascimento da nação portugueza, até ahi
+envolvida nos limbos da geração. O cerco affigura-se-nos como o concilio
+internacional, uma especie de congresso guerreiro, em que a Europa baptisa o
+recem-vindo á luz da historia. Creado pelos actos geradores da vontade<span
+class="pn"><a name="pag_84">{pg. 84}</a></span> de um homem, abrigado pela égide da
+Egreja, Portugal tem a existencia confirmada pela sancção dos exercitos
+cruzados da Europa. O caracter cosmopolita da sua vida futura, da sua ulterior
+phisionomia politica, parece ter-lhe sido desde logo imposto, como um baptismo,
+quando, em frente d'essa piscina do Tejo, onde fundeiam duzentas naus coroadas
+pelos pavilhões de tantas nações da Europa, se estende o cordão do exercito de
+flamengos, lotharingios, allemães e inglezes.</p>
+
+<p>As columnas dos cavalleiros cruzados combatem ao lado das mesnadas dos
+barões portuguezes, estendendo-se em meia lua, a investir o morro de Lisboa; e
+com as pontas apoiadas contra o rio, formam metade do cinto que a armada,
+fundeada no Tejo, encerra. Com os frankos e inglezes, colossaes de estatura,
+rubros de sangue, herculeos de musculos, vêem italianos sagazes, mestres
+consummados na arte das minas ou sapas. Sobre os navios e do lado da terra a
+arte acorre em auxilio da força. Os inglezes montavam as suas manganellas ou
+catapultas, os frankos as suas torres; e Affonso Henriques pasmava d'esses
+maravilhosos instrumentos deante dos quaes a escada e o punhal do salteador
+nocturno pareciam miseraveis. Acaso a comparação offendia a sua opinião, bem
+fundada, de atrevido; acaso achava mais rapido e simples confiar o resultado
+aos seus expedientes favoritos de condôr: o facto é que decidiu começar por um
+assalto. Foi no dia 3 de agosto que pela primeira vez rebombou a trovoada dos
+golpes do moganons, o stridente sibilar das settas despedidas do alto das
+torres, e das pedras soltas das fundas,<a name="tex2html41"
+href="#foot1177"><sup>[41]</sup></a> o clamor apocalyptico<span class="pn"><a
+name="pag_85">{pg. 85}</a></span> dos combatentes, erguendo um côro de imprecações
+ferozes, proferidas nas mais desvairadas linguas. Á tormenta dos sons
+respondiam os relampagos do pez, do azeite, da estopa incendiada, que os muros
+de Lisboa vomitavam sobre os assaltantes, ajudando o sol que, illuminando a
+scena, congestionava as cabeças dos filhos da algida Germania, da Britannia ou
+da Frankonia. Ás ondas de lume, ao lume do sol, veio juntar-se um novo clarão
+de chammas e de grossas voltas de fumo negro que subia cravejado de scentelhas
+a perder-se no ar: as torres ardiam! O assalto era repellido; a tentativa
+falhára.</p>
+
+<p>Começou o cerco. Em poucos dias a voracidade feroz dos homens louros do
+norte destruiu quanto havia em torno de Lisboa: hortas e pomares, villas,
+cazaes e granjas. Dentro da cidade escasseiavam os mantimentos, e bandos de
+soldados fugiam com fome: do alto dos muros, os que ficavam perseguiam-nos com
+surriadas de pedras. Os gastadores minavam, atulhando a sapa com lenha cortada
+nos arredores: no dia decisivo, o fogo, consumindo esses transitorios esteios,
+roubaria a base ás muralhas. Os italianos construiam uma grande torre, que
+ficou terminada em meiado de outubro, quando a resistencia de Lisboa tocava o
+extremo. Queimaram-se os robles da sapa, assestaram-se os tiros, prepararam-se
+as columnas de soldados, e deu-se o assalto, logo que se ouviu o estrondo de um
+panno inteiro das muralhas que se derrocava do lado do oriente.</p>
+
+<p>Lisboa capitulou. Os Cruzados cevaram o amor do ouro, da prata, e das
+mulheres formosas, (<em>auri et argenti et pulcherrimarum fæminarum
+volupias</em>) que os levava á Syria; e Affonso Henriques tomou posse da
+cidade. As fortalezas satellites de<span class="pn"><a
+name="pag_86">{pg. 86}</a></span> Lisboa não podiam resistir: Cintra, Palmella, e
+Almada Cairam em curto espaço nas mãos dos vencedores.</p>
+
+<p>A base geographico-maritima de Portugal estava ganha para não mais se
+perder; e se o rei fôra o author do facto da separação, era o rei quem todos os
+dias ia adiantando a obra de uma independencia positiva e formal. Lisboa não
+valia menos, para tal fim, do que a protecção de Roma.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Esses dias de Zamora e de Lisboa (1143 e 47) marcaram o apogeu do reinado do
+primeiro monarcha portuguez. Batido em Badajoz pelo genro leonez (1169), foi-o
+tambem nas suas novas conquistas, pelo sarraceno (1161-71). Affonso Henriques
+não era já o mesmo homem: a edade quebrára-lhe o vigor de outros annos; e o
+perdão de Badajoz e as armadas dos Cruzados deviam ter quebrado tambem a cega
+confiança que punha nos seus recursos e habilidades. Via que no coração dos
+homens podia haver mais do que ambição e manha; e na arte da guerra processos
+mais valiosos do que a escada e o punhal, a <em>razzia</em> e o assalto
+nocturno. Taes observações, acompanhadas pela ferida do joelho que o conservava
+tolhido roiam o velho capitão no seu antro de Santarem (1171).</p>
+
+<p>O enthusiasmo da tomada de Lisboa tinha-o impellido a proseguir,
+aproveitando a commoção triste dos vencidos e o apparecimento de novas frotas
+que agora, christan Lisboa, demandavam o Tejo, para refrescar, nas suas viagens
+para a Palestina.</p>
+
+<p>Al-Kassr, ou Alcacer-do-Sal, era, para além de Lisboa, o centro estrategico
+da linha de defeza do Alem-Tejo, que guardava Chelb ou Silves. Logo<span
+class="pn"><a name="pag_87">{pg. 87}</a></span> depois de rendida Palmella, Affonso
+Henriques, confiando demasiado nas proprias forças, investira, só e ao modo
+antigo, o castello de Alcacer, mas fôra cruelmente vencido (1151). Annos
+depois, vale-se do auxilio de uma frota ingleza, sem conseguir render a
+desejada praça (1157), que afinal cáe perante o ataque combinado das forças
+portuguezas e alliadas da Cruzada de 1158. Evora e Beja cedem tambem por essa
+occasião; e dir-se-hia que Silves, desguarnecida da sua linha de fortalezas
+fronteiras, ia cair rapidamente nas mãos do afortunado principe.</p>
+
+<p>Não era, porém, assim. Essas successivas conquistas das praças do Alemtejo
+não tinham a importancia decisiva que tivera a de Lisboa. Levantadas como
+pontas de rocha isoladas, no meio dos vastos campos desolados, as praças do
+Alemtejo offereciam aos guerreiros abundantes prezas; e por isto os Cruzados de
+tão boa vontade paravam aqui, a preludiar na Hespanha o programma feito para a
+Syria. Saqueadas, incendiadas, porém, ou arrazadas, o seu valor para o reino
+era por certo lado pequeno ou nullo. O rei não dispunha de forças bastantes
+para guarnecer tão numerosos castellos e tão dilatadas fronteiras. Já para
+conseguir manter a linha do Tejo, tivera de doar ás ordens monastico-militares
+estrangeiras (Hospital, Templo, Santiago) as praças rayanas de Thomar, de
+Palmella, de Leiria. Os territorios despovoados e nús não vinham augmentar-lhe
+o numero de soldados, nem a riqueza. Para que isso succedesse era mister que a
+paz e o tempo fomentassem o desenvolvimento natural das forças economicas.
+Assim, desde que as armadas dos Cruzados, abarrotadas de prezas, largavam a
+bahia do Tejo, Affonso Henriques, tornando a achar-se a sós com<span
+class="pn"><a name="pag_88">{pg. 88}</a></span> os seus recursos militares, era
+forçado a abandonar as conquistas avançadas do Alemtejo. Annos havia, tomára e
+deixára Beja: e agora (1158), das praças conquistadas, apenas guarnecia e
+conservava Alcacer.</p>
+
+<p>Estas campanhas do Alemtejo estão perante Silves como, antes, as da
+Estremadura perante Lisboa: emquanto o sarraceno pisar o Algarve, serão
+precarias todas as conquistas n'este largo trato de terreno devastado que não
+poderá nutrir-se e prosperar, emquanto não estiver ao abrigo das invasões.
+Porque não foi Affonso Henriques cair directamente sobre Silves,
+aproveitando-se de alguma esquadra de Cruzados, em vez de consumir as suas
+forças na empreza esteril das correrias, conquistas e saques das praças do
+Alemtejo? Porque evidentemente lhe faltava a larga vista das aguias
+dominadoras, tendo só o que é commum a todas as aves de rapina: o ataque
+fulminante, e a garra cheia de força e tenacidade.</p>
+
+<p>Depois de saquearem Alcacer, os Cruzados tinham partido; e a noticia dos
+successivos desastres dos ultimos onze annos decidira os almuhades<a
+name="tex2html42" href="#foot1178"><sup>[42]</sup></a> a tratar seriamente de
+pôr cobro aos progressos de Affonso Henriques. Invadem o Alemtejo; e junto de
+Alcacer, seis mil portuguezes mortos, o exercito desbaratado, decidem a perda
+de todo o Alemtejo (1161) pondo em perigo Lisboa. Os sarracenos chegaram a
+tomar Palmella e Almada, mas julgaram prudente abandonar esses pontos
+destacados na peninsula de entre o Tejo e Sado. Desde que outras emprezas
+obrigaram a retirar o exercito almuhade depois de fortificar Alcacer, já
+Affonso Henriques, e os seus discipulos em aventuras podiam<span class="pn"><a
+name="pag_89">{pg. 89}</a></span> á vontade recomeçar as correrias e assaltos.
+Effectivamente, em 1162, um troço de burguezes toma Beja por surpreza; e em
+1166 um bando de salteadores, com Giraldo á frente, de escada ao hombro, punhal
+nos dentes, entra uma noute em Evora, que saqueia e atulha de cadaveres. Eram
+portugueses? eram sarracenos? eram de uns e d'outros; eram uma das muitas
+companhias de bandidos que batalhavam por conta propria, sem noção de patria a
+que pertencessem, nem de religião que seguissem. Tinham por culto apenas a
+ladroagem, e adoravam o deus do estupro, do saque, da matança. Eram de todas as
+nações; e falavam uma algaravia, mosarabe nos christãos, <em>most</em>'latina
+nos musulmanos&mdash;uma lingua franca.</p>
+
+<p>Affonso Henriques não podia socegar vendo essas façanhas. Eil-o outra vez a
+cavallo, Alemtejo em fóra, a correr charnecas e arremetter cidades: Moura,
+Serpa, Alconchel, e, internando-se pela Estremadura hespanhola, Caceres o
+Tordjala, ou Trujillo (1166). Essa era a sua paixão, o seu furor. Que importa,
+se, apenas voltava costas, logo se erguia de novo a bandeira musulmana nas
+muralhas que escalára á traição? Elle tambem voltaria, no verão seguinte, a
+repetir a sua façanha. E assim, por falta do genio militar do conquistador, as
+scenas repetiam-se, os castellos passavam successivamente de mão em mão, e
+portuguezes e sarracenos apenas podiam chamar seu ao terreno que actualmente
+pisavam. Se as forças proprias do portuguez lhe não consentiam outra cousa: se,
+sem o auxilio dos Cruzados, não podia abalançar-se á empreza de Silves, melhor
+fôra sacrificar a paixão ao interesse proprio, consolidando o dominio, do que
+pôr em perigo o Portugal cistagano, por consumir de um modo esteril as forças
+militares do novo reino nas<span class="pn"><a name="pag_90">{pg. 90}</a></span>
+correrias transtaganas. O rudo capitão não tinha porém intelligencia para
+tanto: a correria arrastava-o, a presa seduzia-o, e a guerra governava-o a
+elle, em vez de ser elle quem governava a guerra. Sem plano fixo, á toa, á
+aventura, internára-se até Trujillo e queria tomar Badajoz, invadindo
+territorios que, apesar de sarracenos, eram vassallos do visinho monarcha de
+Leão. A sua loucura teve a sorte de todas as loucuras; e já o vimos coxeando e
+duplamente ferido, no joelho e nos brios, caminhar a esconder a sua vergonha em
+Santarem (1169).</p>
+
+<p>O desastre de Badajoz devia ter soado por todo o Al-gharb, onde as correrias
+e façanhas do bando de Affonso Henriques espalhavam a angustia e o terror; e o
+musulmano, inimigo por patria e religião, não devia ao bulhento principe a
+generosidade magnanima do genro leonez. Um novo e poderoso exercito transpõe o
+Tejo, e vem cercar o ferido em Santarem (1171). Acode-lhe Fernando II que, como
+verdadeiro rei, sabia calar os resentimentos pessoaes, deante de um perigo
+commum para todos os principes christãos da Peninsula. Duas vezes salvo pelo
+genro que o vencera; humilhado, abatido, ferido e velho, Affonso Henriques já
+não é o irrequieto soldado de outros tempos. Santarem que ganhára por esforço
+proprio, escalando os muros, era o seu tumulo. Ahi n'um leito gemia dores de
+muitas especies: todo o Alemtejo estava perdido; e agora (1184) Jussuf, o
+grande émir de Marrocos, vinha em pessoa, dirigindo o exercito, cercal-o outra
+vez. Acudiria o genro outra vez a salval-o? Cinco annos havia que o exercito
+musulmano passeiava triumphante pelos seus reinos. Não pudera entrar em
+Abrantes, mas tinha destruido Coruche, que era para a defeza de Lisboa e da
+linha<span class="pn"><a name="pag_91">{pg. 91}</a></span> do Tejo, como fôra
+Leiria para Coimbra e para a linha do Mondego. Evora apenas resistiria ás
+invasões, que tinham levado Alcacer e Serpa, Beja, Moura, Jerumenha e todo o
+Alemtejo (1179-82). Como o javali, encerrado no covil e perdido, o guerreiro
+contava as horas, e antecipadamente sentia o penetrar das lanças nas suas
+carnes abatidas pela edade, e o quebrar dos seus ossos tão rijos ainda, mas mal
+governados pelos tendões flacidos. Chorava; talvez se arrependesse dos seus
+erros. Feliz porém mais uma vez, os acasos imprevistos concorriam para o
+salvar. Á magnanimidade do genro devera o não ter ido acabar n'alguma masmorra
+escondida nas montanhas das Asturias; e a esta circumstancia, verdadeiramente
+excepcional, de um principe generoso, devera tambem o salvar-se do primeiro
+cerco. Em vez de Fernando, que não acudiu agora, veiu em seu auxilio a sorte
+que matou o émir de Marrocos, e espalhou uma peste no meio do exercito
+almuhade.</p>
+
+<p>Levantou-se o cerco, Affonso Henriques pôde respirar ainda livre os ultimos
+annos da sua já acabada vida.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>O pensamento que elle não soubera ou não pudera realisar, coube ao filho e
+herdeiro pôr em pratica. O modo serio de conquistar o Alemtejo era ir com os
+Cruzados, por mar, investir Silves. Logo que Sancho I herdou o reino, e desde
+que appareceu no Tejo a primeira armada, decidiu-se levar a cabo a empreza. Já
+então havia uma frota portugueza; e se á constituição geographica do corpo da
+nação faltava a metade meridional, o coração, Lisboa, pulsava já independente e
+vivo; os navios<span class="pn"><a name="pag_92">{pg. 92}</a></span> da primeira
+expedição do Algarve são d'isso a prova. Abria-se agora uma segunda epocha; e,
+ou filha do genio do monarcha, ou proveniente da expansão natural das forças
+nacionaes, ou resultado das duas causas combinadas, o facto é que, entrados
+n'uma segunda edade, respiramos um ar diverso, observamos um typo differente e
+uma nova phisionomia da nação.</p>
+
+<p>Consolidam-se as conquistas, povoam-se e fortificam-se as villas, começa a
+esboçar-se a administração, abandona-se a guerra de escada e punhal. Ha um
+pensamento na politica e uma idéa nas campanhas. Sancho I é já um rei: Affonso
+Henriques fôra como um bandido, á imitação de Pelayo.</p>
+
+<p>O districto de Chenchir ou Al-faghar&mdash;assim os arabes denominavam o nosso
+moderno Algarve,&mdash;era o que é hoje ainda: um jardim estendido sobre a costa, e
+apoiado contra um muro de serras que o defendem dos ventos do norte. A guerra
+não conseguira mirral-o, como succedeu á costa da Berberia, fronteira. Retalho
+da Africa, scindido pelo mar do Calpe, no Algarve tinham os arabes achado um
+pedaço da sua patria. O clima, a flóra, não eram bem europeus; e quem, nos fins
+do <small>XII</small> seculo, visitasse Silves, ou Chelb, dir-se-hia
+transportado a uma cidade oriental. D'entre as varias raças que tinham vindo á
+Peninsula, foram os arabes do Yemen que principalmente a povoaram. Chelb ao
+sul, Hayrun (Faro) mais ao norte, eram as duas cidades principaes do Al-faghar;
+mas a primeira excedia em muito a segunda. Contava cerca de trinta mil
+habitantes, era opulenta em thesouros e formosa em construcções. Davam-lhe a
+primazia entre as cidades da Hespanha arabe. Vestida de palacios coroados pelos
+terraços de marmore, cortada de ruas<span class="pn"><a
+name="pag_93">{pg. 93}</a></span> com bazares recheiados de preciosidades
+orientaes, cercada de pomares viçosos e jardins, Chelb era a perola de
+Chenchir, onde os prodigos da Mauritania vinham gosar com as mulheres formosas,
+de puro sangue arabe, os seus ocios luxuosos. Era ao mesmo tempo uma praça
+temivelmente fortificada.</p>
+
+<p>Quando pela primeira vez as armadas combinadas, dos portuguezes e dos
+Cruzados, appareceram na costa de Al-faghar, Chelb intimidou os guerreiros
+frisios e dinamarquezes, a ponto de lhes dominar a avidez com que namoravam uma
+preza de tamanho quilate. Não se atreveram a atacar, limitando-se a tomar Albur
+(Alvôr), e retirando com um saque abundante.</p>
+
+<p>Para os Cruzados, homens louros do norte que, sob a ingenuidade azul dos
+olhos, escondem uma crueldade fria e pratica e um desvairado appetite dos gosos
+vedados aos climas setentrionaes, a empreza de Chelb tinha o valor da riqueza a
+roubar, das bellas mulheres, d'esse Oriente mysterioso e seductor, a gozar
+sobre os leitos de sedas da India ou nos fôfos tapetes da Persia. Eram
+voluptuosidades que antegostavam; calculando ao mesmo tempo os thesouros de
+pedrarias, os marfins, os estofos preciosos, a myrrha, o incenso, os metaes
+reluzentes, com que voltariam ás suas agrestes serras, ás suas costas algidas,
+deslumbrar as noutes veladas á luz baça da candeia, de azeite de phoca.
+Positivos e praticos ao mesmo tempo, mediam bem o impossivel da aventura, e por
+isso preferiram á temeridade de atacar Chelb, a modestia de saquear Albur.
+Bastava-lhes o que levavam.</p>
+
+<p>Não succedia outro tanto a Sancho I. A conquista do Al-faghar tinha para
+elle um alcance<span class="pn"><a name="pag_94">{pg. 94}</a></span> maior. E os
+portuguezes mais familiarisados com as seducções dos costumes arabes, menos
+sensiveis ás tentações da carne, mais abertos aos arrebatamentos da paixão,
+como todos os homens do sul, tinham um proposito mais firme e intenções
+diversas.</p>
+
+<p>Logo depois da primeira tentativa frustrada no proposito essencial,
+appareceu no Tejo uma segunda e mais poderosa armada de guerreiros do norte.
+Decidiu-se então a conquista de Silves. Sancho e as tropas portuguezas iriam
+por terra, atravez do Alemtejo, investir a cidade pelo norte, cortando os
+soccorros de Alcacer e das demais praças transtaganas: emquanto as armadas
+combinadas iriam por mar e, subindo a ria de Silves, poriam o cerco pelo sul,
+apoiando-se nos navios.</p>
+
+<p>Silves, collocada n'uma eminencia e defendida por fortes muralhas, em cujo
+recinto, no coração da cidade, se erguia a almedina ou alkassba, estava ligada
+a uma torre albarran por uma couraça. A torre defendia uma vasta cisterna que
+dava agua á cidade: conquistal-a seria, portanto, o preludio do cerco.
+Desembarcados, os Cruzados começaram por assolar os arrabaldes, destruindo
+quintas e casaes, trucidando os tardivagos, incendiando e roubando, segundo a
+regra invariavelmente seguida n'estas emprezas. Quando em torno dos muros não
+havia mais do que destroços, ruinas e cinzas, atacaram a torre albarran. Foi em
+21 de julho de 1189, esta primeira tentativa frustrada. Em 29 chegou por terra
+el-rei Sancho, cerrou-se o cerco, e prepararam-se os meios do ataque decisivo.
+Os sitiados, no desespero, açulavam o furor e a cubiça dos inimigos com
+insultos e crueldades. Nas ameias da torre albarran penduravam pelos pés os
+prisioneiros christãos; e alli, em frente do exercito,<span class="pn"><a
+name="pag_95">{pg. 95}</a></span> como exemplo e ameaça, matavam-nos ás lançadas.
+Era ardente o furor, incansavel o trabalho. Estavam preparadas e promptas as
+machinas de guerra: começaram os assaltos. Os allemães tinham montado um
+vae-vem coberto, cujas pontas de ferro trabalhavam impunemente na derrocada dos
+muros: era a <em>origa</em> dos gregos, a <em>testudo</em> de Vitruvio, o
+<em>ericius</em> das guerras dos romanos, em portuguez <em>ouriço</em>&mdash;uma
+catapulta couraçada contra as massas de estopa a arder em azeite que sobre ella
+os defensores vasavam. Muitas torres, numerosos trons batiam os muros e
+levantavam os sitiadores á altura das ameias. A albarran caíu por fim,
+entulhou-se a cisterna. As fontes dos pateos ajardinados de Chelb deixaram de
+correr, e a sede veiu auxiliar as machinas e as armas dos christãos. Os
+musulmanos, fortificados na almedina, resistiam, comtudo.</p>
+
+<p>O cerco entrava desde esse momento n'uma phase nova. Os assaltos
+repetiam-se, infructiferos, e a alkassba parecia intomavel. Soccorreram-se ás
+artes dos mineiros de Italia; mas os arabes eram egualmente mestres na
+engenharia. As galerias subterraneas cruzavam-se, encontravam-se, rompiam-se.
+Fatigados de pelejar em vão, á luz de um sol abrazador, transferiram os
+combates para o coração da terra. Os gastadores eram soldados, e rijas batalhas
+eccoaram n'essas galerias. A lenha accumulada ardia presa do fogo; e á luz das
+chammas, buscavam-se, um a um, os inimigos, ferozes como tigres, punhal ou
+alfange em punho, e estrangulavam-se, despedaçavam-se, como feras. O crepitar
+do fogo acompanhava as imprecações roucas, e nos olhos havia mais chammas do
+que nos montes de troncos e ramos incendiados. O sangue corria dando á lama das
+galerias subterraneas<span class="pn"><a name="pag_96">{pg. 96}</a></span> a côr do
+barro com que em tempos mais felizes os arabes ladrilhavam os seus eirados
+alegres e os seus pateos ajardinados.</p>
+
+<p>A furia dos combates era excitada pelos calores da sêde. Os sitiados ardiam
+em febres. Viam-se nús estendidos sobre as lages das ruas, sobre os ladrilhos
+das casas, para refrescar a pelle. Comiam o barro do chão. Estorciam-se,
+desesperados, e morriam pelas esquinas. As ruas deixavam apodrecer os
+cadaveres, e as mães engeitavam os filhos, quebrando-lhes os craneos tenros
+contra as umbreiras das portas.</p>
+
+<p>Nos sitiantes a furia era outra. Durava já um mez o cerco, o não fôra para
+tão demorada campanha que os Cruzados tinham vindo. A alkassba não caía! os
+perros musulmanos não se rendiam! Entretanto elles, Cruzados, iam morrendo de
+feridas, de insolações; e o despojo promettido não chegava. Não podiam perder
+assim o seu tempo. Isto diziam uns; outros não queriam abandonar o trabalho
+gasto, e despedir-se de uma presa meio conquistada. Sancho I, desanimado,
+pensou em retirar. Então rebentaram as iras; porque a segunda opinião vencera
+no animo dos Cruzados. Quasi chegaram ás mãos, os portuguezes e os homens
+louros do norte. Finalmente a alkassba rendeu-se nos primeiros dias de
+setembro; mas isso deu logar a novas rixas. O rei queria uma cidade, e não um
+despojo. Os Cruzados queriam o contrario. Sancho offereceu pagar-lhes o valor
+da presa; os Cruzados recusaram. Havia uma cousa que o rei não podia pagar com
+ouro: era o delirio do saque, a orgia das matanças e dos estupros. Esses
+ferozes caçadores de mouros queriam retoiçar-se pelo interior das alcovas
+mysteriosas, e enterrar os braços nas arcas dos thesouros, ensopar em sangue
+as<span class="pn"><a name="pag_97">{pg. 97}</a></span> almofadas macias sobre que
+iam abraçar as morenas filhas do Yemen.</p>
+
+<p>Cevados, partiram logo. Sancho pedia-lhes que acabassem a empreza, tomando
+Hayrun. Recusaram; não queriam arriscar os lucros, e estavam turgidos de goso.
+Só ambicionavam tornar á patria, para contar os seus feitos, e depôr aos pés
+das louras e ingenuas donzellas do norte, de suas noivas e de suas filhas, os
+collares, os brincos, as manilhas de ouro arrendado, que tinham roubado nos
+leitos, com a honra e a vida, ás filhas de Mafoma.</p>
+
+<p>Sancho I, não podendo seduzil-os, nem convencel-os, desistiu da empreza; e
+deixando Silves guarnecida, e occupado o oeste do Algarve, retirou para o
+norte. Afim de consolidar a conquista, tomou Beja. Mas, emquanto o velho Faro
+se conservava em poder do sarraceno, não devia o rei portuguez considerar seu o
+Al-faghar.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Effectivamente durou pouco o primeiro dominio portuguez no extremo sul do
+reino. Quando o filho de Jussuf, Jacub, chegou a soccorrer Chelb, já a cidade
+estava perdida; e elle não soube ou não pôde retomal-a. Vingou-se irrompendo
+pelo reino; e, galgando o Tejo, assolou a Estremadura toda, pondo cerco a
+Thomar. Tampouco soube ou pôde vencer, e retirou-se; mas para voltar no anno
+seguinte. Então Silves caíu de novo em poder do sarraceno (1191) que,
+victorioso, tomou Beja, e na sua <em>gaswat</em> fulminante, veiu ameaçar
+Lisboa, desde os muros de Almada, conquistada.</p>
+
+<p>Portugal recuava outra vez aos limites do Tejo; porém Silves, embora
+perdida, indicava o futuro<span class="pn"><a name="pag_98">{pg. 98}</a></span>
+inevitavel d'este longo e mortifero duello. O rei occupava-se em consolidar os
+seus Estados, povoando, e organisando a administração. Na impossibilidade de
+levar a cabo a conquista do Al-faghar, enfraquecido militarmente o reino pelas
+correrias, desilludido sobre a efficacia do auxilio dos Cruzados, abandonou com
+razão o systema das álgaras e surprezas, com que, sem conseguir manter-se um
+dominio estavel, se extenuavam as forças vivas da nação. O seu governo sabio
+preparou as decisivas emprezas posteriores.</p>
+
+<p>A primeira d'essas foi a tomada de Alcacer em 1217. No tempo de Affonso II
+já os portuguezes se tinham achado na batalha das Navas de Tolosa (1212), em
+que os principes christãos da Peninsula, tomando uma cruel desforra do desastre
+de Alarcos, deram o ultimo golpe no dominio sarraceno. Affonso II não tinha
+amor pela guerra. O lado organisador e administrativo do governo de seu pae
+imprimira-lhe paixões pacificas. Instigava-o ainda mais a sua avareza natural,
+e a condição dura em que a fraqueza dos ultimos annos de Sancho I o collocara,
+por ter doado o reino inteiro, thesouros e castellos, aos nobres e ao clero.
+Affonso II não quiz tomar parte da empreza de Alcacer, porque andava occupado a
+reivindicar para si o reino.</p>
+
+<p>Kassr-al-Fetah, Castello-da-porta ou da entrada, se dizia essa chave do
+Alemtejo; e sem a posse de um tal ponto estrategico, eram vans as tentativas de
+consolidação do dominio portuguez ao sul do Tejo. Castello sobre todos nocivo,
+chamam-lhe as memorias coevas, <small class="SMALL">(</small><em><small
+class="SMALL">Castrum super omnia castra nocivum</small></em><small
+class="SMALL">, </small><small class="SMALL"><small>GUSUINI
+CARMEN</small></small><small class="SMALL">)</small> porque d'ahi iam
+annualmente para Marrocos cem prisioneiros christãos, arrebatados aos
+territorios fronteiros até Lisboa, nas álgaras de todos os annos.<span
+class="pn"><a name="pag_99">{pg. 99}</a></span></p>
+
+<p>Com o auxilio de uma forte esquadra de Cruzados, Alcacer ficou
+definitivamente em poder dos christãos no meiado de 1217. Nove annos depois,
+Sancho II, em quem renascia o espirito guerreiro dos avós, recomeçou a
+conquista do Algarve, caminhando ao longo da fronteira de leste, valle do
+Guadiana abaixo, e tomando successivamente Elvas, Serpa, Moura, Mertola,
+Ayamonte, Tavira e Cacella, que os arabes denominavam Hisn-Kastala (1226). As
+deploraveis pendencias que lhe roubaram a corôa não deixaram a Sancho II
+consummar a conquista do Algarve, que no meiado do <small>XIII</small> seculo
+cáe por fim (1249), obscuramente, em poder do usurpador da corôa fraterna,
+Affonso III.</p>
+
+<p>Consolidada a separação, constituido geographicamente o paiz, resta-nos
+agora observar os movimentos internos da nação; para vêrmos como dentro d'ella
+se affirma a independencia, só plena e cabalmente definida, porém, na crise que
+poz termo á dynastia de Borgonha.<span class="pn"><a
+name="pag_100">{pg. 100}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1176" href="#tex2html40"><sup>[40]</sup></a> V. nas
+ <em>Taboas de chronologia</em>, a das Cruzadas, a p. 219.</p>
+
+ <p><a name="foot1177" href="#tex2html41"><sup>[41]</sup></a> V. na <em>Hist.
+ da repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 251-5, a descripção das machinas
+ de guerra dos antigos, que eram as da Edade-média.</p>
+
+ <p><a name="foot1178" href="#tex2html42"><sup>[42]</sup></a> <em>Taboas de
+ chronologia</em>, pp. 43 e 271.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002230">III<br>
+A monarchia e a justiça</a> </h3>
+
+<p>«D. Diniz foi um aváro. Affonso IV um homem de juizo, Pedro I um doido com
+intervallos lucidos de justiça e economia.» Assim A. Herculano caracterisa os
+tres monarchas, a quem já fôra concedido reinar sobre Portugal integralmente
+constituido, dentro dos limites das suas fronteiras actuaes. Mas que eram então
+um rei e um reino?</p>
+
+<p>Errada idéa formará d'essas epochas aquelle que não puder desprender-se das
+impressões resultantes de periodos mais proximos de nós. Foi só desde o
+<small>XV</small> seculo que o desenvolvimento das nações peninsulares
+permittiu aos reis começarem a ter consciencia do caracter juridico-social do
+seu cargo<a name="tex2html43" href="#foot1179"><sup>[43]</sup></a>. Até ao
+<small>XIV</small> seculo, os Estados peninsulares, ou&mdash;limitando-nos agora ao
+campo exclusivo das nossas observações&mdash;Portugal, não merece propriamente o
+nome de nação, se a este vocabulo dermos o valor moderno. As comparações
+illustram superiormente a historia: e em nossos dias temos exemplos de
+similhança quasi absoluta. Esses principados slavos, onde a occupação da
+Turquia jámais deixou de encontrar resistencias, são como foram a Hespanha. O
+Montenegro reproduz as tradições das Asturias, ninho dos bandidos de
+Pelayo;<span class="pn"><a name="pag_101">{pg. 101}</a></span> a Servia ou a
+Herzegovina, em cujas campinas, avassalladas pelo turco, as quadrilhas dos
+indomitos montanheses veem periodicamente fazer as suas razzias, são como foi
+Portugal. A historia repete-se ainda na independencia final, ganha pela
+irradiação do fóco de resistencia invencivel.</p>
+
+<p>Regiões fadadas a tal existencia não podem ser propriamente nações: não
+attingiram esse momento de existencia collectiva, não sairam dos periodos
+preparatorios da organisação. O processo tem, n'este caso, dois graus
+caracteristicos. Primeiro apparece o bando, depois a familia. O rei é o chefe
+dos bandidos, antes de ser o protector, o pae, dos seus subditos. Se a guerra é
+antes um systema de rapinas do que uma successão de campanhas, a justiça é
+tambem mais a expressão arbitraria de um instincto, do que a applicação regular
+de um principio. A sociedade que se desenvolve de um modo espontaneo, á lei da
+natureza, vae successivamente definindo as idéas collectivas, á maneira que
+progride na serie das fórmas evolutivas do seu organismo<a name="tex2html44"
+href="#foot1180"><sup>[44]</sup></a>.</p>
+
+<p>A substituição do principio da justiça&mdash;no qual incluimos as relações entre
+individuos, e entre classes e instituições&mdash;principio militar, marca o momento
+da primeira transformação que é a passagem do organismo do bando para a fórma
+social primitiva: a familia nacional, cujo pae ou patriarcha é o rei.</p>
+
+<p>A loucura de D. Pedro I vale, portanto, a nosso vêr, tanto como o bandidismo
+de Affonso Henriques. Os dois reis são os dois typos&mdash;da guerra e da justiça.
+Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a segunda é irregular, cheia
+de caprichos<span class="pn"><a name="pag_102">{pg. 102}</a></span> e arbitraria.
+Mas se Affonso Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o
+<em>pae</em> da familia portugueza.</p>
+
+<p>O seu furor justiceiro não é mais louco, do que o furor guerreiro do
+primeiro rei. Tentámos esboçar a phisionomia d'essa epocha primitiva:
+buscaremos agora, indo beber á fonte limpa das chronicas mais proximas,
+accentuar as feições do segundo periodo. Na guerra não havia regra, nem planos:
+era uma correria solta. Na justiça não ha processos, nem garantias: é o dominio
+livre do capricho. Mas se, n'um caso, a bravura engrandecia e a victoria
+exaltava os actos do bandido, no outro, a rectidão dava força, e a protecção
+paternal coroava as decisões do <em>kadi</em>. O rei é o grande Juiz da familia
+portugueza: a sua vontade é lei, as suas sentenças são oraculos<a
+name="tex2html45" href="#foot1181"><sup>[45]</sup></a>.</p>
+
+<p>A justiça de Pedro I caracterisa-se, pois, para nós, com o merecimento de um
+typo, da mesma fórma que a guerra de Affonso Henriques. São tambem os dois
+individuos symbolicos, por isso mesmo que são como que doidos. As phisionomias
+dos outros reis esbatem-se mais no fundo do quadro, confundem-se de um modo
+mais ou menos completo na massa dos sentimentos do povo; e os seus actos
+acompanham o desenvolvimento das forças e instinctos collectivos, sem os
+dominarem de uma fórma superior e typica. O leitor perspicaz não esquece que
+estas apreciações excluem a do merecimento individual das pessoas. Sancho I tem
+uma bella vida tristemente rematada n'um torpor de fraqueza. Affonso II tem uma
+phisionomia commum e antipathica, sem nobreza, mas forte e penetrante. Sancho
+II possue muito do seu predecessor<span class="pn"><a
+name="pag_103">{pg. 103}</a></span> em nome. Affonso III destaca-se pela educação
+franceza, que lhe ensinara a dissimulação, a perfidia, de mãos dadas com o
+bom-senso governativo. Diniz é um aváro; Affonso IV é um homem de juizo, no
+dizer de Herculano. Todos reunidos, porém, n'um grupo, formam um corpo de
+phisionomias indecisas ou communs: são mais ou menos guerreiros, são
+pessoalmente melhores ou peiores, o que á historia importa pouco; são bons ou
+maus administradores da republica, seu patrimonio, cuja riqueza fomentam,
+acompanhando o desenvolvimento natural da sociedade.</p>
+
+<p>No principio e no fim d'esta serie estão, porém, os dois individuos typos,
+os dois loucos&mdash;um, phrenetico, brandindo o punhal mortifero; outro, carrancudo
+e fero, empunhando o latego do algoz e a vara de juiz, ou risonho e folgasão,
+dançando e cantando nas ruas no meio da sua familia, como um pae.</p>
+
+<p>Pedro I tinha a paixão da justiça; era n'elle uma mania, como em seu avô o
+fôra a guerra. Não prescindia de julgar todos os delictos. Os criminosos vinham
+á côrte, desde os remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e
+o rei comia, levantava-se pressuroso da meza, e trocava a vianda pela tortura.
+Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos
+para obter a confissão dos réos. Nunca abandonava o açoute: enrolado á cinta em
+viagem, tomava d'elle, e por suas mãos castigava o facinora que no caminho lhe
+traziam. Os adulteros mereciam-lhe um odio especial: jámais lhes perdoava. D.
+Pedro tinha um escudeiro, Affonso Madeira, <em>luitador e trovador de grandes
+ligeirices</em>, a quem embora amasse <em>mais que se deve aqui dizer</em>, o
+rei mandou castrar, porque peccou com Catarina Tosse.&mdash;O rapaz engrossou e
+morreu depois da<span class="pn"><a name="pag_104">{pg. 104}</a></span> <em>sua
+natural door</em>. Certa mulher era infiel ao marido, que nem por isso se
+offendia: offendeu-se o rei, e mandando-a queimar, respondeu ao esposo desolado
+que lhe devia alviçaras pelo ter vingado. Havia um homem casado, com filhos,
+mas que antes da boda forçara a mulher. Roussou? morra. Enforcou-o, entre os
+choros e supplicas da esposa e dos filhos. O seu odio aos peccados da carne
+perseguia com furor as alcouvetas; e as feiticeiras não lhe mereciam menos
+cuidados.</p>
+
+<p>Quando o tomavam os ataques da furia justiceira, a gaguez fazia ainda mais
+terrivel a expressão da sua phisionomia. A fala não lhe deixava traduzir bem as
+cóleras; e rubro, grosso, agitando o latego, n'um delirio, mettia espanto. Os
+gagos, porém, teem isto de particular: tanto o defeito accrescenta ao horror na
+furia, como põe nas horas mansas o quer que é de bonhomia quasi ironica. Era
+assim D. Pedro. Caçador tenaz, descansava do officio de juiz nas corridas do
+monte, seguido pelos moços com os nebris e falcões, e pelas matilhas de caens.
+Então o seu rosto aplacava-se, e era benigno, bemfazejo, liberal, folgasão.
+<em>Foi grande criador de fidalgos.</em> Glotão, passava horas esquecidas á
+meza, onde a vianda era em grande abastança.</p>
+
+<p>Punir os maus, enfrear os fortes, «querendo fazer graça e mercê ao nosso
+poboo» era o seu constante desvelo paternal. Nas côrtes que reuniu em Elvas
+(maio de 1361) vê-se pelas respostas aos capitulos dos povos como o seu governo
+era protector. Queixavam-se os conselhos de que as casas dos mestres das
+ordens, dos bispos e priores, dentro das villas, caíam em ruinas; e o rei
+decide de um modo simples: <em>filhem</em> as nossas justiças aos proprietarios
+o que for necessario para as obras.<span class="pn"><a
+name="pag_105">{pg. 105}</a></span> Filhem mais, para as pôr em grangeio, as
+herdades e vinhas ermas. Os ricos-homens veem ao concelho e pousam em casa de
+mulheres honestas, perdendo-lhes a reputação; pousam nas adegas e nos celleiros
+de trigo, e fazem d'elles cavallariças, allega o povo&mdash;e o rei ameaça o fidalgo
+que assim fizer. O clero, isento como estava dos serviços militares da hoste ou
+do appellido, recusa-se a acudir na hora de um perigo imminente? Que os
+clerigos acudam com os leigos, diz o rei, quando haja fogo ou inimigos.</p>
+
+<p>Mas o «nosso poboo» ás vezes exige de mais, como uma creança que se sente
+adorada. Modere-se: o rei é um pae, mas o pae é um juiz, sempre benigno e
+amoravel porém. Quando recusa, não se vê arrogancia, apenas uma reserva
+prudente: «mostrem e declarem aquello em que lhis vam contra seus foros, graças
+e mercees que ham e que, nos lhas faremos guardar.» Exigir que as meretrizes e
+barregans andem estremadas pelo trajo, é querer muito n'essa Edade-média
+prostituta e adultera, faminta e leprosa, que vive de carnalidades, violencias
+e feiticerias: «Tragam suas vestiduras como as poderem aver, porque perderiam
+muito em os pannos que teem feitos e nos adubos que em elles tragem.» Mas
+quando o povo se queixa do que soffre com os serviços militares, obrigado o
+villão a ter cavallo e armas desde que possue uma certa <em>quantia</em> de
+bens, o rei attende e ordena que não sejam quantiados a nenhum os pannos de seu
+vestir e de sua mulher até dois pares, nem as roupas de suas camas.</p>
+
+<p>Sobre a cabeça do povo humilde pesam duas ameaças constantes: o nobre com a
+sua violencia, o judeu com a sua manha. O fidalgo e o onzeneiro são a desgraça
+da gente, a perdição das filhas<span class="pn"><a
+name="pag_106">{pg. 106}</a></span> e a ruina das searas. Quem nos protegerá senão
+o rei? Se o judeu onzenar, responde este, «nós o mandaremos matar e lhe tomar
+quanto houver.» Mas ninguem se atreva com elle, a não ser a justiça, que anda
+sobranceira a todos, a tudo. De uma vez D. Pedro mandou matar dois escudeiros
+por terem roubado a um judeu; e se tambem cortou a cabeça a outro, dos bons, de
+Entre-Douro-e-Minho, por ter partido os arcos de uma cuba de vinho a um pobre
+lavrador, foi elle o proprio que mandou degolar o sobrinho do alcaide de Lisboa
+por depennar as barbas a um porteiro.</p>
+
+<p>A justiça havia de ser tremenda quando os costumes eram barbaros, corruptos
+e ingenuos ao mesmo tempo; quando o incesto, o adulterio, o assassinato, o
+estupro, o roubo, e essa offensa extravagante da merdinbuca (<em>stercum in
+ore</em>), tão frequente nos foraes, acompanham as linhagens das familias e
+enchem as paginas das cartas dos concelhos.<a name="tex2html46"
+href="#foot1182"><sup>[46]</sup></a> O juiz não será um algoz, mas é mistér que
+seja um tyranno; e o symbolo da justiça não está na balança com o seu fiel
+sensivel, mas antes na espada e no latego, na furia e no amor, no capricho
+benevolente e na sanha vingadora de um rei temido como foi D. Pedro.</p>
+
+<p>Assim como a sua justiça era, pois, destituida de magestade, assim o eram as
+suas folganças. Dir-se-hia um rustico feito rei; e acaso por isso o povo o
+amava tanto. Não tinha distincções, nem delicadezas, no sentimento, nem no
+trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas
+eram <em>kermesses</em> extravagantes e plebeias.<span class="pn"><a
+name="pag_107">{pg. 107}</a></span> Os instinctos aristocraticos e as fórmas da
+cortezia nobre, os torneios, as lanças, não tinham n'elle um amador. Era um
+democrata, um <em>tyranno</em> á moda antiga, em cujo espirito encarnara toda a
+brutalidade popular: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terriveis,
+passando de bocca em bocca, faziam-lhe um pedestal de força; e as suas
+continuas folganças populares cimentavam essa força com o amor intimo que nos
+merece quem tem comnosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de
+D. Pedro.</p>
+
+<p>Quando voltava em bateis de Almada para Lisboa, a plebe lisboeta saía a
+recebel-o com danças e trebelhos. Desembarcava, e ia á frente da turba,
+dançando ao som das <em>longas</em> (trombetas) como um rei David. Estas folias
+apaixonavam-no quasi tanto, como o seu cargo de juiz. Por ellas chegava a fazer
+loucuras. Certas noites, no paço, a insomnia perseguia-o: levantava-se, chamava
+os trombeteiros, mandava accender tochas; e eil-o pelas ruas, dançando e
+atroando tudo com os berros das longas. As gentes, que dormiam, saíam com
+espanto ás janellas, a vêr o que era. Era o rei. Ainda bem! ainda bem! que
+prazer vel-o assim tão ledo!&mdash;Vestiam-se todos á pressa, desciam ainda tontos
+de somno; e as ruas, um momento antes silenciosas e negras, brilhavam com as
+luzes, e tinham o clamor da multidão em vivas e o movimento das danças
+universaes.</p>
+
+<p>Era uma loucura? Seria. A Edade-média é uma vertigem. O povo, afflicto pelas
+miserias do mundo e pelos terrores do céo, vivia n'um sonho feito de dôres
+positivas e de medos transcendentes: rodopiava n'um <em>sabbath</em>. Deus
+abençoe o rei que nos defende por sua mão! que vem comnosco bailar ás noites
+por essas ruas lugubres! que persegue<span class="pn"><a
+name="pag_108">{pg. 108}</a></span> os incantadores e feiticeiras! É o nosso justo
+juiz, o nosso bom pae, o nosso amigo e irmão: adoremol-o!</p>
+
+<p>Não eram só justiça e festas que o rei lhes dava: era pão. Sabio
+administrador, juntava grandes thesouros; e esta noticia augmentava, ao medo e
+ao amor, o respeito por um rei tão bom. A brutalidade e o egoismo dos costumes
+medievaes traduzia-se a miude n'um flagello terrivel&mdash;a fome, de que o pobre
+povo soffria sempre mais ou menos. A fome e as guerras geravam pestes. A
+primeira metade do seculo <small>XIV</small> fôra uma cadeia
+de desgraças. «No anno do Senhor, de 1830, diz o livro de Ceiça, foi a
+pestilencia grande e morreram então em dois mezes cento e cincoenta religiosos.
+Os lazaros eram tantos e tão antigos que D. Diniz deixara-lhes em testamento
+duas mil libras. Em 1333 houve fome, e os mortos já não cabiam nos adros das
+egrejas, enterrados aos seis em cada cova. No dia de S. Bartholomeu do anno de
+1346, tremera a terra a ponto de os sinos tocarem nas torres, pavorosamente, um
+dobre de finados, annunciando o acabar do mundo. Depois veiu a peste de 48; e
+em 55, dois annos antes da morte de Affonso IV, foi a secca, havendo outra fome
+medonha. Da gafaria para a cova, ameaçado por todos, na terra e no céo, o povo
+infeliz e faminto congregava-se em volta do throno protector, adorando o rei
+justiceiro e providente, inimigo das pestes, das guerras, das fomes, e
+sentia-se rico dos thesouros guardados nas torres do castello. Além d'isso, D.
+Pedro fartava-o. As suas folias não eram só danças e musicas. Quando Affonso
+Tello foi armado cavalleiro houve uma kermesse monumental. Durante a vigilia
+d'armas, cinco mil tochas illuminavam as ruas, desde S. Domingos até ao<span
+class="pn"><a name="pag_109">{pg. 109}</a></span> paço; e o rei, entre as alas de
+lumes, radioso e bom, na sua gaguez, dançou com o povo a noite inteira. Ao
+outro dia o Rocio estava coalhado de tendas e montanhas de pão e grandes tinas
+cheias de vinho. Nas fogueiras, em espetos collossaes, assavam-se vaccas
+inteiras. Havia de comer para toda Lisboa. O povo exultava, n'esses ágapes da
+monarchia.</p>
+
+<p>A velha tragedia dos seus amores e da sua rebellião augmentava-lhe ainda as
+sympathias. O tyranno apparecia, justiceiro e bondoso, sobre o fundo de um azul
+de amores infelizes que encantavam a alma popular. Ignez de Castro, a sombra de
+um anjo, coroava-o de além do tumulo. Mas esta piedosa recordação era, na alma
+do rei, um espinho que o mordia sem cessar. O seu genio cruel pedia vinganças.
+Entendeu-se com o visinho de Castella, e pôde haver ás mãos dois dos
+assassinos. O povo não approvou o escambo; e o rei muito perdeu de sua fama,
+diz o chronista. O castigo dos assassinos foi duro: D. Pedro estava fóra de si,
+as palavras atropellavam-se-lhe na garganta, e não podendo satisfazel-o as
+muitas injurias, deshonestas e feias, vingou-se a chicotear os infelizes na
+cara. A sua colera attingia a ironia soez. Queria cebola e vinagre, para comer
+o Coelho em molho-de-villão. Por fim mandou que lhes arrancassem, vivos, os
+corações, a um pelo peito, a outro pelas costas. Gozou-lhes a morte, e acabou
+vingado.</p>
+
+<p>Pedro I é a viva imagem da Edade-média, politica e domestica. Todos os
+vicios e todas as virtudes, a fereza e a ingenuidade, os odios terriveis e as
+amisades espontaneas, sommadas n'um caracter primitivo onde acaso alguma lepra
+dos vicios civilisados antigos punha nodoas novas, formavam<span class="pn"><a
+name="pag_110">{pg. 110}</a></span> o caracter d'esse rei que é verdadeiramente um
+symbolo. Por isso o povo, vendo-se n'elle retratado, o adorou.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A politica da independencia puzera no seio da familia portugueza um membro,
+cujas arrogancias e pretenções ameaçavam desnortear o fiel da justiça social. O
+clero aspirava a usurpar a authoridade á monarchia. Além da força que as
+tradições juridicas lhe davam; além da authoridade espiritual e do espectro das
+bullas de excommunhão, pavor das almas ingenuamente crentes; além do poderio
+fundado n'uma riqueza excessiva e na machina absorvente da mão-morta, poço onde
+caíam as heranças e legados dos rudes batalhadores arrependidos; além de todas
+as causas geraes, o clero invocava em Portugal um argumento particular: o rei
+era vassallo, o papa suzerano. Por tal preço obtivera Affonso Henriques um
+simulacro de sancção juridica para a sua rebellião.</p>
+
+<p>A situação do clero catholico no seio da primitiva sociedade portugueza&mdash;e
+das coevas em geral&mdash;resulta de um tal concurso de elementos heterogeneos, que
+nenhuma das faces do systema dos costumes retrata, melhor do que esta, a
+confusão cahotica d'esse novo mundo que se formava sobre as ruinas e destroços
+do antigo. Politicamente, o facto de um poder, superior por ter um fundamento
+transcendente, estranho ao poder civil, é a primeira causa de conflictos.<a
+name="tex2html47" href="#foot1184"><sup>[47]</sup></a> Perante a Egreja, todos
+são egualmente subditos, desde o rei até ao infimo dos <em>viliores</em>. A
+base religiosa d'esse poder<span class="pn"><a name="pag_111">{pg. 111}</a></span>
+consolida-se com a força que dá a riqueza. Os barões, crendo de facto na
+verdade da revelação, e n'uma outra vida onde hão de ser julgados, teem uma
+religião feita de medo; e como no fundo são barbaros, vivem na terra á lei da
+força, remindo com esmolas e legados, á hora da morte, os longos rosarios de
+crimes. Julgando-se proximos a apparecer perante o supremo juiz, reconhecendo á
+hora da morte a inutilidade da força e da perfidia perante quem tudo póde e
+tudo vê, compram o perdão com o fructo das rapinas e dos crimes; e assim formam
+o alicerce de um poder real, verdadeiro e mundano. Salvos os mortos, os que
+ficam teem de entender-se com o clero herdeiro; teem de debater por todos os
+meios a influencia e o poder, para outra vez, á hora da morte, repetirem os
+actos causadores das luctas que lhes encheram a vida. Por tal fórma se encerra
+um circulo vicioso que a politica não póde romper, porque a religião o não
+consente. Desde que as raças germanicas, avassallando o imperio antigo, não
+tinham podido desenvolver a sua independencia religiosa e acceitaram o
+christianismo, força era que assim fosse, emquanto os dogmas christãos
+governassem as consciencias.</p>
+
+<p>N'este sentido é perfeitamente legitima a influencia do clero; e não o é
+menos por virtude da authoridade que lhe dá o saber, com effeito já pervertido,
+mas ainda preponderante sobre reis e principes analphabetos. Legitima a sua
+influencia, historicamente legitima a sua força, o clero, porém, recebia por
+seu turno a acção reflexa do meio ambiente em que vivia. Era tão aváro, tão
+feroz, tão barbaro, tão vicioso, como os seculares; e a sua cultura
+accrescentava ainda, aos defeitos da brutalidade, os da civilisação. As
+perversidades requintadas,<span class="pn"><a name="pag_112">{pg. 112}</a></span>
+as perfidias subtís tinham n'elle os melhores mestres; e por sua via entravam
+no corpo de uma sociedade barbara. Os sacerdotes eram os educadores politicos
+dos principes, quando não eram os seus declarados adversarios. Ensinavam as
+manhas, a quem apenas sabia commetter os actos brutaes. Aos vicios do instincto
+sabiam juntar as perversidades da intelligencia.</p>
+
+<p>Se os principes da Egreja influiam de tal modo, a plebe ecclesiastica
+acompanhava as massas no rodopio lugubre e sanguinario da dança infernal da
+Edade-média. Os homens da Egreja commettiam todos os crimes. Sacerdotes,
+habitando os templos e os mosteiros, os seus erros eram outros tantos
+sacrilegios, pela qualidade dos delinquentes e pela condição do lugar.
+Roubavam, feriam, matavam, mentiam. Os casados andavam bigamos; os solteiros,
+publicamente amancebados. Davam o braço ás prostitutas, viviam com ellas, e
+desfloravam donzellas. Engeitavam os filhos, repudiavam as esposas. Além de
+criminosos, eram indignos. Faziam-se carniceiros em praça publica, matando e
+degollando as rezes, vendendo carnes. Eram jograes, tafues, bufões. Escondiam a
+corôa, deixavam crescer o cabello, e abandonavam o trajo ecclesiastico, para
+mais á solta poderem abandonar-se aos seus desvarios.</p>
+
+<p>E, obrando taes crimes, desvirtuando por tal modo os legitimos privilegios
+do sacerdocio e da illustração, não deixavam de reclamar o fôro de uma justiça
+especial. D'ahi resultava que o rei podia enforcar um réo, por ser secular, e o
+cumplice ecclesiastico ficava impune. Testemunhas seculares não valiam contra
+elles, e ecclesiasticas não appareciam, porque o vedava a solidariedade da
+classe. O desvario era tamanho, que havia quem<span class="pn"><a
+name="pag_113">{pg. 113}</a></span> chegasse a ordenar-se, unicamente para
+commetter crimes impunemente.</p>
+
+<p>Juntem-se estes costumes aos costumes bravios da epocha; junte-se mais a
+serie de conflictos politicos e economicos, levantados pela condição particular
+da Egreja; addicione-se a situação especial de vassallo em que Affonso
+Henriques collocára o throno portuguez&mdash;e desde logo se comprehenderão os
+motivos dos longos e pittorescos conflictos da primeira época da historia
+nacional.</p>
+
+<p>A erudição lançou para o campo das lendas os episodios tradicionaes do tempo
+de Affonso Henriques; mas a historia não póde desprezar esses traços
+pittorescos com que o povo retrata, infiel mas typicamente, as tendencias e os
+costumes. Sabe-se a historia do bispo negro de S. Cruz de Coimbra; e os
+monumentos remotos contam o que Affonso Henriques, se não fez, poderia ter
+feito ao legado que veiu de Roma excommungal-o por se ter levantado contra a
+mãe, pela ter mettido a ferros e não a querer soltar&mdash;segundo resa a chronica.
