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If you are not located in the United States, you'll have -to check the laws of the country where you are located before using this ebook. - -Title: A menina Lisa - -Author: Paul de Kock - -Release Date: September 13, 2020 [EBook #63195] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: UTF-8 - -*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - - - - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - - - - - - - - - - - _XXIII—COLECÇÃO PAULO DE KOCK_ - - A menina Lisa - - [Illustration] - - GUIMARÃES & C.ª EDITORES - R. DO MUNDO, 68—LISBOA - - Imp. Lucas - - - - -Livraria editora GUIMARÃES & C.ª - -68, RUA DO MUNDO, 70—LISBOA - - -_O LIVRO DE MARIETA_ - - (1.º vol. da Biblioteca Infantil)—1 vol. com 23 contos - ilustrados com 25 gravuras, br. 300 rs. Enc. 400 rs. - -_AS MIL E UMA NOITES_ - - (Contos arabes)—2 vol. br. 600 rs. Enc. com linda capa de - percalina impressa a 4 cores e ouro 900 rs. - -_CONTOS_ - - de D. João da Camara—1 vol. br. 600 rs. - -_CONTOS_ - - do Dr. Candido de Figueiredo—1 vol. br. 200 rs. Enc. 300 rs. - -_TRATADO DE CIVILIDADE E ETIQUETA_ - - pela condessa de Gencé—1 vol. br. 600 rs. Enc. 800 rs. - -_GUIA MUNDANO DAS MENINAS CASADOIRAS_ - - da Condessa de Gencé—1 vol. br. 500 rs. Enc. 700 rs. - -_IVANHOÉ_ - - romance de Walter Scott—4 vol. br. 800 rs. - -_O VIGARIO DE WAKEFIELD_ - - de Goldsmith—1 vol. br. 200 rs. - -_SAUDADES_ - - (Menina e moça) de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 200 rs. - -_TROVAS DE CRISFAL_ - - de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 300 rs. - -_VERSOS PORTUGUESES_ - - de Sá de Miranda—1 vol. br. 500 rs. - -_PAULO E VIRGINIA_ - - romance de Bernardim de Saint-Pierre—1 vol. III. br. 200 rs. - - - - -PAULO DE KOCK - -OBRAS COMPLETAS E ILLUSTRADAS - -XXIII - - - - - A MENINA LISA - - (VERSÃO PORTUGUEZA) - - [Illustration] - - LISBOA - EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL - _Sociedade editora_ - LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHIA - _R. Augusta, 95_ - _45, R. Ivens, 47_ - 1907 - - - - -VOLUMES PUBLICADOS - - - I—A menina das tres saias—1 vol. - - II—Uma vida attribulada—1 vol. - - III—Taquinet o Corcunda—1 vol. - - IV—O sr. Choublanc á procura da mulher.—1 vol. - - V—A Lagôa d’Auteuil (1.º vol.) - - VI—A Lagôa d’Auteuil (2.º vol.) - - VII—A Lagôa d’Auteuil (3.º vol.) - - VIII—A menina dos tres espartilhos—1 vol. - - IX—O porteiro da rua du Bac—1 vol. - - X—Um namorado caloiro (1.º vol.) - - XI—Um namorado caloiro (2.º vol.) - - XII—A noiva de Fontenay aux Roses—1 vol. - - XIII—A Viuva Tapin—1 vol. - - XIV—A Leiteira de Montfermeil (1.º vol.) - - XV—A Leiteira de Montfermeil (2.º vol.) - - XVI—A Leiteira de Montfermeil (3.º vol.) - - XVII—Um rapaz mysterioso—1 vol. - - XVIII—Papá-sogro—1 vol. - - XIX—A menina do quinto andar (1.º vol.) - - XX—A menina do quinto andar (2.º vol.) - - XXI—A menina do quinto andar (3.º vol.) - - XXII—A Baroneza Blaguiskoff—1 vol. - - XXIII—A menina Lisa—1 vol. - -NO PRELO: - - XXIV—O homem dos tres calções—2 vol. - - - - -[Illustration] - - - - -PALAVREADO PARA SERVIR DE PREFACIO - - -De certo tempo para cá, uma nova molestia tem feito irrupção em Paris, -por outra, em toda a França; eu poderia mesmo accrescentar que se vae -extendendo tambem aos paizes estrangeiros. Socegae, querido leitor e -formosa leitora (eu acho sempre as minhas leitoras formosissimas), esta -molestia não é d’aquellas de que se morre, ou que podem desfigurar as -vossas lindas feições (folgo tambem de crer que possuis umas feições -encantadoras); é simplesmente a mania dos _autographos_, que traz quasi -sempre após si a dos _albuns_. - -Quando um homem tem a fortuna—parece-me que seria melhor dizer a -desgraça!—emfim, quando um homem tem alguma celebridade, não se passa dia -algum em que não receba pedidos de autographos, ou não veja entrar-lhe -em casa um sujeito, que lhe é inteiramente desconhecido, mas que traz -debaixo do braço um objecto bastante volumoso, cuidadosamente embrulhado -em papel e mettido n’uma caixa de cartão. Este sujeito, depois de muitos -cumprimentos e d’essas phrases banaes que se dizem a toda e qualquer -pessoa de quem se deseja obter alguma coisa, desembrulha o objecto -que traz debaixo do braço, tira o papel, abre a caixa, e mostra-nos -um _album_ mais ou menos bem encadernado, mas no qual ha ainda uma -grandissim quantidade de folhas em branco; depois diz-nos com a sua voz -mais insinuante: - -—Meu caro senhor, eu possuo já no meu _album_ muitos nomes celebres; mas -falta-me o seu, o seu que é indispensavel á minha felicidade! Por quem -é não me recuse o que lhe venho pedir! faça-me o obsequio de escrever -algumas linhas n’uma d’estas paginas em branco, o que quizer, a mais -pequena coisa, não exijo que seja em verso... Entretanto confesso que -os versos teem mais encanto, conservam-se melhor na memoria; se não tem -agora tempo, se deseja meditar sobre o que ha-de escrever, deixo-lhe cá -o meu _album_; voltarei d’aqui a tres ou quatro dias, quando o senhor -quizer! - -Estamos já de muito mau humor por sermos incommodados por este sujeito, -que nos perturba no nosso trabalho, e que, sem nenhum titulo, nenhuma -recommendação, vem fazer-nos um pedido a que muitos amigos e pessoas -das nossas relações se não atrevem algumas vezes. Um pedinte de certo -nos enfadaria menos, porque teriamos o direito de o pôr immediatamente -na rua. Mas o homem—_album_—olha para nós como se viesse pedir-nos o -nosso voto para a academia. Nós não queremos por fórma alguma, ficando -com o _album_, receber uma nova visita d’este senhor, e por isso, mesmo -resmungando, mesmo deixando vêr o aborrecimento que isto nos causa, -abrimos o _album_ n’uma pagina em branco, pegamos na pena... O tal senhor -está cheio de jubilo; ficará talvez menos encantado quando ler o que -escrevemos; mas emfim, visto que elle não quer senão a nossa lettra e a -nossa assignatura, não póde deixar de ficar satisfeito. - -Escrevemos a primeira coisa que nos vem á idéa; mas sempre se deve -procurar que seja uma tolice, o que é ás vezes mais difficil de achar do -que se julga. Dizem-me que o nosso Scribe, apoquentado tambem pela gente -de _album_, escrevia sempre esta phrase: Perdi o meu guarda-chuva!... e -isto era mais que sufficiente. - -Devo entretanto dizer que os _albuns_ apresentam-se menos vezes em -nossa casa que os simples pedidos de autographos. Estes pedidos quasi -sempre se fazem por correspondencia. Recebemos a cada instante cartas, -não só de Paris, mas da provincia e mesmo do estrangeiro. Algumas vezes -julgâmos reconhecer a letra d’uma pessoa que estimâmos muito e de quem -ficariamos encantados de ter noticia; abrimos a carta muito depressa... -mas nada! é ainda um pedido de autographo, d’uma pessoa que nunca vimos, -que provavelmente não veremos nunca, e que acha simplicissimo talhar-nos -obra, como se devessemos estar ás suas ordens! - -Ultimamente recebo uma carta d’um sujeito que me manda uns versos de -que eu sou o auctor, e que provavelmente elle tinha lido e copiado d’um -_album_. Espero que isto me servirá de lição para não tornar a cair em -escrever versos em _albuns_. Se, como Scribe, eu não tivesse escripto -senão: _Perdi o meu guarda-chuva!_ ou _perdi a minha bengala_, aposto que -o tal senhor não teria copiado isto nem m’o teria enviado, fazendo-me o -pedido de lh’o transcrever para ter estes _lindos_ versos escriptos por -mim? O homem não cessa de me repetir na sua carta que quer por força ter -alguma coisa minha. - -Se lhe respondesse, o que não tenho tenção de fazer, havia de dizer-lhe: -O senhor quer ter alguma coisa minha; mas com que titulo? Recebi eu por -ventura alguma coisa sua? - -Contaram-me que n’outro tempo, Lablache, famoso cantor italiano, -recebêra dos seus admiradores um tão grande numero de caixas de tabaco, -que poderia assoalhar com ellas os seus aposentos, e passear em tres -casas, pisando sempre caixas de tabaco, todas mais ou menos bonitas, das -quaes lhe haviam feito presente. Certamente, eu não cantei nunca como -Lablache! mas emfim, pela quantidade immensa de pedidos que recebo, e de -amabilidades que muitas pessoas hão por bem dirigir-me, devo pensar que -tenho tambem um numero bastante crescido de apreciadores. Pois bem! desde -que escrevo... o que faço ha muito tempo, bem sabem, nunca recebi outra -cousa senão pedidos de autographos. - -Eu não peço nada, nunca pedi nada, em nenhum genero, nem pedirei nunca -graças a Deus! se tenho feito o meu caminho, tenho-o feito á minha custa, -sem intriga e sem apoio. Mas, por favor, deixem-me socegado e não me -apoquentem com os seus pedidos de autographos! Não desejo as caixas de -tabaco de Lablache, pois que nunca tomei tabaco!... o que me não impede -de admirar uma caixa bonita, quando vale a pena de ser admirada. - -—Que diabo se lhe poderia então offerecer? me dizia um sujeito que sempre -me pede exemplares dos meus romances, o que é ainda mais indiscreto que -um autographo. - -—Meu caro senhor, lhe disse eu, quando se tem a peito receber uma -resposta de alguem, ha um meio muito simples. Se eu residisse em -Tours, mandava-lhe ameixas passadas; em Mans, mandava-lhe um capão; em -Strasburgo, um pastel; em Reims, meia duzia de garrafas de Champagne. -Cada terra tem a sua especialidade, e o homem por força teria de -accusar-me a recepção do meu presente. - -Pois o tal sujeito pareceu ficar muito espantado de eu ter achado este -meio. - -Emquanto estou falando a respeito de autographos, não posso deixar de -lhes citar um sujeito que me escrevia de Nice, e que, depois de me ter -feito o seu pedido, me rogava que lhe dirigisse a minha resposta para -Nice, _posta restante_, com o nome que elle me indicava. - -Se eu respondesse a este senhor, o que tive o cuidado de não fazer, havia -de dizer-lhe: «Meu caro senhor: A _posta restante_ não se emprega senão -em dois casos: em amor e em politica. O senhor não está namorado de mim, -folgo de o crer; e pelo que toca a politica, nunca me occupei de tal -coisa, nem já agora me hei-de occupar nunca. Por que razão pois, em vez -de me dar francamente o seu endereço, quer que eu lhe responda para a -_posta restante_? Tem então medo de que eu saiba quem é e onde mora? E -pede-me a minha assignatura! Realmente, o senhor não é logico! - -Emquanto estou de vez para conversar com o meu caro leitor e com a minha -adorada leitora, podia confiar-lhes ainda uma d’essas apoquentações a que -algumas vezes nos é difficil escapar, desgraçadas celebridades que nós -somos. Receio porém abusar da sua paciencia, e portanto ficará para outra -occasião. - - -[Illustration] - - - - -[Illustration] - - - - -A MENINA LISA - - - - -I - -Uma creada que sae a recados - - -—Adriana! Adriana! vejam lá se ella apparece! Adriana! Ah! esta rapariga -é insupportavel! Nunca vem quando se precisa d’ella! E depois, não ha com -que chamar! aqui porém deve haver uma campaínha... Adriana!... - -Uma rapariga gorda, fresca, bem feita, cara vulgar, nariz mais grosso que -comprido e cabello loiro-arruivado, apparece emfim á porta d’um quarto -que podia passar por um camarim, e no qual estava uma senhora estendida, -como que desmaiada, em cima d’uma poltrona, emquanto que outra senhora, -mais nova, mas pouco bonita e cujo vestuario elegante não conseguia fazer -esquecer a sua fealdade, lhe batia na mão, sempre chamando em altos -gritos a creada grave. - -—O que é minha senhora? pergunta a menina Adriana, que parece não se ter -apressado nada; a senhora está a gritar! grita como se houvesse fogo em -casa!... - -—O que é, pois não vê? é a sua ama que acaba de perder os sentidos, -depois de ter dado um grito muito grande; como ella se agita... como se -põe interiçada... - -—Ah! sim, eu conheço isso; a senhora está com o seu ataque de nervos, com -o seu _faniquito_; isso dá-lhe quando é contrariada, ou quando tem alguma -altercação com o sr. Casimiro. - -—Deu-lhe isso ainda agora depois de ter lido uma carta que a menina acaba -de lhe trazer. Mas emfim, quando Ambrosina tem o seu ataque de nervos, a -menina faz-lhe tomar alguma coisa, penso eu, não a deixa sem soccorro? - -—De certo, minha senhora, faço-lhe tomar a limonada que o medico lhe -receitou. E isso faz com que a senhora torne a si ao cabo de alguns -minutos. - -—Pois bem! dê-lhe a tal limonada; ande depressa, porque ella parece -soffrer muito, esta pobre Ambrosina. Sabe onde ella tem essa limonada? - -—Sei sim, minha senhora, sei, certamente que sei... Ai! Jesus! agora me -lembro... - -—De que? - -—Ai! valha-me Deus! sim, a senhora tinha-me dito hontem que lhe fosse -buscar outra garrafa. É verdade... agora me recordo... - -—Como? pois não ha limonada em casa? - -A creada grave, que tem ido abrir um armario, traz de lá uma garrafa -branca, mas que está de todo vasia, e vem mostral-a á amiga de sua ama, -dizendo: - -—Aqui tem, veja, não lhe minto, não resta nem uma gota. - -—E não foi hontem encommendar mais?!... - -—Esqueci-me, a culpa é da porteira, que me demorou para me falar do gato -quando eu saîa, o gato desappareceu-lhe ha dois dias. - -—Mas não se tracta do gato da porteira, o que é preciso ê soccorrer sua -ama. Tem a receita para essa limonada? - -—Tenho sim, minha senhora, porque eu tinha tenção de ir hontem á botica, -devo-a ter ainda na algibeira. - -E a menina Adriana mette a mão na algibeira, tira de lá primeiramente -algumas passas de uva, e sorri-se dizendo: - -—É aquelle toleirão do caixeiro da tenda que sempre me ha de metter -alguma coisa no bolso. Por mais que eu lhe diga: Deixe-me socegada, -guarde as suas passas, não quero brincadeiras... - -—Mas que é da receita? não se tracta agora do que a menina diz ao -caixeiro da tenda. - -—Ah! deve ser isto!... - -Adriana desembrulha um papel e lê o annuncio d’uma loja nova em que se -offerecem as fazendas com oitenta por cento de abatimento; depois atira -com o papel para o lado, dizendo: - -—Ora! fui lá, minha senhora, mas são uns mentirosos, não vendem nada -novo, venderam-me umas calças de panno que tinha sido virado. - -—Ah! compra calças de panno para si? - -—Nada, era para o irmão d’uma patricia minha. - -—Mas então perdeu a receita, desgraçada! - -—Não minha senhora; olhe, aqui está, aqui a tem, tinha embrulhado com -ella uns torrões de assucar que me deu o moço do botequim. - -—Agora corra depressa á botica. É muito longe? - -—Não minha senhora, é aqui perto, no fim da rua Meslé, uma bonita botica, -no predio novo, que dá quasi para a rua do Templo. Ah! é uma das melhores -de Paris. - -—Comtanto que o remedio não leve muito tempo a fazer. - -—Oh! não, minha senhora, não leva. E depois, direi que tenho muita -pressa, para me despacharem logo; aquelles senhores da botica são muito -amaveis, muito obsequiadores. - -—Vae já muito depressa, não é verdade? - -—Sim, minha senhora; é só pôr uma touca na cabeça, e vou immediatamente. - -—Para que precisa de touca? Não pode ir assim mesmo como está? - -—Oh! a senhora não quer que eu saia em cabello; diz que não é bonito. - -—Mas sua ama não o saberá. - -—Perdão, podia alguem encontrar-me e vir dizer-lhe que me viu na rua -sem touca! A senhora despedia-me logo: mas esteja descançada, não gasto -n’isso muito tempo. - -A creada grave corre ao seu quarto, que é nas aguas-furtadas, pega -n’uma touca, põe-na na cabeça, vê-se a um espelhinho, mas não fica -satisfeita; tira a touca, procura outra no fundo d’uma caixa de papelão, -experimenta-a, torna a ver-se ao espelho; depois, passado um momento -de hesitação, tira ainda esta e torna a pôr a primeira; d’esta vez -contenta-se com ella, e desce emfim os cinco andares, para ir buscar o -remedio para sua ama, que tem muito tempo para estar demaiada. - -Mas, quando vae passar por deante do cubiculo da porteira, grita-lhe esta: - -—Menina Adriana! menina Adriana! ah! uma boa noticia... - -—Então o que é, sr.ª Bedou? - -—Achei já o meu gato; o pobre Pagnole! Achei-o. Olhe! aqui o tem. - -—É verdade; e aonde é que estava? - -—Ah! eu lhe vou contar o caso, é uma historia completa. Entre cá um -instantinho. - -—Não posso, vou á botica buscar um remedio para a senhora, que está -incommodada, está com o seu ataque de nervos. - -—Bem sabe que ella é propensa a esses ataques. Imagine que foi aquelle -maroto, aquelle patife do quinto andar, o tal que se diz litterato... - -—Ah! o sr. Denegrido. - -—Sim, foi aquelle malvado que, para se vingar de eu no outro dia não -lhe ter aberto a porta ás duas horas da manhã... A menina comprehende -que um homem que mora n’uma agua-furtada de cento e sessenta francos, -tenha o atrevimento de recolher para casa ás duas horas da manhã? E -demais-a-mais nunca me deu a mais pequena gratificação! Pois bem! elle -é que tinha o Pagnole fechado em casa, onde estou bem certa que nunca -lhe dava de comer; por isso este pobre martyr emmagreceu tanto n’estes -dois dias. Felizmente a creada do procurador do segundo andar ouviu-lhe -os gemidos, e veiu dizer-me: «Parece-me que o seu gato está fechado em -casa do litterato. Subi n’um pulo até ao quinto andar e reconheci a voz -do meu querido bichano. Bati, teria arrombado a porta se elle não a -abrisse. Elle gritava-me: «Não estou ainda levantado.»—«Pois levante-se,» -respondi eu.—«Não estou vestido.»—Que me importa a mim isso?! pensa que -tenho vontade de o retratar?! O homem afinal abriu a porta; o gato veiu -logo lançar-se-me nos braços. Affianço-lhe que o tal Denegrido ha de ser -despedido no fim do seu arrendamento; demais, elle não paga, não tinhamos -tenção de o conservar. - -—Até logo, sr.ª Bedou. - -—Quando voltar lhe direi o que o escrevinhador me disse para se desculpar -de ter fechado o Pagnole. Imagine... - -—Sim, sim, quando voltar. - -A menina Adriana acha-se emfim na rua. Quando passa por deante da tenda, -um dos caixeiros, que parecia estar a espreital-a, toma-lhe o passo, -dizendo-lhe: - -—Aonde é que vae com tanta pressa? parece que corre n’um velocipede. - -—Ora! que tolice! como se as mulheres podessem andar em velocipedes! o -que é pena, porque seria uma coisa muito commoda para nós fazermos os -nossos recados. - -—As mulheres podem muito bem andar em velocipede, o caso é acostumarem-se. - -—Vamos, sr. Cebolinha, deixe-me passar, não tenho tempo para conversar -agora. - -—Oh! a menina commigo nunca tem tempo, mas hontem, ás dez horas da noite, -bem a vi estar de _paleio_ com o moço do botequim do _boulevard_, as -casas do _boulevard_ S. Martinho, na margem esquerda têem todas uma saida -para a rua Meslée, é commodo... - -—E então? sim, bem me lembro, effectivamente, estive a falar com o -Alexandre, a senhora queria tomar um capilé de leite antes de se deitar, -porque tinha tossido um pouco, e pensava que aquella bebida lhe faria bem -á constipação, ia eu então ao café encommendar o que a senhora queria, -quando encontrei na rua o Alexandre. - -—Ah! não é máu o tal capilé, acho-o porém muito assucarado... - -—O quê? o que é que o senhor quer dizer com esse ar de mangação? - -—Quero dizer que se a sua ama a esperava para se deitar, teve tempo para -adormecer antes de tomar a tal bebida, a menina demorou-se uma boa meia -hora na rua com o moço do botequim. - -—É que elle provavelmente tinha muito que me contar. - -—Se é d’aquella maneira que elle faz o seu serviço, não tarda que o -despeçam. - -—Bem se importa elle com isso! não tem vontade nenhuma de ficar onde -está; vae tomar um café e estabelecer-se por sua conta. - -—Oh! então o caso é differente. E a menina é que vae para o balcão? - -—Ora! quem sabe! tem-se visto coisas mais de espantar. - -—O Alexandre vae tomar um botequim por sua conta! Ah! ah! ah! essa é -forte de mais, pode-se juntar com o capilé. - -—Sr. Cebollinha, o senhor é muito maldoso, diz mal de toda a gente, -desacredita todo o bairro. É uma coisa muito trivial, todos os dias se -estão a estabelecer os moços de botequim por sua conta, isso vê-se a cada -passo!... - -—Sim, mas os que fazem isso são aquelles que têem feito economias, que -têem forrado alguma coisa do seu ordenado, e não os gastadores, os -extravagantes como o seu Alexandre. - -—Porque é que diz: o seu Alexandre? Elle é tanto meu como de qualquer -outra! o rapaz deve-lhe alguma coisa, para o senhor estar assim a dizer -mal d’elle? - -—É verdade que sim; deve-me ainda uma libra de mel que lhe vendi para -adoçar as suas tisanas, quando esteve doente, e, como o patrão me tinha -prohibido de lhe dar fiado, sou eu que terei de pagar. - -—Ora! elle lhe pagará o seu mel. Olhe, lá o chamam, ande, volte para a -loja. - -—A menina volta? - -—Nunca! o senhor tem muito má lingua. - -A creada continúa o seu caminho; mas cem passos mais adeante encontra-se -com outra creada quasi da mesma edade e que está vestida com muita -garridice. - -—Ah! és tu Rosa! - -—Boas noites, Adriana. Aonde vaes com tanta pressa? - -—Vou á botica buscar uma limonada para minha ama, que está com o seu -ataque de nervos. - -—Ainda estás em casa da tal sr.ª Montémolly? - -—Ainda. - -—Gostas de lá estar? - -—Hum! não muito, não se diverte a gente quasi nada; mas tambem não se -está aperreada, pode-se saír e voltar tarde; é o que a casa tem de bom. - -—E tua ama é senhora capaz? - -—Ora! não sei bem... ella dá-se por viuva. - -—D’um general sem duvida? todas ellas são viuvas de um general; é uma das -suas manias... - -—Não, a minha diz que o marido era banqueiro. O que é certo, é que elle -deixou-lhe fortuna: ella tem pelo menos quinze mil francos de renda, -talvez mais alguma coisa; nós não fazemos dividas, pagamos tudo a -dinheiro de contado. Oh! temos bom governo. - -—Que edade tem a tua sr.ª Montémolly? - -—Ella diz que tem trinta e quatro annos, mas eu dou-lhe trinta e oito, -tambem mais não; foi muito bonita, e está ainda bem conservada. - -—E tem muitos adoradores? - -—Não! infelizmente! porque se assim fosse, havia de divertir-se a gente -muito mais, e seriam maiores os lucros. - -—O quê! pois tua ama renunciou aos amores, ainda em edade de agradar! - -—Não! é que não percebes; minha ama não renunciou ao amor, muito pelo -contraio, ella ama, oh! ama apaixonadamente um rapaz, um bello moço, o -Casimiro Dernold, que vem quasi todos os dias fazer-lhe companhia, que é -musico, que é pintor tambem... emfim, que faz tudo quanto quer, mas que, -segundo eu creio, não quer fazer outra coisa senão divertir-se! A senhora -está doida pelo tal Casimiro, não pensa senão n’elle, não sonha n’outra -coisa, não se importa com mais ninguem. É por isso que não dá attenção -a todos os que procuram fazer-lhe a côrte. É verdadeiramente fiel ao -amante, a ponto de adoecer, de sentir as mais vivas inquietações, se -elle não chega á hora do costume. Ah! minha querida Rosa! que asneira é -amar um homem assim; e como a gente é muito feliz em não se prender! Não -pensas como eu? - -—Já se vê que sim! eu dou attenção a todos quantos me falam; por isso não -tenho um instante de meu. Quando não converso com este, é porque estou -conversando com aquelle! Ah! ah! é muito mais divertido! E que edade pode -ter esse Casimiro, amante de tua ama? - -—Vinte seis a vinte sete annos, talvez. - -—E tua ama tem trinta e oito! elle deve-lhe fazer muita falcatrua!... - -—Não sei, em todo o caso, a senhora vigia-o muito, é ciumenta como uma -panthera! fal-o seguir; é mister que elle lhe dê conta do que faz cada -dia, hora por hora. - -—Pobre rapaz! olhem que vida! Eu antes queria estar nas galés!... - -—Por isso elle algumas vezes respinga, grita, manda bugiar a senhora. Oh! -então, são scenas terriveis! A senhora chora, ou pega n’um punhalzinho -que traz escondido no seio, e diz que se vae matar... - -—Bom! eu conheço essa giria! não tenhas medo de que se mate!... - -—Olha, ha um mez, quando ella soube que o seu Casimiro tinha estado no -Mabille, quiz cravar o punhal no peito; mas, ao que parece, dirigiu mal o -golpe, porque não se feriu senão na orelha, que verteu algum sangue! - -—Ah! ah! ah! ella quer-se apunhalar pela orelha. É uma grande farcista a -tua ama. E esse Casimiro é rico tambem? - -—Rico! elle! pelo contrario, não tem nada de seu. Então não percebeste a -situação, e porque é que elle é escravo da senhora? - -—Ah! sim, percebo agora; é ella quem o sustenta. - -—Exactamente; tem-no seguro pela fome. Se o rapaz tivesse dinheiro, estou -bem certa de que ella o não prenderia muito tempo. - -—Olha, Adriana, não sei se tu és como eu, mas para mim os homens que não -têem nada de seu, não prestam!... - -—Eu não faço caso nenhum d’elles! Ora! um homem viver á custa d’uma -mulher... é andar o mundo ás avessas! Por ventura o homem não foi feito -para ganhar dinheiro e a mulher para o gastar. - -—Pois, minha rica, ha ainda muitas mulheres bastante tolas que se deixam -depennar pelos derriços. Olha, ahi tens a Bochechuda, tu conheces a -Bochechuda?... - -—Quem? A Luizita? - -—Sim, mas todos lhe chamam a Bochechuda, porque parece ter sempre -as faces inchadas. Emfim, ha já algum tempo, a Bochechuda travou -conhecimento no baile Pilodo com um bonito rapaz, que lhe diz que é da -mesma terra. Dansa com ella todas as dansas mais finas, mesmo as que ella -não sabia. Depois convida-a para um jantar no campo no domingo seguinte; -ella aceita; vae jantar com o seu novo conhecimento, que bebe como uma -esponja; depois, quando chega a occasião de pagar a conta, aquelle -senhor declara á Bochechuda que não recebeu da terra um dinheiro com -que contava, e pede-lhe que lhe empreste com que pagar a despeza. Ella -tinha felizmente levado o _porte-monnaie_. Empresta vinte francos ao -tal sujeitinho, que paga e não lhe dá o troco. O jantar tinha custado -apenas nove francos e dez soldos. Volta com ella a pé, não lhe offerece -mais nada e larga-a muito cedo, com o pretexto de que tem um trabalho de -escripturação a fazer para um tendeiro a quem serve de guarda-livros. -A Bochechuda, que não gosta de ir para casa cedo n’um domingo, põe -uma touca nova e vae ao baile Pilodo com uma vizinha. Quem é que ella -encontra lá? o seu parasita, o seu novo conhecimento, que fazia a côrte a -uma mulher e lhe pagava ponche com o troco da moeda de vinte francos que -ella lhe tinha emprestado... - -—Ah! a peça é bem pregada! e o que fez a Luizita? - -—É tão tola que se foi embora chorando. Mas o mais curioso da historia, -é que, no domingo seguinte, o tal sujeitinho tornou-lhe a pregar a mesma -peça. Jantam n’uma casa de pasto, e na occasião de pagar a despeza o -patife diz que não tem dinheiro. - -—Ah! isso é forte demais! e ella pagou outra vez? - -—Pagou, mas pelas suas proprias mãos, e guardou o troco. Desde esse dia, -nunca mais tornou a vêr o seu parasita. - -—Pobre Luizita! mas eu não a devo lastimar, que ella é muito presumida. E -tu, Rosa, ainda estás em casa dos mesmos patrões? - -—Dos Dupont? oh! não, graças a Deus! deixei-os! não era gente fina, -aquillo não me convinha! A senhora ia á praça, ella é que me comprava -tudo: O patrão descia elle mesmo á adega; sabia a conta das garrafas. Não -se podia fazer nada com aquella gente! eram uns piolhosos, minha rica! -Fechavam o assucar e os licores; aquillo não me podia convir. Eu tinha -acceitado aquella casa emquanto me não apparecia outra; eu bem sabia que -não ficaria lá muito tempo. - -—E hoje estás melhor? - -—Ah! minha rica, tenho um bello commodo! estou em casa d’um homem só, um -patrão rico, generoso, nada apoquentador, negoceia por gosto, sómente -para se entreter. Temos uma bella casa aqui perto, na rua Béranger, seis -casas n’um segundo andar. Fiz com que o senhor tomasse um criado para -esfregar; elle não o tinha, mas percebeu que eu não podia fazer tudo. - -—Tens boa soldada! - -—Seiscentos francos, sem contar as gratificações, os presentes!... - -—Teu amo dá-te presentes! sempre és muito feliz! - -—É verdade, ainda ultimamente me deu um rico lenço de seda da India! - -—Que edade tem o teu patrão? - -—E’ um homem que anda pelos seus sessenta annos, mas não parece, está -ainda muito bem conservado!... - -—Ah! entendo... estás em casa d’elle para todo o serviço. Ah! ah! esses -commodos é que são bons!... - -—Ah! tu pensas tolices... pois enganas-te, affianço-te que não é isso... - -—Ora adeus! então por que te dá elle presentes?... - -—Ah! não digo que elle ás vezes não goste de brincar um pouco, de rir, de -me deitar os braços á roda da cintura, mas a coisa não chega nunca aonde -tu imaginas. - -—Deves perceber que isso para mim é-me indifferente; estás no teu direito -de fazeres o que quizeres, assim como o teu patrão, visto que não tem -mulher a quem dar satisfações. Elle é viuvo ou solteiro? - -—Olha! não sei, que ainda lhe não pergunteí isso... mas preciso sabel-o... - -—Ai! Jesus! minha ama que está á espera do remedio... e eu aqui a dar á -lingua contigo. - -—Ninguem pode levar a mal que a gente converse o seu boccado; nós não nos -encontramos todos os dias! - -—Pois sim, mas agora vou de corrida á botica. Adeus! Rosa! - -—Até outra vez, Adriana. - - - - -II - -Na botica - - -Quando a menina Adriana entra emfim na botica, que é quasi á esquina da -rua Meslée e da rua do Templo, havia lá tanta gente, que os praticantes -não sabiam a quem haviam de attender primeiro. Demais d’isso, é -muito raro achar uma botica deserta; a concorrencia abunda n’estes -laboratorios, onde todos esperamos encontrar remedio ou pelo menos -allivio para os nossos soffrimentos ou para os das pessoas que nos são -caras. Se isto prova que a profissão é boa, prova tambem que o nosso -physico tem amiudadas vezes necessidade de reparo, e que estamos longe de -ser perfeitos; é, pelo menos, aquillo de que estamos convencidos ha muito -tempo. - -Entre os freguezes da botica torna-se saliente uma mulher gorda, que -segura pela mão uma criança de quatro a cinco annos, que está de tal modo -embrulhada em casacos, aventaes e chales, que é difficil adivinhar se é -rapaz ou rapariga; a mãe dirige-se a um dos praticantes: - -—Olhe, senhor, o meu pequeno anda ha tres dias com uma tosse, que me -parte o coração ouvil-o tossir: são uns ataques como tinha o pae, que -padecia d’um catarrho que o não deixava pregar olho toda a noite, e -que o levou á cova o anno passado, com uma indigestão que apanhou em -consequencia d’um banho de vapor, porque... - -—Mas, minha senhora, agora não se tracta de seu marido, visto que morreu; -tracta-se do seu pequeno, que está constipado; creio que é por causa -d’elle que a senhora cá vem? - -—De certo; olhe, aqui o tem, é uma joia. - -—É o seu menino? - -—Sim, senhor. - -—Parecia uma menina. - -—Por causa do seu ar malicioso? ah! sim, que elle é muito malicioso; mas -veja como está vermelho. - -—Não admira! a senhora tral-o tão embrulhado, que o pequeno deve por -força sentir muito calor. - -—Mas, como elle anda com tosse... - -—Não é uma razão para o suffocar. - -—O que é então preciso fazer-lhe tomar? - -—Uma tisana de flor de malva com mel, e pode tambem dar-lhe um pouco de -leite. - -—De vacca? - -—Já se vê. - -—Tinham-me dito que lhe fizesse tomar leite de burra. - -—Não é preciso, o menino é ainda muito novo, e não tem cara de quem -padece do peito. - -—Veja se tem febre. - -O praticante quer pegar na mão do pequeno, mas este foge com ella -rompendo em altos gritos. - -—Então, Dodoro! porque é que não queres que este senhor te pegue na mão? -dá-lhe já a mão depressa, patife. - -—Não quero! não quero! - -—É travesso como um macaco. Faze lá uma careta a este senhor. - -—Não quero! - -—Então, é ou não velhaco? - -—Não lhe tem respeito nenhum. - -—Elle é ainda tão pequeno, e depois aprendeu a responder assim com o pae. -Isto faz-me lembrar tanto o meu homem! Faça favor de me dar a flor de -malva e o mel. - -—Sim, senhora, vou avial-a immediatamente. - -—E não lhe parece que seria melhor dar-lhe leite de burra? - -—Não, senhora; torno-lhe a dizer que o seu menino não precisa d’isso. Mas -emfim, se a senhora quer dar-lh’o por força, mal não lhe pode elle fazer. - -—Não acha? O senhor não tem cá uma burra? - -—Oh! não, senhora, nós não temos leite de burra! - -—Que pena! pois ao pé de mim mora uma vizinha que tem uma cabra; o senhor -não acha que o leite de cabra lhe faria o mesmo effeito? - -—Todos os leites que quizer; o leite não faz nunca mal. Aqui tem a flor -de malva e o mel. - -—Muito agradecida; isto é para beber quente? - -—Tanto quanto seja possivel; sempre é melhor tomal-o quente do que frio... - -—Dodoro, atira lá um beijo a este senhor... - -Em vez de atirar um beijo, e rapazinho faz uma careta, deitando a lingua -de fóra, e resmunga: - -—Não quero! não quero! - -A mãe pega n’lle e retira-se, exclamando: - -—Ah! é exactamente como o pae!... - -Uma senhora, de meia edade, com certa garridice no trajo e nas maneiras, -dirige-se a outro praticante, requebrando-se toda e fazendo boquinha de -sorriso, para deixar vêr uma dentadura completamente postiça, mas que -ella suppõe que imita a natural de modo a illudir os mais espertos, e -diz-lhe: - -—Acontece-me um desastre bem desagradavel, e venho pedir-lhe que me tire -isto quanto antes... - -—O que é que precisa tirar, minha senhora? Se é algum dente, nós não -somos dentistas... - -—Não, senhor, não se trata de dentes; por esse lado não preciso nada, -graças a Deus! e o senhor bem o deve vêr... mas olhe aqui para cima da -minha bocca; o que é que vê? - -—Vejo o seu nariz, minha senhora, e de ordinario é n’esse sitio que elle -se encontra. - -—Sim, senhor, está o meu nariz, que tem uma forma bastante engraçada, -posso dizel-o sem desvanecimento; mas sobre o nariz... aqui... á -esquerda, não vê nada? - -—Ah! sim, vejo uma borbulha... já bastante pronunciada e que está mesmo -muito vermelha. - -—Está vermelha e pronunciada!... ah! senhor! o que quer isso dizer!... - -—Quer dizer que ainda não está madura. - -—Madura! como madura? o senhor acha que isto deve amadurecer? - -—Naturalmente, minha senhora: não é mais que uma borbulhita, por -emquanto, mas assim mesmo tem de seguir o seu curso... amadurecer, crear -cabeça, rebentar e sarar... - -—Amadurecer, crear cabeça!.. pois eu havia de ter uma borbulha com cabeça -no nariz! ah! que horror!... não quero tal coisa!... eu, que nunca tive -a mais pequena beliscadura em parte alguma... entende, senhor? em parte -alguma... porque me viria nascer uma borbulha no nariz?... qual pode ser -a causa d’isto? - -—Ignoro totalmente, minha senhora; mas uma borbulha nasce sem se saber -porquê; isso pode acontecer a toda a gente!... - -—Oh! não, senhor, quando se é d’um aceio minucioso, isto não deve -acontecer... Eu não fui metter o nariz em sitios insalubres, pode -acreditar-me! - -—Estou persuadido d’isso, minha senhora! - -—Lavo-me vinte vezes por dia! esfrego-me com _cold-cream_, com vinagre de -Bully, com agua de Portugal, com essencia de jasmim... - -—São coisas de mais, minha senhora, é preciso não abusar dos cosmeticos, -isso produz ás vezes um effeito muito diverso d’aquelle que se espera... - -—Emfim, o senhor vae-me dar alguma coisa para fazer desapparecer isto que -me nasceu aqui, logo no nariz... é preciso que se não veja nem o signal... - -—Minha senhora, isso ha de ser muito difficil... seria mesmo perigoso; -com o nariz não se deve brincar... Já consultou o seu medico? - -—Um medico para uma borbulhita... ora essa. Em primeiro logar, eu não -posso vêr os medicos, detesto-os, querem sempre purgar-me! E eu não me -quero purgar, não quero! - -—Faz mal, minha senhora, porque se se tivesse purgado, é provavel que -essa borbulha não lhe nascesse no nariz. - -—Com que é preciso untar esta borbulha para que desappareça -immediatamente? Deve haver algum remedio. - -—Minha senhora, advirto-a de que será perigoso; se faz recolher essa -borbulha, hão de rebentar-lhe muitas outras n’outros sitios! - -—N’outros sitios não me importa, comtanto que não seja na cara. - -—A senhora quer? - -—Sim, senhor, vou ámanhã a uma _soirée_... quero ir sem borbulha. - -—Então aqui tem ceroto de chumbo, minha senhora, para fazer seccar a sua -borbulhinha... - -—Oh! muito obrigada, vou untar bem todo o nariz!... - -—Só a borbulha, minha senhora... mas previno-a de que lhe hão-de nascer -outras... - -—Muito bem... farei recolher todas. - -A senhora pega no seu boiãosinho de ceroto, paga e vae-se embora, muito -contente por ter com que curar ou pelo menos dissimular a sua borbulha. - -É substituída por um sujeito moço, bem abafado, mas que tem máu parecer, -e se approxima do praticante com um ar acanhado. Os estudantes de -pharmacia sabem muito d’isto; adivinham logo por que razão este senhor os -quer consultor e vão ao seu encontro. Effectivamente, elle fala-lhes ao -ouvido; e então fazem-n’o passar para uma salinha que fica por traz da -botica. Alli, o homem explica o seu caso, sempre a meia voz. Dão-lhe uma -caixa de pilulas, umas poucas de raízes de morangueiro para fazer tisana, -uma garrafa com um xarope já preparado, e o homem leva tudo isto, dando -um profundo suspiro. - -Os praticantes da pharmacia olham uns para os outros sorrindo, e um -d’elles murmura: - - —Ita dis placitum, voluptatem ut moeror - Comes consequatur!... - -—Os deuses! responde outro, quer dizer, foi só _Mercurio_ que assim o -quiz! É o Deus do commercio; terá lá dito comsigo: Isto ha-de-me fazer -vender muito. - -—Meus senhores! vamos! tomem cuidado nas suas palavras! diz o rapaz que -está sentado á carteira. - -—Oh! não ha perigo, as senhoras não sabem latim! - -Chega um velho gordo, bufando, e atira comsigo para cima d’uma cadeira, -dizendo: - -—Ah! senhores, que dôr! Irra! que dôr! - -—O que foi isso? deu alguma queda? - -—Não, oh! não dei queda nenhuma; não me faltava mais nada!... É uma dôr -que me apanha desde o quadril até ao joelho, do lado direito... - -—E essa dôr deu-lhe agora quando ia andando? - -—Deu-me agora? Ha tres semanas que padeço d’ella. Não lhe tenho feito -nada, porque dizia sempre commigo! Isto ha-de passar! mas, qual historia! -não me passa. Por isso é que me resolvi a vir... - -—Teria feito melhor em vir mais cedo. - -—Ah! é que eu não gosto de tomar remedios de botica! Receitem-me tuberas, -lagosta, Champagne, então bem! applicarei a receita immediatamente. - -—Tem talvez abusado de tudo isso, e ahi está o motivo por que tem agora -dores. Consultou já algum medico? - -—Tenho consultado dez, doze, vinte. Cada vez que me acho n’um sitio onda -ha um medico, tracto logo de o consultar. - -—O que lhe disseram elles que era? - -—Um diz que é rheumatismo; outro que é uma dôr sciatica; este diz que -é gotta; aquelle, que é só cançaço. Todos elles me têem receitado umas -fricções. - -—De quê? - -—De balsamo de Opodeldoch, de balsamo Tranquillo, de balsamo de -Fioravanti! e ainda muitos outros balsamos... Eu, como tenho excellente -_rhum_, verdadeiro _rhum_ da Jamaica, tive a lembrança de dar umas -fricções com elle... - -—Não era mau. - -—Não é verdade? Ora, como não tenho criado, pedi ao meu porteiro que me -viesse dar as fricções; elle promptificou-se da melhor vontade. Dei-lhe o -_rhum_, e deitei-me sobre o lado que me não dóe. O porteiro esfregava-me -com toda a força... fazia-me arder a pelle como todos os diabos! O homem -descançava muito a miudo. Tenho uma vez a lembrança de me voltar, e dou -com elle a beber-me o _rhum_ mesmo pela botija; o maroto esfregava-me -em secco! Nunca mais quiz que elle me desse as fricções. Os senhores -podem-me arranjar uma mulher para me fazer este serviço, antes quero uma -mulher que um homem... - -—Podemos inculcar-lhe uma mulher que deita bichas e ventosas, e tambem dá -fricções quando é necessario. - -—É moça? - -—Cincoenta a sessenta annos. - -—Preferia-a de vinte e cinco a trinta. - -—Que importa, comtanto que ella lhe dê bem as fricções. Uma mulher nova -poderia causar-lhe distracções, e é isso que é preciso evitar. - -—Ah! o senhor acha que as distracções são contrarias á minha dôr?... - -—Certamente. Tambem seria bom deitar umas ventosas e alguns causticos -volantes. - -—Oh! emquanto estiver n’este estado não ponho difficuldades a coisa -nenhuma, farei uso de tudo para me curar mais depressa. Aqui tem a minha -morada, mande-me lá ámanhã a tal mulher com as bichas, as ventosas e os -causticos. - -—Mas não vá applicar tudo isso ao mesmo tempo. - -—Com certeza que vou; a coisa assim vae mais depressa! Olhe, eu nunca -faço remedios! mas quando me resolvo a isso, então não quero privar-me de -nada. Dê cá sempre um balsamo qualquer, tractarei de me untar e esfregar -eu mesmo emquanto a tal mulher não apparece. - -Emquanto estão aviando este senhor, entra muito afflicta uma mulher de -lencinho na cabeça, e dirige-se logo ao rapaz que está sentado á carteira: - -—Ah! meu caro sr. Narciso! que má sorte que me persegue desde certo -tempo para cá! Mal a minha pequena está restabelecida do catarrhal e -o meu rapaz do sarampo, e ahi me cae o meu homem doente, sem poder -trabalhar! é o remate da desgraça! - -—Mas o que é que o seu marido tem? - -—Ora! uma molestia exquisita... mas parece que é perigosa. Faça ideia, -tem um anthraz! - -—Um anthraz! que me diz?! - -—Foi o que disse o medico, que é um sabio, e que disse logo: Não tem que -vêr! é um anthraz! Aqui está o que tem o meu André, nasceu-lhe um anthraz -nas costas! Aquillo foi um golpe de ar, não é verdade? - -—Não, mas é uma coisa muito má; a senhora deve trazer uma receita. - -—Sim, senhor, oh! de certo o medico escreveu tudo isto... Levará muito -tempo a fazer? - -—Não, faça favor de se sentar e de esperar cinco minutos; vou já -despachal-a. - -—Então espero. - -Entra na botica, com ar assustado, uma senhora já velha, trazendo um -cãosinho atrelado, e exclama: - -—Meus senhores, é verdade estar já em Paris, ter já feito muitos -estragos? ataca com muita força? - -—Perdão, minha senhora, mas de quem é que falla? - -—Do cholera, senhor, disseram-me que já estava em Paris, que tinha -apparecido no arrabalde de Santo Antonio. - -—É a primeira vez que ouço falar de similhante coisa, minha senhora. - -—Devéras, não tem ouvido falar em tal? - -—Não, minha senhora. - -—O que confirmava os meus receios, foi que ao passar por deante de uns -urinoes, reparei que os estavam alimpando com chloreto. - -—Isso faz-se muito amiude, é para destruir o mau cheiro... - -—Acha que é só para esse fim? Devo tambem dizer-lhe que tenho uma amiga a -quem acaba de morrer o marido muito repentinamente. - -—Uma apoplexia, talvez. - -—Oh! não, senhor, elle não era sanguineo; mas voltou uma noite para -casa com uma lagosta e um salsichão de Lyão, era o seu petisco favorito -acompanhado de muita cerveja. Comeu menos mal; mas no outro dia pela -manhã estava morto e da côr do salsichão. - -—Teve uma indigestão, minha senhora. - -—Mas elle já muitas vezes tinha comido tanto como d’essa vez e não -morrêra. - -—Essas coisa não acontecem nunca duas vezes, minha senhora. - -—Ahi está tambem o pequeno da minha porteira, um rapazito sadio e córado, -pois está ha tres dias com uma dor de barriga e com uma dysenteria. - -—Isso é muito commum nas creanças. - -—Emfim, acabo de encontrar um sujeito que jantou em minha casa ha quinze -dias, e estava então de perfeita saude. Achei-o muito amarello, com -os olhos encovados, mudado a ponto que não me pude conter que lhe não -dissesse: «Ai! Jesus! que cara que o senhor tem!» então está doente? E -elle responde-me: Não sei o que tenho, sinto dores por todo o corpo. É -assim que principia o cholera? - -—Não, minha senhora, esse sujeito tem provavelmente uma grande -constipação, é o que é. - -—Oh! não importa, asseguro-lhe que anda no ar alguma coisa que não é -natural. Eu esta manhã tinha quasi frio quando me levantei, e agora estou -com muito calor! - -—É que andou muito depressa. - -—Não, senhor; o Zozor obriga-me a parar a cada instante; o pobre -animalsinho tambem não está no seu estado normal... Faça favor de me dar -uma pouca de camphora, sei que é um preservativo contra as más emanações. - -—Vou dar-lh’a immediatamente. - -—Metterei um pedaço no meu espartilho: isso não me pode fazer mal. - -—Pelo contrario, minha senhora. - -—Ha de dar-me tambem um pouco de chloro; é outro preservativo. - -—Liquido ou solido, minha senhora? - -—Não comprehendo. - -—Minha senhora, solido é em pó; liquido é em garrafa, uma agua preparada. - -—Ah! eu não conhecia o solido. Dê-me dos dois, farei uso de ambos; -lavar-me-hei com um, e trarei commigo o outro. Ah! tem arruda? - -—Tenho, sim, minha senhora. - -—É tambem um preservativo. - -—Afugenta os insectos. - -—Oh! e preserva tambem do mau ar, dê-me uma pouca; hei de trazel-a sempre -no espartilho. - -—Fará a senhora muito bem. - -—A alfazema tambem tem propriedades reconhecidas? - -—Tem, sim, minha senhora, é aromatica. - -—Dê-me tambem uma porção de alfazema, que é para trazer nas algibeiras. -Que mais me poderá o senhor dar que seja contra os maus ares? Ah! -_patchouli_... tem _patchouli_? - -—Não, minha senhora, isso vende-se nas perfumarias; mas olhe que o -_patchouli_ cheira muito bem mas não combate o mau ar, e, se abusar -d’elle, pode alguma vez atacar-lhe o systema nervoso. - -—Ah! eu não quero nada que ataque o meu systema; a mais pequena coisa me -irrita os nervos! - -—Então, minha senhora, leve antes valeriana, é uma raiz com que se faz -uma infusão como o chá. Comtudo, devo prevenil-a de que não é agradavel -de beber, e que tem muito mau cheiro, mas é muito saudavel. - -—Oh! dê-me cá d’essa raiz, bebel-a-hei e tral-a-hei sempre commigo. - -O praticante dá a esta senhora tudo quanto ella lhe pede; ella enche as -algibeiras e o seio de camphora, arruda, chloro, alfazema, valeriana, e -leva uma garrafa de agua chloretada. Vae deixando por onde passa uma -mistura de cheiros cuja reunião nada tem de agradavel. - -—Se esta senhora não tem á noite uma forte enxaqueca, será um grande -milagre! diz um dos rapazes. - -—Não falando em todos os gatos que vão correr e saltar atraz d’ella, -attrahidos pelo cheiro da valeriana, que os faz quasi endoudecer. Se não -gosta de gatos, vae ver-se muito apoquentada. - -Entra na botica um pedreiro mostrando o braço esquerdo todo ferido; ia -sendo esmagado por uma trave que quasi lhe caíu em cima, mas apenas -apanhou um forte raspão no antebraço. Curam-n’o, ligam-lhe a ferida, -dão-lhe um frasco de agua-ardente camphorada, para elle embeber o -apparelho, e, quando quer pagar, despedem-n’o dizendo: - -—Nós não acceitamos nada aos doentes pobres! Vá-se tractar, e, se tiver -precisão de mais alguma coisa, não receie vir pedil-o que não lhe custará -nada. - -Hão-de convir que, quando a gente vê os pharmaceuticos mostrarem-se tão -solicitos em soccorrer os desgraçados, não deve ter mais a confiança de -os tractar por _boticarios_. - -No emtanto têem entrado na pharmacia muitas creadas de servir; falam -todas ao mesmo tempo, e dizem: - -—Vá! despache-me, que estou com pressa. - -—Oh senhor, eu tenho tosse: dê-me rebuçados de althéa! são muito bons! -Aqui está um remedio que me agrada. - -—A mim dóe-me a garganta... - -—Tome gargarejos de agua de cevada com mel rosado... - -—Minha ama quer pomada para os beiços, não ha pomada que lhe chegue; eu -não uso d’isso, e tenho a bocca mais fresca do que ella. - -—Eu fiz um gallo na testa, e dóe-me muito. - -—Deu alguma pancada? - -—Foi n’uma porta. Eu estava muito quieta, de repente abriram-n’a... eu -não esperava... - -—Provavelmente estava a escutar? - -—Effectivamente escutava; tinha chegado o magnetizador? - -—O que é isso de magnetizador? - -—É um sujeito que anda ensinando a senhora a ser somnanbula lucida, para -fazer experiencias em sociedade. - -—Ah! sua ama quer ser somnanbula? - -—É verdade, metteu-se-lhe aquillo na cabeça; por mais que o marido lhe -diga: «Olha que vaes adoecer!» a senhora não desiste. E, quando chega o -magnetizador, mandam-me embora. - -—E o marido? - -—Meu amo? oh! esse está na repartição; sae de casa ás nove horas, e só -volta ás cinco, é coisa eabida. - -—Percebo. Onde é que deu a pancada? - -—Aqui, na testa... apalpe... - -—Ah! sim, cá sinto. - -—Meu amo disse-me que não precisava fazer-lhe nada, que os gallos na -testa não são perigosos. Elle deve entender d’isto... - -—Tome sempre cosimento de vulneraria, será mais prudente. - -—Então arranje-me isso n’um instante. - -Abre-se a porta, e sente-se um cheiro fortissimo; é a velha dos -preservativos que volta, dizendo: - -—Senhor, esqueci-me de levar agua de melissa dos Carmelitas; é uma coisa -indispensavel quando a gente se sente incommodada; podem-se tambem -esfregar as fontes com ella; é um preservativo... faça favor de me dar um -frasco. - -—Aqui está, minha senhora. - -—Esta é da verdadeira, não é assim? o senhor não quererá enganar-me! É -dos verdadeiros Carmelitas, da verdadeira rua Taranne? - -—Minha senhora, eu não conheço duas em Paris: - -—Muito agradecida. - -A velha mette o frasco na algibeira e retira-se. - -A menina Adriana entra emfim na pharmacia, exclamando: - -—Ah! cá estou finalmente! ainda bem! pensei que não chegaria nunca... - -—Tem alguem doente em casa, menina Adriana? - -—Tenho; é minha ama que está com o seu ataque nervoso, com a sua crise, -e com um grande tremor. Tome, aqui tem a receita, avie-me depressa... eu -vim a correr quanto pude, agora não me demore muito tempo... - -—Sente-se, que vou já despachal-a. - -—Ah! agradeço-lhe muito a sua bondade! é que me faz muita pena vêr -soffrer a pobre de minha ama. - -Começa o praticante a aviar a receita da sr.