+Era homem «muy bravo de grande coraçom» o principe a quem a rebeldia do clero
+irritava. Foi esperar o legado ao Vimieiro, chegou-se a elle, travou-lhe do
+cabeção, sacou da espada e quizera cortar-lhe a cabeça. Os cavalleiros do rei
+acudiram: «Dirão em Roma que sois herege!» O cardeal tremia de medo, o rei de
+colera, mas baixou a espada e voltou: «Pois quero que Portugal não seja
+excommungado em todos os meus dias e que não leveis d'aqui ouro, nem prata, nem
+bestas, senão tres!» E proseguia exigindo uma carta de Roma garantindo a posse
+«d'isto (Portugal) ca eu o ganhei com esta minha espada.» O sobrinho do cardeal
+ficaria em refens: teria a cabeça cortada se a carta não viesse em quatro
+mezes. O cardeal,<span class="pn"><a name="pag_114">{pg. 114}</a></span> diz-se,
+prometteu, annuindo a tudo; e o leitor sabe, pelo modo como lhe contámos os
+pactos de Zamora, qual é a verdade que esta scena pittoresca exprime. O rei que
+«em sua mancebia foi muito bravo e esquivo,» prosegue a lenda, feitas as pazes,
+disse ao cardeal: «Agora vede como sou herege!» E despindo-se, mostrou-lhe as
+feridas de todo o corpo, contando-lhe as batalhas em que as tinha havido.
+Resolvida a contenda, satisfeita a cubiça, aplacada a colera, apparecia depois
+do guerreiro violento o homem timido e crente, com a visão do inferno e o
+terror da excommunhão.</p>
+
+<p>Por isso os prelados de Braga, Coimbra e Porto eram como tres reis no reino,
+cujos limites já para um unico provavam escassos. Se as guerras da separação,
+primeiro, depois a conquista do sul do reino e a deslocação do seu centro para
+Lisboa, marcam os momentos geographicos decisivos da historia da independencia,
+a resolução dos conflictos ecclesiasticos e a consolidação do poder monarchico
+marcam, decerto, o movimento tambem decisivo d'essa historia, sob o aspecto
+mais intimo e organico da justiça social.</p>
+
+<p>Dos tres reis mitrados, o do Porto foi o que mais trabalhos deu aos
+monarchas portuguezes. O reinado de D. Sancho I, tão brilhantemente iniciado
+pela conquista de Silves, e com tanta sabedoria dirigido para a consolidação do
+centro assolado do paiz, é dos mais notaveis na historia dos conflictos com o
+clero. O rei era tão irascivel como credulo: acompanhava-o sempre uma
+feiticeira, diariamente consultada. Não tinha o furor bellico do pae, nem a
+energia justiceira do neto: parece ter sido um homem commum, mas serio.</p>
+
+<p>Na primeira decada do <small>XIII</small> seculo governava o<span
+class="pn"><a name="pag_115">{pg. 115}</a></span> bispado do Porto Martinho
+Rodrigues, homem atrevido, ambicioso, cheio de força e vicios. A authoridade da
+corôa limitava-se por esses tempos ao velho Porto, hoje o suburbio de Gaya, e o
+bispo imperava na cidade. Exacções e tyrannias, communs a todos os senhorios
+feudaes, levaram os burguezes do Porto a rebellar-se contra o bispo, invocando
+o auxilio que o rei lhes não refusou. Acclamado pelo povo, Sancho I entra na
+cidade; arrombam-se as portas das egrejas, a turba invade e assola os templos,
+conspurca os altares; e o bispo fica cinco mezes preso no palacio episcopal,
+até que finge submetter-se ás exigencias, com o proposito, que realisa, de ir a
+Roma pedir desforra ao papa. Entretanto o de Coimbra encerrava os templos e
+negava os serviços religiosos aos fieis: era esse um dos meios ordinarios de
+combate. Sancho I vae a Coimbra, faz de bispo, obriga os padres, á força, a
+celebrarem os officios divinos, mandando arrancar os olhos aos
+recalcitrantes.</p>
+
+<p>Voltou a final (1210) Martinho Rodrigues, de Roma, com bullas de Innocencio
+III. O nuncio ou legado do papa devia em pessoa lel-as ao rei; porque o
+chanceller Julião, valendo-se da ignorancia do soberano, usava alterar o que
+lia. Sancho I ouviu com humildade a monitoria papal. Estava doente, já fatigado
+da vida, e na perspectiva da proximidade da viagem para o outro-mundo, memorava
+tudo o que tinha feito, os desacatos e sacrilegios. Os remorsos enchiam de
+terror o seu animo duro, obtuso e bravio. Curvou-se e penitenciou-se. Este era
+sempre o momento infallivel da victoria da Egreja: a superstição entregava-lhe,
+manietados e submissos, os seus terriveis inimigos, na hora da morte imminente.
+Sancho I<span class="pn"><a name="pag_116">{pg. 116}</a></span> pedia aos monges de
+Alcobaça que rezassem por sua alma esses lugubres psalmos, que pareciam aos
+infelizes como um ecco das terriveis symphonias da eternidade. Reclinado no
+leito da morte, o rei, apavorado, via a face medonha do supremo Juiz; e
+sentia-se já precipitado nos abysmos ardentes, no seio das chammas crepitantes,
+roído, macerado pelos monstros diabolicos, a gritar em dôres infernaes.</p>
+
+<p>Desistiu de tudo; abandonou á sua miseranda sorte os burguezes fieis, deu
+rendas, legados, terras, senhorios. Deu mais até do que possuia! Conseguiria
+por tal preço obter o perdão? Os padres diziam-lhe que sim, e abençoavam-no
+promettendo-lhe a salvação.</p>
+
+<p>Fóra da camara, onde o rei agonisava (1211), o herdeiro, Affonso II, vulgar
+e obeso, avarento e incapaz de perceber a situação cruel do pae, ruminava
+porém, com o chanceller Gonçalo Mendes, discipulo de Julião, o plano da
+desforra. Começou por confirmar tudo o que o fallecido doára ao clero, porque
+primeiro tinha que liquidar contas com os irmãos e com o seu partido. Sancho I
+deixára-lhes metade do reino. Affonso queria-o inteiro para si: e era muito
+bastante para vêr que não podia bater-se ao mesmo tempo com todos os
+adversarios. Faltava no caracter do filho a nobreza do caracter do pae. Nas
+côrtes de 1211 confirma ainda a isenção dos cargos publicos, mas prohibe ao
+mesmo tempo ao clero a compra de bens de raiz. O de Braga protesta, e Affonso
+II manda-lhe arrazar os campos, destruir as granjas e confiscar as rendas.
+Estava outra vez declarada a guerra entre a monarchia e o clero. O rei morre,
+impenitente, apesar das ameaças das bullas de Honorio III.</p>
+
+<p>O segundo Sancho tinha muito do caracter do<span class="pn"><a
+name="pag_117">{pg. 117}</a></span> primeiro: era sinceramente devoto, e na
+Edade-média a sinceridade implicava certeza de derrota. É verdade que já a este
+tempo o terror das excommunhões diminuira: tão excessivo uso o clero dellas
+tinha feito. Os interdictos e a denegação de sepultura em sagrado eram
+acompanhamento constante de todas as pretenções ecclesiasticas. Se, porém, a
+força das armas canonicas minguára, não tinha diminuido o poderio positivo do
+clero, que era a classe mais opulenta do reino. O que os bispos exigiam de
+Sancho era demasiado; e como lhes foi negado, depozeram o bom e valente rei
+(1245). Em França, o usurpador subscreveu a tudo; sentado no throno, o terceiro
+Affonso, soube defender-se como se defendera o segundo. Trazia de fóra a muita
+experiencia, a manha, e a pertinacia consummadas, que aprendera nas côrtes mais
+polidas da Europa central.</p>
+
+<p>Evidentemente o clero baixa n'esta longa e interessante batalha. O
+fundamento juridico das suas pretenções vae gradualmente fugindo, á medida que
+as tradições romanistas e o espirito secular inspiram as acções dos monarchas,
+primando sobre as maximas do direito canonico. Esta substituição traduz o
+aclaramento gradual que se dá nas consciencias, á maneira que as superstições
+infantis d'essas primeiras e obscuras alvoradas, se vão abrindo no dia claro do
+renascimento da cultura intellectual.</p>
+
+<p>D. Diniz (1279-325) já não é analphabeto, e mede bem o valor da sciencia:
+prova-o a fundação das Escholas. Por outro lado, vê que a principal causa da
+força do clero está no ultramontanismo, palavra então desconhecida ainda para
+exprimir a influencia e authoridade soberanas dos papas sobre as Egrejas
+nacionaes. Libertar-se d'essa perigosa<span class="pn"><a
+name="pag_118">{pg. 118}</a></span> intervenção era o meio de diminuir a gravidade
+dos conflictos. Acaso a tradição dos concilios da Hespanha visigothica influiu
+para a creação das assembléas de prelados, cujas <em>concordatas</em>,
+registrando os fóros da Egreja, a subtrahiam á influencia estrangeira, por
+tornarem nacional o clero e internas as suas questões. O rei, que assim
+fomentava a educação e nacionalisava a Egreja, cimentando por outro lado o
+desenvolvimento economico do paiz, tinha uma intuição dos caracteres modernos
+das nações. Portugal caminhava de facto, rapidamente, na estrada da sua
+independencia, isto é, da sua constituição organica. O povo costumou-se a
+dizer: «El-rei D. Diniz fez tudo o que quiz.»</p>
+
+<p>Pedro, o justiceiro, com a sua typica individualidade conclue de um modo
+terminante e brusco a velha questão da influencia de Roma, quando estabelece o
+<em>placito regito</em>: «Nenhumas bullas, nem lettras pontificias serão
+publicadas em Portugal sem consentimento meu.»</p>
+
+<p>Procedia summariamente: e a sua politica, toda pessoal, acclamada com
+enthusiasmo por um povo que o adorava, era a voz indomavel da nação que falava
+por sua bocca. A sua loucura era a synthese do pensamento collectivo. Quando o
+bispo do Porto reagiu, o rei foi lá em pessoa, diz a chronica, fechou-se com
+elle n'uma sala, despiu o gibão para ficar mais á vontade: trazia por baixo uma
+saia de escarlata. O bispo, transido de susto, esperava, sem ousar pedir
+soccorro. D. Pedro chegou-se e, placidamente, tirou-lhe a capa; desenrolou o
+latego, e correu-o a açoites, dizendo-lhe a rir, gaguejando: vae! anda!
+toma!</p>
+
+<p>Não podia conceber leis, a cuja sombra os criminosos ficassem impunes; e por
+isso dava-se-lhe pouco de enforcar os padres.&mdash;E as regalias da<span
+class="pn"><a name="pag_119">{pg. 119}</a></span> Egreja?&mdash;«Vam-no enforcando,
+respondia com bom humor e pausa, porque não podia falar depressa. Vam-no
+enforcando: por esse caminho lá vae para Jesus Christo, seu vigario, que no
+outro-mundo o julgará!»</p>
+
+<p>E ficava-se a rir, vendo o tonsurado espernear na forca.</p>
+
+<p>Tudo mudára. Os tempos eram diversos; as excommunhões, papeis rabiscados; as
+regalias da Egreja, uma tradição apenas. O rei parado, com os olhos na forca,
+ria!</p>
+
+<p>«E diziam as gentes que taes dez annos nunca ouve em Portugal como estes que
+reinara el-rei dom Pedro.<small class="SMALL">(Fernão Lopes.)</small></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A fidalguia não tem uma historia tão grave como a do clero. As condições
+peculiares da constituição do reino portuguez augmentavam ainda os embaraços
+que em toda a Hespanha houve para a formação acabada de um feudalismo.<a
+name="tex2html48" href="#foot1185"><sup>[48]</sup></a> Todos os conflictos da
+nobreza com a Corôa proveem, não de uma questão de ambição politica, não de um
+pensamento definido de emancipação revolucionaria, como a do clero; mas da
+avareza, da cubiça, da brutalidade pessoal dos homens, nos quaes é mistér
+incluir tambem os reis.</p>
+
+<p>A não serem, por outro lado, as revoltas do Porto, e as guerras entre
+Bragança e outros concelhos transmontanos, por causa do senhorio de Lamas, nada
+se encontra em Portugal que dê idéa de uma descentralisação de dominio
+politico, similhante<span class="pn"><a name="pag_120">{pg. 120}</a></span> á que
+lavra para além das nossas fronteiras<a name="tex2html49"
+href="#foot1186"><sup>[49]</sup></a>.</p>
+
+<p>Poucos são os conflictos entre o rei e os barões que não tenham por origem a
+<em>pilhagem</em> dos realengos. Distante, e por isso mais fraca a acção da
+Corôa, o fidalgo do logar não receava chamar seu e apossar-se violentamente do
+terreno visinho, pertencente ao rei. Além d'isto, os nobres forjavam titulos,
+inventavam doações, para <em>honrarem</em> territorios sujeitos á acção das
+justiças reaes. D'estas causas provinham confusões inextricaveis, que a força
+apenas decidia. Quando o mordomo do rei, ou o seu aguazil, appareciam a cobrar
+um tributo ou reclamar um preso, o fidalgo usurpador, ou, do terreno, ou do
+privilegio apenas, saía com os seus homens: «Ca por aqui é <em>honra</em>!» E
+enforcava-os. Enforcava-os, ou matava-os mais barbaramente ainda. Um porteiro,
+que ia fazer uma penhora, teve as mãos cortadas, e foi depois assassinado.
+Outro, atado á cauda de um cavallo, foi de rastos, levado a galope em volta de
+toda a <em>honra</em>. Um foi <em>pendurado pelos braços</em>. Outra vez o
+fidalgo <em>prendidit eos per gargantas</em>: os processos eram tão barbaros
+como o latim.</p>
+
+<p>Entretanto, embora destituidas de um alcance ou significação
+politico-feudal, não faltam nas primeiras epochas portuguezas revoltas e
+desordens oriundas das necessidades bulhentas da fidalguia. Batalhar era o
+unico meio de passar o tempo, ganhando fama e dinheiro ou terras. Mais pacifico
+o reino occidental da Peninsula, «em aquell tempo os fidallgos portuguezes hiam
+a Castella muitas vezes por se provarem pellos corpos quando em Portugall
+mesteres nom avia.» Mesteres eram desordens,<span class="pn"><a
+name="pag_121">{pg. 121}</a></span> como a que assolou o paiz no tempo de Sancho II
+e levou á deposição do rei. Eis aqui um episodio do livro das
+<em>Linhagens</em>: «E este Raymão Viegas de Portocarrero, sendo vassallo
+d'elrey D. Sancho de Portugal, veio uma noute a Coimbra com a companha de
+Martim Gil Soverosa, onde el-rey jazia dormindo na sua cama; e roubaram-lhe a
+rainha D. Mecia sua mulher de apar d'elle e levaram-na para Ourem. O rei
+lançou-se apoz d'elles e só os pôde alcançar em Ourem que era então muy forte.
+Disse-lhes que abrissem as portas, pois era elrey D. Sancho, e levava seu
+preponto vestido de seus signaes e seu escudo e seu pendão ante si, e deram-lhe
+muy grandes sétadas e muy grandes pedradas no seu escudo e no seu pendão e
+assim se houve ende (d'alli) a tornar.» Mesteres eram estas guerras civis
+frequentes; mesteres, porém, menos nobres, eram as vinganças crueis exercidas
+sobre o povo inerme, como a de um tal Martim Esteves, que matou os doze
+melhores homens de Alter-do-Chão «por deshonra que lhe ahi fizeram.»</p>
+
+<p>Mesteres ainda, são os desaggravos do thalamo tão a miude violado. Houve um
+Dom Rodrigo Gonsalves casado com Dona Ignez Sanchez; ella, estando no Castello
+de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e o marido, certo d'isto, chegou
+ahi, cercou as portas do castello, e queimou-a a ella e ao frade e homens e
+mulheres e bestas e caens e gatos e gallinhas e todas as cousas vivas, e
+queimou a camara e pannos de vestir e cama, e não deixou cousa movel.</p>
+
+<p>Nos mesteres amorosos tambem essa gente barbara se «provava pellos corpos»
+mas sem necessidade de ir a Castella. Quando em tão pouco se tinha a vida
+alheia, como se teria em muito a honra?<span class="pn"><a
+name="pag_122">{pg. 122}</a></span> De Affonso Henriques, o rei «muito bravo e
+esquivo em mancebo», conta a historia que foi um dia hospedar-se em Unhão, a
+casa de um homem-bom que havia nome Gonçalo de Sousa, e emquanto elle ia
+adubando o comer, foi elrey vêr-lhe a mulher que tinha por nome Dona Sancha
+Alvares e começou-lh'a... E Dom Gonçalo de Sousa entrou pela porta e viu assim
+ser e pesou-lhe d'ahi muito e disse-lhe: Senhor, levantae-vos, ca adubado o
+tendes. E o rei foi sentar-se, e comeu e partiu; e o marido pegou da esposa,
+montou-a n'um jumento com a cara para a cauda, e mandou-a assim á côrte
+entregar ao rei.</p>
+
+<p>Estes escrupulos do fidalgo não eram, porém, geraes, e fazem-lhe honra. A
+promiscuidade repugnante, o incesto, o sacrilegio são casos communs. Um fez um
+filho em Tereja Mendes, abbadessa de Lorvão e levou-o para a côrte, onde D.
+Diniz lhe deu muito bem e muita mercê. Outro «ouve um filho, Ruy, que foi
+privado d'elrey D. Diniz e ouvidor de sua caza.» Os reis, os nobres teem
+barregans publicas e legiões de bastardos. Quando D. Maria Paes, amazia de
+Sancho I, vinha do enterro do rei em Coimbra, encontrou em Avelans Gomes
+Lourenço, que lhe saíu ao caminho e a <em>filhou</em> por força, roussando-a.
+Elvira Annes roussou-a Ruy Gomes de Briteiros. E D. Fernão Mendes, o bravo,
+«foi o que matou sua madre na pelle da ussa e pose-lhe os caens, porque lhe
+baralhara com a barregan.» A bestialidade nem respeita o sangue, nem um incesto
+impede o casamento das nobres damas. «Dona Thereza Gil foi de mau preço e ouve
+filhos de seu primo co-irmão»; Dom Pedro Garcia <em>jouve</em> com sua irman e
+«fez em ella semel.» Dona Mor Garcia não foi casada, mas roussou a seu irmão
+Pedro e «fez em ella Martim<span class="pn"><a name="pag_123">{pg. 123}</a></span>
+Tavaya.» Outrotanto succedeu a uma Maria Mendes, que depois casou com Lourenço
+Soares de Valladares. É longa a lista das torpezas das <em>Linhagens</em> da
+fidalguia. Taes são os poeticos amores da Edade-média, cujo brio é perfidia,
+cuja bravura é crueldade, cuja nobreza é astucia. A carne, o sangue e o ouro, a
+orgia bestial, a carniceria e o roubo são os elementos d'essas historias, em
+que a rudeza barbara apparece manchada de podridões asquerosas.</p>
+
+<p>O roubo e o assassinato compõem essa epopêa aristocratica, cujos amores são
+<em>roussos</em>, estupros, adulterios, cujo espirito é a avareza e a
+perfidia.<a name="tex2html50" href="#foot1187"><sup>[50]</sup></a>
+<em>Filhar</em> as terras do rei, é a primeira das emprezas da
+<em>cavallaria</em> em Portugal. E o rei não vale mais do que os cavalleiros.
+Quantas vezes, com effeito, não seria usurpadora a sua intervenção? quantas
+vezes a ira brutal do fidalgo não teria um fundamento justo? Affonso II leva
+metade do seu reinado a espoliar da herança os irmãos, e todo elle a
+<em>inquirir</em> o fundamento legal da posse dos dominios aristocraticos:
+faz-se idéa da regularidade do segundo processo, depois de observada a primeira
+façanha. A confusão é tão grande, que D. Diniz (1309) decide abolir todas as
+<em>honras</em> posteriores a 1290.</p>
+
+<p>É tambem no seu tempo que um outro acto de grande alcance vem diminuir o
+poder da nobreza, de um modo analogo ao que succedera ao clero. Assim como,
+fóra da nação, o clero tinha em Roma o seu chefe supremo; assim tambem as
+Ordens militares, estabelecidas em Portugal, tinham fóra do reino os seus
+mestrados. Nacionalisar as Ordens militares (1310) equivalia ao que se
+conseguira<span class="pn"><a name="pag_124">{pg. 124}</a></span> com as assembléas
+do clero. O <em>Templo</em>, poderosa machina destruida por Clemente V, legava
+os seus bens ao <em>Hospital</em>, mas os tres reis de Castella, Aragão e
+Portugal, <em>como todos tres fuessemos uno a catar nuestro drecho</em>,
+conseguem nacionalisar os bens dos templarios. É com elles que D. Diniz funda a
+ordem portugueza de Christo.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Os monges militares<a name="tex2html51" href="#foot1188"><sup>[51]</sup></a>
+tinham representado um papel importante no movimento da reconstituição
+economica dos territorios portuguezes. Desde os primeiros tempos que ás Ordens
+jerosalemitanas fôra confiada a guarda de numerosas povoações. O Templo, o
+Hospital e o Sepulcro fruiam de abundantes doações; e Affonso Henriques
+concedera á primeira a terça parte de todas as conquistas ao sul do Tejo. Á
+inopia de forças para levar a cabo as grandes emprezas de Lisboa, Alcacer e
+Silves, pontos decisivos da conquista do sul do reino, remediavam os Cruzados;
+mas as esquadras partiam com o saque, e sósinhos os portuguezes não podiam
+conservar o adquirido. N'este motivo se fundára a concessão permanente de
+terras ás Ordens militares. Como vimos, Sancho II estendeu as fronteiras do
+reino pelo alto-Alemtejo; e sem recursos para conservar as conquistas, chamou
+para o reino os cavalleiros de Santiago e Calatrava, cujo mestrado era
+castelhano.</p>
+
+<p>Tal era o unico meio de guarnecer os castellos dispersos pelas vastas
+campinas assoladas do sul do reino. A instabilidade do dominio e a escassez da
+população&mdash;ainda hoje sentimos as consequencias<span class="pn"><a
+name="pag_125">{pg. 125}</a></span> d'essas prolongadas guerras&mdash;não permittiam que
+a cultura se estendesse; e á falta de productos da terra, christãos e
+sarracenos tinham de soccorrer-se ao systema de correrias e algaras
+permanentes. Como em nossos tempos na Servia, o lavrador trabalhava armado, na
+limitada área aproveitada em torno dos lugares fortificados. Além da occupação
+constante de <em>alancear mouros</em>, havia os grandes fossados annuaes, no
+tempo em que as searas estavam maduras; e isto fazia precaria e transitoria a
+agricultura. Todas estas causas reunidas produziam em resultado a devastação
+universal, já consummada na edade de que nos occupamos. Nos foraes dos
+primeiros seculos da monarchia, o alfoz dos concelhos é demarcado por uma certa
+penedia no alto da serra, pelo carvalho insulado, pela <em>velha</em> estrada
+mourisca, por certa pedra de côr diversa; jámais por casas, villares ou
+granjas.</p>
+
+<p>O norte do reino, abrigado das invasões, defendido pelas linhas estrategicas
+do Tejo e do Mondego, não era, desde seculos, theatro da guerra santa. As
+depredações, menos geraes e menos frequentes, provinham ahi apenas das rixas
+dos senhores e das guerras civis. Affonso II mandou arrasar as propriedades do
+arcebispo de Braga. As guerras entre os filhos de Sancho I, as commoções que
+acompanharam a queda de Sancho II, a rebellião armada de Affonso (depois IV)
+contra seu pae, a do viuvo de Ignez de Castro, entre outras, trouxeram decerto
+ruinas e desastres, mas não para comparar com as assolações do sul, nem sequer
+com os males dos primeiros tempos, quando a ambição de conquistar a Galliza
+fazia do Minho o theatro das luctas quasi constantes com Leão.</p>
+
+<p>As guerras castelhanas do tempo de D. Fernando<span class="pn"><a
+name="pag_126">{pg. 126}</a></span> teem um novo theatro, porque o antigo condado
+portucalense descera já á condição de provincia portuguesa. O coração do reino
+está em Lisboa, a terra querida d'elrey Diniz, <em>ca hy nascera, hy fora
+criado y bautizado, e hy fora rey</em>. Nem o norte do Mondego, rico e
+populoso, nem o sul do Sado, demasiado bravio e inhospito, chamam a attenção
+administrativa dos governos. Toda ella se applica para o centro do reino, a
+renovar e agricultar, e para o desenvolvimento da navegação e do commercio pelo
+magnifico porto onde todos os navios, em viagem dos mares do norte para o
+Mediterraneo, vinham refrescar, desde que Lisboa era christan. D. Diniz lavrou
+o primeiro tratado mercantil com a Inglaterra (1308). Os armadores da
+Normandia, da Flandres e da Inglaterra, já no fim do <small>XIII</small> seculo
+demandavam o Tejo, para mercadejar; e os cuidados dos reis não se limitavam
+apenas a favorecer esse commercio, porque as plantações de vastos pinhaes nas
+costas teem como motivo proporcionar madeiras ás construcções navaes, e ao
+mesmo tempo defender as terras da invasão das dunas, no litoral de entre o Tejo
+e Mondego.</p>
+
+<p>O ultimo d'esta serie de phenomenos que demonstram a formação crescente de
+um organismo nacional, é o apparecimento de Lisboa, a cidade querida, como um
+centro de actividade maritima e commercial. Definitivamente separado de Leão,
+obliteradas as ambições da absorpção da Galliza, geographicamente completo até
+ao mar do Algarve, rota a dependencia feudal de Roma, nacionalisado o clero e
+as Ordens militares, fortalecido o poder dos reis, iniciada a organisação da
+justiça, da administração, do ensino&mdash;o corpo da nação portugueza, até ahi
+acephalo, achava em Lisboa a<span class="pn"><a name="pag_127">{pg. 127}</a></span>
+capital. A cidade do Tejo dava mais do que um centro de vida organica, dava um
+destino definido&mdash;o maritimo&mdash;a uma nação que na terra da Hespanha não tinha
+individualidade, nem por uma indole homogenea e particular dos habitantes, nem
+por uma conformação especial e autónoma do territorio.</p>
+
+<p>Corintho ou Veneza do occidente, Lisboa <em>grande cidade de muytas e
+desvairadas gentes</em> era mais do que a capital do reino: era a razão de ser
+da sua independencia.<span class="pn"><a name="pag_128">{pg. 128}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1179" href="#tex2html43"><sup>[43]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) liv. <small>III</small>, 4.</p>
+
+ <p><a name="foot1180" href="#tex2html44"><sup>[44]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primit.</em>, pp. 233 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1181" href="#tex2html45"><sup>[45]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primitivas</em>, pp. 137-47.</p>
+
+ <p><a name="foot1182" href="#tex2html46"><sup>[46]</sup></a> V. para os usos
+ judiciaes, etc., na Edade-média portuguesa, o <em>Quadro das Instit.
+ primit.</em>, pp. 17-18, 154, 163-4, 170-1, 175-8 e 181-205; e <em>Regime das
+ Riquezas</em>, pp. 172-4.</p>
+
+ <p><a name="foot1184" href="#tex2html47"><sup>[47]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 158 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1185" href="#tex2html48"><sup>[48]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 127-32 e 143-9.</p>
+
+ <p><a name="foot1186" href="#tex2html49"><sup>[49]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. 135-43</p>
+
+ <p><a name="foot1187" href="#tex2html50"><sup>[50]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primit.</em>, pp. 98 e 157.</p>
+
+ <p><a name="foot1188" href="#tex2html51"><sup>[51]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primit.</em>, p. 263.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002240">IV<br>
+A crise</a> </h3>
+
+<p>Quando Portugal se encaminhava, por fim, no sentido de uma rapida e
+definitiva constituição, quiz o acaso que o throno coubesse por herança a um
+principe de fracas, mas sympathicas qualidades.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>Do justo e duro Pedro nasce o brando<br>
+ (Vede da natureza o desconcerto!)<br>
+ Remisso e sem cuidado algum Fernando.</p>
+</blockquote>
+
+<p>O filho de Pedro I era uma infeliz creatura, mal equilibrada nas suas
+qualidades e defeitos. Não era, decerto, aquelle homem de que a nação carecia
+para consolidar de um modo seguro a sua independencia; e n'um sentido póde
+dizer-se que as condições em que se achou foram a causa dos males de que muito
+soffreu. Faltava-lhe a firmeza necessaria para realisar os planos concebidos
+por uma intelligencia perspicaz. Era inventivo, mas era chimerico. Media o
+alcance dos actos e pensamentos, mas não sabia pesar o valor dos meios. O corpo
+de leis que promulgou para fomentar a navegação e o commercio, honrarão
+eternamente a sua intelligencia e a fina percepção com que via no
+desenvolvimento maritimo o futuro da patria. A obra consideravel das
+fortificações da capital (1377) concorre tambem a mostrar que reconhecia<span
+class="pn"><a name="pag_129">{pg. 129}</a></span> a verdade&mdash;cruamente por elle
+aprendida&mdash;de que Portugal era já, e seria sempre Lisboa. Accusam-no modernos
+sabios de ter defraudado a moeda: mas que outro remedio havia então contra a
+penuria do thesouro? que outros exemplos davam os demais principes? que outro
+exemplo damos nós ainda hoje, quando, para não cercear o peso ou diminuir o
+toque do ouro, cunhamos papel?&mdash;Accusam-no porque <em>hordenou almotaçaria em
+todallas cousas</em> (1375): e que outro remedio havia, na curta sciencia do
+tempo, contra os monopolios e agiotagens, mais funestos na paz do que as
+batalhas dos tempos de guerra? Tarifar os generos e os salarios foi medida
+applaudida quasi até nossos dias; obrigar os detentores á venda dos cereaes,
+determinar a partilha dos grãos, foram actos de salvação publica repetidos
+ainda depois de D. Fernando, e sempre que uma crise obriga a suspender as
+garantias, ou justiça civil. Mas o rei que cerceava as moedas e ordenava a
+almotaçaria em todas as cousas, era o que fundava a marinha mercante nacional:
+era o que, olhando para o mar, não se esquecia da terra, obrigando os
+proprietarios dos maninhos alemtejanos a cultival-os, ou a aforal-os. A
+administração de D. Fernando é um cesarismo. O desenvolvimento politico e
+economico da nação chegava a um momento de crise organica traduzida por uma
+crise militar e dynastica. A população e a riqueza tinham crescido de um modo
+notavel desde que, havia mais de um seculo, terminára a reconquista do
+territorio aos musulmanos. O censo que annos depois se fez (1417) dá ao reino
+4:800 besteiros de conto, ao Porto 8:500 habitantes, e a Lisboa 63:750.
+Pullulavam enxames de aldeias e casaes pelos campos agricultados, e muitas
+villas que depois definharam eram ainda importantes:<span class="pn"><a
+name="pag_130">{pg. 130}</a></span> Sines, Cezimbra e Mertola. Algumas cidades eram
+muito maiores do que são hoje: Evora e Beja, Santarem, Thomar, Leiria. D.
+Fernando herdou o reino robusto e forte.</p>
+
+<p>Mas o pobre rei, tão bom e tão sagaz, tinha porém um fraco, que estragava
+tudo: era doido por mulheres. Singular na edade-média, a pessoa de D. Fernando
+parece estar no fim de uma epocha historica, como um indicio e um typo mal
+esboçado de futuros personagens. Superior na intelligencia, acaso por isso
+mesmo era desmandado no modo de proceder. Talvez lhe conviesse o nome de
+sceptico, especie moral que o desenvolvimento da inteligencia, sem o
+desenvolvimento parallelo da vontade, ou do caracter, faz tão commum em nossos
+dias. Para Cesar, D. Fernando era, porém, bondoso de mais: tinha um fundo de
+sinceridade que o perdia, porque á indifferença não reunia o cynismo. Era, no
+fundo, um pobre homem de talento. Este genero de individuos é sempre
+sympathico; e por isso o povo, embora chegasse a mofar, nunca o odiou. As suas
+fraquezas, prazeres e amores sempre foram criticados com benevolencia. O povo
+sabia que no fundo o caracter do rei não era perverso. Não o podia respeitar
+nem temer, mas sorria-se amigavelmente das suas extravagancias. Era o filho
+prodigo da nação.</p>
+
+<p>Ás suas qualidades e vicios sympathicos reunia o ser formoso, agil,
+cavalleiro como os bons, caridoso, affavel, «gran criador de fidalgos e muito
+companheiro com elles, cavalgante, torneador, grande justador e lançador
+atavolado»&mdash;o jogo era uma das basofias do fidalgo medieval&mdash;dadivoso para com
+todos, e grande agasalhador de estrangeiros. A toda a gente queria bem, mas de
+um modo familiar e singelo, que não infundia respeito.<span class="pn"><a
+name="pag_131">{pg. 131}</a></span> Os reis de fóra, sabendo-o tão singularmente
+bom e simples, riam-se d'elle.</p>
+
+<p>Era um infeliz, no sentido que a expressão tem popularmente em castelhano.
+Dava tudo pela caça: uma paixão desenfreada. Só falcoeiros de besta contava
+quarenta e cinco, e não estava satisfeito: queria povoar com elles uma rua
+inteira em Santarem. Quando mandava por aves, nunca lhe trouxessem para menos
+de cincoenta, entre açores e falcões, gerifaltes e negris, todas
+<em>primas</em>. Tinha um regimento de mouros para apresarem as garças e outras
+aves, que iam buscar a caça nas lagôas. Não perdoava sequer os innocentes
+pombos. Eram ás legiões as matilhas de cães para coelhos, rapozas e lebres.
+Correr lebres ou atirar aos pombos era o seu <em>grande sabor e
+desenfadamento</em>. O do seu avô Henriques fôra correr mouros e atirar ás
+ameias dos castellos: os tempos, os temperamentos, eram já inteiramente
+diversos.</p>
+
+<p>Ainda assim, não era a caça que perdia o rei. Namorado sempre e mulherengo,
+«amador de mulheres o achegador a ellas,» diz F. Lopes, tinha um feitio terno,
+<em>amavioso</em>. A carnalidade arrastava-o aos maiores excessos, e é provavel
+que tivesse vicios ingenuos. Sua irman solteira, a infanta D. Beatriz, fôra
+cinco vezes offerecida, outras tantas recusada, a diversos principes, nas
+varias combinações politicas que a sua fertil imaginação creava, e que a sua
+indolencia invencivel punha logo de parte. A côrte d'essa irman era um viveiro
+de donas, onde o rei permanentemente satisfazia os seus gostos mulherengos. Foi
+n'essa côrte que viu e se perdeu de amores por Leonor Telles. Parece, comtudo,
+que antes d'isso não amava; porque é proprio dos temperamentos, como era o do
+rei, não ter paixões. A sua delicia era o gozar indolente<span class="pn"><a
+name="pag_132">{pg. 132}</a></span> dos carinhos e meiguices das mulheres, não era
+amar. Não é provavel, pois, «a suspeita deshonesta que alguns tinham da
+virgindade da infanta ser por elle minguada.» Bastavam ao rei «os jogos e
+fallas tão a meude misturadas com beijos e abraços e outros desenfados de
+similhante preço.» Só aos fortes corações é dado amar e enlouquecer. D.
+Fernando não tinha essa virilidade de caracter. Distincto, perspicaz, engenhoso
+de espirito, bom, affavel de genio, faltavam-lhe o valor que faz os homens, e a
+vontade que faz os reis. Era uma indolencia formada de espirito e sensualidade;
+uma creatura romantica e sympathica; uma mulher, fraca e intelligente, sentada
+no throno. Leonor Telles conquistou-o, porque tinha o genio de um Homem; e o
+segredo d'essa alliança tenaz não está n'uma paixão do rei, está na inversão
+das pessoas e dos sexos. Ella fez-se rei; elle tornou-se a amante, passiva,
+indolente, sensual.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>O tempo de D. Fernando foi uma serie de guerras com o visinho reino de
+Castella. As muitas desgraças d'essas emprezas loucas tiveram de bom o affirmar
+de um modo terminante a independencia formal e positiva da nação, como sáe da
+batalha de Aljubarrota. Á maneira de certas enfermidades agudas, quando atacam
+o homem de temperamento indeciso e constituição debil, na edade em que attinge
+a virilidade, e determinam uma revolução organica, fixando e consolidando a
+saude&mdash;assim as guerras castelhanas de D. Fernando. são, para Portugal, uma
+crise. O seu destino vacillante, os seus orgãos esboçados apenas, soffrem a
+prova de uma commoção violenta. Acordam outra<span class="pn"><a
+name="pag_133">{pg. 133}</a></span> vez as tentações antigas, já anachronicas, da
+conquista da Galliza; o reino é mais de uma vez invadido; a miseria, a ruina,
+as devastações e a penuria affligem, como uma febre ardente, o corpo da nação.
+Falta decerto um rei que a dirija, um homem forte que a represente e guie; mas
+isso mesmo concorre para caracterisar a crise, demonstrando que a vitalidade
+collectiva existia já, e não provinha apenas da imposição forte de um braço
+guerreiro. Em dois seculos Portugal tornara-se de um amalgama de populações
+ruraes, cuja unidade estava apenas no genio dos seus barões, em um organismo,
+cuja consciencia de uma vida collectiva era real e definida. Tal é, a nosso
+vêr, o merecimento d'essa revolução nacional, cujo supposto chefe, o Mestre de
+Aviz, é mais o instrumento do que o heroe.</p>
+
+<p>Não precipitemos, porém, a narrativa.</p>
+
+<p>D. Fernando julgára convir-lhe apoiar a usurpação do throno de Castella por
+Henrique de Trastamara, quando o poder do rei D. Pedro ainda chegava para bater
+o rival em Najera. Depois que o usurpador, voltando de França com o auxilio de
+Duguesclin, consegue desthronar o rei perdido, D. Fernando julga conveniente
+alliar-se ao do Aragão e ao mouro de Granada, contra o Trastamara victorioso.
+Formára o chimerico plano de bater o vencedor com o partido vencido que o
+invocava; esperando sentar-se no bello throno de Castella, de que promettia um
+retalho ao aragonez, outro ao granadino. A empreza não destoava dos
+antecedentes historicos; porque o regime politico da Hespanha, retalhada em
+varias monarchias, era um systema de conquistas successivas de reinos. Era,
+porém, chimerica por dous motivos, um ignorado então, outro evidente: a
+incapacidade do rei, e o<span class="pn"><a name="pag_134">{pg. 134}</a></span>
+destino que marcava á Hespanha a solução unitária. Se Portugal pôde escapar aos
+preceitos d'esse fado, deveu-o ao movimento que, por lhe dar Lisboa, fazia
+d'elle uma nação cosmopolita, commercial e maritima, e não propriamente
+hespanhola: outra Hollanda, no corpo de outra Allemanha<a name="tex2html52"
+href="#foot1189"><sup>[52]</sup></a>.</p>
+
+<p>A politica de D. Fernando era, pois, historicamente insensata, falta que
+seria absurdo irrogar ao rei; mas era tambem pessoalmente absurda, porque os
+seus planos eram chimeras, tão breve nascidas como abandonadas. Haveria no
+espirito do rei o pensamento, mais ou menos definido, de se substituir ao
+castelhano na obra da unificação politica dos Estados peninsulares? Nada
+authorisa a suppol-o; e até porque tal pensamento não estava ainda cabalmente
+definido para os monarchas de Castella.</p>
+
+<p>O facto é que D. Fernando declarou a guerra e abriu a campanha, invadindo a
+Galliza (1369); «mas sua ida foi de tal guisa que mais sua honra fora não ir
+alla dessa vegada.» Muitos barões gallegos correram a recebel-o, a acclamal-o.
+Tradições de outras eras? Ambições, ainda vivas, de uma independencia, que mais
+de uma vez tinham considerado solidaria com a soberania de Portugal? É
+provavel; mas é tambem certo que a rapina era o motivo immediato da adhesão,
+porque «muytos vinham-se a ele e pediam-lhe os bees dos que se iam para D.
+Henrique, o que era dado ledamente.» O inimigo, de Castella, fazia outro tanto.
+O conde Andeiro foi o mais caloroso dos partidarios gallegos de D. Fernando.
+Saíu ao encontro do rei, alvoroçado, a gritar: «Hu vem aqui meu senhor Elrey D.
+Fernando?» E o rei, esporeando<span class="pn"><a
+name="pag_135">{pg. 135}</a></span> o cavallo, radioso e feliz por uma tão facil
+conquista, vendo-se já sentado no throno de Castella, avançou, respondendo: «Eu
+som! eu som!» A invasão tornava-se um passeio até á Corunha; mas pouco
+adivinhavam ambos, o conde e o rei, quanto haviam de pagar caro os prazeres
+desses dias breves.</p>
+
+<p>O castelhano corre sobre a Galliza, e D. Fernando foge a esconder-se em
+Coimbra. A resaca assoladora vem até Braga e Guimarães, atravez de todo o
+Minho. A provincia inteira gritava por soccorro: Aqui d'el-rei, contra o
+castelhano!&mdash;O rei, indeciso, indolente, esperava a realisação da sua
+chimera:&mdash;não é mister batalhar; Castella inteira vem entregar-se, como se
+entregára, de braços abertos, a Galliza!&mdash;Passeava-se, entretanto, com o
+exercito, entre Santarem e Lisboa. Ia, vinha, avançava e retrocedia, tão tonto
+que já o povo da capital ria d'esses passeios: <em>exvollo vae, exvollo
+vem!</em><a name="tex2html53" href="#foot1190"><sup>[53]</sup></a></p>
+
+<p>Afinal em Coimbra&mdash;cidade funesta aos dois Fernandos<a name="tex2html54"
+href="#foot1191"><sup>[54]</sup></a>&mdash;decidiu-se a acudir ao Minho, quando o
+rei de Castella, depois de assolar tudo, tinha já partido para além da
+fronteira. Pela raia, porém, o batalhar continuava, e tambem na costa<span
+class="pn"><a name="pag_136">{pg. 136}</a></span> andaluza o bloqueio maritimo: já
+Portugal tinha armadas. Mas a guerra dilatava-se; e Castella, decididamente,
+não o chamava para seu rei. Começou a <em>assentar-se del a covardice</em>,
+abandonou os alliados; e aborrecido e desilludido por esta vez, assignou as
+pazes de Alcoutim.</p>
+
+<p>A sua chimera só, porém, o deixou quieto por tres annos.</p>
+
+<p>D. Pedro tinha morrido em Montiel, assassinado ás mãos de Trastamara (1369);
+a filha mais velha do defunto era casada com o duque João de Lencastre, da casa
+de Inglaterra: d'ahi vinham as pretenções d'este á corôa castelhana e o bravo
+duello que a Inglaterra e a França debateram na Hespanha por muitos annos. A
+influencia franceza era dominante em Castella; e para logo, nas successivas e
+ulteriores convulsões, a alliança ingleza venceu em Portugal. D. Fernando, ou
+movido pelo desejo de desforra, ou pensando ainda nas suas velhas ambições, e
+esperando ludibriar o alliado, assigna em Braga (1372) o tratado de alliança
+com o inglez, contra o castelhano. Henrique de Trastamara, em cuja côrte
+andavam diversos fidalgos portuguezes, como os gallegos da invasão anterior
+andavam com D. Fernando, manda Pacheco (o terceiro assassino de D. Ignez de
+Castro) vêr se effectivamente o rei se dispunha á guerra. Era tão voluvel o seu
+caracter, que o castellão não acreditava ainda. Voltou Pacheco: sem duvida o
+rei estava disposto a entrar em campanha. Então D. Henrique, com bondade, lhe
+pede que abandone essa chimera, e insta pela paz. Elle, excitado pelas
+<em>hespanholadas</em> de Affonso Tello, suppõe que a fraqueza era o motivo da
+insistencia. Inuteis as observações, o rei de Castella prefere invadir a ser
+invadido; e rapidamente entra pela Beira (1372),<span class="pn"><a
+name="pag_137">{pg. 137}</a></span> cáe sobre Lisboa, cujo cêrco uma esquadra, ao
+mesmo tempo partida de Sevilha, encerra por mar (1373).</p>
+
+<p>Que fazia D. Fernando? Do alto dos muros de Santarem, onde se fechára, via
+passar o exercito inimigo, sem ousar mover-se. Dois motivos lh'o impediam.
+Esperava a toda a hora o soccorro do inglez; e se o fructo d'essa guerra lhe
+era destinado a elle, bom seria que em pessoa o disputasse. Deixar, porém,
+invadir assim o reino, pôr cêrco á capital, abandonar o povo, abandonar Lisboa,
+era vergonhoso, decerto. Mas se n'esses dias Leonor Telles, enferma, estava de
+cama, com as dôres do parto? Como havia de o pobre rei acudir aos dois deveres?
+A quem obedecer primeiro: ao tyranno politico, a corôa, ou ao domestico, a
+rainha? Como todos os fracos, decidiu-se pelo mais proximo; tapou os ouvidos
+aos clamores da nação, para attender só aos ais da enferma. Não era por paixão
+que o fazia, era por indolencia: sempre esperava que Lisboa afinal havia de
+resistir, e saberia defender-se!</p>
+
+<p>Com effeito, não se enganava. A cidade valia muito mais do que o rei. Quando
+viu approximar-se o castelhano, chegou a ser temeraria; porque pretendeu
+defender com barricadas os arrabaldes, fóra dos muros. Lisboa tinha a
+homogeneidade na resistencia; e em vão D. Diniz (o infante que por condemnar o
+casamento de Leonor Telles fugira para Castella), em vão Pacheco e os mais
+portuguezes de D. Henrique buscavam convencer os lisbonenses da vantagem da
+rendição. Não estamos agora no norte, meio gallego, onde a idéa de
+nacionalidade vogava indecisa nos dois lados do Minho: estamos no coração do
+paiz, e n'uma terra sem tradições leonezas, que não foi <em>separada</em>,
+que<span class="pn"><a name="pag_138">{pg. 138}</a></span> nunca obedeceu a outro
+rei mais do que ao portuguez, a quem deve o que é. Inuteis as tentativas de D.
+Diniz, de Pacheco, e dos mais, o exercito approximou-se. Viu-se então a
+temeridade de defender os arrabaldes; e á pressa, recolheram-se todos para
+dentro dos muros. O enxame acudia ás portas, correndo curvado com o peso das
+trouxas, das arcas, onde salvára o que tinha mais precioso. Vinham as familias
+em grupos, as mães, carpindo, arrastando os cordões de creanças, espantadas de
+tudo aquillo. Já os castelhanos entravam pelos casaes e quintas dos arredores:
+o lume ardia ainda na lareira, a porta estava aberta, os quartos vasios.
+Arrazaram e queimaram tudo, desde as hervas até aos telhados.</p>
+
+<p>No rei assentára outra vez a covardice: e, como o inglez não acudia,
+acceitou a paz, e foi de Santarem a Vallada assignal-a (1373). «Quanto eu
+<em>haarricado</em> venho!» dizia a rir, na volta. Effectivamente não queria
+mal algum a D. Henrique; e, se a empreza falhára, o melhor era fazer cara
+alegre, e acabar por uma vez com o muito que, do cêrco, padecia Lisboa. Além
+d'isso, agradára-lhe o trato do inimigo: agradára-lhe tanto, que lhe concedeu a
+irman, D. Beatriz, para casar com o irmão do castelhano, Sancho. Triste destino
+o d'esta princeza, que era, nas mãos do rei, como os joguetes que as creanças
+dão, tiram, voltam a dar, ao sabor do seu capricho infantil!</p>
+
+<p>Este mesmo modo de que usava com a irman, estava reservado á filha: a outra
+Beatriz nascida em Santarem durante a invasão precedente. Henrique de
+Trastamara tinha morrido; e o herdeiro, João I, na idéa de reunir as duas
+corôas de Castella e Portugal, pedira a D. Fernando (que não tinha outro filho)
+a mão da pequena D. Beatriz;<span class="pn"><a name="pag_139">{pg. 139}</a></span>
+ao que este annuira, celebrando-se tratados, porque para casamento era cedo
+ainda: a pequena teria oito annos, se tanto.</p>
+
+<p>Mas o rei, diz o chronista, trazia sempre sua fala com os inglezes, o mais
+encobertamente que podia. Que falas eram essas? Era a alliança de Lencaster, na
+qual D. Fernando via talvez ainda luzir a possibilidade de realisar a sua
+chimera. O conde Andeiro, que na primeira guerra abrira a Galliza ao portuguez,
+fôra desterrado para Inglaterra, na occasião de Alcoutim, por exigencia do
+castelhano. Era Andeiro o confidente do rei, e o seu agente para com Lencaster.
+Veiu de Inglaterra, escondido, a Extremoz, onde o rei, ao tempo, assistia:
+trazia novos tratos e combinações, com a promessa de uma esquadra. O rei
+acceitou com facilidade, e afiançou ao duque inglez a mão da filha promettida
+ao de Castella.</p>
+
+<p>D'esta vez decidiu-se a proceder com energia. O castelhano, porém, já
+conhecedor de tudo, mandára começar as escaramuças pelas fronteiras de entre
+Tejo e Guadiana, theatro das façanhas de Nunalvares (o futuro condestavel, que
+agora começa a sua epopêa) em quanto dispunha o grosso das forças para a
+campanha de Lisboa. A energia do portuguez consistiu em enviar a esquadra a
+Sevilha destruir a inimiga. Com effeito, em quanto mandasse no Tejo, Lisboa não
+podia ser efficazmente cercada. Mas a <em>sandia presumpção</em> de Affonso
+Tello perdeu a esquadra em Saltes (1381). A armada castelhana, victoriosa,
+entrou no Tejo, trazendo a bordo o infante D. João, irmão do rei, filho de D.
+Pedro o crú, que se homisiára de cá por ter assassinado a mulher, Maria Telles,
+irman de Leonor. Tambem lhe tinham acenado com a mão da pequena D. Beatriz, e a
+ambição perdera-o! D. João<span class="pn"><a name="pag_140">{pg. 140}</a></span>
+repete as palavras de D. Diniz na campanha precedente; mas é recebido a tiro, o
+infeliz. As surriadas de trons e virotões exprimiram a eloquencia independente
+de Lisboa; e o infante, humilhado, levou para Castella o desmentido formal a
+todas as sedições que annunciára e promettera.</p>
+
+<p>Chegou, afinal, por mar o Lencaster com os seus, trazendo novo alimento á
+guerra, já accesa por todo o Alemtejo. Castella declarára-se pelo papa de
+Avinhão, Clemente <small>VII</small>: os inglezes e o rei D. Fernando
+pronunciam-se pelo papa de Roma. Urbano <small>VI</small>. A religião vinha
+azedar ainda mais os odios dos combatentes. E os inglezes do duque, mercenarios
+o barbaros do Norte duro, lançaram-se a este pedaço do Meio-dia, como lebreus
+famintos a um regabofe. Estas gentes dos inglezes, refere o chronista, não
+vinham como a defender a terra, mas para a destruir e buscar todo o mal,
+matando, roubando e forçando mulheres. Nem se limitavam a tão pouco. De uma
+guerra que lhes era indifferente, nas causas e motivos, entre povos inimigos
+que não distinguiam, inimigos eram para elles todos, e cevar-se o seu constante
+proposito. Guerreavam por conta propria, para saquearem. Tomam aos portuguezes
+Monsarás, o Redondo e Evora; e as populações, por fim desesperadas, acodem-se
+ao processo classicamente peninsular das surprezas e assassinatos. «As gentes
+começaram a matar muitos d'elles escusamente», a ponto de que mais de um terço
+ficou enterrado pelos campos e aldeias do Alemtejo. Na extraordinaria confusão
+em que a indolencia e as chimeras do rei punham o paiz, já cada um combatia por
+si proprio, com o proposito unico da defeza nacional.</p>
+
+<p>Se os inglezes deixaram em volta do Tejo alguma cousa a roubar, ou algum
+campo a queimar, os<span class="pn"><a name="pag_141">{pg. 141}</a></span>
+castelhanos da esquadra, desembarcando, quando o exercito anglo-luso tinha
+subido para Evora a encontrar o inimigo, acabaram a obra destruidora n'uma
+razzia monumental, a que não escapou eira nem beira, nem arvore, nem cousa
+viva. Em volta das muralhas de Lisboa ficou tudo um deserto morno e secco.</p>
+
+<p>Pela terceira vez assentou no rei a covardice; e sem combater, voltando as
+costas ao inglez logrado, assignou as pazes de Badajoz com o castelhano (1381).
+De novo a pequena infanta D. Beatriz torna a ser promettida a outro noivo:
+Fernando, de Castella, que não vem ainda, comtudo, a ser seu marido; porque, ao
+voltar para casa, o rei João, enviuvando, teima no antigo plano da fusão dos
+reinos. O casamento da filha com o valetudinario monarcha visinho, é o ultimo e
+o mais insensato dos actos de D. Fernando. Extinguia-se com elle a dynastia; e
+por herança legava, do leito da morte, a independencia em perigo ao povo que,
+apesar de tão dorido, ainda e sempre lhe queria.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Fôra no viveiro feminino da côrte da irman que o rei Fernando vira Leonor
+Telles. Era a terceira Leonor que escolhia para companheira, e foi,
+desastradamente, a unica que veiu a ter. A primeira, de Aragão, recusou-lh'a o
+perspicaz pae, por vêr quanto era defeituoso e fraco o caracter do promettido
+genro. A segunda, de Castella, repudiou-a, desde que viu e se namorou da
+terceira.</p>
+
+<p>Maria Telles, irman de Leonor, era aia da infanta D. Beatriz. Leonor,
+casada, vivia no seu solar da Beira. Estava em Lisboa, de passagem, a
+visitar<span class="pn"><a name="pag_142">{pg. 142}</a></span> a irman, quando o
+rei a viu. Como começaram esses amores? Os antecedentes do rei e o caracter da
+futura rainha deixam vêr bem que não deveu ter havido uma d'estas paixões
+fulminantes, communs nos homens d'armas, mas de que D. Fernando era incapaz, e
+Leonor Telles tambem.</p>
+
+<p>A fria ambição calculadora era commum ás duas irmãs. A aia da infanta, por
+quem o infeliz e louco D. João se namorára com paixão, preparára-lhe
+cuidadosamente uma entrevista, á noute, no seu quarto. Quando o infante chega,
+soffrego de amor, vê um altar e um padre diante do leito. Casemo-nos primeiro,
+amaremos depois. O infante, coacto pela paixão, casou-se para amar; mas a aia
+pagou mais tarde, com a vida, o erro de brincar com um leão, como so fôra um
+rafeiro.</p>
+
+<p>Leonor Telles tinha em si o saber sufficiente para ensinar: não carecia das
+lições da irman. Percebeu que o rei, nas suas ligeirices, a preferia á propria
+infanta; mas o papel de amante não lhe convinha: queria o de rainha. Foi-se
+deixando ficar, e acirrava com tentações a inclinação do monarcha sensual e
+passivo. «Era louçan, aposta, e de bom corpo». D. Fernando costumou-se ás
+denguices da sereia: nos fracos, o costume gera necessidades imperiosas, a que
+tudo sacrificam. Com o tempo, a idéa de que Leonor era casada, naturalmente a
+insistencia com que ella, séria e affectando decóro, falaria na necessidade de
+voltar para casa, para o marido, fizeram sentir ao rei a impossibilidade de
+quebrar o habito dos seus amores innocentes e molles. A indolencia é muito mais
+teimosa nas suas exigencias do que a força; um habito sensual tem maior
+tenacidade do que uma paixão. Leonor Telles devia saber isto perfeitamente. O
+momento decisivo approximava-se: não podia continuar<span class="pn"><a
+name="pag_143">{pg. 143}</a></span> por mais tempo em Lisboa, o marido chamava-a,
+as más linguas podiam falar...</p>
+
+<p>O rei lembrou-se então de que para alguma cousa lhe podia servir sel-o:
+desmancharia esse casamento, porque uma dama tão senhoril e casta não podia ser
+sua amante. D. Fernando não tinha, o ingenuo, nem ponta de cynismo. Falou
+seriamente, em particular, á irman. Mulheril como era, este caso tinha maior
+gravidade do que uma guerra com Castella, pelo repudio da princeza que lhe
+estava promettida nos tratados de Alcoutim. «Melhor fizera elrey, dizia o povo,
+tel-a por tempo e depois casar com outra mulher.» Bons conselhos! para quem
+vivia todo na atmosphera feminina e molle da côrte de D. Beatriz, onde Maria
+Telles reinava. Como se Maria, Leonor, não fossem excellentes senhoras,
+recatadas, mas seductoras na sua terna dignidade!</p>
+
+<p>Maria poz por condição o casamento; Leonor Telles concordou em que muito
+queria ao rei, mas ainda mais ao seu nome. Combinaram tudo em segredo, e foram,
+ás escondidas, ao norte, casar-se (1371) a Leça do Bailio, junto ao Porto.
+Tinham, com effeito, medo de Lisboa. Quando regressaram á côrte e os rumores se
+confirmaram, as opiniões moveram-se na capital. O commum das gentes accusava o
+rei com odios apaixonados; mas não faltavam os experientes a observar
+placidamente, «que não era maravilha; já a outros acontecera cousa semelhante;
+todo o homem namorado tinha uma especie de sandice; o amor era como dôr que doe
+e não doe ao mesmo tempo». Muita gente se ria do marido infeliz que
+sensatamente fugira para Castella, e para prevenir os motejos mandára pôr no
+barrete dois cornos de ouro em fórma de plumas; muitos notavam a facilidade com
+que o papa fazia<span class="pn"><a name="pag_144">{pg. 144}</a></span> e desfazia
+casamentos; e esta cumplicidade da religião e do amor não augmentava em nada o
+respeito pela Egreja. Em summa, desde que o riso entrava na questão, o odio do
+povo não era muito; e Lisboa esperava para ver o resultado d'essa comedia, e
+tomar o pulso ao caracter da rainha. Ninguem sabia ainda de quantas manhas elle
+era formado.</p>
+
+<p>Mas nem em todos a longanimidade era tão grande; e uma parte da plebe
+decidiu-se a pedir contas, a reclamar garantias, e até a protestar. Esses
+adivinhavam a perversidade da rainha. No rei assentou a covardice, e Leonor
+Telles não podia ainda contar com partido proprio. Fugiram, pois, ás
+escondidas, para Santarem: e o povo, burlado, ficou em vão esperando o rei no
+atrio de S. Domingos, para onde o comicio fôra aprazado. Pelo caminho, na fuga,
+o rei carinhoso observava: «Olha aquelles villões traidores, como se juntavam:
+prendiam-me certamente, se lá vou.» E não podia esconder o susto,
+conchegando-se ao collo da rainha, no seio d'uma inclinação protectora. Leonor
+Telles sorria, calada. Era rainha, mas apupada: o plano da vingança
+acordava-lhe no animo, e tambem o desdem por esse pobre rei, perdido e fraco.
+</p>
+
+<p>Este primeiro acto da nova rainha foi decerto o seu primeiro erro. Desde
+logo, até os mais indulgentes viram que não havia remedio; e o partido dos seus
+inimigos cresceu em numero e ganhou forças e atrevimento. Ella prejudicára os
+seus planos por um acto precipitado; e todos os esforços que empenhava em
+ganhar sympathias eram vãos. «Era mui grada e liberal a quaesquer que lhe
+pediam, mas quanto fazia tudo damnava; e a sua caridade e as suas manhas não
+podiam encobrir os seus deshonestos feitos.»<span class="pn"><a
+name="pag_145">{pg. 145}</a></span></p>
+
+<p>Com effeito, a rainha nem melhorava a fraqueza do rei, nem o afastava das
+suas loucuras e emprezas perdidas; e por sobre isto era reconhecidamente má.
+Accusavam-na de ter preparado o assassinato da irman pelo infante seu marido; e
+era publico que, no meio da agitação da terceira guerra castelhana, tentára
+matar o Mestre de Aviz, forjando para tanto um falso alvará. O povo já a
+descrevia como uma féra sangrenta; e o povo sabia quantos odios comprimidos
+ella guardava contra essa Lisboa miseravel que a insultava e a apupava. Toda a
+gente se sentia offendida, humilhada, com a humilhação do pobre rei. Contava-se
+como era com elle ousada e faladora; e como el-rei, submisso e indolente,
+curvava a cabeça e se calava. Era uma desgraça que entrára no palacio. Depois,
+além de cruel, sanguinaria, e descomposta no modo, era de uma deshonestidade
+publica. Todos sabiam que nas barbas do marido tinha o amante no paço. E o
+pobre rei não desconfiava, na sua cegueira. Quando o Andeiro viera de
+Inglaterra, escondido, com os tratos de Lencaster, el-rei recolheu-o na torre
+do seu paço de Extremoz. A sala da sesta era o quarto do conde; e o rei ia-se,
+e a rainha vinha passar horas esquecidas a sós com o amante. O rei, como homem
+de são coração, não via o que escandalisava a todos. Pouco se lhe dava d'isso a
+ella, chegando a fazer gala dos seus desvarios. O adulterio e a crueldade, o
+prazer e o sangue, alliavam-se bem n'esse genio perverso, mas intelligente e
+altivo, tão desdenhoso como impudico. Queria firmar sobre o odio uma força que
+não pudera conquistar pelo amor. Repellida, accusada, escarnecida por um povo,
+para quem talvez quiz ser boa, decidiu impôr-se-lhe pelo desabrido do odio e
+pelo desplante do comportamento.<span class="pn"><a
+name="pag_146">{pg. 146}</a></span> Vingava-se á maneira antiga, como uma
+Cleópatra.</p>
+
+<p>No outomno de 1383 falleceu D. Fernando; e logo que a tampa caiu sobre o
+caixão do defunto, rebentou a revolução.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A revolução de 1383-5 tem um caracter de um Juizo-de-Deus. A dynastia
+mentira ao papel justiceiro: morra por ello! Por uma serie de extravagancias
+domesticas e politicas, D. Fernando levára a uma crise a obra lenta e demorada
+da independencia nacional, iniciada com uma espada por Affonso Henriques,
+assegurada com um açoite por Pedro o crú. É verdade que não deixára de fomentar
+a consistencia material interna do corpo da nação; mas de que valia isso, pois
+que a deixava outra vez a braços com o problema vital da successão, o problema
+da independencia?</p>
+
+<p>Logo que o rei morreu, os differentes actores da tragedia começaram a tomar
+os seus logares na scena.</p>
+
+<p>O castelhano immediatamente encarcera em Toledo o infante D. João, o mais
+perigoso dos seus émulos por direito de herança, mas perdido perante o povo
+pela nodoa do ataque de Lisboa, na esquadra inimiga.</p>
+
+<p>A rainha viuva, julgando o momento opportuno para conquistar sympathias,
+representa uma scena de prantos. Abandonára por um instante a sua politica de
+vingança, agora que tudo podia perder, se a não escudassem o respeito, ou o
+amor dos seus. Ella não queria entregar o reino a Castella: queria que a filha
+fosse acclamada rainha, e ella, como regente, rei de facto. Talvez pensasse em
+casar-se com o Andeiro, a quem parece amava do coração:<span class="pn"><a
+name="pag_147">{pg. 147}</a></span> seria esse o castigo fatal dos seus crimes, por
+ser a causa da sua perdição?</p>
+
+<p>Como a rainha sabia a ruim opinião que havia a seu respeito, «fingia-se mui
+desconsolada e chorava em grandes prantos. Em uma camara escura, coberta de dó,
+com lagrimas e soluços&mdash;que ás mulheres não faltam quando lhes servem&mdash;se
+lamentava, com as visitas, do seu desamparo, queixando-se do governo que o rei
+déra ao reino, agora pobre e infeliz.» <small class="SMALL">(Fernão
+Lopes)</small> Na sua dôr, na boa vontade que tem de servir a nação (para que
+ella a não expulse do throno) está por tudo. Com effeito, a morte do marido
+punha-a á mercê da vontade do povo. «Era em tudo obedecida, assim dos povos
+como dos grandes; mas bem via que essa obediencia nada tinha de pessoal, porque
+ninguem a amava, nem a respeitava. De um momento para outro podia perder tudo.
+Os de Lisboa queriam que se constituisse um conselho de governo composto de
+dois homens-bons de cada comarca: annuiu a essa tutela. Quando fôra a
+acclamação da rainha D. Beatriz, mulher do castelhano, observára os tumultos
+geraes e os votos desencontrados das cidades. Em Lisboa, a acclamação provocára
+rixas e conflictos; muita gente era pelo infante D. João ou pelo infante D.
+Diniz, que andavam por Castella; outros gritavam: <em>Arreal, arreal, cujo for
+o reino, leval-o-há!</em> Em Santarem o infante D. João foi positivamente
+acclamado. Elvas, para não se decidir, no meio de tanta confusão, gritou:
+<em>Arreal, arreal, por Portugal!</em></p>
+
+<p>Esse era effectivamente o grito da nação: por Portugal! Ninguem se
+recommendava bastante, no animo do povo, para merecer uma corôa disponivel,
+para se sentar n'um throno vago. O que Portugal não queria, era que n'esse
+throno viesse sentar-se<span class="pn"><a name="pag_148">{pg. 148}</a></span> o
+castelhano. A rainha não o queria tampouco; e era toda esforços para ganhar a
+si o povo, para herdar de facto o reino. Organisada a regencia, pensou desde
+logo na guerra; porque o rei de Castella já se preparava para vir occupar
+Portugal. Nomeou os fronteiros do reino, e deu ao Mestre de Aviz a zona de
+entre Tejo e Guadiana.</p>
+
+<p>Havia porém dois homens que, no fundo, protestavam: Nunalvares e Alvaro
+Paes. O primeiro é a mais nobre, a mais bella figura que a Edade-média
+portugueza nos deixou. O typo cristallisado nos romances, o typo do
+cavalheirismo e da pureza, tinha encarnado na pessoa do futuro condestavel.
+«Usava muito de ouvir e lêr livros de historias, e especialmente usava mais lêr
+a historia de Galaaz, em que se continha a somma da tavola redonda.» Tinha a
+nobreza ideal do cavalleiro, e a castidade de um mystico. Era uma açucena na
+alma, e um leão na bravura e na generosidade. Resistira por muito tempo ao pae
+que o queria casar, porque não curava de mulheres, nem isso lhe alegrava o
+coração. Por tudo isto, a infamia da rainha abraçada ao amante, e as lagrimas
+fingidas pelo marido, córavam-lhe as faces de pejo e enchiam-no de indignação.
+Nunca a obra indispensavel de salvar Portugal podia levar-se a cabo com tal
+mulher: Deus não consente aos impuros os grandes actos, «Um dia, passeando só
+no paço, a cuidar no que havia de ser do reino», occorreu-lhe a idéa de que só
+a morte do Andeiro podia pôr termo ás desgraças publicas.</p>
+
+<p>O cavalleiro tinha então 24 annos; e esse rapaz, typo ingenuo e puro de
+virtude, é a imagem de uma nação, tambem joven, e ainda crente n'um futuro
+proximo. Á indignação da candidez forte junta-se a sabedoria fria e o calculo
+experiente de Alvaro<span class="pn"><a name="pag_149">{pg. 149}</a></span> Paes,
+padrasto do futuro grão-doctor. Tudo se conspirava para matar o Andeiro, para
+perder a rainha.&mdash;Era verdadeiramente o juizo de Deus, cuja sentença, logo que
+fosse publica, seria acclamada pela nação inteira. Isto assegurava ao mestre de
+Aviz Alvaro Paes em Lisboa. Falava por sua bocca a cidade que Leonor Telles
+tanto odiava, e que tamanhos medos tinha da rainha. Pensaria já o author do
+plano do dia 6 de dezembro (1383) na fundação de uma nova dynastia? Queria
+acaso matar apenas o valido para aterrorisar a rainha; e entregal-a, assim,
+manietada, ao poder de uma oligarchia urbana, em que Lisboa se arrogasse o
+papel de defensora do reino, tendo á frente de um conselho de governo, com a
+regente vilipendiada e coacta, o Mestre, homem simples, por instrumento e
+chefe? Era um plano atrevido, mas mais de uma vez posto em pratica por diversas
+cidades opulentas da Hespanha. Não contava, porém, Alvaro Paes, nem com a arte
+que os annos desenvolveram no Mestre; nem com o generoso e nobre caracter de
+Nunalvares; nem com a força invencivel dos futuros textos e doutrinas do
+grão-doctor João das Regras.</p>
+
+<p>Combinado o programma do dia 6, Alvaro Paes abraçou e beijou o Mestre.
+N'esse dia foi este ao paço despedir-se da rainha: partia para a sua fronteira
+do Alemtejo. Momentos depois voltou acompanhado por alguns fidalgos dos seus. A
+rainha, surprehendida, interrogou-o.&mdash;A fronteira era muito <em>grossa</em>,
+levava pouca gente, os arrolamentos estavam errados, queria examinal-os...</p>
+
+<p>Leonor Telles estava então na sua camara, sentada no meio das suas damas,
+costurando, sobre o estrado. De joelhos, aos pés da rainha, o Andeiro, de corpo
+bem disposto, <em>lustroso</em>, viril (40 annos),<span class="pn"><a
+name="pag_150">{pg. 150}</a></span> vestindo, apesar do luto, um gibão de setim
+cramesi e um tabardo de panno preto, sem o burel branco do estylo, falava manso
+com ella. Era um quadro de familia, e tudo parecia sereno, menos o tom e o
+aspecto do Mestre e dos seus, de pé, carrancudos e indecisos, como quem tem na
+mente um crime.</p>
+
+<p>A rainha, inquieta, mas simulando indifferença e sangue frio, chamou o
+escrivão da puridade e mandou abrir o livro dos vassallos da comarca:
+Escolhesse o Mestre os que quizesse. O escrivão de pé, com o livro aberto, ia
+lendo, indifferentemente <em>item</em>, <em>Dom</em>... etc, mas o Mestre não
+lhe prestava grande attenção. Uns perante outros, os personagens da tragedia
+adivinhavam-se, mas não se confessavam. Só, porventura, o escrivão, no seu
+tabardo negro, com a voz monotona, era sincero. Andeiro levantou-se, saíu a
+outra sala, a avisar os seus sequazes: o que o Mestre vendo, receiou perder-se,
+ou que o ensejo lhe fugisse. Levou-o comsigo para fóra. A rainha, no meio das
+suas damas, sobre o estrado, costurava. O momento agudo da crise chegára: era
+mistér consummar o acto. O Mestre empurra então o conde para o vão de uma
+janella. Elle ia a fallar... «sendo, porém, mais tempo de o matar, do que de o
+ouvir», deu-lhe uma cutilada na cabeça, a valer. Desarmado, o infeliz não podia
+defender-se; e assim que inclinou a cabeça rachada pelo meio, a gente do Mestre
+acabou-o alli ás estocadas. Foi uma façanha arteiramente combinada, barbara e
+cobardemente executada. Nunalvares, quando a mesma solução lhe occorrera,
+pensou decerto n'um plano diverso.</p>
+
+<p>Consummado o assassinato, poz-se em scena a comedia do contra-regras, Alvaro
+Paes. Foi mandado um pagem a gritar pelas ruas que acudissem<span class="pn"><a
+name="pag_151">{pg. 151}</a></span> ao Mestre, que o matavam no paço. Entretanto,
+dentro d'elle, era grande o alvoroço. Uns fugiam pelas janellas, outros pelos
+telhados: todos corriam como doidos, cheios de susto, e se acotovellavam nos
+corredores e entre as portas. A rainha levantando-se, ao ouvir que lhe tinham
+matado o amante, rugiu de colera, como a fera a quem roubam os filhos: era a
+sua cruel fraqueza! Viu tambem a sua vida em perigo, e por ventura n'este
+momento desejou a morte<a name="tex2html55"
+href="#foot1192"><sup>[55]</sup></a>. Animosa, mandou perguntar ao Mestre, que
+n'um eirado do palacio, á vontade, descançava das commoções violentas, se
+tambem a queria matar. Elle voltou, respeitosamente, que não. Era um homem
+simples, costumado a vêr em Leonor Telles a mulher do rei: e por isso, além de
+ser muito novo (26 annos), não se atrevia a tanto. Era fogoso, brutal, e de
+instinctos pesados: um instrumento capaz de executar os planos manhosos do
+Alvaro Paes, prompto para tudo, porque não distinguia bem a linha que separa a
+nobreza da villania&mdash;como, de resto, succedia a quasi todos os homens d'armas
+da Edade-média. Foram a revolução, os companheiros e depois a mulher, quem fez
+d'elle na edade madura um sabio rei.</p>
+
+<p>Na rua, Alvaro Paes vinha a cavallo (por excepção rara, que era velho já e
+pesado) á frente da procissão de energumenos, bradando por desvairadas
+maneiras. A plebe, investindo com o palacio, quebrava os cancellos de ferro,
+trazia escadas para o assalto e montes de lenha para queimar tudo. Era uma
+algazarra incrivel de improperios e nomes deshonestos, dirigidos á rainha. Já
+de dentro havia medo de que o fogo pegasse, e que o fim da tragedia fosse um
+incendio justiceiro. Extenuavam-se a<span class="pn"><a
+name="pag_152">{pg. 152}</a></span> gritar que o Mestre estava vivo, Andeiro morto;
+mas ninguem tinha ouvidos no meio do clamor da turba. Por fim, o Mestre de Aviz
+appareceu a uma janella e foi victoriado: «Vinde para nós, gritavam-lhe, e dáe
+ao démo esses paços!» Alli mesmo, ao pé do palacio, ficava a Sé; Era necessario
+solemnisar a festa com os repiques dos sinos, conforme a plebe o ordenava; mas
+os padres, recolhidos no alto da torre, não sabiam o que queriam d'elles: e por
+esse crime foram precipitados á rua o bispo e mais dois: e os cadaveres,
+arrastados ao Rocio, ahi ficaram para pasto dos caens.</p>
+
+<p>Tambem o Mestre já sentia fome, depois de tamanho dia. Foi com Alvaro Paes
+comer socegadamente. O homem cumprira o que tinha promettido: e, á mesa, na
+satisfação da victoria, instruiu o rapaz sobre o que lhe restava fazer: pedir
+perdão á rainha, depois de jantar. Quem sabe? dir-lhe-hia elle, mastigando,
+mais tarde... casar com ella... E o mestre, bastardo, pobre, ambicioso e
+simples, via abrirem-se-lhe horisontes seductores.</p>
+
+<p>Com effeito, depois de jantar, o Mestre de Aviz foi ao paço e, de joelhos,
+pediu perdão á rainha. Tamanha simplez encheu-a a ella de espanto. Estava
+calada, não sabia que responder: e como o pobre insistia, ella, afinal com
+desdem, voltou-lhe: Falemos de outras cousas... O Mestre saía desorientado e
+corrido, atraz d'elle as suas guardas, quando a rainha, seguindo-os, deu de
+chofre com o cadaver do conde empoçado em sangue e coberto com um tapete velho.
+Não pôde mais conter-se; e o seu animo, perdido, rebentou em duras queixa:
+«Enterrae-o ao menos, já que o mataste tão deshonradamente!» Elles não curaram
+d'isso, nem se doeram do adverbio da rainha, e foram para suas pousadas. Era
+tempo perdido.<span class="pn"><a name="pag_153">{pg. 153}</a></span></p>
+
+<p>Ao outro dia a rainha partiu para Alemquer&mdash;suffocada em odios contra
+Lisboa: queria vel-a arrazada e queimada de mau fogo, queria uma tonelada de
+linguas das suas mulheres. Queria uma vingança, uma desforra que désse brado ao
+mundo. Que lhe importavam, á sua alma desvairada, a nação e a independencia? No
+egoismo absoluto de uma paixão, esquecia tudo; e por isso mudou de rumo á sua
+politica, e convidou o rei de Castella a vir tomar posse de Portugal. Perdia-se
+irremediavelmente.</p>
+
+<p>Entretanto a maxima parte da nobreza acompanhava-a, e a fidalguia era então
+o exercito. Uns não queriam pactuar com a revolta da plebe de Lisboa, nem
+curvar a cerviz ao imperio de Alvaro Paes. Outros eram fieis á legitimidade da
+regencia. O resto dos que não acompanhavam a rainha e grande parte das classes
+médias eram pelo infante D. João, preso em Toledo. O plano de Alvaro Paes e o
+partido do mestre de Aviz caiam tanto, que, desanimado, o ultimo decide-se a
+abandonar a empreza e a fugir para Inglaterra&mdash;como fez depois o seu successor
+na historia, o Prior do Crato. Poderam, porém, contel-o. Para que? Para o
+decidirem a uma segunda vergonha. Eram incapazes de nenhuma grande audacia, de
+nenhum plano temerario; e só um d'esses poderia dar a victoria. Não sentiam o
+palpitar violento de uma nação forte que aspirava á vida. Os seus meios eram
+mesquinhos, soezes e crueis. Conquistaram o castello em Lisboa, levando á
+frente de si as mulheres e os filhos dos que o defendiam pelo infante D. João.
+Angariavam sequazes, comprando-os a dinheiro, segundo a regra de Alvaro Paes:
+<em>dae o que não é vosso, promettei o que não tendes, e perdoae a quem vos
+errou.</em> A rapina e a impunidade<span class="pn"><a
+name="pag_154">{pg. 154}</a></span> eram o alicerce da força do partido, já
+ridiculamente alcunhado do <em>Mexias de Lisboa</em>. O segundo plano proposto,
+para evitar a fuga do <em>Mexias</em>, era a antiga idéa commum e soez de
+Alvaro Paes: casal-o com Leonor Telles. O Mestre accedeu; e propoz o caso á
+rainha, que respondeu com uma gargalhada. Podia-se acaso descer mais? Não
+podia.</p>
+
+<p>Quem faz, porém, os Messias é o povo. Valham pouco, valham nada, pouco
+importa. São um lábaro, onde a turba escreve um moto. Vão, mas não guiam.
+Portugal com effeito gerava uma revolução messianica; pedia em altos brados que
+o salvassem; tinha a consciencia de que podia e havia de ser salvo. Esta força
+latente e invencivel, era, porém, ignota para a simplez do Mestre e para o
+lerdo instincto de Alvaro Paes. Andavam ambos como cégos em torno de um pharol,
+sem o verem. Eram ambos como certos animaes das trevas, a quem a desnecessidade
+priva de olhos.</p>
+
+<p>Para vêr e para sentir a gravidade do momento, para conceber a audacia da
+revolução, era mistér, ou a ingenua candura dos fortes, ou a refinada sabedoria
+dos mestres. O de Aviz teve a fortuna de encontrar dois homens que o fizeram
+rei, e tornaram o seu titulo ridiculo de <em>Mexias</em>, no titulo verdadeiro
+e forte de Defensor-do-reino, positivo messias da nação (1384).</p>
+
+<p>Termina o reinado de Alvaro Paes, desde que o futuro condestavel e o
+grão-doctor tomam conta, um da guerra, outro da politica. Temerarias, audazes,
+quasi loucas ambas, exprimem ambas a suprema sabedoria; porque traduzem o até
+ahi indefinido querer do povo, e empregam os meios unicos de salvação.
+Nunalvares faz de toda a fronteira o<span class="pn"><a
+name="pag_155">{pg. 155}</a></span> theatro de incessantes campanhas, pouco ou nada
+attende ás ordens do Defensor-do-reino, por vezes desobedece formalmente. Á
+medida que o Mestre via o resultado das armas do nobre capitão, ia reconhecendo
+a propria inferioridade; e a simplez natural do seu genio tinha de bom o
+abrir-lhe os olhos á verdade. Nos actos alheios, aprendia a pesar os seus,
+ganhando com isso a attitude de um moderador prudente. Era sábia a arte com que
+ponderava os conflictos inevitaveis de Nunalvares com João das Regras: do
+cavalleiro idealista e heroico, e do habil, consummado politico: do
+representante ingenuo de douradas phantasias, com o frio calculador das cousas
+positivas; do ultimo homem da Edade-média, com o primeiro do novo Portugal
+monarchico. Entre ambos, o Mestre de Aviz era um pendulo regulador das duas
+forças em opposição.</p>
+
+<p>A politica ia buscar outra vez as allianças inglezas, acordando a antiga
+ambição castelhana da casa de Lencaster; e a guerra, ora terrivel em batalhas,
+ora fidalga em reptos e duellos, ia acordar por todo o paiz a revolução. Os
+grandes, os alcaides das terras, eram por Castella ou pelo infante D. João; mas
+o povo era pelo Messias: cria e esperava o milagre. Formavam-se <em>uniões</em>
+espontaneas; e as levas de populares conquistavam para o Mestre os castellos e
+villas fortificados aos senhores e aos alcaides dos concelhos.</p>
+
+<p>Uma grande parte do reino obedecia ao governo de Lisboa; mas a rainha, o rei
+de Castella e o exercito invasor, na sua marcha sobre a capital, occupavam
+Coimbra. Leonor Telles acabou ahi. Arrependida de ter chamado o castelhano que
+a desprezava; reconhecendo que erradamente, por uma precipitação, forjára por
+suas proprias mãos<span class="pn"><a name="pag_156">{pg. 156}</a></span> as
+cadeias do seu captiveiro, vendo agora quanto se illudira, e que erro fôra o
+seu em não avaliar a justa vitalidade do paiz, tentou ainda urdir uma trama
+para se libertar, perdendo o genro e a filha. Os seus planos falharam; e
+anojada e cheia de desespero, seguiu a ordem do genro, que de Coimbra a mandou
+enterrar no mosteiro de Tordesillas. Como acabaria a sua vida? Quem sabe?
+talvez arrependida, santamente amortalhada no burel monastico? acaso roída de
+desespero, impenitente?</p>
+
+<p>O exercito castelhano desceu sobre Lisboa, e este segundo cêrco da capital
+(1384) foi mais cruel ainda do que o primeiro, no tempo de D. Fernando. Veiu a
+fome perseguir os heroicos lisbonenses, que andavam já doentes das cousas que
+comiam. Por fóra a peste alastrava, porém, de cadaveres os arrayaes
+castelhanos; e quando, um dia, a rainha de Castella, pretendente de Portugal,
+adoeceu tambem, os inimigos levantaram o cêrco. O povo encontrava n'isto
+motivos para crer n'uma protecção do céu.</p>
+
+<p>Por mais de um anno se prolongaram ainda as guerras pelas provincias
+afastadas; mas Lisboa, Coimbra e todo o centro do paiz era, já em 1385, pelo
+Mestre. Os ultimos actos da revolução iam consummar-se: as côrtes de Coimbra e
+a batalha de Aljubarrota.</p>
+
+<p>Em Coimbra o grão-doctor é o general e o chefe. Essa batalha de discursos
+era diversa, mas não menos brava de pelejar; porque uma grande parte da
+nobreza, decidida a defender o reino do castelhano, não o estava a acclamar rei
+o Mestre de Aviz. Legitimista, considerava-se ligada ao infante D. João; e a
+união dos fidalgos, completa para a defeza, não existia, agora que se
+tratava<span class="pn"><a name="pag_157">{pg. 157}</a></span> de consolidar, com
+uma nova dynastia, a independencia e a constituição definitiva do reino.</p>
+
+<p>O rei de Castella era schismatico e excommungado por apoiar Clemente VII
+contra Urbano VI; e além d'isso os maus costumes de Leonor Telles não deixavam
+ter certeza sobre a legitimidade de D. Beatriz.&mdash;Todos apoiavam João das
+Regras, porque ninguem queria o castelhano.&mdash;D. João, continuava o doutor (e
+aqui principiavam os murmurios) é bastardo, porque el-rei D. Pedro jámais se
+casou com D. Ignez de Castro.&mdash;Um momento houve em que Nunalvares esteve a
+ponto de brigar com o <em>roncador</em> Martim Vasques, o chefe dos
+<em>leaes</em>; e as côrtes por um triz se tornavam n'uma batalha. Interveiu o
+Mestre de Aviz, apasiguando o exaltado capitão, melhor no campo do que no
+conselho.</p>
+
+<p>Ahi reinava o <em>grão-doctor</em>. Além de illegitimos, continuava sem se
+perturbar, os filhos de D. Ignez de Castro tinham tomado armas contra a patria;
+e este argumento, proprio a impressionar os leaes, pesou, mas não os decidiu.
+Então o doutor lançou mão das reservas e venceu. Apresentou as bullas, nas
+quaes o papa recusára acceder aos pedidos do rei D. Pedro para a legitimação
+dos filhos. Podia haver prova mais solemne? Ousaria ainda alguem conservar
+duvidas? E apoz isto desenrolava todas as consequencias: a divisão das forças
+do reino perante o castelhano, inimigo commum; a impossibilidade de acclamar
+rei um principe preso em Castella, etc. O ataque era irresistivel; e tudo
+cedeu, declarando-se vago o throno, e elegendo-se para o occupar o Mestre de
+Aviz, D. João I.</p>
+
+<p>Que melhor prova podia dar-se da vitalidade da nação e da sua independencia
+já acabada, do que estas côrtes de 1385, em que ella exalta uma<span
+class="pn"><a name="pag_158">{pg. 158}</a></span> dynastia, sem base na tradição
+nem na herança, unicamente enraizada no querer absoluto, commum dos
+portuguezes? É só n'este momento que bem de facto se póde dizer terminada a
+historia da independencia; porque a dynastia de Borgonha trazia comsigo o
+peccado original da doação primitiva, segundo o direito feodal: o reino era um
+senhorio, sublevado, como por tantas vezes e por tão longos tempos o tinham
+sido, na propria Hespanha, a Galliza e a Biscaya.<a name="tex2html56"
+href="#foot1193"><sup>[56]</sup></a> Agora as cousas mudavam; e mudavam, porque
+a nação, alargando-se para o sul, recebendo novas gentes em seu seio,
+fomentando a actividade commercial e maritima em Lisboa, ao mesmo tempo que se
+constituia interna ou organicamente, era já um ser diverso do antigo, e um ser
+dotado de vida independente e propria. A crise, que temos vindo
+historiando&mdash;com um vagar desculpavel pela sua significação excepcional&mdash;parece
+ter, para a vida nacional portugueza, a importancia que a natureza dá ás crises
+que determinam a passagem de uns para outros dos seus typos organicos.<a
+name="tex2html57" href="#foot1194"><sup>[57]</sup></a></p>
+
+<p>Não bastava porém uma acclamação, era necessario um baptismo, á nova
+monarchia. Aljubarrota respondeu com as armas á eloquencia das côrtes; e,
+victorioso no conselho e no campo, o throno de D. João I ficou inabalavel.
+Segundo o parecer dos inglezes, seus alliados e mestres na nova tactica militar
+com que vieram a esmagar em Azincourt a cavallaria franceza, o Mestre d'Aviz
+entrincheira o seu pequeno exercito. Nortberry, Hartcelle e d'Artherry,
+capitães, traçaram a <em>carriagem</em>. Cortaram-se ramos de arvores com os
+quaes se levantou<span class="pn"><a name="pag_159">{pg. 159}</a></span> uma
+estacada para paralysar as cargas da cavallaria; ao meio d'essa estacada um
+carreiro estreito, internamente bordado por archeiros e bésteiros de pé, estava
+aberto, como uma tentação e um laço ao ardor fidalgo dos inimigos.</p>
+
+<p>A desproporção do numero era grande entre os combatentes. O castelhano
+trazia comsigo vinte mil homens de cavallo, nos quaes entravam dois mil
+francezes, gascões e bearnezes: com a peonagem, o seu exercito ia a mais
+metade. Em volta de D. João I não havia mais de duas mil lanças, oitocentos
+bésteiros, e quatro mil peões: alguns elevam a dez mil o total. Evidentemente,
+só a força da arte podia vencer a desproporção do numero. Pelo meio dia
+appareceu o exercito inimigo, victoriosamente composto na galhardia das armas
+reluzentes com o sol, dos pendões e bandeiras blazonadas, das mesnadas dos
+ricos homens da Hespanha e da França meridional, montados nos seus cavallos de
+guerra. Os portuguezes, calados, humildes e obscuros, por detraz das suas
+trincheiras, esperavam o choque d'essa brilhante móle. Havia em muitos valentia
+e enthusiasmo, mas não faltava o temor, menos ainda a decisão firme de morrer
+vencidos, na desesperança de rebater um ataque tão poderoso. O condestavel e os
+cavalleiros excitavam o ardor bellico; os bispos, confessando, absolvendo,
+dando a commungar, distribuiam a paz ás consciencias, preparavam para a morte,
+accendendo a coragem com os odios religiosos. Havia exaltação, votos
+singulares, ditos agudos, mas sobradas duvidas sobre o resultado do dia. Os
+padres resavam no seu latim: <em>Verbum caro factum est</em>, e os soldados
+traduziam d'esta fórma o evangelho: muito caro feito é este: Havia até medo
+n'essas levas de gente bisonha do campo, soldados<span class="pn"><a
+name="pag_160">{pg. 160}</a></span> saídos de uma população rural; mas uns trinta
+peões que fugiram, apavorados, foram trucidados pelos castelhanos: o que nos
+prestou o serviço de evitar as deserções, consolidando o proposito da
+defeza.</p>
+
+<p>O exercito inimigo não se tinha decidido ainda sobre o modo de operar. Uns
+optavam pela prudencia: vinham de longe, cansados da viagem, não tinham comido
+ainda: esperassem, e os portuguezes, como javardos no seu covil, seriam
+forçados a saír por lhes faltar o mantimento. Outros achavam uma vergonha, para
+tão fidalgos cavalleiros, o parar deante d'uma estacada mal defendida por um
+punhado de soldados bisonhos. Apesar do rei vir em andas, doente com sezões,
+venceu a ultima opinião, e atacaram galhardamente. «Em esto os ginetes dos
+inimigos provavam a miude d'entrar na carriagem dos portuguezes, mas tudo
+achavam apercebido de guisa que lhes non podiam empecer. De fórma que os
+castellãos tiveram de apear e combater com armas curtas.» <small
+class="SMALL">(F. Lopes)</small>.</p>
+
+<p>Realisava-se a previsão, e a batalha acabou por um destroço completo da
+cavallaria orgulhosa. O rei de Castella fugiu nas suas andas. Toda a bagagem do
+seu exercito caiu em poder dos vencedores. Eram carretas e azemolas sem numero
+e dezenas de milhar de cabeças de gado.</p>
+
+<p>Como para a Europa central foi depois Azincourt, assim Aljubarrota foi na
+Hespanha: o ultimo dia da cavallaria feodal, e o primeiro ensaio d'esses
+combates de pé, com que dois seculos mais tarde a infanteria castelhana de
+Carlos V havia de conquistar a Europa.</p>
+
+<p>A Edade-média portugueza acaba no dia de Aljubarrota, com a primeira epoca
+da nação, com<span class="pn"><a name="pag_161">{pg. 161}</a></span> o periodo da
+sua formação trabalhosa e lenta. Novos horizontes, vastas ambições, pensamentos
+ainda inconscientes de um largo futuro, amadurecem encobertos, no seio da
+nação, formada, acclamada, baptizada em sangue. Chama-a de longe um dubio
+tentador&mdash;o Mar!<span class="pn"><a name="pag_162">{pg. 162}</a><br>
+<a name="pag_163">{pg. 163}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1189" href="#tex2html52"><sup>[52]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp. <small>XXXI-III</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1190" href="#tex2html53"><sup>[53]</sup></a> Curiosa
+ coincidencia a repetição d'esta scena em 1834 na guerra civil: (<em>Portugal
+ contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 371).</p>
+
+ <blockquote>
+ <p>D. Pedro vae<br>
+ D. Pedro vem,<br>
+ Mas não entra<br>
+ Em Santarem!</p>
+ </blockquote>
+
+ <p>O estribilho do tempo de D. Fernando acabava&mdash;<em>de Lisboa a
+ Santarem</em>.</p>
+
+ <p><a name="foot1191" href="#tex2html54"><sup>[54]</sup></a> V. <em>Portugal
+ contemporaneo</em> (2.ª ed.), <small>II</small>, pp. 291.</p>
+
+ <p><a name="foot1192" href="#tex2html55"><sup>[55]</sup></a> V. <em>Instit.
+ primit.</em>, p. 157.</p>
+
+ <p><a name="foot1193" href="#tex2html56"><sup>[56]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) a pp. 118-21 os quadros dos estados
+ peninsulares.</p>
+
+ <p><a name="foot1194" href="#tex2html57"><sup>[57]</sup></a> V. <em>Elem. de
+ Anthropologia</em> (3.ª ed.), pp. 13-20.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h2><a name="SECTION002300"><big>LIVRO TERCEIRO</big><br>
+A CONQUISTA DO MAR TENEBROSO</a> </h2>
+
+<p
+style="text-align:center;margin-left:auto;margin-right:auto;">(<small>DYNASTIA
+DE AVIZ</small>: 1385-1500)</p>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p>... quantas vezes estive mettido de baxo das bravas ondas por saber o
+ fundo das barras e para que parte endereçavam os canais, e entrada dos rios
+ até então nunqua lavrados cubertos de bravo mato; e asi mesmo que para
+ alcansar a verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e remansos de rios,
+ surgidouros de portos, abriguo de enseadas, deferença das agulhas, altura das
+ cidades, e fazer tavoas de cada lugar e rio em que se contem a mostra da
+ terra, baxos, restingas, rotas, e como se devem de entrar, perdi muita parte
+ da saude e disposição natural.</p>
+
+ <p style="margin-left:2em;">D<small>OM </small>J<small>OHAM DE
+ </small>C<small>ASTRO</small>, <em>Primeiro roteiro da costa da
+ India.</em></p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002310">I<br>
+O Infante D. Henrique</a> </h3>
+
+<p>Desde o miado do <small>XII</small> seculo que se propagára na Europa a
+noticia da existencia de um imperio christão no extremo Oriente. O nuncio da
+Egreja da Armenia falára ao papa (Eugenio III) em um principe, chamado João,
+cujos dominios estavam situados para além da Armenia e da Persia, e que reunia
+ao Imperio o sacerdocio: era um papa do extremo Oriente, e fizera numerosas
+conquistas, o Preste-Joham.<a name="tex2html58"
+href="#foot1195"><sup>[58]</sup></a> Esta lenda, espalhada na Europa,<span
+class="pn"><a name="pag_164">{pg. 164}</a></span> excitava tanto mais a pia
+curiosidade dos christãos, quanto essas distantes regiões se pintavam como
+paraizos carregados de ouro e encantos.</p>
+
+<p>Durante a Edade-média, vogavam tambem extravagantes lendas ácerca do
+Atlantico.<a name="tex2html59" href="#foot1196"><sup>[59]</sup></a> As
+tradições obliteradas pela ignorancia davam caracteres phantasticos ás antigas
+viagens dos carthaginezes ao longo das costas d'Africa, e ás ilhas do mar
+atlantico.<a name="tex2html60" href="#foot1197"><sup>[60]</sup></a> Esse
+infinito de aguas, onde mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de
+monstros e sombras extravagantes; era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que
+nas suas barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas
+costas da França, foram caindo para o sul; e já no <small>XV</small> seculo
+tinham chegado ás Canarias, já commerciavam ao longo da costa africana, para
+cima do cabo Bojador, onde tambem, por terra, chegavam os berberes de
+Marrocos.<a name="tex2html61" href="#foot1198"><sup>[61]</sup></a></p>
+
+<p>As tradições dos geographos antigos, idealisadas pela imaginação bretan,
+tinham dado logar á formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era um
+oceano de luz, semeado de ilhas verdes onde havia cidades com muralhas de ouro
+resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens estava o paraizo terreal.
+Para os geographos arabes, menos fecundos em phantasias, o mar tenebroso era
+uma vasta e infinita campina, a acabar n'um cahos de nevoeiros e vapores
+aquosos; e, «ainda que os mareantes, diz Ibn-Khaldún, conheçam os rumos dos
+ventos, não havendo, para além, paiz algum habitado, perder-se-hão
+irremediavelmente,<span class="pn"><a name="pag_165">{pg. 165}</a></span> porque o
+limite do oceano não é outro, senão o proprio oceano».</p>
+
+<p>Além d'estas tentações maritimas, havia a ambição do Oriente e do seu
+commercio, accendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais particularmente na
+Hespanha, pelo contacto intimo em que a occupação arabe a puzera com os
+monopolisadores d'esse commercio, durante a Edade-média. Hormuz<a
+name="tex2html62" href="#foot615"><sup>[62]</sup></a> era o emporio mercantil
+de todos os mercadas do oceano indico. D'ahi as carregações se dirigiam para a
+Europa e para a Asia do norte, seguindo derrotas diversas. As da Asia iam em
+cáfilas, caminho da Armenia, por Trebizonda, engolphar-se na Tartaria; as da
+Europa, ou vinham por mar a Suês, e d'ahi em caravanas, pelo Cairo, a
+Alexandria, ou seguiam por terra o valle do Euphrates a Bagdad, passando em
+Damasco, no seu caminho de Beirut, sobre o Mediterraneo.</p>
+
+<p>Tinha, porém, no começo do <small>XV</small> seculo, a empreza encetada com
+tamanho vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de
+chegar por mar&mdash;como veiu a chegar-se&mdash;ao imperio do Preste-Joham das Indias?
+Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das ilhas de que havia
+uma noticia mais ou menos vaga; reconhecer e ir occupando gradualmente a costa
+occidental da Africa&mdash;parecem ter sido emprezas ainda não ligadas n'esse tempo
+com a da viagem aos reinos do Preste-Joham. Esta viagem, comtudo, não occupava
+menos o espirito do principe, que pensava leval-a a cabo por um caminho
+differente: por terra. A conquista de Ceuta prende-se<span class="pn"><a
+name="pag_166">{pg. 166}</a></span> directa e principalmente a este pensamento.
+Architectos arabes da Hespanha tinham ido pelo interior da Africa até Timboktu,
+cujos palacios rivalizavam com os de Cordova ou de Granada. Ceuta era a chave
+maritima do imperio de Marrocos; e, porventura, atravez da Africa se poderia
+chegar ao dourado Oriente. Em todo o caso a terra offerecia um campo de
+exploração mais definido do que esse mar incognito, infinito, cheio de
+trevas.</p>
+
+<p>No ambicioso espirito do infante, cabiam as duas emprezas: conquistar o
+imperio marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o monopolio do
+commercio do Sudão;<a name="tex2html63" href="#foot1199"><sup>[63]</sup></a> e
+ao mesmo tempo conquistar ás trevas as ilhas d'esse mar desconhecido, seguindo
+tambem o longo das costas occidentaes para as visitar e explorar. Tenaz e até
+duro de caracter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empreza: nem
+o dobram as lagrimas do irmão infeliz sacrificado em Tanger, nem as supplicas
+do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto em Alfarrobeira.
+Ás conquistas da Africa immola os dois principes; ás navegações os seus ocios,
+as rendas da Ordem de Christo, e as vidas obscuras dos muitos que morreram ao
+longo das costas, ou na vasta amplidão dos mares terriveis. Dominado por um
+grande pensamento, é deshumano, como quasi todos os grandes-homens; mas, no
+limitado numero dos nossos nomes celebres, o de D. Henrique está ao lado do
+primeiro Affonso e de João II. Um fundou o reino, outro fundou o imperio
+ephemero do Oriente: entre ambos, D. Henrique foi o heroe<span class="pn"><a
+name="pag_167">{pg. 167}</a></span> pertinaz e duro, a cuja força Portugal deveu a
+honra de preceder as nações da Europa na obra do reconhecimento e vassallagem
+de todo o globo.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A candida nobreza de Nunalvares, a sabedoria do grão-doctor João das Regras,
+a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quasi um heroe: os seus
+illustres filhos fazem d'elle o mais feliz dos paes. Ditoso homem mediocre a
+quem tudo favorece, deu-lhe a sorte uma esposa virtuosa e nobre na princeza,
+cuja lição e cujo exemplo põem a semente das suas grandes acções no coração dos
+infantes&mdash;D. Pedro, acaso o typo mais digno de toda a historia nacional; D.
+Fernando, cujos meritos desapparecem perante o do martyrio que o santificou; D.
+Duarte, o rei sabio e feliz: D. Henrique, finalmente, em cujo cerebro ferviam
+os destinos futuros de Portugal. É uma pleiade de homens celebres, presidindo a
+uma nação constituida e robusta. Com taes elementos consegue-se tudo no mundo.
+Bons guerreiros, á antiga, os infantes não se parecem, comtudo, já com os
+antigos personagens. A côrte apresenta uma phisionomia diversa: dir-se-hia uma
+Academia. D. Duarte occupa-se em cousas sábias, escreve o seu <em>Leal
+conselheiro</em>. D. Pedro, cujas dilatadas viagens chegaram a formar lenda,
+traz comsigo vasta lição, muitos livros, cartas, conhecimentos; a litteratura e
+a geographia occupam-no por egual, e tambem escreve: dedica ao irmão
+primogenito o seu tratado da <em>Virtuosa benfeitoria</em>. Á noute, nos
+serões, lêem-se, <em>pouco, passo, e bem apontado</em>, como D. Duarte manda na
+sua obra, as historias seductoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é<span
+class="pn"><a name="pag_168">{pg. 168}</a></span> uma côrte da Edade-média, é já
+uma côrte da Renascença, cheia de idéas novas e de uma cultura eminente. A
+educação transforma a politica, e as theorias monarchicas da Italia são
+applaudidas e adoptadas. Bole-se na legislação, limitam-se os privilegios
+aristocraticos e burguezes, adianta-se a obra da unidade organica do corpo
+nacional. Os principes, valentes e sabios, são estadistas, no moderno sentido
+da palavra; e o rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nunalvares, ás
+lições de João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe
+mostram, com os livros e os mappas, a conveniencia de ir tomar Ceuta&mdash;primeiro
+acto de uma longa e ambiciosa historia que desenrolavam perante os ouvidos
+soffregos do antigo Mestre de Aviz. A rainha, orgulhosa nos filhos, approva
+tanto, que, já moribunda, ainda obriga o marido a partir. D. João I, passivo
+agora e sempre, obedece; e, do principio ao fim da sua fecunda existencia,
+parece fadado a ornar-se com os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara que
+outro semeou. Tinha porém a habilidade propria dos homens de juizo&mdash;a de pesar,
+vêr, e julgar com rectidão.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Os planos de D. Henrique mereciam a plena approvação do rei, que lhe dava
+ampla liberdade para proseguir; e até o incitaria, se o infante carecesse de
+estimulo. Já no proprio anno de Ceuta. D. Henrique fizera uma primeira
+tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa da Africa.</p>
+
+<p>Terminada a empreza de Ceuta, poz decididamente mãos á obra, e
+estabeleceu-se em Sagres.<span class="pn"><a name="pag_169">{pg. 169}</a></span>
+Era uma lingua de rocha cravada nas ondas e acoitada pelas ventanias do
+noroeste. Estava-se alli como a bordo; e a academia do infante parecia uma náu,
+em que vogavam os destinos ainda ignotos da nação. Os antigos tinham chamado
+<em>sacrum</em>, sagrado, a esse promontorio, e o nome de agora tambem
+traduzia, no pensamento e na linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no
+<small>XV</small> seculo, como fôra nos velhos tempos, o pedestal de um templo.
+Acreditavam os antigos celtas, do Guadiana espalhados até á costa,<a
+name="tex2html64" href="#foot1200"><sup>[64]</sup></a> que no templo circular
+do promontorio sacro, se reuniam ás noutes os deuses, em mysteriosas conversas
+com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho dos homens para
+os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas erguiam em Sagres um novo
+templo, onde tambem ás noutes, não deuses, mas homens, se entretinham em falas
+com os ignotos mares, com as regiões desconhecidas. O espirito era o mesmo, a
+religião era outra:&mdash;era a da Renascença&mdash;a sciencia, a tentação irresistivel
+que arrastava os homens para a natureza; que os fazia extenuarem-se a desflorar
+a virgindade dos mares, a interrogar a mudez das noutes, na sua ancia de saber,
+de dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes
+estive mettido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e para
+que parte endereçavam os canaes!»</p>
+
+<p>Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a
+cosmographia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens o
+manuscripto das peregrinações de Marco Paolo. Esses livros, os mappas de
+Valseca, as narrativas<span class="pn"><a name="pag_170">{pg. 170}</a></span> e
+roteiros dos pilotos, as rudes cartas maritimas, faziam vergar as mesas, a que
+o infante, tendo ao lado o seu cosmographo, Jayme de Mayorca, então celebre,
+rodeado de discipulos, passava os dias a discorrer, as noutes a interrogar,
+silenciosamente, os enygmas propostos nos textos e desenhos. Como Raymundo
+Lullio, entre as drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o
+principio da vida, os corpos simples ou elementares da materia para obter o
+segredo da existencia physica e organica: assim o infante procurava desvendar
+os segredos das ilhas e dos continentes, dos golphos e enseadas, velados pelo
+manto azul-negro do Mar Tenebroso.</p>
+
+<p>Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa tenaz
+curiosidade scientifica, differia essencialmente do mysticismo religioso da
+Edade-média, eivado de phantasias kabbalisticas, e da ingenuidade das
+mythogenias primitivas. O homem já preferia a sciencia á imaginação: rejeitava
+as fabulas, e confiava tudo aos processos e aos meios positivos. «Ora manifesto
+é, diz, um seculo depois, Pedro Nunes, que estes descobrimentos de costas,
+ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar; mas partiam os nossos
+mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e
+geographia, que são as cousas de que os cosmographos hão de andar apercebidos.
+Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam,
+que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha.» A
+bussola, o astrolabio e o quadrante já guiavam as expedições maritimas enviadas
+annualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a descer a costa para
+o sul. Porto-Santo, a Madeira e os Açores foram por esta fórma arrancadas<span
+class="pn"><a name="pag_171">{pg. 171}</a></span> ás trevas do mar.<a
+name="tex2html65" href="#foot1201"><sup>[65]</sup></a> Mas, apesar das
+successivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador, limite
+extremo até onde a costa era conhecida: havia doze annos que os navios iam e
+voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a um muro de terrores
+phantasticos.</p>
+
+<p>Gil Eannes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo não
+acabava alli, sabia-se já; mas seria possivel ir além d'esse
+<em>finis-terrae</em> da Africa? Gil Eannes voltou para responder
+affirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram
+seguindo, costa abaixo, por Cabo-Verde, a Guiné, onde, cheios de satisfação, os
+mareantes aprisionam os primeiros negros&mdash;os azenegues do Senegal.<a
+name="tex2html66" href="#foot1202"><sup>[66]</sup></a></p>
+
+<p>Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os haviam
+de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensiveis, o dilatado das
+viagens, sem consequencias fecundas, esfriavam nos animos o enthusiasmo do
+principio. Não acabava, jámais, a costa da Africa! e o Preste-Joham e os
+encantos do Oriente traduziam-se apenas pela <em>malagueta</em> da Guiné.<a
+name="tex2html67" href="#foot1203"><sup>[67]</sup></a></p>
+
+<p>O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das
+navegações. A empreza, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para as
+forças da nação: não podiam ellas vencer de todo, nem o Mar, nem Marrocos; e o
+que se tinha conseguido, perante os resultados praticos, desanimava, e fazia
+sentir cansaço.<span class="pn"><a name="pag_172">{pg. 172}</a></span></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Antes de nos alongarmos na historia d'essa empreza, cabe-nos o dever de
+registrar brevemente a da formação das forças navaes portuguezas,
+indispensaveis para o emprehendimento das viagens de descoberta e das
+expedições militares á costa da Berberia.</p>
+
+<p>Póde dizer-se que, até ao fim do <small>XII</small> seculo, não ha marinha
+na Hespanha occidental. As luctas da reconquista, então feridas, eram-no por
+terra exclusivamente; e a impericia maritima dos christãos, junta aos relativos
+progressos dos arabes concorriam para tornar difficil a conservação das praças
+litoraes conquistadas. Os primeiros dispunham apenas de pequenas lanchas
+costeiras; emquanto os segundos tinham navios regularmente armados e equipados,
+com que percorriam toda a costa occidental, refrescando nos seus portos,
+abastecendo-os de munições e gente quando estavam cercados, e desembarcando a
+miude, com o fim de talar os campos dos christãos e captivar os tardivagos ou
+indefesos. Já, porém, no <small>XI</small> seculo o bispo de Compostella tinha
+mandado vir de Genova pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que
+foram ás costas do Algarb sarraceno pagar em moeda egual antigas e grossas
+dividas. Os genovezes foram os nossos mestres na arte de navegar.</p>
+
+<p>Mas desde o meiado do <small>XII</small> seculo o exame das armadas de
+Cruzados, com cujo auxilio Lisboa e depois Alcacer foram tomadas, tinha vindo
+accrescentar os conhecimentos: demonstrando ao mesmo tempo que, sem o imperio
+no mar, jámais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do reino. Á empreza
+de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios portuguezes; e o que escrevemos
+sobre o caracter mais regular e systematico da politica e das campanhas d'esse
+reinado leva-nos a crêr que d'ahi deve datar-se a fundação da marinha
+militar<span class="pn"><a name="pag_173">{pg. 173}</a></span> portugueza. Com
+effeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Affonso III, como o
+provam as expedições maritimas que terminaram pela conquista definitiva do
+Algarve, e as façanhas do lendario Fuas Roupinho. Havia então já um corpo de
+tropas especiaes de embarque.</p>
+
+<p>Que eram esses navios, porém? O leitor de certo viu alguma vez, de tarde, ao
+cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas praias de Ovar ou da
+Povoa-de-Varzim. Viu a construcção e os typos d'esses navios primitivos, e as
+pittorescas physionomias dos seus tripulantes: eis ahi uma esquadra do
+<small>XIII</small> seculo.<a name="tex2html68"
+href="#foot1204"><sup>[68]</sup></a> Vel-a-ha, real e verdadeiramente, se, com
+a imaginação, substituir por armas os utensilios da pesca. E quando os barcos,
+encalhados na areia humida, descarregaram&mdash;hoje o peixe, então as presas, os
+mantimentos e a gente&mdash;homens e mulheres, fincadas as mãos sobre os joelhos,
+curvados, com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo d'elle,
+impellem-no, manobrando ao som de um canto rythmico, para o fazer rolar sobre
+toros até ficar em secco, distante dos perigos das ondas. Essa scena repetia-se
+para pôr a enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e Sancho II realisou um
+progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas praias de pescadores: mandou
+construir <em>debadoyras</em> (cabrestantes) para encalhar, tirados por cabos,
+os navios. No tempo de Affonso III já o poder maritimo portuguez é de tal
+ordem, que os nossos navios vão em soccorro a Castella, e o papa nos convida a
+acompanhar as gentes do norte á Cruzada.</p>
+
+<p>O reinado de D. Diniz marca uma segunda éra<span class="pn"><a
+name="pag_174">{pg. 174}</a></span> na historia da marinha nacional. Reciprocamente
+indispensaveis a marinha mercante e a militar, os cuidados do rei administrador
+dirigem-se principalmente a fomentar a primeira, cuja importancia o tratado de
+commercio, feito em 1308 com a Inglaterra, accusa. Além d'isto o rei applica-se
+a melhorar o porto de Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o
+contra as dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo
+pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Tambem no seu tempo, por morte
+do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja familia esse cargo andára, vem tomar o
+almirantado da armada portugueza o genovez Pezzagna. Nacionalizada, a familia
+dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do mar, ou almirantado, como já, á
+moda arabe, se dizia então.</p>
+
+<p>Os progressos realisados no <small>XIV</small> seculo
+preparam os recursos poderosos, com que, no seguinte, o infante D. Henrique
+póde levar de frente as duas emprezas a que votára a sua existencia. D.