ª Montémolly, quando se -abre de novo a porta, e invade a pharmacia uma mistura de cheiros -activissimos; é a senhora que tem medo do cholera, que torna a entrar e -vae importunar o rapaz que está ao balcão, exclamando: - -—Ah! senhor! não pode fazer idéa de como cheira mal a rua Meslée!... - -—Sinto muito, mas que quer que lhe faça? - -—Anda alguma coisa no ar, oh! certamente, o ar está máu n’este momento!... - -—É talvez uma trovoada que se prepara!... - -—Oh! o que se prepara é outra coisa. Quer ter a bondade de me desrolhar o -meu frasco de agua de Melissa? Se me dá licença, vou esfregar o nariz e -as fontes, e então poderei affrontar com menos susto os miasmas da rua. - -—Faça o que quizer, minha senhora, aqui tem o seu frasco aberto; quer uma -chicara? - -—Bastará a ponta do meu lenço, vou embebel-a muito bem... - -Effectivamente, esta senhora deita agua de Melissa no lenço, depois -esfrega as fontes, lava o nariz, introduz tanto quanto pode o lenço -molhado nas ventas, esfrega tambem a testa, deita agua de Melissa na -palma da mão, depois aspira-a a ponto de espirrar oito vezes a fio. Emfim -acabada esta ceremonia, torna a rolhar o frasco, mette-o na algibeira, -vae-se, dizendo: - -—D’esta vez, creio que estou bem preservada do máu ar!... - -—Oh! sim, minha senhora, está bem preservada, exclama o aprendiz de -boticario. Folgo de crer que tambem nós o estamos agora das suas visitas. -Que fregueza!... - -—Mas é ella que empesta a gente, diz Adriana; o que foi então que o -senhor deu áquella senhora? - -—Tudo o que ella quiz!... - -—Qual é a doença d’ella? - -—A doença é medo, que é o mal mais commum e que nos manda cá mais gente. -Esta senhora tem medo do cholera; outras têem medo d’uma molestia de que -não apresentam o mais pequeno symptoma mas de que se julgam ameaçadas... -o medo não raciocina! Ninguem faz idéa de quantos freguezes elle nos -arranja... - -—Ai! com a bréca! exclama um dos praticantes, eil-a ahi outra vez de -volta comnosco!... - -—Quem? - -—A senhora dos preservativos... - -—Ora essa! nada, isso agora torna-se forte de mais. Que mais quererá ella -lavar aqui? isto começa a dar-me cuidado. - -A senhora, que recende fortemente, abre a porta e pára no limiar, dizendo: - -—Perdão, meus senhores, uma pergunta, se me dão licença... Se eu tomasse -tabaco?... É uma coisa que tambem deve preservar, penso eu?... - -—Sim, minha senhora, de certo, tome tabaco... tome mesmo muito; não -cheirará mais nada!... - -—Então faça favor de me dar uma porção de tabaco... - -—Nós não vendemos tabaco, minha senhora, no _boulevard_ encontra-o logo. - -—Corro a compral-o. Cheirarei primeiramente, e depois talvez me arrisque -a fumar um cigarrinho; as senhoras agora fumam, não é verdade? - -—Sim, minha senhora. Oh! as senhoras fumam, fazem agora tudo o que fazem -os homens; isso não as aformoseia, mas diverte-as... - -—Oh! mas eu cá, não é com o fim de me aformosear, é para affrontar os -máus ares. Vou comprar tabaco... - -—Vá, minha senhora, vá! diz o joven pharmaceutico fechando-lhe a porta -nas costas; cheire, fume, masque mesmo, se isso lhe dá prazer mas, por -favor, deixe-nos socegados um instante! Tome, menina Adriana, aqui tem o -remedio para sua ama... - -—Obrigada; vou de corrida levar-lh’o... faz-me tanta pena vel-a -soffrer!... Boa tarde, meus senhores... - -A creada grave retira-se, e d’esta vez chega a casa sem ter tido outros -encontros. Quando passa diz á porteira: - -—Aqui me tem; cá trago o remedio; pensei que não acabavam de me aviar -hoje; havia muita gente na botica... - -—Pois olhe, não vale a pena apressar-se... - -—Então porquê, sr.ª Bedou? - -—Porque sua ama saíu de carruagem com a sua amiga, ha já bastante tempo... - -—A senhora saíu! oh! isso era de esperar! vá lá uma pessoa estafar-se a -correr para dar conta do seu recado! vá lá a gente privar-se de conversar -com os seus conhecimentos! Ah! esta não me ha de esquecer... - - - - -III - -Um rapaz manteúdo - - -O joven Casimiro Dernold occupa um lindo aposento de rapaz solteiro, n’um -terceiro andar, n’uma bella casa da rua de Paradis-Poissonniére. Tem uma -saleta, uma sala e um quarto de dormir. Tudo isto está no maior aceio, -e bem adornado; a mobilia, sem ser d’uma extrema elegancia, é de bom -gosto e ainda da moda. Emfim, tudo annuncia que quem occupa este pequeno -aposento não deve ser, como se diz vulgarmente, um semsaborão. - -E entretanto aquelle que alli habita, rapaz de vinte e seis annos, bonito -de cara, bem feito de corpo, cujo porte é elegante e o trajo sempre -apurado, passeia n’este momento na sala com um ar de muito máu humor, -batendo algumas vezes nos moveis com uma chibatinha, ou amarrotando -as luvas com colera, e falando alto, o que acontece amiude ás pessoas -fortemente excitadas por um sentimento qualquer; porque parece que -desafogamos dizendo o que nos afflige, mesmo quando ninguem mais nos pode -ouvir. - -—Nada! não!... isto não pode durar assim... é preciso acabarmos com isto! -exclama o rapaz, que acaba de bater com a chibatinha n’uma poltrona -fazendo sair d’ella uma nuvem de poeira, o que o detem na sua exclamação -e lhe faz dizer: Se é assim que o meu porteiro me sacode a mobilia, não -se deve cansar muito... Nada! estou cançado de ser escravo de Anbrosina, -porque sou completamente seu escravo!... Não posso dar um passo, nem ir -a parte alguma, sem que ella o saiba... Estou persuadido de que me manda -espreitar; diz que é por amor; ella ama-me, sim, concordo n’isso, devo -mesmo acredital-o... porque eu custo-lhe muito caro... Ella compra-me -tudo o que eu desejo; paga-me o alfaiate, o sapateiro, emfim, todos os -meus fornecedores... Aliás, como havia de eu pagar-lhes, eu que não -faço nada, que não ganho nada, que para nada sirvo? Oh! mas, se não -faço nada, ella é que tem a culpa! Todas as vezes que tenho querido -procurar um emprego, ella tem-se opposto a isto. Quando me quero deitar -de novo á pintura, porque eu principiava a ir menos mal na paizagem, -tinha tambem conseguido fazer alguns retratos, tinha experimentado a -mão com os amigos. Eu devia ter continuado, mas Ambrosina acha sempre -meio de me impedir de trabalhar, levando-me para o campo, obrigando-me -a acompanhal-a constantemente, a andar passeando com ella, a leval-a a -alguma festa... Emfim, imagina sempre alguma coisa, tudo para fazer -monopolio de mim, para me ter sempre na sua dependencia. Havia de -affligir-se muito se eu ganhasse dinheiro, porque então poderia passar -sem ella, escapar-me das suas garras! E eu, covarde, preguiçoso, comilão, -gostando dos prazeres, da vida regalada, deixei-me enredar por esta -mulher, por quem senti algum amor, no começo, e da qual depois não tive -força para recusar os favores. E quando a gente se acha n’este declive, é -muito difficil parar, sobretudo quando se é, como eu dizia, preguiçoso, -comilão, e amigo das suas commodidades. Ah! os rapazes deviam tomar muito -cuidado nas ligações que arranjam... essas ligações influem em todo o -resto da existencia. Tenham duas, tres, doze amantes se se acham com -forças para tanto, mas não se prendam com nenhuma... porque é essa que os -fará commetter tolices e perder o futuro. Aquelles que passam por doudos -e extravagantes, são portanto os que têem mais juizo; pelo menos não se -deixam cair no laço e conservam o seu livre arbitrio. Nada, não, ha dois -annos que sou o chichisbéo da sr.ª Montémolly, irra! já estou farto! - -Casimiro dá nova chibatada n’uma das suas poltronas; levanta-se uma tal -poeirada, que o rapaz fica quasi cego, e tem de, se refugiar na outra -extremidade da sala, murmurando: - -—Olhem o maroto do porteiro! não é possivel ter menos cuidado com os meus -moveis! E diz elle que passa metade do dia a arranjar-me a casa. Ah! se -Ambrosina soubesse que dou lições da desenho a uma menina do predio, como -não ficaria furiosa! É todavia uma coisa bem innocente. A menina Angelina -Proh é uma rapariga nem feia nem bonita; antes tola que espirituosa; -mas creio que isso é de familia. Mora com o pae, com a mãe e com um -irmãosinho, no mesmo patamar defronte de mim. Esta familia Proh é d’uma -extrema polidez; a mãe, que ainda tem pretenções, dizia-me a cada passo: - -«—O senhor é pintor, ah! eu estimaria muito ter o meu retrato, e, se o -senhor não levasse muito caro, pedia-lhe que m’o tirasse, mas a oleo, -com tintas porque eu detesto a photographia, acho que faz a gente feia -consideravelmente. - -«—Minha senhora, sinto muito, mas não me julgo ainda com forças bastantes -para tirar um retrato do nutural. - -«—Oh! isso é talvez demasiada modestia! Será preciso experimentar; nós -somos visinhos, não virei senão quando o senhor tiver tempo de seu. - -«Tempo de meu! tenho-o sempre, quando porém Ambrosina me dá liccença -para o ter!... Depois o papá Proh, que é, creio eu, um antigo professor -de grego e de latim, propoz-me o dar algumas lições de desenho á filha e -ao filho, quando elle não fizer travessuras. Já se vê, aceitei. Vinte e -cinco francos por mez não são grande coisa, mas eu não poderia dizer com -que sentimento de alegria, de felicidade, recebo este dinheiro, que é -adquirido pelo meu trabalho. Sinto-me deveras orgulhoso! Ah! estes vinte -e cinco francos dão-me cem vezes mais prazer que o cartucho de moedas de -ouro que Ambrosina me mette no bolso; tanto mais que ao depois é preciso -que eu lhe dê uma conta exacta do emprego que fiz d’esse ouro... - -«Hoje devia ir buscal-a ás oito horas para a levar a um café-concerto. -Ella havia de escolher o que mais a tentasse. Mas como isso me não -tentava nada a mim, e como desde muito tempo ardo em desejos de ir -ao Mabille ver as damas que dansam com tanto _chic_, escrevi-lhe um -bilhetinho dizendo que o meu amigo Miflaud tinha uma pendencia de -honra para ámanhã pela manhã, que elle contava commigo para ser um -dos padrinhos, e que era absolutamente preciso que eu lhe fosse falar -esta noite, para me entender com elle e com o outro padrinho sobre as -condições do duello e sobre o motivo da pendencia. Engulirá ella esta -peta?... Hum! não é muito provavel; o importante é que Miflaud, que -deve ir commigo ao Mabille, não me faça esperar muito tempo. Logo que -eu me apanhe fóra de casa, tanto peor! se Ambrosina aqui mandar, não me -encontrarão. - -«Vejamos as horas que são: já oito horas! e este tolo de Miflaud devia -cá estar ás sete e meia. Felizmente, mandei a minha carta a Ambrosina -muito tarde; de certo não a recebeu antes das oito horas. Quem a ha -de aturar ámanhã! Mas, em ella vendo que me zango devéras, oh! então, -acalma-se logo; ella no fundo não é má, mas muito ciosa de mais! -infinitamente ciosa; uma verdadeira andaluza. Graças a Deus não traz faca -na liga. Ah! lá tocam a campainha, é Miflaud, finalmente...» - -Casimiro corre a abrir a porta, mas, em vez do rapaz por quem esperava, -acha-se com um menino de seis annos, que lhe diz: - -—Sr. Casimiro, venho da parte da mamã saber se o senhor está em casa? - -—Bem vê que estou, Affonsinho, e o que me quer a sua mamã, a sr.ª Proh? - -—Acaba a costureira de lhe trazer um vestido novo muito bonito, de riscas -verdes e encarnadas. A mamã vestiu-o, e queria que o senhor a visse com -elle, para lhe dizer se a quer retratar assim. - -—Mas meu menino, eu não vou agora fazer o retrato da sua mamã; terei -muito tempo para ver o seu vestido. - -—Sim, porém ella disse-me: Vae pedir ao nosso vizinho que entre cá um -minuto; quero que elle me veja assim vestida... - -—É que estou á espera d’uma pessoa. Ah! mas posso deixar a porta aberta. -Ande lá adeante de mim, Affonsinho! Seu papá não está em casa? - -—Não, senhor, saiu agora mesmo dizendo á mamã que ella parecia uma girafa -com o seu vestido de riscas. - -—Oh! com a breca! mas a sr.ª Proh não havia de ficar muito contente! - -—Por isso respondeu ao papá: «Tu então não precisas estar vestido para -pareceres um chimpanzé.» Sr. Casimiro, o que é um chimpanzé, com que o -papá se parece? - -—Meu caro amigo, é... ora... um chimpanzé é um homem dos bosques, um -bonito homem dos bosques, emfim é um quadrumano. - -—É o que é um quadrumano? - -—É um homem que tem os pés com forma de mãos. - -A apparição da sr.ª Proh vem pôr termo ás perguntas do filho. Esta -senhora vem até á porta da escada ao encontro do seu vizinho. Celeste -Proh é uma mulher de quarenta e sete annos, loura, deslavada, com olhos -azues muito desmaiados, e sem rasto de sobrancelhas; é obrigada a -fazel-as com um pincel, que ella molha n’uma composição, cuja côr nem -sempre é a que se esperava, o que faz com que esta senhora tenha por cima -dos olhos um arco, ora preto, ora côr de castanha, ora avermelhado; ella -porém acha que isso lhe dá mais graça á physionomia; tem-se por muito -bonita e julga parecer mais nova que sua filha, que tem dezeseis annos. -Repete muito amiude na conversação que não comprehende seu marido, que -nunca mostrou empenho em possuir o retrato de sua mulher, com o qual elle -deveria ter adornado todos os seus aposentos. - -A sr.ª Proh tem effectivamente um vestido novo de riscas largas d’um -encarnado muito vivo e d’um verde claro, o que lhe dá quasi o ar d’uma -mouta florida e attrahe a vista a cincoenta passos. Avança sorrindo para -o vizinho. - -—Mil perdões, sr. Casimiro, fui indiscreta, mandei-lhe lá o Fonfonso; é -que eu queria saber a sua opinião a respeito d’este vestido; como o acha? - -—Acho-o muito bonito, é original e faz sobre-tudo muito effeito; emfim, -vê-se de longe. - -—Eu gosto d’isto, gosto do que dá nas vistas. Acha que me fica bem? - -—Admiravelmente! assenta-lhe que nem uma luva! - -—Gosto muito do vestido bem justo ao corpo. Demais, creia que não me -tolhe por modo algum os movimentos. Então está dito, ha-de retratar-me -com este vestido, não é verdade? - -—Então sempre quer que lhe tire o retrato? - -—De certo que sim. - -—Mas eu já lhe disse que me não julgo com forças de tirar um retrato do -natural. - -—Mas o senhor pintou o retrato da gata do porteiro, já lh’o vi lá em -baixo no cubiculo. - -—Aquillo foi um ensaio, para me distrahir. - -—Pois bem! fará tambem o meu para se distrahir. O sr. Casimiro é -demasiadamente modesto, desconfia muito do seu talento; a gata do -porteiro parece que está viva, e todavia ella não esteve muito tempo em -posição deante do senhor? - -—Não esteve tempo nenhum, pintei-a de memoria. - -—Eu estarei o tempo que o senhor quizer. O meu Proh queria fazer-me -photographar, mas eu não quiz; detesto a photographia, desfeia e -envelhece a gente, mas não custa caro, e por isso toda a gente se serve -d’ella. Falem-me da pintura! isso é que tem vida, expressão, côr... - -—Sou inteiramente do seu parecer, minha senhora. - -—Entre e descance um pouco... - -—Muito obrigado, mas espero uma pessoa, e é preciso que eu esteja em casa. - -—Então como este vestido lhe agrada, poderá retratar-me com elle? - -—Estou prompto a retratal-a com o trajo de que a senhora mais goste, -mesmo de Diana caçadora, se quizer. - -—Oh! mas é uma bella idéa essa. Diana caçadora! oh! isso é que seria de -bom gosto... - -—Boa tarde, minha senhora, e fico ás suas ordens. - -—Mas, vizinho, onde poderei encontrar o trajo d’essa deusa da caça? - -—Casimiro não responde mais á vizinha, porque fechou já a porta, dizendo -comsigo: - -—Esta sr.ª Proh é massadora! Se não fosse o interesse que tenho em lhe -dar lições aos filhos, já a teria mandado para o diabo com o seu retrato! -E este Miflaud sem apparecer! São quasi oito horas e meia, estou capaz -de me ir embora sem elle. Mas ir sósinho ao Mabille não é nada divertido! - -Passam ainda cinco minutos quando finalmente tocam a campainha com -violencia; o rapaz corre a abrir a porta, mas é a sr.ª Montémolly, que -entra com um ar decidido, furibundo, toda esbaforida e a escorrer em -suor, porque subiu a escada a toda a pressa. Os leitores já sabem pela -menina Adriana que sua ama, que quer passar por ter trinta e quatro -annos, deve andar perto dos trinta e oito. Para completar o retrato, -accrescentaremos que é uma mulher alta e bonita, que tem uma certa graça -nas maneiras, uma certa perfeição nas fórmas, e que veste muito bem. É -uma mulher trigueira, cujos olhos bem rasgados nem sempre são meigos, -e cuja bocca, um pouco mettida para dentro, é muitas vezes desdenhosa -e altiva; mas, quando ella quer ser amavel, é uma bonita mulher, um -verdadeiro typo andaluz; para ser uma perfeita hespanhola, não lhe falta -senão o pente muito alto debaixo do véu preto e umas castanholas nas mãos. - -Esta senhora entra sem se demorar um instante, sem mesmo dizer uma -palavra áquelle que lhe abre a porta; atravessa immediatamente a saleta -de entrada, a sala, vae passar revista ao quarto da cama, esquadrinha -todos os cantos á casa para vêr se está por alli alguem escondido; só -depois de ter acabado esta inspecção é que volta á sala, e atira comsigo -para cima d’uma poltrona exclamando: - -—Ah! não era a mim que o senhor esperava, não é verdade? - -—De certo! responde Casimiro sentando-se com o ar d’uma pessoa que -acaba de levar com uma telha na cabeça; e é devéras um acaso o ter-me -encontrado aqui. Já teria sahido para ir a casa de Miflaud, se elle me -não tivesse escripto novamente dizendo-me que viria elle mesmo cá, que -antes queria isso, porque em sua casa, como mora com a mãe, receava que -ella suspeitasse do duello e então... - -—Sr. Casimiro, quando faz tenção de acabar com essas mentirolas? Pensa -porventura que acredito todas essas patranhas que me conta, e mesmo -muito mal. - -—Mas, minha senhora, não ha aqui patranha nenhuma. Que espanto é que um -meu amigo tenha uma pendencia de honra? é uma coisa que acontece todos os -dias. Elle pede-me que seja seu padrinho, e isto não se recusa... - -—Em primeiro logar, ha muito tempo que o senhor me não falava no seu -amigo Miflaud; parece-me que tinha deixado de andar com elle. - -—Deixado... porque, estando sempre com a senhora, não posso andar com -elle, mas não estavamos desavindos. - -—O senhor devia passar o serão commigo. - -—Isso nada tem de notavel, porque os passo todos! - -—Então com quem queria passal-os? O senhor escreve-me: «Não espere por -mim esta noite.» Como é amavel!... - -—Visto que era para obsequiar Miflaud. Mas tanto peor para elle; não -estou para o esperar mais tempo. Venha, vamos passear. - -—Ah! agora tem pressa de sair, está com medo não chegue essa pessoa. Isto -esconde uma perfidia; não é Miflaud que o senhor espera! - -—É sim, é elle. Mas, visto que a senhora se deu ao incommodo de cá vir, -que o leve o diabo. Vamos, Ambrosina, estou ás suas ordens. Hein? isto é -que é ser amavel! Vamos embora... - -—Oh! que pressa que tem de sair! isto não é natural, o senhor está-me a -atraiçoar! - -Cazimiro levanta-se encolerizado, e põe-se a passear pelo quarto dizendo: - -—Isto é demais! o demonio leve as mulheres com o seu genio infernal! Quer -a gente sair sem ellas, gritam; quer estar com ellas, gritam do mesmo -modo! Emfim, faça-se o que se fizer, gritam sempre! Ah! não estou para -aturar mais scenas d’estas! Adeus, minha senhora, faça o que quizer, eu -cá vou-me embora! - -E já o rapaz tem dado alguns passos para a porta; mas Ambrosina corre -para elle com a rapidez d’uma corça, segura-o, enlaça-o nos braços, olha -para elle amorosamente, e diz-lhe com ternura: - -—Aonde vaes, ingrato? queres abandonar-me? bem sabes porém que não posso -viver sem ti, que és a minha felicidade, a minha alma, a minha vida! -Reputas um crime o eu ter vindo aqui? não era muito natural que eu me -quizesse certificar de que não recebias aqui outra mulher, ou de que não -ias ter com ella a alguma parte?... - -—Bem vê que não escondo aqui mulher alguma; o que me havia de ser -difficil! a senhora esquadrinhou todos os cantos á casa. - -—Não, mas estás talvez á espera d’ella! - -—Outra vez! ah! a senhora é terrivel! - -—Não! não! não tenho razão, meu amigo, sou injusta, não o serei mais... - -—Bom! ainda bem! vamos passear. - -Casimiro está com pressa de sair, porque receia agora que a chegada -do seu amigo Miflaud ponha a descoberto as suas mentiras. Mas, sempre -promettendo não tornar a ser ciosa, Ambrosina, que continua a ter -suspeitas, acha meios para não sair tão depressa: é o seu chapéu que -não está bem posto, depois é a cuia que não está muito segura, e é -preciso que ella arranje tudo isto; o seu amante está sobre brazas; já -pôz o chapéu na cabeça, tem a bengala na mão, e a sua amante tem sempre -alfinetes a pregar em alguma parte. Succede alfim o que elle receava, -batem á porta. - -O rapaz não dá mais que um pulo da sala á porta de entrada, afim de -tratar de prevenir o seu amigo; mas, por mais prompto que tenha sido, -Ambrosina chega lá ao mesmo tempo que elle, depois de ter atirado ao chão -os alfinetes que estava a pregar. - -É effectivamente Miflaud, joven corrector de commercio, da edade de -Casimiro, que não é bonito, mas que tem uma cara bastante original, que -gosta de _grisettes_, de dança, de vinho branco e de camarões; não foi -muito favorecido pela natureza emquanto ao espirito, mas está sempre -prompto para se divertir, para rir, emfim para brincar, comtanto que não -seja encarregado de inventar as brincadeiras. - -—Boa noite, Miflaud, vens por causa do teu duello... pois que te bates -ámanhã, e eu devo servir-te de padrinho. Mas sinto muito, meu amigo; -procura outro... Tenho que fazer ámanhã. - -Tudo isto foi dito por Casimiro d’um só jacto, sem tomara respiração. -Um outro que não fosse Miflaud, um d’estes farçantes como ha tantos, -teria comprehendido a situação, sobretudo vendo os signaes que o seu -amigo tratava de lhe fazer; mas Miflaud não era esperto, e emquanto que -a sr.ª Montémolly o mira com anciedade, elle toma um ar muito espantado -respondendo: - -—Eu! bato-me em duello! Essa é muito boa! Mas não percebo nada, isso é -uma brincadeira! - -—Vamos Miflaud, não vale a pena occultal-o... esta senhora tudo sabe, eu -contei-lhe tudo; não se dirá nada a tua mãe. Boa noite... vamos sair... - -—Mas eu estimaria bem saber o que tu queres dizer com o teu duello... - -—Este senhor fez todavia tudo quanto é possivel para que o senhor -comprehendesse! diz Ambrozina lançando sobre Casimiro um olhar -fulminante; elle quiz immediatamente pôl-o ao facto de tudo, para que -o senhor não desmentisse as patranhas que elle me contou... mas perdeu -o tempo e o trabalho; não me deixo enganar tão facilmente! Vamos, sr. -Miflaud, não esteja a quebrar a cabeça, não se cance a querer adivinhar -o que significam os signaes que o seu amigo lhe faz... O senhor não tem -nenhum duello, não se bate ámanhã, e estimo muito que assim seja. - -—Muito obrigado pela sua bondade, minha senhora; é certo que não tenho -nenhuma tenção de me bater ámanhã, nem mesmo depois de ámanhã... - -—E vinha buscar este senhor para ir com elle... a algum baile de tasca, -sem duvida? - -—Oh! minha senhora!... ora essa!... um baile de tasca!... eu vinha... -nós deviamos ir... Casimiro, dize lá onde é que estavamos para ir... - -Casimiro encolhe os hombros, e atira comsigo para uma cadeira exclamando: - -—Oh! não te embaraces... pois que com esta senhora não ha meio de dar um -passo, de ir a um divertimento sem sua licença... Pois bem! é verdade, -iamos, ou pelo menos deviamos ir ao Mabille passar uma hora. Isto não é -crime! mas a senhora é tão ridicula, tão ciosa, que em tudo vê maldade! e -obriga-me a mentir para evitar as scenas de ciume; mas com a senhora não -se evitam nunca! - -—Ao Mabille! quer ir ao Mabille! que horror! um logar de perdição! Bem se -sabe o que os homens vão lá procurar!... - -—Mas, minha senhora, engana-se, diz Miflaud; o Mabille é um jardim -frequentado pela boa sociedade, pelos estrangeiros mais distinctos, por -lindas mulheres... - -—Por _cocottes_! diga o termo. - -—Mas lá não ha só _cocottes_; e ao menos as que lá vão, apresentam-se -vestidas no rigor da moda, e algumas que dançam com uma graça, uma -desenvoltura. Asseguro-lhe que é muito curioso vêr aquillo. - -—Oh! desconfio bem que não é só para vêr que os senhores lá vão... - -—Mas, como Casimiro parece estar agora occupado com a senhora, penso que -não iremos, e portanto vou... - -—Nada! nada! vamos lá, eu quero ir por força! exclama Casimiro -levantando-se arrebatadamente. Não se ha de dizer que nunca faço o que me -dá na vontade. Vem, Miflaud, vamos tomar uma carruagem. - -—Ah! querem por força ir ao Mabille, diz Ambrosina correndo a buscar o -chale; pois bem! vou tambem com os senhores. Penso que o sr. Miflaud não -se recusará a dar-me o braço... - -—De certo que não, minha senhora, terei até muita honra n’isso. - -—Ah! lá me esqueciam as luvas... - -Emquanto a sr.ª Montémolly vae ao fundo da sala buscar as luvas, diz -Miflaud em voz baixa a Casimiro: - -—Com ella não será a coisa tão divertida! - -—Tu é que tens a culpa, imbecil! responde Casimiro; se tivesses entendido -os meus signaes, ella teria acreditado no duello, e deixava-me sair -comtigo. - -—Mas... se eu não sou forte em mimica! - -Ambrosina volta calçando as luvas e parte com os dois rapazes. Casimiro -faz quanto pode para occultar o seu mau humor; a sua amante olha para -elle, com ar meio ironico e meio de ameaça. - - - - -IV - -Um almoço em intimidade - - -No dia seguinte, depois do meio dia, Casimiro está em casa da amante, -sentado a uma mesa sobre a qual se acha servido um magnifico almoço, -defronte da sr.ª Montémolly, com quem elle fez as pazes n’essa mesma -noite do baile Mabille, que se passou sem nova scena de ciumes. Miflaud, -como não podia deixar de entregar-se á sua paixão pela dansa, teve de -largar o braço de Ambrosina, a qual, naturalmente, tomou o de Casimiro; -mas este, que não tinha a menor propensão para o _cancan_, ainda o mais -burguez, contentou-se em ver Miflaud fazer prodigios de destreza e de -audacia, executando a _tulipa tempestuosa_ e outras dansas em voga nas -quadrilhas excentricas; depois, enternecido emfim pelos suspiros que dá -Ambrosina apertando-lhe o braço, pelos olhares ardentes que succederam -aos que ella a principio lhe lançava, por estas palavras: «Então já me -não amas?» que são pronunciadas com uma voz quasi supplicante, elle -responde meigamente á pressão do braço, olha para ella sorrindo, e está -feita a paz. Não é talvez uma paz bem solida, bem duravel, mas emfim é -uma reconciliação. - -A sr.