+Fernando, o <em>amavioso</em> e infeliz rei, merece n'esta historia uma menção
+condigna. Apesar das chimeras da sua politica tornarem em derrotas as suas
+emprezas, a sabedoria e o alcance economico da sua legislação dão-lhe o direito
+de preeminencia na historia da formação do poder naval dos portuguezes. Já
+então a alfandega de Lisboa rendia, por anno, de 35 a 40 mil dobras:<a
+name="tex2html69" href="#foot656"><sup>[69]</sup></a> o que demonstra<span
+class="pn"><a name="pag_175">{pg. 175}</a></span> o progresso commercial do reino,
+e comprova a opinião expressa no livro anterior, da deslocação do centro de
+gravidade nacional do norte para o sul, e da nova phisionomia adquirida depois
+do antigo caso da separação do condado portuguez do corpo da monarchia
+leoneza.</p>
+
+<p>O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietarios a detenção
+improductiva das terras, obrigando-os a lavral-as, ou a dal-as a quem por elles
+o fizesse, era o mesmo que, n'um corpo de leis, protegia e fomentava o
+commercio maritimo de Lisboa, já então uma cidade cosmopolita. Os genovezes, os
+lombardos, os aragonezes, os mayorquinos, milanezes, corsos, biscainhos, gentes
+de tão variadas partes&mdash;de toda a Hespanha e das costas
+circum-mediterraneas&mdash;fixavam-se em Lisboa a commerciar. Pelo Tejo saíam cada
+anno para cima de doze mil tonneis de vinho, sem contar o dos navios da segunda
+carregação, em março. Os navios eram já maiores e tinham coberta. O chronista
+chama á capital «grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza
+que se formava para succeder á antiga; e, como nas cidades republicanas da
+Italia, tambem o commercio era privilegio dos mercadores, prohibido aos nobres
+e clerigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fóra do porto-franco de
+Lisboa.</p>
+
+<p>O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potencia
+commercial e maritima: e o que fez em favor do seu progresso demonstra a
+lucidez do seu espirito. O rei em pessoa era armador e negociante de certos
+generos exclusivos.<span class="pn"><a name="pag_176">{pg. 176}</a></span> Creou
+<em>bolsas</em> de seguros maritimos, mutuos, em Lisboa e no Porto, com o
+producto de uma taxa especial lançada sobre o commercio, instituindo o cadastro
+ou estatistica naval. Reduziu a metade os direitos de importação dos generos
+trazidos por navios nacionaes, estabelecendo assim um direito differencial de
+bandeira, a cuja sombra se multiplicou o numero dos navios mercantes
+portugueses. Deu, aos que desejassem construil-os, a faculdade de cortar
+madeiras nas mattas reaes. Isentou de direitos os materiaes de construcção
+naval, e os navios construidos fóra, por conta de nacionaes: e o mesmo concedeu
+á exportação dos generos do primeiro carregamento de navios novos. Por sobre
+esta protecção efficaz e energica, emprestava ainda aos armadores capitaes para
+commerciarem, ficando interessado com elles no dizimo dos lucros, que se
+liquidavam duas vezes ao anno.</p>
+
+<p>N'outro logar dissemos que o governo de D. Fernando fôra um cesarísmo, e com
+effeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento material da
+nação, na violencia das medidas de salvação publica, na desordem dos costumes
+da côrte, e no caracter bondoso e ingenuamente devasso do rei. Este Cesar do
+fim da Edade-média preparava o caminho á nação, cuja vida brilhante de dois
+seculos, afastada da estrada ordinaria da agricultura e da industria, ia ser a
+vida de uma Roma imperial, de uma Carthago, de uma Veneza: metropole acanhada
+de um imperio colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento individual
+dos governantes autocratas, mais do que á força espontanea de um espirito
+nacional, ao machinismo activo de um systema de instituições e classes,
+organicamente construido e funccionando normalmente. De todos os fundadores do
+Portugal maritimo D.<span class="pn"><a name="pag_177">{pg. 177}</a></span>
+Fernando é o maior; e se as queixas formuladas, ao decair do <small>XVI</small>
+seculo, contra os que afastaram os portuguezes do arado para o leme, do campo
+para o mar, teem razão absoluta&mdash;a sabedoria de D. Fernando foi como o peior
+dos erros. Camões fulminava, pela bocca do velho do Restello, os que arrastavam
+Portugal para o mar; como Plutarcho tambem condemnou Themistocles por ter
+lançado os athenienses no caminho das emprezas maritimas.</p>
+
+<p>Mas esses lamentos do espirito utilitario, se teem um cunho de verdade
+positiva, teem tambem um escasso merecimento historico. Não tivesse a Grecia
+sido colonisadora e maritima, e a sua voz educadora jámais se teria ouvido no
+mundo. Outrotanto diremos de nós. Não tivessemos alargado pelo mar um nome sem
+razão de ser na Europa, e, jungidos á Galliza virente e á Castella farta,
+teriamos tido menos fome e menos dôres, menos miserias decerto, mas nenhuma
+honra, tambem, na historia. O proprio nome de Portugal não teria existido,
+senão como lembrança erudita de um certo condado, que, nas mãos de principes
+astutos e atrevidos, conseguira viver alguns seculos separado do corpo da nação
+hespanhola.</p>
+
+<p>Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto.
+Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações, differe de
+absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer as necessidades
+organicas. Além d'isto, o destino, fatalidade, providencia, determinação, ou
+como se queira dizer&mdash;traduzido com as successivas palavras, antigas, actuaes
+ou futuras, um mysterio eterno&mdash;elege ou condemna&mdash;escolham tambem os sectarios
+entre as duas expressões&mdash;os homens e as nações a uma determinada<span
+class="pn"><a name="pag_178">{pg. 178}</a></span> obra. Nós fomos elegidos ou
+condemnados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que o enchia de vagas
+ambições ou de funebres terrores.</p>
+
+<p>Era este o momento opportuno de dizermos todo o nosso pensamento ácerca da
+empreza nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver melhor
+chamar-lhe. A viagem das Indias, que vamos contar&mdash;descrevendo previamente a
+derrota, por Ceuta e Tanger, e, no reino, pela consolidação do poder cesarêo
+dos reis&mdash;necessitava ser julgada: agora que, ainda no molhe os tripulantes,
+sobre a amarra os navios, se não desferrou o panno, nem se deram as salvas da
+partida.</p>
+
+<p>Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D. Fernando.
+Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam tambem a marinha de
+guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372) era, no dizer do chronista,
+<em>formosa campanha de ver</em>. Mice Lançarote Peçanha, da linhagem do
+genovez, ia de almirante; e o cosmopolitismo da nova patria portugueza vê-se
+bem no nome dos capitães: um João Focin castelhano, um Badasal de Spinola, um
+Brancaleon. Como Roma, Lisboa recebia no seu seio e nacionalisava gentes de
+toda a parte; e d'este agglomerado de caracteres, naturalmente inorganico,
+sairá, no momento culminante do <small>XVI</small> seculo, um espirito superior
+ao espirito nacional-natural e a noção de uma patria moral ou ideal, como foi a
+patria de Virgilio.</p>
+
+<p>A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta náus redondas,
+afóra as que vieram <em>per ella da costa do mar</em>. Vinte e tres mezes teve
+bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quasi tão poderosa
+como esta, foi ainda<span class="pn"><a name="pag_179">{pg. 179}</a></span> ao
+Mediterraneo, na seguinte guerra de Castella, para soffrer o desastre de Saltes
+(1381) consequencia da temeridade do fanfarrão Affonso Tello.</p>
+
+<p>Agora, fundeada no Tejo, a armada, espera o rei e os principes para ir
+conquistar Ceuta, em Africa.<span class="pn"><a name="pag_180">{pg. 180}</a></span>
+</p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1195" href="#tex2html58"><sup>[58]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp. 96-9.</p>
+
+ <p><a name="foot1196" href="#tex2html59"><sup>[59]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) pp. <small>VII-VIII</small> e <em>Elem. de
+ Anthropol.</em> (3.ª ed.) pp. 126-7 e 215-17.</p>
+
+ <p><a name="foot1197" href="#tex2html60"><sup>[60]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, liv. <small>IV</small>, 2.</p>
+
+ <p><a name="foot1198" href="#tex2html61"><sup>[61]</sup></a> <em>Ibid.</em>,
+ pp. 111-18.</p>
+
+ <p><a name="foot615" href="#tex2html62"><sup>[62]</sup></a> Seguiremos em
+ geral a orthographia de Kiepert nos seus Atlas, com referencia aos nomes
+ geographicos do Oriente, traduzidos nas nossas chronicas pelo ouvido dos
+ soldados da India.</p>
+
+ <p><a name="foot1199" href="#tex2html63"><sup>[63]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp, 94-6 e <em>O Brazil e as colon.
+ port.</em>, (2.ª ed.), pp. 244-8.</p>
+
+ <p><a name="foot1200" href="#tex2html64"><sup>[64]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, p. 184.</p>
+
+ <p><a name="foot1201" href="#tex2html65"><sup>[65]</sup></a> V. A chronologia
+ particular das viagens de descoberta no <em>Brazil e as colonias
+ portuguezas</em> (2.ª ed.) pp. 2-3.</p>
+
+ <p><a name="foot1202" href="#tex2html66"><sup>[66]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp. 116-7.</p>
+
+ <p><a name="foot1203" href="#tex2html67"><sup>[67]</sup></a> V. <em>O Brazil
+ e as colon. port.</em>, (2.ª ed.), pp. 14-5.</p>
+
+ <p><a name="foot1204" href="#tex2html68"><sup>[68]</sup></a> V. no
+ <em>Regimen das riquezas</em>, pp. 81-8, a evolução dos vehiculos maritimos.
+ </p>
+
+ <p><a name="foot656" href="#tex2html69"><sup>[69]</sup></a> A dobra continha
+ 4 libras e 2 soldos; 50 dobras compunha o marco de ouro cojo valor moderno é
+ de 120$000 rs; a dobra equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da
+ Alfandega a de 84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o chronista, «400 a
+ 500 navios de carregação» e em Sacavem e no Montijo, a carga do vinho e do
+ sal, 60 ou 70 em cada logar, suppondo que esses navios se substituissem
+ quatro vezes, fazendo quatro viagens n'um anno, e sabendo nós que a sua
+ lotação média regularia por 100 toneladas&mdash;vemos que o movimento do porto
+ attingia mais de 200:000 toneladas de generos diversos. Comparando-a com o
+ rendimento da alfandega, faremos idéa do grau de franquia do porto.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002320">II<br>
+Portugal em Africa</a> </h3>
+
+<p>Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento de
+monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda, com a
+peste, a rainha D. Philippa. Ninguem pozera na empreza melhor amor do que ella:
+mandára fazer tres espadas cravadas de pedraria para os filhos, que em Ceuta
+haviam de ser armados cavalleiros; mas o destino não lhe consentiu vêr
+terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham acabado de arrancar das
+paredes do convento de Odivellas os pannos de dó do enterro, quando a armada
+partia. Morrera a 20; são hoje 25 do mez de julho de 1415.</p>
+
+<p>As pazes celebradas com Castella no anno anterior tinham dado o socego a uma
+côrte onde fervia o desejo de praticar grandes cousas. Diz-se que o rei pensára
+em abrir em Lisboa um torneio de um anno, onde viriam os mais celebres
+cavalleiros da Europa medir-se com os portuguezes; mas esse plano extravagante
+foi substituido pelo projecto mais sensato de ir a Ceuta. Para não prevenir os
+inimigos, conservára-se um segredo absoluto sobre o destino da grossa frota que
+se reunia em Lisboa. Todos temiam: o aragonez, e principalmente o mouro de
+Granada. Vinham de varias partes soldados e navios. D. Duarte apparelhára em
+Lisboa<span class="pn"><a name="pag_181">{pg. 181}</a></span> oito galeões, e D.
+Henrique tinha chegado do Porto com uma divisão de cincoenta e dois navios de
+toda a classe. Havia inglezes, francezes e allemães na armada, que, depois de
+inteiramente reunida, contava 33 galeões grandes, 27 menores, de tres bancos de
+remeiros, 32 galeras e 120 fustas, transportes, e outros vasos secundarios. Iam
+embarcados cincoenta mil homens.</p>
+
+<p>Ao passarem á vista do cabo de S. Vicente os navios baixaram as velas
+<em>por razam das reliquias que ali havia</em>. Ainda em Sagres não existia ao
+tempo a eschola do infante, mas o preito dado ao logar sagrado para muitos
+parecerá symbolico. Era esta a primeira grande empreza maritima de Portugal; ou
+antes e melhor, era a primeira vez que as esquadras portuguezas saíam de Lisboa
+com o fito de alargar o reino para além do mar. Inexperientes ainda os pilotos,
+as correntes do estreito dispersam a poderosa armada, parte da qual é arrastada
+até Malaga, indo o resto fundear em Ceuta.</p>
+
+<p>Não nos permittem as proporções d'esta obra narrar todas as batalhas e
+cercos, nem isso importa; pois que, salvas excepções que temos tomado em conta,
+todos se parecem entre si. Nenhum caracter novo, nem particular, apresentou a
+tomada da cidade que, colhida de improviso, não pôde resistir. Os moradores
+abandonaram-na depois de um combate em que obtiveram a prova da inutilidade da
+defeza; e os christãos saquearam a cidade deserta, arrancando as columnas de
+alabastro, os marmores das portas e janellas, os tectos lavrados em paineis
+dourados, dos palacios da opulenta Ceuta. Emquanto a turba dos soldados se
+espalhava pelos meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os
+fugitivos, de longe, sobre as collinas, bradavam desesperados e miseraveis
+n'um<span class="pn"><a name="pag_182">{pg. 182}</a></span> triste clamor de
+perdidos. Ficavam-lhes além, dentro dos muros da cidade tomada, afóra tudo o
+que possuiam, os cadaveres insepultos dos muitos que na vespera tinham morrido
+no combate.</p>
+
+<p>Ceuta era portugueza; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam
+desde logo para solemnisar a sagração da mesquita dos infieis. O infante D.
+Henrique, principal author, denodado executor da empreza, recebeu o titulo de
+duque, novo então em Portugal. Todos os tres irmãos foram armados
+cavalleiros.</p>
+
+<p>Que se faria porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido, como
+estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos designios do infante, ou os
+não approvavam.</p>
+
+<p>Ceuta guardou-se como principio de mais dilatadas emprezas.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Vinte annos decorridos&mdash;em que o infante se déra principalmente aos seus
+trabalhos de Sagres,&mdash;e vendo acaso que as descobertas das ilhas do Atlantico
+não valiam assaz perante os sonhos da sua ambição, e que ao longo de Africa
+pouco se adiantou por mar, torna a preoccupal-o a idea das conquistas
+marroquinas, desde tempo postas de parte. A Atlantida mysteriosa teimava em não
+apparecer; ou reduzia-se afinal á Madeira, ou ao archipelago açoriano, onde não
+havia, nem encantos, nem muralhas d'ouro, nem estranhas gentes: só desertos
+cerrados de florestas, bravios de abrir, e pouco remuneradores. O reino
+encantado do Preste-Joham fugiria deante dos navios aventureiros, como uma
+miragem enganadora?</p>
+
+<p>Já D. João I morrera a este tempo, e governava o reino o bom, infeliz D.
+Duarte. O ambicioso irmão<span class="pn"><a name="pag_183">{pg. 183}</a></span>
+levou-o a emprehender a conquista de Tanger, depois de ter convencido a que o
+acompanhasse o infante D. Fernando. O rei, ou approvou, ou não teve energia
+bastante para se oppôr á temeraria empreza. No conselho em que ella se debateu,
+porém, o outro irmão, D. Pedro&mdash;cuja sensatez parece tel-o já a esta epocha
+afastado de uma côrte, onde a irrequieta ambição de D. Henrique
+governava&mdash;observa que tudo falta, para esperar um bom exito. Não havia
+dinheiro para custear o exercito, e, sem grande cargo de sua consciencia, o rei
+não o podia tomar aos povos. Mudar a moeda (enfraquecel-a) em proveito proprio,
+não o devia: fallece-vos o principal cimento da passagem! Posto que Tanger se
+tomasse, e Arzilla, e Azamor, que se lhes faria? Do reino, despovoado e
+mingoado, era loucura enviar gente a guarnecel-as: seria trocar boa capa por
+mau capello, perder Portugal sem por isso ganhar a Africa. O exemplo dos
+castelhanos não colhia, porque dispunham de mais vastos recursos.&mdash;O infante
+vira muito mundo, e aprendera a medir pelo seu justo peso a importancia
+limitada da nação. A ignorancia, mãe de todas as temeridades e audacias, não o
+cegava.</p>
+
+<p>D. Henrique, pertinaz, decidido e, por sobre isso, violento e sem carinho,
+não perdoou decerto a sabia prudencia com que o irmão se oppunha aos seus
+designios. As relações de ambos, já frias, azedaram-se talvez; e porventura
+aqui esteja o motivo da indifferença com que D. Henrique ouviu os rogos do
+irmão, quando mais tarde lhe pedia que o servisse perante o sobrinho, Affonso
+V&mdash;indifferença que decerto concorreu para a morte de D. Pedro em Alfarrobeira,
+se porventura a não causou.</p>
+
+<p>As advertencias do principe no conselho eram tanto mais graves, quanto os
+seus argumentos eram<span class="pn"><a name="pag_184">{pg. 184}</a></span>
+absolutamente fundados, positivos; e grandes os creditos da sua opinião,
+merecido o respeito que todos tributavam ao seu caracter. Por isso, apesar da
+nenhuma brecha que os argumentos, por via de regra, fazem nas teimas, o rei (ou
+D. Henrique) julgou necessario escudar-se com o parecer do papa. Consultou-se,
+pois, Roma; e a resposta, que de lá veiu honra o nome do que a deu: «Se as
+terras foram christans e ha templos convertidos em mesquitas, a guerra é santa;
+se o não foram, deve distinguir-se: são visinhos incommodos e põem em perigo os
+christãos? admoestem-se, ameacem-se e só em ultimo caso se recorra ás armas.
+Não é este, porém, o caso? então, deixem-nos em paz, porque a terra e a
+abundancia d'ella é do Senhor, que faz nascer o sol sobre os bons e os maus, e
+dá de comer a todas as aves do céu.»</p>
+
+<p>Esta ultima das tres hypotheses indicadas pelo papa era a verdadeira, o que
+não impediu o infante de proseguir na sua teima. «A gente do reino havia esta
+ida por tão pesada, que a mais d'ella preferia pagar as multas (impostas aos
+refractarios ao alistamento) a arriscar as vidas.» Nem as multas, nem o
+dinheiro do rei, nem os emprestimos, bastavam, porém, para supprir o orçamento
+da armada; e por isso lançou-se mão dos bens dos orfãos. Porém, apesar de tudo,
+dos 14:000 homens com que se contava para a ida, apenas 6:000 se conseguiu
+reunir.</p>
+
+<p>Partiram, afinal, os dois irmãos; mas logo um mau agoiro entristeceu os
+soldados: o vento despedaçou a bandeira do infante, quando a desfraldava. Essa
+bandeira, sobre que o mouro havia de cuspir affrontas, ia já rota de
+Portugal...</p>
+
+<p>O resultado correspondeu ás previsões geraes: depois de batida, a expedição
+portugueza teve de capitular sob os muros do Tanger (1437), deixando<span
+class="pn"><a name="pag_185">{pg. 185}</a></span> D. Fernando em refens de Ceuta,
+que era o preço da liberdade do exercito. Tristes lagrimas de desespero
+orvalharam então as areias da costa africana: não seriam as ultimas, nem as
+mais copiosas. D. Henrique voltava com as reliquias da sua expedição, deixando
+o irmão preso. «Que el-rey se lembre de mim... roguem por minha alma, que é a
+ultima vez que nos veremos!» dizia o infeliz ao despedir-se, em lagrimas.
+D'alli os mouros levaram-no a Fez. Ia como Isaac para o altar, ou como Jesus
+para o Calvario. Conduziram-no montado n'um sendeiro mui magro, desferrado,
+tendo por freio umas tamiças, a sella esfarrapada, os arções despregados.
+Deram-lhe tambem uma canna, para guiar a azemola. Atraz d'elle iam os outros
+prisioneiros amarrados sobre as bestas de carga. A gente acudia ao caminho de
+Fez, chamada pelo pregão: «Venham vêr o rei dos christãos!» E os apupos, as
+pedradas, os escarros, caíam sobre os infelizes, chouteando, na sua paixão,
+esmagados por um sol abrazador. Uns, com os apupos, remordiam-se colericos; o
+infante, submisso e conformado, lembrava-se de que outro tanto, e mais ainda,
+soffrera Jesus por elle. Antes, porém, ser de uma vez crucificado, do que
+acabar lentamente nas lobregas estrebarias de Fez, varrendo as immundicies,
+comido de bichos, devorado de febres, porque nem a lentidão do martyrio lhe
+poupou o cadaver aos insultos da turba. Pendurado nú, pelos pés, nas ameias da
+cidade, foi a sorte que lhe deram. Antes, pregado na cruz, tivesse expirado
+como Christo. O pobre infante é o primeiro martyr da nossa epopêa; e se nos
+honramos do muito que fizemos, é agora o momento de deixar aqui uma lagrima de
+saudade e pena por esse infeliz precursor do nosso imperio!<span class="pn"><a
+name="pag_186">{pg. 186}</a></span></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>De volta ao reino, e salvo, D. Henrique oppoz-se decididamente á entrega de
+Ceuta. O rei, lavado em lagrimas pela sorte do irmão, morreu logo no anno
+seguinte, triste e taciturno. Com a deshumanidade de um apostolo, D. Henrique
+sacrificava tudo e todos á sua fé. Por cousa nenhuma consentiria que se
+entregasse Ceuta: e os reinos do Preste-Johan? e o imperio do Oriente? Homens,
+familia, palavra, tudo era vão, diante d'essa miragem que, desde tantos annos,
+lhe punha a cabeça em delirio.</p>
+
+<p>Com o seu braço conquistára Ceuta: arrastára a Tanger o irmão; deixára-o lá
+perdido, nas mãos féras dos inimigos: tudo isto eram holocaustos no altar da
+sua idéa. Quem sabe se elle mesmo não choraria a sós a crueldade do seu
+destino, e a desgraça do irmão que levára ao cepo do sacrificio? Não é,
+comtudo, provavel. Pelo menos, a impressão que o leitor d'estas historias
+recebe da narração dos seus actos consecutivos, é a de que no caracter do
+infante não primava a humanidade.</p>
+
+<p>Voltou a encerrar-se em Sagres, com os seus livros, os seus mappas, os seus
+cosmographos e mareantes: voltou a olhar para o mar&mdash;pois que, por largos
+annos, para sempre talvez! estava perdida metade da sua empreza. Os seus
+navegadores iam vogando e <em>resgatando</em><a name="tex2html70"
+href="#foot1206"><sup>[70]</sup></a> ao longo da costa da Africa: e as ilhas
+dos Açores iam successivamente saindo dos arcanos do Mar Tenebroso. O papa
+(Nicolau V) dava-lhe o senhorio e dominio sobre todas as descobertas na Africa
+(1454): e o infante, no meio das contrariedades, não desanimava na sua fé.</p>
+
+<p>Entretanto o reino passára, das mãos da rainha viuva, para as do infante D.
+Pedro (1438) e d'estas,<span class="pn"><a name="pag_187">{pg. 187}</a></span>
+finalmente, para as de Affonso V (1446); entretanto miseraveis intrigas, a que
+D. Henrique não quiz oppor-se para salvar o irmão que lh'o pedia, tinham levado
+á desgraça de Alfarrobeira (1449); e o infante, com a influencia que exercia no
+curto espirito do sobrinho, facilmente o decide a lançar-se nas aventuras
+africanas: já morrera D. Pedro, para vir repetir o que dissera nas vesperas de
+Tanger. Quando, em 1460, morreu D. Henrique, esse principe tão funesto aos
+seus, mas tão proveitoso para o reino, já Affonso V tinha conseguido tomar
+Alcacer-Seguer (1458). Dez annos depois, a conquista de Arzilla importa a
+rendição de Tanger. O dominio portuguez na costa de Marrocos chegava ao apogeu;
+mas qual era o resultado d'essas emprezas? Vinha por ahi a Portugal o commercio
+das Indias, como D. Henrique pensára? Não. Monopolisado pelos arabes no
+Oriente, logo que Ceuta foi para elles perdida, desviou-se para outros portos
+do Mediterraneo. Varrida essa illusão, que restava? Uma serie de praças fortes,
+eschola de soldados, fonte de permanentes conflictos, esteril em proventos,
+pasto para a van necessidade batalhadora da nação: precipicio aberto, que ia
+tragando, improficua e ingloriamente, muitas forças vivas do paiz. A opinião do
+sabio principe D. Pedro era absolutamente verdadeira: nós não tinhamos
+recursos, no reino pequeno e pobre de gente, para povoar Marrocos; e mudar
+parte de uma população escassa, de Portugal para a Africa, era trocar «uma boa
+capa, por um mau capello». Á conquista de Ceuta movera ainda uma illusão: mas
+agora, varrida ella, as campanhas de Africa eram uma serie de emprezas
+quixotescas, que viriam a terminar pela doidice varrida de D. Sebastião.<span
+class="pn"><a name="pag_188">{pg. 188}</a></span></p>
+
+<p>Contra uma opinião muito acceite, nós pensamos, pois, que a decisão de D.
+João III, abandonando as praças africanas, só peccou por serodia; e que
+Portugal nada tinha a esperar do seu dominio na Barberia&mdash;desde que o destino o
+levava para o Oriente, e desde que era manifestamente provado não poder
+chegar-se lá por via de Marrocos. Incidente na nossa vida nacional, o dominio
+portuguez das praças do litoral d'Africa é apenas um episodio da grande
+historia das descobertas e conquistas ultramarinas; e o seu melhor merecimento
+foi de servir de eschola para os guerreiros da India, de posto de
+acclimação&mdash;como hoje Malta ou Gibraltar, para os inglezes. Para padrão das
+façanhas de Affonso V e das lançadas de Lopo Barriga, não valia a pena que
+custou, ainda quando não fosse a causa da final catastrophe de D.
+Sebastião.<span class="pn"><a name="pag_189">{pg. 189}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1206" href="#tex2html70"><sup>[70]</sup></a> <em>Regime das
+ Riquezas</em>, pp. 92 e 107-9.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002330">III<br>
+O principe perfeito</a> </h3>
+
+<p>Perfeito não quer dizer sem nodoa, mas sim acabado, completo; não tem aqui
+uma significação moral, tem um valor politico. D. João II é um exemplar
+<em>perfeito</em> do genero dos principes da Renascença, para quem Machiavel
+escreveu (um pouco depois) o cathecismo: é um mestre da moderna arte de
+reinar.</p>
+
+<p>O exemplo mesquinho da pessoa do antecessor e pae, Affonso V, as desordens
+do reino e a fraqueza do rei, tinham educado o espirito agudo e observador do
+moço principe.</p>
+
+<p>A tragedia de Alfarrobeira (1449) começára com um crime o espectaculoso mas
+triste reinado do <em>africano</em>; e o epitheto dado ao rei ajudou a formar a
+tradição de um homem cheio de valor e tenacidade, coisa que o pobre Affonso V
+jámais foi. Combater com denodo, n'um momento de furia, era uma qualidade
+commum que lhe não faltava; mas d'ahi ao valor consummado vae uma distancia
+enorme. O grande defeito da sua mocidade fôra a facilidade com que se deixava
+lisongear. Tutelado na sua menoridade, pela mãe primeiro, pelo tio e sogro
+depois, o pobre rei soffreu as consequencias communs a quasi todos os
+principes, como elle acclamados em creanças. Em volta do rei, pupillo de futuro
+imperante, formou-se um partido de adversarios<span class="pn"><a
+name="pag_190">{pg. 190}</a></span> da regencia, ambiciosos a quem não satisfazia o
+juizo do infante D. Pedro, cheios de esperanças na liberalidade e no caracter
+desegual do moço rei. Exploravam-lhe as fraquezas, açulando-lhe os odios nos
+momentos de colera, distrahindo-o com facecias e ditos nas horas de abatimento,
+gabando-lhe tudo: os arremeços e as cobardias, a brandura e a colera, como
+aduladores de officio. Da insensatez do rei esperavam colher uma farta ração de
+beneficios e presentes. Apesar de o infante já ter feito entrega da regencia,
+temiam-no ainda sobremaneira, e não cessavam de o malquistar no animo do
+sobrinho e genro. D. Pedro em vão instava com o irmão, D. Henrique, para que
+desmanchasse essas perfidias. Aborrecido de viver, desejoso de deixar o mundo,
+o ex-regente via que tudo se conspirava para o perder. «Era grande principe, de
+grande conselho, prudente, de viva memoria, bem latinado, e assaz mixtico em
+sciencias e doutrinas de letras, e dado muito ao estudo.» Era um dos poucos, a
+quem a sabedoria tornára realmente bons.</p>
+
+<p>Os seus brios offendidos, a perfidia dos validos, o tonto desvairamento do
+rei, levaram ao encontro de Alfarrobeira, quando o principe vinha á côrte
+justificar-se das calumnias: e vinha armado, por saber que no caminho o
+esperavam para o matar. Effectivamente o mataram, a elle, e ao seu fiel
+Achates, o nobre conde de Avranches, typo de lealdade cavalheiresca, sempre
+rara, e agora de todo ausente em côrtes italianisadas. Morto o seu principe, o
+conde prepara-se para morrer tambem, vingando-se: «Ó corpo! já sinto que não
+podes mais; tu, minha alma, já tardas!» E com furia, defendia-se e matava.
+Quando por fim o derrubaram, ferido, cruzou os braços, dizendo: «Fartar,
+rapazes!<span class="pn"><a name="pag_191">{pg. 191}</a></span> vingar, vilanagem!»
+E morreu, trespassado de lanças.</p>
+
+<p>Livre do importuno conselheiro, Affonso V e os fidalgos da sua roda, tão
+simples e estouvados como o rei, puderam abandonar-se á vontade ao capricho das
+suas loucuras e batalhas. Fatigando o povo com impostos, desbaratando com
+prodigalidades o patrimonio da corôa, o rei, levado pela sua mania, sacrifica
+tudo ás correrias africanas, que a decomposição interna do imperio marroquino
+já tornava possiveis.</p>
+
+<p>Mais de vinte annos consumiu em taes emprezas que o envelheceram. Era
+corpulento, e com os annos tornára-se gordo, a ponto de não poder já usar senão
+vestiduras soltas. Tinha a barba espessa, e era calvo; os cabellos
+ennegreciam-lhe as mãos, as orelhas, o nariz, accusando a vulgaridade e a
+violencia bravia do seu temperamento. Apesar de bem proporcionado, era tão
+commum no aspecto como no espirito. Brutal e vingativo, obtuso mas teimoso, e
+até cruel, a sua phisionomia reproduzia a do commum dos homens d'armas; e
+imprimiu o cunho a esses guerreiros de Africa, broncos, sem o menor requinte de
+perversidade fina, nem ponta de elevação distincta: como touros que marram ás
+cegas e qualquer destro bandarilheiro dóma.</p>
+
+<p>Foi isto mesmo que succedeu a Affonso V em França, onde Luiz XI se fartou de
+rir do simples, illudindo-o com promessas, fatigando-o com viagens, picando-o
+com ironias perdidas, carregando-lhe a nuca de lisonjas, cumprimentos e
+attenções, como o bandarilheiro faz ao touro, quando o carrega de vistosas
+farpas, bem aguçadas.</p>
+
+<p>Affonso V fôra a França pedir auxilio, porque o castelhano batera-o. Em
+1474, Henrique IV de Castella<span class="pn"><a
+name="pag_192">{pg. 192}</a></span> ao morrer, deixava por herdeira D. Joanna, a
+<em>beltraneja</em> (assim os adulterios da mãe tinham denominado a filha)
+confiando o governo do reino ao visinho de Portugal, e pedindo-lhe que casasse
+com a sobrinha. Affonso V julgou que o reino de Castella era a nova Africa da
+sua velhice, e poz-se em campo para conquistar a corôa testada; conquistar,
+dizemos, porque os castelhanos invocavam contra a <em>beltraneja</em> os mesmos
+argumentos que, um seculo antes, nós invocavamos contra a mulher de João I, D.
+Beatriz. Castella offerecia o throno a Isabel, como nós o tinhamos dado ao
+Mestre de Aviz.</p>
+
+<p>Affonso V poz-se em campo. Já ao seu lado se via a reservada figura do
+filho. Receioso das loucuras do velho, arrancára da sua fraqueza um titulo
+secreto, pelo qual o rei annullava todas as doações superiores a dez mil réis
+de renda que fizesse durante a guerra. O pae dava e não dava, o filho dobrava
+cuidadosamente o papel, guardando-o para o futuro...</p>
+
+<p>A batalha de Toro (1476) não foi propriamente uma derrota militar, mas foi
+uma derrota para o rei e para as suas ambições. O pobre velho, gordo, estafado,
+sem poder comsigo, foi correndo abrigar-se em Castro-Nuño, e deitou-se logo a
+dormir. Avendaño, o fidalgo do lugar, declarára-se por elle: mas a mulher,
+castelhana esperta, apontava-lhe o volume de carnes, para alli deitado a
+resonar ruidosamente, como os gordos, e dizia ao marido:&mdash;«Olha lá por quem te
+perdeste!»&mdash;Effectivamente o rei não valia para cousa alguma. Os castelhanos
+rebeldes desde logo reconheceram o seu erro, e Affonso V tomou a resolução de
+ir pedir a Luiz XI que lhe valesse.</p>
+
+<p>O principe herdeiro aprendia muito, porque<span class="pn"><a
+name="pag_193">{pg. 193}</a></span> observava tudo, com o seu olhar profundo e
+sagaz. Deixou ir o pae, e ficando a reger o reino, continuou, por amor da
+honra, mas sem calor, uma guerra que elle decerto via não conduzir ao fim
+desejado. Emquanto o pae andava por fóra, acclamaram-no, ou acclamou-se rei:
+diz-se que de França lhe viera uma abdicação. Porém Affonso V, desilludido
+afinal, decidiu-se a voltar; e o principe entregou-lhe immediatamente a corôa.
+Guardal-a, para que? Se elle, de facto, continuava a reinar em nome do pae,
+desfeiteado, vencido, quasi moribundo? Todas as maximas que Machiavel escreveu
+no seu livro do <em>Principe</em>, tinha-as antecipadamente D. João II na
+memoria:&mdash;É melhor ser louvado do que aborrecido, mas só quando isso não
+prejudica; o bem é preferivel ao mal, quando se póde escolher entre ambos para
+se conseguir um fim.&mdash;Por isso, como sabio principe, decidia-se a reinar sob o
+nome do pae, já inteiramente docil e subjugado por tantas miserias, esperando o
+momento proximo de outra vez tomar o nome de rei&mdash;méra formalidade.</p>
+
+<p>No decorrer de dois annos (1479-81) a paz, negociada pelo principe
+<em>perfeito</em>, fazia da <em>beltraneja</em>, encerrada n'um convento, a
+<em>excellente-senhora</em>, e do rei um cadaver, afogado n'uma agonia de
+afflicções pungentes.</p>
+
+<p>O filho não tinha nada dos loucos desvarios do pae, e desde logo vira o
+absurdo da guerra de Castella. Seria mais nobre e cavalleiroso proseguir
+valentemente na defeza dos direitos da corôa, da honra do velho, e da vida e
+sorte da infeliz princeza confiada á guarda de Portugal? Seria. Mas D. João II
+pensava (Machiavel) que o principe não deve preoccupar-se com a infamia dos
+seus actos, quando sejam necessarios á conservação do Estado; e que, depois de
+tudo bem pesado, praticar uma<span class="pn"><a
+name="pag_194">{pg. 194}</a></span> certa virtude póde muitas vezes trazer a ruina,
+quando a infamia traria comsigo a segurança e a fortuna.</p>
+
+<p>Este era effectivamente o caso em 1479. Dizia o principe que tempos havia
+para usar de coruja, tempos para voar como falcão. Não traduzia, porventura,
+com uma concisão mais eloquente, as palavras do italiano?&mdash;«O principe deverá
+imitar bem os brutos (porque ha duas maneiras de combater: com as leis e com a
+força; a primeira dos homens, a segunda dos brutos) e saber empregar as artes
+da raposa e do leão; pois o leão não se defende dos laços, nem a raposa dos
+lobos: é portanto mistér ser raposa para conhecer as redes, e leão para
+assustar os lobos.»&mdash;D. João II, menos classico ainda, recorria aos exemplos
+venatorios da Edade-media; tempos havia para usar de coruja, tempos para voar
+como falcão!</p>
+
+<p>Os filhos de D. João I, abrindo as portas da nação á cultura da Renascença,
+chamando sabios, viajando, formando bibliothecas, tinham lançado á terra dura
+do velho Portugal as sementes italianas. Affonso V rebentára do solo como um
+cardo antigo, rijo e bravo, cheio de espinhos. Fôra um aborto, ou um
+anachronismo medieval. D. João II nascia italianisado, com todos os vicios e
+virtudes da cultura da Renascença. A sua côrte era um retrato das pequenas
+côrtes de Italia; e o principe como um italiano, cheio de perfidias e ambições,
+de lucidez e de manha, de instinctos sanguinarios e fortes decisões
+politicas.</p>
+
+<p>Os tempos de coruja tinham acabado, porque não carecia mais de pactuar com
+as tontices do pae; rei agora (1481), seria o falcão. Mas para ser
+verdadeiramente rei, teria de vestir ainda muitas vezes o habito da ave
+nocturna, até vêr por terra<span class="pn"><a name="pag_195">{pg. 195}</a></span>
+o poder d'essa fidalguia que os erros do pae tinham ensoberbado. Isto, porém,
+não satisfazia ainda as suas largas ambições. O <em>homem</em>, como Isabel de
+Castella o designava com espanto, mirava mais longe. A possibilidade de vir a
+sentar-se, elle ou os seus herdeiros, no throno de uma Hespanha unida,
+affagára-lhe o espirito em moço, e chegou a esperar (antes de Toro) realisal-a.
+Depois, rechaçado, mas não desesperado, fez de coruja em 1479; contando voar de
+falcão no momento opportuno. Nem paravam ahi as suas ambições: lembrava-se do
+fallecido infante D. Henrique, e dos vastos planos, abandonados, que tinham
+fervido n'aquelle cerebro. A sua monarchia dilatava-se da Hespanha á India: e
+com a Peninsula na Europa, com a Africa, a India, o encantado reino do
+Preste-Joham, sonhou a monarchia de Philippe II...</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>N'uma só cousa o portuguez primava ao italiano: era sobrio, severo,
+detestava o luxo&mdash;que prohibiu. A sua côrte apresentava o quer que é de funebre
+e austero, sempre agradavel a portuguezes. A sua figura, tambem, nada tinha de
+imponente, nem de graciosa. Os habitos de coruja davam-lhe mais caracter do que
+os de falcão: ás duas aves, porém, pedia a côr que punha em tudo, o negro. De
+maravilhoso engenho, subida agudeza, e <em>mixtico pera todalas cousas</em>, de
+memoria viva e esperta, faltavam-lhe porém os dotes exteriores. Não tinha
+elegancia, nem no corpo, nem no dizer: arrastava as palavras, falava a custo e
+com uma voz fanhosa. Era alvo, mas com umas veias de sangue que o faziam «com
+menencoria ser muy temido». Inspirava medo sem infundir amor. Aos 37 annos
+já<span class="pn"><a name="pag_196">{pg. 196}</a></span> tinha cans na barba o nos
+cabellos; só n'essa edade deixou de ser abstemio. A força muscular, dote
+necessario aos principes dos bons tempos, tornava-o celebre: cortava com um
+golpe de espada tres e quatro tochas de cera reunidas. «Muy grande astucioso e
+acquiridor, sem deixar de ser inteiro e dadivoso, era muy manhoso em todalas
+boas manhas que um principe deve ter.» A natureza não o ajudava, decerto; e
+tambem, na sua educação de principe, deixava de obedecer á regra de Machiavel:
+«Não é necessario ser-se dotado de todas as qualidades, mas é indispensavel
+affectal-as;&mdash;possuil-as e servir-se d'ellas póde chegar a ser perigoso:
+fingil-as é sempre util;&mdash;seja-se fiel, clemente, humano, religioso e integro;
+mas de modo que, senhor de si, se possa e saiba fazer todo o contrario, quando
+a isso o caso obrigue.»&mdash;D. João não era, nem clemente, nem humano, e não
+julgava necessario ao seu papel fingil-o: isso fazia com que muitos o
+detestassem, o que era um mal: fazendo com que, se a maior parte o temia,
+ninguem o amasse, o que se tornava peior ainda. A perspicacia e authoridade não
+eram n'elle bastantes para que soubesse envolvel-as n'uma simulada bonhomia,
+porque doçura ou humanidade não as havia na sua alma. Não hesitava perante o
+assassinato, á italiana, mas tinha a fraqueza portugueza de confessar como isso
+se praticava. Lopo Vaz, a quem Affonso V fizera conde, levantou-se em Moura
+defendendo o titulo revogado ou não confirmado, e o rei «por não fiar já
+d'elle... determinou de o mandar matar... por certos cavalleiros que
+manhosamente lá mandou e o mataram á traição, aos quaes o principe fez boas
+mercês». Mas o cardeal D. Jorge da Costa, o <em>alpedrinha</em>, vendo-se
+ameaçado, temeu e fugiu para Roma: o rei expozera-lhe um modo facil do
+acabar<span class="pn"><a name="pag_197">{pg. 197}</a></span> com elle&mdash;mandal-o
+tomar por quatro moços de esporas, afogal-o em um rio e dizer que caira e se
+afogára por desastre.</p>
+
+<p>Assim que o pae morreu, D. João II convocou côrtes (1482) e mostrou quem
+era. Mandou examinar as jurisdições dos donatarios da corôa, prescrevendo que
+os corregedores entrassem nas terras de doação no cumprimento dos mandados
+regios, abolindo o direito de asylo dos criminosos usurpado por muitos terrenos
+não coutados; e ao mesmo tempo que assim coarctava as regalias historicas da
+nobreza, punha cobro ás invasões anarchicas dos fidalgos no fôro dos concelhos,
+prohibindo o lançamento de <em>pedidos</em>, o intrometterem-se na jurisdição
+do crime e nas eleições e officios municipaes. O rei, inspirado pelas novas
+idéas ácerca da authoridade soberana, começava por investir com a nobreza:
+seria o successor, D. Manoel, que, reformando os foraes, atrophiaria a outra
+face do systema duplo de instituições, cujo equilibrio mais ou menos estavel
+formára a vida politica da Edade-media<a name="tex2html71"
+href="#foot1207"><sup>[71]</sup></a>. Mas D. João II via-se tambem forçado a
+emendar os erros do pae, como o segundo Affonso tivera tambem de fazer á morte
+de Sancho I. O moço rei decidira formalmente revogar as doações do antecessor,
+reivindicar para a corôa o que os fidalgos tinham pilhado ao pobre, gordo,
+Affonso V. De todos esses fidalgos, o chefe era o poderoso duque de Bragança,
+cujos dominios contavam cincoenta villas, cidades e castellos, além de
+propriedades sem numero; cuja mesnada subia a 3:000 de cavallo e mais de 10:000
+infantes; um rei no reino, do qual possuia, pelo menos, a terça parte.
+Costumado a considerar o rei como egual, da linhagem<span class="pn"><a
+name="pag_198">{pg. 198}</a></span> de reis, e herdeiro do famoso condestavel, o
+duque sincera e ingenuamente acreditava na justiça da sua rebeldia. «Deservia
+muito grandemente o rei, fazendo-lhe guerra calada,» e carteava-se com o conde
+de Athouguia, seu tio, então em Castella, homem prudente, que buscava
+dissuadil-o, respondendo-lhe em enygmas ao gosto da epocha: «Tal não deveis
+cuidar, quanto mais commetter... quereis abrir uma fonte para matar vossa
+sede... achareis a agua tão quente que vos hão de lá ficar as unhas...
+<em>tradiderunt quos deligebam</em>.» Com effeito, era atraiçoado, e o rei
+tinha os seus espiões por toda a parte. Um certo Figueiredo vinha a escusas
+referir tudo a D. João II, que lhe respondia, com a sua voz demorada, baixa e
+fanhosa: «Guarda-te o melhor que puderes, e depois te farei mercê».&mdash;O espião
+ia e tornava, e quando, afinal, o duque foi preso por surpresa e executado, o
+rei deu a mão a beijar ao Figueiredo: «Até agora fiz que te não conhecia, d'ora
+avante olharei por ti. Pede o que quizeres: ha tempos de coruja e tempos de
+falcão...»</p>
+
+<p>O duque foi degollado publicamente no rocio de Evora (1483), depois de um
+simulacro de processo. Effectivamente, em taes causas os processos são apenas
+formulas. A força impera á solta nas demandas politicas, por isso mesmo que
+ellas põem em questão os fundamentos organicos da sociedade, e portanto a lei
+civil. O duque e o rei eram inimigos velhos; e aos odios antigos vinham
+juntar-se agora as intenções, rebeldes em um, tyrannicas no outro. Entretanto,
+o caracter desnaturado da politica dos reis na Renascença levava D. João II a
+representar um papel repugnante, dando ao vencido uma palma como que de martyr;
+ao passo que a sobranceria do fidalgo, quasi-rei, lhe mantinha<span
+class="pn"><a name="pag_199">{pg. 199}</a></span> a dignidade altiva até sobre o
+cadafalso. Recusa prestar-se a responder no tribunal, a tomar parte na comedia
+que o indigna; e quando os carrascos, afflictos, lhe vestem o derradeiro trajo,
+uma loba roçagante, capello e carapuça de dó, com os pollegares atados por uma
+fita ao cinto, elle observa serenamente: «Soffrerei tudo, e mais um baraço ao
+pescoço, se S. A. mandar!»</p>
+
+<p>A morte, tão digna, do duque de Bragança excitou ambições de vingança na
+nobreza, e positivamente começou a tramar-se o assassinato do rei, que o sabia.
+Os seus espiões andavam por toda a parte; e a politica dependia das intrigas de
+alcova e dos serviços dos miseraveis. O rei usava de todos os instrumentos, e o
+<em>sancta sanctis</em> da razão-d'Estado absolvia-o de todos os crimes. Havia
+um Tinoco, privado do bispo d'Evora, o qual tinha por manceba uma irmã d'elle,
+e que por isso lhe queria muito. O rei descobriu o caso, e comprou-o. Tinoco
+veiu, disfarçado em frade, a Setubal, contar a conspiração em que o prelado
+estava, e de que o duque de Vizeu era chefe; e recebeu cinco mil cruzados em
+ouro e um beneficio de seiscentos mil réis, porque D. João II não regateava o
+preço dos bons serviços. Estava compilada e tratada «a segunda e desleal
+desaventura de que se causou a triste morte do duque de Vizeu». O rei chamou-o
+a Setubal, e matou-o por suas mãos ás punhaladas. Prescindiu de processo, mas
+não de um auto posthumo, com o fim de justificar o seu crime, e a perseguição
+dos mais conjurados. O bispo de Evora foi mettido no fundo de uma cisterna, em
+Palmella, onde com peçonha acabou a vida; os outros foram assassinados ou
+justiçados, onde quer que os encontraram os algozes do rei; e um, que
+conseguira fugir para França, nem por isso escapou<span class="pn"><a
+name="pag_200">{pg. 200}</a></span> com vida, porque o rei mandou lá um sicario
+matal-o.</p>
+
+<p>O principe <em>perfeito</em> mostrava-se consummado na arte de reinar, e
+ninguem ousava já resistir-lhe. A primeira metade do seu programma estava
+realisada&mdash;agora o falcão ia alargar os seus vôos amplos!</p>
+
+<p>Ninguem lhe resistia, mas no fundo da consciencia alguma cousa o denunciava
+como assassino. Uma noute, em Santarem, acorda em sobresalto, ouvindo alguem
+chamal-o. Quem era? Ninguem. Illusões! dizia-lhe a rainha no leito: era
+<em>cousa má</em> que andava pelos vãos dos telhados.<a name="tex2html72"
+href="#foot1208"><sup>[72]</sup></a> O rei não socegava, porém, e levantou-se,
+vestiu um roupão, tomou a espada e a rodela, na mão esquerda uma tocha, e viu
+que uma sombra o guiava. Quem era? Abria as portas diante do rei, e
+mostrava-lhe o caminho. Foram assim até aos vãos dos telhados, a sombra e o
+rei. Aos gritos da rainha acudiram todos, e acharam-no no sotão, despejado,
+alegre e seguro, diz o chronista mentindo palacianamente. A coruja noctivaga
+perseguia o ambicioso falcão: a educação do principe não conseguira apagar de
+todo a consciencia do homem.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Fernando e Isabel, de Castella, que lhe haviam tomado o pulso, ainda em
+tempo do pae, admiravam-lhe muito as qualidades e tinham-no em grande conta.
+Elle, nem por ter tratado as pazes de 1479, desistira dos seus grandiosos
+planos. Os reis castelhanos tinham uma filha, D. João II um filho: o casamento
+de ambos seria talvez um meio, mais<span class="pn"><a
+name="pag_201">{pg. 201}</a></span> simples e mais rapido do que uma guerra, para
+dar ao herdeiro um grande throno. Tratou-se, ajustou-se e fez-se o casamento
+(1490); e n'esse dia de grandes esperanças, o rei sombrio e fanhoso quiz
+mostrar que tambem sabia ser magnifico. As bodas de Evora ficaram celebres, e
+principalmente o banquete, uma <em>kermesse</em> formidanda. Na sala do jantar,
+onde os noivos, o rei, e toda a côrte se achavam, appareceu uma vasta machina:
+era um estrado com rodas, tendo em cima um carro com dois bois, á canga. Os
+bois estavam assados inteiros, com as pontas e as patas doiradas; e o carro
+carregado de carneiros tambem assados, tambem inteiros, com as armas doiradas.
+Vinha um fidalgo, de aguilhada ao hombro a dirigir o carro, e moços empurrando
+a machina. Deram a volta da sala, cumprimentando o castelhano, que gabou muito
+a idéa; e entre os applausos de todos, o carro saiu, e bois e carneiros foram
+dados ao povo, pasmado fóra. Terminado o idyllio culinario, foram-se todos á
+comida, a côrte e o povo. Nos velhos tempos do rei D. Pedro essas festas eram
+uma só: o rei comia na rua entre os seus, e bailava, ao som das
+<em>longas</em>, com as raparigas da rua.</p>
+
+<p>Á noute houve <em>mômos</em>, que ficaram celebres.</p>
+
+<p> </p>
+
+<p><small class="SMALL">Entrou (el-rei) pelas portas da sala com nove bateis
+grandes, em cada um seu mantedor, e os bateis mettidos em ondas do mar feitas
+de panno de linho e pintadas de maneira que parecia agua. Com grande estrondo
+de artilheria, que troava, e trombetas, atabales, e menistres altas, que
+tangiam, e com muitas gritas e alvoroços de muitos apitos de mestres,
+contramestres e marinheiros, vestidos de brocados e sedas, com trajos de
+allemães, em bateis cheios de tochas e muitas velas doiradas accesas, com
+toldos de brocado e muitas e ricas bandeiras. </small></p>
+
+<p><small class="SMALL">E assim vinha uma nau á vela, cousa espantosa, com
+muitos homens dentro e muitas bombardas, sem ninguem vêr o artificio como
+andava, que era cousa maravilhosa. </small></p>
+
+<p><small class="SMALL">O toldo de brocado e as velas de tafetá branco e
+roxo,<span class="pn"><a name="pag_202">{pg. 202}</a></span> a cordoada de ouro e
+seda, e as ancoras doiradas. E assi a nau, como os bateis, com muitas velas de
+cêra douradas todas accesas, e as bandeiras e estandartes eram das armas
+d'el-rey e da princeza, todas de damasco e doiradas, e vinha diante do batel
+d'el-rey, que era o primeiro sobre as ondas, um muito grande e formoso cysne
+com as pennas brancas e doiradas, e apoz d'elle vinha na prôa do batel o seu
+cavalleiro em pé, armado de ricas armas, e guiado d'elle, e em nome d'el-rey
+saíu com sua falla e em joelhos deu á princesa um breve, conforme sua tenção,
+que era querel-a servir nas festas do seu casamento; e sobre conclusão de
+amores desafiou para justa de armas, com oito mantedores, a todos os que o
+contrario quizessem combater. </small></p>
+
+<p><small class="SMALL">E por rei de armas, trombetas e officiaes para isso
+ordenados, se publicou em alta voz o breve e desafio, com as condições das
+justas e grados d'ellas, assi para o que mais galante viesse á teia como para
+quem melhor justasse. E acabado, os bateis botaram pranchas fóra, e saiu el-rey
+com seus requissimos mômos, e a náu e bateis, que enchiam toda a sala, se
+saíram com grandes gritos e estrondo de artilharia, trombetas, atabales,
+charamellas e sacabuxas, que parecia que a sala tremia e queria caír em
+terra.</small></p>
+
+<p><small class="SMALL">El-Rey dançou com a princeza, e os seus mantedores com
+damas que tomaram, e logo veio o duque com fidalgos da sua casa, com outros
+requissimos mômos. E veio outro entremez muito grande, em que vinham muitos
+mômos mettidos em uma fortaleza, entre uma rocha e mata de muitas verdes
+arvores e dois grandes selvagens á porta, com os quaes um homem de armas
+pelejou e desbaratou, e cortou umas cadeas e cadeados que tinham cerradas as
+portas do castello, que logo foram abertas, e por uma ponte levadiça sairam
+muitos e mui ricos mômos; e em se abrindo as portas, saíram de dentro tantas
+perdizes vivas e outras aves, que toda a sala foi posta em revolta e cheia de
+aves que andavam voando por ella até que as tomavam. E saído este grande e
+custoso entremez, veiu outro em que vinham vinte fidalgos, todos em trajos de
+peregrinos, com bordões dourados nas mãos, e grandes ramaes de contas douradas
+ao pescoço, e seus chapeus com muitas imagens, todos com manteos que os cobriam
+até ao joelho, de brocados e por cima com remendos de veludo e setim... E assi
+vieram muitos e ricos mômos que não digo... e dançaram todos até antemanhan; e
+foi tamanha festa que, se não fôra vista de muitos, que ao presente são vivos,
+eu a não ousara escrever. </small></p>
+
+<p> </p>
+
+<p>O principe <em>perfeito</em> sabia tambem ser magnifico, e qual um Medicis,
+no momento opportuno. De facto, o casamento affagava-lhe as esperanças e
+ambições, abrindo horizontes de novas grandezas.<span class="pn"><a
+name="pag_203">{pg. 203}</a></span></p>
+
+<p>Ainda Colombo não descobrira a America, mas o futuro imperio do principe
+Affonso alargava-se já por ignotas regiões. D. João II queria dar, em troca de
+Castella, um bom dote ao herdeiro; queria-o, além de imperador da Hespanha
+inteira, e da Italia hespanhola, imperador dos Estados orientaes do
+Preste-Joham. As propostas de Colombo, apesar de recusadas, excitavam-no; e por
+terra e mar enviava expedições em busca do lendario principe. A empreza
+iniciada pelo infante D. Henrique proseguia nas mãos do rei, que tomára a peito
+descobrir os mundos remotos. O seu poder naval era já tão grande, que o Tejo
+via com pasmo o famoso galeão de mil tonneis, monstro boiando n'agua, erriçado
+de canhões. Nunca os estaleiros tinham produzido navio tão grande; nunca até
+ahi surgira a idéa que o rei teve de artilhar as caravelas, dando um alcance e
+uma mobilidade desconhecida aos trons do mar. No seu pensamento havia um
+proposito firme de o subjugar, desvendando-o até aos seus ultimos confins,
+dissipando inteiramente as trevas e mysterios das ondas. Mandou aperfeiçoar as
+bussolas, desenhar cartas maritimas para orientação das rotas; commettendo
+esses estudos a uma Junta em que entraram os seus phisicos, mestre José e
+mestre Rodrigo, ambos judeus, com o famoso allemão Behaim, discipulo de João
+Monte-Regio, que em Vienna estudára astronomia com o celebre Purbach. Foi essa
+junta que inventou as taboas da declinação do sol, permittindo aos navios
+alongarem-se das costas, rumando seguros em alto mar. Traçavam-se como que
+estradas sobre as ondas, estradas tão mysteriosas como as regiões da Mina, cuja
+navegação costeira a astucia do rei envolvia em descripções terriveis para
+afugentar rivaes&mdash;á maneira do que os phenicios tinham feito, quando<span
+class="pn"><a name="pag_204">{pg. 204}</a></span> os romanos pretendiam seguil-os
+nas suas viagens mediterraneas.<a name="tex2html73"
+href="#foot1209"><sup>[73]</sup></a> A posse dos segredos das costas e dos
+segredos das rotas enchia de confiança o animo do rei no futuro grandioso do
+seu imperio. O cabo da extrema Africa, limite por tanto tempo invencivel, tinha
+já recebido o nome de Boa-Esperança! (1486).</p>
+
+<p>Aladas esperanças eram todas essas que o rei afagava, olhando a cabeça do
+filho. N'este momento, a que podemos e devemos chamar revelador, D. João II
+teve a consciencia do famoso destino que se preparava á Hespanha: do seu
+imperio universal, da extraordinaria vastidão do seu poder politico, e da sua
+influencia moral. Symbolisava tudo isso na cabeça do filho amado; porque a
+cegueira dos homens careceu sempre das lunetas de um symbolo para vêr de certo
+modo a realidade das cousas. Os symbolos passam, as cousas ficam; e da mesma
+fórma os homens morrem e as idéas vivem eternamente. E, na sua fraqueza, o
+espirito humano amortece, desespera e cáe quando vê apagado ou destruido o
+symbolo em que para elle estava, mesquinhamente, a realidade inteira.</p>
+
+<p>O funesto acaso da queda de um cavallo, matando o principe Affonso (1491),
+foi para D. João II como o tiro do caçador, quando n'um instante precipita, ás
+voltas, o passaro que de azas pandas vogava, inebriado, no oceano do ar e da
+luz. O largo vôo do falcão estacou, e todas as illusões se apagaram deante do
+cadaver gelado do principe, casado de um anno. Essa vida que se finára, levava
+comsigo todos os sonhos doirados, todas as esperanças, todas as chimeras!</p>
+
+<p>Foi um choro universal. «El-rey por tamanha<span class="pn"><a
+name="pag_205">{pg. 205}</a></span> perda, tamanho nojo e sentimento, se trosquiou.
+E elle e a rainha se vestiram de muito baixo panno negro. E a princeza
+trosquiou os seus bellos cabellos e se vestiu de almafega e cabeça coberta de
+negro vaso.» Nas exequias, os homens, as mulheres, até as creanças, tomados de
+vertigem, arrancavam as barbas e os cabellos, davam bofetadas nas faces, batiam
+com as cabeças nas quinas da eça funeraria, e arranhavam o rosto a fazer
+sangue. O luto era geral e desvairado. Á imitação do rei e da princeza viuva,
+toda a gente andava tosquiada; o os que não podiam, por pobres, comprar o
+burel, que encarecera excessivamente, adoptaram trajos extravagantes: as
+mulheres vestiam as saias do avêsso, e os homens punham em cima de si os saccos
+de forragens e os xaireis ou cobertas das bestas de carga.</p>
+
+<p>Este incidente imprevisto da morte do principe é um dos que obrigam a
+meditar sobre o valor do acaso na historia. Tivesse-se consummado a união
+dynastica de Portugal ao resto da Hespanha já unificado, e a historia da
+Peninsula, a historia da Europa, seriam diversas.<a name="tex2html74"
+href="#foot1210"><sup>[74]</sup></a> Que papel teria tido no mundo um imperio
+exclusivamente senhor de todas as regiões descobertas? Que teria succedido, se
+Carlos V e a dynastia austriaca não viessem reinar em Hespanha, pondo nas mãos
+de um homem o imperio da Allemanha, da Italia e da Peninsula iberica? Acaso a
+união, realisada no periodo ascencional da Hespanha, se tivesse consolidado
+abafando o cristallisar da alma portugueza na éra classica e abastardando a
+semente que nos deu Camões. Unido então, Portugal ficaria como se<span
+class="pn"><a name="pag_206">{pg. 206}</a></span> nunca tivesse existido, por isso
+que não chegára ainda a formular o seu pensamento historico, nem a consummar a
+sua empreza...</p>
+
+<p>D. João II, humilhado, abatido, e rapado por dó, voltou a envergar o habito
+da coruja, para morrer (1495). Agonisante, mal podendo articular já as
+palavras, com uma voz arrastada e fanhosa que a proximidade da morte fazia
+satanica, dizia, encostando a cabeça felina sobre a mão descamada: «Persigam-me
+sem dó os filhos do Bragança!»<span class="pn"><a
+name="pag_207">{pg. 207}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1207" href="#tex2html71"><sup>[71]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) p. 137-49.</p>
+
+ <p><a name="foot1208" href="#tex2html72"><sup>[72]</sup></a> <em>V. Systema
+ dos mythos relig.</em>, p. 291.</p>
+
+ <p><a name="foot1209" href="#tex2html73"><sup>[73]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, liv. <small>IV</small>, 3.</p>
+
+ <p><a name="foot1210" href="#tex2html74"><sup>[74]</sup></a> V. <em>Theoria
+ da hist. universal</em>, nas <em>Taboas de chronol.</em>, pp.
+ <small>XXXII-III</small>.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002340">IV<br>
+Em demanda do Preste-Joham das Indias</a> </h3>
+
+<p>No verão de 1486 tinha Bartholomeu Dias partido de Lisboa, para dobrar o
+Cabo da Boa Esperança; o que de facto conseguiu, não podendo porém ir mais
+ávante, porque lh'o não consentiram as tripulações assustadas. No mesmo anno
+mandára o rei, por terra, para o Oriente, Antonio de Lisboa e Pero Montaroyo,
+que não passaram de Jerusalem, por só ahi reconhecerem que, não sabendo falar o
+arabe, não podiam intentar a viagem.</p>
+
+<p>No anno seguinte, portanto, escolhem-se dois homens que sabem arabe, para ir
+por terra descobrir o Preste-Joham. A viagem por mar, ou se abandonava por
+parecer impossivel, ou aprazava-se para mais tarde: quando houvesse informações
+mais cabaes, colhidas nas expedições por terra. Affonso de Payva e Pero da
+Covilhan partiram de Lisboa, via Napoles, com cartas de credito sobre o
+principe banqueiro, Cosme de Medicis. D'ahi os viajantes embarcam para Rhodes,
+depois para Alexandria, d'onde seguiram pelo Cairo para Tur, (Tor) na praia do
+mar Vermelho ao sopé do Sinai, como mercadores, acompanhando as caravanas. De
+Tur foram a Aden, onde se separaram: Covilhan para a India, Payva para Suâkin
+(Suaquem) na costa da Abyssinia; aprazando o encontro, á volta, no Cairo.<span
+class="pn"><a name="pag_208">{pg. 208}</a></span></p>
+
+<p>Covilhan, em Aden, embarcou para Kananor, no Malabar, e d'ahi foi a Kalikodu
+(Calecut) e a Gôa. Atravessou, depois, o oceano indico, indo parar a Sofala,
+onde colheu noticias sobre a costa oriental da Africa, e sobre a ilha da Lua
+(Madagascar). Voltou logo ao Cairo, pressuroso de enviar a Lisboa as
+importantes informações obtidas, e ahi soube da prematura morte de Payva.
+Recebidas em Lisboa as cartas do viajante, D. João II recambiou logo os arabes
+seus emissarios, com ordem de visitarem Hormuz e a costa da Persia. Executada
+essa missão, Covilhan, cujo primeiro dever era obter noticias do Preste-Joham,
+partiu para a Abyssinia. Já por esta epocha o encantado principe que, segundo
+Marco Paolo, habitava a Asia central, fôra transferido para a Nubia: e a lenda
+personalisava no obscuro Negus o extravagante monarcha, tão falado e admirado
+em tempos anteriores. Covilhan, de quem não houve outras cartas, por largos
+annos aprendêra no Oriente a verdade; mas não podia transmittil-a para
+Portugal. Preso, sem ser maltratado, favorecido e rico pelo contrario, viveu
+por trinta e tres annos na Ethiopia,<a name="tex2html75"
+href="#foot1211"><sup>[75]</sup></a> onde acabou.</p>
+
+<p>Se a sua viagem não saciava a curiosidade principal do monarcha portuguez,
+se o Preste-Joham continuava a ser um mytho, o facto é que mais valiosos
+resultados se tinham obtido. A Covilhan cabe a honra de ter marcado o
+itinerario da navegação da India, affirmando que pelo sul da Africa se chegaria
+ao Oriente. Nas cartas que enviou do Cairo, dizia que os navios que navegassem
+ao longo da costa da Guiné, chegariam, proseguindo, ao extremo<span
+class="pn"><a name="pag_209">{pg. 209}</a></span> sul do continente africano: e
+que, aproando ahi para leste, em direcção da ilha da Lua, por Sofala, se
+encontrariam no caminho da India.</p>
+
+<p>D'estas e das mais informações recebidas se compoz o programma da atrevida
+expedição do anno de 1497, cujo destino marcado era desde logo Kalikodu, ou
+Calecut, como cá lhe chamavam, e onde Covilhan estivera. Vasco da Gama foi
+escolhido por D. Manuel (já a esse tempo D. João II tinha tres annos de
+fallecido) para commandar a expedição. Era um homem ousado mas prudente, e
+reunia ás qualidades militares as de marinheiro, cousa então commum, e depois
+ainda. Succedeu o mesmo a Affonso D'Albuquerque, a D. João de Castro, e a
+muitos outros; e a esta circumstancia deve dar-se um merecido alcance. A
+separação das aptidões não vinha embaraçar os planos; e havia uma unidade no
+mando, porque o capitão era tambem o piloto.</p>
+
+<p>O maior juizo e prudencia dirigiam os preparos da expedição. Pesavam-se e
+debatiam-se todas as noticias do Covilhan, commentando-as com os conhecimentos
+anteriores. Examinavam-se os roteiros e cartas; e Bartholomeu Dias de viva voz
+contava tudo o que lhe succedera, os embaraços com que havia a luctar, as
+difficuldades a vencer. Com a sua larga experiencia dirigia a construcção dos
+navios, banindo os exageros nas dimensões, recommendando a solidez dos
+cavernames. O descobridor do Cabo devia acompanhar a expedição até S. Jorge da
+Mina, e ficar ahi no <em>resgate</em> do ouro. Eram quatro náus pequenas, para
+poderem entrar em todos os portos, visitar todas as angras, passar os baixios,
+ao longo das costas. A sua construcção ia aprimorada e forte, como jámais se
+vira: madeiras escolhidas, sans, e de exagerada grossura, pregadura<span
+class="pn"><a name="pag_210">{pg. 210}</a></span> bem atacada, demorado e cuidadoso
+calafeto. As attenções não eram menores com o equipamento: levavam tres
+<em>esquipações</em> de velas armadas e mais apparelhos, cordoalha tres vezes
+dobrada, e mantimentos, armaria e bombardas em abastança. Levavam seis padrões
+de pedra lioz com o brazão portuguez e a esphera armillar, que o rei adoptara
+por emblema, esculpidos. Um havia de ser collocado na bahia de S. Braz, outro
+na foz do Zambeze, outro em Moçambique, outro em Melinde, outro em Calecut,
+outro na ilha de Santa Maria. Iam dois capellães a bordo de cada navio; iam
+linguas ou interpretes negros, cafres e arabes; iam dez condemnados para
+qualquer sacrificio necessario, e finalmente iam cento e quarenta e oito
+soldados. Tinham-se escolhido os melhores pilotos, e o rei não consentia que se
+poupasse em cousa alguma. Vinha em pessoa examinar o estaleiro, e demorava-se a
+conversar com os mestres, ouvindo as observações de Bartholomeu, de Pedro Dias,
+e Vasco da Gama, que lhe mostrava o novo astrolabio de Behaim, tosco triangulo
+de madeira, mas muito efficaz. Pelo modelo tinham-se mandado fazer outros, mais
+pequenos, de latão.</p>
+
+<p>Tres dos navios levavam os nomes dos tres archanjos: <em>S. Gabriel</em>,
+capitanea, de 120 toneis, <em>S. Miguel</em> (antigamente <em>Berrio</em>) e
+<em>S. Raphael</em> de 100 toneis. O nome do quarto, de 200 toneis,
+desconhece-se.</p>
+
+<p>No fim de junho estavam todos concluidos, promptos e fundeados no mar, em
+frente da egreja de Restello, onde os capitães velaram a noute de 7 de julho.
+No dia seguinte, depois da missa, acompanhados pelo rei e por todo o povo da
+cidade, seguiram em procissão para a praia, cantando, com tochas nas mãos, e
+embarcaram.<span class="pn"><a name="pag_211">{pg. 211}</a></span></p>
+
+<p>Diz Camões que, n'este momento,</p>
+
+<blockquote>
+ <p>... hum velho d'aspeito venerando,<br>
+ Que ficava nas praias entre a gente,<br>
+ .....................................<br>
+ C'hum saber só d'experiencias feito,<br>
+ Taes palavras tirou do experto peito:<br>
+ ......................................<br>
+ Oh maldito o primeiro que no mundo<br>
+ Nas ondas vela poz em sêcco lenho!</p>
+</blockquote>
+
+<p>No peito de muitos havia, com effeito, uma condemnação formal por essa teima
+persistente dos monarchas em sacrificar dinheiro e gente á chimera das
+navegações.<a name="tex2html76" href="#foot1212"><sup>[76]</sup></a> A
+prudencia de experiencias feita, ronceira e fria, não acreditava no exito,
+depois de tantas tentativas falhadas. O resultado havia de votar contra ella;
+mas as palavras do poeta prophetisavam as consequencias funebres d'um imperio,
+que todos porém, os audazes e os prudentes, acclamaram quando Vasco da Gama
+voltou. Camões, assistindo já ao declinar do sol, pôde contar as fomes
+soffridas no mar, os temporaes e os naufragios, as peregrinações nos reinos
+adustos do terrivel Adamastor, e o collar de esqueletos brancos estendidos ao
+longo dos areaes das duas Africas&mdash;um rosario de tragedias funebres! Pôde
+tambem contar as ondas de protervia e crimes, d'esse mar da India, que se
+estirou até á Europa para afogar Portugal em vasa.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Com sete dias de viagem, a 15 (julho), chegam ás Canarias, onde um nevoeiro
+dispersa a pequena frota, que, entre 23 e 27, se reunia outra vez em<span
+class="pn"><a name="pag_212">{pg. 212}</a></span> Cabo-Verde, para d'ahi partir em
+3 de agosto. Tres mezes gastaram para descer até Santa Helena (nov. 7), onde
+refrescaram, porque tinham seguido ao largo, sem se internarem no golpho da
+Guiné. Desembarcaram tambem para reconhecer a altura, com o astrolabio, porque
+a bordo não lh'o consentiam os balanços dos navios; tiveram algumas escaramuças
+com os indigenas, e partiram afinal no dia 16 de novembro. A 19 estavam á vista
+do cabo Tormentoso ou da Boa-esperança, dois nomes que egualmente justificou
+d'esta vez. Tres dias alli andaram, batidos pelos temporaes. O vento e o mar
+eram tantos, que os navios mettiam as postiças debaixo de agua, e difficilmente
+se diria se andavam sobre as ondas, ou de envolta com ellas. No alto dos
+castellos, á pôpa, levavam as náus retabulos pintados, com a imagem dos santos
+do seu nome; e quando o mar lançava com estrepito os paineis, sobre o tendal,
+toda a tripulação das náus empallidecia de susto. Era um triste prognostico, e
+parecia que o favor divino os queria desamparar. Mares crueis e espantosos
+vinham pela pôpa arrebatando os bateis, arremeçando-os contra os costados das
+náus, avariando os lemes. Amainavam as velas, cortavam os tendaes, começavam a
+alijar carga ao mar... Por fim o tempo abonançou: «Nosso Senhor seja louvado,
+que nas maiores fortunas soccorre com a sua infinita misericordia!»</p>
+
+<p>Dobrado o cabo a 22, no dia 25 fundeavam na bahia de S. Braz, onde as
+calmarias os forçaram a demorar-se até 7 do mez seguinte. Navegando uma semana
+ao longo da costa austral d'Africa chegam a 15 aos ilheus-Chãos, derradeiro
+termo da viagem de Bartholomeu Dias. Começavam agora a seguir as instrucções do
+Covilhan, o piloto ausente pelas terras do Preste-Joham, a quem
+demandavam.<span class="pn"><a name="pag_213">{pg. 213}</a></span> Queriam seguir
+ao longo da costa, mas as correntes, a que haviam grande medo, lançavam-nos
+para o pélago do sul, vasto e perdido. Os marinheiros revoltam-se inutilmente:
+Vasco da Gama, como um destino, inexoravel e prudente na sua audacia, venceu as
+revoltas e as correntes.</p>
+
+<p>Saíam por fim do Mar Tenebroso, e só agora se podia considerar vencido o
+temivel cabo. As tempestades e as correntes amansaram. De dia a calma e o céu
+de azul puro: á noute, por duas ou tres vezes, no topo dos mastros, brilhava a
+luz de S. Fr. Pedro Gonçalves, o Sant'Elmo de Lisboa. Tudo eram promessas de
+bonança. Subiam aos mastros a vêr os signaes do milagre, e traziam, com
+devoção, os pingos de cera verde que o santo lá deixára. Ás vezes chegavam a
+brigar contra algum incredulo, e mais de um d'esses pagou <em>por ello</em>. Os
+marinheiros recordavam-se piamente do seu santo, que ficára em Lisboa, e de
+Xabregas, onde cada anno o levavam em procissão, vestindo o melhor que tinham,
+pondo os seus ouros, coroados de coentros e flores, com bailes, musicas, folias
+e merendas, pelas hortas do arrabalde. O bom santo protegia-os: já se não
+rebellavam, e alegres proseguiam, confiados tambem na pericia e valor do
+capitão, que os domava com intrepidez.</p>
+
+<p>A 10 de janeiro tomavam terra em Inhambane, communicando com os cafres: a 22
+tinham subido até Quilimane, onde veem visital-os a bordo <em>fidalgos</em>,
+com toucas de seda lavradas na cabeça. Pela primeira vez chegavam <em>á
+India</em>. Viam gentes diversas, e signaes d'essa civilização distante,
+demandada com tanto ardor. Emergiam do mar d'Africa e da obscura sombra do
+continente negro. Esses <em>fidalgos</em>, para quem olhavam, porém, quasi com
+amor, como irmãos, seriam os seus mais crueis inimigos.<span class="pn"><a
+name="pag_214">{pg. 214}</a></span></p>
+
+<p>Ficam um mez em Quilimane, para reparar os navios e restaurar a saude,
+porque o escrobuto começára a lavrar com força nas tripulações; e, partidos,
+chegam em 2 de março a Moçambique. Os symptomas anteriores augmentam: veem
+mais, muitos <em>fidalgos</em>: estão, decididamente, ás portas da India! vão
+afinal chegar ao imperio do Preste!</p>
+
+<p>O que observavam augmentava-lhes o desejo, avivando-lhes a curiosidade. Tudo
+era novo para elles, mas tudo avigorava as esperanças de virem a encher-se com
+o saque dessas cousas brilhantes, marfins e sedas, ouros e pedras, que luziam
+nos toucados e vestidos dos <em>fidalgos</em> de Moçambique. Em volta da
+esquadrilha fundeada vogavam os navios da terra, sem coberta nem pregaria: as
+taboas cosidas a couro, e velas de esteiras de palma.<a name="tex2html77"
+href="#foot1213"><sup>[77]</sup></a> Os mouros vinham mercadejar com elles. O
+proprio sultão em pessoa quiz cumprimentar Vasco da Gama, que o recebeu a
+bordo. Pediu-lhe pilotos que o guiassem á India, á terra do Preste-Joham;
+pediu-lhe informações ácerca do famigerado imperador. O mouro disse-lhe que o
+Preste era um poderoso principe, com muitas cidades n'aquella costa, grandes
+navios e muita copia de mercadores: foi, pelo menos, isso o que Vasco da Gama
+percebeu, e taes novas encheram-no de alegria.</p>
+
+<p>Mostrou-se depois o sultão perfido, e a esquadrilha, sem os pilotos, foi
+seguindo, costeiramente até Mombas (8 de abril), onde um acaso a salvou da
+traição que <em>os mouros</em> lhe preparavam. Elles tinham descortinado já
+perigosos concorrentes n'esses homens vindos por mar ás regiões que, desde a
+Arabia, o Egypto e a Nubia, eram até ahi imperio seu e indisputado. Salvo por
+um milagre, Vasco da<span class="pn"><a name="pag_215">{pg. 215}</a></span> Gama
+seguiu a Malinda (15), onde o <em>sultão</em> o acolheu bem; mas não confiando
+mais n'esses <em>fidalgos</em> do Zamgebar, aproveitou de um mouro que se
+deixára ficar a bordo em Moçambique, e que succedeu conhecer a rota para
+Kalikodu. Fizeram-se ao mar, e em vinte e seis dias (24 de abril a 19 de maio)
+estavam na India. Durára a viagem dez mezes e onze dias.</p>
+
+<p>Foi então que o seu espanto chegou ao auge. Tudo o que já tinham visto não
+dava uma idéa, nem distante, do que viam agora, desembarcados. O esplendor e o
+fausto natural do Oriente enchiam-nos de admiração e cubiça; e na sua
+ignorancia religiosa viam por toda a parte os christãos do Preste. Os indigenas
+adoravam a Virgem Maria; e os nossos prostravam-se tambem deante de Nossa
+Senhora na pessoa de Gauri, a deusa branca, Sakti de Shiva, o destruidor. Esta
+confusão, augmentada ainda por não se entenderem no que diziam, dava logar a
+scenas ingenuamente comicas. Alguns, duvidosos, observavam que, se os idolos
+eram diabos, a sua reza era só para Deus; e com esta reserva mental ficavam
+quietos na consciencia. Para augmentar o espanto, veiu ter com elles um
+<em>mouro</em> a falar portuguez: «Boa ventura! boa ventura! muitos rubis!
+muitas esmeraldas!»</p>
+
+<p>E nada d'isto era um sonho, eram «sem mentir, puras verdades.» Os indigenas
+abraçavam-nos, e os broncos alemtejanos, os beirões, os marinheiros do Tejo,
+ingenuos e ignorantes, abraçavam-nos tambem, na effusão de um instincto humano,
+como patricios. Dir-se-ia que se conheciam de muito, e que pouco ou nada os
+distinguia: de Lisboa á India era uma curta distancia, porque o sentimento não
+tem bitolas. Eram todos christãos, tambem tinham reis! o mundo era um só, e o
+homem o<span class="pn"><a name="pag_216">{pg. 216}</a></span> mesmo em toda a
+parte! A naturalidade ingenua com que se praticavam as maiores cousas, é a
+grande prova da força heroica dos homens da Renascença.</p>
+
+<p>Por esse tempo, na India&mdash;e com este nome designamos todas as costas e ilhas
+incluidas entre os meridianos de Suês e de Tidor, e entre 20° de latitude S. e
+30° N., theatro das campanhas portuguezas&mdash;na India, dizemos, raças estranhas
+impunham uma especie de dominio em tudo similhante ao que foi depois o dos
+portuguezes: um monopolio commercial-maritimo, e como consequencia d'elle,
+feitorias, colonias e Estados. Os povos que nós iamos despojar d'esse dominio
+eram os arabes e os ethiopes, os persas, os turkomanos e os afghans, que,
+descendo do mar Vermelho e do mar da Arabia, confundidos na onda religiosa do
+islamismo, tinham avassalado a peninsula do Indo ao Ganges, e a Africa oriental
+desde Adal até Monomotapa. Estendendo-se para o extremo Oriente iam, como nós
+fomos, até Kambodja e Tidor nas Molucas, atravez do Arakan e do Pegu, da
+peninsula de Malaka e de Birma e Shan (Sião) no continente, atravez de Sumatra
+e Borneo e pelo meio do archipelago de Sunda. A todas essas gentes chamaram os
+portuguezes <em>mouros</em>,<a name="tex2html78"
+href="#foot1214"><sup>[78]</sup></a> expressão generica já usada na Europa para
+designar os sectarios do Islam, e por isso tambem adoptada agora que, tão longe
+e atravez de tantos mares, iamos encontrar-nos de novo, frente a frente, com o
+<em>turco</em>, antagonista do <em>christão</em> em todo o mundo.</p>
+
+<p>«Al diablo que te doy! Quien te trouxe acá?» assim um mouro de Tunis, em
+Kalikodu, cumprimentava<span class="pn"><a name="pag_217">{pg. 217}</a></span> o
+portuguez; e como em Moçambique e em Mombas, os <em>mouros</em> (usaremos d'ora
+ávante d'esta expressão generica, já explicada) induzem ou obrigam o
+Samudri-rajah (Çamorim), rei ou conde&mdash;a India vivia n'um regime
+simili-feodal&mdash;de Kalikodu, a exterminar os portuguezes. Kalikodu era o emporio
+commercial da costa do Malabar, e os dominios do seu rajah formavam o chamado
+reino de Kanará.</p>
+
+<p>Facil seria, sem duvida, convencer o principe de que Vasco da Gama era um
+pirata, o seu rei uma burla; e sem o pensarem, decerto, os mouros de Kalikodu
+definiam antecipadamente o dominio portuguez, que só veiu a differençar-se
+d'uma pirataria commum, em ser uma rapina organisada por um Estado politico.
+Convencido ou violentado, o rajah manda perseguir os navegantes, que embarcam e
+se defendem (agosto 30.) Depois de uma estação, de alguns mezes na ilha de
+Anjediva, sobre a costa, Vasco da Gama decide voltar; e faz-se de vela para
+Portugal em 10 de julho de 98. Um anno depois, no mesmo dia, chegava a Lisboa.
+Na viagem, separou-se da frota Nicolau Coelho em Cabo Verde, e Vasco da Gama
+veiu pela Terceira, sepultar ahi o irmão que morrera no mar.</p>
+
+<p>O enthusiasmo foi grande em Lisboa, á chegada de Vasco da Gama: tambem D.
+Manuel tinha as suas Indias, e Portugal o seu Colombo! E o Preste-Joham, que
+noticias? E de Covilhan? Nada. O navegador conseguira vencer o Cabo e achar a
+India, mas não conseguira decifrar o enigma, que a este tempo já contava tres
+seculos de successivas indagações.</p>
+
+<p>Pouco viriam essas a importar para a historia. O essencial era a decifração
+do outro enigma, ainda maior&mdash;o do Mar Tenebroso. Pouco faltava já;<span
+class="pn"><a name="pag_218">{pg. 218}</a></span> e em vinte annos mais, não
+haveria, na rotunda superficie do globo, um canto de terra incognita, nem um
+palmo por explorar na vasta amplidão dos mares. «Debaixo das bravas ondas, por
+saber os segredos da terra e os mysterios e enganos do oceano», os portuguezes,
+com uma curiosidade heroica, tomaram em suas mãos o futuro da Europa, e do
+mundo. No anno seguinte ao da descoberta da India, Pedro Alvares Cabral, que
+para lá fôra mandado com uma imponente esquadra, não resiste á tentação da
+curiosidade. Descendo no Atlantico, em direcção de leste, uma pergunta
+incessante o persegue: que haverá para o poente? Para esse lado descobriu
+Colombo umas Indias no hemispherio norte: acaso haverá mais Indias no
+hemispherio do sul? Amarou para oeste, a indagar, a vêr... Mais uns mezes, na
+longa viagem do Oriente, que importavam? Com effeito, descobriu o Brazil;<a
+name="tex2html79" href="#foot1215"><sup>[79]</sup></a> a terra de oeste vinha,
+desde o extremo norte até ao extremo sul, estendendo-se ao longo, nos dois
+hemispherios. Só então a America se pôde dizer inteiramente descoberta.</p>
+
+<p>A noticia das novas terras encontradas impressionou pouco Lisboa; na côrte
+ardia o desejo de descobrir o Preste, o encantado Preste-Joham; de fazer com
+elle um bom tratado, para chamar a Portugal um pouco, ao menos, das tantas
+cousas boas que Vasco da Gama vira por seus olhos, e, contadas, enchiam de
+cubiça o espirito de toda a gente. Cabral fôra mandado a isso, e não a
+descobrir terras: já eram demais as Cruzes, e os nomes do repertorio
+escasseavam já para denominar ilhas e cabos, portos e bahias, costas e
+continentes. Desejava-se outra cousa, ferviam outras esperanças:<span
+class="pn"><a name="pag_219">{pg. 219}</a></span></p>
+
+<p>«Boa ventura! boa ventura! muitos rubis! muitas esmeraldas!»</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Tomarem-no por um pirata enchera de colera Vasco da Gama. Além da
+necessidade de mostrar ao Çamorim perfido o poder do rei de Portugal, era
+indispensavel desaggravar os brios do fidalgo offendido. Não podia ir d'esta
+vez, mas para outra seria a sua vingança.</p>
+
+<p>Logo que Vasco da Gama chegou, decidiu-se, pois, enviar uma grande armada á
+India; porque agora, sabido o caminho, não havia mais receios, nem motivos,
+para reduzir o numero, nem a lotação dos navios. Pedro Alvares Cabral fôra
+nomeado almirante da frota, que contava treze náus, e levava mil e duzentos
+homens.</p>
+
+<p>A construcção dos navios tinha progredido com a frequencia e extenção das
+viagens. Naus e galés, embarcações de vela e remo, tinham-se preparado melhor,
+augmentando em dimensões. No primeiro quartel do <small>XVI</small> seculo,
+porém, quando a avidez commercial não pervertia ainda a prudencia, a lotação
+ordinaria não excedia 400 toneladas.<a name="tex2html80"
+href="#foot1216"><sup>[80]</sup></a> A náu navegava á vela, jogando dos
+costados a artilheria, no convez ou sob a coberta. Á pôpa e prôa, nos
+castellos, luxuosamente ornados de lavores e douraduras, assentavam tambem
+canhões; e nos cestos de gavea havia pequenas colubrinas. De um a outro
+castello corria um baileu ou varanda volante, d'onde, nos combates, atiravam os
+mosqueteiros, e se passava á abordagem dos navios inimigos. Muitas<span
+class="pn"><a name="pag_220">{pg. 220}</a></span> náus andavam munidas de rostos ou
+esporões de aço nas prôas, para a investida. As galés, navios de remo,
+dividiam-se em <em>bastardas</em> e <em>subtis</em>: as primeiras de 27 bancos
+a tres remeiros e 7 peças grossas; as segundas de 25 bancos e 5 peças apenas. A
+artilheria grossa jogava sómente á prôa, nos costados: entre os remeiros,
+collocavam-se, porém, umas peças menores, a que se chamava <em>berços</em>.
+Havia, além d'isto, as <em>fustas</em>, galés pequenas de 16 ou 20 bancos de
+dois remos, com duas peças grossas. As galés, comtudo, tambem velejavam: e para
+isso tinham dois mastros, onde levavam latinos; as fustas um só. Havia, porém,
+galés que, por se approximarem mais da armação das náus, se diziam
+<em>bastardas</em>: armavam dois mastros, mas no do traquete tinham duas velas
+redondas, e cestos de gavea, como as náus.</p>
+
+<p>A esquadra de Pedro Alvares Cabral levantou ferro do Tejo no dia 9 de março
+do anno de 1500. Os gritos da marinhagem, para alar a um tempo os viradores nos
+cabrestantes, melopêa triste e funebre como o mar; o surdo roçar das amarras
+nos escovens; o apito dos mestres, dirigindo as manobras; as bandeiras
+multicolores soltas ao vento; e as velas meio desdobradas nos mastros, formavam
+o vivo quadro da nação que tambem partia, no anno de 500, já confessada e bem
+disposta, para essa longa viagem de pouco mais de um seculo, cheia de
+escrobutos e naufragios, ao cabo da qual a esperava um tumulo, vasto como é o
+mar, mudo como elle é nas calmas funebres dos tropicos.</p>
+
+<p>Não havia protestos agora, senão esperanças, cubiças, ambições. Não partiam
+á aventura; partiam á conquista do que tinham descoberto, e queriam trazer para
+Portugal, para casa. Ninguem duvidava do exito, e o capitão levava cartas
+solemnes do<span class="pn"><a name="pag_221">{pg. 221}</a></span> rei para o
+Çamorim. Em troca d'ellas, da sua alliança, dos presentes que lhe mandavam,
+viriam os rubis e as esmeraldas, a pimenta e a canella, monopolisada pelo
+turco, inimigo de Deus!</p>
+
+<p>Já na praia começava a levantar-se a basilica, monumento ingenuo d'essa
+religião do commercio, erguido a Jesus e á Pimenta&mdash;os dois deuses que viviam
+no céu portuguez (ou carthaginez): dois deuses piamente adorados, mas servidos
+ambos de um modo egualmente barbaro.</p>
+
+<p>O almirante acaso pensava, já no Tejo, n'esse rumo de Oeste, o de Colombo,
+que o levaria á America; e porventura acreditava pouco na existencia do
+lendario Preste-Joham, por cuja causa tantas viagens se tinham feito. Não o
+mandavam descobrir, mandavam-no conquistar; mas elle queria tambem inscrever o
+seu nome na lista dos que, durante o seculo anterior, tinham pouco a pouco
+rasgado as trevas do mar mysterioso. A sua viagem, além de iniciar o dominio
+portuguez na India, teve, com effeito, as duas consequencias desejadas. Varreu
+as duas lendas, a do Preste e a do Mar Tenebroso: descobriu o Brazil, e veiu
+dizer a D. Manuel que o supposto imperador do Oriente era um miseravel rei
+preto, infiel, acantonado nas montanhas invias da Abyssinia.</p>
+
+<p>Atraz de uma lenda, attrahido por uma voragem, Portugal descobrira os
+continentes e ilhas do Atlantico e chegára á India. Por uma illusão, consummára
+a realidade que espantava o mundo inteiro. O mundo é uma miragem, e os homens
+sombras levadas pelos sabios ventos do destino...</p>
+
+<p>Reconhecidas as terras, sulcados os mares, por occidente e por oriente,
+faltava porém ainda reunir essas duas metades do mundo conhecido, e dar-lhe a
+volta, para se saber que cabia todo, inteiro, nas<span class="pn"><a
+name="pag_222">{pg. 222}</a></span> mãos do homem: eis ahi o valor da viagem de
+Magalhães, vinte annos mais tarde.</p>
+
+<p>Não ha mais trevas no mar; consummou-se a grande conquista. Mas uma nova
+empreza se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo.</p>
+
+<p>Portugal inteiro embarca para a India na esquadra de Cabral<a
+name="tex2html81" href="#foot1217"><sup>[81]</sup></a>.<span class="pn"><a
+name="pag_223">{pg. 223}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1211" href="#tex2html75"><sup>[75]</sup></a> V. <em>Regime
+ das riquezas</em>, p. 109.</p>
+
+ <p><a name="foot1212" href="#tex2html76"><sup>[76]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ repub. romana</em>, p. <small>I, XIX</small>, <em>intr.</em></p>
+
+ <p><a name="foot1213" href="#tex2html77"><sup>[77]</sup></a> V. <em>Regime
+ das riquezas</em>, pp. 85-6.</p>
+
+ <p><a name="foot1214" href="#tex2html78"><sup>[78]</sup></a> V. nas <em>Raças
+ humanas</em>, a ethnographia do Oriente a pp. 70-85, 90-105 e 122-41 do vol.
+ <small>I</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1215" href="#tex2html79"><sup>[79]</sup></a> V. no <em>Brazil
+ e as colon. port.</em> p. 3 (2.ª ed.) a descoberta das costas brazileiras.</p>
+
+ <p><a name="foot1216" href="#tex2html80"><sup>[80]</sup></a> V. no <em>Brazil
+ e as colonias port.</em> (2.ª ed.) a composição typo de uma nau da India, a
+ p. 34 <em>nota</em>.</p>
+
+ <p><a name="foot1217" href="#tex2html81"><sup>[81]</sup></a> <em>Hist. da
+ republ. romana</em>, <small>I</small>, pp. 217-8.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h2><a name="SECTION002400"><big>LIVRO QUARTO</big><br>
+A VIAGEM DA INDIA</a> </h2>
+
+<p>&nbsp;</p>
+
+<blockquote style="margin-left: 30%;">
+ <p>Dês o primeiro dia que com a vista a experiencia propria me acabei de
+ desenganar do grande erro que até alli me trazia a fama das cousas da
+ India... me nasceu logo um desejo ardentissimo de fazer por esta via um
+ grande e extraordinario serviço.</p>
+
+ <p style="margin-left:2em;">R<small>ODRIGUES DA
+ </small>S<small>ILVEIRA</small>, <em>Reformação da milicia e governo do
+ Estado da India oriental.</em></p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002410">I<br>
+D. Francisco d'Almeida</a> </h3>
+
+<p>Em 13 de Setembro do anno de 500 chegou Cabral a Kalikodu. Não ia, como
+Vasco da Gama fôra&mdash;como descobridor; ia como embaixador, á frente de uma
+poderosa armada, para não ser tomado por pirata, mas sim pelo emissario, que
+era, do nobre monarcha portuguez, portador das suas cartas e propostas de
+alliança para o rajah de Kalikodu. Como tal foi effectivamente recebido, n'uma
+audiencia solemne. Os portuguezes, vestindo as suas melhores roupas, as suas
+armas mais bellas e polidas, pensavam impôr de ricos ao monarcha do Oriente;
+mas os representantes da pobre e forte Europa iam ficar deslumbrados com as
+magnificencias da India opulenta. O brilho das armaduras<span class="pn"><a
+name="pag_224">{pg. 224}</a></span> era offuscado pelo rutilar da pedraria «cujas
+chammas impediam a vista». O rajah vinha em um palanquim ou andor trazido aos
+hombros pelos nobres, recostado sobre almofadas de seda, entre colchas lavradas
+de fio de ouro caíndo em pregas franjadas com borlas cravejadas de pedras
+preciosas, e pannos de carbaso de linho finissimo, cuja alvura sorria ao lado
+da vermelhidão sanguinea das sedas e brocados. Corria a compasso o andor
+coberto por um pallio de seda franjado de ouro, e dentro d'este duplo sacrario
+via-se o rajah negro rutilante de pedras preciosas. Cegava olhal-o. Aos lados
+do pallio iam pagens com leques de pennas de pavão agitando o ar, e á beira do
+palanquim os que levavam as insignias da soberania: a espada e a adaga, e
+estoque de ouro, a flor de liz symbolica, o gomil de agua, e finalmente a copa
+onde o rei cuspia o betele, cujo mascar faz os dentes côr de rosa e dá «muito
+bom bafo».</p>
+
+<p>Em toda a volta e prolongando-se na cauda da procissão, charangas de musicos
+atroavam o ar com os seus tambores, com os tam-tams de prata e de ouro,
+suspensos por cordeis em bambus altos, com as trombetas enormes, umas rectas,
+outras curvas, levantadas para o ar, e que davam aos musicos o aspecto de
+elephantes com trombas douradas, cujos pavilhões se viam cravejados de rubis e
+esmeraldas. Vinha uma grande trompa de ouro levada por dois homens a cavallo!
+Os musicos, negros, iam nús, com manilhas nos braços e nas pernas, e á cinta um
+panno cobrindo as vergonhas. Nús iam os nayres e mais tropas do rajah,
+esgrimindo aos saltos em pyrrhicas singulares, parecendo atacados de furia, com
+as suas armas variadas: alfanges curvos para os golpes de cutilada, espadas
+largas e ponteagudas para as estocadas,<span class="pn"><a
+name="pag_225">{pg. 225}</a></span> espadas triangulares com o vertice nos copos e
+na ponta a base espalmada, arcos e molhos de frechas de bambu delgados, lanças
+com anneis tilintantes e guizos, correndo, saltando e gritando em brados:
+«Cucuya!» como na hora das batalhas. Mais ao largo, o povo mudo, n'uma
+impassibilidade de orientaes, olhava.</p>
+
+<p>A recepção do embaixador fez-se no <em>çarame</em> do rajah, á beira-mar,
+pavilhão de fórma oitavada erguido sobre esteios, todo rendado de varandas e
+lavores, marchetado de marfim, chapeado de prata e ouro em folhas, com
+pinaculos e corucheos que se desenhavam levemente no fundo azul do ceu&mdash;tão
+azul como o do mar onde fundeava a esquadra de Pedro Alvares Cabral. Na longa
+praia apinhavam-se as choças dos pescadores e galeotes e por entre ellas a
+multidão negra, espantada. Para o interior avistava-se a cidade, com os
+palacios e jardins do rei, dos nobres e dos ricos, docemente abrigados contra o
+sol inclemente pela sombra dos palmares e dos bosques de arvores aromaticas. No
+meio de um turbilhão de gritos de guerra, de sons de trombetas, o cortejo
+encaminhou-se para o palacio do rajah.</p>
+
+<p>Ahi o Çamorim estava sentado sobre o véllo preto, insignia da realeza, no
+seu throno de prata com braços de ouro e as espaldas cravejadas de rubis,
+diamantes e esmeraldas, no meio da sua côrte, recostado em macias almofadas de
+seda, sobre fôfos tapetes da Persia, somnolento e immovel. Negro, nú, um véo de
+linho branco descia-lhe em pregas desde o umbigo até aos joelhos, com a ponta
+caída e n'ella enfiados anneis de ouro e rubis. Da extremidade pendia uma
+perola enorme. Os dedos, braços, estavam cobertos de anneis e manilhas. Das
+orelhas caíam arrecadas de ouro<span class="pn"><a
+name="pag_226">{pg. 226}</a></span> cravejadas: á cintura trazia um cinto de ouro.
+Ao pescoço collares roliços, de ouro tambem; e duas voltas de um fio de
+perolas, grandes como avellans, que desciam até ao umbigo, suspendiam um enorme
+coração de ouro encastoando a mais bella, a maior esmeralda. Nos cabellos
+compridos e apanhados em nó no alto da cabeça havia perolas e pingentes, e a
+corôa era um deslumbramento. O thesouro inteiro de Kalikodu saíra á luz. Ao
+lado do rajah, em pé, viam-se os pagens nús com pannos de purpura, apresentando
+as espadas e adagas de copos de ouro cravejados, e junto ao soberano o da copa
+de ouro com a toalha a tiracollo, e o da boceta cravejada de brilhantes, com o
+sal delido em agua de rosas, onde molhava as folhas de betele, antes de as dar
+ao brahmane-mór, que detraz das espaldas do throno as passava religiosamente ao
+rajah, para mascar. Outros pagens tinham as toalhas, perfumadas de almiscar,
+com que nas occasiões devidas esfregavam os braços e as pernas núas do soberano
+reluzentes de manilhas cravejadas de rubis. Em torno havia castellos de
+alfaias: vasos e urnas de bronze, de prata, de ouro, e os lampadarios de metal
+amarello sempre accesos, segundo os ritos ordenavam. Os escrivães, de pé,
+tinham debaixo do braço as longas folhas de palmeira, seccas, onde se
+registravam as leis e tratados, em sulcos abertos pelos estyletes de ferro, que
+balouçavam entre os dedos. Em frente de Pedro Alvares Cabral, que, sentado, lia
+a carta de D. Manoel em arabigo, estava a credencia com os presentes que
+trazia: uma taça e duas massas de prata, quatro almofadas de brocado e dois
+pannos de Arraz, de um desenho primoroso. A côrte, de pé, escutava em torno.
+Mais longe agrupavam-se as mulheres do rajah, untadas de sandalo, e<span
+class="pn"><a name="pag_227">{pg. 227}</a></span> núas da cintura para cima, com as
+cabeças coroadas de flôres, e collares de contas de ouro, e pedraria, manilhas
+grossas nas pernas, braceletes, e anneis fulgurantes. O rajah tinha mais de
+mil, entre amantes e varredeiras, escravas e embostadoras. Para além das
+columnatas de alabastro, nos pateos inundados de sol, viam-se os elephantes
+submissos, com os seus collares de campainhas e guizos, cobertos por xaireis de
+seda recamada de ouro; viam-se os pallios e leques do cortejo do soberano; os
+truões e os fakires, rebolando-se no chão, desgrenhados, a uivar gritos. Depois
+formavam alas, ou esgrimiam com tregeitos e cutiladas, os nayres, bucellarios
+do rajah, casta singular e polyandra de quem disse o poeta: «geraes são as
+mulheres porém sómente para os da geração de seus maridos.»<a name="tex2html82"
+href="#foot1218"><sup>[82]</sup></a> Mas o que sobretudo enchia de espanto e
+cubiça os portuguezes, envergonhados da sua pobreza, eram os rios luminosos da
+pedraria que, destacando-se do fundo acobreado das pelles indigenas, os
+cegavam: «As chammas que d'elles saíam impediam a vista!» Sobre o ouro de
+Sofala, eram os rubis do Pegú, os diamantes do Dekkan e de Narsinga, as
+saphiras de Simhala (Ceylão) e os seus topazios e turquezas, jacinthos e
+amethistas. Eram as bellas esmeraldas de Babylonia!</p>
+
+<p>De parte a parte, comtudo, passada a recepção solemne, não se entendiam bem;
+e os escrivães em balde mostravam as longas folhas de palmeira escriptas,
+agitando os estyletes de ferro, a indicar as passagens das leis que julgavam
+oppôr-se ao que pensavam serem os pedidos dos portuguezes. Estes, em tregeitos,
+esforçavam-se por lhes<span class="pn"><a name="pag_228">{pg. 228}</a></span> fazer
+perceber que queriam pôr alli feitorias, para trazerem por mar, para a Europa,
+as preciosidades da India; e não cessavam de affirmar quante el-rey de Portugal
+era poderoso e forte. Apesar de não ter tantos ouros nem pedrarias tinha o
+bronze das suas peças e o ferro das suas granadas! accrescentavam com decidida
+importancia. Os escrivães iam comprehendendo, desconfiados: e os portuguezes
+desconfiavam tambem dos sorrisos do rajah. Apesar d'isto, porém, foi concedido
+o que pediam; e Cabral fundou a primeira feitoria portugueza na India, em
+Kalikodu.</p>
+
+<p>Logo os mouros vieram reclamar contra os intrusos que os despojavam: e
+favorecidos pelo indigena, caíram sobre a feitoria, trucidando os portuguezes
+que lá havia: cincoenta ao todo. Começava a historia da India. Seguiram-se logo
+as terriveis represalias do almirante. Tomou dez náus de mercadores arabes,
+passou á espada mais de 500 homens tripulantes, e, bombardeando a cidade,
+poz-lhe fogo. O incendio de Kalikodu, em 16 de dezembro do anno 1500, era a
+funebre aurora da historia oriental. Se as pedrarias tinham cegado os olhos dos
+portuguezes, agora as chammas cegavam os olhos afflictos do rajah, n'essa noute
+de cruel memoria.</p>
+
+<p>Incendiada Kalikodu, o almirante foi com a esquadra entrar em Katchi
+(Cochim) um pouco ao sul, na mesma costa de Malabar, mas já para além dos
+dominios do rajah perfido de Kalikodu. O terror da recente façanha abriu-lhe os
+braços do pequeno soberano de Katchi; e fundou-se ahi, em boa paz e amizade,
+uma feitoria, tomando o almirante, entretanto, refens, para segurança.
+Triumphára; o brahmane rajah de Katchi, revoltára-se abertamente contra o
+Çamorim seu suzerano. No<span class="pn"><a name="pag_229">{pg. 229}</a></span>
+meiado de janeiro (1501) partiu Cabral para Kananor: ahi carregou as suas náus
+de pimenta e canella, e regressou ao reino. Dos treze navios com que partira um
+anno antes, apenas tres o acompanhavam: cinco, desgarrados, voltaram por
+diversas vias, e outros cinco foram tragados pelo Mar Tenebroso. Esse inimigo
+terrivel, embora vencido, não estava domado, e a primeira expedição da India,
+este primeiro acto da tragedia de mais de um seculo, esboçava já todos os
+elementos da acção: assassinatos e incendios, morticinios e naufragios; a
+espada e a pimenta; as armas do guerreiro em uma das mãos, as balanças do
+mercador na outra; uma Carthago moderna&mdash;e, no fundo, a voragem aberta do mar,
+prompto a devorar homens, navios e riquezas; a fonte perenne do vicio,
+entornando caudaes de torpezas!</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Da curta historia anterior da India resultavam dois factos: a inimisade
+perfida do rajah de Kalikodu, e a feitoria de Katchi. Castigar terrivelmente o
+primeiro e consolidar, fortificando-a, a ultima, foi o principal motivo da
+segunda armada, que em 1502 (fevereiro) partiu de Lisboa para o Oriente, sob o
+commando de Vasco da Gama, o capitão desapiedado, o fidalgo offendido nos brios
+pelo miseravel <em>Çamorim</em>.</p>
+
+<p>A historia da viagem é um horror; e a desforra do capitão uma prova d'essa
+frieza sanguinaria, impassivel e cruel, que effectivamente existe no
+temperamento, quasi africano, do portuguez. Obliterada na sujeição ou na paz,
+rebentou sempre com o dominio e com a victoria, na guerra. Se taes sentimentos,
+vivos na alma do Gama, inspiram<span class="pn"><a
+name="pag_230">{pg. 230}</a></span> os seus actos, a sua campanha não obedece a um
+plano, nem no seu rude espirito cabem as largas vistas do estadista. Se algumas
+levava, reduziam-se a espantar a India com a crueldade das suas façanhas, e a
+dominal-a com o terror dos seus morticinios. Grande sobre as ondas, em lucta
+com os temporaes, é a imagem da nação, cuja grandeza está na coragem e na teima
+com que soube vencer o Mar Tenebroso. Um terramoto agitou o mar da India quando
+o Gama pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica do
+povo portuguez, acreditou e disse que até as proprias ondas tremiam com medo
+nosso&mdash;com medo d'elle!</p>
+
+<p>Navegando porém no mar das Indias, com toda a artilheria carregada de
+metralha, para arrasar Kalikodu, encontra o Gama uma náu de mercadores arabes
+que ia para Meka ou voltava, nas romarias constantes á santa Kaaba. Além da
+tripulação, o navio trazia duzentos e quarenta homens passageiros, com suas
+mulheres e filhos. Era isto no dia 1 de outubro de 1502, «de que me lembrarei
+toda a minha vida!» escreve o piloto ainda horrorisado, ao recordar como a náu
+foi cobardemente incendiada, com todos os que continha, e que morreram
+desesperados no fogo ou no mar. Ia a bordo um flamengo, que assim refere a
+occorrencia: «Tomámos uma náu de Meka, onde iam a bordo 300 passageiros, entre
+elles mulheres e creanças; e depois do sacarmos mais de 12:000 ducados de
+dinheiro e pelo menos 10:000 de fazenda, fizemol-a saltar com os passageiros
+que continha, por meio de polvora, no 1.º de outubro.» Satisfeito de si, o
+capitão rumou para Kalikodu. Mandou intimar ao rajah a expulsão de todos os
+mouros, que eram cinco mil familias, das mais ricas da cidade: dizendo-lhe que
+qualquer creado<span class="pn"><a name="pag_231">{pg. 231}</a></span> d'el-rey D.
+Manuel valia mais do que elle, <em>Çamorim</em>; e que seu amo tinha poder para
+fazer de cada palmeira um rei!&mdash;Como era de vêr, o rajah recusou; e o capitão
+que, ao fundear, apresára um numero consideravel de mercadores no porto, mandou
+cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados n'um barco, foram com a maré
+varar na praia, levando a resposta do Gama á recusa do afflicto principe.<a
+name="tex2html83" href="#foot1219"><sup>[83]</sup></a> Começou logo o
+bombardeio (2 de novembro). A cidade ardia outra vez; e á população em choros,
+respondiam as risadas ferozmente cynicas dos marinheiros, abrigados detraz das
+amuradas dos navios, junto ás peças que vomitavam fogo. Era uma inepcia, uma
+barbaridade e uma covardia; porque as curtas lanças e as settas dos indigenas
+não podiam medir-se com as granadas, despedidas de longe, de bordo das
+náus.<span class="pn"><a name="pag_232">{pg. 232}</a></span> O Gama, cada vez mais
+satisfeito de si, foi-se a visitar o porto amigo de Katchi; e decidiu regressar
+ao reino por Quilua, d'onde trouxe o ouro com que o rei D. Manuel fez uma
+custodia para o seu templo dos Jeronymos. Vinha contente da brava desforra que
+tomára: o <em>Çamorim</em> estava punido!</p>
+
+<p>Deixára o Gama na India uma parte da sua armada sob o commando de Vicente
+Sodré, personagem tão eminentemente celebre como o proprio almirante, cujo tio
+era. Fidalgo, este amava as façanhas brutaes e estrondosas; o outro queria mais
+á pirataria e ao roubo. Com effeito, assim que o Gama partiu da costa do
+Malabar, o de Kalikodu, invocando porventura direitos de suzerano sobre o
+visinho de Katchi, exigiu d'elle a expulsão dos portuguezes da feitoria. Mas os
+ataques repetidos ao poderoso rajah do Canará ensoberbeciam os seus vassallos,
+e fomentavam a decomposição do systema politico de Hindustan. O de Katchi
+resistiu, implorando o auxilio do Sodré, que pouco se lhe dava da feitoria, e a
+abandonou para ir ao corso das náus de Meka: era trabalho de mais proveito e
+menor risco piratear de parceria com a corôa portugueza nas costas de Adal e da
+Arabia, á embocadura do mar Vermelho.<a name="tex2html84"
+href="#foot1220"><sup>[84]</sup></a> O producto das náus de Meka pertencia,
+metade ao rei de Portugal, metade<span class="pn"><a
+name="pag_233">{pg. 233}</a></span> ás tripulações: cabendo aos soldados uma parte,
+aos marinheiros duas, outras duas aos bombardeiros, quatro aos pilotos e outro
+tanto ao mestre. Pilhavam todos, de braço dado com a Corôa.</p>
+
+<p>Vicente Sodré andava n'isto, ao mesmo tempo que Ruy Lourenço, por sua conta
+e risco, varria a costa de Zamgebar, caçava navios e cobrava tributos aos
+sultões.</p>
+
+<p>O dominio portuguez adquiria logo de começo o caracter duplo que jámais
+perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularisação e de ordem.
+Era no mar uma anarchia de roubos, na terra uma serie de depredações
+sanguinarias. Vasco da Gama ensinára o modo de imperar com o fogo e o sangue;
+Sodré indicava o modo de ceifar no mar, pela abordagem, as náus de Meka. A
+pirataria e o saque foram os dois fundamentos do dominio portuguez, cujo nervo
+eram os canhões, cuja alma era a Pimenta.</p>
+
+<p>Na artilheria, effectivamente, estava o segredo do poder dos invasores da
+India. Ao tempo em que o Gama voltava da sua segunda viagem, partia de Lisboa
+uma terceira esquadra (1503, abril) com Affonso de Albuquerque e Duarte Pacheco
+a bordo. Foram a Katchi acudir ao rajah, na sua guerra com o de Kalikodu, e
+construiram a primeira fortaleza na India. Albuquerque voltou ao reino; Pacheco
+ficou em Katchi com as tropas e navios preparados para o ataque. O
+heroe&mdash;porque este bateu-se como uma féra, no seu covil de Kambalaan, nobre,
+desinteressada e bravamente&mdash;desde logo disse que <em>toda a festa havia de ser
+de artilheria</em>. De que serviam com effeito as armas brancas e de arremeço,
+principal equipamento dos indigenas, que mal sabiam usar dos mosquetes e
+bombardas, perante o vomitar distante da metralha? Isto explica<span
+class="pn"><a name="pag_234">{pg. 234}</a></span> a possibilidade da resistencia
+dos setenta homens de Pacheco, brandamente auxiliados pelos naturaes, contra os
+cincoenta mil que se dão ao exercito do Samudri-rajah de Kalikodu. As surriadas
+da mosquetaria auxiliavam decerto, mas a defeza decisiva consistia nas ondas de
+metralha, que n'um instante varriam as jangadas cobertas de gente que vinham
+por mar, e as columnas cerradas dos nayres armados de settas e lanças
+investindo por terra. Mas nem por si só a artilheria seria capaz de resistir á
+onda massiça das columnas inimigas, se a coragem, a rapidez fulminante das
+marchas, a ubiquidade&mdash;póde dizer-se assim&mdash;do primeiro heroe soldado do
+Oriente não animasse os poderosos meios de defeza. Quatro mezes durou o assedio
+de Katchi, que terminou pela derrota do Samudri-rajah.</p>
+
+<p>A esquadra de Lopo Soares de Albergaria trouxe para o reino (1505) Duarte
+Pacheco: um homem simples que, por voltar carregado de feridas, mas leve de
+dinheiro e diamantes, foi parar á capitania de S. Jorge da Mina, para de lá vir
+em ferros por <em>capitulos</em> que d'elle deram; para jazer no carcere por
+muito tempo, e acabar esquecido e pobre. A sorte d'este heroe, diz Goes, «foi
+de calidade que se pode d'elle tirar exemplo para os homens se guardarem dos
+revezes dos reis e principes e da pouca lembrança que muitas vezes tem
+d'aquelles a que são em obrigação.» Pacheco voltou, pois, do Oriente, e na
+India ficou, por capitão do mar, Telles Barreto com a missão de <em>correr as
+náus de Meca</em>. A armada trazia para o reino, a bordo, Pacheco&mdash;um
+infeliz!&mdash;e uma carga abundante de especiarias e cousas ricas. A côrte, o rei,
+em Lisboa, quizeram muito mais ás segundas, do que ao primeiro.<span
+class="pn"><a name="pag_235">{pg. 235}</a></span></p>
+
+<p>Entretanto a este devia D. Manuel a consolidação do seu imperio oriental,
+incipiente ainda. Pacheco demonstrára aos naturaes e aos arabes que os
+portuguezes não eram apenas piratas; e podiam fazer mais do que bombardear
+impunemente uma cidade desarmada, ou tomar náus de indefesos mercadores e
+romeiros. A façanha de Katchi fôra o baptismo de sangue do novo imperio; e o
+baluarte, de pé, atestava a força dos novos dominadores.</p>
+
+<p>Mas já do principio, tambem, surgia a ultima das pragas da India: a inveja,
+a sizania, os odios, a maledicencia, com que, uns aos outros, os homens do
+ultramar se abocanhavam na côrte; e a inepcia do governo do rei, incapaz de
+pesar o valor das palavras, de medir o alcance das accusações, e de ser justo e
+sabio. A lisonja reinava, e sobre ella o favoritismo.</p>
+
+<p>Cinco annos tinham decorrido depois da viagem de Cabral; havia já uma
+fortaleza em Katchi; estava batido o de Kalikodu; os navios portuguezes
+pirateavam em liberdade no mar da India; e numerosas náus de Meka iam sendo
+apresadas. Esboçava-se o futuro imperio, anarchicamente, mas já por fórma tão
+decisiva, que era mistér organisal-o, dar-lhe uma lei e uma direcção.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>D. Francisco de Almeida foi o homem escolhido para governador da India,
+constituida em vice-reino. Das tres successivas phisionomias que o imperio
+portuguez no Oriente apresenta, é elle quem lhe imprime a primeira; dos tres
+vice-reis mais notaveis, é elle o primeiro tambem. Sem o heroismo antigo de
+Albuquerque, um Annibal;<a name="tex2html85"
+href="#foot1221"><sup>[85]</sup></a> sem a<span class="pn"><a
+name="pag_236">{pg. 236}</a></span> sympathica pureza ingenua de um Castro,
+imitador fiel dos typos de Plutarcho; Francisco de Almeida, valente como
+soldado, habil como almirante, é sobretudo um estadista.</p>
+
+<p>Pondo de parte o merecimento absoluto d'essa politica commercial, fecundo
+systema de explorar uma região inteira, fielmente executado mais tarde e com
+tamanho exito pelos hollandezes, o facto é que, para conseguir o fim desejado
+de roubar aos arabes o imperio, e a venezianos e arabes o commercio do Oriente,
+a politica de Francisco de Almeida, sem grandeza, é lucida, perspicaz e forte.