ª Montémolly está com um lindo trajo caseiro de manhã, que dá muito -realce aos seus contornos bem pronunciados; na cabeça não tem mais -enfeites que os seus lindos cabellos, muito negros e espessos, que ella -propria sabe arranjar de maneira que harmonisem com a sua physionomia, -talento que nem sempre possuem os artistas cabelleireiros, que nos -penteiam a seu modo, sem se importarem que o penteado fique bem ou mal á -nossa cara. - -Ambrosina é ainda uma mulher muito seductora e que muitos homens se -julgariam felizes de conquistar; mas, n’este momento é ella que parece -procurar agradar ao seu amante, prendel-o em novas cadeias, emfim -captival-o ainda mais. Estão trocados os papeis: é a senhora quem faz a -côrte, e o homem quem a recebe. - -—Meu amiguinho, coma um bocadinho d’este _foie gras_, diz Ambrosina a -Casimiro. Não o acha bom? - -—Delicioso, optimo! mas já comi. - -—Não importa. Então vae perdendo o appetite? - -—Pelo contrario, tenho um appetite enorme, e parece-me que o mostro bem; -faço honra ao seu almoço. - -—Que tal acha este Chambertin? - -—Excellente: sinto-me tentado a cantar aquella copla do _Novo senhor de -aldeia_: _É um vinho dos mais excellentes!... tem dez tem doze annos!..._ - -—Tenho aqui um velho Madeira, de retorno da India, que o meu fornecedor -de vinhos me recommendou; vae dizer-me o que pensa d’elle. - -—Estou d’antemão persuadido de que pensarei muito bem; a senhora tem -sempre vinhos deliciosos. - -—É verdade, estou muito contente com o meu fornecedor. Coma d’esta -lagosta em _mayonnaise_... - -—É o que estou fazendo. - -—Aqui tem azeitonas... e atum. - -—Logo, logo, temos muito tempo; a senhora não tem que sahir hoje de manhã? - -—Eu? ora essa! E aonde poderia eu ir quando estou com o senhor, quando -o pussuo aqui, ao pé de mim, em minha casa? Ah! sou tão feliz então! -queria estar sempre assim... - -—Provemos uma gota d’este famoso Madeira de retorno da India. Hum! que -linda côr... e como está _nif_.... - -—O que entende por _nif_, meu amiguinho? - -—É um termo de camponio que quer dizer claro, puro. Hum! bello aroma, -este não cheira a agua-ardente como todo o Madeira falsificado... Á sua -saude, minha querida amiga... - -Vá á sua, meu brégeiro: mas sobretudo não me prégue petas como hontem. - -—Ah! quer tornar á mesma? Afinal de contas, o crime não era grande. Toda -a gente vae ao Mabille, e pode-se estar lá com muito juizo. - -—Sim, mas não se deve dansar como o seu amigo Miflaud; aquelle rapaz tem -os ossos deslocados! - -—Então que quer? elle aspira a uma reputação no genero da do famoso -Chicard! - -—Felizmente o senhor não gosta de dansa... - -—Ainda que gostasse, peço-lhe que acredite que não seria isso razão para -eu me entregar a um _cancan_ tão descabellado. - -—Meu amiguinho, aqui tem salmão grelhado que ha de ser muito bom com este -môlho á genebriana. - -—Diabo! ainda salmão; já tenho comido muito! Emfim, tanto peior! -sacrifico-me... - -—Então não bebe! - -—Não faço outra coisa... - -—Temos aqui Champagne _rosey_; gosta, creio eu? - -—Oh! eu gosto de todos os vinhos quando são bons, é como as mulheres. - -—Como, senhor! gosta de todas as mulheres?... - -—Perdão! é quando ellas são boas, e asseguro-lhe que não me prende isso -muito. - -—Ah! mau! então acha as mulheres más? - -—Sim, em geral, mas ha excepções. - -—É uma felicidade! e eu sou uma excepção? - -—Oh! a senhora abusa da minha situação, faz-me beber uma grande -diversidade de vinhos... e depois faz-me perguntas insidiosas... - -—Vamos, responda: eu sou boa? - -—Ah! ah! ah! - -—Não se ria! quero que me diga se sou boa. - -—Só pela maneira de me perguntar isso, se poderia logo pensar o -contrario! mas não, pode estar socegada, a senhora é boa, é um carneiro, -um cordeirinho... nunca se zanga... - -—Creio que está mangando commigo? - -—Não, oh! francamente, julgo-a boa, quando não está debaixo do imperio -d’uns zelos que lhe estragam ás vezes o genio. - -—É minha a culpa? Eu não seria ciosa de certo se o amasse menos... - -—Sim, isso diz-se sempre, mas eu não duvido dos seus sentimentos. Tem-me -dado bastantes provas de affeição, tem-m’as dado até de mais... e como -poderei eu pagar... - -—Cale-se! agora vae dizer tolices, beba, que é melhor. O Champagne está á -sua espera. Vamos, faça-me a razão... este é o meu vinho favorito... - -—Á sua saude, querida Ambrosina; sim, bebo mas isso não me impedirá de -lhe dizer que no fundo do coração não estou contente commigo. Não faço -coisa alguma, não me falta nada, a senhora corre ao encontro de todos os -meus desejos, paga a todos os meus fornecedores: é odioso, isto assim não -pode durar! - -—Na verdade, Casimiro, não sei o que tem hoje, mas está a dizer-me coisas -muito desagradaveis. Como, porventura entre duas pessoas que se amam, não -deve ser tudo commum, o prazer e o desgosto, a miseria e a riqueza? Se eu -não tivesse um soldo de meu, se carecesse de tudo, pensa que me havia de -envergonhar de lhe dever tudo, de partilhar da sua fortuna, de viver dos -seus beneficios?... - -—Oh! n’uma mulher, o caso é muito differente! uma mulher, é esse o seu -papel, é a sua sorte; a mulher nasceu para ser protegida, soccorrida, -sustentada pelo homem. As senhoras são feitas de uma das nossas -costellas, por conseguinte são uma parte de nós mesmos. Mas o homem -nasceu para trabalhar, para ganhar dinheiro, ou para o perder quando não -é bem succedido nas suas emprezas. E quando elle passa todo o seu tempo a -passear, a não fazer nada, senão divertir-se á custa da mulher, é o mundo -ás avessas! - -—Ah! como é cruel! E todos aquelles que nasceram com fortuna, com -herdades, quintas... têem acaso necessidade de trabalhar? - -—Não, mas tambem não têem necessidade de que os seus fornecedores sejam -pagos pela dama a quem fazem a côrte. - -—Mas, todos os dias se está vendo um homem que não tem nada casar com uma -mulher que lhe leva um dote consideravel; e elle não se envergonha de -acceitar esse dote. Bem vê que é a sua mulher que elle deverá o seu bem -estar, a sua fortuna, que muitas vezes elle se apressará a dissipar com -amantes. Por que razão se acha o senhor tão reprehensivel, emquanto que -esse homem será bem visto na sociedade? - -—Oh! minha querida amiga, é que ha ahi uma grande differença: esse homem -veiu a ser marido da senhora rica, ella julgou-o digno de o unir a si -por laços indissoluveis, emfim tem o nome d’elle. O marido torna-se dono -da casa, o que é muito differente! Então pode mandar, pode pôr e dispôr -d’uma fortuna que passou a ser sua... - -A sr.ª Montémolly não responde nada; escutou com attenção as ultimas -palavras do seu amante, e isso carrega-lhe de sombras a physionomia, -emquanto que Casimiro, enche um copo de Champagne, que em seguida bebe -aos golinhos, achando que é infinitamente mais agradavel beber assim o -vinho do que ingurgital-o, e nós somos completamente da seu parecer; não -vemos que vantagem pode haver em fazer da bocca jogo do tonel. - -Entretanto, espantado do silencio que guarda a sua amante, e do ar -pensativo que substituiu o prazer que lhe animava os olhos, depois de -ter acabado de beber o Champagne, Casimiro diz-lhe: - -—Minha boa amiga, o que é que tem? vejo-a com um ar tão triste! está -incommodada? - -—Não, meu amigo, não, não é isso... - -—Então temos outra coisa? Aind’agora parecia-me, tão alegre... - -—Ah! Casimiro! foi o que o senhor acaba de dizer que me estragou a minha -felicidade... - -—O que foi então que eu disse para produzir esse effeito? - -—Tudo coisas muito justas; mas eu comprehendi-o perfeitamente, e além -d’isso, o que me quiz fazer perceber é naturalissimo. - -—O que é que eu quiz fazer-lhe perceber? Affianço-lhe que não entendo! - -—Finge que me não comprehende! O senhor, falando-me das mulheres que -enriquecem um homem casando com elle, quiz dizer-me: Por que não faz a -senhora outro tanto, se tem muito a peito ver-me gosar da sua fortuna sem -remorsos?... - -—Eu? nunca tive similhante pensamento. Oh! juro-lhe que se engana. É -verdade que disse isso, mas foi sem a intenção que suppõe. - -—Oh! meu amigo, ainda que fosse com essa intenção, onde estaria ahi o -mal? Pensa que não tenho dito commigo desde muito tempo: Ah! como eu me -daria por feliz em ser sua mulher, como me sentiria ufana de usar do -nome d’elle! E se fosse possivel isso, não lhe teria eu já pedido que -se ligasse a mim por laços indissoluveis?... Se o não tenho feito, ai! -é por que é impossivel! Olhe, meu amigo, não quero ter segredos para o -senhor... Disse-lhe que era viuva, e não é verdade! sou casada, casada -realmente, e meu marido ainda está vivo! - -—Ah! será possivel. Espere! espere! então vou beber mais Champagne... o -sr. Montémolly está vivo? - -—Esse nome não é o de meu marido; ao separar-me d’um homem, que eu nunca -tinha amado, com o qual me era impossivel viver, apressei-me a abandonar -o nome d’elle, para tractar de esquecer que era ainda sua mulher. - -—Tinha para isso todo o direito. E o que faz esse senhor? Oh! se a -contraría falar mais em seu marido, fiquemos por ahi. Por quem é, não se -embarace, fiquemos por ahi! - -—Não, visto que principiei, estimo muito agora contar-lhe como este -casamento se fez, e por que se rompeu. - -—Fale; o seu Champagne é delicioso; sou todo ouvidos. - -—Vou confessar-lhe coisas... que não tenho dito a ninguem! mas não quero -ter nenhum segredo mais para com o senhor. - -—Não me diga senão o que lhe apraz que eu saiba: eu não lhe pergunto nada! - -—É justamente por isso que lhe quero dizer tudo. Eu, aos dezoito annos, -era muito bonita! - -—Creio bem que sim, pois que ainda o é, e ha-de sel-o sempre... - -—Cale-se! Não tinha outros parentes senão uma tia mui pouco amavel, que -ralhava commigo constantemente, mas que vigiava bastante mal. Um rapaz -viu-me á janella, e namorou-se de mim. Comprou a minha creada grave, que -o introduzia em nossa casa quando minha tia saía. Elle era um rapaz muito -bonito... em summa... - -—Muito bem, o resto adivinha-se, passemos os pormenores. - -—Mas o rapaz era militar, teve de partir, de se ir reunir ao exercito. -Estava-se então em guerra. Quando elle partiu, a minha falta havia tido -consequencias... - -—Diabo! diabo! o negocio complica-se. - -—Escrevi ao meu amante participando-lhe o meu estado; elle respondeu-me -que assim que voltasse se apressaria a reparar a minha falta, casando -commigo. Mas, pobre de mim! não devia voltar! foi morto na primeira -acção... - -—Pobre rapaz! ahi fica a senhora sem saber o que ha de fazer. E a tia? - -—Era-me impossivel occultar-lhe o meu estado; ella gritou muito. Mas, -como a fortuna que eu possuia me vinha de minha mãe, como eu era mais -rica de que ella, e como, se eu a deixasse, ella teria de levar uma vida -mais modesta, apaziguou-se. Fui para o campo; alugámos uma casinha nos -arredores de Montmorency; foi lá que dei á luz uma menina, que confiei a -uma mulher de Pierrefite. - -—Em tudo isso não vejo seu marido... - -—Espere; ha de vel-o bem depressa. De volta a Paris, ia eu frequentes -vezes a Pierrefite vêr minha filha. Isto desagradava a minha tia, que -me repetia sem cessar que eu me compromettia, que não acharia com quem -casar, se não procedesse com mais prudencia. Eu não lhe dava ouvidos -e continuava a ir vêr minha filha, que era fraquinha e delicada, mas -gosava de boa saude. Infelizmente, a mim não me acontecia o mesmo: ia-me -definhando de dia para dia, de fórma que os medicos receitaram-me uma -viagem á Italia, ou pelo menos uma longa estada em Nice. Parti com minha -tia, depois de ter bem recommendado minha filha á ama. Fiquei alguns -mezes em Nice; não me restabelecia. Aconselharam-me que fosse passar uma -temporada em Napoles. Fui para lá, mas minha tia, tendo que fazer em -Paris, deixou-me por algum tempo. Tinha-lhe recommendado muito que fosse -vêr minha filha, que se certificasse de que não lhe faltava nada. - -«Quando minha tia voltou a ter commigo, disse-me que minha filha tinha -morrido, e que a camponeza a quem eu a dera a crear, muito afflicta -com essa desgraça, tinha saído de Pierrefite sem dizer em que sitio ia -habitar. Fiquei muito mortificada com a perda da minha filhinha. Tinha-me -sentido tão feliz por ter uma filha! fundava sobre ella toda a minha -felicidade futura! Minha tia fez quanto poude para me distrahir. Andámos -muito tempo a viajar; visitei a Italia toda, depois uma parte da Suissa. -Finalmente tinha-me restabelecido, e voltámos a residir em Paris. Aqui, -um sujeito rico, bastante amavel, ao menos fazia então todo o possivel -para o ser, veiu fazer-me a côrte; era um antigo amigo de minha tia, e -tenho motivos para crer que, desde muito tempo, ella lhe havia promettido -fazer quanto pudesse para me levar a consentir em casar com elle. Este -sujeito era muito mais velho do que eu; minha tia porém affirmava-me que -assim ainda eu seria mais feliz; que um marido joven abandonava em casa a -mulher para andar mettido com amantes, emquanto que um esposo, homem de -juizo, andava sempre com a mulher nas palminhas das mãos. Que lhe direi? -eu pensava não amar nunca mais... tinha perdido minha filha... Deixei-me -casar para estar emfim em minha casa e não viver mais com minha tia, a -quem o homem que me desposava tinha feito presente de uma linda casinha -nos arredores de Paris. - -«Mas não tardei a perceber que fizera uma asneira, e que me tinha ligado -a um homem que de nenhum modo me convinha. Meu marido era ciumento, -curioso, esmiuçador, intromettendo-se em tudo; pelo lado da fortuna, -como eu possuia a minha, não tinha precisão de recorrer a elle. Isso -contrariava-o, queria saber como eu gastava o meu dinheiro; convidei-o a -que se não mettesse nos meus negocios; foi o começo das nossas questões. -Mas aquelle senhor, que tudo queria saber, tinha o atrevimento de -esquadrinhar tudo por toda a parte quando eu sahia, e creio mesmo que -possuia segundas chaves de todos os meus moveis. O que é certo, é que -um dia achou n’um cofresinho, no fundo da minha papeleira, as cartas -que me escrevia aquelle pobre Augusto quando estava no exercito, e nas -quaes falava da nossa filhinha. O meu amigo acreditará que meu marido -deu por páus e por pedras, dizendo-me que eu o enganára indignamente -deixando-o crer que era... _Joanna d’Arc!_ Respondi-lhe que ainda se -devia dar por muito feliz em eu ter consentido em ser sua mulher, mas que -eu não viveria mais com um homem que remexia nos meus moveis e tinha a -confiança de ler as cartas que eu recebêra antes de usar do seu nome. -No outro dia executei a minha ameaça; aluguei uma casa, e mandei levar -para lá tudo o que me pertencia. Meu marido quiz oppôr-se á minha saida; -mas eu mostrei-lhe um rewólver que tinha comprado, e disse-lhe: Não só o -deixo, mas prohibo-o, ouça-me bem, prohibo-o de se apresentar em minha -casa... A lei auctorisa-o a isso, bem sei, porque não estamos separados -judicialmente, o que faremos ámanhã, se quizer; mas, como pelo nosso -contracto já estamos separados de bens, creio que podemos dispensar essa -formalidade. Comtudo, repito, não tenha o atrevimento de ir nunca a minha -casa, senão... é com este rewólver que o hei de receber. Meu marido é -muito medroso... desde esse dia nunca mais ouvi falar n’elle. - -—Bravo! oh! a senhora é uma mulher decidida! E juntou-se com a sua tia? - -—Com minha tia! oh! nunca! não queria nada com minha tia, que foi quem -me fez aquelle odioso casamento. Ficámos mal uma com a outra; pois não -pretendia ella fazer-me voltar para meu marido! mas eu respondi-lhe n’um -tom que lhe fez vêr que eu não era já a menina submissa ás suas vontades. -Demais, ella morreu pouco tempo depois d’aquella separação; uma doença -repentina a levou á sepultura em poucos dias; havia-me escripto para que -a fosse vêr; tinha, affirmava, uma coisa importante para me communicar. -Hesitei, dizendo commigo: Vae ainda pedir-me para que volte para meu -marido. Emfim, resolvi-me a ir; mas, quando cheguei á sua quinta, já não -era tempo, tinha ella morrido! Aqui tem, meu caro Casimiro, todos os -acontecimentos da minha vida, agora já sabe porque, com grande pezar meu, -lhe não posso offerecer que case commigo. - -—Oh! minha querida Ambrosina! pela parte que me toca, devo confessar-lhe -francamente que nunca pensei em tal, o casamento não me tenta, -assusta-me, bem sabe que ha quem affirme que o casamento é o tumulo do -amor. - -—Oh! nem sempre... mas é certo... não me acha talvez bastante joven para -ser sua mulher? - -—Eu! pois eu penso lá em similhante coisa... não, eu penso... em fazer -alguma coisa... em trabalhar... - -—Trabalhar... Para quê? com que fim? - -—Para ganhar dinheiro... - -—Não sou eu a sua thesoureira?... - -—É justamente porque eu preferiria ser o meu proprio thesoureiro. -Ia menos mal na pintura a oleo, fiz tambem alguns retratos bastante -parecidos... - -—Fazer retratos! lembra-se d’isso! para ter modelos, olhar muito para -mulheres, estudar-lhes o sorriso, os olhares! Não quero que faça -retratos, ouve? prohibo-lh’o expressamente. - -—E a paizagem? oh! a paizagem é uma coisa bem innocente! - -—Com os pintores não ha nada innocente; para a paizagem, é mister ir ao -campo procurar pontos de vista, ou carneiros e pastoras que os guardam. - -—E são lindas as pastoras dos arredores de Paris! e graciosas! como as -mulheres que alugam cadeiras. - -—Deixe-me em socego com a sua pintura. - -—Prefere que eu escreva para o theatro? Ah! deve ser uma grande -felicidade ver a gente representar as suas peças, ouvir-se applaudir... - -—Fazer comedias! que horror! um auctor passa a vida nos theatros, nos -bastidores, com as actrizes, faz a côrte a todas, e, promettendo-lhes -papeis, faz com que lhe dêem attenção; o senhor não saíria mais dos -bastidores, passaria alli a sua vida. Ah! peço-lhe por tudo quanto ha, -não pense em fazer peças de theatro. - -—Pois bem! então, se eu escrevesse um romance? Ah! isto não exige -passeios nem sahidas; escreve a gente com todo o socego no seu gabinete. -Eu tenho ás vezes idéas bastante originaes, talvez faça um romance -divertido, um romance de costumes... - -—Um romance! um romance! tenho ouvido dizer cem vezes que, para fazer -um romance, era preciso ter visto muito, que era preciso ter corrido, -ter estado nos sitios que se pretende descrever, sobretudo para fazer -um romance de costumes; ah! se o senhor faz um romance extraordinario, -inverosimil, então pode inventar... - -—Não, eu prefiro o ordinario ao extraordinario. - -—Então meu amigo, bem vê que não podia trabalhar socegadamente no seu -gabinete; teria de andar, de ir algumas vezes a sitios muito arriscados, -a esses bailes onde se dançam todas as danças possiveis; sob pretexto -de ver como se trabalha n’um _atelier_, iria a casa das floristas, das -modistas, das costureiras, isso não acabaria; seria para estudar os -costumes das diversas classes da sociedade. Deus sabe quanto se vê quando -se quer estudar os costumes! Não, siga o meu conselho, não faça romance -nenhum! Demais, não creio que seja essa a sua vocação. - -—Ah! se eu podesse descobrir ou inventar alguma coisa boa, util, alguma -coisa que me cobrisse de gloria e fizesse a minha fortuna. - -—Tem todo o direito de procurar isso... - -—Que pena que a batata seja conhecida! talvez eu a tivesse descoberto!... - -—Sim, mas a batata é perfeitamente conhecida, não quebre pois a cabeça a -procurar invental-a. - -—Repito, quero occupar-me n’alguma coisa. - -—Pois bem! se o quer absolutamente, eu lhe procurarei um emprego. - -—A senhora? E então onde? - -—N’uma secretaria; vae-se para a repartição não muito cedo, sae-se de lá -não muito tarde; á noite está-se livre, isto não dá muito trabalho. - -—Ah! isso havia de agradar-me muito! Mas como espera a senhora -arranjar-me esse emprego? - -—Eu verei, falarei aos meus conhecimentos; parece-me que o caso não é -urgente. Espere, Florentina tem um primo, que é chefe d’uma repartição; -farei com que ella fale ao primo. Aquella pobre Florentina! como a gente -é ingrata! quando se ama muito alguem, quando não se pensa senão n’essa -pessoa, esquecem-se todas as outras! Mas o senhor faz-me andar a cabeça á -roda, tira-me o juizo!... - -—Que mais temos então? - -—Temos que hontem á noite, quando recebi a sua carta, acabava Florentina -de entrar; vinha offerecer-me o seu camarote na Opera; mas depois de -haver lido o seu negregado bilhete em que o senhor me annunciava que não -iria lá, tive um ataque de nervos terrivel; aquella pobre Florentina -dispensou-me todos os cuidados, mas não sabia o que me havia de dar, -mandou a minha creada buscar o remedio que costumo tomar quando tenho -d’aquelles ataques; mas a creada não voltava, eu tornei a mim, e sem -esperar pelo remedio, disse a Florentina: «Anda commigo, quero ir a -casa d’elle; mandei vir uma carruagem, e Florentina teve a complacencia -de me acompanhar até á sua porta, queria mesmo ficar á minha espera, -sacrificando por mim a Opera e o prazer que esperava ter lá; mas eu não -quiz consentir, mandei-a embora. Então! ha de convir que é uma verdadeira -amiga, e que tenho muita razão em ter por ella uma affeição sincera... - -—Sim, sim, não digo o contrario, ella é-lhe muito affeiçoada, mas tambem -é horrivelmente feia!... - -—Ah! ahi está o que são os homens!... Que importa que seja feia, se -possue todas as qualidades do coração! Mas os senhores não apreciam senão -a belleza! - -—E as senhoras não descobrem todas as qualidades do coração n’uma mulher, -senão quando ella não é bonita. Oh! em o sendo, acham-lhe logo todos os -defeitos, mas não falam nunca das suas boas qualidades. - -—Oh! cale-se! porque é que diz isso? - -—É que as suas amigas intimas são todas feias como os peccados mortaes. - -—Queria talvez que eu, para lhe ser agradavel, chamasse a minha casa -algumas bellezas raras, afim de que o senhor lhes fizesse a côrte mesmo á -minha vista! - -—Não, eu não lhe peço bellezas raras; a senhora é que prefere as -fealdades raras! Oh! mas faça o que entender! a final de contas, isso -é-me completamente indifferente. - -Ambrosina reprime a grande custo um movimento de impaciencia, depois toca -a campainha a chamar a creada grave, que apparece immediatamente. - -—Adriana, o café está prompto? - -—Está sim, minha senhora. - -—Então sirva-o. - -—E que venha bem quente, quasi a ferver, diz Casimiro. Ouve, menina? se o -posso tomar, não o tomo. - -Adriana sae a rir; Ambrosina exclama: - -—Não gosto que se graceje com os creados; isso torna-os familiares. - -—Porventura gracejei com a sua creada? - -—Sem duvida; faz trocadilhos a respeito do café... - -—Minha querida amiga, com a senhora nunca a gente sabe como ha de falar a -uma mulher; em tudo vê maldade, espero que não pense que arrasto a aza á -sua creada... - -—Não digo isso; mas o senhor não póde dizer que ella seja muito feia... - -—Oh! tambem não me fará crer que é bonita! Um nariz acachapado, cabello -ruivo, é um bom _derriço_ para algum policia. - -—É uma excellente rapariga, é-me muito affeiçoada; quando estou doente -anda sempre n’uma roda viva a tractar de mim... - -Adriana traz o café; emquanto ella dispõe as chicaras, diz a ama: - -—Adriana, eu estive hontem muito doente, não é verdade? - -—Oh! sim, minha senhora! eu estava bem afflicta. A sr.ª Florentina -disse-me que lhe fosse buscar o remedio á botica, corri n’um pulo; -mas havia lá tanta gente, tive que esperar muito tempo; por mais que -eu pedisse que me despachassem dizendo: «É para minha ama, a senhora -está muito doente» aquelles senhores da botica estão tão habituados a -trabalhar para doentes, que não se apressam nunca... - -—Minha pobre Adriana; olha, pega n’aquella touca da manhã que alli está -em cima da poltrona, dout’a... - -—Ah! como a senhora é boa!... - -—Gosto de recompensar quem me serve com zelo. Anda, podes sahir! - -A creada pega na touquinha que a ama lhe dá de presente, e retira-se aos -saltinhos. - -Casimiro toma o café, bebe um calice do divino licor dos benedictinos de -Fécamp, um outro de _rhum_, e levanta-se dizendo: - -—Creio que isto é que se pode chamar ter almoçado. - -—Janta commigo? - -—Oh! minha querida amiga, são quasi tres horas; quando se almoçou assim, -não se pensa em jantar, não terei vontade de comer. - -—Mas sabe que tem que me levar esta noite á Opera-Comica? - -—Sim, sim, está ajustado... - -—Não vá fazer como hontem? - -—Não tenha receio; vou tomar um pouco de ar e jogar talvez uma partida de -bilhar no café da Porta-São-Martinho... - -—Vá, meu extravagante, dê-me um beijo. - -—Até logo. - - - - -V - -O lindo Rouflard - - -Saíndo de casa da sr.ª Montémolly, Casimiro vae passear algum tempo no -_boulevard_; sente o desejo de tomar ar, o que é sempre optimo para a -digestão, depois d’um jantar abundante. Casimiro accende um charuto, essa -necessidade facticia dos ociosos. - -De repente, mexendo n’uma das algibeiras do lado, sente debaixo dos -dedos alguma coisa que tem a fórma d’um cartucho de dinheiro. Era -effectivamente um d’estes lindos estojos de marroquim, forrados de -cobre, e feitos de proposito para guardar ouro. O nosso rapaz tira o -cartucho da algibeira, desvia-se para um lado e conta o dinheiro que ha -no estojo; acha vinte e cinco luizes. Torna a fechar o estojo, e mette-o -outra vez na algibeira, dizendo de si para si: - -—Quinhentos francos! ella introduziu-me isto no bolso do paletot; terá -dito comsigo: «Elle não deve já ter muito dinheiro.» e não se enganou, -restavam-me apenas vinte francos; mas receber sempre dinheiro d’esta -mulher. Ah! é humilhante, é vergonhoso! ainda se ella me mettesse na -algibeira quatro ou cinco mil francos de uma vez, ao menos teria eu -para muito tempo sem andar á divina; porém ella terá todo o cuidado em -me não dar nunca similhante quantis, quer ter-me sempre debaixo da sua -dependencia. E não quer que eu trabalhe; não, teria um desgosto se eu -podesse passar sem ella. E diz que me ama, sim, por si, mas não por -mim. Infelizmente, nas mulheres, esta maneira de amar é a mais vulgar. -Ah! as mulheres de hoje não são como as de Sparta, que diziam ao marido -que partia para a guerra: «Volta vencedor ou faze-te matar.» Dir-me-hão -talvez que é tambem uma singular maneira de amar qualquer pessoa o -dar-lhe de conselho que se faça matar! _Ne quid nimis!