+O governo da India formou tres grandes homens: Castro, que se póde dizer um
+santo; Albuquerque, a quem melhor cabe o nome de heroe: Almeida, que é um sabio
+administrador, um feitor intelligente.</p>
+
+<p>No seu caminho para a India, o primeiro viso-rei foi ajustar as contas
+antigas com o sultão de Mombas, e arrazou-lhe a cidade (1505, agosto 14.)
+Levava tambem ordens para construir fortalezas em Quilua, Kananor, Anjediva,
+além da de Katchi, que seria augmentada e reparada, depois dos damnos soffridos
+no anno anterior. Não iam então as ambições do governo, no reino, mais além
+d'esse pedaço da costa oriental da Africa, com as estações fronteiras na costa
+do Malabar. Entretanto no pensamento do viso-rei, maduro pela observação local
+e pela prova de uma primeira guerra maritima com que o impenitente rajah de
+Kalikodu o recebera, formulava-se já todo o seu plano de dominio. Não duvidou
+expol-o a D. Manuel na carta que lhe escreveu, e que é um dos documentos mais
+importantes da historia portugueza no Oriente.</p>
+
+<p>Toda a nossa força seja no mar, dizia; desistamos de nos apropriar da terra.
+As tradições antigas<span class="pn"><a name="pag_237">{pg. 237}</a></span> de
+conquista, o imperio sobre reinos tão distantes, não convém.<a
+name="tex2html86" href="#foot1222"><sup>[86]</sup></a> Destruamos estas gentes
+novas (os arabes, afghans, ethiopes, turkomanos) e assentemos as velhas e
+naturaes d'esta terra e costa: depois iremos mais longe. Com as nossas
+esquadras teremos seguro o mar e protegidos os indigenas, em cujo nome
+reinaremos de facto sobre a India; e se o que queremos são os productos d'ella,
+o nosso imperio maritimo assegurará o monopolio portuguez, contra o turco e o
+veneziano. Imponhamos pesados tributos, exageremos o preço das licenças
+(<em>cartazes</em>) para as náus dos mouros navegarem nos mares da India e isso
+as expulsará: as nossas armadas darão corso aos contrabandos. Não é mal decerto
+que tenhamos algumas fortalezas ao longo das costas, mas sómente para proteger
+as feitorias de um golpe de mão; porque a verdadeira segurança d'ellas estará
+na amisade dos rajahs indigenas, por nós collocados nos seus thronos, por
+nossas armadas apoiados e defendidos. Substituamo-nos, pura e simplesmente, ao
+turco; e abandonemos a idéa de conquistas, para não padecermos das molestias de
+Alexandre. O que até agora se tem feito é uma anarchia e um esboço apenas; um
+systema de matanças, de piratarias e desordens, a que é mistér pôr cobro.&mdash;A
+primeira condição de um imperio seguro é um pensamento definido, e tal era o do
+viso-rei.</p>
+
+<p>As difficuldades appareciam-lhe tanto mais fortes, quanto «as guerras
+passadas eram com bestas, agora as temos com venezianos e turcos do Soldão».
+Com effeito, a antiga impunidade, de que os nossos gosavam á sombra da
+artilheria, desapparecia, desde que o veneziano e o do Egypto,<span
+class="pn"><a name="pag_238">{pg. 238}</a></span> vendo em perigo o seu poder no
+Oriente, tinham lançado ao mar Vermelho uma esquadra poderosa, e tão bem
+artilhada como as nossas. A guerra tomava um caracter novo; e os portuguezes já
+não se encontravam apenas a braços com as armas brancas do indigena. Apparecera
+a polvora do lado dos inimigos; e a esta grave e nova phase das cousas veiu
+juntar-se, no animo do viso-rei, o resultado cruel da temeridade do filho, que
+em Tchala (Chaul) morrera batido pela esquadra egypcia: a armada de
+<em>Mirocem, capitão-mór do Soldão do Gram Cairo e de Babylonia</em>&mdash;como se
+dizia no tempo.</p>
+
+<p>Confirmando a doutrina com o exemplo, esporeado pelo desejo de vingar a
+morte do filho,<a name="tex2html87" href="#foot1223"><sup>[87]</sup></a> e pela
+necessidade de destruir essa armada que<span class="pn"><a
+name="pag_239">{pg. 239}</a></span> ameaçava matar á nascença o dominio portuguez
+na India.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>... vem o pae com animo estupendo,<br>
+ Trazendo furia e magoa por antolhos.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Descendo pelo Mar Vermelho, a esquadra egypcia viera deitar ferro em Diu, na
+costa do Gujerât (Guzarate), impondo ao indio a obrigação de ser defendido.
+Entre <em>mouros</em> e portuguezes, que uns a outros disputavam a presa do
+commercio do Oriente, os rajahs, perseguidos pela protecção de ambos, não
+sabiam as mais das vezes por quem se decidir, incertos do lado para onde a
+victoria final penderia. Os vencedores foram sempre os fieis alliados de todos
+os fracos. Tal era a situação do indio de Diu. Não teve remedio senão
+acompanhar os rumes, e aprisionar os portuguezes da esquadra batida de Lourenço
+d'Almeida, guardando-os como penhor, e base de argumentos e desculpas para com
+o viso-rei&mdash;caso este vencesse com a nova armada em que vinha.</p>
+
+<p>Effectivamente D. Francisco d'Almeida subia ao longo da costa, deixando apoz
+si o rasto de cinzas e sangue, que por toda a parte annunciava a passagem dos
+portuguezes. As faulhas do incendio de Deval (Dabul) e os lamentos da população
+dispersa<span class="pn"><a name="pag_240">{pg. 240}</a></span> chegavam até á ria
+onde fundeavam as esquadras do egypcio e do de Diu, já engrossadas com as
+trezentas fustas que o de Kalikodu enviára tambem, para vêr se conseguia
+exterminar por uma vez os incommodos visitantes.</p>
+
+<p>O egypcio, apesar de victorioso, temia o viso-rei; e fundeada a esquadra,
+dispozera que picassem as amarras os navios assim que fossem abalroados, dando
+á costa, e arrastando comsigo os portuguezes, sobre os quaes as lanchas e
+fustas dos indios cairiam então desapiedadamente. Mas o viso-rei, percebendo o
+ardil, mandou preparar as ancoras á pôpa, e os navios inimigos foram sosinhos
+varar na praia. Era 3 de fevereiro (1509) festa de S. Braz, pelo meio dia. A
+viração do mar soprava fresca pela pôpa dos navios portuguezes, quando a
+<em>capitaina</em> desfraldou o guião azul á prôa e, toda empavezada, no meio
+dos gritos de «Senhor Deus; misericordia! Santiago!» ao som das charangas de
+trombetas, soltou a primeira banda de artilheria. Um clamor immenso de vozes,
+de trompas, de tiros lhe respondeu, e a batalha generalisou-se com artilheria e
+arma branca, á abordagem. A confusão de gentes que alli combatiam era
+inextricavel; e os pavilhões da Cruz e do Crescente, erguidos nos mastros dos
+navios, abrigavam os sentimentos mais extravagantes, as crenças mais
+disparatadas. É que não se combatia, nem pela fé, nem pela patria: disputava-se
+com furor o saque da India; e a cubiça torna irmãos os homens de todas as fés,
+os filhos de todas as raças. Havia allemães e francezes por bombardeiros a
+bordo das náus portuguezas; havia indios, brahmanes e até <em>mouros</em>.
+Havia, do lado opposto, na confusão dos navios, desde o nubio até ao arabe,
+desde o ethiope até ao afghan; havia musulmanos de toda a casta, persas,<span
+class="pn"><a name="pag_241">{pg. 241}</a></span> e <em>rumes</em> do
+Egypto&mdash;mercenarios de todas as partes, a que se dava este nome generico; havia
+ao lado da multidão dos infieis, o veneziano, renegado ou catholico, mas
+sobretudo mercador, que por ordem da sua republica vinha como artilheiro
+defender, no mar da India, os interesses solidarios dos seus socios no
+commercio oriental. Em volta da população confusa da esquadra dos
+<em>rumes</em>, apinhava-se em seus juncos a massa obscura dos indios, de Diu
+no Gujerât, de Kalikodu no Kanará.</p>
+
+<p>Os navios portuguezes eram poucos, mas solidos, e ainda bem construidos e
+artilhados; as suas guarnições não excediam mil homens. Eram náus
+principalmente; mas tambem galés, <em>bastardas</em> e <em>subtis</em>, e
+<em>fustas</em>&mdash;os <em>avisos</em> d'essas antigas esquadras. As náus
+vomitavam fogo das amuradas. Nos castellos de pôpa e prôa fusilava a artilharia
+menor, baptisada com os nomes da monteria feodal, <em>aguias</em>,
+<em>sacres</em> e <em>falcões</em>, <em>leões</em> e <em>serpes</em>,
+<em>pedreiras</em> que arrojavam balas de granito, <em>berços</em>,
+<em>camellos</em>, <em>colubrinas</em> e <em>esperas</em>. Nos bailéos, de pôpa
+á prôa, os mosqueteiros despediam continuas surriadas de balas; e as xaretas de
+corda, presas nas amuradas, defendiam as náus das abordagens dos juncos e
+galeotas dos indios. A bordo das galés, o capitão sobre o chapiteu&mdash;Jesus! S.
+Thomé! Ave-Maria!&mdash;excitava os soldados que, de espada e rodella, se juntavam á
+prôa para a abordagem dos navios inimigos, ou da pôpa, a tiros, caçavam mouros.
+As enxarcias appareciam crivadas de settas. Da prôa tambem, o castello das
+galés vomitava fogo; e o ligeiro navio, caíndo perpendicularmente sobre o
+contrario, rasgava-lhe o ventre com o esporão, despedaçava-lhe os remos,
+crivava-o de balas. Sentados os forçados, nús e negros, acorrentados aos
+bancos, remavam agil e poderosamente; obedecendo<span class="pn"><a
+name="pag_242">{pg. 242}</a></span> aos gritos do comitre que, de espada em punho,
+corria na coxia, entre as platéas dos bancos, distribuindo cutiladas. Sob a
+coberta, junto ao paiol defendido por colchas e cobertores escorrendo agua, o
+capitão-do-fogo distribuia a polvora, tirando-a ás gamellas dos caldeirões. E
+os bombardeiros, com os murrões e bota-fogos a bom resguardo, obedeciam á ordem
+de atirar. Os bailéus, d'onde a taifa dos soldados se lançava ás abordagens,
+defendiam com a mosqueteria os remeiros; e as velas estavam carregadas nos
+mastros, por causa dos incendios. O fogo punha um elemento novo n'este antigo
+modo de batalhar no mar.<a name="tex2html88"
+href="#foot1224"><sup>[88]</sup></a> No meio do enxame das galés e caravelas,<a
+name="tex2html89" href="#foot1225"><sup>[89]</sup></a> correndo á caça dos
+paráos fugitivos, os navios de vela, de typos novos, náus e galeões, urcas e
+carracas, eram como fortalezas fluctuantes, vomitando lume, estrondos, fumo,
+naufragios e morte.</p>
+
+<p>Tingiram-se mais uma vez de vermelho as aguas do mar das Indias; morreram
+innumeros; boiavam feridos, pedindo misericordia e recebendo tiros: e<span
+class="pn"><a name="pag_243">{pg. 243}</a></span> por fim, depois de todos os
+episodios e scenas proprias d'estas tragedias, a victoria foi pelo vice-rei que
+destruiu rumes e indios. Esta batalha naval tinha uma importancia superior
+ainda á das victorias de Duarte Pacheco em Katchi: porque os indios, meditando
+e observando, reconheciam que a phalange portugueza não era só invencivel para
+elles: era-o tambem para os rumes do Egypto, e para a artilharia de
+Veneza...</p>
+
+<p>O de Diu, que estivera sempre indeciso, ao vêr o resultado da batalha, veiu
+pressuroso, desculpar-se, entregar logo os prisioneiros da empreza anterior.
+Guardára-os para os salvar das garras ferozes dos rumes, a quem desejava todo o
+mal, sem lhes ter podido resistir. Mandava-os carregados de presentes e
+parabens, por tão grande victoria, que o libertava da odiosa tyrannia dos
+rumes.</p>
+
+<p>No chapiteu da sua náu, o almirante e vice-rei contemplava a scena de
+carnagem, agora muda, e os destroços que boiavam com os cadaveres no mar tinto
+em sangue; e estava glorioso e contente no meio dos seus, que contavam com
+verbosidade os episodios, o que tinham feito, como se tinham saído, cada qual
+de seu lance... quando chegaram á borda, n'uma almadia, os prisioneiros forros,
+gritando alegres, a pedir que os recebessem. O vice-rei lembrou-se então que
+lhe faltava o filho, e «se foi assentar na tolda com um lenço na mão, que não
+podia estancar as lagrimas que lhe corriam!» Acudiram todos a consolal-o; e
+elle, tomando-lhe os animos, ergueu-se, e disse-lhes enxugando os olhos, e
+tratando-os por filhos, que isso já passára e traspassára a sua alma, que se
+alegrassem todos agora com a boa vingança que Nosso Senhor por sua misericordia
+lhes dava!</p>
+
+<p>E regressando, conformado com a sua sorte, ao<span class="pn"><a
+name="pag_244">{pg. 244}</a></span> passar em frente de Kananor, salvou á terra
+para celebrar a victoria; mas, para acabar de vingar a morte do filho, mandou
+amarrar prisioneiros ás boccas das bombardas, e as cabeças e membros
+despedaçados dos infelizes iam cair na cidade como pelouros... A morte do filho
+transtornára o seu lucido espirito, mudando as suas opiniões antigas de
+estadista n'um furor carniceiro, attestado pela devastação da costa do Gujerât.
+Cedêra tambem ás intrigas e maledicencias dos capitães que tinham vindo de
+Hormuz, fugindo ao mando terrivel de Albuquerque, atemorisados pela loucura das
+suas emprezas tytanicas. Bulhavam, o governador que acabava o praso do governo,
+e Albuquerque já nomeado de Lisboa para lhe succeder; e á côrte haviam chegado
+noticias perfidas de excessos commettidos pelo sabio vice-rei. Em paga dos seus
+trabalhos esperava-o a masmorra de Duarte Pacheco; porém, na viagem para o
+reino, deu á costa da Cafraria, o foi morto pelos negros ás pedradas e
+zagunchadas.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>O seu plano de governo, por ser sabio, era chimerico, pois que a India era
+uma loucura. Só homens de genio, como Albuquerque, poderiam tornar grande uma
+empreza condemnada; só, como Castro, um santo podia resalvar o brio portuguez
+da nodoa de uma ignominia formal.</p>
+
+<p>Para que o nosso dominio fosse maritimo e mercantil apenas, era necessario
+que essas tradições estivessem na alma portugueza, como tinham estado, n'outras
+edades, na alma de Carthago, e como agora estavam na de Veneza. Em Portugal, o
+espirito patrio fôra formado pela religião e pela cavallaria; e exigir dos
+soldados d'Africa que não<span class="pn"><a name="pag_245">{pg. 245}</a></span>
+desembarcassem dos navios, convencel-os de que o verdadeiro modo de conquistar
+fosse prescindir do governo, era querer uma cousa impossivel. Alargar, ao
+contrario, os dominios portuguezes, avassallar territorios, fazer conquistas, e
+crear um imperio á antiga, como o de Alexandre e o dos romanos, era o
+pensamento commum&mdash;naturalmente deduzido dos antecedentes militares da nação, e
+agora fomentado de um modo especial pela cultura classica, enlevo de todos os
+bons espiritos da Europa. A idéa de que Portugal era uma Roma preoccupava os
+reis e os escriptores, que se fatigavam a procurar origens e a indicar
+analogias, de certo verdadeiras. Albuquerque fez vivo em si um tal pensamento,
+e viu-se o Scipião d'essa Roma<a name="tex2html90"
+href="#foot1226"><sup>[90]</sup></a>, ou antes o Alexandre da nova Grecia.</p>
+
+<p>Além dos motivos intimos que tornavam inacceitavel a politica commercial e
+maritima do primeiro vice-rei da India, havia motivos mais praticos. Uma das
+suas justas exigencias era a da prohibição do commercio aos soldados,
+magistrados e capitães do Oriente. Com effeito, o dominio, tal como elle o
+concebia, não era um saque: era uma protecção armada a um commercio, franco por
+um lado, monopolio do Estado, ou apanagio da corôa, pelo outro. Os capitães e
+governadores seriam simultaneamente agentes commerciaes de S. A., excelso
+mercador da Pimenta. Isto exigia uma fleugma de que só os hollandezes foram
+capazes, e ainda assim á custa de salarios que supprimem as tentações.</p>
+
+<p>Desde que o rei era o primeiro negociante, porque não seria o vice-rei o
+segundo, os capitães das fortalezas e das armadas os terceiros, os
+soldados<span class="pn"><a name="pag_246">{pg. 246}</a></span> os derradeiros? Só
+isto era, evidentemente, logico; e, apesar de todas as confusões, quem bem
+observa, descobre sempre que a historia obedece á logica. Ninguem distinguia
+bem, na era de 500, entre a pessoa individual do rei e a pessoa abstracta ou
+symbolica do monarcha. Não se separavam Rei e Estado; e só com esta perspicacia
+moderna poderia convencer-se o rude soldado da India de que o commercio, bom
+para o rei, era mau para elle; de que uma virtude podia ser um vicio, por
+mudarem as condições. Além d'isto, os portuguezes lançavam-se, famintos, ao
+banquete do Oriente, como seculos antes os povos do norte, ao banquete da
+Gallia, da India, da Hespanha<a name="tex2html91"
+href="#foot1227"><sup>[91]</sup></a>. Ninguem seria capaz de lhes arrancar dos
+dentes essas carnes palpitantes, que devoravam com ancia; e eram inevitaveis as
+consequencias funestas, que D. Francisco d'Almeida previa sabiamente.</p>
+
+<p>Fleugmatico e pontual no cumprimento dos seus deveres duplos de capitão e
+caixeiro, o vice-rei, ao mesmo tempo que expunha para Lisboa os seus planos de
+governo, mandava os seus relatorios commerciaes, como um correspondente ao seu
+patrão de Genova ou de Veneza. O vice-rei estudára como geographo o Oriente; e
+para fundamentar o seu plano de imperio maritimo dizia, com Barros, que a India
+«tem entradas e saídas de que seu commercio vive, e que são como o corpo
+animado, que, se lhe tiram a entrada e saída das cousas que o sustentam, não
+tem mais vida.» O principal estado consiste na navegação, escrevia o vice-rei;
+só com ella se governará no mar Vermelho e no golpho persico, essas duas
+correntes da<span class="pn"><a name="pag_247">{pg. 247}</a></span> exportação da
+India; só com ella na peninsula de Malaka, que é a transição da India para o
+extremo Oriente; só com ella manteremos o privilegio da passagem do cabo da
+Boa-Esperança, caminho que descobrimos para a Europa. Albuquerque em Hormuz, em
+Goa, em Malaka, assentou na terra firme os limites do imperio que para o seu
+antecessor devia vogar fluctuante sobre as ondas.</p>
+
+<p>Estadista e geographo, D. Francisco d'Almeida era ao mesmo tempo um mercador
+cuidadoso e até habil. Dava ao rei minuciosas informações dos generos, preços e
+pezos. «E o lacre que V. A. diz lhe mande, será maravilha haver-se, porque
+estas náus (portadoras de cartas) partem cedo, e as náus que o trazem do Pegú e
+Martamão (Martaban) veem tarde. Espero por uma boa somma d'elle, porque o tenho
+mandado trazer... E assi V. A. me manda que a pimenta vá limpa e secca, e que o
+pezo se faça com nossas balanças e pezos... e dá-se tal aviamento que, com duas
+balanças, té vespora pesaram mil quintaes. Se os navios não chegassem tão
+avariados, em vinte dias carregariam e partiriam. O baar de Cochim (Katchi) tem
+tres quintaes e trinta arrateis de pezo velho, e custa o quintal mil e
+quinhentos réis e meio.&mdash;Mandei noticiar com pregões que todos trouxessem
+pimenta, e que logo se lhes pagaria á vista: é o meio de bater os mouros, que
+são regatões e compram fiado. Acodem os gentios com pimenta, e levam o cobre
+muito alegres.&mdash;Quanto á pimenta e drogas que vão ao Levante, são de Malaca,
+Sumatra e Diu, onde nasce muita pimenta longa e redonda, e muito bem sei por
+onde passa e em que tempo: falta-me o principal.&mdash;O aljofar e perolas que me
+manda que lhe envie não os posso haver, que os ha em Ceylão e Carle (?); os
+sinabafos,<span class="pn"><a name="pag_248">{pg. 248}</a></span> porcellanas e
+mais cousas de jaez são de mais longe. As escravas que quer, tomam-se depressa:
+que as gentias d'esta terra são pretas e mancebas do mundo, como chegam a dez
+annos.&mdash;Tem cobre aqui para cinco annos, vermelhão sem numero, chumbo e
+azougue, pannos de lan a apodrecer, escarlatas, espelhos, oculos, chapéus, e
+sellas ginetas, que é mui certa mercadoria para cá.» E continúa assim,
+misturando toda a especie de mercadoria, desde as escravas mancebas do mundo,
+até ás perolas e aljofar.&mdash;Porque não manda S. A. papel? Seria um excellente
+negocio.»</p>
+
+<p>Eis ahi o motivo intimo, o principio fundamental, o cuidado superior do rei
+e dos seus governadores na India.<a name="tex2html92"
+href="#foot1228"><sup>[92]</sup></a> D. Manuel perdoava tudo, os crimes e os
+roubos, as carnificinas e as brutalidades, os incendios e as piratarias, com
+tanto que lhe mandassem o que elle sobretudo ambicionava: curiosidades,
+primores e riquezas para encher os seus paços de Lisboa, e deslumbrar o papa em
+Roma com a sua magnifica embaixada. «Manda pimenta e deita-te a dormir», dizia
+mais tarde, da côrte para a India, Tristão da Cunha, ao filho Nuno, governador.
+O saque do Oriente&mdash;este é o nome que melhor convém ao nosso dominio&mdash;ia
+ordenado de Lisboa.<span class="pn"><a name="pag_249">{pg. 249}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1218" href="#tex2html82"><sup>[82]</sup></a> V. <em>Quadro
+ das instit. primit.</em>, pp. 264-7.</p>
+
+ <p><a name="foot1219" href="#tex2html83"><sup>[83]</sup></a> «Então mandou
+ aos bateis que fossem roubar os pageres (barcos) que eram dezeseis e as duas
+ náos, em que todos acharam arroz e muitas jarras de manteiga e muitos fardos
+ de roupa. Então tudo isto recolheram aos navios e a gente toda das náos
+ grandes, e mandou que recolhessem o arroz que quizessem, que tomaram quatro
+ pageres, que vasaram, que não quizeram mais. Então o Capitão-mór mandou a
+ toda a gente cortar as mãos e orelhas e narizes e tudo isto metter em um
+ pager, em o qual mandou metter o frade tambem sem orelhas, nem narizes, nem
+ mãos, que lhas mandou atar ao pescoço com uma ola (folha, carta) para el-rey
+ em que lhe dizia que mandasse fazer caril para comer do que lhe levava o seu
+ <em>frade</em>.</p>
+
+ <p>E a todos os negros, assim justiçados, mandou atar os pés, porque não
+ tinham mãos para se desatarem, e porque se não desatassem com os dentes com
+ páos lhes mandou dar n'elles que nas bocas lh'os metteram por dentro, e foram
+ assim carregados uns sobre os outros embrulhados no sangue que d'elles corria
+ e mandou sobre elles deitar esteiras e ola secca e lhe mandou dar as vélas
+ para terra com o fogo posto, que eram mais de 800 mouros, e o pager do
+ <em>frade</em> com todas as mãos e orelhas tambem á véla para terra sem fogo,
+ com que foram logo ter a terra, onde acudiu muita gente a apagar o fogo e
+ tirar os que acharam vivos com que fizeram seus grandes prantos.» Gaspar
+ Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, p. 302.</p>
+
+ <p><a name="foot1220" href="#tex2html84"><sup>[84]</sup></a> «... em que no
+ mar tomaram náos de Cambaya e Calecut que iam para Meka, a que roubaram o
+ melhor que acharam de que se carregaram os navios e caravellas quanto poderam
+ e mormente roupas de muito preço e muitos mantimentos e mouros para dar ás
+ bombas, e não se occuparam em carregar os navios de pimenta e drogas que
+ levavam as náos de Calecut que a todas, umas e outras, poseram fogo e
+ queimaram com toda a gente sem a nenhum darem vida, mas Vicente Sodré mandou
+ que os Mouros que tinham tomado para a bomba todos os tornaram com os outros
+ e todos forão mortos.» Gaspar Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>, pp.
+ 365-6.</p>
+
+ <p><a name="foot1221" href="#tex2html85"><sup>[85]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 215-80.</p>
+
+ <p><a name="foot1222" href="#tex2html86"><sup>[86]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 211 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1223" href="#tex2html87"><sup>[87]</sup></a> «O Viso rey
+ estava assentado em uma janella que vinha sobre a praya com o Capitão e com
+ outros fidalgos, e vendo o geito da caravella e o capitão d'ella d'arte que
+ desembarcava, se tirou da janella e se assentou dentro em uma cadeira e poz o
+ braço na cadeira e sobre a mão encostou a face direita e disse:</p>
+
+ <p>&mdash;Esta caravella me traz a nova que eu tenho no coração; pois que as náos
+ de Cochim vieram sem meu filho, é que elle é morto.</p>
+
+ <p>Ao que o Camacho entrou com grande tristeza no rosto, o qual antes que
+ fallasse, o Viso rey lhe fallou dizendo:</p>
+
+ <p>&mdash;Camacho, ainda que meu filho seja morto, porque não salvaste esta
+ fortaleza: pois não é do pae do morto? Que meu filho não era mais que um só
+ homem... Nem me fica outro.</p>
+
+ <p>O Camacho não lhe respondeu, mas poz os joelhos no chão e com muitas
+ lagrimas disse:</p>
+
+ <p>&mdash;Senhor, Nossa Senhora perdeu a seu bento filho posto na Cruz entre dois
+ ladrões, e vós perdestes o vosso filho pelejando com os turcos do Soldão.</p>
+
+ <p>O Viso rey com o rosto muy seguro lhe disse:</p>
+
+ <p>&mdash;Ora vos ide a descançar e mandae á caravella que faça sua costumada
+ salva e eu mandarei na Egreja fazer signal pelo defunto e acodirá gente e lhe
+ dirão paternosters pela alma, porque quem o frangão comeu hade comer o galo
+ ou pagal-o.</p>
+
+ <p>Com o que se recolheu para uma ante-camara, onde assentado, o Capitão e
+ fidalgos moveram pratica de sustancias consolatorias para abrandar tamanha
+ dor como sentiam que o pae devia ter com a morte de tal filho. Ao que o Viso
+ rey lhes foi á mão, dizendo:</p>
+
+ <p>&mdash;Eu não me posso escusar da dor que a carne me dá, como pae, de força da
+ natureza, mas espero em Nosso Senhor que me ajudará por sua misericordia, e
+ com a ajuda de meus amigos ma dará alegria n'esta dor que ora tenho, em que
+ acabando a vida será para mim o mór descanço. Vão-se Vossas Mercês embora,
+ que as palavras de conforto são das mulheres para suas amigas, quando
+ pranteam seus filhos mortos em acontecimentos como ora foi d'este meu.</p>
+
+ <p>E lhes fazendo sua cortesia se recolheu á sua camara.» Gaspar Correia,
+ <em>Lendas</em>, <small>I</small>, 775.</p>
+
+ <p><a name="foot1224" href="#tex2html88"><sup>[88]</sup></a> V. quadros das
+ batalhas navaes dos antigos, <em>Hist. da republ. romana</em>,
+ <small>I</small>, pp. 193-8.</p>
+
+ <p><a name="foot1225" href="#tex2html89"><sup>[89]</sup></a> «Não tém cestos
+ de gavea (as caravelas) nem as vergas fazem angulos rectos com os mastros,
+ mas pendem obliquas d'uma alça que é triangular, roça quasi pelas amuradas.
+ As vergas que se amuram aos costados do navio são pela parte de baixo grossas
+ como mastareus, e adelgaçam até ao cimo da vela. De vasos d'esta feição se
+ servem na guerra maritima os portuguezes, pelo muito ligeiros que elles são,
+ sendo-lhes mui maneiro apontar á prôa ou á pôpa o conto d'estas vergas, e
+ ainda a meio costado do navio passalas da direita para a esquerda segundo
+ lhes faz feição, ferrar o panno ou disferillo das vergas, a que o atam pelo
+ cepo da entenna, com quem as velas abrem a base do angulo: e qual lhes sopra
+ o vento, tal lhe apresentam o bojo da vela não tardios. Todo o vento lhe fas
+ geito, de modo que com vento de ilharga bolinam em direitura, como se foram
+ arrazadas em pôpa, e para ir o mesmo navio em senso contrario não tem mais
+ que mudar o velame, o que muy prestes se prefaz.» Osorio, <em>Vida e feitos
+ d'el-rey D. Manuel</em> (tr. F. M. do Nascimento) I, p. 193.</p>
+
+ <p><a name="foot1226" href="#tex2html90"><sup>[90]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ republ. romana</em>, <small>I</small>, pp. 292 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1227" href="#tex2html91"><sup>[91]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pag. 358 e segg. e <em>Hist. da civilisação
+ iberica</em> (3.ª ed.), pag. 34 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1228" href="#tex2html92"><sup>[92]</sup></a> <em>V. Regime
+ das riquezas</em>, p. 90 e segg.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002420">II<br>
+Affonso de Albuquerque</a> </h3>
+
+<p>«As cousas da India fazem grandes fumos!» costumava dizer o novo governador.
+Mas que <em>fumos</em> eram esses? Eram a vaidade e os erros de tantos pigmeus
+que o gigante via formigar activamente, encelleirar, e, depois de gordos e
+ricos, pavonearem-se na côrte, allegando serviços, com a basofia de quem tudo
+sabia das cousas do Oriente. Fumos, com effeito, eram todos esses para o
+governador, que aprendera nas suas primeiras viagens, e agora levava já bem
+definido o seu plano. Levava sem o saber os seus <em>fumos</em> tambem: porque
+em fumo se havia de tornar o imperio ephemero que construia na mente...</p>
+
+<p>Quando em 1506 partira de Lisboa, o rei tinha-o mandado como subalterno, na
+armada de Tristão da Cunha; mas o genio do guerreiro não se reprimia com isso,
+nem estava decidido a esperar que o tempo lhe desse o mando absoluto, para pôr
+em pratica o seu plano gigantesco. Elle sabia demais que, no cháos da India,
+cada qual trabalhava por sua conta e risco; e que, n'esse vasto campo de
+batalha, as manobras não obedeciam ao mando de um general; iam ao acaso,
+segundo a audacia e o<span class="pn"><a name="pag_250">{pg. 250}</a></span> genio
+dos capitães. De Lisboa a Zamgebar uma armada era um exercito; no mar da India
+o exercito fraccionava-se em batalhões independentes, e cada capitão era senhor
+de proseguir, conforme o seu plano, na vasta empreza de saquear o Oriente. O
+plano de Albuquerque não era o de um saque, era o de um imperio.</p>
+
+<p>A esquadra de Tristão da Cunha foi de caminho, como introducção, arrasando,
+queimando e saqueando Juba (Oja) e Barava (Brava),<a name="tex2html93"
+href="#foot1229"><sup>[93]</sup></a> na costa, acima de Zamgebar, dirigindo-se
+a Sokotra&mdash;essa ilha que, junto á ponta extrema da Africa, pelo norte, o cabo
+de Jar-Hafun (Guardafui), era a vedeta sobre a entrada do mar Vermelho, e a
+estação onde os navios de corso ás náus de Meka se deviam abastecer e
+refrescar. Os arabes defenderam a sua ilha em vão; e Cunha matou-os todos, sem
+ficar um só, e construiu a fortaleza, deixando-a guarnecida. Feito isto,
+dirigiu-se á India, destacando Albuquerque (impaciente quasi até á rebeldia,
+durante a delonga da construcção do forte) com seis navios e quinhentos homens,
+para a caça das náus, no Estreito.</p>
+
+<p>Afinal, o capitão commandava! Afinal dispunha de uma phalange sua! e
+resolveu não perder um só dia. Logo que as velas de Tristão da Cunha
+desappareceram, na sua viagem para a India, Albuquerque largou de Sokotra para
+a costa da Arabia, ao longo da qual foi subindo vagarosamente,<span
+class="pn"><a name="pag_251">{pg. 251}</a></span> assolando tudo. Formára o plano
+de começar por Hormuz as suas conquistas, marcando primeiro o limite por norte
+e occidente, para mais tarde ir ao oriente, pôr em Malaka o extremo do seu
+imperio. Hormuz, Sofala e Malaka são tres quinas de um triangulo, cuja base
+mede 70 graus em longitude, cuja altura, até ao vertice de Hormuz, conta 50 em
+latitude.</p>
+
+<p>Foi a 10 de agosto do anno de 507 que Affonso de Albuquerque largou de
+Sokotra, em direcção do golpho Persico. A sua esquadrilha compunha-se de seis
+navios apenas, e não contava mais de quinhentos homens; mas a poderosa unidade
+que o mando do atrevido capitão imprimia, a confiança que todos tinham no seu
+genio e na sua sabedoria, e tambem nos mosquetes e artilharia das náus,
+tornavam poderosa como um ariête esta pequena divisão. Para nos servirmos da
+expressão de Francisco d'Almeida, tratava-se apenas de combater <em>com
+bestas</em>; e não havia ainda que temer em Hormuz a artilharia dos rumes, nem
+os bombardeiros venezianos. A novidade de um engenho de guerra e a audacia de
+um guerreiro á antiga, iam levar a cabo uma empreza, de facto espantosa, como
+as de Alexandre ou de Cyro.</p>
+
+<p>Seguindo os exemplos d'esses famosos, cuja sombra Albuquerque tinha na
+mente, punha em pratica os antigos meios orientaes. Avançava no meio de um côro
+de afflições e mortes, precedido por uma columna de incendios, para que, ao
+chegar, a vanguarda do terror precipitasse os animos na abjecção. Assim ia ao
+longo da costa da Arabia assolando e devastando todos os logares vassallos do
+suzerano de Hormuz. Primeiro arrazou Kalhât (Calayate) «que é feito de casas de
+pedra, terradas e muitas cobertas de palha, casas espalhadas<span class="pn"><a
+name="pag_252">{pg. 252}</a></span> e mal armadas e fóra do logar á mão direita um
+palmar de palmeiras de tamaras, onde estavam uns poços de agua de que bebiam. O
+logar assenta ao longo d'agua, e por detrás ha grandes serranias de pedra viva,
+e no mar alguns zambucos e náus que vem aqui carregar cavallos e tamaras e
+peixe salgado.» <small class="SMALL">(G. C., </small><em><small
+class="SMALL">Lendas</small></em><small class="SMALL">)</small>.</p>
+
+<p>Em Karayât (Curiate), que lhe resistiu, cortou as orelhas e o nariz a todos
+os prisioneiros, soltando-os para irem, lavados em sangue e mutilados,
+annunciar por toda a parte a fama do seu poder. Em Khor-Fakhan (Orfacate)
+reduziu tudo a cinzas; e como em Karayât, mutilou todos os prisioneiros. Entre
+elles, porém, estava um velho letrado persa, de longas barbas brancas, que
+vivia de admirar Alexandre, cujo livro possuia. O velho applaudia o portuguez,
+commentando o livro com as façanhas do novo heroe; e applaudia-se a si por ter
+ainda em vida assistido á resurreição do filho de Olympias. Acclamava o
+portuguez, ou o grego, confundindo a realidade com a historia; e de joelhos,
+adorando-o, deu o seu livro a Albuquerque. O novo Alexandre perdoou-lhe.</p>
+
+<p>Em Makât (Mascate), já na entrada do golpho, e quasi fronteiro a Hormuz,
+tinham vindo acudir a curar-se, chorando, os fugitivos de Karayât e
+Khor-Fakhan, atroando os ares com a fama do poder terrivel d'esse heroe que se
+approximava. Tremiam todos de susto; mas quando a esquadrilha appareceu diante
+da poderosa cidade, ainda houve quem pensasse em resistir, por vêr que os
+navios eram tão poucos. Ignoravam, porém, que cada um d'elles, com os seus
+canhões escondidos por detraz das amuradas, era um vulcão prompto a rebentar em
+lava, um inimigo perfido cuja força latente não podia medir-se. Maskât foi
+bombardeada.<span class="pn"><a name="pag_253">{pg. 253}</a></span> A mesquita onde
+os infelizes se tinham refugiado caíu a machado, e os captivos, mutilados,
+foram fugindo, chorando, reunir-se á gente da cidade escondida nas serras.
+Havia cadaveres em todas as ruas e o fogo posto começava a crepitar lavrando
+nos armazens cheios de azeite e de melaço. As labaredas subiam, zumbia ao longe
+o clamor dos desgraçados, e á maneira que o terribil heroe se alongava na praia
+com os seus para regressar aos navios, os <em>mouros</em> vinham anciosos e
+cheios de medo vêr se podiam ainda salvar algumas migalhas da sua cidade, pasto
+das chammas vivas. Era em vão. Como uma tromba devastadora, Albuquerque
+proseguiu deixando um rasto de sangue e cinzas. Hormuz estava proximo, e
+cumpria que a onda do terror, que fôra crescendo, estoirasse agora de um modo
+pavoroso.</p>
+
+<p>Hormuz era então a joia mais preciosa da corôa da Persia. Chamavam-lhe <em>a
+pedra do annel</em> das Indias. Era a Londres oriental, onde todos os productos
+do Oriente vinham desembarcar; d'onde saíam nas longas caravanas que se
+dirigiam a Bagdad e ao Cairo, para a Tartaria e o Turquestan, por toda a Asia
+do norte. Os armadores levavam por mar a Hormuz a pimenta, o cravo das Molucas,
+o gengibre, o cardamomo, os paus de sandalo e brazil, os tamarinhos, o açafrão,
+a cera, o ferro, as cargas do arroz de Dekkan, os côcos, as pedrarias, as
+porcellanas, o benjoim, os pannos de Kambai, de Chala, de Deval, e os cinabasos
+de Bengala. Ahi vinham, de Aden, no estreito de Bab-el-Mandeb, o cobre, o
+azougue, os brocados, os chamalotes, e tudo quanto Veneza mandava da Europa,
+pelo caminho de Alexandria, a Suês, via do mar Vermelho. Toda a Persia se
+abastecia em Hormuz dos generos de fóra; por Hormuz toda ella mandava<span
+class="pn"><a name="pag_254">{pg. 254}</a></span> importar os productos indigenas.
+Os navios carregavam ahi a seda e o almiscar, rhuibarbo de Babylonia, e as
+récuas de cavallos da Arabia, tão queridos no Dekkan, em Kambai e nos Estados
+da contra-costa de Cholomandalam (Coromandel) até Bengala, na foz do Ganges.
+Contra o arroz e os pannos que levavam, os commerciantes traziam de Hormuz as
+tamaras, o sal das suas collinas coloridas, as passas, o enxofre e o aljofar
+grosso, muito procurado em Narsinga.</p>
+
+<p>A cidade era em si pequena, mas um brinco. Era uma terra de luxo e prazer,
+uma côrte de mercadores. As casas, recheiadas de cousas preciosas, eram
+thesoiros ou museus, com paredes forradas de marmores, columnatas, eirados,
+pateos ajardinados e fontes preciosas. A vida custava ahi carissimo, porque o
+luxo absorvia todos os recursos naturaes. A terra, uma salina, era esteril de
+si: tudo vinha da Persia, da Arabia, da India: mas os mercadores tinham
+defronte, além, na costa firme, as quintas e hortas, onde iam com frequencia.
+Ahi o platano magestoso do Oriente, o álamo esguio e esbelto, o negro cypreste
+meditativo, destacavam-se no meio das hortas viçosas, das quintas e jardins de
+rosas, povoados de rouxinoes, abrigando nas encostas á sua sombra as vinhas
+ferteis. Os pomares regados estavam coalhados de laranjeiras, de fructos de
+ouro e flôres de neve perfumada; de macieiras, pecegos, albaquorques; de
+figueiras de fórmas extravagantes e amplas folhas; de granadas, com os fructos
+rebentados a sorrir nos seus grãos côr de rubi. No chão serpeavam as redes de
+hastes dos meloaes, louros e perfumados; e das latadas e parreiras caíam com
+peso os cachos de uvas preciosas de todas as côres. Por entre os bastos pomares
+e do seio dos jardins de<span class="pn"><a name="pag_255">{pg. 255}</a></span>
+rosas, levantava-se orgulhosa e nobre a palmeira, com o seu turbante de folhas
+agudas, carregada de tamaras.</p>
+
+<p>Nas ruas da formosa cidade, em frente dos bazares, sob os toldos que a
+defendiam da luz e do calor do sol, formigava uma população de varias raças, de
+côres diversas, occupada em comprar, em vender; mais occupada ainda em gozar a
+vida no seio de uma devassidão torpe. O calor e os perfumes inebriavam os
+sentidos, e acordavam todos os instinctos sensuaes. Vinham ali vender neve, de
+trinta leguas do interior da Persia. Amar era o primeiro de todos os commercios
+de Hormuz; e o persa, alto, elegante e formoso, entregava-se a todos os
+desvairamentos da pederastia. Por isso as mulheres valiam pouco, eram até
+aborrecidas em Hormuz. Os pobres escravos, moços e mutilados, enchiam os harens
+dos ricos, e os bordeis para o commum dos mercadores. Era uma devassidão
+abjecta, e um luxo desenfreado. Os personagens, nos seus passeios, iam sempre
+seguidos por pagens, com toalhas e jarras de prata e bacias com agua. Havia
+musicas e festas por toda a parte e as bandas e orchestras andavam
+constantemente nas ruas onde os mercadores expunham á venda o aljofar em
+colchas purpurinas. Os trajos eram dos mais preciosos estofos, e sobre as
+camisas brancas de algodão finissimo vestiam-se tunicas de chamalote ou gran,
+cingidas por almejares com grandes adagas ornadas de ouro e prata e pedras
+preciosas. Os broqueis eram redondos, forrados de seda; os arcos acharoados, ou
+de corno de bufalo com cordas de seda. Usavam, além do arco e da frecha, do
+escudo e da adaga, machadinhas e maças de ferro, todas preciosamente lavradas e
+tauxiadas de ouro e prata. Os mouros diziam que o mundo era um<span
+class="pn"><a name="pag_256">{pg. 256}</a></span> annel e a pedra Hormuz. Só a
+alfandega rendia meio milhão de xerafins.<a name="tex2html94"
+href="#foot908"><sup>[94]</sup></a></p>
+
+<p>As noticias de Maskât, os mutilados de Karayat e Khor-Fakhan encheram de
+terror essa população embriagada na orgia de uma vida de delicias. No porto
+havia, com effeito, uma poderosa armada que escondia as aguas: eram centenas de
+náus e galeões, uma infinidade de terradas. Tinham-se arrestado os navios dos
+mercadores e do seio da frota estava a náu de Cambaya, a <em>Meri</em>, de mil
+toneis, com gente basta e numerosa artilharia. Havia o melhor de duzentos
+galeões de remo com arrombadas de saccas de algodão tão altas que escondiam os
+remeiros. O persa que vestia os laudeis, em vez de corpos de aço, couraçava
+tambem de algodão os navios. As terradas alastravam o mar, carregadas de gente
+armada, com estandartes garridos «que era cousa fermosa para ver». Na terra, ao
+longo da praia, havia de quinze a vinte mil homens formados com as suas musicas
+de trombetas e anafis. «As gaitas do mar e terra eram tantas que parecia que se
+fundia o mundo!» Mas os fugitivos abanavam a cabeça desesperados, contando como
+os seis, seis navios apenas portuguezes! traziam no ventre uns monstros de fogo
+destruidores! E o soldão persa, afflicto, não sabia de que modo receber a
+visita de Albuquerque e dos seus navios, que já estavam, terriveis mas quietos
+como um volcão em paz, fundeados no meio do porto, entre os galeões de Hormuz.
+Albuquerque exigia-lhe que abandonasse o persa, e se declarasse vassallo do
+portuguez; e o infeliz estava decidido a abandonar tudo, para<span
+class="pn"><a name="pag_257">{pg. 257}</a></span> que deixassem em paz&mdash;quando o
+capitão, enfadado com as delongas e subtilezas, rompeu inopinadamente o fogo.
+Começou a varejar em torno o estendal de barcos, reduzindo-os a uma massa de
+destroços, de naufragios e cadaveres que era horroroso de vêr. Estava como um
+lobo no meio de um rebanho de ovelhas. Não era uma batalha, era uma carnagem.
+Os fugidos nadavam n'um mar rubro de sangue, perseguidos pelas almadias em que
+os soldados matavam n'elles ás lançadas e cutiladas. Da amurada das náus os
+grumetes e pagens rasgavam-lhes o ventre com os croques, pondo pastas de
+visceras fluctuantes no mar de sangue. Houve grumete que matou assim oitenta
+<em>mouros</em>. E emquanto a armada de Hormuz e as tropas do sultão eram
+chacinadas, desmanchava-se o lançol de barcos como uma teia cujas malhas se
+soltam. Havia correrias sobre as ondas, e de espaço a espaço o mar sorvia uma
+atalaia com a gente e as armas. Outras, já ardendo, iam fugindo em chammas,
+como trombas de fogo correndo, vogando á mercê do vento «que era um grande
+espectaculo para vêr». Ainda oito dias depois do sanguinario caso havia
+cadaveres boiando no mar, e os portuguezes em lanchas occupavam-se n'essa
+particular especie de pesca. A colheita era abundante, os cadaveres aos centos,
+os trajos ricos, e muitos os anneis e alfinetes, as adagas e punhaes tauxiados
+de ouro e prata com joias engastadas. Denudados, vinham a bordo as familias
+reconhecer os cadaveres e leval-os piedosamente, em lagrimas, aos seus
+sepulcros. A façanha fôra tão grande, que parecia milagre: pois não se viam nos
+corpos mortos as chagas das frechas, não havendo similhante arma entre os
+nossos? Milagre! diziam os soldados e os capitães, perante esse caso
+tristemente revelador<span class="pn"><a name="pag_258">{pg. 258}</a></span> da
+confusão do combate com o novo Alexandre da India.</p>
+
+<p>O pobre sultão de Hormuz, afflicto, immediatamente accedeu a tudo: consentiu
+que Albuquerque levantasse uma fortaleza e pagou-lhe vinte mil xerafins de
+tributo. E d'este concerto se fizeram duas cartas, uma em folha de ouro, a modo
+de livro, escripta em arabico com letras abertas a buril e suas brochas de ouro
+com tres sellos de ouro dependurados por cadeias; a outra em parsi, que era a
+linguagem commum da terra, e em papel com letras de ouro. E ambas estas cartas
+mandou Affonso d'Albuquerque a el-rei D. Manuel.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Hormuz escapara, rendendo-se, aos horrores de um saque: mas isto mesmo
+desesperava os capitães e soldados da esquadrilha, que murmuravam, cubiçosos de
+tamanha riqueza desenrolada diante de seus olhos. Não comprehendia para que se
+haviam de demorar alli, a construir uma fortaleza; quando, a não saquearem a
+cidade, mais valia partirem para o rendoso corso das náos de Meka, na bocca do
+Estreito. A intriga insinuava-se, dizendo que o capitão-mór queria construir a
+fortaleza para si, e fazer-se rei de Hormuz, levantando-se contra o de
+Portugal: na India não havia ainda mais tradição do que a do saque maritimo, e
+o pensamento imperial de Albuquerque chegava a não ser comprehendido. Nem em
+tres annos, diziam, voltariam á India, perdendo occasião de carregar as
+quintaladas que tinham de ordenado. A cubiça de mãos dadas com a violencia e a
+cegueira agitavam perigosamente as guarnições. Albuquerque, impassivel,
+proseguia. De uma vez que lhe levaram um requerimento quando vigiava
+pessoalmente a obra da<span class="pn"><a name="pag_259">{pg. 259}</a></span>
+fortaleza, tomou-o assim dobrado como lh'o deram, e sem o ler metteu-o debaixo
+de uma pedra do portal da torre que se estava erguendo. O baluarte ficava
+cimentado com as queixas. Mas as lages não pesavam bastante para as abafar, e
+recrudesceram. Além do mais, os queixosos reclamavam a metade dos 20:000
+xerafins pagos pelo de Hormuz, que, esperançado n'estas desordens, confiado em
+promessas de sedição, e nos auxilios que o persa lhe enviava, ousou romper as
+hostilidades. Viera com effeito o cheik Yar (Xaquear) trazendo comsigo quatro
+mil arabes. Albuquerque estava n'um serio perigo, e outro qualquer
+perder-se-hia. Os capitães recusavam ir ao combate; mas elle, arrancando as
+barbas, aos punhados, ao capitão Nova, levou diante de si os soldados, sósinho,
+ás cutiladas. Dos seis navios, porém, fugiram-lhe tres, que vieram para a India
+contar ao vice-rei as loucuras e barbaridades do conquistador: não podiam
+resistir ao seu mando <em>terribil</em>, só lhes era dado fugir! Albuquerque
+retirou tambem de Hormuz, quando viu a impossibilidade de levar por diante a
+empreza, abandonado por metade das suas forças. Levantou ferro, voltou a
+Sokotra aprisionar as náus de Meka, e mais um navio o abandonou ahi: nenhum
+podia supportar o ferreo mando do heroe.</p>
+
+<p>Em novembro de 508, depois de ter voltado ainda outra vez a Hormuz, estava
+de regresso á India, em Kananor, onde abriu a carta de Lisboa, que lhe confiava
+o governo do Oriente. N'esse momento a violencia do seu genio furioso
+arrebatou-o: queria castigar os capitães insubordinados, queria sobretudo
+terminar rapidamente o plano das suas conquistas; e foram necessarios os rogos
+de D. Francisco de Almeida, a quem o filho acabava de morrer,<span
+class="pn"><a name="pag_260">{pg. 260}</a></span> para consentir na expedição naval
+de Diu. Só quando, mezes depois, chegou á India a fidalga armada de D. Fernando
+Coutinho, poderam terminar as deploraveis contendas, entre o vice-rei e o seu
+successor. Coutinho levava de Lisboa ordem expressa de tomar Kalikodu; e, cheio
+de basofias, lançou-se na empreza em que achou a morte. Engolfados na matança e
+no saque, no meio de parte da cidade incendiada, os portuguezes foram por sua
+vez trucidados, quando os inimigos os colheram dispersos e sem armas.</p>
+
+<p>Só e livre, absoluto senhor do imperio nascente, Albuquerque entregou-se com
+franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição d'elle era a fundação
+de uma cidade, uma capital portugueza&mdash;cousa que até então não existira.
+Katchi, cujo rajah desde o principio se abraçára aos novos invasores, era uma
+cidade India, onde possuiamos apenas uma fortaleza, abrigo da feitoria e guarda
+de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa para capital. Collocada a meia altura
+da costa Occidental da peninsula, bom porto, a cidade reunia as condições
+desejaveis. Fazia elle então parte do reino de Vijajapur (Bijapor) fracção que
+no fim do XV seculo se separára do de Dekkan, declarando-se o seu khan
+independente, sob o titulo de adil-shah (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-shah do
+Vijajapur, ao tempo de Albuquerque, tinha por nome Yusuf. Por este governava em
+Goa Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em fevereiro de 510 Albuquerque
+tomou Goa por surpreza; e pela primeira vez houve no Oriente um Estado
+portuguez. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um logar significava
+apenas a substituição da suzerania indigena pela nossa; e o estabelecimento de
+feitorias e a construcção de fortalezas, tinham<span class="pn"><a
+name="pag_261">{pg. 261}</a></span> sómente em vista assegurar o commercio e a
+cobrança das páreas ou tributos de vassallagem, segundo o plano do primeiro
+vice-rei. Albuquerque iniciava um systema differente; creava uma cidade
+propriamente portugueza; e com o novo governador, o nosso dominio desembarcava
+dos navios para a terra firme. A um systema de colonias, como fôra em volta do
+Mediterraneo o dos phenicios ou o dos gregos, substituia-se um imperio, como
+Annibal o sonhára na Italia, e Alexandre o fundou na Asia. Albuquerque, porém,
+não pensava em fazer de Goa uma cidade portugueza, no sentido de ser
+exclusivamente habitada por europeus: seria chimerico. Faltava-lhe gente, e
+para obviar a isto fomentou os cruzamentos de portuguezes com mulheres
+indigenas, creando, tanto em Goa como depois em Malaka<a name="tex2html95"
+href="#foot1230"><sup>[95]</sup></a>, uma população de mestiços, que mais tarde
+se tornou um dos elementos de dissolução do nosso imperio. Sob o dominio
+portuguez, os naturaes viveriam livremente na sua religião, com as propriedades
+garantidas, mas sujeitos ao imperio protector e soberano de Portugal.<a
+name="tex2html96" href="#foot1231"><sup>[96]</sup></a> Era um<span
+class="pn"><a name="pag_262">{pg. 262}</a></span> plano correspondente ao que mais
+tarde os inglezes pozeram em pratica, sem todavia cruzarem com os indigenas: da
+mesma fórma que os hollandezes preferiram os planos maritimo-commerciaes de D.
+Francisco d'Almeida.</p>
+
+<p>Goa occupou ao governador todo o anno de 510; porque o <em>Sabaio</em>,
+tomado por surpreza em fevereiro, voltou no verão; e os soldados de Albuquerque
+não quizeram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da furia e das
+ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os planos de
+Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da India, que além de lhes
+não comprehenderem o alcance, se viam privados de saques, apenas fartos de
+guerra. Goa perdeu-se em agosto; mas logo tornou para o dominio portuguez,
+ganha por assalto em novembro. Os soldados obedeciam, porque o commando do
+governador era <em>terribil</em>, desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa
+a sua fé catholica. Alexandre cria-se um deus, Albuquerque <em>viu</em> mais de
+uma vez os milagres do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um
+cavalleiro de armas brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os
+<em>mouros</em><a name="tex2html97"
+href="#foot1232"><sup>[97]</sup></a>&mdash;conforme a tradição historica
+portugueza. Nas cidades da costa da Arabia, viajando para Hormuz, as suas
+crueldades tinham sido barbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impôr
+pelo medo; aqui destruia como politico. Todos os <em>mouros</em> de ambos os
+sexos, de todas as edades, mais de seis mil, foram mortos; e queimados vivos os
+que se tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque
+para socego d'ella só devia conter gentios. Era o<span class="pn"><a
+name="pag_263">{pg. 263}</a></span> logar escolhido para capital do imperio dos
+novos gregos pelo moderno Alexandre.</p>
+
+<p>Consolidada a posse da capital, no coração da India, Albuquerque voltou-se
+rapido para as duas emprezas que rematariam o seu imperio: Malaka e Hormuz.
+Embarcou, logo no principio de 511, e tocando em Ceylão, a terra encantada das
+pedras preciosas, delicias do mundo, patria da canella e das perolas,
+achamol-o, já em maio, em frente de Malaka, no extremo Oriente.</p>
+
+<p>Malaka, na ponta da peninsula da Indo-China, sobre o estreito a que dá o
+nome, era para esta região, como Hormuz, a norte-leste, para a outra. Assim
+como além se permutavam os generos da India com os da Arabia e da Persia, e em
+Adem com os do Egypto; assim em Malaka se faziam todas as trocas dos productos
+occidentaes da China e das Molucas, e de todo o extremo Oriente. De Malaka iam
+as náus a Ternate e a Tidor, a Banda e a Ambon, em procura do precioso cravo; e
+o estreito andava coalhado de <em>juncos</em> de Java, conduzindo á cidade o
+arroz, as carnes, a caça e os <em>crizes</em> tauxiados de fino aço, em troca
+dos damascos e brocados, que levavam de retorno para as ilhas do archipelago.