_ o excesso em tudo -é um defeito. Vamos jogar o bilhar, é a estas horas que Miflaud costuma -estar no café do theatro. Ah! diabo! agora me lembro, é hoje o meu dia de -lição á menina Proh; irei? Mas eu não estou em estado de dar uma lição -de desenho. Ambrosina fez-me beber tantas coisas! Devo mesmo exhalar um -forte cheiro a vinho e a licor; não posso apresentar-me n’este estado -deante d’uma familia respeitavel, não, seria indecoroso. Ó delicias de -Capua! aqui tendes os vossos resultados! Ambrosina faz bem tudo o que é -necessario para me tirar o gosto pelo trabalho. Ora adeus! tanto peior! -toca a jogar o bilhar. - -Quando a gente adquiriu uma vez o habito de não pensar senão, em -divertir-se, é muito difficil vencel-o e ter força bastante para rejeitar -o prazer que se apresenta e preferir-lhe o estudo ou trabalho. É o -que acontece n’este momento a Casimiro; este rapaz não é falto de bons -sentimentos, do que deu provas encarregando-se de dar lições de desenho -á filha da sua vizinha: deseja ganhar dinheiro, já pelo seu talento, já -exercendo um emprego em qualquer secretaría; mas lá está a amante para -lhe tolher o passo; como é rica, quer monopolizar o amante, quer o que -pobre moço não viva senão para ella e por ella! Quando uma mulher, que é -ainda muito encantadora, quer subjugar um homem, emprega n’isso todos os -seus meios, e para agradar tem ella muitos. - -Casimiro não vae dar a lição á menina Angelina; vae para o seu café -favorito, onde encontra alguns rapazes, amigos de vádiar como elle; ha -mesmo alguns que fazem ainda mais: vêm para o café assim que elle se -abre, sentam-se a uma meza e põem-se a jogar o dóminó até á hora do -jantar. Acabada esta refeição, voltam muito depressa a continuar o seu -joguinho, e não se vão embora senão quando o estabelecimento se fecha. -Vão dizer-me que estes rapazes são jogadores e não ociosos ou vádios; é -possivel; eu, por mim, chamo vádios áquelles que passam a vida no café. - -Depois de muitas horas consagradas ás carambolas, Casimiro lembra-se que -a amante quer ir tomar sorvetes ao café Napolitano, antes de ir para o -theatro; é pois mister que a vá buscar antes da hora em que deve começar -a peça da Opera-Comica. Dirige-se portanto a casa da sr.ª Montémolly, -que se acha lindamente vestida, apresentando-se com essa desinvoltura -que nem todas as mulheres sabem ter; porque umas conservam-se sempre -muito direitas, muito impertigadas, outras mostram demasiado desleixo e -indolencia. - -—Já jantou? pergunta a formosa dama. - -—Não, nem mesmo pensei em tal; não tive appetite. - -—Pois bem! nem eu tão pouco. Mas sabe o que devemos fazer? É irmos cear -ao café Inglez depois do espectaculo. Agrada-lhe isto? - -—Oh! perfeitamente; a senhora tem sempre excellentes idéas. - -A menina Adriana foi arranjar uma pequena _victoria_, e voltou com ella -muito depressa para ficar mais cedo livre de sua ama. Ambrosina e o -amante fazem-se conduzir ao café tão affamado pelos seus sorvetes, depois -dirigem-se á Opera-Comica, e vão para um camarote que a sr.ª Montémolly -mandára alugar antecipadamente. - -Cantava-se uma opera nova de Auber, d’esse celebre compositor, ao qual -devemos tantas obras primas, tantas operas que ninguem se enfastia de -ouvir; vae envelhecendo, dizem algumas pessoas, mas enganam-se; quando um -homem compõe tão encantadoras melodias, é porque se conserva sempre moço, -para Auber parou o tempo. - -Casimiro escutava a musica, emquanto que Ambrosina se entretinha -sobretudo em observar se o seu companheiro dirigia o binoculo para -algumas senhoras. Mas tudo se passa em bem, porque o rapaz não fixou -muito tempo as suas vistas no mesmo lado. Acabada a opera, o par amoroso -dirige-se ao café Inglez, que fica apenas a dois passos da Opera-Comica. -Alli, pedem um gabinete reservado e mandam vir uma bella ceia, á qual -ambos fazem honra. Não lhes direi se esta magnifica ceia é entremeada -de ternas caricias e de juramentos de amor, deixo isso á sua discrição; -o que é certo, é que são quasi duas horas da madrugada quando a sr.ª -Montémolly diz: - -—Creio que é tempo de irmos para casa. Diga ao creado que nos vá buscar -uma carruagem. - -Nunca faltam carruagens n’este rico e elegante bairro, onde se faz -da noite dia, de modo que ás duas horas da madrugada está ás vezes -mais animado, mais cheio de vida que ao meio dia. Casimiro leva -Ambrosina a casa, depois faz-se conduzir ao seu domicilio, na rua de -Paradis-Poissonniére, dizendo comsigo: - -Aqui está um dia bem empregado; foi um dia cheio. - -Mas, ao dizer isto, o rapaz tambem estava bem cheio, porque se não tinha -poupado mais á ceia do que ao almoço; o Champagne tinha representado um -grande papel em todo este dia; elle não estava bebedo, porque um homem -bem educado nunca se embebeda, mas estava n’esse estado de ebriedade que -é o meio termo entre a embriaguez e o perfeito juizo. - -—Parou emfim a carruagem. Casimiro, que se acha deante da sua porta, -paga ao cocheiro, e vae puxar o botão de metal que deve fazer tocar a -campaínha e acordar o porteiro, dizendo comsigo: - -—Comtanto que o meu estimavel porteiro não tenha o somno muito pezado, e -que saiba que não recolhi ainda. - -Na occasião de tocar a campainha, Casimiro vê um vulto estendido deante -da porta; abaixa-se para ver melhor, estende cautelosamente o pé, o vulto -mexe-se; é um homem que está alli deitado. - -Casimiro faz um movimento para a rectaguarda, na idéa de que é talvez um -ladrão que finge estar a dormir, e elle não tem sequer uma bengala para -se defender; mas o vulto não se mexe mais, e o rapaz decide-se a puxar -outra vez o botão de metal. - -O porteiro não abre ainda, e Casimiro, impacientado, empurra com o pé -o individuo que alli está estendido tomando-lhe a passagem; ouve-se um -grunhido surdo e levanta-se um pouco uma cabeça, que tinha a cara voltada -contra a porta, resmungando: - -—Então! olá! o que é que temos? - -—O que está aqui fazendo deitado na rua? - -—Bem viu que estava dormindo. Então agora já se não pode dormir socegado? - -—Não se dorme deante da porta d’uma casa. - -—Mas eu sou cá do predio, é o meu domicilio politico... nas aguas -furtadas... - -—Se mora aqui, porque não entra para sua casa em vez de estar ahi -deitado? Estaria muito melhor na sua cama. - -—Na minha cama!... é fresca a tal minha cama! um enxergão e milhares de -percevejos... nada mais... - -—Mas, emfim, na rua não se dorme; se vem por ahi alguma patrulha, algum -policia, levam-n’o para a estação. - -—Isso e o que eu quero é tudo um... estou á espera d’elles. Que afinal -quem tem a culpa é o maroto, o patife do Chausson, que me não abre a -porta. - -—Ah! o porteiro não lhe quer abrir a porta? - -—Sim, Chausson, o meu creado. - -—Quer dizer, o porteiro? - -—Porteiro, é verdade... mas foi meu creado e por muito tempo. Isto fal-o -admirar, mas é assim mesmo. - -Quando eu era amo d’elle dava-lhe ás vezes umas correcções, elle bebia-me -os licores, licores da sr.ª Amphoux... da verdadeira, que me mandava a -minha Dulcinéa... e hoje, para se vingar, o meu creado, que veiu a ser -meu porteiro, deixa-me ficar de noite no meio da rua. - -—Oh! mas ha de abrir a porta por força. - -E Casimiro vae puxar com todas as suas forças o botão de metal. - -Ao barulho da campainha succede a voz do porteiro, gritando: - -—Rouflard! se não acabas de tocar a campainha, faço-te despedir ámanhã. - -—Não é Rouflard que toca, sou eu... abra immediatamente, porteiro; mando -eu! - -—Como! é o sr. Casimiro! Oh! perdão, eu pensava que já estava recolhido -ha muito tempo. Ah! se eu soubesse que era o senhor, bem sabe que não -costumo fazel-o esperar... - -Abre-se a porta effectivamente. Casimiro entra, dizendo ao homem que está -deitado no chão: - -—Bom! aqui tem a porta aberta... Então agora fica na rua? - -O tal individuo, a quem o porteiro chamou Rouflard, parece hesitar em -abandonar a sua posição horisontal, decide-se comtudo a fazel-o, ergue-se -ou antes enfia pela porta dentro aos trambulhões, e vae agarrar-se á -parede. Chausson, o porteiro, levanta-se, veste uma jaqueta, que lhe -serve de chambre, e vem com um castiçal na mão tornar a fechar a porta e -offerecer luz ao seu joven inquilino para subir a escada. - -Casimiro está entretido a examinar o homem que se acha encostado -á parede, contra a qual muito lhe custa a segurar-se, porque está -completamente ebrio. - -—Se o senhor quer levar esta luz para subir a sua casa... sinto immenso -tel-o feito esperar; eu bem ouvia tocar, mas pensava que era ainda o -Rouflard, e por isso é que não abria... - -—Vejam este brégeiro! queria deixar o amo na rua... n’isso reconheço bem -o meu antigo lacaio... - -—Cale-se, Rouflard; quando um homem se põe n’esse estado, recolhe-se -antes da meia noite, ao menos. - -—Mas se eu me quero recolher mais tarde, porque assim me dá na vontade, -tens obrigação de me abrir a porta, percebeste tu, meu creado? - -—Graças a Deus, já não sou seu creado! esse tempo já lá vae. - -—Quando me bebias os licores! - -—Tu não me pagavas as minhas soldadas, portanto era forçoso que eu -apanhasse alguma coisa para me sustentar... mas tu comias tudo! - -—Prohibo-te que me trates por tu, percebes meu creado? - -—E eu prohibo-te que me chames teu creado... Vae-te deitar, borrachão. - -—Vae para o teu cubiculo, perro, ámanhã falaremos... não te digo mais -nada... teu amo te ensinará! - -Depois de haver atirado esta ameaça, que faz encolher os hombros ao -porteiro, Rouflard dirige-se, cambaleando, para a escada, apoia-se ao -corrimão e lá consegue subir a muito custo. Casimiro tinha ficado em -baixo para assistir ao dialogo entre o bebedo e o porteiro; sentia tambem -uma certa curiosidade, e desejava saber como é que aquelle homem, tão -mal arranjado, que parecia tão miseravel, pudera ter por creado o sr. -Chausson; pergunta pois ao porteiro, assim que Rouflard desapparece na -escada: - -—Este bebedo, que affirma que o senhor esteve ao seu serviço, fala -verdade? - -—Oh! sim, senhor, não o nego; mas o que o senhor difficilmente -acreditará, vendo-o agora tão miseravel, é que, ha vinte e cinco annos, -este mesmo individuo era então um homem da moda, o menino querido de -todas as mulheres, que não lhe chamavam senão o lindo Rouflard! o -encantador Rouflard! e, a dizer a verdade, era então um bonito rapaz, -bem feito, airoso de corpo, uma cara amavel, fino... Oh! o maganão sabia -dar aos olhos todas as expressões possiveis para seduzir as mulheres, e, -palavra! entendia da coisa... era o seu officio? - -—O seu officio? O que quer dizer com isso? - -—Pois é bem facil de perceber: quero eu dizer na minha, que o lindo -Rouflard não se occupava n’outra coisa senão em fazer a côrte ás -senhoras, e atirava-se de preferencia ás senhoras ricas. Então recebia -d’uma, e depois de outra! mimos d’esta, presentes d’aquella. Quando os -fornecedores, os crédores, lhe vinham pedir dinheiro, nunca era elle quem -lhes pagava. Eu estava ao facto de tudo, era o seu creado grave, o seu -homem de confiança; elle dava-me as intrucções, dizia-me: «Chausson, has -de mandar o meu alfaiate a casa de Leonor e o meu sapateiro a casa da -Ernestina, ellas pagarão a esses patifes; não quero descer a pagar aos -meus crédores; é de muito máu tom! Ah! é verdade, has de ir a casa da -sr.ª fulana, ganhei-lhe hontem cem luizes ao _écarté_; irás pedir-lh’os, -que ella dá-t’os immediatamente, já se sabe; demais, as dividas de jogo -são sagradas, pagam-se em vinte e quatro horas. Passarás tambem por -casa da baroneza ou da condessinha; apostámos nas corridas, ganhei mil -escudos a uma, mil francos á outra, receberei tudo isso, tenho precisão -de dinheiro!» Eu ia fazer estes recados, e durante muito tempo aquellas -senhoras pagaram, pagaram muito bem sem fazerem a menor observação. Então -apanhava eu alguma coisa por conta das minhas soldadas, e bebia licores -da sr.ª Amphoux pelo resto. Oh! os licores das ilhas! aquillo era o meu -fraco! Mas a pouco e pouco as coisas principiaram a não correr tão bem: -Rouflard, que bebia como uma esponja, viu dentro de pouco tempo o nariz -pôr se-lhe côr de beterraba; isto fez-lhe muito mal no conceito das -amantes; em geral as mulheres não gostam dos narizes vermelhos. Quando -meu patrão me mandava buscar a quantia d’uma aposta ou o dinheiro perdido -ao jogo, aquellas senhoras diziam-me algumas vezes: «Rouflard engana-se, -não fui eu que perdi, foi elle;» ou então: «Sinto muito, mas a minha -thesouraria está fechada.» Algumas tinham a confiança de me dizer: Apre! -estou farta de aturar esse bebedo do Rouflard, não estou para o sustentar -por mais tempo.» Quando eu voltava com estas respostas a meu amo, elle -ficava furioso, queria desancar-me: depois, para arranjar dinheiro, -via-se obrigado a vender uns apoz outros os lindos presentes, ou as joias -que havia recebido das suas apaixonadas. Quando não lhe restou mais nada -que vender, e quando eu vi que já lhe não mandavam licores das ilhas, -disse commigo: «É tempo de largar o commodo!...» Deviam-se-me seis mezes -das minhas soldadas, mas era mister não pensar em tal. Deixei pois o -lindo Rouflard, que já não tinha nada de bonito nem se vestia como um -elegante, e que para salvar-se das difficuldade, procurava arranjar -outra amante nos casos de o sustentar, e consegui achar um bom emprego. -Pude ajuntar alguma coisa, casei-me e obtive um logar de porteiro n’esta -casa, onde estou ha oito annos, e onde morreu minha mulher, o que me -não impede de ser muito feliz. Mas faça o senhor idéa de qual não foi -a minha surpreza quando, ha perto de nove mezes, vejo chegar aqui um -homem vestido como um mendigo, sujo, desfigurado, que me perguntou se eu -tinha no predio um cantinho, um sotão, ou mesmo uma agua-furtada para -lhe alugar. Eu não o podia crer; todavia, na expressão do rosto fica -sempre alguma coisa do que a gente era, e exclamei: «Deus me perdõe! -mas é o sr. Rouflard!...» «Foste tu que o disseste! me respondeu elle; -sim, sou o outr’ora bonito Rouflard! que o tempo e as desgraças têem um -pouco deteriorado. Mas deixa-me encarar-te bem... Ah! agora!... és o -Chausson... és o meu creado, pois bem! aluga-me um quarto, e sê hoje o -meu porteiro; tenho tomado muito juizo, deito-me todas os dias ás nove -horas, e não bebo senão agua, quando não tenho com que comprar vinho.» A -vista da miseria de um homem, que eu tinha conhecido tão elegante, tão -appetecido e procurado, fez-me pena, e levou-me a dizer-lhe: «Pois sim, -dou-lhe um quarto na agua-furtada; mas o que faz o senhor agora, qual é a -sua profissão?» Elle coçou a cabeça por algum tempo, depois respondeu-me: -«Faço tudo quanto se quer! recados, cosinha; engarrafo vinhos, tosquio -cães, educo papagaios; mas o que é sobretudo a minha occupação favorita, -é servir de modelo aos pintores.» «Pois bem! tratarei de lhe arranjar -que fazer e vou dar-lhe casa lá em cima; mas estará aqui n’um predio -socegado, será pois mister portar-se decentemente.» Elle assim o -prometteu; mas Deus sabe como tem cumprido a sua palavra! Arranjei que -elle fizesse recados a uma inquilina; mas assim que apanha alguns soldos, -o borrachão vae bebel-os de vinho e recolhe-se fóra de horas. Avisei-o -de que isto não podia durar assim, elle promette-me emendar-se, quando -está em jejum, mas veja como se emenda! Esta noite estava fazendo grande -barulho á porta; mas se não fosse o senhor, dou-lhe a minha palavra que -teria dormido na rua! Decididamente este Rouflard é um extravagante, -um mal procedido! Mas os homens que na sua mocidade vivem á custa das -mulheres, devem necessariamente acabar assim, porque o seu ganha-pão é a -sua cara bonita, e logo que essa boniteza se vae, boas noites! acabou-se -tudo! Casimiro não responde nada, e sobe a escada com ar muito pensativo: -a historia do lindo Rouflard fez-lhe passar a embriaguez. - - - - -VI - -A familia Proh - - -Achava-se a familia Proh reunida na sua sala. Os leitores já conhecem -a sr.ª Celeste Proh, de quem lhe fizemos o retrato; seu marido, o sr. -Castor Proh, é um antigo professor de historia e de linguas mortas. É -um homem alto, magro, amarello, que era feio em moço, e que não se fez -bonito em velho; tem o nariz de tal forma chato, de tal forma acachapado, -que lhe seria impossivel segurar n’elle uns oculos. Esse senhor tem -sempre os ares d’um preceptor prestes a ralhar com o discipulo, conserva -constantemente uns modos arrogantes e desagradaveis; sua mulher sustenta -nunca o ter visto rir, mas ha pessoas que se divertem por dentro sem que -ninguem dê por isso: com o sr. Proh não se dá por similhante coisa. - -Uma herança, com que elle não contava, permittiu ao professor descançar -e viver dos seus rendimentos; já não quer occupar-se, diz elle, senão da -educação dos filhos; mas a filha prefere as artes agradaveis ao estudo -da historia, e o Affonsinho deita a lingua de fóra ao pae, quando este -lhe fala de linguas mortas; é um verdadeiro diabrete, guloso, curioso, -preguiçoso, traquinas, respondão; o pae affirma que o pequeno promette... - -A menina Angelina Proh approxima-se dos dezeseis annos; n’esta edade, em -não sendo torta nem corcovada, em não tendo o nariz escarrapachado nem -os olhos remelosos, uma rapariga é sempre bonita; não é ás vezes senão -a _belleza do diabo_, mas isso faz ainda conquistas, ha homens que não -apreciam senão essa belleza. A menina Proh não possuia outra; juntava a -isso uma dóse de toleima, que podia ainda passar por ingenuidade, mas que -mais tarde não devia deixar a menor duvida sobre a sua qualidade. - -N’este momento, a sr.ª Proh está principiando a bordar uma golla, a -menina Angelina tenta desenhar olhos e orelhas; o Fonfonsinho recorta uma -estampa, e o ex-professor passeia pelo meio da casa, cofiando com a mão a -barba e parecendo meditar. De repente pára: - -—Affonso, vou-te fazer uma pergunta bem simples. - -—De que é que vae fazer... - -—Não se diz: de que é que! em primeiro logar essa construcção de phrase é -viciosa... - -—Viciosa! então que mal fez ella? - -—Meu filho, eu interrogo-o, mas o menino não tem direito para me -interrogar... Escute bem, e responda-me _illico_! Como se chamava o -primeiro homem? - -—_Illico!_... - -—Hein? vamos, menino, dê-me attenção... Pergunto-lhe como se chamava o -primeiro homem? - -—Pois bem! _Illico!_ Disse-me que respondesse: _Illico!_... digo-lh’o, e -não está contente!... - -—Mas, velhaquete, eu entendo por _illico_, immediatamente... logo, logo... - -—O pequeno tem razão; para que emprega com elle termos barbaros que a -creança não comprehende? estraga-lhe a memoria, e mais nada! - -—Minha senhora, metta-se lá nos seus trapos, nos seus vestidos, e -deixe-me dirigir a educação de meu filho, elle tem talento; promette, mas -precisa ser bem ensinado... - -—Graças a Deus, tem muito tempo deante de si. - -—Nunca se tem bastante. Aqui estou eu, que sei muito, lisonjeio-me -d’isso, e precisaria ainda cem annos de existencia para ser completo! - -—Como um omnibus!... - -—Fonfonso! _tu castigaberis!_... - -—Papá, bem sabe que nos omnibus o conductor grita: Completo! Olhe! -desenhe-me um boneco, a mana não me quer fazer nenhum... - -—A mana está trabalhando nos seus olhos e nas suas orelhas, e tem razão. -Isto porém faz-me lembrar que a sua lição de desenho era hontem... O -Casimiro veiu? - -—Sim, papá... - -—Não, é falso; a mana não fala verdade, o vizinho não veiu hontem -dar-n’os lição... - -—Seu mano tem razão, menina? - -—Ora! não sei... já me não lembro... vão fazer-me enganar na minha orelha! - -—Eu não dou vinte e cinco francos por mez a esse rapaz para que elle se -descuide das suas lições. Sr.ª Proh, a senhora é que devia tomar sentido -n’essas coisas... - -—Por quem é, socegue! o sr. Casimiro não é capaz de o prejudicar n’uma -lição! é um rapaz muito distincto, e que só ensina desenho aos nossos -filhos para nos obsequiar. - -—Desconfio das pessoas que fazem as coisas para obsequiarem: em geral -fazem-n’as mal; é como aquelles creados que estão sempre a dizer que não -nasceram para servir, não fazem nunca bem a sua obrigação. - -—Papá, faça-me um boneco. - -—Vamos lá; tens papel e lapis? - -—Aqui está tudo. Ah! mas eu quero que faça o boneco com o pé. - -—Com o pé? Fonfonso, tu não sabes o que dizes! então a gente desenha com -os pés quando tem as mãos á sua disposição? - -—Mas o papá deve servir-se tanto dos pés como das mãos, visto que é -quadrumano. - -—Quadrumano! eu sou quadrumano! quem é que lhe disse tal insolencia? o -menino sabe o que é um quadrumano? - -—Sei, é um chimpanzé, e bem sabe que o outro dia a mamã disse-lhe que era -um chimpanzé. Perguntei ao sr. Casimiro o que era um chimpanzé, e elle -respondeu-me que era um homem dos bosques, que era um quadrumano. - -—A senhora bem está ouvindo; seu filho compara-me com um macaco, porque -a senhora o outro dia não receiou qualificar-me com esse epitheto. - -—Tambem o senhor me chamou girafa. Era porventura mais delicado? - -—Papá chimpanzé, faça-me um boneco. - -—Se me tornas a chamar chimpanzé, levas uma sova de açoutes que te racho! -Vá estudar a sua lição de grammatica, para m’a dizer logo. - -—Ora! a grammatica aborrece-me; gosto mais de recortar estampas. - -—Faça o que lhe ordeno, seu patife! e não resmungue. Angelina, quando -acabares o teu desenho de orelhas, espero que te lembres das minhas -piugas, que estão em muito máu estado, já me queixei d’isso a tua mãe, -que creio que terá attendido a minha reclamação. - -—As suas piugas! Ora! ainda lhes não toquei. - -—Como! pois a senhora não manda concertar a roupa? na verdade, não sei -em que pensa, ou antes sei-o demasiado. É nos seus adornos, nos seus -enfeites, nos seus vestidos de cauda ou sem cauda, e a roupa fica n’um -estado miseravel! os meus colletes de flanella não têem botões, as -camisas estão todas rasgadas, as ceroulas estão cheias de buracos; mas -a senhora, comtanto que tenha um vestido á moda, não quer saber de mais -nada. - -—Queria talvez que eu tivesse sempre as suas ceroulas no pensamento! Ah! -credo! seria bem triste!... - -—O que é triste, é achar a gente as camisas rôtas na occasião de as -vestir. - -—Socegue, a sua roupa ha de ser concertada; mas como n’esta casa ha -trabalho de mais e como eu e minha filha não podemos chegar para tanto -dei tudo isso a uma costureira. - -—A uma costureira! mas está a senhora bem informada a respeito d’essa -costureira? ha algumas que trocam os objectos que se lhes confiam. - -—Oh! não imagine que ella lhe vae trocar as piugas, o senhor está sempre -com medo de que o roubem, demais, é uma rapariga que mora no predio, no -quinto andar, é a menina Lisa. - -—A menina Lisa! não conheço. E trabalha bem, essa menina Lisa. - -—Cose como uma fada; já lhe dei que fazer, e fiquei muito satisfeita com -ella, tanto mais que não leva caro, dá-lhe a gente o que quer. - -—Oh! então é preciso dar-lhe que fazer muitas vezes. E essa rapariga mora -sózinha lá em cima? - -—Não, está com a avó, uma boa velhinha, quasi paralytica, que já não se -acha em estado de fazer nada; pois bem! é a menina Lisa que tem cuidado -d’ella, que trabalha dia e noite para que não falte nada á pobre velha. -Oh! esta rapariga porta-se muito bem... toda a gente no predio lhe faz -elogios. - -—Hum! desconfio d’essas pessoas a quem todo o mundo faz elogios, -isso esconde ás vezes muitas coisas, essa sujeitinha tem sem duvida -namorados... - -—Oh! que idéa! não fale assim deante de sua filha. - -—Minha filha aprende desenho, e quando uma menina quer desenhar de -modelos de gesso e copiar estatuas antigas, creio que pode comprehender -o que é um namorado. Demais, a tal menina Lisa é muito ajuizada, não tem -nenhum! estimo bastante. - -—Sim! sim! Lisa tem um namorado! exclama o joven Fonfonso; eu bem sei! eu -conheço-o... - -—O que está o menino a dizer! aonde foi aprender essas coisas?... - -—Ora, ouvi dizer. Não é verdade mana, que a costureirinha do quinto andar -tem um namorado?... - -—Deixa-me, vaes fazer com que me engane na minha orelha. - -—Menina, diz por sua vez a mamã, sou eu que a interrogo; deixe por um -momento as suas orelhas e responda-me. A menina sabe que Lisa tem um -namorado? - -—Se derem credito ás tolices que diz o mano, estão bem aviados. - -—Tu é que és uma tola; bem ouviste o borrachão que mora nas -aguas-furtadas dizer o outro dia na escada: Viva Lisa! viva a minha -namorada! E por signal tu disseste: Ora não ha! olhem que bello namorado -que a Lisa tem! - -—Isso não é verdade! eu não disse tal! - -—Disseste, sim! - -—Não, não, não! - -—Sim, sim, sim!... - -—Basta, basta! _satis! satis!_ grita por sua vez Castor Proh; estes -irmãos fazem-me lembrar Cain e Abel, que eu não conheci, mas cujas -questões tiveram consequencias bem terriveis! - -—Desde o momento em que o bebedo das aguas-furtadas está mettido em tudo -isto, diz Celeste, já o senhor vê que caso se pode fazer do que acaba de -dizer seu filho. - -—Sim, senhora, esse bebedo, esse tal Rouflard, porque é assim que elle se -chama, creio eu, esse maroto, preguiçoso, borrachão que devia ser expulso -do predio. Chausson, o porteiro, tinha-m’o recommendado, pedindo-me que -lhe désse alguma coisa que fazer, e dizendo-me que era um homem bem -educado, que tivera desastres na sua vida. Eu accedi a occupal-o, ainda -que desconfio sempre d’essas pessoas que tiveram desastres. Eu tinha -justamente precisão de _rhum_ da Jamaica, a senhora não gosta, prefere o -licor de herva doce, mas gosto eu. Era um dia em que a senhora jantava -fora com os pequenos. Dou dinheiro ao tal Rouflard, ordenando-lhe que -fosse aos _Americanos_, que é onde ha certeza de o achar bom. O homem -sae d’aqui perto das quatro horas da tarde. Era preciso quando muito uma -hora para fazer o recado, e ás seis horas ainda não tinha voltado. Vou-me -queixar ao porteiro, receioso de que tivesse acontecido algum desastre -ao seu protegido. Dão sete horas, dão oito, finalmente, ás dez horas, -vejo chegar o nosso homem, borracho, bebedo, mal podendo suster-se nas -pernas, e que me apresenta uma garrafa quasi despejada, dizendo com ar -chocarreiro: «Aqui tem a sua garrafa de _rhum_... entornou-se um pouco -pelo caminho... é que provavelmente não trazia a rolha bem apertada.» -«Como! lhe dige eu, atreve-se a affirmar que a garrafa se entornou! -porém ella devia estar perfeitamente lacrada! para que teve a confiança -de a abrir?... foi para beber o meu _rhum_... você é um maroto!... um -patife!...» Em vez de se desculpar, de me pedir perdão, o tal Rouflard -diz-me a modo de injuria: «Se não está contente, vou beber o resto!...» -Effectivamente, deixei-lhe o resto; mas dei os meus agradecimentos ao -porteiro, e, repito, um tal bebedo não devia continuar a viver no predio. - -—Ora adeus! o Rouflard não tem medo de vossemecê, papá Chimpanzé, não, -Chimpanzé não... papá Castor... - -—Então o menino conversa com esse homem? Fonfonso, prohibo-o que lhe -fale, não quero que aprenda máus costumes. - -—Não sou eu que lhe falo, elle é que me diz sempre tolices quando passa. - -—Não lhe responda, encerre-se no seu foro intimo. - -—Não entendo, papá. - -—Quero dizer que não dê attenção ao que lhe diz esse bebedo. - -—Ora! mas diverte-me, faz-me rir, hontem pela manhã disse-me: Porque é -que teu pae não põe o seu nome por cima da porta? é uma coisa que sempre -se faz para os artistas. - -—O que, Fonfonso! esse homem tem a petulancia de te tractar por tu! Que -insolencia! - -—Eu não lhe posso obstar... - -—Deves-lhe dizer: Olhe que eu nunca guardei perús com o senhor. - -—E elle responder-me-ha: Mas já os guardaste com o teu pae. - -—Ah! esse tal Rouflard queria que eu puzesse o meu nome por cima da porta! - -—Sim, senhor; até me disse: Fica descançado, pequeno, hei de eu lá pôl-o -e mais o de toda a familia, é preciso que todos saibam onde hão de -procurar a familia Proh... - -—Elle disse-te isso! mera brincadeira, talvez... - -—Ah! exclama Angelina, isto faz-me lembrar que vi hontem esse homem subir -a escada com um grande pedaço de giz na mão. - -—Teria elle porventura a petulancia de fazer caricaturas ridiculas por -cima da minha porta!... - -—Vá sempre vêr, sr. Proh, n’um bebedo tudo se deve esperar, nós ainda -hoje não saímos, poderia elle ter effectuado hontem as suas ameaças sem -que nós o soubessemos. - -O sr. Proh sae da sala e dirige-se ao patamar. D’ahi a poucos instantes -ouve-se um grito de indignação; toda a familia corre immediatamente para -a escada, com grande curiosidade de saber o que pode estar escripto por -cima da porta. - -—Venha, senhora, venha! exclama Castor, venham todos, e vejam o que o tal -Rouflard teve a pouca vergonha e a audacia de escrever por cima da nossa -porta. Oh! ha para toda a gente... - -Com effeito, por cima da porta tinham escripto a giz, e em grandes -lettras: - -A sr.ª _Pro-fanée_. - -A menina, _Pro-nobis_. - -O sr. _Pro-fesse_. - -O menino _Pro-pice_. - - - - -VII - -A menina Lisa - - -Depois do seu dia tão bem empregado, Casimiro não passou uma noite tão -agradavel: dormiu pouco; não se lhe tira da idéa a historia d’aquelle -pobre diabo que estava deitado na rua e que chama seu creado ao porteiro; -obriga-o a fazer reflexões que não são côr de rosa; o rapaz, sem todavia -se collocar no mesmo nivel que o tal Rouflard, diz comsigo que um homem -é infinitivamente despresivel quando vive á custa d’uma mulher. - -O resultado d’estas reflexões é uma resolução, firmissima d’esta vez, -de se entregar ao trabalho, e, como a pintura é a unica habilidade que -possue e que pode utilizar, promette a si mesmo tornar a pegar nos lapis -e nos pinceis e tractar de adquirir, trabalhando, o que ainda lhe falta -para se arrojar a fazer um retrato do natural; demais, jura tambem não -dizer nada a Ambrosina das suas novas intenções. - -O que é indispensavel a um pintor de retratos, é um modelo. Bem sabe -Casimiro que a sr.ª Proh estimaria bastante prestar-lhe esse serviço; mas -o rapaz, antes de fazer o retrato d’esta senhora, quereria exercitar-se -com outro modelo. Lembra-se do que lhe disse o porteiro a respeito de -Rouflard, e por isso, logo depois de haver tomado a chicara de café que o -Chausson lhe traz todas as manhãs, Casimiro sobe a escada para se dirigir -a casa de Rouflard. - -A escada era alta. Chegava ao quinto andar, onde não ha senão quartos -occupados em grande parte pelas creadas do predio, Casimiro pára -a fim de tomar folego, e olha depois em torno de si. Acaba alli a -escada; o porteiro porém disse-lhe que o seu antigo amo habitava n’uma -agua-furtada, no sexto andar, e elle não vê o minimo rasto de escada. - -N’isto ouve-se uma voz de mulher, muito suave, muito juvenil, cantando -como se embalasse uma creança. O quarto d’onde sae a voz tem a chave na -porta. Casimiro decide-se a entreabrir essa porta para perguntar por onde -se sobe ao sexto andar. - -Vê uma casa modestamente mobilada, poderia mesmo dizer-se mobilada -pobremente; no fundo está um leito bastante confortavel, com uns grandes -cortinados de sarja, e quasi ao lado uma caminha, sem cortinas, que -apenas se compõe d’um enxergão e d’um colchão muito pobre, de lã; depois -ha uma commoda de nogueira, uma meza, algumas cadeiras, um pequeno -espelho sobre a chaminé, tudo o que é indispensavel, o strictamente -necessario e mais nada; mas isto tudo está arranjado com um cuidado e um -aceio que dessimulam em parte a pobreza. - -No leito está uma velha deitada; mas ao pé da meza ha uma rapariga -sentada a coser. Casimiro fica pasmado á vista d’esta joven, cujo trajo é -bem simples, bem modesto, mas cujo semblante agrada logo pela expressão -meiga e engraçada dos seus lindos olhos, pelo encanto do seu sorriso, -emfim por essa sensação, difficil de analysar, que experimentamos á vista -d’uma pessoa que nos é desconhecida, mas que nós voltamos para vêr ainda -muito tempo quando o acaso nol-a faz encontrar. - -—Perdão, menina, diz Casimiro conservando-se junto da porta que acaba -de abrir. Sou indiscreto. Incommodo-a talvez. Mas, se bem que morando -n’este predio ha já muitos mezes, conheço pouco as localidás. Procuro um -individuo que mora no sexto andar, pelo que me disse o porteiro, mas esse -sexto andar não dou com elle... não sei por onde se sobe para lá... - -A rapariga sorri-se respondendo: - -—Effectivamente, quando se não conhece bem este patamar, é difficil dar -com a escada que vae para cima... Mas, olhe, alem ao fundo a parede faz -uma quina, é de traz d’essa quina que o senhor achará uma escada muito -estreita, que vae ter ao sexto andar, é tão estreita que, se o senhor -fosse gordo, não caberia por ella!... - -—Provavelmente o senhorio não quer que os inquilinos carreguem a casa -demais, responde Casimiro rindo. - -—Oh! não ha senão um inquilino... um homem que está muito mal lá em -cima!... - -—Como parece que está sempre embriagado, pode tomar a agua-furtada por um -palacio. - -—Acha que sim? Pobre Rouflard! mas elle não está sempre embriagado, -felizmente está mais alegre quando se acha em jejum do que quando tem -bebido... Ah! perdão, senhor, minha avó está-se voltando na cama... Creio -que quer alguma coisa... perdão... - -A rapariga faz-lhe uma mesura. Casimiro comprehende que deve retirar-se; -agradece outra vez á sua formosa visinha e torna a fechar a porta, -dizendo comsigo: - -—Como! pois eu tinha uma visinha tão encantadora, e nem suspeitava de tal -coisa! Em Paris mora a gente annos n’uma casa e não conhece as pessoas -que habitam na mesma escada, não as encontra nunca! É que esta rapariga -é deveras encantadora; feições finas e suaves ao mesmo tempo, bonitos -olhos, cabello preto como ebano, uma boquinha amavel; que delicioso -modelo que isto faria! Vive com a avó; ellas não parecem ser muito -ricas... é preciso que me informe. Vamos, procuremos a escada por onde se -sobe a casa de Rouflard. Ah! creio que achei... effectivamente é muito -estreita! é uma escada de moinho! uma saia de balão não cabia por aqui. - -Casimiro, conforme pode, sobe a escada, que não tem corrimão, mas -segura-se a gente á parede dos dois lados. Chega a uma especie de patamar -que tem tres portas; duas estão abertas de par em par, a do centro está -fechada, mas simplesmente com o trinco. É necessariamente alli que -deve morar o sujeito que na vespera se tinha deitado na rua. Casimiro -levanta o trinco, abre a porta, e fica muito espantado do quadro que se -lhe apresenta deante dos olhos; mas d’esta vez não é enlevo o que a sua -physionomia exprime. - -N’uma agua-furtada que tem doze pés quadrados, e que recebe a luz de -uma trapeira construida no tecto, está um homem estendido em cima d’um -montão de palha que sustenta uma especie de colchão feito de aparas; um -cobertor de algodão, negro de immundicie e esburacado em muitos sitios, -é tudo o que tem para se cobrir; ausencia total de lençoes; serve-lhe de -travesseiro uma acha redonda, que, para ser menos dura, está coberta de -velhos cartazes de espectaculos, que provavelmente foram arrancados das -esquinas. O homem que dorme alli não deve nunca despir-se completamente; -mas como se está no verão, tirou o paletot e o collete. Tem na cabeça -uma velha cassarola de lata sem cabo, a qual lhe serve de barrete de -dormir. - -Junto d’esta miseravel cama está uma cadeira côxa servindo de meza de -cabeceira, em cima da qual se vê uma terrina de porcelana rachada e -quebrada em muitos sitios. Aquella terrina, que talvez outr’ora teve -dentro saborosas sopas, está reduzida a um emprego bem humilhante! _Sic -transit gloria mundi!_ Ha fato espalhado pelo meio do chão. Sobre uma -tábua pregada no tabique estão alguns boiões de pomada, um pente, um -cangirão, uma garrafa, um cachimbo e um pedacinho de espelho. - -Quando o rapaz abre a porta, o sujeito que estava deitado dorme, tem a -cara voltada para a parede, e a chegada de Casimiro não parece tel-o -accordado; por isso este ultimo pode muito á vontade examinar o sitio em -que se acha, e é o que elle faz, porque para um pintor _de genero_ havia -alli assumpto d’um quadro original e curioso. - -Mas, depois de ter visto e revisto tudo, o que não podia levar muito -tempo, Casimiro decide-se a levantar a voz para despertar o dorminhoco: - -—Olá!... ó senhor!... sr. visinho! não se lhe poderia dar uma palavra? - -Rouflard volta meio corpo, resmungando: - -—O que é? que me querem? não estou cá! vão para o diabo! não pode um -homem dormir socegado n’este cochicholo!... - -—Perdão, sr. Rouflard, pelo ter accordado, mas são mais de dez horas, -pensava encontral-o já levantado. - -—Eu levanto-me tarde, porque gosto de estar deitado, e nada tenho de -melhor a fazer do que dormir. Ah! se o senhor me paga o almoço, isso é -differente... - -—Talvez que sim; e se lhe não offereço d’almoçar, posso dar-lhe com que -possa arranjar um almoço muito decente. - -[Illustration: —Mas o que faz o senhor aqui?] - -A estas palavras, Rouflard volta-se de todo, senta-se na cama, tira a -cassarola que lhe serve de barrete de dormir, esfrega os olhos, e exclama: - -—Oh! mas então o caso é differente; isso é que são palavras bem pensadas; -espere, eu creio que o estou reconhecendo, é o sr. Casimiro Dernold, mora -cá no predio, no terceiro andar... - -—Exactamente, ah! o senhor sabe o meu nome!... - -—Foi o meu criado que me deu estas informações. Chausson, o nosso -porteiro, que foi n’outro tempo meu servo, e que queria hontem á noite -deixar-me dormir na rua; porque, agora me lembro muito bem, se não fosse -o meu nobre visinho, era a soleira da porta da rua que me serviria de -cama! Aquelle tratante do Chausson!... - -—Se me dá licença, não foi hontem á noite, foi esta madrugada que tudo -isso aconteceu, porque era muito mais de duas horas quando eu vim para -casa... - -—Pois bem! ainda que fossem quatro! Por ventura as pessoas finas, as -pessoas da boa sociedade deitam-se como as gallinhas! Já não tenho com -que ir cear á _Maison d’Or_, é verdade, mas posso sempre passear no -_boulevard_ dos Italianos emquanto isso me der prazer! e Chausson é um -maroto! vinga-se dos sôcos que lhe dei n’outro tempo. Ahi está o que são -os homens! para conhecer os seus defeitos dêem-lhes a riqueza. Creio que -foi Larochefoucauld que disse isto, ou alguma coisa equivalente. - -—O senhor tem instrucção, sr. Rouflard, como é que não tem achado em que -se empregar convenientemente? - -—Empregar-me! empregar-me. Ah! o vizinho tem graça! é por não ter querido -nunca empregar-me que durmo hoje em cima d’uma pouca de palha! Mas -não façamos recriminações! o senhor ficou em me dar com que almoçar, -isso cahiria do céu, porque não tenho um soldo, e em compensação tenho -grande appetite; a tudo isto accresce que não tenho já credito em parte -nenhuma!... - -—Mas, se o senhor não quer empregar-se, vae talvez rejeitar a minha -proposta?... - -—Conforme! se é coisa que não dê muito trabalho... - -—Oh! não dá trabalho nenhum; tractava-se de vir a minha casa servir-me de -modelo, quatro ou cinco horas por dia. - -—Servir de modelo... para a cabeça? - -—Naturalmente, oh! eu não quero senão o seu busto, a cabeça e as mãos. - -—Bravo! isso convem-me, oh! convem-me muito! quando quer principiar? - -—Hoje mesmo, esta manhã, se o senhor poder? - -—Eu posso sempre... todavia... - -—Todavia precisa almoçar, comprehendo isso! Tome, aqui tem dez francos -adeantados sobre o seu trabalho; vá almoçar, depois venha a minha casa, -que eu vou preparar a palheta. - -Rouflard levanta-se muito expedito, recebe os dez francos com uma cara -radiante, e enfia logo o collete e o paletot, dizendo: - -—Ha muito tempo que não tenho um despertar tão bonito. Vamos entrar na -extravagancia de comprar uma pouca de pomada de baunilha, para fazer -honra ao nosso pintor... - -—Não faça despezas de toucador por minha causa, acho-o muito bem assim -como está. - -—Que bondade a sua. Ah! se me houvesse conhecido outr’ora, nos meus bons -tempos! então é que o meu retrato e a minha pessoa eram disputados; mas -outros tempos, outros cuidados! - -—Perdão, sr. Rouflard, uma outra pergunta, que vae talvez parecer-lhe -indiscreta. - -—Pergunte á vontade, não faça ceremonias. - -—O senhor disse ahi ha pouco que não tinha nem um soldo, e que não -queriam já dar-lhe nada fiado. Se não tivesse recebido a minha visita -esta manhã, como é que havia de almoçar?... - -—Como? ah! sim, comprehendo que isso lhe pareça difficil de resolver! é -que o senhor ignora que ha um anjo n’esta casa... - -—Um anjo? - -—Sim, senhor. - -—No predio? - -—Sim, n’esta mesma escada, não falo da que vem ter a esta agua-furtada, -mas cá por baixo, no quinto andar, n’um quarto muito modesto, mas que -parece um palacio em comparação d’este chiqueiro, mora uma rapariga que -pode ter dezoito annos, creio, e uma velha a quem ella chama sua avó. A -rapariga chama-se Lisa, a menina Lisa, como toda a gente a conhece; é -baixinha, é verdade, mas tão bem feita, tão graciosa... e uma cara!... -linda a mais não poder ser! Oh! nos meus bons tempos vi bastantes -mulheres bonitas! e mulheres que faziam furor, que viam a seus pés tudo -o que havia de melhor no _turf_. Pois bem, digo-o francamente, a menina -Lisa vale mais que todas ellas... - -—Vi ha pouco essa rapariga, foi a ella que me dirigi para dar com a sua -escada, pareceu-me, com effeito, muito interessante. - -—Interessante! oh! isso é pouco; ella é mais que interessante! e depois -um coração! uma bondade! quando estou completamente á divina, como eu -lhe dizia ainda agora, é ella que me soccorre. Um dia, havia eu parado -deante da sua porta, que estava aberta, tinha fome, e arrisquei-me a -dizer-lhe: «Minha vizinha, não terá por ahi um boccado de pão que me dê? -não tenho migalha em casa.» «Tem fome!...» exclamou ella, e correu logo -ao armario a buscar-me pão e um pedacito de queijo, que me offereceu, -dizendo-me: «Tome, não lhe posso dar mais nada, não tenho vinho...» «Oh! -isto é bastante, lhe disse eu, e a menina é um anjo de bondade!» ella -accrescentou: «Quando lhe faltar pão, venha pedir-m’o, não se constranja, -é-nos preciso tão pouco a mim e a minha avó, que sempre tenho de sobra.» -Aqui tem o senhor por que eu chamo a essa rapariga um anjo; vê que tenho -razão, faço por não abusar da sua bondade, mas algumas vezes, mesmo muito -amiude, vejo-me obrigado a recorrer a ella... então que quer o senhor? -parece que estava no meu destino o ser sustentado pelas mulheres; por -isso chamo á menina Lisa a minha namorada. Mas d’esta vez é honestamente! -respeito essa pequena, tanto quanto a estimo; faço mais, escuto os seus -conselhos, ella ralha commigo ás vezes, quando venho para casa bebedo... - -—Mas não segue esses conselhos? - -—Não sigo, é verdade; ainda hontem me emborrachei... que quer! a força -do habito. Tambem, quando estou bebedo, não ha perigo que eu pare para -conversar com Lisa; pobre pequena! a sua bondade para commigo é tanto -mais meritoria, que ella trabalha sem descanço para sustentar sua avó, -que está paralytica, algumas vezes á meia noite, á uma hora, sinto-a a -trabalhar ainda... e então grito-lhe: «Vizinha! isso é de mais, velar até -tão tarde, vá descançar, olhe que pode adoecer com tanto trabalho!» Ella -responde-me alegremente: «Não, não! o meu divertimento é coser; depois, -não tenho somno.» É realmente extraordinario que n’uma rapariguita haja -ás vezes mais coragem para o trabalho do que em cinco ou seis homens -robustos com eu! - -Casimiro tem escutado mui attentamente tudo o que Rouflard lhe tem dito -da menina Lisa. Isso ainda lhe dá que reflectir. Mas Rouflard, que acabou -de vestir-se, faz tinir os dez francos que tem na mão, e diz-lhe: - -—Perdão, meu caro vizinho, mas a fome aperta commigo, eu não o ponho -fóra... o senhor pode ficar aqui se se diverte com isso, eu porém peço -licença para me ir confortar. - -E, sem aguardar a resposta do rapaz, Rouflard sae pela porta fóra e desce -rapidamente a escada, escutando apenas a Casimiro, que lhe grita: - -—D’aqui a uma hora... em minha casa!... não se esqueça!... - - - - -VIII - -Travam conhecimento - - -Casimiro desce a escada muito devagar atraz do inquilino da agua-furtada, -não porque tenha receio de cair, mas porque está muito preoccupado com o -que Rouflard lhe contou ácerca da rapariga que mora no quinto andar, que -trabalha toda a noite para sustentar a avó, e acha ainda meio de ser util -aos que carecem de pão. - -Chegado ao patamar do quinto andar, o nosso mancebo pára deante da porta -da menina Lisa; estimaria bastante que aquella porta estivesse aberta, -mas não acontece assim; é verdade porém que a chave está ainda na -fechadura, o que annuncia que se não receia vísita importuna. Casimiro -está morto por tornar a vêr a rapariga de quem se lhe fez tão grande -elogio, diz de si para si que ha pouco não lhe agradeceu bastante a -indicação que ella lhe dera, accrescenta ainda que entre visinhos não -deve haver muita cerimonia, que de mais esta menina não tem muito -trabalho para ganhar dinheiro pela sua agulha, e que se elle podesse -ser-lhe util arranjando-lhe que fazer, n’isso lhe prestaria um grande -serviço. Emfim dá a si mesmo uma infinidade de razões para ter o direito -de abrir a porta, e é o que faz. - -Lisa continuava trabalhando, mas já não cantava; tinha o parecer triste, -e dirigia especialmente a vista para o leito, onde a velha estava -deitada, depois dava um profundo suspiro. Ao vêr entrar de novo Casimiro -em sua casa, as suas feições exprimem a sua surpreza; mas, quando o rapaz -vae para falar, ella põe um dedo na bocca, e diz-lhe a meia voz: - -—Baixinho! tenha a bondade de falar baixo, porque minha avó está -dormindo, e preciso não a acordar; esteve esta noite muito doente, muito -inquieta, não socegou um instante... - -Casimiro entra pé ante pé, e murmura approximando-se da rapariga: - -—Menina, eu sou sem duvida muito indiscreto em vir segunda vez -incommodal-a, mas não sei se lhe disse que era seu vizinho. - -—Sim, senhor, disse-m’o, demais, eu já o sabia, tenho-o visto algumas -vezes no predio. - -—Tem-me visto, e eu não tinha dado pela menina. Onde tinha os olhos?... - -—É que eu estava no cubiculo do porteiro, e depois occupo tão pouco -espaço, é muito facil não me verem... - -—Mas, quando alguem a vir uma vez é impossivel que não deseje tornar a -vêl-a mais vezes... - -Lisa não responde a isto, mas volta os olhos para o leito; Casimiro -percebe que o momento é mal escolhido para lhe render finezas, e que, -demais, não é para lhe fazer a côrte que elle quer travar conhecimento -com a sua vizinha, mas no desejo de lhe ser util. É esse realmente o seu -unico intuito? Eu por mim não respondo por isso; mas já é alguma coisa o -ter boas intenções. O mancebo prosegue pois falando baixo e sentando-se -n’uma cadeira que está perto d’elle: - -—Perdão, minha vizinha, vou falar-lhe francamente, e espero que nas -minhas palavras não verá nada que a possa offender. Soube pela pessoa -que móra lá em cima, com que actividade a menina se entrega ao trabalho, -para que sua avó não careça de coisa alguma; mas o trabalho d’uma mulher -é quasi sempre mal retribuido, eu ter-me-hia por muito feliz se podesse -offerecer-lhe o meio de ganhar mais, fatigando-se menos... - -—Porque outro trabalho? eu não sei senão coser, bordar e fazer meia ou -renda. - -—Eu me explico: sou pintor; ensaiei alguns quadrosinhos _de genero_, -mas ganha-se mais dinheiro a fazer retratos; n’isso ainda eu não sou -muito forte, preciso estudar, trabalhar muito, emfim tenho necessidade -sobretudo de pintar do natural, e para isso preciso de modelos. Notei -que aquelle Rouflard tinha uma cabeça caracteristica, eis a razão por -que fui esta manhã falar com elle. Propuz-lhe vir a minha casa servir-me -de modelo; elle acceitou com alegria, e eu poderei occupal-o bastante -tempo. Mas a minha sympathica vizinha, que tem uma cabeça encantadora, -ah! perdôe-me este elogio, é como artista que lh’o faço, eu julgar-me-hia -muito feliz se podesse reproduzir na tela as suas feições tão finas, -tão suaves. Oh! estou certo de que havia de conseguir! trabalha-se tão -bem quando se tem deante dos olhos um modelo que nos encanta... não lhe -pedirei que venha servir-me de modelo senão quando não tiver nada urgente -para fazer... acceitaria a sua hora... o seu tempo vago... e não julgaria -nunca pagar bastante caro as sessões que houvesse por bem conceder-me; -eis o motivo por que tomei a liberdade de abrir outra vez a sua porta e -de me apresentar aqui de novo. Se a minha proposta lhe desagrada, espero, -ao menos, que não verá n’isso da minha parte nenhuma intenção má. - -A menina Lisa, que escutou Casimiro com muita attenção, responde-lhe logo: - -—Não, senhor, não tomarei á má parte a sua proposta. Soube pelo Rouflard -que trabalho para viver, para que nada falte á minha boa avó, e desejou -ser-me util; não posso senão agradecer-lhe muito o interesse que se -dignou tomar por mim. Mas não acceito a sua proposta; ser modelo de -pintores não é a minha occupação, e tenho ouvido dizer... ao meu vizinho -cá de cima, que as mulheres que consentiam em servir de modelos, não -eram bem vistas na sociedade. Eu sou uma pobre rapariga, sem amparo, sem -familia, não tenho pois por unica fortuna senão a minha reputação, e devo -ter a peito conserval-a; tenho razão não é verdade? - -Estas palavras tão simples, mas tão justas fazem viva impressão -em Casimiro, que não está habituado a ouvir uma mulher falar tão -discretamente. Tracta comtudo de convencer Lisa. - -—Menina, convenho que o mister de modelo não dá a qualquer mulher uma -perfeita reputação de seriedade, posto que em todas as profissões se -possa ter bom comportamente quando ha firme vontade de proceder bem. -Mas tambem eu não vinha propôr-lhe que renunciasse ás suas occupações -habituaes por esta nova profissão. Podia-lhe que me servisse de modelo -sómente a mim, que me permittisse reproduzir as suas feições na tela, -era um favor que eu solicitava e, para a menina, uma curta distracção -aos seus trabalhos. E como lhe