+Amphibios, os malaios viviam no mar em permanencia, com a casa e a familia a
+bordo; e os seus <em>juncos</em>, com enxarcias de verga, iam buscar a Malaka
+os pannos de Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e
+as drogarias de Kambai.</p>
+
+<p>Do saque de Malaka, o governador reservou para si apenas seis leões de
+bronze, destinados ao seu tumulo. Sem se demorar, avassalou todo o archipelago
+malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, segura a porta oriental
+da India, voltou-se a Goa, de caminho para Hormuz e Aden,<span class="pn"><a
+name="pag_264">{pg. 264}</a></span> a consolidar o imperio pelo occidente. Em
+fevereiro de 513 sáe com uma armada para Aden, que não consegue tomar; viaja em
+torno do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente
+forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arabia, indo a Meka
+despedaçar a santa Kaaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado
+positivo, desde que Aden consegue resistir ás investidas do governador. Adiou
+pois para outra vez esses planos, que eram a cupula do seu edificio e a chave
+do imperio que vinha construindo. Conquistada Aden, as duas emprezas que
+meditava eram relativamente faceis na sua simplicidade temeraria. Levaria
+quatrocentos homens de cavallo em taforeas ou caravellas e iria desembarcar em
+Liumbo, partindo n'um galope até Meka, logar santo mal guardado por gente
+prostrada em adorações. Roubaria o thesouro sagrado e o proprio corpo do
+propheta: com ambos se resgataria o Santo-Sepulcro de Jerusalem, captivo.
+Consumar-se-hia a obra mallograda das Cruzadas, tradição piedosa que na
+Renascença passara das nações do norte para a Italia e para a Hespanha,
+arrastando mais tarde Portugal a Alcacerquibir. Ao mesmo tempo, e por outro
+lado, a grande empreza do mar Vermelho descarregaria um golpe mortal no Egypto,
+que era a joia do imperio dos turcos e o arsenal de onde vinham as armadas á
+India. O seu plano consistia em «cortar uma serra muy pequena que corre ao
+longo do rio Nilo, na terra do Preste Joham, para lançar as correntes d'elle
+por outro cabo que não fossem regar as terras do Cairo».<a name="tex2html98"
+href="#foot1233"><sup>[98]</sup></a> Desviando o Nilo seccaria o Egypto.<a
+name="tex2html99" href="#foot1234"><sup>[99]</sup></a> Já pedira<span
+class="pn"><a name="pag_265">{pg. 265}</a></span> a D. Manuel que lhe mandasse
+officiaes da Madeira, onde os havia mestres no córte das serras para formar as
+levadas de rega dos canaveaes. Tudo isto continha a empreza de Aden, cujo
+mallogro cortou os vôos ás ambições grandiosas do heroe.</p>
+
+<p>Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse
+fulgurado aos olhos do mystico e terrivel heroe uma cruz vermelha, Christo
+abandonara-o na empreza. Quando o famoso milagre surgiu, Albuquerque e todos,
+ingenuamente, crentes na missão divina em que andavam, caíram de rastos
+adorando a cruz.<a name="tex2html100" href="#foot1235"><sup>[100]</sup></a> E o
+capitão, para corresponder ao céu, mandou tanger os córos de trombetas,
+responder com artilheria aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um
+<em>estromento</em> assignado pelas guarnições, que veiu para D. Manuel, com a
+carga de pimenta, afervorar a piedade mystica da côrte carthagineza.</p>
+
+<p>Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se
+para Hormuz, cujo dominio não estava seguro. Outro Alexandre em Persepolis, o
+heroe condemnou-se em Hormuz: a grandeza das suas façanhas tinha-lhe feito
+nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. Orientalisado como o
+imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam já a crueldade, nem a força:
+appellava para a perfidia; e intromettendo-se nas miseraveis politicas dos
+persas, chamou á sua tenda para uma festa o ministro que então governava o
+principe idiota de Hormuz, e assassinou-o covarde e friamente,
+substituindo-se-lhe. Estava proximo da cova: e a sorte não queria que á
+historia d'este heroe faltasse o epilogo frequente da historia dos heroes: uma
+abjecção. Tampouco<span class="pn"><a name="pag_266">{pg. 266}</a></span> a verdade
+consente que se esconda um fraco de vaidade e fraqueza commum. Alexandre
+mimoseava os litteratos de Athenas para que o exaltassem: Albuquerque mandava
+anneis de pedras preciosas ao chronista Ruy de Pina «para escrever com melhor
+vontade os memoraveis feitos da India».</p>
+
+<p>De volta de Hormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como fizera a
+D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte Pacheco. A
+côrte de Lisboa já o mandára substituir no governo por Lopo Soares de
+Albergaria, que, chegando, começou por condemnar o seu predecessor, exaltando
+todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, Albuquerque pegou da penna e
+dirigiu uma carta ao rei&mdash;«quando esta escrevo a V. A. estou com um soluço que
+é signal de morte!» E pedia-lhe que lhe honrasse a memoria e protegesse o
+filho: o que o rei fez, honra lhe seja. Agonisando, via-se incomprehendido pela
+tacanha côrte de Lisboa, e acceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens
+por amor d'elrey, mal com elrey por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, á
+vista de Goa. Era homem de mean estatura, rosto comprido e corado. Era avisado
+latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem; mui facil na
+conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os mouros,
+muito temido e amado de todos. Nascera filho segundo de uma familia de sangue
+nobre, e educara-se na côrte militar de Affonso V, viveiro da geração dos
+capitães da India amestrados nas guerras de Africa. Fôra em 1480 na esquadra
+mandada a Napoles em auxilio do rei Fernando contra os turcos, e nove annos
+depois partira para Africa a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache,
+contra os mouros. Era estribeiro-mór de D. João II<span class="pn"><a
+name="pag_267">{pg. 267}</a></span> e já um grande fidalgo quando, em 1503, D.
+Manuel o mandou á India pela primeira vez. Foi, voltou com bons creditos, mas
+sem nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito,
+levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de
+Tristão da Cunha. D'essa ida começa a historia que narrámos e que termina agora
+com a sua morte.</p>
+
+<p>Os soldados, a bordo, amortalharam-no no habito de Santiago com borzeguins e
+esporas, espada á cinta, na cabeça uma carapuça de velludo e aos hombros uma
+beca tambem de velludo. O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o
+choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado
+aos hombros dos soldados, sob o pallio, pelas ruas da cidade que conquistara; e
+os gentios, vendo-o com os olhos meio abertos, a longa barba atada até á cinta,
+fluctuando, não o criam morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu!
+Voltaria breve. E por muito tempo houve romarias ao sepulchro do heroe, vindo
+os naturaes pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfidias dos portuguezes,
+offerecendo-lhe boninas e azeite para a sua lampada. Do extremo Oriente, desde
+o Pégu até á China, ficaram-lhe chamando o Leão-do-mar.<a name="tex2html101"
+href="#foot1236"><sup>[101]</sup></a><span class="pn"><a
+name="pag_268">{pg. 268}</a></span></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Hormuz, Goa, Malaka, os tres pontos cardeaes do imperio fundado por
+Albuquerque no breve periodo de cinco annos (1507-11), valiam o dominio em todo
+o mar das Indias e a vassallagem de todas as costas, desde Sofala, em Africa,
+ao cabo de Jar-Hafun; desde Khor-Fakhan, na Arabia, até ao golpho Persico;
+desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); d'ahi ás boccas do Ganges, e
+descendo pelo Arakan e pelo Pégu, até Malaka&mdash;com as ilhas dispersas de
+Madagascar e Sokotra, Anjediva, os archipelagos de Lakkha (Laquedivas) e de
+Malaja (Maldivas), Sinhala (Ceylão),<a name="tex2html102"
+href="#foot1237"><sup>[102]</sup></a> e Sumatra e Java, Bornéo e as Molucas,
+até aos pontos extremos de Banda e Ambon. Com effeito, depois de Malaka e da
+viagem temerosa mas esteril de 513 a Aden, todo o Oriente pasmava e tremia de
+Albuquerque, o <em>terribil</em>. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e
+tributos; todos os principes queriam a amisade do portuguez, e a seus pés
+arrastavam a corôa os rajahs de Ahmednagar e de Kambai, de Vijajapur e de
+Narsinga,<a name="tex2html103" href="#foot1238"><sup>[103]</sup></a> o shah da
+Persia e os sultões de Sião, do Pégu, do Arakan; e até o proprio
+<em>Hidalcão</em>, o adil-shah do Kanará, consentindo a fortaleza de Kalikodu,
+comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do Gujerât, do Konkana, do
+Karnataka e de Bengala. Desde o Indo até ao Ganges, pelo Cabo Kumari, desde
+Kambai até Golkonda, o litoral da peninsula estava inteiramente submettido ao
+jugo portuguez.</p>
+
+<p>Entretanto este imperio não podia dizer-se ainda construido: era um esboço
+apenas. Como depois de uma victoria brilhante os timidos se curvam todos
+perante o vencedor, assim acontecia no Oriente.<span class="pn"><a
+name="pag_269">{pg. 269}</a></span> Lançado na politica de conquistas, o imperio
+portuguez ganhava a primeira batalha; mas não podia decerto ensarilhar as
+armas, emquanto a costa da Arabia e as margens do mar Vermelho se conservassem
+em poder dos inimigos. Os naturaes da India, avassallados por uma corrupção
+antiga, acceitavam o dominio de qualquer vencedor; mas era necessario, para o
+manter, que a victoria fosse decisiva. Ora o inimigo, o <em>mouro</em>, fôra
+batido, mas não fôra expulso. Como n'uma doença, tinham-se debellado muitos
+symptomas, mas não se destruira o principio morbido. Aden continuava a ser o
+emporio do dominio commercial maritimo dos arabes e egypcios no Oriente; o mar
+Vermelho, o Suês, no extremo fundo d'esse estreito corredor, as boccas sempre
+abertas, para vasar sobre a India navios, artilheria e soldados. O dominio, que
+os portuguezes se propunham substituir, continuava; e do caracter dual ou mixto
+que a occupação da India apresentava, resultaria um estado de guerra permanente
+com os <em>mouros</em> e com os naturaes, que ora os preferiam a elles, ora a
+nós. Ninguem, nação alguma seria capaz de resistir a um seculo inteiro de
+similhante vida. O destino do imperio portuguez no Oriente dependia do
+exclusivo do dominio, desde que era impossivel pactuar ou dividir a presa entre
+os dois caçadores rivaes.</p>
+
+<p>O genio de Affonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez: Aden,
+Meka, o mar Vermelho, eram a sua preoccupação: «Tres cousas, diz o filho e
+commentador, ha na India que são escapolas de todo o commercio das mercadorias
+d'aquellas partes, e chaves principaes d'ella. A primeira é Malaka, que está em
+tres graus na entrada e sahida do estreito de Singapura; a segunda Aden, que
+está em vinte e um graus de altura e<span class="pn"><a
+name="pag_270">{pg. 270}</a></span> na entrada e saída do mar Rôxo; a terceira é
+Hormuz, a qual está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da
+Persia. Este Hormuz, a meu vêr, é a principal de todas. E se el-rey de Portugal
+tivera senhoreado Aden podera chamar-se senhor de todo o mundo.» Dar um golpe
+mortal no islamismo era, além de retribuir em Meka a affronta humilhante de
+Jerusalem, mostrar aos musulmanos do Oriente que Jesus podia mais do que
+Mafoma. Mas se o genio excepcional de Albuquerque não bastou para levar a
+empreza ao fim, como poderiam bastar para isso os pigmeus que lhe succederam?
+Valentes muitos ou quasi todos, incansaveis no mar e na terra, os governadores
+da India foram extenuando em um seculo de guerra permanente as limitadas forças
+da nação, sem pensamento politico, sem plano definido, á tôa e á mercê d'um
+capricho, ou d'uma idéa a que o ciume imbecil da côrte limitava constantemente
+os vôos. A primeira politica, a maritima, fôra abandonada com a queda de
+Francisco de Almeida; a segunda politica, a imperial, condemnada com a
+deposição e morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um
+dominio estavel e seguro: uma tradição.</p>
+
+<p>Esta falta, comtudo, provinha de causas mais intimas, umas nacionaes, outras
+chronologicas. O absurdo espirito da politica de Lisboa, e a já provada
+incapacidade dominadora dos portuguezes, estão na primeira categoria: na
+segunda estão os costumes e idéas de tempos relativamente barbaros. Os
+portuguezes, ao pôr pé na India, faziam o mesmo que os povos germanicos, ao
+descer dos Alpes sobre a Lombardia: cevavam-se. A historia de Affonso de
+Albuquerque em Hormuz (1507) demonstra bem quanto era impossivel impôr
+disciplina<span class="pn"><a name="pag_271">{pg. 271}</a></span> e ordem em
+campanhas que tinham no saque o exclusivo motivo.</p>
+
+<blockquote>
+ <p>Fomos ao rio de Meca,<br>
+ Pelejámos e roubámos<br>
+ E muito risco passámos.</p>
+</blockquote>
+
+<p>Estas palavras de Gil-Vicente resumem a historia da India; e com taes
+elementos era possivel saqueal-a, era impossivel dominal-a.</p>
+
+<p>Por isso, n'esse seculo de 500 que a historia da India abrange, o conjuncto
+dos caracteres da occupação portugueza fórma dois systemas: o da rapina, contra
+o qual protesta e reage em vão a espada militar de Albuquerque; e depois o da
+simonia, contra o qual, em vão tambem, reage a vara justiceira de D. João de
+Castro.</p>
+
+<p>Estudemos agora o primeiro, a seu tempo estudaremos o segundo. Todos os
+soldados de Antonio da Silveira, um capitão que andava pela costa, entre Chala
+e Daman, trouxeram fato, escravos e dinheiro, com que foram contentes; e
+assolaram tudo «em tanta maneira que se despovoaram todolos logares da fralda
+do mar, que pela terra dentro dez leguas não havia gente». Em Barava, destruida
+por Tristão da Cunha, os barbaros cortaram as mãos e as orelhas ás mulheres
+para furtarem as manilhas e brincos de ouro. A tomada de Mangaluru ficou
+celebre: «Foi entrada com muito valor, e dentro d'ella fizeram os nossos
+espantosas cruezas, não perdoando a sexo nem a idade, nem ainda ás alimarias».
+D. Paulo de Lima «deu na cidade de Johore (Jor)&mdash;escreve á esposa&mdash;e assolou-a
+<em>com o favor divino</em>». N'outro logar os combatentes, empilhados contra
+os muros, pedem aos da frente que, <em>por amor de Deus</em>, lhes deixem
+matar<span class="pn"><a name="pag_272">{pg. 272}</a></span> um <em>mouro</em>. Á
+approximação dos portuguezes, despovoam-se as cidades e fogem todos com terror:
+assim aconteceu em Bintang. Albuquerque sustentou por tres annos, no mar da
+Arabia, a sua armada com as presas das náus de Meka. Quando os portuguezes
+occuparam as terras de Bardez «fizeram mui grandes males de roubos, tyrannias,
+tirando as mulheres e filhas formosas a seus maridos, e outras corrompiam, e as
+furtavam e tornavam a vender». O de Hormuz queixava-se de que, em paz, lhe
+tiravam, a elle e aos seus, «parentas de que (os nossos) faziam uso,
+tornando-as christans a seu pesar». O roubo e a luxuria, alliados aos inimigos,
+davam lugar a interminaveis guerras: assim os capitães de Malaka originaram as
+de Johore e do Atchim (Achem); e nas Molucas a cidade de Bachian, despovoada e
+vasia, foi incendiada, indo-se os barbaros ás sepulturas dos reis furtar os
+ossos, na esperança de receber por elles, mais tarde, um grosso resgate.
+Roubando e pirateando á solta, o genio aventuroso dos portuguezes larga as
+azas, e os exploradores vão até aos confins do mundo, fiados no seu
+atrevimento. Dois heroes das <em>Peregrinações</em> teem uma historia
+extravagante. Um, Antonio de Faria, vae á China roubar os sepulcros dos
+imperadores; outro, Diogo Soares de Albergaria, obtém o titulo de irmão do rei
+de Pégu, com duzentos mil cruzados de renda e o commando do exercito: é o rei,
+mas morre assassinado, por ter furtado uma rapariga. Nem se julgue que só pelos
+confins do mundo oriental portuguez, em Hormuz ou em Malaka, ou só pelas
+costas, nos seus navios, a furia dos portuguezes se desmanda em ferocidades
+anarchicas. Na propria Gôa, capital, a vida é um combate. Pelas ruas ha
+batalhas e cadaveres insepultos. Um governador<span class="pn"><a
+name="pag_273">{pg. 273}</a></span> prende certos salteadores portuguezes, manda-os
+ferrar no rosto, junto á picota, e degredar para o Brazil: logo um pelotão de
+amigos se amotina em armas para os libertar, e, não podendo conseguil-o, vae a
+bandear-se para os mouros inimigos: o governador manda-os desorelhar e amarrar
+aos bancos das galés; fogem e fortificam-se, e é necessario tomar á força o
+reducto; prisioneiros, são, afinal, amarrados vivos a elephantes, e
+esquartejados. É conhecida a tragedia em que a amante de D. Paulo de Lima,
+precipitando-se das janellas do seu palacio de Pangin, morreu, e o seductor, de
+espada e rodella, abriu caminho por entre a gente armada que acudia com o
+marido.</p>
+
+<p>Até dentro das proprias egrejas havia rixas, a tiros: viam-se homens caír
+assassinados no confessionario, e nos degraus dos altares, á meza da communhão;
+e uma vez foi morto com um tiro o bispo quando levava a hostia, em procissão,
+pelas ruas.</p>
+
+<p>Era uma anarchia barbara; e decerto os naturaes lamentavam a má-sorte que os
+condemnava a supportar tantas crueldades ferozes. Antes o mouro indolente e
+molle, e o antigo tempo que placidamente corria no seio de uma orgia podre mas
+calma, nos braços do luxo, da opulencia e dos prazeres! Como demonios vomitando
+fogo, negros nas suas armaduras, esses portuguezes eram enviados para os
+desgraçar, para os punir talvez! E levas esfarrapadas de fugitivos, n'um côro
+unisono de lagrimas e afflicções, acompanhavam por toda a parte a visita dos
+terriveis forasteiros, que não sabiam fazer-se amar do indio, tão submisso, tão
+bem disposto para obedecer e servir.</p>
+
+<p>Os <em>fumos</em> da India (como Albuquerque dizia) embriagavam os pobres
+portuguezes, limitados na<span class="pn"><a name="pag_274">{pg. 274}</a></span>
+Europa á porção congrua do bragal e do aço, sujeitos a uma forçada sobriedade e
+a costumes mais presos. Na India o <em>fumo</em> desenfreava o animal, que se
+retouçava delirante nas sedas e nos perfumes, nas fructas e nas mulheres,
+coberto de diamantes, abarrotado de pardaus de oiro. Breve, porém, esse
+<em>fumo</em> se dispersou no ar; e a desolação universal trouxe a miseria, o
+luxo trouxe a fraqueza; e á violencia de barbaros, os portuguezes juntaram a
+mesquinhez de chatins.<span class="pn"><a name="pag_275">{pg. 275}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1229" href="#tex2html93"><sup>[93]</sup></a> «Ao que se achou
+ presente Tristão Alvares, que era feitor do capitão-mór, que não consentiu
+ que ninguem tomasse nada e com João Rodrigues Pereira que o ajudou levaram
+ tudo ao capitão-mór, o qual logo tudo mandou qubrar e ameaçar e deu ao
+ capitão e aos fidalgos da repartição primeira a cada um um quintal de prata e
+ a Affonso de Albuquerque tres, porque nunca estes capitães e fidalgos se
+ apartaram para ir roubar.» G. Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>,
+ 677.</p>
+
+ <p><a name="foot908" href="#tex2html94"><sup>[94]</sup></a> O xerafin (as
+ hrafi) = 12 rupia = 1 cruzado. Duarte Barbosa da-lhe a equivalencia de 300
+ reis.</p>
+
+ <p><a name="foot1230" href="#tex2html95"><sup>[95]</sup></a> V. <em>Raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp. <small>LX-I</small>.</p>
+
+ <p><a name="foot1231" href="#tex2html96"><sup>[96]</sup></a> Não consentia o
+ governador A. de A. que os portuguezes tratassem (negociassem), dizendo que
+ onde tratassem haviam de querer ser poderosos e valorosos e não ser humildes
+ como mercadores, do que se recreceriam males de os matarem e perderem suas
+ fazendas... e tambem que, se os mouros vissem que lhes tomavamos seus tratos
+ nos teriam mór odio, e mais, que os homens, andando tratando, andavam fóra do
+ serviço de Deus e d'Elrey, de que elle daria muitas contas a Deus: pela qual
+ razão não consentia que nenhum homem andasse fóra do serviço d'Elrey. Com
+ esta pragmatica os portuguezes eram muito temidos por cavalleiros e não
+ mercadores, e tão temidos e obedecidos que ainda que um só portuguez fosse em
+ uma almadia, se o topassem naus de mouros, todas amainavam e lhe iam
+ obedecer, mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos eram
+ assignados por A. de A.»&mdash;Gaspar Correia, <em>Lendas</em>, <small>I</small>,
+ 518.</p>
+
+ <p><a name="foot1232" href="#tex2html97"><sup>[97]</sup></a> V. <em>Systema
+ dos mythos relig.</em>, p. 331.</p>
+
+ <p><a name="foot1233" href="#tex2html98"><sup>[98]</sup></a> V. <em>Hist. da
+ civil. iberica</em> (3.ª ed.) p. 243.</p>
+
+ <p><a name="foot1234" href="#tex2html99"><sup>[99]</sup></a> V. <em>As raças
+ humanas</em>, <small>I</small>, pp. 106-10.</p>
+
+ <p><a name="foot1235" href="#tex2html100"><sup>[100]</sup></a> V. <em>Syst.
+ dos mythos relig.</em>, p. 331.</p>
+
+ <p><a name="foot1236" href="#tex2html101"><sup>[101]</sup></a> Ainda hoje os
+ indios chamam <em>Affonso d'Albuquerque</em> a um certo peixe, do tamanho da
+ corvina, e cujo nome zoologico não podemos apurar. Diz a lenda que o Leão do
+ Mar não morreu: afundou-se, e revive n'esses animaes marinhos. A maxilla
+ inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das figuras
+ portuguezas do seculo <small>XVI</small>: o barrete, as barbas ponteagudas e
+ longas, etc. Os indios pintam esses ossos, dando-lhes phisionomia humana e
+ guardam os <em>Affonsos de Albuquerques</em> como fetiches.</p>
+
+ <p><a name="foot1237" href="#tex2html102"><sup>[102]</sup></a> V. <em>Inst.
+ primit.</em>, p. 3.</p>
+
+ <p><a name="foot1238" href="#tex2html103"><sup>[103]</sup></a> V.
+ <em>Ibid.</em>, pag. 163.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002430">III<br>
+D. João de Castro</a> </h3>
+
+<p>Morto Albuquerque, as cousas da India voltam ao estado anterior; e
+abandonada a politica imperial, torna-se á politica maritima; ou antes o
+dominio fluctua ao acaso, indeciso entre os dois planos. Lopo Soares proseguiu
+ainda as guerras de conquista, acabando de avassallar Ceylão e as Molucas.
+Vasco da Gama voltou pela terceira vez á India, como vice-rei, para vêr se
+podia pôr cobro ás desordens e á corrupção interna das colonias: foi com elle
+que se inaugurou o systema das successões, mandadas de Lisboa em cartas, que só
+se abririam por ordem numerica, na falta de cada vice-rei, para prevenir as
+frequentes desordens, a que dava lugar a transmissão do governo. O almirante
+morreu tres mezes depois de chegado, succedendo-lhe D. Henrique de Menezes; a
+este, Pero Mascarenhas, e o usurpador Lopo Vaz de Sampaio, tão celebre pelas
+suas perfidias.</p>
+
+<p>Nuno da Cunha tomou posse do governo em 1528 em condições difficeis. As
+torpezas dos governos anteriores tinham sublevado contra nós os monarchas do
+Hindustan. O de Kambai, ao norte, com o de Kalikodu, inimigo antigo, ao sul,
+estavam desde tempo em guerra aberta comnosco, de mãos dadas com os
+<em>mouros</em>, nossos rivaes. O governador, em quem os dotes de guerreiro
+primavam,<span class="pn"><a name="pag_276">{pg. 276}</a></span> decidiu reunir
+todas as suas forças para ir tomar Diu, na costa do Gujerât, castigando por um
+modo ruidoso a insubordinação do de Kambai.</p>
+
+<p>Quem via a esquadra com que Nuno da Cunha se foi a Diu, podia avaliar a
+transformação que trinta annos apenas, ou menos ainda, tinham produzido no
+caracter dos portuguezes. Ninguem os tomaria já pelos descendentes de
+Pedralvares Cabral, envergonhados da sua pobreza em Kalikodu; nem sequer pelos
+piratas domesticados com a disciplina de Albuquerque: pareciam já mouros, na
+opulencia e nos costumes. A esquadra era das maiores, senão a maior de todas as
+que se tinham reunido na India: constava de quatrocentas velas, entre as quaes
+mais de quarenta vasos maiores, e multidão de bergantins, galeaças, fustas e
+catures. Apoz ella vinham os juncos malaios com mantimentos, e um cardume de
+zambucos e cotias de taverneiros, gente da terra, vendendo comestiveis e vinho.
+Capitães e soldados tinham-se preparado como para uma funcção, luxuosamente
+vestidos, carregados de pedras preciosas e ricas armas tauxiadas. As mulheres
+enxameavam a bordo, esposas e amantes da gente da guarnição; e além das
+mulheres os escravos eram numerosos. O governador tinha promettido premios de
+1:000, 500 e 300 pardaus aos primeiros que successivamente subissem ás
+muralhas. Era uma expedição mercenaria, e não uma aventura de bandidos. Isto
+exprimia a transformação que já se tinha operado; e o governador, apesar dos
+seus meritos, nada podia contra ella.</p>
+
+<p>Seguindo as boas tradições, a esquadra foi ao longo da costa deixando o seu
+rasto de carnificinas e investidas covardes, contra os pontos indefesos; e
+quando chegou em frente de Diu, rompeu<span class="pn"><a
+name="pag_277">{pg. 277}</a></span> o bombardeio. Dentro da cidade era grande o
+susto. Os commerciantes mouros agitavam-se, escondendo os seus thesouros e
+preparando-se para a fuga. Os fakirs immundos, nús, e de rastos, estrebuxavam,
+e, erguendo-se como doidos, acutilavam os braços e as pernas, ou batiam com
+calhaus grossos na ossatura do peito, como a quererem matar-se n'um delirio de
+visões santas. E o brahmine, com os seus longos cabellos enlaçados em turbante
+no alto da cabeça coroada de flôres, perfumado de aloes e de agua de rosas,
+untado de sandalo branco e açafrão, lançava-lhes uma esmola e palavras de paz,
+para não juntar á desgraça da guerra novas desgraças de suicidios! Os senhores
+de Diu, ricos do Gujerât, principes de Kambai, attonitos, vagueavam nas ruas
+com as mulheres, a procurar refugio contra as bombardas que estalavam por toda
+a parte. Com as caras rapadas á navalha e os longos bigodes negros caídos,
+arrastavam pressurosos as compridas camisas de algodão e de seda, calçados nos
+seus sapatos bicudos de cordovão lavrado: e os longos brincos de ouro
+cravejados de pedras balouçavam e tilintavam nas orelhas, em quanto corriam
+desafivelando, cansados, os cintos de ouro rutilantes de esmeraldas. Atraz
+d'elles as mulheres, de uma raça delicada e formosa, com o rosto de um branco
+de leite, meio encoberto em mantos de seda com que vestiam o tronco nú, corriam
+descalças, mostrando nos dedos dos pés os ricos anneis, nas pernas as manilhas
+de ouro e prata, os braços nús carregados de pulseiras, as mãos rutilantes de
+pedras preciosas. Era um terror e uma agitação por toda a cidade, ao ouvirem o
+ribombar da artilheria, e ao verem no ar a trajectoria de fogo das bombardas,
+que vinham sem piedade rebentar em estilhas no meio da gente, crivando<span
+class="pn"><a name="pag_278">{pg. 278}</a></span> de lascas o corpo côr de perola
+das mulheres, e as carnes côr de barro dos fakires tisnados pelo sol, cobertos
+de uma camada de lodo secco e de immundicies das estrebarias dos elephantes.</p>
+
+<p>As tropas de Kambai, nos seus postos das muralhas, esperavam o assalto, para
+então se medirem com esses homens que, abrigados por detraz das suas peças,
+distribuiam assim impunemente a devastação e a morte. Tremiam comtudo; e os
+mouros, por entre os batalhões, lamentavam-se da falta dos artilheiros
+venezianos e das esquadras dos rumes. Esperavam, porém, muito da tropa de
+elephantes, que eram quinhentos com as prezas limadas e o pé triturador, com
+que haviam de fazer em pastas humidas de sangue a phalange portugueza.<a
+name="tex2html104" href="#foot1239"><sup>[104]</sup></a> As balas dos mosquetes
+nada podiam contra a couraça da sua pelle, e esmagando com o peso, despedaçando
+com as prezas, acabariam a obra começada pelos besteiros e fundibularios de
+cima das torres. Mudos e immoveis, os quinhentos elephantes de Kambai estavam
+na planicie, como ancora da salvação de Diu; e os soldados olhavam para elles
+com amor. Além dos elephantes, tambem a cavallaria se achava formada, montando
+á bastarda os leves cavallos da Persia, embraçados os seus escudos pequenos e
+redondos forrados de seda, ao cinto duas espadas e uma adaga, ao hombro as
+settas e o arco. Uns vinham defendidos com armaduras e cotas de malha de aço,
+outros com laudeis, que eram mantos de algodão acolchoado, onde todos os golpes
+morriam perdidos. Os cavallos traziam testeiras de aço. Porém, apesar de toda a
+força reunida, a artilheria dos navios aterrorisava-os; e já por mais de uma
+vez alguma<span class="pn"><a name="pag_279">{pg. 279}</a></span> bomba, caíndo no
+meio dos elephantes, dispersára as montanhas de carne, a correr em rugidos, com
+a tromba erguida, como um mastro, entre as prezas de marfim. Na cidade havia
+tambem artilheria e mosquetes, mas que nada podiam contra os navios distantes:
+os pelouros disparados recochetavam na agua.</p>
+
+<p>Parou afinal o bombardeio, e todos olhavam com ancia, porque esperavam
+assistir ao desembarque e contavam com a peleja. Viram, porém, com surpreza que
+as náus emmastreavam e as galés mudavam a prôa ao mar, afastando-se ao impulso
+dos remos. Fôra medo? fôra fraqueza? Decerto; e a esquadra, atulhada de
+escravos e mulheres, não tinha forças para uma batalha: apenas se arriscava a
+um canhoneio sem perigos. Já era fóra de duvida que os deixava. As velas
+desfraldadas impelliam os navios na volta do mar. A alegria e a assuada
+substituiram então o pavor e o silencio. Todos pulavam contentes, desde o fakir
+immundo, até ao grave e perfumado brahmine; desde os velhos e as creanças, até
+ás mulheres, envolvidas nos seus mantos de seda, com os braços e as pernas
+núas, a correr, agitando os longos brincos, preciosos, tão pesados que lhes
+rasgavam as orelhas. Os commerciantes mouros abriam os bazares e desenterravam
+os cofres; e todos vinham á praia vêr a armada que se afastava, despedindo-se
+d'ella com vaias e gritos de zombaria, tangendo musicas, disparando tiros de
+espingardas para o ar, e mandando, por cortezia, pelouros, a arranhar a
+superficie azul das ondas. Diu estava salva das ameaças do portuguez.</p>
+
+<p>Porém quatro annos depois, intervindo nas questões internas dos sultões e
+rajahs da peninsula, Nuno da Cunha obteve a permissão de construir a<span
+class="pn"><a name="pag_280">{pg. 280}</a></span> fortaleza de Diu, celebre depois
+pelo heroismo dos seus cercos. A politica do governador não desdenhava,
+comtudo, o assassinato; e o pobre sultão de Kambai, convidado a uma entrevista,
+foi trucidado, á maneira do que já succedera antes em Hormuz. D'ahi proveiu a
+guerra e o primeiro cerco de Diu, sobre-humanamente defendido por Antonio da
+Silveira.</p>
+
+<p>As chronicas chamam a Nuno da Cunha vencedor de Kambai, heroe de Bassaim, de
+Kalikodu, e fundador de Diu. Basta esta enumeração dos lugares para demonstrar
+que o dominio portuguez na India inclinava já, com trinta annos de vida apenas,
+á decadencia. Os erros politicos originavam guerras permanentes; e o poder dos
+invasores, que n'um relampago se alargára por todo o Oriente, não se
+consolidava: agitava-se desordenadamente, no meio de questões sempre
+renascentes, extenuando as forças defensivas, e corrompendo-se intimamente. Se
+Nuno da Cunha merece dos coevos o nome de heroe, não é pelo valor ou alcance
+dos meritos proprios, é pela absoluta incapacidade dos seus predecessores e dos
+que lhe succederam. D. Garcia de Noronha, que veio apoz elle, era um fidalgo
+pobre, sem merecimentos, além do da pobreza e das sympathias do rei, que o
+mandou á India enriquecer. «Honra, eu a tenho: não venho mais que a levar
+dinheiro», dizia mais de um governador. D. Estevam da Gama foi ninguem; e
+Martim Affonso de Souza prégou com o exemplo, francamente cynico, a abjecção em
+que a administração da India se tornára&mdash;agora que terminára o saque de todas
+as costas, e as náus de Meka, mais raras e já artilhadas e preparadas para
+rudos combates, não davam com que satisfazer a cubiça dos occupantes.<span
+class="pn"><a name="pag_281">{pg. 281}</a></span></p>
+
+<p>A segunda epocha da historia da India, a da podridão, apparecia já
+desenvolvida e accentuada por tal fórma, que o governo de Lisboa reconheceu a
+necessidade de pôr cobro a tamanha desordem, e nomeou viso-rei D. João de
+Castro, leitor assiduo de Plutarcho e decidido, por opinião, a ser um modelo de
+virtude, e um typo de nobreza á antiga,&mdash;ou pelo menos á moda do que então se
+julgava terem sido certos dos antigos heroes.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Effectivamente o estado das cousas exigia remedios energicos. Martim Affonso
+de Souza deve abrir o rol, porque ninguem melhor e mais ingenuamente vivia no
+seio da podridão e o confessava, nas cartas que enviava para Lisboa, ao rei. A
+successão do governo de Vijajapur era debatida entre dois principes indigenas;
+e o governador «tardou em se determinar, porque estava esperando quem levava a
+melhor». Afinal decidiu-se pelo <em>Hidalcão</em>, que parecia ter mais justiça
+e era <em>mais firme</em>, «ainda que vos certifico que da outra (parte) havia
+tantas razões e contrarios que foi necessario <em>soccorrer-me a missas e
+devoções</em>». Além das devoções, o vencedor deu-lhe 70:000 pardaus para
+el-rey, 20:000 para elle proprio governador, e uma joia para sua esposa. Deus,
+porém, não se contentando com ajudar o modo por que o governador vendia o seu
+apoio, matou o rival vencido. Tudo corria para o melhor, quando, para coroar o
+caso, vem um privado de Assud-Khan propôr-lhe a divisão do thesouro do
+fallecido: 500:000 pardaus: «Mando 300 a el-rey, mas d'estes tomei 30:000 para
+mi, que é o dizimo que lá mando a minha mulher: que em razão está que tenha
+alguma<span class="pn"><a name="pag_282">{pg. 282}</a></span> parte d'isso, pois o
+podera ter todo, que eu podera ter tomado este dinheiro sem o ninguem saber».
+Esta pratica de vender o auxilio nas contendas indigenas não era, todavia,
+privilegio de Martim Affonso. Em Hormuz, sob a tutela dos portuguezes, D.
+Duarte de Menezes substitue a um governo amigo dos nossos, um outro que
+preferia o mouro, porque este lhe deu «cem mil pardaus em xerafins novos, e em
+conta ricas perolas e joias e aljofar». Gaspar Correia diz do governador, que
+gostava de «boas peças e dadivas e alvitres de apanhar dinheiro, e banquetes e
+prazeres, e com mulheres solteiras com que ia folgar no tanque de Tinoja, e em
+tudo era mui devasso».</p>
+
+<p>Os capitães seguiam os exemplos dos governadores. De um de Hormuz, Diogo de
+Mello, queixa-se o <em>rei</em>, porque o alguazil o ferira e quizera matar por
+lhe não dar dinheiro e joias que exigia; pedindo soccorro, pois se lhe não
+acudissem, despovoava-se a cidade. E nem só as fortalezas, ao lado dos
+soberanos indigenas, eram rendosos meios de rapina: o mar produzia tambem
+muito. Ruy Vaz vae por sua conta a Bengala <em>ás prezas</em>; e dois navios,
+mandados expressamente de Lisboa á India com instrucções e cartas, para decidir
+o pleito entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz, fogem para Madagascar <em>ás
+prezas</em>, e ahi se perdem. A pirataria dos portuguezes era tão productiva
+que excitava os estranhos; e de parceria, piratas francezes, guiados pelos
+nossos, dão a volta d'Africa, e vão explorar a India. Não era tampouco raro vêr
+nos mares do Oriente navios de arabes guarnecidos por portuguezes mercenarios;
+os <em>mouros</em> pagavam melhor do que o rei. A guarnição da armada com que
+Lopo Vaz foi ás ilhas de Sunda incendeia os navios por falta de pagamento do
+soldo; e os naturaes<span class="pn"><a name="pag_283">{pg. 283}</a></span>
+assaltam os portuguezes á pedrada, obrigando-os a pedir capitulação.
+Effectivamente a sorte dos soldados era tão dura, que se recusavam a embarcar
+em Goa, sem primeiro terem sido pagos. Os governadores eram obrigados a
+mandal-os caçar pelas ruas e casas, levando-os algemados ao tronco, e da prisão
+para a armada.</p>
+
+<p>A vida do soldado da India e a organisação militar eram com effeito
+singulares. Desembarcando sem dinheiro em Goa, depois das doenças da viagem, os
+que não tinham parentes ou amigos na capital da India, espalhavam-se pedindo
+esmola em bandos pelas ruas, dormindo esfarrapados e semi-nús debaixo dos
+alpendres das egrejas, ou nas galés e lanchas varadas na praia. Empenhavam o
+que traziam: a capa, a espada; ou preferiam roubar para viver, esperando o
+arrolamento da armada, que todos os annos ia varrer as costas do Malabar,
+inçadas de piratas arabes cujo rei era o Cutiale (Kuuat-Ali).<a
+name="tex2html105" href="#foot1240"><sup>[105]</sup></a> Chegada a epocha,
+lançado o bando, nomeiavam-se os capitães dos navios&mdash;logo veremos porque artes
+e maneiras o capitão tratava de angariar a sua gente. A <em>chusma</em> da
+marinhagem compunha-se de negros captivos, agarrados a laço pelas ruas. Os
+soldados recrutavam-se nos bandos já amestrados na rapina e que, de volta das
+expedições, se pavoneavam nas ruas de Goa: era uma tropa de salteadores e
+adulteros, malsins e alcoviteiros, que enchiam a cidade de roubos e
+assassinatos nocturnos, occupando-se a beber nos lupanares e a matar por
+officio e dinheiro. Os <em>reinoes</em> bisonhos entravam só nas faltas, até
+que tivessem por seu turno aprendido como se era soldado<span class="pn"><a
+name="pag_284">{pg. 284}</a></span> da India. O capitão dava dez xerafins a cada um
+dos soldados para se prepararem e armarem. Cada qual escolhia as armas que bem
+lhe agradavam, e muitos preferiam gastar o dinheiro em orgias, indo para bordo
+esfarrapados e sem mosquete, nem lança, nem rodella, nem espada: com as mãos
+vazias.</p>
+
+<p>A mesma anarchia se usava no ataque; desembarcavam em chusma, e
+<em>davam-lhes de Santiago</em>, cada um conforme podia e sabia. Dispersavam-se
+todos com a mira no que podiam roubar, porque esse era o verdadeiro soldo; os
+dez xerafins um preparo apenas. Geralmente a primeira investida era
+irresistivel: e logo ao ataque se seguiam o incendio, o roubo, a
+matança&mdash;muitas vezes tambem a reacção dos inimigos. Dispersos, deixando as
+armas ás portas das casas para irem mais leves a roubar, os soldados eram
+mortos um a um: como succedera no grande desbarato de Kalikodu, onde morreu D.
+Fernando Coutinho; como succedia a cada passo, por toda a parte. Com tal
+systema, a guerra protrahia-se indefinidamente; mas era isso o que convinha a
+todos, porque d'ella tiravam o melhor dos seus proventos.</p>
+
+<p>Os soldados roubavam, os capitães roubavam com elles, roubavam-nos a elles,
+cerceando-lhes as rações de arroz avariado e podre. E depois da façanha, em que
+muitos ficavam, depois de forçados a fugir em debandada, «os capitães-móres das
+armadas recolhem-se com os focinhos quebrados e com alguns navios perdidos. E
+ao entrar a barra de Goa, é tanta a bombardada que não ha quem se ouça, e ao
+sahir em terra tanta pluma e bisarrice, como se deixaram destruido o mundo.<a
+name="tex2html106" href="#foot1241"><sup>[106]</sup></a>&mdash;E<span class="pn"><a
+name="pag_285">{pg. 285}</a></span> não é bem, accrescenta outra testemunha, a
+facilidade com que os capitães da India entram em Gôa triumphando,
+esbombardeando, cheios de plumas e pontas de ouro, deixando muitos companheiros
+descabeçados nas praias de Calecut.»</p>
+
+<p>Não é bem, decerto; mas não podia ser de outra fórma; e ainda assim a
+basofia, apesar de ser enorme, não era a peior das fraquezas dos capitães da
+India. Pedro não obedecia a Gonçalo por não ser tão fidalgo como elle: eram
+todos <em>pontinhos e biquinhos de honra</em>. Em tendo sido capitães de quatro
+fustas, não queriam mais saír fóra sem bandeira na quadra; «e alguns não teem
+mais noticia da guerra que passear ás damas.» O peior, o peior de tudo era que
+uma vergonhosa corrupção apagava todos os brios. Nuno da Cunha dizia que os
+homens da India eram como os doentes de colera, tinham os gostos damnados; e
+outro accrescentava que os viso-reis, ao passarem o cabo da Boa-Esperança,
+perdiam de todo o temor a Deus e ao rei, como perdem a memoria os que passam o
+Lethes.</p>
+
+<p>Vimos ha pouco o modo por que se guarnecia uma armada; resta dizer que as
+capitanias do mar e as das fortalezas eram compradas por dinheiro aos
+viso-reis: um rapaz imberbe pagou uma d'essas por um serviço de mãos e um
+saleiro de prata; e duzentos pardaus eram <em>as ordinarias</em>, isto é, o
+preço usual de uma capitania. Providos no seu lugar, os capitães, que o tinham
+comprado, faziam-se mercadores e contrabandistas, conluiando-se com os
+empregados fiscaes, e associando-se com os mouros e judeus. Os capitães de
+Malaka tinham náus para irem de sua conta, á China, de um lado; a Diu, Chala,
+Daman, Bassaim, do outro. Os de Hormuz commerciavam por mar<span class="pn"><a
+name="pag_286">{pg. 286}</a></span> com Bengala, com os portos da costa occidental
+da peninsula, e com o Zamgebar. Como negociantes, á imagem do rei, exigiam
+tambem em favor proprio um monopolio; e d'ahi vinham as desordens e violencias
+brutaes exercidas sobre os indigenas. «A guarda do <em>cartaz</em>
+(salvo-conducto que os navios <em>mouros</em> pagavam para navegar no mar da
+India) é o credito do nosso Estado», diziam os homens-bons do Oriente; mas por
+cima de tudo o mais, os capitães, para fazerem prezas, buscavam <em>bicos</em>
+no exame dos passaportes e roubavam os navios e as cargas. Os lucros do
+commercio não lhes bastavam, e o roubo vinha engrossar o rendimento das
+capitanias. Hormuz era, sobre todas, celebre n'esta especie. Arrolamentos de
+guarnições ficticias, matriculas de praças mortas, para embolsarem o soldo de
+suppostos soldados, eram casos ordinarios e communs a todas: só d'esta verba um
+capitão de Hormuz fazia 30:000 cruzados em tres annos. Com os navios succedia
+outro tanto: fundeados, a apodrecer nas aguas, ou varados na praia, custavam ao
+thesouro da India o preço de guarnições que só existiam no papel. E estes
+roubos eram tão vulgares que não havia pejo em os confessar. Um capitão de
+Hormuz declarava alto e bom som, que não perdoaria um real da somma que se
+tinha decidido a ganhar&mdash;300:000 cruzados.</p>
+
+<p>Um certo Alvaro de Noronha, na mesma praça, accusado, responde que outro
+tanto fizera o seu antecessor, «que sendo <em>apenas um Lima</em> levára
+140:000 pardaus: elle <em>como Noronha</em>, havia de levar mais». O brazão da
+sua casa ficaria manchado, seus avós corariam, se gente menos nobre lhe
+passasse adiante em qualquer cousa&mdash;até no roubo.</p>
+
+<p>E os crimes dos capitães não podiam ser punidos,<span class="pn"><a
+name="pag_287">{pg. 287}</a></span> porque os viso-reis faziam outro tanto e mais:
+quando o exemplo vinha de cima, como se havia de condemnar a copia? O
+governador Lopo Vaz de Sampaio, que era pobre e tinha muitos parentes a
+proteger, foi a Hormuz <em>para fazer proveito</em>, com doze navios, cujos
+capitães eram todos seus proximos e afilhados. Diogo de Mello era seu cunhado,
+e isso o deixou impune dos roubos e males extraordinarios que tinha commettido.
+Nas deploraveis intrigas com que empolgou o governo a Pero de Mascarenhas, Lopo
+Vaz, para crear partidarios, usou de todos os meios. Pagaram-se todos os
+<em>alcances</em> por meio de folhas de suppostos soldos vencidos; e n'esta
+<em>agoa envôlta</em> muitos enriqueceram. A um certo Nuno Redondo, eximio em
+<em>falsar sinaes</em>, deveu o governador o alvará com que espoliou o seu
+émulo.</p>
+
+<p>As principaes rendas dos governadores provinham de diversas especies de
+peculato: as <em>peitas</em>, ou luvas que recebiam por todos os empregos; as
+heranças jacentes que roubavam; os cabedaes do indio ou judeu queimado pela
+Inquisição de Goa; os conluios com os <em>contadores</em>, para extorquirem
+dinheiro aos funccionarios e litigantes; a falsificação da moda; o roubo do
+cofre dos orfãos; o fornecimento de material de guerra; as matriculas de
+soldados mortos ou nunca arrolados; a amortisação dos titulos de divida do
+governo, comprados no mercado por vil preço, e que nas contas iam mettidos pelo
+seu valor nominal.</p>
+
+<p>A turbulencia e devassidão dos soldados provinham dos crimes dos
+commandantes, ficando por isso impunes; os roubos dos governadores authorisavam
+os dos capitães: mas se o governador fosse punido, não poderia acaso varrer-se
+o lodo e moralisar-se o dominio? Poderia; mas os governadores<span
+class="pn"><a name="pag_288">{pg. 288}</a></span> tinham a favor da sua corrupção
+argumentos muito valiosos, e podiam contar com a impunidade. Em Lisboa, salvas
+momentaneas excepções, considerava-se a India como uma vasta seara a colher.
+«Cartas se liam pelas portas, em ajuntamentos de cadeiras, que era uma vergonha
+os descreditos que n'ellas vinham.» Desde o rei até ao mais infimo dos moços da
+chusma, todos eram commerciantes; e o commercio, cuja mira é o lucro apenas,
+tolera tudo, pactua com todas as devassidões. Contam que D. Manuel em pessoa
+achava graça ás manhas e expedientes vis, com que se explorava a India, quando
+os que de lá vinham justificavam as artes com a riqueza, augmentando a
+opulencia faustuosa da côrte. Bastante dinheiro e um pedaço de lisonja venciam
+tudo. Diogo de Mello, de quem já falamos como heroe, foi condemnado á morte
+pela Relação de Lisboa; mas <em>fiqou</em> em morte civil para S. Thomé; depois
+para Africa; e, por fim, com dar 500 cruzados para a Arca-da-Piedade, casando
+suas filhas com as muitas riquezas dos roubos que n'este mundo não pagou.</p>
+
+<p>Pagal-os-hia no outro? Não era de crer; porque o jesuitismo tinha descoberto
+que a simonia não era peccado, sempre que se seguissem umas certas regras. O
+furto deixava de provocar escrupulos de consciencia, desde que os casuistas
+tinham averiguado ser licito cobrar por qualquer modo, o que se não póde haver
+por demanda, de pessoa poderosa. Ora quem mais poderoso do que o rei, dono do
+thesouro da India? Por isso, uma vez os conegos de Goa fecharam a sua egreja e
+suspenderam o culto, quando o viso-rei, distante em Katchi, deixou
+atrazar-se-lhes as pagas. E além d'esta justificação de todos os expedientes,
+os padres<span class="pn"><a name="pag_289">{pg. 289}</a></span> confessores da
+<em>Companhia</em>, defendendo os que recebiam <em>luvas</em>, diziam que o
+nome de <em>peita</em> se entende só do que se toma da parte antes de a
+despachar, ou de concerto que se faça para o negocio<a name="tex2html107"
+href="#foot1242"><sup>[107]</sup></a>. Mas se a parte fôr despachada, póde
+muito bem gratificar depois: é um agradecimento, e não uma peita.</p>
+
+<p>Não deixaria, por certo, de valer para muitos esta boa paz em que se achavam
+com o céu; mas é fóra de duvida que os escrupulos religiosos não incommodavam a
+maxima parte, senão quando, na volta para o reino, os assaltavam os temporaes
+da costa d'Africa. A cumplicidade de Deus era muito; mas era melhor ainda a
+cumplicidade das justiças, que na terra podiam confiscar, prender e matar. Um
+chronista erudito escrevia: «O imperio romano não se começou a perder, senão
+depois que se começaram a vender os magistrados; e assim eu dou a India por
+acabada». Não eram só venaes, eram tambem analphabetos, os juizes: fazia-se um
+desembargador com <em>dois debrums de latim</em>. As testemunhas custavam em
+Goa a pardau por cabeça «e se a um ladrão ou salteador, por conhecido que seja,
+não faltam 4 ou 6 testemunhas que o abonem, como faltarão a um viso-rei?» Além
+d'isso, de que valeriam rigores contra os «roubos, injurias, mortes, forças,
+adulterios com as casadas, viuvas, virgens, orfans... se dizem que elrey N. S.
+é tão cheio de misericordia, que por males que lhe façam, tudo perdoa e quita?»
+Gaspar Correia achava, entretanto, indispensavel que se mandasse cortar a
+cabeça de um viso-rei no caes de Goa.</p>
+
+<p>A misericordia de S. A. não consentia isso, mas o povo esteve por um nada a
+fazel-o. Quando o<span class="pn"><a name="pag_290">{pg. 290}</a></span> conde da
+Vidigueira, ex-governador, partia para o reino, as turbas derribaram da porta
+da cidade de Goa a estatua do bis avô (Vasco da Gama), enforcaram-no em effigie
+na verga de uma náo, e envenenaram ao neto o pasto dos animaes que levava de
+vitualha para a viagem<a name="tex2html108"
+href="#foot1243"><sup>[108]</sup></a>.</p>
+
+<p>Mais graves e decisivos symptomas de desaggregação do ephemero imperio da
+India rebentavam constantemente, e por toda a parte. Ferviam as deserções; e
+grupos de soldados iam arrolar-se nas tropas indigenas, ou nos navios arabes,
+por miseria, por cubiça, por homizio, arrastados pela fome ou pelas
+<em>moraxas</em> infieis, espalhando-se em Kambai, no Balutchistân, no
+Afghanistân e na Persia, de um lado; em Bengala, do opposto; alastrando-se pelo
+Arakan, por Pegú, por Malaka, e Kamboja, até á China. Os que militavam debaixo
+das insignias dos reis e principes infieis eram tantos, «que sem muitas
+lagrimas não se poderá considerar, quanto mais escrever... e muitos se põem por
+soldados em navios de chatins, onde, posto que o soldo não seja tão honrado
+como o d'elrey, é mais proveitoso, por ser melhor pago». Em tempo d'elrey D.
+Sebastião havia na India 16:000 portuguezes, e não se poderam mandar 800 homens
+a soccorrer Malaka.</p>
+
+<p>Já em Chala, no tempo de D. Francisco de Almeida, logo no começo da
+occupação da India, 50 marinheiros da armada do viso-rei, perante o inimigo,
+conspiravam para se passar aos <em>mouros</em>, que pagavam melhor. Estes
+phenomenos, pois, não provinham directamente da decadencia, manifesta agora;
+mas tinham causas intimas, e logo evidentes no começo da empreza.<span
+class="pn"><a name="pag_291">{pg. 291}</a></span></p>
+
+<p>Além dos que desertavam, outros iam por conta propria estabelecer feitorias,
+ninhos de piratas «buscando pão para comer, por não haver armadas ou fortalezas
+em que lh'o deem». Assim em Tchitâgan, assim em Ugoli de Bengala, em Nagapatan
+na costa oriental da India, em Macau e em infinitos lugares.<a
+name="tex2html109" href="#foot1244"><sup>[109]</sup></a></p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Para engrenar esta roda de miserias, foi do reino enviado D. João de Castro.
+O quarto viso-rei da India<a name="tex2html110"
+href="#foot1245"><sup>[110]</sup></a> era, havia muito, conhecido pela
+candida<span class="pn"><a name="pag_292">{pg. 292}</a></span> nobreza do seu
+caracter, pela sua experiencia de navegador e guerreiro, e pela vastidão do seu
+saber, pelo seu amor ás boas lettras. Esse amor punha na sombra os dotes
+ingenuos do seu espirito; e esse asceta e amante mystico da natureza, qual o
+descobrimos nos seus escriptos, vestia a toga dos heroes antigos, para
+apparecer em publico na attitude classica do estylo dos seus papeis de Estado e
+do cortejo do seu triumpho em Goa. A preoccupação romana do <small>XVI</small>
+seculo em Portugal tinha em D. João de Castro um fervoroso sectario; e como o
+genio do viso-rei era de uma sinceridade candida, a affectação antiga tomava
+para elle as proporções de um culto. As suas phrases e gestos, copiados dos
+antigos heroes, não eram decerto uma mascara postiça, embora a nós se affigurem
+taes. Affonso de Albuquerque, porém, tinha no sangue a força de Alexandre; e a
+D. João de Castro só a imaginação fazia um Numa, e um Cincinnato. Mas a
+imaginação governava-o tanto, que lhe moldou o genio, tornando-o um exemplo
+vivo do poder que a educação moral é capaz de exercer sobre o temperamento.
+Esta construcção artificial do caracter produzia, comtudo, contradicções
+necessarias. O amor litterario da phrase, e o enthusiasmo da copia,
+arrastavam-no a cousas, senão ridiculas, extravagantes. Não ter em casa uma
+gallinha para<span class="pn"><a name="pag_293">{pg. 293}</a></span> comer,
+enfermo, e confessal-o com orgulho, era de certo misturar á honradez natural
+uma ponta de affectação. Quando pediu a Goa trinta mil pardaus para levantar a
+fortaleza de Diu, mandou os cabellos das barbas por penhor; mas, com o symbolo,
+era forçado a dar tambem uma provisão para o thesoureiro de Goa, adjudicando ao
+pagamento do emprestimo o rendimento dos cavallos. Todos os casos da sua vida
+sympathica demonstram a nobreza ingenita de um caracter, cunhado
+artificialmente pela educação litteraria.</p>
+
+<p>Era este o homem capaz de engrenar a roda da decomposição do imperio
+oriental? Não, decerto. A sua propria grandeza na honra valia pouco, por ser
+affectada, embora não fosse fingida. Os homens positivos e corrompidos da India
+sorriam d'esse espectaculoso heroe; e, vendo ao mesmo tempo a ingenuidade
+candida e pura do seu espirito, confiavam descansados em que não lhes viria
+d'ahi mal algum para os seus interesses. A propria affectação <em>antiga</em>
+do viso-rei demonstrava a fraqueza do estadista; porque só uma alma ingenua
+podia ligar tamanho amor ás fórmas, e a ingenuidade jámais venceu nos governos.