podia parecer pouco regular ir a minha -casa servir de modelo, viria eu para aqui pintar, traria para cá a minha -palheta e os meus pinceis; d’esta maneira, a menina não deixaria mesmo um -instante a pessoa a quem prodigaliza todos os seus cuidados. Os modelos -pagam-se muito caro, desculpe-me entremetter a questão de dinheiro em -tudo isto; mas na vida não ha remedio senão attender a essa questão: ora, -se eu occupasse um modelo durante umas dez sessões, dar-me-hia por muito -feliz se elle se contentasse em receber cincoenta francos... - -—Ih! Jesus! tanto dinheiro, só por servir de modelo!... - -—Sim; e quanto mais bonito é o modelo, mais caro se faz pagar, isso -comprehende-se. Por isso, para achar um como a menina, em primeiro logar -seria muito difficil, depois teria de o pagar por um preço muito mais -elevado, e as minhas posses não me permittem uma tão grande despeza. -Já vê portanto que, satisfazendo ao meu pedido, era a mim que a menina -obsequiava, era eu que lhe devia agradecimentos; mas isto desagrada-lhe, -não pensemos mais em tal... - -Lisa d’esta vez hesita para responder; a final murmura. - -—Sinto não poder ser-lhe agradavel; parece-me entretanto que não deve -ser difficil achar uma cara que valha bem a minha. Olhe, senhor, eu não -conheço nada o mundo, mas creio que o céu me deu o segredo de ler no -pensamento das outras pessoas: o senhor deseja ser-me util e tracta -de me persuadir de que eu é que lhe prestaria serviço. Ah! isso é bem -generoso da sua parte... confesse que adivinhei. - -Casimiro está muito admirado da perspicacia da rapariga. Não pode deixar -de sorrir, balbuciando: - -—Confesso que me espanta, menina; a sua linguagem annuncia mais educação -do que de ordinario se recebe na posição precaria em que a vejo. Não tem -mais parentes senão essa pobre enferma, diz a menina; mas aquelles que -perdeu occupavam então uma posição mais afortunada; perdão, sou talvez -demasiadamente curioso? - -—Oh! eu não tenho motivo para me rodear de mysterios! não conheci nunca -meus paes; abandonaram-me muito cedo aos cuidados d’uma ama, depois -esqueceram-se de mim completamente. - -—É possivel! pobre creança! mas essa velhinha que ahi está?... - -—Chamo-lhe avó, mas não me é nada; era mãe de minha ama. Essa chamava-se -Catharina Vauger; queria-me muito, e o que mais receiava era o momento em -que teria de separar-se de mim para me entregar á minha familia; ficou -pois bem contente quando lhe enviaram uma forte quantia, dizendo-lhe: -«Saia da sua aldeia, fique com a creança; em vez do nome que ella tem, -chame-lhe _Lisa_ unicamente; mas vá para Paris, para a morada que aqui se -lhe indica, estabeça-se, e arranje uma lojita, que alguem terá o cuidado -de a indemnisar das despezas que fizer com a menina.» A minha ama acabava -de perder o marido. Partiu para Paris, trazendo comsigo a mãe, que alli -está, n’aquella cama. Durante algum tempo recebeu pelo correio certas -quantias para mim, depois, de repente isso acabou, não se ouviu mais -falar em coisa alguma!... - -—Mas a sua ama sabia sem duvida o nome da pessoa que lhe escrevia? - -—Não, as cartas não vinham assignadas; nunca mesmo lhe tinham dito o nome -de minha mãe... - -—É completamente um romance!... - -—A minha boa ama pouco se inquietou com isso; tinha emprehendido um -negociosinho de leite e de queijos que corria bem. Assim que fiz seis -annos, mandou-me á escola; depois, um pouco mais tarde, a um collegio -semi-interna, porque ella não queria nunca separar-se de mim mais de -meio dia. Querida e boa ama! queria-me mais que uma mãe! visto que a -minha me abandonára. Vivemos assim muito felizes durante alguns annos; -mas, ha quatro annos, a boa Catharina caíu doente, e, apezar de todos os -meus desvelos, morreu; tinha eu apenas quatorze annos, e comtudo a minha -ama recommendou-me sua velha mãe, porque ella conhecia-me, sabia que eu -tinha coragem, e a firme vontade de reconhecer pelo meu trabalho tudo o -que tinham feito por mim. Durante os primeiros tempos, para vivermos, -minha avó e eu, fomos obrigadas a trespassar o estabelecimento da minha -ama. Eu procurava trabalho, mas não o podia obter, achavam-me muito nova -para m’o confiarem, e quando minha avó o pedia, achavam-n’a muito velha. -A final, a Providencia veiu em nosso auxilio, e eu pude ganhar a nossa -vida. Mas, ha um anno, a minha pobre companheira ficou meia paralytica, -já o senhor vê que tenho razão para trabalhar sem descanço e para velar -constantemente pela pobre velha que não tem mais ninguem para a tractar. - -—O que me acaba de dizer, não tem feito mais que augmentar o interesse -que me inspirava, e perdôe, se torno ainda a falar n’isto, o desejo que -sinto de lhe ser util. Pobre pequena, abandonada pelos paes, que vivem -talvez na abastança e podem ter todos os gozos que a riqueza proporciona, -emquanto que a menina... - -—Asseguro-lhe que nunca penso em tal, não choro senão a minha ama, a -minha unica mãe! e que me queria tanto! Não tenho resentimentos contra -meus paes por me haverem deixado com ella. Nem minha mãe nem meu pae me -teriam de certo tractado melhor. - -—A menina tem muita philosophia, dou-lhe por isso os meus parabens: -outras, no seu logar, forjariam mil chimeras. - -—Oh! eu não! não penso senão no meu trabalho. - -—E sempre me recusa o favor que lhe peço de me deixar tirar o seu -retrato, vindo eu aqui? - -—Certamente; d’essa maneira, é muito mais decoroso; mas não importa, não -quero servir de modelo. - -Casimiro suspira e levanta-se dizendo: - -—Vamos, vejo perfeitamente que nada pode vencer a sua repugnancia. Não -devo por insistir mais; mas, no emtanto, se por acaso mudar de parecer, -eu estarei sempre prompto com a palheta e os pinceis, e a menina não tem -senão uma palavra a dizer, para me ver aqui immediatamente. - -—Muito agradecida. - -—Demais, se me dá licença, virei eu proprio saber da saude da sua doente, -a menina permitte-me, não é verdade? - -A menina Lisa faz-se córada, hesita, mas este pedido era-lhe feito com -uma voz tão meiga, este rapaz tem mostrado por ella tanto interesse, -mostra-se tão respeitoso, tão delicado, e depois não é um estranho -qualquer, mora no mesmo predio, e o porteiro nunca disse d’elle senão -bem; tudo isto decide, a rapariga a pronunciar um sim, que enche de -alegria o seu vizinho. - -Casimiro então torna a agradecer a Lisa a permissão que ella acaba de -lhe conceder, depois despede-se e retira-se em bicos dos pés, sem fazer -bulha, de modo que a doente não accorda. - -O nosso mancebo, ao entrar em sua casa, sente-se cheio de ardor para -o trabalho; dispõe a sua tela, e prepara a palheta e os pinceis. Os -bons exemplos fazem muito mais effeito que os bons conselhos, no que -ha a differença da practica á theoria; escuta-se muitas vezes com -indifferença, e esquece-se mesmo o que se ouviu; mas nunca se olvida o -que se viu. Tem razão o proverbio que diz: Um olho vale mais que dez -ouvidos: - -O joven pintor aguarda impaciente a chegada de Rouflard para se pôr ao -trabalho; mas passa-se o tempo e o modelo não apparece. Casimiro começa a -pensar que fez mal em pagar adiantado ao inquilino da agua-furtada, que -é capaz de gastar tudo quanto recebeu, antes de pensar em cumprir a sua -promessa. - -Mas não tarda que se ouça um grande arruido de vozes; grita-se, ralha-se -no patamar, e a voz de Rouflard cobre muitas vezes todas as outras. -Casimiro quer saber o que se passa, corre a abrir a porta e vê no seu -patamar a familia Proh á briga com o seu futuro modelo. - -O sr. Proh e sua mulher parecem muito exaltados; Rouflard está apenas um -pouco «electrizado...» - -—Sim, senhor, grita o sr. Proh, que tem effectivamente alguma similhança -com um chimpanzé; eu tinha direito para o chamar a uma policia -correccional pelo que o senhor escreveu por cima da minha porta... - -—Ah! ah! ah! o senhor faz-me rir com a sua policia correccional, faça-me -ir ao tribunal, isso ha de divertir-me... - -—Pelo menos ha de ir á presença do juiz de paz! diz Celeste Proh, porque -o senhor insultou-me, chamando-me sr.ª _Profanée_!... - -—Insultei-a! com a breca! a senhora é difficil de contentar! comparo-a -com uma flor. Quando uma flor está meio murcha, diz-se que está -_fanée_... concedo-lhe que é uma rosa _fanée_... e zanga-se com isso... -eu podia-lhe ter posto: a sr.ª _Probléme_... a sr.ª _Profile_... um reles -algodão... - -—Cale a bocca, insolente! meu vizinho, faço-o juiz d’esta questão: o -senhor leu sem duvida o que este homem tinha escripto com giz por cima da -nossa porta?... - -—Não, minha senhora, não reparei... - -O rapazito põe-se a gritar: - -—Era: A menina _Pronobis_, a sr.ª _Profanée_... - -—Cale-se, Affonsinho, não é preciso repetir essas coisas feias, visto que -o nosso vizinho não as leu... - -—O sr. _Professe_! eu sou o menino _Propice_... - -—Cale a bocca. Fonfonso!... vá já para casa... - -—Não quero... - -—E porque é que me pôz a mim o sr. _Professe_?... O que entende por esta -locução? exclama o falso chimpanzé muito zangado. - -—O que entendo? oh! essa é boa! Pois não é difficil de adivinhar! É -verdade que talvez isso lhe não aconteça já! - -—Senhor, hei de ter uma satisfação de todas essas offensas!... - -—Quer que eu lhe dê uma satisfação? Estou prompto, um duello! agrada-me -a proposta; logo cá lhe mandarei o meu creado, para o senhor ajustar com -elle as condições do combate, acceitarei a arma que escolher, isso para -mim é indifferente! bato-me com tudo quanto se quer, mas o florete é a -arma das pessoas de distincção... - -—O que é que diz? um duello! este homem propõe-me um duello, creio -eu... que desaforo! atrever-se a suppôr que iria medir-me com elle! tem -graça!... - -—Medir-se, meu caro amigo! oh! não com um metro! o senhor é uma grande -vara, e eu não tenho senão tres pollegadas e meia, a vantagem seria toda -sua! mas Chausson, o meu antigo _groom_, nos emprestará duas espadas de -guarda nacional, ou dois páus de vassoura, á sua escolha. Convem-lhe -isto, sr. _Pro... rata_? - -—Sr. Casimiro, peço-lhe que diga a este homem que se cale, aliás não -respondo pelo que acontecerá... - -—Não te faças fanfarrão, _Professeur_! olha que te vou á figura... - -—Sr. Rouflard, vê-se perfeitamente que almoçou bem de mais, não é isso -que me tinha promettido. Esquece-se de que tem de vir a minha casa -servir-me de modêlo, e que estou á sua espera?... - -—Ah! é verdade, tem razão, desculpe, meu pintor, eu ia a sua casa, para -que me tomou esta gente o caminho?... - -—Sr. Proh, e minha senhora, peço-lhes que não tomem a sério os gracejos -de máu gosto que este homem se atreveu a proferir, elle bebe de mais -algumas vezes para esquecer a sua miseria, devemos ser indulgentes com os -desgraçados, prometto-lhes que não tornará mais!... - -—Ah! sr. Casimiro, é só em attenção ao senhor! - -—Vamos, Rouflard, vamos para o nosso trabalho... - -—Já vou, meu Miguel Angelo, meu Raphael. Familia Proh... tornaremos a -ver-nos... - -—Venha, Rouflard, venha d’ahi... - -—Vamos lá fazer de modelo _Pro Deo e pro patria_!... É bonito isto! -_Pro-deo_... - -Casimiro faz entrar o modelo em sua casa, e a familia Proh retira-se -tambem do patamar, depois de ter tido o cuidado de apagar o que restava -de giz por cima da porta. - - - - -IX - -Uma colhér de prata - - -Não é sem custo que o joven artista consegue do seu modelo que se deixe -pôr em posição, e principalmente que se não mecha depois de adoptada -emfim a sua attitude. A final Rouflard aquieta-se; demais, Casimiro -permitte-lhe conversar e elle usa da permissão. O antigo seductor tem-se -feito muito loquaz com a edade; gosta de falar dos seus triumphos -passados e enfeita as suas recordações de reflexões que são ás vezes -picantes. Rouflard não é falto de espirito; este homem possuia tudo o que -é preciso para fazer caminho no mundo, e foram todas as suas vantagens -que o perderam. - -Casimiro ouve o seu modelo contar-lhe os seus triumphos com as damas, mas -em breve conduz a conversação a um assumpto que o interessa mais. É da -menina do quinto andar que elle gosta muito de ouvir falar! - -—Mora ha muito tempo n’este predio sr. Rouflard? - -—O senhor é muito delicado em dizer morar, meu Raphael; estar empoleirado -é que devia dizer. Emfim não importa; ha seis mezes que o occupo, aquelle -buraco, e confesso que nunca lá tive vontade de cantar: «Como se está bem -n’uma agua-furtada aos vinte annos!...» É verdade que já não tenho vinte -annos; mas, ainda que os tivesse, não seria nunca da opinião de Béranger. -Mas isto de poetas, em o pensamento sendo original é o sufficiente! Bem -se importam elles com a verdade! - -—E quando o senhor veiu morar cá para cima, já a menina Lisa aqui -habitava com a avó? - -—Sim, já cá estava, mas havia pouco tempo, pelo que tenho ouvido dizer. - -—O senhor está no caso de saber quando ella recebe as suas visitas. - -—Visitas! em casa da Lisa! oh! nunca! que eu saiba, nunca a nossa visinha -recebeu ninguem de fóra. Só a sr.ª Proh é que lá subiu uma ou duas vezes -com o filho, para levar trabalho. O garoto não cessava de gritar: que -feio que é isto aqui! e, como queria ralar a paciencia á pobre da avó, -Lisa pôl-o fóra de casa. Emquanto á senhora _Pro-tocole_, essa não se -fartava de dizer á rapariga: «Eu não poso pagar isto por doze soldos, -é muito caro, não dou senão dez.» E tantas vezes o repetiu, que Lisa -respondeu-lhe: «Dê a senhora o que quizer...» Pobre pequena! regatear -por dois soldos, a quem trabalha dia e noite para sustentar a avó! é uma -acção digna da sr.ª _Pro-fanée_!... - -—Volte a cabeça um pouco mais para a esquerda. Muito bem, faça por -conservar essa posição... - -—Está satisfeito commigo? - -—Sim, senhor, não se põe mal... isto hade ir... - -—O senhor está pintando o meu retrato para o mandar á exposição? - -—Talvez, se me sair bom. - -—Em todo o caso, ha-de-m’o dizer, não é verdade? porque eu não -desgostaria de me ir contemplar. - -—Sim, sim, mas ainda lá não chegámos. Sabe o sr. Rouflard quem eu -estimaria bastante ter por modelo? - -—Ora! aposto que adivinho? é a menina Lisa que o senhor quereria retratar! - -—Exactamente, teria grande prazer em reproduzir na tela as bonitas -feições d’essa interessante rapariga! - -—Pois bem! quem é que lh’o impede! - -—Perguntei á nossa visinha se consentiria em me deixar tirar-lhe o -retrato, e ella recusou-se! - -—Ah! recusou! Aposto que foi para não deixar a avó sósinha tanto tempo? - -—Mas, como eu tinha comprehendido isso, propuz-lhe ir eu a sua casa com -os pinceis e a palheta, de modo que poderia ella servir-me de modelo sem -se afastar um momento da sua pobre doente... - -—Oh! isso era bonito da sua parte! E ella ainda recusou? - -—Sim, recusou sempre. Tenho dobrada pena com essa recusa, porque a menina -Lisa trabalha muito e ganha pouco... - -—Acredito! sobre tudo se trabalha para a sr. Proh...! - -—Emquanto que consentindo em me servir de modelo teria ganho muito -mais, e mesmo sem que isso lhe fizesse largar o seu trabalho habitual. -Ter-lhe-ia proporcionado alguns regalos, poderia comprar para a sua -doente coisas que ella por falta de dinheiro não lhe pode agora -offerecer. Pois eu não tinha razão, Rouflard? - -—Tinha cem vezes, mil vezes razão! e não sei por que ella recusou! - -—É que tem medo de se comprometter; tem ouvido dizer que as mulheres que -servem de modelo aos pintores não gozam de boa reputação. - -—De ordinario não são nenhumas vestaes! mas quem necessita de trabalhar -para viver, não se deve prender com isso! A susceptibilidade de Lisa -é exagerada! Esteja descançado, meu pintor, o senhor só tem boas -intenções, só quer fazer bem á pequena, fazendo ao mesmo tempo um bonito -estudo; indo pintar em casa d’ella deante da avó, tira todo o pretexto -á maledicencia. Farei comprehender isso á minha boa vizinha, estou -convencido de que a hei-de resolver a deixar-se retratar! - -—Devéras! acha que vencerá a sua resistencia? - -—Com toda a certeza! tenho vencido outras mais fortes. Triumphar das -mulheres era a minha profissão! É verdade que empregava para isso meios -de que não usarei com a menina Lisa; resta-me, porém, a minha eloquencia, -e o desejo que tambem tenho de ser util áquella que nunca me recusou um -boccado de pão. Será talvez a primeira vez que prestarei serviço a uma -mulher, isso ha de fazer-me mudar. - -Para primeira sessão, Casimiro não quer fatigar muito o seu modelo, e ao -cabo de duas horas, conhecendo que Rouflard começa a sentir formigueiros -nas pernas, diz-lhe: - -—Basta por hoje. - -—Devéras! põe-me em liberdade! Pois bem! gosto d’isso, porque principiava -a sentir uma especie de caimbras nas pernas, falta de habito, já se vê -mas hei-de-me costumar. Será preciso vir ámanhã outra vez? - -—De certo; assusta-o isso, por ventura? - -—Nada, pelo contrario, creio até que tomarei gosto pela coisa. Ganhar -dinheiro assim não custa nada. Oh! é preciso que a nossa vizinha se -preste tambem a isto, tanto mais que poderia assim dar grande prazer á -avó, estou mesmo espantado de que ella não tenha pensado em tal. - -—Como é isso? explique-se melhor, Rouflard; em que é que a menina Lisa -daria grande prazer á sua pobre paralytica? - -—Vae immediatamente perceber. Conversando algumas vezes commigo, porque -eu gosto muito de conversar, sobretudo com as raparigas bonitas, é um -resto da minha juventude... _desinit in piscem_... oh! eu tambem sabia -latim! mas, com as mulheres, esquecia-me d’elle, ellas não gostam de -linguas mortas! - -—Voltemos a Lisa. - -—Tem razão, eu poderia ter sido um bello advogado, porque trato os -pormenores com muito cuidado. Ora, ia eu dizendo: conversando, a minha -vizinha tem-me dito algumas vezes: «Ah! se eu podesse ajuntar algumas -economias. Ha uma coisa que daria grande prazer a minha avó, e que eu -estimaria muito poder-lhe offerecer, mas não o posso conseguir!» «O que -é então, lhe disse eu, que a sua avó deseja tanto?» «É, me respondeu -ella, uma colhér de prata; porque ella teve uma muito bonita n’outro -tempo, em vida da minha ama, porém depois da sua morte, quando estive -muito tempo sem achar trabalho, foi-nos preciso pouco a pouco vender o -que possuiamos, e a colhér de prata levou esse destino. Hoje conseguimos -viver, mas não posso ajuntar dinheiro para comprar outra; e ainda menos -agora, que o medico receita algumas vezes remedios que são muito caros! -Mas a saude está primeiro que tudo, vale mais que uma colhér de prata!...» - -—Tem razão, Rouflard, essa menina, servindo-me de modelo, teria ganho em -breve com que comprar o que deseja offerecer á avó. - -—A não ser que o medico receite ainda algum remedio ruinoso; então, lá -se ia embora todo o dinheiro! porque Lisa não regateia quando se tracta -de dar allivio á pobre enferma. Mas é o mesmo, eu lhe falarei. A sessão -ámanhã é á mesma hora? - -—Mais cedo, ás dez horas em ponto. - -—Á hora que quizer; eu sou livre como o besouro! Ah! permitte-me que veja -o que o senhor fez? - -—Sim, pode vêr. - -—Espere, isto já não está mau, eu não sei pintar, mas tive a reputação de -entender de quadros e, no tempo das minhas fortunas, comprei por vezes -alguns quadrosinhos _de genero_... e ganhei sempre n’elles. - -—Pois então, olhe para essa vistasinha de Bougival, que ainda não -acabei... - -—Vejamos; oh! é bonita, é aprazivel, tem vida! O senhor é colorista, o -que nem todos os pintores são, mesmo alguns que teem entretanto muito -talento. Isto que lhe digo, não é para lhe fazer um elogio banal, o -senhor tem o sentimente da côr... tracte bem este quadrosinho. Olhe, eu -n’outro tempo teria pago isto por trezentos francos, e ainda havia de -ganhar... - -—Bom, visto que esta paizagem não lhe parece de todo má, vou acabal-a. -Eu faria talvez melhor o quadro _de genero_ que o retrato, não importa, -tentarei as duas coisas. Até ámanhã, Rouflard. - -—Sim, senhor, e não almoçarei senão depois da sessão, para me collocar em -posição com mais dignidade. - -Assim que o modelo se retira, Casimiro deixa a cabeça de Rouflard e -deita-se á paizagem; trabalha com um ardor de que elle proprio se -espanta, mas toma gosto pela sua obra, procura-lhe cuidadosamente os -defeitos, aperfeiçôa-lhe muitas partes, e o tempo passa depressa quando -a gente se entrega a um trabalho que agrada. Casimiro ouve dar quatro -horas, e diz comsigo: - -—Não é possivel que já seja tão tarde. Ah! Santo Deus! e eu que devia -ir buscar Ambrosina ás tres horas, para ir passear com ella ao bosque! -mais uma scena que terei de aturar! Porque deixei eu esta mulher dispôr -assim do meu tempo? porque? Porque sou um preguiçoso, um cobarde, porque -a menor occupação me mettia medo, e hoje tenho infinitamente mais prazer -em trabalhar n’este quadro do que em ir passear ao bosque. Ah! é que -penso n’essa menina Lisa que não procura nenhuma distracção, que trabalha -constantemente n’um quarto onde não tem por companhia senão uma velha -paralytica, e isto de ter assim vivido na inacção envergonha-me. Tenho -ainda deante dos olhos a situação de Rouflard. Este homem, que foi -tão festejado, tão amimado pelas mulheres, viveu á custa d’ellas e eu -vejo onde isso conduz, o seu exemplo não será perdido para mim. A sr.ª -Montémolly pode zangar-se quando quizer, mas de hoje em deante hei-de -trabalhar; estou resolvido a isso, no entanto, como é preciso ser sempre -delicado com as senhoras, vamos ter com ella, senão seria capaz de vir -aqui para saber o que estou fazendo. - -Casimiro dirige-se portanto a casa da formosa Ambrosina. Esta dama está -de muito máu humor; acha-se vestida e prompta ha mais de uma hora, e não -vê apparecer o amante. Passeava com impaciencia pela sala, olhava a cada -instante para o relogio, chamava a creada e dizia-lhe que fosse perguntar -que horas eram a qualquer parte, exclamando: - -—Estou certa de que este relogio anda adeantado, deve regular mal; -Adriana, vá saber que horas deram com exactidão. - -Adriana vae informar-se ao quarto do porteiro, e volta dizendo: - -—Minha senhora, o seu relogio não está adeantado, pelo contrario, anda -atrazado seis minutos. - -—Você é uma tola! exclama Ambrosina, rasgando as luvas com colera, de -certo viu mal... - -—Não, minha senhora, eu... - -—Basta! não quero que sejam perto de cinco horas, é impossivel!... - -—Ah! se a senhora quer que não seja mais de meio dia, isso para mim é o -mesmo. - -—Cale o bico! parece-me que tem a confiança de gracejar commigo! se diz -mais uma palavra, ponho-a na rua!... - -Adriana retira-se, dizendo comsigo: - -—É que o gajo ferrou-lhe alguma peça! Ainda agora a procissão vae na -praça, minha rica! - -Chega finalmente Casimiro. Esperando uma scena de ralhos, vem revestido -de toda a sua paciencia; demais, está decidido a persistir na resolução -que tomou de mudar de vida. - -—Ah! chegou emfim, diz Ambrosina mordendo os labios com despeito. Sabe -que horas são? - -—Cinco horas menos vinte minutos. - -—E a que horas devia o senhor vir buscar-me?... - -—Um pouco mais cedo, é verdade; mas puz-me a pintar e o tempo passou mais -depressa do que eu imaginava. - -—De certo que não presume que eu me satisfaço com similhantes razões; -deveria, pelo menos, ter inventado outras, dizer-me ainda que estava á -espera do seu amigo Miflaud, que foi elle que o demorou... - -—Disse-lhe a verdade, minha senhora, não tem razão em não me acreditar. -Estive trabalhando. - -—Esteve trabalhando! e desde quando, se me faz favor, desde quando lhe -veio esse bello amor pelo trabalho, que eu lhe não conhecia? - -—Estou admirado de que a senhora me diga isso, porque, desde algum -tempo a esta parte, temos tido bastantes conversações a tal respeito. -Sim, minha senhora, puz-me ao trabalho, e d’aqui em deante conto -empregar assim uma parte do meu tempo, a minha resolução está tomada -e é inquebrantavel, agora não mudarei. Estou envergonhado da vida que -tenho levado até hoje, e é preciso que isto acabe. Bastantes vezes lhe -tenho manifestado o desejo que sentia de achar um emprego. Em vez de -me confirmar n’este designio, a senhora tem sempre procurado fazer-me -esquecer do que a minha posição tinha de censuravel. Não lhe faço uma -arguição. Deus me livre de tal! cada um ama a seu modo: uns sómente pelo -prazer de amar; outros pela felicidade que experimentam em ouvir fazer -o elogio do objecto da sua escolha. Eu possuo só um recurso, a pintura. -Posso, á força de estudo, de trabalho, adquirir algum talento. É o que -vou tractar de fazer; não ve o em que isso me poderia malquistar com a -senhora, porque lhe asseguro que os prazeres parecem mais doces, quando -vêm depois das horas de trabalho. - -Casimiro disse tudo isto com um ar tão decidido, n’um tom tão firme, -tão convencido, que a sr.