+Integro, forte, e piedoso no seu fôro intimo, D. João de Castro era um heroe e
+um santo; mas nem essa fórma subjectiva do heroismo, nem a santidade, foram
+nunca os meios de travar o movimento de decomposição de uma sociedade, ou de a
+impellir no caminho do progresso. Para tanto, exigem-se as almas duras, os
+espiritos frios, sem escrupulos, de um João II, ou de um Pombal.</p>
+
+<p>D. João de Castro não tinha em si os dotes de nenhum d'esses; e o seu
+governo ficou inutil como uma bella pagina de moral: á maneira do livro em que
+lhe escreveram a vida, e que é uma boa pagina<span class="pn"><a
+name="pag_294">{pg. 294}</a></span> de rhetorica.<a name="tex2html111"
+href="#foot1246"><sup>[111]</sup></a> Ficou, porém, como um sincero protesto:
+esse é o seu valor social-historico. Ficou como um exemplo de bravura
+temeraria, attestada nos cercos de Diu&mdash;quando o sultão da Turquia (Soliman II)
+mandou de reforço quatro mil janisaros, ou <em>rumes</em> sob o commando do
+pacha do Cairo, em auxilio de Khuajeh Safar (Cogeçofar), o ministro do rei do
+Gujerât&mdash;mas d'esses exemplos abundavam; ficou, por fim, como um typo, ao mesmo
+tempo nobre e interessante, do caracter de um santo e da influencia da
+litteratura no genio dos individuos, ou antes nas suas acções.</p>
+
+<p>Se é que alguem havia em Portugal capaz de governar a India, o governo de D.
+João III demonstrou cegueira, escolhendo-o; ainda que, por distinctos que
+fossem os dotes de qualquer outro, é tambem facto que a empreza de levantar da
+anarchia o imperio do Oriente excedia as forças humanas, porque os vicios
+d'elle eram congenitos da sua existencia.</p>
+
+<p>Ao terminar este rapido esboço da vida politica de Portugal no Oriente,
+convém mencionar a opinião do quarto viso-rei e as suas observações,
+transmittidas para Lisboa, em cartas ao monarcha. «Cá está tudo, escrevia, em
+estado que não ha mouro que cuyde haveis de ser de ferro para o seu ouro, nem
+christão que o creio.» E passava a enumerar o estendal das miserias. As armadas
+ficavam podres, que se desfaziam com as mãos; e não escapariam ao inverno, sem
+irem ao fundo. Nenhum dos soberanos do Oriente confiaria nem uma palha a um
+portuguez: a tanto chegára o descredito. Fôra um milagre trazer do reino á
+India, a salvamento, a esquadra em que viera. Todos os dias havia em<span
+class="pn"><a name="pag_295">{pg. 295}</a></span> Goa lançadas, revoltas e
+desafios, capazes de maravilhar até a propria Italia. Não havia soldado que não
+tivesse uma ou mais mancebas. Todos desobedeciam aos capitães, e cada qual se
+arvorava em chefe. Por causa das mancebas dos soldados havia revoltas e
+desastres em todas as náus. Nas Molucas, os nossos, depois de saquearem e
+roubarem as casas de um certo rei, pozeram-no a ferros e «forçaram suas
+mulheres com tamanhas desonestidades, que se não póde dizer a V. A.&mdash;Todos são
+ladrões, todos, sem excepção, chatins. As cobiças e vicios teem cobrado tamanha
+posse e authoridade, que nenhuma cousa já se póde fazer por feia e torpe, que
+dos homens seja estranha. E são mais as almas perdidas dos portuguezes que veem
+á India, do que se salvam as dos gentios que os prégadores religiosos convertem
+á nossa santa fé.»<span class="pn"><a name="pag_296">{pg. 296}</a></span></p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1239" href="#tex2html104"><sup>[104]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da republica romana</em>, <small>I</small>, pp. 161-2 e 275-6.</p>
+
+ <p><a name="foot1240" href="#tex2html105"><sup>[105]</sup></a> V. na
+ <em>Hist. da repub. romana</em>, <small>I</small>, pp. 188-95, a descripção
+ da pirataria mediterranea: causas identicas produzem resultados eguaes.</p>
+
+ <p><a name="foot1241" href="#tex2html106"><sup>[106]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da republica romana</em>, <small>I</small>, p. 274.</p>
+
+ <p><a name="foot1242" href="#tex2html107"><sup>[107]</sup></a> <em>Hist. da
+ rep. romana</em>, <small>II</small>, p. 187.</p>
+
+ <p><a name="foot1243" href="#tex2html108"><sup>[108]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da rep. romana</em>, <small>I</small>, p. 356</p>
+
+ <p><a name="foot1244" href="#tex2html109"><sup>[109]</sup></a> V. nas
+ <em>Raças humanas</em>, a p. <small>LX-I</small> do vol. <small>I</small>, o
+ estado actual dos restos da colonia portugueza de Malaka; tambem
+ <small>I</small>, pp. 75 e segg.</p>
+
+ <p><a name="foot1245" href="#tex2html110"><sup>[110]</sup></a> 1 D. Francisco
+ d'Almeida 1505 1.º viso-rei</p>
+
+ <p>2 Affonso de Albuquerque 1509</p>
+
+ <p>3 Lopo Soares de Albergaria 1515</p>
+
+ <p>4 Diogo Lopes de Sequeira 1518</p>
+
+ <p>5 D. Duarte de Menezes 1521</p>
+
+ <p>6 Vasco da Gama 1524 2.º viso-rei</p>
+
+ <p>7 D. Henrique de Menezes 1524</p>
+
+ <p>8 Lopo Vaz de Sampaio 1526</p>
+
+ <p>9 Nuno da Cunha 1529</p>
+
+ <p>10 D. Garcia de Noronha 1539 3.º viso-rei</p>
+
+ <p>11 D. Estevam da Gama 1540</p>
+
+ <p>12 Martim Affonso de Sousa 1542</p>
+
+ <p>13 D. João de Castro 1545 4.º viso-rei</p>
+
+ <p>14 Garcia de Sá 1548</p>
+
+ <p>15 Jorge Cabral 1549</p>
+
+ <p>16 D. Affonso de Noronha 1550 5.º viso-rei</p>
+
+ <p>17 D. Pedro Mascarenhas 1554 6.º viso-rei</p>
+
+ <p>18 Francisco Barreto 1555</p>
+
+ <p>19 D. Constantino de Bragança 1558 7.º viso-rei</p>
+
+ <p>20 D. Francisco Coutinho 1561 8.º viso-rei</p>
+
+ <p>21 João de Mendonça 1564</p>
+
+ <p>22 D. Antão de Noronha 1564 9.º viso-rei</p>
+
+ <p>23 D. Luiz de Athayde 1569 10.º viso-rei</p>
+
+ <p>24 D. Antonio de Noronha 1571 11.º viso-rei</p>
+
+ <p>25 Antonio Moniz Barreto 1573</p>
+
+ <p>26 D. Diogo de Menezes 1576</p>
+
+ <p>27 D. Luiz de Athayde 1578 12.º viso-rei</p>
+
+ <p>28 Fernão Telles de Menezes 1581</p>
+
+ <p>29 D. Francisco Mascarenhas 1581 13.º viso-rei</p>
+
+ <p>30 D. Duarte de Menezes 1584 14.º viso-rei</p>
+
+ <p>31 Manuel de Sousa Coutinho 1588</p>
+
+ <p>32 Mathias de Albuquerque 1591 15.º viso-rei</p>
+
+ <p>33 D. Francisco da Gama 1597 16.º viso-rei</p>
+
+ <p>Pela constituição do vice reino da India o mandato dos governadores durava
+ tres annos, findos os quaes podiam ser reconduzidos por novo triennio,
+ conforme succedeu a muitos, e se vê do rol supra. Com a nomeação do vice-rei
+ iam, em cartas fechadas e numeradas, as dos substitutos; e quando occorria a
+ morte do governador abria-se a primeira <em>successão</em>, na falta do
+ individuo ahi indicado, a segunda, etc. As datas acima inscriptas e a
+ ausencia do titulo do viso-rei mostram quem governou por <em>successão</em>.
+ O titulo de vice-rei, excepcional a principio, tornou-se inherente ao cargo
+ de governador desde 1550.</p>
+
+ <p><a name="foot1246" href="#tex2html111"><sup>[111]</sup></a> J. Freire de
+ Andrade, <em>Vida de João de Castro</em>.</p>
+</blockquote>
+<hr style="width: 15%">
+
+<h3><a name="SECTION002440">IV<br>
+Summario da derrota. Volta ao reino</a> </h3>
+
+<p>Anarchicamente iniciada, a occupação da India foi, de principio a fim, uma
+exploração anarchica. A politica maritima e commercial de D. Francisco de
+Almeida, o imperio de Affonso de Albuquerque, o virtuoso reinado de D. João de
+Castro, provaram egualmente impotentes para organisar o dominio portuguez no
+Oriente, de um modo regular e duradouro. Nem a arte, nem a força, nem o santo
+exemplo, poderam disciplinar a turba dos invasores da India.</p>
+
+<p>Causas intimas, a que de passagem temos alludido, o impediam. A Renascença,
+apresentando aos homens um sem numero de idéas e impressões novas,
+desorganisando os systemas, as crenças, as instituições e todo o organismo das
+sociedades medievaes, abandonou o individuo aos impulsos desordenados da
+natureza, pondo ao mesmo tempo nos seus actos uma energia affirmativa até alli
+desconhecida. Heroismo pessoal e naturalista, uma grande explosão de força, a
+devassidão nos costumes e a anarchia nas idéas, eis ahi em que se resume, por
+este lado, a Renascença. A França, a Italia, a Hespanha, a Inglaterra e a
+Allemanha, isto é, a Europa inteira, offerecem ao observador caracteres de
+phisionomia bastantes para suppôr que, se a qualquer d'ellas tivesse cabido o
+destino de<span class="pn"><a name="pag_297">{pg. 297}</a></span> occupar as
+Indias, o seu imperio não teria sido melhor nem peior do que foi o nosso.</p>
+
+<p>Porventura, porém, ás nações protestantes que nos succederam com superior
+fortuna no Oriente poderia a rigidez fanatica ter cohibido um tanto, e o genio
+mercantil ter mostrado mais depressa os meios efficazes de explorar a India,
+sem a saquear. A nós faltavam-nos os dois requisitos. O catholicismo não era
+então&mdash;como o era a religião protestante&mdash;uma fé intima e absorvente: era uma
+convicção para uns, uma convenção para outros, uma conveniencia para muitos, e
+um desvairamento para os defensores intolerantes da fé. Havia decerto uma
+affirmação religiosa unanime e violenta; mas desapparecera a unanimidade
+ingenua e espontanea da crença, que radica as religiões. O catholicismo
+atravessára uma crise, de que saíra malferido; e a violencia com que se
+impunha, estava denunciando que ficára sendo, antes uma expressão de
+authoridade, do que uma expansão de sentimento popular. Isto fazia com que o
+povo, sem renegar o catholicismo, fosse caíndo n'um relaxamento; e que, ficando
+com a religião, deixasse de lhe dar significação ou importancia moral. Muita
+devoção e muita devassidão; eis ahi a concomitancia resultante, e
+universalmente provada pelos costumes das nações catholicas depois da
+Renascença.</p>
+
+<p>Apesar do catholicismo, podemos, pois, dizer que não havia no dominio da
+India uma religião capaz de moralisar o imperio, embora houvesse exemplos de
+uma santidade heroica como a de Antonio Galvão, o apostolo das Molucas. Mas
+taes exemplos eram excepções, e faltando o primeiro elemento de ordem, quando
+os motivos sociaes não se tinham definido ainda de um modo sufficiente, o
+individualismo naturalista do tempo arrastava os<span class="pn"><a
+name="pag_298">{pg. 298}</a></span> homens a todas as desordens, precipitava-os em
+todos os crimes; e umas e outros cresciam tanto mais, quanto maior era a força
+intima, o arrojo, a temeridade dos guerreiros. Sobre isto, a influencia
+dissolvente do clima, do luxo, da sensualidade oriental, veiu lançar a sua
+semente de corrupção; e o individuo, desarmado, sem crenças nem leis, vivendo
+ao bel-prazer dos seus instinctos e paixões, caíu n'um poço de ignominias,
+perdendo inteiramente a noção do proprio brio, da força, e tornando-se, de um
+pirata, em um chatim.</p>
+
+<p>A estas causas geraes é necessario addicionar as causas particulares,
+provenientes da incapacidade fortuita dos governos em Lisboa; e porventura, se
+a India se tivesse descoberto meio seculo mais cedo, o genio politico de D.
+João II teria desde o começo evitado graves transtornos. D. Manoel e os seus
+conselheiros tinham para a India um plano só: exploral-a, e arrastar a Lisboa,
+por quaesquer meios, as riquezas do Oriente. Systema e programma de governo
+foram cousas desconhecidas; e assim vemos que a occupação muda de caracter com
+os successivos governadores, e ao sabor das idéas ou das inclinações de cada um
+d'elles. A India soffre de todos os inconvenientes dos governos electivos e
+temporarios, sem gozar das vantagens dos governos hereditarios; e é n'isso que
+se fundará sempre a accusação de incapacidade que a historia formula contra o
+nosso dominio.</p>
+
+<p>Porém essa incapacidade trazia raizes de mais fundo. Explorar o Oriente
+commercialmente á hollandeza, era cousa para que o nosso genio nos não chamava.
+Nos estadistas não houve a perspicacia bastante para medirem as differenças que
+distinguiam Portugal de Veneza, e as condições do commercio anterior do Oriente
+das condições em que<span class="pn"><a name="pag_299">{pg. 299}</a></span> elle ia
+achar-se, desde que nós chegámos por mar, armados, á India. A geographia dera
+aos arabes o dominio indisputado dos mares das Indias; e era ella tambem que
+fazia dos venezianos os alliados do Turco, e de Veneza o emporio do commercio
+oriental. Para nos substituirmos na India aos arabes, na Europa a Veneza,
+tinhamos contra nós, não só a geographia, mas ainda e principalmente outra
+circumstancia. Indo despojar os arabes da sua preza, deviamos commerciar de
+armas na mão, manter poderosas esquadras n'esses mares longinquos outr'ora
+avassallados pacificamente por visinhos.</p>
+
+<p>Estas causas naturaes, alliadas ás causas egualmente naturaes da falta de
+tirocinio commercial, produziram um genero de exploração, até certo ponto novo
+na historia; porque não é propriamente uma <em>razzia</em>, como as conquistas
+dos antigos persas ou assyrios, pois pretende ser um commercio; mas, como o
+commercio só póde fazer-se á sombra da fortaleza ou á vista da esquadra, as
+transacções andam sempre misturadas com pilhagens e mortes, com roubos e
+violencias. Isto dá aos nossos capitães da India uma phisionomia original na
+sua dualidade. Vê-se de um lado um mercador, como foram outr'ora os
+carthaginezes ou phenicios; mas vê-se no mesmo homem um soldado, como os de
+Cyro, ou Assurbanipal.<a name="tex2html112"
+href="#foot1247"><sup>[112]</sup></a></p>
+
+<p>Uma tal confusão de cousas, um tão grande cahos de elementos oppostos e
+idéas contradictorias, bastavam para arruinar breve e necessariamente o
+imperio; ainda quando, por sobre tudo isto, o caracter do portuguez, pouco vivo
+na sua audacia, bronco, cheio de orgulho ingenuo, mais temerario<span
+class="pn"><a name="pag_300">{pg. 300}</a></span> ainda que valente, presumpçoso e
+fanfarrão, não viesse accrescentar difficuldades; ainda quando o ar inebriante,
+os venenos adormentadores, as seducções perigosas, os vicios extenuantes do
+encantado Oriente, não viessem entorpecer os braços e perverter o espirito dos
+occupadores.</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>O padre Manuel Godinho, que estava na India pelo meiado do
+<small>XVII</small> seculo, dividia em quatro epochas a historia do nosso
+dominio oriental. A primeira eram os 24 annos do reinado de D. Manuel; a
+segunda os 35 do de D. João III; a terceira vinha do 1557 a 1600; e a quarta,
+finalmente, até á epocha em que elle viajava no Oriente.</p>
+
+<p>Logo na primeira, o dominio portuguez conseguira alargar-se por todas as
+costas e ilhas, desde Sofala até Malaka; isto é, pela Africa Oriental, pela
+Persia, por todo o Hindustan, do Indo ao Ganges, e pela Indo-China. Algumas,
+poucas, cidades propriamente portuguezas, feitorias e fortalezas espalhadas por
+toda a parte, e a vassallagem dos soberanos em cujos Estados assentavam: eis
+ahi a fórma do nosso dominio. Goa e Malaka eram nossas; e tributarios da corôa
+portugueza os soberanos (independentes ou subalternos, porque o regime politico
+indigena era feodal)&mdash;o de Hormuz, na Persia; o de Tidore, nas Molucas;<a
+name="tex2html113" href="#foot1248"><sup>[113]</sup></a> o de Simhala; o das
+ilhas Malajas; o de Batukala (Batecalá), no Kanará; o de Kollan, em Karnataka,
+na extremidade austral da peninsula da India; e na costa de Africa, os de
+Malinda e de Quilua. Além d'estas suzeranias, algumas dellas consignadas apenas
+nos<span class="pn"><a name="pag_301">{pg. 301}</a></span> tratados, varias
+fortalezas garantiam a vassallagem de outros territorios. A de Sofala era a
+primeira, para quem vinha do reino pelo Cabo; depois a de Sokotra na ilha
+d'esse nome, junto ao Jar-Hafun, dominando a embocadura do mar Vermelho; d'ahi
+Hormuz, na garganta do golpho persico; depois, na costa occidental da India,
+descendo para o sul, Chala, Anjediva, fronteira a Goa; Kananor, Kalikodu, onde
+Vasco da Gama primeiro aportou; Kadunguluru (Cranganor); Katchi, theatro das
+façanhas de Duarte Pacheco; e Kollam (Coulão), proximo do cabo Kumâri. Sobre as
+ilhas do oceano indico havia a fortaleza de Malaia (Maldiva), e a de Kola-ambu
+(Colombo) em Ceylão; e finalmente, lá para os confins orientaes, Persaim
+(Pacem) no Pégu,<a name="tex2html114" href="#foot1249"><sup>[114]</sup></a> e
+Ternate nas Molucas.</p>
+
+<p>Os annos do segundo periodo viram consolidar-se estes dilatados dominios por
+meio de numerosas fortalezas que, completando o systema esboçado pelas antigas,
+bordavam de feitorias todas as costas. Na oriental da peninsula hindustanica,
+ou de Cholamandalam (Coromandel), levantaram-se os presidios de Nagapatan e de
+Mahabalipurum (Meliapor, S. Thomé). Completou-se a occupação da ilha de Ceylão
+por meio de fortalezas e colonias-feitorias<a name="tex2html115"
+href="#foot1250"><sup>[115]</sup></a> de Jafanapatan, de Negombo, de Kalitura
+(Calaturé) e de Galla, na costa occidental; e de Pattikalo (Baticaloa) e
+Trinkonomali (Triquimalé), na oriental. Bassaim, Daman e Diu, além de outros
+pontos fortificados, asseguraram a costa de Kambai. Incessantes guerras, bem
+succedidas, abateram as revoltas, consolidaram dominios antigos, ou alargaram o
+imperio portuguez. Assim, a<span class="pn"><a name="pag_302">{pg. 302}</a></span>
+derrota final do Samudri de Kalikodu, do sultão de Kambai, do Shah de Vijajapur
+(Hidalcão), do Nizam de Ahmednagar (Melique, Isamaluco, Nisamaluco, ou
+Nisamoxá), garantiram a posse pacifica de toda a costa occidental da India, no
+Gujerât, em Kontana, no Kanará. As guerras da Indo-China firmaram o poder
+portuguez em Jadithani (Ujantama), no reino de Annam, e em Johor: em Bintang
+(Bintão), na ponta extrema da peninsula de Malaka; em Atchim (Achem), na ilha
+de Sumatra; e a submissão de todo o archipelago de Sunda até ás Molucas
+completou, por oriente, o imperio colonial portuguez, reproducção do velho typo
+grego e liby-phenicio.<a name="tex2html116"
+href="#foot1251"><sup>[116]</sup></a> Por occidente, os resultados eram menos
+decisivos; e se as duas costas que levam ao estreito de Bab-el-Mandeb se
+confessavam tributarias de Portugal, nem em Aden ao norte, nem ao sul, na costa
+de Adal, o nosso dominio era positivo. O musulmano guardava com ciume a porta
+do mar santo de Meka; e os mercadores arabes sabiam que, mais ou menos
+embaraçados, jámais seriam de todo expulsos do commercio da India, emquanto
+possuissem o mar Vermelho, onde os inimigos iam, sim, mas não conseguiam
+fixar-se. De arma ao hombro, na sua ilha de Sokotra, e a bordo das armadas que
+cruzavam no golpho do mar da Arabia, o portuguez espiava o armamento das
+esquadras de rumes e os comboyos das náus de Meka; mas não faltavam
+opportunidades para que umas e outras, astuta ou violentamente, conseguissem
+atravessar o estreito, entrando ou saíndo para mercadejar ou combater.</p>
+
+<p>No terceiro periodo conserva-se, não se alarga o dominio da corôa; ainda que
+na Africa oriental e<span class="pn"><a name="pag_303">{pg. 303}</a></span> na
+costa do Malabar apparecem novos presidios. São, no Kanará, Barkuluru
+(Barcelor), Mangaluru (Mangalor), e Hanavare (Onor). Na Africa, pela derrota e
+morte do <em>rei</em> de Laum, a fortaleza de Patta; mais ao sul a de Mombas, e
+a da ilha de Pemba; e além do Zamgebar, já avassallado, Monomotapa, na costa de
+Moçambique. Afóra isto, funda-se ainda Sirian, no Pégu; e Hugli (Golim), em
+Bengala, sobre o delta do Ganges.</p>
+
+<p>Porém o acontecimento mais grave d'este periodo foi a guerra simultanea do
+Adil-Shah contra Goa, do de Ahmednagar contra Chala, do Samudri contra
+Kalikodu. Os principes indigenas da India Occidental, collocados contra o
+portuguez, foram porém batidos; ao mesmo tempo que o era o de Atchin (Achem)
+atacando Malaka; e que um pirata incommodo e celebre nos mares da India, o
+<em>Cunhalle</em> (Kunji-Ali-Markar), era degollado em Goa depois de tomado o
+seu forte de Pudepatan, d'onde saía ás prezas.</p>
+
+<p>Apesar dos symptomas de decomposição, o imperio commercial portuguez
+attingia, no fim do <small>XVI</small> seculo, o seu apogeu. As frotas
+singravam, carregadas de preciosidades, até aos mares do Japão e da China,
+d'onde traziam a prata e o ouro, sedas e almiscar. Das Molucas vinha o cravo,
+de Sunda a massa e a noz, de Bengala toda a sorte de finissimos tecidos, do
+Pégu os rubis, de Ceylão a canella, de Mausalipatam os diamantes. Na pequena
+ilha de Manaar, junto a Ceylão, carregavam-se as perolas e aljofares; em
+Atchin, na Sumatra, o benjoim; das ilhas Malajas trazia-se o ambar; e Ceylão
+exportava elephantes, por Jafanapatan. Katchi contribuia com os angelins, tekas
+e couramas; toda a costa com a pimenta, e com o gengibre o Kanará. Nas ilhas de
+Sunda, Madurá fornecia o salitre,<span class="pn"><a
+name="pag_304">{pg. 304}</a></span> Solor o pau, e Bornéo dava a camphora. De
+Kambai vinham o anil, o lacar, os tecidos; e Chala era celebre pelas suas
+baetas. Hormuz vendia os cavallos da Arabia, e as sedas e alcatifas da Persia:
+e, do outro lado do mar da India, a Africa dava em Sokotra o azebre, em Sofala
+o ouro, em Moçambique o marfim, o ebano e o ambar. Além dos preciosos
+carregamentos, além dos lastros de arroz do Kanará para mantimentos, e de
+pimenta que era um estanco régio, as náus da corôa levavam, de Diu, de Hormuz e
+de Malaka, as grossas quantias de dinheiro que n'esses tres pontos estrategicos
+se cobravam, pelos <em>cartazes</em> que ahi compravam os navios mercantes.</p>
+
+<p>As causas de decadencia, tão antigas como a descoberta, mas avolumadas todos
+os dias, precipitaram porém a queda, logo que, pela união a Castella, Portugal
+se achou envolvido nas guerras com a Inglaterra e a Hollanda. Mais tarde ou
+mais cedo, de um ou de outro lado, é, porém, fóra de duvida que o dominio
+portuguez na India, corroido de tão grandes lepras, cairia, desde que os
+protestantes, maritimos e mercadores, seguissem caminho do Oriente, pelo cabo
+da Boa-Esperança, na esteira das náus portuguezas. Já por vezes piratas
+francezes tinham ido por ahi á India; e se, com o inglez, nem o hollandez lá
+fôra ainda, era porque lh'o impediam as condições e embaraços que, a religião
+para um, para o outro a independencia, levantavam na Europa. Batida a Hespanha
+pela Inglaterra protestante e pelas Provincias-unidas independentes, ambas
+estas nações, alliadas, iam batel-a na India, com a facilidade com que se vence
+um inimigo doente, mal apercebido, cheio de vicios e molestias.</p>
+
+<p>Os que no meiado do <small>XVII</small> seculo observavam o<span
+class="pn"><a name="pag_305">{pg. 305}</a></span> imperio portuguez, diziam no
+estylo pretencioso do tempo: «Está o estado da India tão velho que só o temos
+<em>por estado</em>. Se foi gigante é pigmeu. Se foi muito, não é já nada.» Era
+apenas Goa e Macau, Bassaim, Daman, Diu, Moçambique e Mombas. Já não havia
+armadas nos mares; e os hollandezes e inglezes, fomentando a rebellião dos
+naturaes, e auxiliando-os, substituiam-nos, como nós tinhamos substituido os
+arabes&mdash;mas com outra arte e muito juizo.</p>
+
+<p>Uns preferiram a Indo-China, outros as partes occidentaes; e em cincoenta
+annos varreram das costas e ilhas os presidios e feitorias portuguezas. O
+inglez combateu ao lado do persa em Hormuz para nos expulsar, e o exito
+levantou todos os naturaes. O soberano do Arakan lança-nos fóra do Pégu, o de
+Bengala despede-nos de Hugli, perdemos assim Mahabalipurum e na contra-costa,
+Mangaluru, Barkuru, Hanavare, Chala, Kalikodu. A perda de Hormuz arrastou
+comsigo Maskat, com a qual se foram todos os estabelecimentos no litoral da
+Arabia até ao mar Vermelho; e desguarnecida a costa do norte, inutil era
+conservar Sokotra e os pontos fronteiros no Adal, que foram abandonados com
+Quilua em Africa, as ilhas de Malaja e Anjediva, e Passir (Pacem) em
+Sumatra.</p>
+
+<p>Os hollandezes herdavam, do nosso imperio do extremo Oriente, tudo o que não
+voltava a caír no poder dos naturaes. Outro tanto succedia na India. Da Africa,
+Arabia, e Persia, isto é, das fronteiras occidentaes, ficavam-nos Mombas e
+Moçambique;<a name="tex2html117" href="#foot1252"><sup>[117]</sup></a> das
+fronteiras orientaes, o ponto isolado de Macau, já na China, e Solor; do
+centro, restavam apenas uma cidade e quatro fortes&mdash;memoria, mais do<span
+class="pn"><a name="pag_306">{pg. 306}</a></span> que dominio, em frente d'esses
+mares, onde já se não via tremular a bandeira portugueza em poderosas esquadras
+como as de outro tempo.</p>
+
+<p>Ambon, Tidor, Ternate nas Molucas, Malaka na sua peninsula, Madura e toda a
+Sunda, eram hollandezas; os nossos antigos pontos de Ceylão&mdash;Kola-ambu e
+Kalitura, Negombo e Battikalo, Trinkonomali, Galla e Jafnapatan, com a ilha de
+Manaar visinha&mdash;pertenciam-lhe tambem; e nas duas costas da peninsula
+hindustanica tinham-nos tomado egualmente Negapatan de um lado, Kollam,
+Kadunguluru, Kananor, e Katchi, do outro. Abertamente se proclamava a queda do
+imperio portuguez, e até os mais infimos blasonavam. Um regulo do Arrakan
+escrevia nos seus estandartes: «Fatekan, senhor de Sundiva, derramador do
+sangue dos christãos e destruidor da nação portugueza!»</p>
+
+<p>Tudo estava perdido, e a viagem terminada. Não havia outra cousa a fazer,
+senão voltar a casa: embarcar para o reino, com o producto das rapinas, dando a
+pôpa a esse mundo, onde a nossa missão terminára.</p>
+
+<p>Cada capitão que, nos bons tempos, regressava da India, fazia outro tanto:
+cerrava as arcas atulhadas de ouro e pedrarias, arrumava a bagagem no porão, e
+largava as velas á náu, dizendo adeus para sempre ao Oriente!</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>Assim aconteceu em 1589 a D. Paulo de Lima, o que assolára Johor, na
+Malasia.<a name="tex2html118" href="#foot1253"><sup>[118]</sup></a> Foi em
+janeiro d'esse anno funesto que embarcou em Goa. Vinha rico; e a náu gemia com
+o peso do carregamento,<span class="pn"><a name="pag_307">{pg. 307}</a></span>
+abarrotada com um lastro de pimenta a granel, o convez atulhado de arcas,
+fardos e escravos. O capitão trazia comsigo a esposa e domesticos; e embarcaram
+com elle, de passageiros, numerosas pessoas: soldados de retorno, frades,
+clerigos e mulheres.</p>
+
+<p>Como na India não havia estaleiros onde os navios podessem vêr o fundo e
+passar o calafeto, a náu, já velha e demasiadamente grande, voltava em mau
+estado. Ao embarque benziam-se todos e imploravam a protecção dos frades,
+lembrando-se dos muitos naufragios que o tamanho e má condição das náus
+multipticava todos os dias. Este contava que da esquadra de Kalikodu, no anno
+anterior, tinham desapparecido quatro náus com toda a gente, vindo um mastro
+com a cordoalha da enxarcia entrar pelo rio de Daman. Aquelle, que já tres
+vezes fôra á India, narrava o naufragio celebre da <em>Flamenga</em>, e chamava
+ás náus sepultura de homens, e vasos de desastres: e um, persignando-se,
+contrito, dizia que as náus iam e vinham tão alastradas de peccados, que nas
+tormentas se ouviam falar os demonios claramente. Os religiosos não declaravam
+que fosse impossivel, mas recommendavam resignação e esperança no auxilio
+divino; intercalando nos seus discursos phrases breves, n'um latim sagrado.<a
+name="tex2html119" href="#foot1254"><sup>[119]</sup></a></p>
+
+<p>Entretanto a viagem seguia feliz com um mar bonançoso. Todos confiavam em
+que Deus não deixaria de proteger um capitão piedoso como era D. Paulo de Lima.
+Isto, porém, não impedia que fossem commentando as tristes cousas do mar; e com
+tanta maior liberdade, que começavam a crer-se<span class="pn"><a
+name="pag_308">{pg. 308}</a></span> salvos d'esses perigos, á medida que viam
+irem-se approximando do terrivel cabo da Africa. Asseguravam que nem um terço
+dos que embarcavam em Lisboa chegavam á India, e isto ninguem impugnava, por
+ser verdade reconhecida; e que a volta ao reino acabava os que as doenças da
+terra, a miseria e a guerra tinham poupado no Oriente. Era um sorvedouro de
+homens, era... De 700 a 800 que cada náu levava, só metade vinha a servir.
+Depois, queixavam-se dos calafates que lançavam os navios ao mar, mal feitos e
+mal vedados; e referiam os numerosos casos de agua-aberta, dentro do Tejo, em
+navios novos. Outros accusavam o modo deshumano com que se arrumava a bordo
+muita mais gente do que a lotação permittia: iam como carneiros, a monte, nas
+toldas, expostos ao sereno mortifero das noutes, sem camas nem para os
+enfermos, respirando o ar podre das cobertas: por estas causas havia o
+escrobuto, as febres podres, as dysenterias... como se não bastassem os perigos
+do mar e dos ventos! Na náu em que fôra á India D. Antonio de Noronha iam 900
+pessoas: metade morreu na viagem. Além d'isso os capitães&mdash;era sabido&mdash;roubavam
+nos mantimentos, e para poupar, escolhiam generos da peior especie. Tudo ia
+avariado e podre, a agua corrompida. N'uma viagem de seis mezes, como a da
+India, abasteciam-se para cinco apenas: d'ahi resultavam fomes.</p>
+
+<p>Estas conversas exaltavam muitas vezes os animos. Como punham nos crimes o
+nome dos réus, levantavam-se os partidos; e mais de uma vez houve rixas tão
+bravas, que o capitão se viu forçado a leval-os de roldão, para debaixo do
+castello de prôa; e os frades, atraz, de crucifixos nas mãos, prégavam paz e
+amor, com orações pausadas em latim.<span class="pn"><a
+name="pag_309">{pg. 309}</a></span></p>
+
+<p>Os fidalgos e religiosos, no chapiteu da pôpa, commentavam as queixas dos
+soldados, reconhecendo que, em verdade, tinham razão; e como eram mais
+letrados, ligavam os effeitos ás causas.</p>
+
+<p>A abundancia da pimenta e uma economia mal entendida tinham exagerado as
+dimensões dos navios, ainda por cima aggravada pelo excesso das cargas. Era
+funesta uma cubiça, causa de tantas victimas; mas o mal vinha de longe, desde o
+reinado de D. João <small>III</small>. Os navios, mal desenhados, de muito
+porão, e, por cima de tudo, abarrotados, não obedeciam ao leme, e eram
+ronceiros... Verdade seja dita, os antigos não tinham podido admirar as
+monstruosas carracas de sete e oito cobertas, com alojamento para dois mil
+homens e porões para mil tonelladas de carga. Cada um d'esses navios parecia um
+reino! Armavam peças de vinte tonelladas de peso e calavam mais de dez braças.
+O costado media cincoenta palmos acima do lume de agua á meia náu, e chegava a
+oitenta nos castellos á pôpa e á prôa. Os baileus, que os ligavam, tinham dois
+andares: e nos cestos de gavea cabiam dez ou doze homens, para manobrar os
+canhões pequenos: berços e sacres. Mas as carracas, observavam tambem, eram
+pessimas no mar: boiavam, não andavam. E um dos fidalgos velhos contava como
+era o <em>S. João</em>, o <em>Botafogo</em> em que fôra, em 1535, com a divisão
+portugueza, a Tunis, na expedição de Carlos <small>V</small>.</p>
+
+<p>E por fim, esquecidos de males distantes, todos concordavam em admirar a
+grandeza de Portugal, onde havia sempre para mais de 400 navios de alto-bordo,
+além de perto de 2:000 caravelas e vasos menores... porque o tempo ia bonança,
+e o vento fresco levava-os rapidamente, pelo canal de Moçambique, direito ao
+Cabo.<span class="pn"><a name="pag_310">{pg. 310}</a></span></p>
+
+<p>Estavam em 26° quando, porém, quasi á vista da ponta austral de S. Lourenço
+(Madagascar), deram por uma agua que a náu fazia. Tudo correu aos porões,
+clamando contra os calafates, por cuja causa as náus se perdiam, andando pelo
+mar a Deus misericordia, por pouparem quatro cruzados. Afastando a carga, viram
+que a agua era na prôa, abaixo das escôas, ás primeiras picas: cuspia as
+estopas e as pastas de chumbo do fôrro, jorrando no porão, d'um torno tamanho
+que por elle cabia um punho. Mas, como o tempo estava bonança, não se
+affligiram demasiado, depois de terem vedado o rombo com saccas de arroz; e
+foram rumando para o sul, até 32°, a oitenta leguas da terra do Natal. Já
+levavam tres mezes de viagem.</p>
+
+<p>Foi então que o vento rondou a sudoeste, o que os forçou a fazerem-se na
+volta do norte. O mar crescia, e com o quebrar das vagas a náu
+desconjuntava-se, e o torno da prôa, vedado com arroz, cedeu. Agua aberta e
+temporal desfeito: era um dia de juizo! Começaram a ouvir-se os demonios, e as
+mulheres a gritar em ais. Cada qual implorava o seu santo, a sua Nossa-Senhora,
+com uma fé simples e espontanea, beijando os relicarios e bentinhos, resando em
+voz alta, confessando em grita os seus peccados, arrepellando os cabellos,
+estorcendo-se nas ancias do medo da morte e do inferno. Decorriam os
+expedientes devotos e pediam-se milagres. O capitão levava a bordo uma cruz de
+ouro com uma particula do Santo-Lenho engastada: reliquia, fetiche, em que
+todos punham as maiores esperanças. Amarraram-na com um fio de retroz,
+ataram-na piedosamente a uma espia, lançaram-na pela pôpa, a vêr se moderavam a
+sanha do mar. A náu rolava com as ondas, o Santo-Lenho, seguro na pôpa, com um
+prégo para o afundar, seguia<span class="pn"><a name="pag_311">{pg. 311}</a></span>
+os balanços do navio. Milagre! milagre! exclamaram quando o céu aclarou,
+amainando o vento, parecendo socegar as ondas. Os homens&mdash;fidalgos, soldados e
+escravos, brancos, pretos, mulatos e amarellos, pozeram mãos á obra, confiando
+ainda na salvação. Havia seis palmos de agua no porão; mas apesar da ancia,
+revezando-se nos aldropes das bombas, não conseguiam vencel-a. Alijaram ao mar
+toda a carga do convez, para libertar as escotilhas e alliviar a náu que vinha
+abarrotada. Nos porões a carga nadava, e as pranchas de brazil, as pipas da
+aguada, e mais volumes, boiando, eram lançados pelos balanços do mar contra o
+costado, batido por fôra com violencia pelas ondas. O temporal recrescia; o
+Santo-Lenho não queria protegel-os! Era um inferno e um desespero de estrondos,
+com o assobiar sinistro do sudoeste na cordoalha das enxarcias. Como as bombas
+não vasavam os porões, estabeleceram forcas nas escotilhas, e por ahi tiravam a
+agua em barris, como de um poço. D. Paulo de Lima não fugia ao trabalho,
+puxando á corda como os escravos. Nem comer podiam; e os frades iam de uns a
+outros, com agua e biscoitos, matando-lhes a fome e a sede, combatendo o
+cansaço com exhortações, e recommendando contra a desesperança que confiassem
+na providencia de Deus...</p>
+
+<p>Tres dias, desde 12 a 14 de março, conservaram a fé e os brios. Ao quarto
+viram que trabalhavam debalde. A agua já inundava a coberta, e só no convez se
+podia estar. As bombas não trabalhavam, entupidas com a pimenta a granel do
+porão; e só á custa do muito que iam alijando&mdash;todo o fructo das rapinas da
+India!&mdash;conseguiam que o navio não sossobrasse. Já tinham resolvido varar na
+terra; mas o temporal crescia sempre, e no<span class="pn"><a
+name="pag_312">{pg. 312}</a></span> meio da cerração plumbea, não podiam
+governar-se. Para mais, uma vaga partiu o leme. O vento sudoeste vinha batido
+em salseiros rijos, que despedaçavam o panno. A pobre náu era um destroço, com
+que as ondas brincavam na sua furia. Assim estiveram, perdidos e já sem
+esperança, duas noites e um dia. De 14 para 16, os transes foram medonhos. Em
+montes, estendidos no convez, os homens, ou blasphemavam, ou se confessavam em
+voz alta, accusando todos os seus crimes, os roubos, as violencias, os
+estupros, as matanças da India, e pedindo em lagrimas, aos clerigos, que os
+salvassem das penas do inferno! As mulheres, pranteando-se, levantavam um choro
+de resas, lembravam-se dos seus santos favoritos, as <em>nossa-senhoras</em>
+particulares da sua devoção, fazendo votos e promessas. Os frades ouviam as
+confissões, absolviam, deixando semi-mortos, na confiança do perdão, os que
+antes clamavam em desespero, movidos pelo terror. E por sobre tudo isto os
+salseiros rijos do vento assobiavam nas cordas, bradando: morte! morte! «D.
+Paulo havia que aquelle castigo era por seus peccados.»</p>
+
+<p>No dia 16 o tempo clareou um pouco: e no rumo de nor-nordeste que levavam,
+descobriram terra á prôa. A noute de 17 passou-se em afflicções e esperanças;
+mas quando amanheceu, e os olhos ávidos não poderam tornar a vêr a costa,
+decidiram formalmente deitar o batel ao mar. Logo todos se precipitaram no
+barco, ainda suspenso nos apparelhos. A ancia de viver enlouquecia-os; e D.
+Paulo em pé sobre o batel, com a espada e a adaga em punho, defendia-o,
+acutilando os invasores, como n'uma abordagem. O seu abatimento, a sua
+fraqueza, a sua desesperança, apagavam-se, varridos pela aurora derradeira.
+Repellidos os homens, o batel desceu e<span class="pn"><a
+name="pag_313">{pg. 313}</a></span> poisou no mar. Depois veiu remando, pela pôpa
+da náu, para receber pela varanda os fidalgos, suas mulheres, e os frades: o
+commum dos infelizes tinha a bordo um tumulo feito. Com os balanços da náu e o
+impulso da vaga, o batel ameaçava despedaçar-se a cada momento contra o
+costado; e as mulheres desciam, penduradas em cordas de lançoes e pannos, até
+ao mar, onde as apanhavam.</p>
+
+<p>Os do batel gritavam, desesperados por partir, porque a gente era demais e o
+barco afogava-se; os da náu gesticulavam, bradando em furia para que os
+salvassem. Uma escrava, com o filho da senhora nos braços, mostrava-o de bordo
+á mãe que lh'o pedia, exigindo que a salvassem, se queriam salvar da morte a
+creança. E os marinheiros condemnavam, em altos gritos e phrases insultuosas e
+obscenas, D. Paulo e os fidalgos, pelos abandonarem cruamente a uma morte
+miseravel. Mais difficil fôra o naufragio da nau <em>Santiago</em>, no baixo da
+India, e tinham-se salvado todos em jangadas. Não abandonassem os infelizes,
+lembrando-se apenas de si, os fidalgos malditos! Havia tempo para formar uma
+jangada, onde todos iriam, guiados pelo batel.</p>
+
+<p>N'este desespero infernal e no meio da explosão de egoismo feroz houve um
+unico heroe: um frade que não saiu de bordo, sem ter confessado todos os
+condemnados. Absolvidos, lançou-se ao mar, e foi a nado agarrar-se ao batel que
+se afastava pesadamente: o habito salvou-o, porque os do barco não ousavam
+repellir o sacerdote, como repelliam a golpes os mais que vinham a nado. Na
+imminencia da morte, escrupulisavam de matar um padre.</p>
+
+<p>Por toda essa noute de angustias, o batel vogou nas aguas da náu: os remos
+não podiam vencer a força das ondas, e o vento arrojava-o para o mar. A carga
+era demasisada, e reconhecendo isto, deitaram<span class="pn"><a
+name="pag_314">{pg. 314}</a></span> fóra seis homens; depois mais seis, ficando de
+110, em 98, ao todo. A bordo da náu havia mais de outro tanto.</p>
+
+<p>Condemnados a uma morte inevitavel, já confessados e absolvidos, estavam
+resignados. Ainda tinham formado duas jangadas, que o mar logo devorou: e
+depois d'isso unanimemente resolveram morrer, a bem com Deus. Os do batel viam
+no escuro da noute as luzes das velas accesas ao retabulo da
+<em>nossa-senhora</em> do castello da pôpa,<a name="tex2html120"
+href="#foot1255"><sup>[120]</sup></a> diante do qual, prostradas de rastos, com
+os cabellos desgrenhados, chorando, as escravas resavam. Os homens faziam
+procissões sobre o convez, cantando ladainhas e hymnos. Pela manhã viram o
+batel tão perto que chegaram á fala; e pediam ainda que os salvassem com vozes
+tão profundas e piedosas, que mettiam medo e terror.</p>
+
+<p>Finalmente, n'um clamor de gritos e n'uma columna de fumo, espadanando a
+agua, a náu sossobrou: no alto do capitel da pôpa a escrava, com a creança nos
+braços, mostrava-a á mãe, desolada no batel. A náu sossobrou, enterrando
+comsigo os homens, as mulheres e «as cousas da India, adquiridas pelos meios
+que Deus sabe».</p>
+<hr style="width: 15%">
+
+<p>A viagem da India não terminou aqui. O imperio submergiu-se, mas os salvados
+foram arrastando ainda, pela arenosa costa, uma vida de miseria e
+perdição...</p>
+
+<p>O batel foi dar á terra em 27°20' sul, na terra dos <em>fumos</em>, a que os
+cafres chamam Macomata, a Zuluandia. Desembarcaram, os restos da náu da<span
+class="pn"><a name="pag_315">{pg. 315}</a></span> India; e achou-se que tinham 5
+espingardas, 5 espadas e um barril de polvora. Eram ao todo 98. Dos remos
+fizeram contos de lanças, e ferros das verrumas dos carpinteiros. Formaram em
+columna, seguindo costa em fóra, em demanda de Lourenço Marques.</p>
+
+<p>Á frente ia um frade com a cruz alçada; depois D. Pedro de Lima com metade
+da gente e das armas, na cauda o capitão da náu com o resto; e, entre ambos, as
+mulheres, umas de pé, outras em andores levados por marinheiros e grumetes, e
+feitos com os remos e velas do batel. Seguiam a columna bandos de cafres, com
+quem por vezes tinham de pelejar, e que fugiam rebolando-se no chão e em
+gatinhas, como bogios aos saltos. Dormiam na areia ao relento; comiam alguma
+cousa que apanhavam, principalmente os caranguejos da praia; levavam os pés
+empolados e em chagas... Em tamanha miseria se tornára o antigo imperio com que
+tinham andado pela India, pela Arabia e por Johor, em Malaka!</p>
+
+<p>Na altura de 26°30' depararam com os restos das jangadas da náo
+<em>Santiago</em>; uma sorte commum esperava, no regresso, todos os que vinham
+da India; e esses desastres eram os da nação, que em massa embarcára, e agora
+em massa tambem naufragava. «Estas desventuras e outras, diz o chronista, que
+cada dia se vêem por esta carreira da India poderam servir de balizas aos
+homens, principalmente aos capitães de fortalezas, para n'ellas se moderarem
+com o que Deus á boa mente lhes dá, e deixarem viver os pobres».</p>
+
+<p>Os naufragos, miseraveis e famintos, internaram-se em Manhica, achando nos
+cafres a protecção e carinho que negavam no Oriente aos naturaes.
+Dispersaram-se em varias direcções, indo uns por<span class="pn"><a
+name="pag_316">{pg. 316}</a></span> mar a Inhambane; e na ilha de Inhaca, D. Paulo
+«caío em cama, ou para melhor dizer, no chão», e morreu...</p>
+
+<p>Não eram, porém, sómente as ondas que, punindo a desordem e a avidez,
+tragavam os navios podres e abarrotados; eram tambem os nossos inimigos,
+cruzando nos mares da India, que apresavam as náus portuguezas, como outr'ora
+nós tinhamos apresado as dos arabes e egypcios.</p>
+
+<p>Cornelio Honteman, perseguido pela Inquisição de Portugal, fôra para
+Amsterdam, e publicára o que sabia das viagens da India, incitando os
+hollandezes com as perspectivas de grossos lucros. Em 1595 partiu de Texel a
+primeira frota hollandeza que dobrou o cabo da Boa-Esperança; e já em 1591 os
+inglezes tinham feito uma viagem á India. Em 1602 fundou-se a companhia
+hollandeza das Indias orientaes: foi no primeiro quartel do <small>XVII</small>
+seculo que o imperio portuguez caíu.</p>
+
+<p>Tudo se desmoronava de um modo simples e rapido. As esquadras perdiam-se
+inteiras; e tantas desgraças abatiam os animos antigos, a ponto de tornarem a
+covardia tão vulgar, como eram de antes a audacia e a bravura. Entre outros
+casos, conta-se o de um philippebote hollandez tomando um galeão que montava
+dobrada artilheria e guarnição. Em 1591 e 92, de 22 navios de alto bordo saídos
+da India, só duas náus chegaram ao Tejo, porque vinham vasias por velhas. Quer
+á ida, quer á volta, os cruzeiros inimigos caçavam as nossas frotas; e a
+destruição do poder maritimo portuguez garantiu para todo o sempre a destruição
+consummada do imperio do Oriente.</p>
+
+<p>Essa louca viagem, sem pilotos habeis, terminava por um breve naufragio; e
+os mares que, no seculo <small>XV</small> nós vencemos com tamanha audacia,
+vingavam-se,<span class="pn"><a name="pag_317">{pg. 317}</a></span> no
+<small>XVI</small>, do nosso atrevimento. Rasgáramos as nuvens do Mar
+Tenebroso; mas, para além dos seus confins, fomos perder-nos no seio dos
+nevoeiros prognosticados pelos geographos arabes, no meio das trevas da nossa
+perversidade. A natureza offendida punia-nos com a morte; e o destino
+implacavel retribuia-nos todos os males com que tinhamos flagellado o
+proximo.</p>
+
+<blockquote>
+ <p><a name="foot1247" href="#tex2html112"><sup>[112]</sup></a> V. <em>Raças
+ humanas</em>, <small>II</small>, pp. 185-91, e <em>Taboas de Chronol.</em>,
+ pp. 45-9.</p>
+
+ <p><a name="foot1248" href="#tex2html113"><sup>[113]</sup></a> V. ácerca dos
+ costumes dos indigenas. <em>Quadro das instit. primit.</em>, pp. 14-5, 158,
+ 160-1, 174; e <em>Regime das riquezas</em>, pp. 56, 65, 85, 109. </p>
+
+ <p><a name="foot1249" href="#tex2html114"><sup>[114]</sup></a> V. <em>Regime
+ das riquezas</em>, p. 109.</p>
+
+ <p><a name="foot1250" href="#tex2html115"><sup>[115]</sup></a> V. <em>O
+ Brazil e as col. port.</em>, L. <small>IV</small>, 3.</p>
+
+ <p><a name="foot1251" href="#tex2html116"><sup>[116]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da rep. romana</em>, <small>I</small>, pp. 183-91.</p>
+
+ <p><a name="foot1252" href="#tex2html117"><sup>[117]</sup></a> V. <em>O
+ Brazil e as colon. Port.</em> (2.ª ed.), p. 36.</p>
+
+ <p><a name="foot1253" href="#tex2html118"><sup>[118]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da republica romana</em>, <small>II</small>, p. 185.</p>
+
+ <p><a name="foot1254" href="#tex2html119"><sup>[119]</sup></a> V. a
+ estatistica dos naufragios no <em>Brazil e as colonias port.</em> (2.ª ed.),
+ p. 34, <em>nota</em>.</p>
+
+ <p><a name="foot1255" href="#tex2html120"><sup>[120]</sup></a> V. <em>Hist.
+ da republ. romana</em>, <small>I</small>. pag. 194.</p>
+</blockquote>
+</div>
+
+<p style="text-align:center;"> FIM DO TOMO PRIMEIRO</p>
+
+<p><span class="pn"><a name="pag_318">{pg. 318}</a></span></p>
+
+<p> </p>
+
+<p><span class="pn"><a name="pag_319">{pg. 319}</a></span></p>
+
+<p> </p>
+
+<div style="font-size: small; margin: 15%;">
+<p style="text-align:center;">INDICE</p>
+
+<p style="text-align:center;">DO</p>
+
+<p style="text-align:center;">TOMO PRIMEIRO</p>
+<!&mdash;Table of Contents&mdash;>
+
+<p><a name="tex2html146" href="#SECTION001000">ADVERTENCIA</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html148" href="#SECTION002100">LIVRO
+PRIMEIRO</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1481" href="#SECTION002100"
+id="tex2html1481">Descripção de Portugal</a></p>
+
+<p><a name="tex2html149" href="#SECTION002110">I. Os lusitanos</a></p>
+
+<p><a name="tex2html150" href="#SECTION002120">II. Fundamentos da
+nacionalidade</a></p>
+
+<p><a name="tex2html151" href="#SECTION002130">III. Geographia
+portugueza</a></p>
+
+<p><a name="tex2html152" href="#SECTION002140">IV. A terra e o homem</a></p>
+
+<p><a name="tex2html153" href="#SECTION002150">V. A historia nacional</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html154" href="#SECTION002200">LIVRO
+SEGUNDO</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1541" href="#SECTION002200"
+id="tex2html1541">HISTORIA DA INDEPENDENCIA</a></p>
+
+<p style="text-align:center;">(<small>DYNASTIA DE
+</small>B<small>ORGONHA</small>: 1109-1385)</p>
+
+<p><a name="tex2html155" href="#SECTION002210">I. A separação de
+Portugal</a></p>
+
+<p><a name="tex2html156" href="#SECTION002220">II. A conquista do
+Al-Gharb</a></p>
+
+<p><a name="tex2html157" href="#SECTION002230">III. A monarchia e a
+justiça</a></p>
+
+<p><a name="tex2html158" href="#SECTION002240">IV. A crise</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html159" href="#SECTION002300">LIVRO
+TERCEIRO</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1591" href="#SECTION002300"
+id="tex2html1591">A conquista do Mar Tenebroso</a></p>
+
+<p style="text-align:center;">(<small>DYNASTIA DE </small>A<small>VIZ</small>:
+1385-1500)</p>
+
+<p><a name="tex2html160" href="#SECTION002310">I. O Infante D. Henrique</a></p>
+
+<p><a name="tex2html161" href="#SECTION002320">II. Portugal em Africa</a></p>
+
+<p><a name="tex2html162" href="#SECTION002330">III. O principe perfeito</a></p>
+
+<p><a name="tex2html163" href="#SECTION002340">IV. Em demanda do Preste-Joham
+das Indias</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html164" href="#SECTION002400">LIVRO
+QUARTO</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><a name="tex2html1641" href="#SECTION002400"
+id="tex2html1641">A viagem da India</a></p>
+
+<p style="text-align:center;"><small>(1500-1640)</small></p>
+
+<p><a name="tex2html165" href="#SECTION002410" id="tex2html165">I. D. Francisco
+d'Almeida</a></p>
+
+<p><a name="tex2html166" href="#SECTION002420">II. Affonso de
+Albuquerque</a></p>
+
+<p><a name="tex2html167" href="#SECTION002430">III. D. João de Castro</a></p>
+
+<p><a name="tex2html168" href="#SECTION002440">IV. Summario da derrota. Volta
+ao reino</a></p>
+
+<p> </p>
+</div>
+
+
+
+
+
+
+
+<pre>
+
+
+
+
+
+End of the Project Gutenberg EBook of Historia de Portugal: Tomo I, by
+Joaquim Pedro de Oliveira Martins
+
+*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIA DE PORTUGAL: TOMO I ***
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+
+Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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+including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
+because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
+people in all walks of life.
+
+Volunteers and financial support to provide volunteers with the
+assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
+goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
+remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
+Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
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+To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
+and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
+and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
+
+
+Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
+Foundation
+
+The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
+501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
+state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
+Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
+number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
+https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
+permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
+
+The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
+Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
+throughout numerous locations. Its business office is located at
+809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
+business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact
+information can be found at the Foundation's web site and official
+page at https://pglaf.org
+
+For additional contact information:
+ Dr. Gregory B. Newby
+ Chief Executive and Director
+ gbnewby@pglaf.org
+
+
+Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
+Literary Archive Foundation
+
+Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
+spread public support and donations to carry out its mission of
+increasing the number of public domain and licensed works that can be
+freely distributed in machine readable form accessible by the widest
+array of equipment including outdated equipment. Many small donations
+($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
+status with the IRS.
+
+The Foundation is committed to complying with the laws regulating
+charities and charitable donations in all 50 states of the United
+States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
+considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
+with these requirements. We do not solicit donations in locations
+where we have not received written confirmation of compliance. To
+SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
+particular state visit https://pglaf.org
+
+While we cannot and do not solicit contributions from states where we
+have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
+against accepting unsolicited donations from donors in such states who
+approach us with offers to donate.
+
+International donations are gratefully accepted, but we cannot make
+any statements concerning tax treatment of donations received from
+outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
+
+Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
+methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
+ways including including checks, online payments and credit card
+donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
+
+
+Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
+works.
+
+Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
+concept of a library of electronic works that could be freely shared
+with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
+Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
+
+
+Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
+editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
+unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
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+
+
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+
+This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
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