ª Montémolly comprehende que d’esta vez não -triumphará da nova resolução do seu amante. A colera desappareceu -então como por encanto. É que ella conhece Casimiro sufficientemente -para perceber que perderia muito no conceito d’elle, procurando ainda -estorvar-lhe os projectos. Em vez d’isso, faz esforços para retomar o seu -ar gracioso, e toma-lhe o braço, dizendo-lhe: - -—Perdôe-me, meu amigo, eu não tinha razão; não o censurarei mais por -trabalhar. Mas isso ha-de impedir-nos por ventura de irmos ainda passear -algumas vezes? - -—Ah! estou ás suas ordens e encantado de a achar tão razoavel... - -—Pois bem! então, vamos dar um passeio até ao bosque, e á volta -jantaremos no Ledoyen... - - - - -X - -Ainda as creadas - - -São decorridos quinze dias. Casimiro trabalha com assiduidade no seu -quadrosinho de cavallete e da cabeça de Rouflard; este conserva a posição -muito regularmente, sobretudo desde que dá as sessões antes do almoço. -Mas não conseguiu ainda vencer a resistencia de Lisa, que não quer deixar -tirar o retrato. Isto penaliza o joven pintor, que subiu muitas vezes a -casa da sua linda vizinha do quinto andar; mas não se demorou muito lá, -porque ella parece sempre temer que a vista do rapaz contraríe sua avó, -e é mostrando-se bem discreto que Casimiro espera captar a confiança de -Lisa e triumphar da sua recusa. - -O joven pintor continúa a dar lições de desenho á menina Proh, que não -faz nenhum progresso e passa uma semana com a mesma orelha. Começou -tambem o retrato da sr.ª Proh, mas pouco trabalha n’elle, e prefere muito -mais a cabeça de Rouflard. Emfim, Casimiro acabou a sua pequena paizagem, -e mandou-a para uma loja de quadros, deante da qual param de boamente os -amadores, porque se expõem alli a miude bonitas coisas e raras vezes má -pintura. - -Deve-se bem suppôr que a ciumenta Ambrosina, não acceitou sem desgosto, -sem receio, o novo modo de viver que o seu amante acaba de adoptar; mas -comprehendeu que era preciso fazer algumas concessões para não perder -inteiramente o seu imperio. Vê Casimiro muitas vezes; mas em vez de -passar em casa d’ella uma parte das suas manhãs e das suas tardes, a -conversar como costumava, o rapaz almoça agora em sua casa, e trabalha -algumas vezes até ás cinco horas da tarde; quando se sente perfeitamente -bem, quando está contente de si, custa-lhe muito largar os seus pinceis, -e fica muito admirado de vêr com que rapidez se passa um dia todo -consagrado ao trabalho, elle que outr’ora achava o tempo bem comprido e -não sabia como empregal-o para evitar o aborrecimento. - -Ambrosina, que quer certificar-se de que Casimiro não a engana, chega -muitas vezes a casa d’elle sem o prevenir da sua visita. Acha-o -trabalhando com o seu modelo, e não é Rouflard que pode inquietal-a; -encontrou lá tambem uma vez a sr.ª Proh, que dava uma sessão ao seu -vizinho, mas a esposa do antigo professor não podia despertar-lhe ciume. -Não tinha pois nenhum motivo real para se affligir, e todavia não estava -socegada; parecia-lhe que o amante não era já o mesmo com ella, que com -o amor inteiramente novo que lhe viera pelo estudo, tinha perdido muito -d’aquelle que n’outro tempo lhe dedicára. Não sabia bem o que se passava -no coração de Casimiro, mas adivinhava que havia agora entre ambos alguma -coisa que devia destruir a sua felicidade. As mulheres teem uma segunda -vista, que lhes faz presentir tudo o que tem relação com o seu amor. - -Isto devia necessariamente produzir um augmento de crises nervosas, e a -menina Adriana era muito a miude enviada á pharmacia que já tivemos o -prazer de fazer conhecer aos nossos leitores. - -Correndo alli um dia (sabemos já como Adriana corre, que pára a conversar -com todos os conhecimentos que encontra,) a gorda creada acha-se outra -vez cara a cara com a sua amiga, a menina Rosa, aquella que tem um tão -bello commodo em casa d’um homem só, que lhe faz presentes, e que tomou -um creado para que ella se não cance muito com o trabalho domestico. - -—Bons dias, Adriana. - -—Ah! és tu, Rosa! onde vaes d’esse modo? - -—Vou alli á pastelaria encommendar umas empadas, que as fazem -deliciosas!... - -—Ah! bem sei, é tambem onde nós compramos, é a melhor do bairro. - -—Ainda estás em casa da tal senhora nervosa? - -—Oh! não me fales n’isso! desde algum tempo a esta parte, está -constantemente de máu humor! anda furiosa! porque os amores já não correm -muito bem! Eu bem vejo, o tal sujeito já apparece menos vezes, por mais -que a senhora se apure no vestuario, por mais que se faça bonita, estou -convencida de que elle tem vontade de a deixar. - -—Ora! e ella arranja logo outro! - -—Pensas que la em casa se faz isso com essa facilidade! Nós adoramos o -nosso pintor, minha rica, seriamos capazes do nos deixarmos depennar por -elle! - -—Ah! é um pintor, algum pobre pintamonos?... - -—Parece que desde certo tempo para cá vae adquiríndo talento, está para -fazer o retrato da senhora, é ella que o quer, é preciso ver se elle me -faz tambem o meu em quanto está de vez. E tu, Rosa, andas muito _chic_, -pareces a mulher d’um ourives! Continúas em casa do tal homem só? - -—Em casa do sr. Loursain, de certo minha rica; sou mais sua dama de -companhia que sua creada; não faz nada sem me ouvir, hoje fui eu que -appeteci as empadas, disse-me logo: «Vae encommendal-as...» - -—Ah! elle tracta-te por tu!... - -—Não... enganei-me... elle disse-me: «Vá, Rosa, encommende-as a seu -gosto, e traga tambem pasteis de nata.» - -—Caspité! és tractada como uma princeza! - -—O senhor não faz nada sem me consultar. Quando os seus amigos me fazem -zangar, digo-lhe a elle: «O seu amigo fulano deu-me hontem um beliscão em -certo sitio...» Oh! o tal amigo fica pronto, é recebido de tal maneira -que nunca mais volta. - -—Oh! isso é bem armado, é um meio para te veres livre das pessoas que te -aborrecem. - -—É uma astucia velha que nunca erra o seu effeito. Mas imagina que me -tinha vindo á idéa aquillo que me disseste o outro dia; uma d’estas -tardes, depois de jantar, á sobremesa, digo ao patrão, que estava mais -terno que de costume: «Senhor, se tem vontade de casar commigo, não se -constranja, eu não desejo outra coisa.» A isto o patrão desata a rir, -como um perdido! Fez-me zanga vel-o rir assim, e digo-lhe: «Então que -motivo ha para rir do que lhe proponho?» Elle ri ainda mais, e depois -responde-me: «Que diabo de idéa se te meteu na cabeça! e que tolice ires -pensar no casamento.» «Mas, senhor, tornei eu, não acho que o casamento -seja uma tolice.» «Pois olha que é, e bem grande; não, minha rica, não -casarei comtigo, não farei similhante disparate! mas ainda mesmo que -tivesse vontade de o fazer, não me seria isso possivel, pois que já sou -casado.» - -«Bem deves fazer idéa que fiquei embaçada ao ouvir isto «Como! pois o -senhor é casado?» exclamei eu «e sua mulher está viva?» «Sim Rosa, minha -mulher está viva, bem viva, e não creio que tenha vontade de morrer, -porque é muito mais moça do que eu.» «E então porque não está o senhor -com ella? para que vive sem mais nem mais como se fosse solteiro? É -enganar a gente; isso dá ás raparigas solteiras certas idéas a seu -respeito: póde a gente illudir-se com o senhor, pensando que é para bom -fim, e depois era uma vez!... Isso é desagradavel...» O patrão fez então -uma cara de mau humor, e respondeu-me: - -«—Não tenho que lhe dar satisfações; se me separei de minha mulher, é -porque provavelmente isso me conveiu, não é negocio da sua conta. De hoje -para o futuro, ha de fazer favor de me não tornar mais a falar a tal -respeito, porque isto desagrada-me.» - -«Ora, bem deves suppôr que não foi preciso dizer-m’o duas vezes; vi que -tinha ido longe de mais, e desde então não tenho falado mais em tal. -Mas é o mesmo, desejava bem conhecer a mulher do sr. Loursain, e saber o -motivo por que elle a deixou. - -—Ora! tem muito que saber! é que lhe fez falcatrua, e esse senhor não -gostou; ha homens tão ridiculos. Valha-me Deus! e eu sem ir buscar o -remedio á botica! Adeus, Rosa, até mais ver. - -—E o teu moço de quem gostavas tanto? - -—Ah! isso já acabou! agora é outro! eu nunca me prendo, gosto da -variedade. - -Quando a menina Adriana volta á presença de sua ama, esta ralha muito com -ella por se ter demorado tanto tempo fóra; a creadinha porém não falta a -responder-lhe: - -—Não foi por minha culpa, minha senhora, é que encontrei uma amiga, -uma patricia, que não via ha muito tempo, então estivemos a conversar, -perguntei-lhe pela familia... - -—Sempre desejava saber que interesse podia ter n’isso... - -—É que a Rosa tem um irmão que esteve quasi á morte por minha causa. - -—Por amor? - -—Não, minha senhora; mas querendo levar-me muito longe nos braços, á -força de pulso, ficou corcovado. - -—E o que faz a sua amiga? - -—Oh! tem um bello commodo, em casa d’um homem só, onde ella faz tudo -quanto quer; manda fazer empadas quando lhe dá na vontade... e pasteis de -nata, emfim, grandes banquetes. - -—É então rico, esse senhor? - -—Sim, minha senhora. Oh! parece que o sr. Loursain é riquissimo! - -Ao nome de Loursain, Ambrosina sente uma viva commoção; apressa-se porém -a dominal-a replicando: - -—Como se chama esse senhor em casa de quem está a sua amiga? - -—Loursain. A senhora conhece-o? - -—Não, parecia-me ter ouvido outro nome. E esse sujeito é... viuvo? - -—Quer dizer, vive como se o fosse; mas na realidade não o é. Tem ainda a -mulher viva. Eu soube tudo isto pela Rosa, de quem elle está loucamente -namorado, e com quem estimaria muito casar; mas elle disse-lhe em -confidencia: «Eu não posso casar comtigo, Rosa, e tenho muita pena -d’isso, porque sou casado e minha mulher ainda é viva, infelizmente; mas, -se ella morrer, podes estar descançada, tens a certeza de occupar o seu -logar... o teu futuro está seguro.» O que é pena, é que parece que a tal -senhora é muito mais moça que o marido; mas, emfim, em todas as edades se -morre, não é verdade, minha senhora? - -—Certamente. E o amo da sua amiga mora perto d’aqui? - -—Sim, minha senhora, na rua Béranger, aquella que faz continuação á -nossa. Parece que aquelle senhor tem uma bella casa, n’um segundo andar, -do lado da rua, e mobilada no grande _chic_. O quarto da Rosa é no mesmo -pavimento, o que é muito commodo, porque... a senhora bem entende... a -Rosa não m’o quiz confessar, mas é como se m’o tivesse dito, demais, ella -descuidou-se commigo... o amo trata-a por tu, e... - -—Basta, basta, não quero saber dos negocios da menina Rosa; mas, para a -outra vez, tracte de conversar menos tempo quando eu a mandar a algum -recado. - -Deixada só, Ambrosina fica por largo espaço engolphada nas suas -reflexões, das quaes sae por fim, dizendo de si para si: - -—Loursain mora perto de mim, e eu não desejo encontral-o, é preciso -mudar-me. - - - - -XI - -O vinho quinado - - -Um dia de manhã, Casimiro fica agradavelmente surprehendido ao receber -a visita do lojista em casa de quem expôz o seu quadrosinho, e que se -approxima d’elle dizendo: - -—Temos comprador para o seu quadro por quatrocentos e cincoenta francos, -quer dal-o? - -O joven pintor receia ter ouvido mal, abre muito os olhos para se -certificar de que é effectivamente o seu negociante de quadros que está -deante d’elle, e exclama: - -—Quatrocentos e cincoenta francos, diz o senhor? é pela minha vista de -Bougival que lhe offerecem esse dinheiro? - -—Sim, se lhe convem, é negocio feito, e pode logo passar por minha casa -para receber o dinheiro. - -—Se me convem! isso deixa-me encantado, enche-me de alegria, nunca teria -ousado pedir tanto. - -—Eu tinha pedido quinhentos francos, e estou certo de que, se o senhor -quizesse esperar, acabariamos por achar quem os desse. - -—Nada, não, não quero esperar, parece-me que fica muito bem pago, demais, -visto que se acha valor aos meus quadros, pintarei outros. - -—E fará muito bem. Trabalhe, sr. Casimiro, dê-se antes áquelle genero -que a outro qualquer. Creio que lhe será isso muito mais rendoso que -o retrato. O senhor é colorista, o que é um dom da natureza; conheço -pintores de talento que não teem o menor sentimento da côr; teem uma -figura para fazer, empregam a primeira coisa que acham no pincel; está -perfeitamente desenhada, é espirituosa de attitude, de maneira, de idéas. -Reina porém em tudo aquillo um tom pardo-escuro que tira ao quadro toda -a graça que deveria ter. A esses, não peçam nunca luz, claridade, sol; -é-lhes impossivel metterem d’isso nos seus quadros. Trabalhe, que nós o -auxiliaremos. - -Assim que o lojista se retira, Casimiro põe-se a pular e a dansar no -quarto. Não é a idéa de que vae receber quatrocentos e cincoenta francos -que o torna tão alegre; graças á generosidade da sua amante, tem tido -muitas vezes quantias maiores á sua disposição; mas é o pensamento de que -esse dinheiro é o fructo do seu trabalho, que elle soube ganhar por si -mesmo, e que quando o receber, poderá mettel-o na algibeira sem córar. - -—Nada faltaria agora á sua felicidade, se a sua vizinha do quinto andar -consentisse em deixal-o fazer-lhe o retrato; não conseguiu ainda vencer a -sua resistencia, e comtudo Rouflard disse-lhe no dia anterior: - -—Está-me parecendo que a menina Lisa não tardará a deixar-se retratar, -porque o medico que tracta da sua velha doente tem vindo vel-as estes -dias; receitou uma nova beberagem, creio que é vinho quinado. Seria -preciso que a boa da velha o tomasse todos os dias, e, com a breca! -aquelle vinho é caro; as garrafas são muito pequenas despejam-se em dois -goles. A pequena levanta-se ainda mais cedo, véla ainda até mais tarde -para arranjar o vinho quinado; mas creio que lhe custa a chegar. Não -faria ella cem vezes melhor em se deixar tomar por modelo? Ainda hontem -lh’o disse. Suba lá o senhor, é agora a occasião, eu conheço as mulheres, -tanto quanto a gente as pode conhecer; mas olhe, com ellas, o que é -preciso é aproveitar a occasião. - -Casimiro tracta logo de pôr em practica o conselho de Rouflard, e sobe -de novo a casa da menina Lisa. Todas as vezes que se dirige alli, sente -uma viva commoção e o seu coração bate mais apressado. Comtudo, tem dito -muitas vezes a si proprio que não devia pensar em fazer a côrte a Lisa; -que aquella pequena era honesta, e que da parte d’elle seria muito mal -feito procurar seduzil-a, perturbar-lhe o socego e fazer-lhe deixar a -verêda da honra, na qual, como diz o poeta: é difficil entrar uma vez -que se esteja fóra. - -Casimiro disse comsigo tudo isto e muitas outras coisas, o que não impede -que, ao olharem para a linda cara d’aquella menina, os seus olhos não -tenham uma expressão que não é de modo algum a da indifferença, e que a -sua voz se não faça mais suave e mais insinuante. - -Pela sua parte, Lisa sente-se inteiramente outra desde que travou -conhecimento com o seu vizinho do terceiro andar. Tem-se mostrado para -com ella tão delicado, e sobretudo tão respeitoso, que a rapariga -pergunta a si mesma por que receia conceder-lhe o favor que elle -solicita. Mas pergunta isto muitas vezes de mais; pensa em Casimiro -todo o dia, não pode já reprimir-se de o fazer, e, apezar de toda a -sua innocencia, uma donzella de dezoito annos adivinha perfeitamente -que é muito perigoso estar sempre a pensar n’um rapaz, occupar-se -constantemente d’elle; e, ainda que esse rapaz lhe não tenha dito uma -unica palavra de amor, ainda que não a veja senão deante de sua avó, a -donzella deve conservar-se acautelada contra o sentimento que se lhe -introduz na alma, e sobretudo não se expôr a amar alguem que não pensa -n’ella senão para lhe tirar o retrato. - -É com receio de tomar demasiado gosto em se achar só com o seu joven -vizinho, que Lisa recusa sempre deixar-se retratar por elle. - -Mas no meio de tudo isto, chegou aquella receita de quina em vinho de -Malaga. Os malditos medicos não se importam com as posses dos seus -doentes; receitam o que é favoravel ao restabelecimento da saude, e tanto -peior para o enfermo se não pode comprar o remedio; elles cumpriram a sua -missão. - -Lisa havia comprado uma garrafinha do vinho receitado; fizera-o beber -á sua velha doente, a quem isso havia dado grandes melhoras. Mas essa -garrafinha fôra bebida em sete dias, e ainda se não tinha comprado outra. - -Este maldito vinho quinado preoccupava agora Lisa quasi tanto como -Casimiro, e, como na vida todas as coisas têm o seu ricochete, ella não -podia deixar de dizer de si para para si: - -—Se eu me resolvesse a servir de modelo, bem depressa teria vinho quinado. - -Rouflard não se enganara pois nas suas conjecturas, e, com effeito, ao -vêr entrar Casimiro no seu aposente, Lisa experimenta um vivo sentimento -de prazer que ella dissimula o melhor que pode, cumprimentando o seu -vizinho com ar amavel e indicando-lhe uma cadeira, porque não pode largar -a obra que está a acabar. - -—Bons dias, minha vizinha, diz Casimiro; aqui tem um homem extremamente -feliz. - -—Realmente, estimo muito; o que lhe succedeu então para lhe causar tanta -alegria? - -O que me acconteceu? Ah! a menina não o comprehende talvez bem, porque é -preciso ser artista para conhecer estas alegrias! Imagine um auctor que -obtem o seu primeiro triumpho no theatro, o compositor que ouve cantar na -rua a musica que fez publicar, emfim o pintor que vende o seu primeiro -quadro, eis os homens mais felizes da terra! pois bem! eu sou d’esse -numero... acabo de vender o meu primeiro quadro. - -—O seu primeiro? como, pois ainda não tinha feito nenhum? - -Esta reflexão tão natural de Lisa faz córar Casimiro, que comprehende -que a sua joven vizinha deve perguntar lá de si para si em que tem elle -empregado o seu tempo, para não ter feito, na sua edade, senão um quadro. -O rapaz tracta de sair do embaraço, respondendo: - -—Não menina, é verdade; comecei muito tarde a pintar a paizagem, eu -preferi o retrato, agradava-me isso mais. - -—E agora renuncia o retrato para se dar á paizagem? - -—Oh! não! renunciar ao retrato! nunca! uma coisa não impede a outra! Mas -eu estava tão contente esta manhã com a venda do meu quadro, que não pude -resistir ao desejo de lhe dar parte do meu bom succedimento... e depois, -quando se está em maré de felicidade, dizem que sempre nos chegam muitas; -então, disse commigo: Vamos vêr a minha linda vizinha; quem sabe se ella -hoje quererá tambem consentir em deixar-se retratar, se não abrandarei a -sua resistencia!... - -—Isso fazia-o então ainda muito feliz, se eu lhe deixasse fazer o meu -retrato? - -—Ah! seria o auge da minha felicidade? Empregaria todos os meus cuidados, -todo o meu talento n’esse trabalho! e estou bem certo de que havia de ser -bem succedido, que faria uma cabeça lindissima. - -—Mas esse retrato... vendia-o depois? - -—Vender o seu retrato! oh! nunca, minha vizinha, nunca! conserval-o-hia -toda a minha vida... mas faria uma copia para lh’a offerecer, ou, se a -menina o preferisse, dar-lhe-hia o original e ficaria eu só com a copia. - -—Mas o que fará o senhor do meu retrato em sua casa! ha de incommodal-o... - -—Incommodar-me! pelo contrario, será o mais bello ornato do meu -_atelier_, olharei para elle todos os dias, não me cansarei nunca de o -contemplar. Ah! minha vizinha, consinta, por obsequio, diga que consente. - -Lisa ainda hesitava, porque os olhos de Casimiro tinham tomado uma -expressão que lhe causava uma commoção vivissima; mas n’este momento a -enferma, que estava adormecida, accorda, dizendo: - -—Lisa, dá-me uma gota d’esse vinho que me faz tanto bem. - -—Sim, avósinha, d’aqui a um instante, já o não ha em casa, eu o vou -buscar... - -Depois, voltando-se para Casimiro, Lisa diz-lhe em voz baixa: - -—Pois bem! consinto, começaremos ámanhã. - -—Oh! como a menina é cheia de bondade! e quão feliz eu sou! Corro então -á pharmacia a comprar-lhe o vinho quinado. - -—Não, isso não, irei eu mesma. - -—A menina não pode deixar a sua doente, permitta-me fazer-lhe este -pequeno serviço, eu sei que é vinho de Malaga. - -—Oh! sr. Casimiro... por quem é... - -—Deixe-me por minha vez ser-lhe agradavel, a menina consente em me servir -de modelo... estou tão contente! Corro a buscar o vinho, volto com elle -n’um momento. - -E sem attender mais á rapariga, Casimiro sae apressadamente; desce a -escada a quatro e quatro, por pouco que não deita ao chão o menino Proh -que procurava pôr-se a cavallo na balaustrada do patamar, passa como uma -frecha por deante do porteiro, corre á botica mais proxima, pede vinho -de Malaga quinado, compra tres garrafas, mette uma em cada um dos bolsos -lateraes, esconde a terceira debaixo de paletot e volta a casa de Lisa -com a mesma pressa com que de lá saíu. - -—Valha-me Deus!... então o senhor traz tres garrafas! exclama a rapariga -vendo Casimiro tiral-as dos bolsos. - -—Sim, minha vizinha, terá assim para muito tempo sem se incommodar. - -—Mas não era preciso, isto custa tres francos e dez soldos cada garrafa... - -—Com duas sessões ficam as nossas contas saldadas. - -—Ah! senhor, não é possivel! - -—Perdão, minha vizinha, juro-lhe que a um modelo como a menina não se -paga menos, e que lhe ficarei ainda muito obrigado. Mas tenha a bondade -de me dizer a que hora quer que eu venha para a sessão. - -—É sempre de manhã cedo que minha avó descança melhor e não tem precisão -de mim; se o não contrariasse vir ás oito horas... mas é talvez cedo de -mais para o senhor? - -—Não! pelo contrario, essa hora convem-me muito, trabalharemos das oito -ás dez, se me fizer esse obsequio, porque eu não a quero fatigar, e, -duas horas, isso é talvez já demasiado para a menina... - -—Oh! não, senhor! demais, o senhor disse-me que eu poderia coser ao mesmo -tempo... - -—Sim, sim, fará tudo quanto quizer; em eu podendo olhar para a menina, é -quanto basta. - -—Eu pensava que o modelo era tambem obrigado a olhar para o pintor! - -—Algumas vezes, de certo, é isso melhor; mas nós temos tempo, e quando -fôr absolutamente necessario, então a menina terá a bondade de levantar -por um momento os olhos de cima do seu trabalho. Assim, está ajustado, -ámanhã ás oito horas cá me tem a minha vizinha com toda a minha bagagem... - -—Estarei prompta. - -Casimiro retira-se, e Lisa approxima-se da velha doente, dizendo-lhe: - -—Avósinha, aqui está o vinho quinado! - - - - -XII - -A primeira sessão - - -Casimiro está encantado com o seu dia, e assim que sae de casa do seu -novo modelo, dirige-se á morada de Ambrosina, á qual quer participar a -venda do seu quadro. Não está bem certo se ella compartilhará da sua -alegria, mas estima muito que saiba que elle pelo seu trabalho pode emfim -prescindir dos soccorros de outrem. - -Emquanto ao que acaba de obter de Lisa, terá o cuidado de não dizer uma -unica palavra á sua amante, da qual conhece os excessivos zelos; bem pelo -contrario, espera que ella ignorará as suas relações com a sua joven -vizinha; por isso ficou muito contente quando esta lhe propoz dar-lhe -sessão ás oito horas da manhã; das oito ás dez não receia receber a -visita de Ambrosina, que se levanta habitualmente muito tarde, e se por -acaso ella viesse a sua casa antes que elle tivesse descido do quinto -andar, sempre poderia dizer que tinha ido almoçar ao café. - -Ao sair de casa, Casimiro encontra-se com Rouflard; o inquilino da -agua-furtada nota o ar alegre e triumphante do joven pintor, e exclama: - -—Aposto que se arranjou a coisa! - -—É verdade, Rouflard, sim, a menina Lisa consente em me deixar fazer o -estudo da sua cabeça, ah! estou muito contente! - -—Eu bem sabia que haviamos de acabar por isso, mas isto de mulheres, é -preciso sempre que se façam rogar um pouco. - -—Ámanhã pela manhã ás oito horas subo a casa d’ella, com a palheta e os -pinceis, e temos a primeira sessão... - -—Quando qualquer mulher dá uma sessão, dá ao depois tantas quantas se -querem... isso vae mesmo por si, é como o primeiro passo. - -—Mas, Rouflard, isto fica aqui entre nós; quando eu estiver trabalhando -com o senhor em minha casa, se vier aquella senhora, bem sabe, aquella -morena a quem trato simplesmente por Ambrosina... e que já aqui tem vindo -muitas vezes... - -—Sim, sim, a senhora primeira, a sultana favorita, percebo! - -—Pois bem! escuso de advertir-lhe que é preciso não dizer palavra ácerca -das minhas visitas a casa de Lisa e do retrato que vou fazer... - -—Ora essa! como, meu artista! é a mim que o senhor diz isso, a mim, um -veterano nas lides amorosas! parece-me todavia que não tenho ares de -galucho! eu, que ficaria afflicto se causasse o menor dissabor á minha -joven bemfeitora! - -—Tem razão, eu devia louvar-me no senhor. - -—Emquanto a Chausson, o meu antigo creado, elle não é de todo máu, se -quer eu lhe falarei. - -—Não, não é preciso, isso fica por minha conta... - -—Ah! é antes dos Prohs que se deve desconfiar; são uns tagarellas, uns -palradores, uns mexeriqueiros! que ficam encantados quando sabem o que -se passa em casa dos vizinhos, e acham meio de fazer d’um argueiro um -cavalleiro! - -—Terei cuidado de que elles não saibam nada das minhas visitas a casa de -Lisa, e vou tratar de acabar quanto antes o retrato da sr.ª Proh, para -que ella não venha mais a minha casa. - -—Ahi está um retrato que eu não queria ter nas minhas _inglezas_, a não -ser como laxante... - -—Rouflard, vendi a minha pequena paizagem, aqui tem, tome lá isto para se -divertir, sou hoje feliz, quero que toda a gente esteja satisfeita. - -—Isto é que é falar como Buckingam obrava, o senhor tinha nascido para -semear perolas no seu caminho e eu para as apanhar. - -Casimiro acha a sua amante acabando de arranjar-se e dispondo-se para ir -a sua casa. - -Até que emfim! é uma felicidade vel-o! exclama Ambrosina, o senhor vem -cada vez mais tarde; d’aqui a pouco, sem duvida, deixa de vir de todo. - -—Minha querida amiga, desculpe-me, tenho hoje tido muitas occupações. - -—Esteve a trabalhar com o borrachão do seu modelo... como é -interessante!... - -—Não, hoje não trabalhei com Rouflard; recebi a visita do logista que me -vende os quadros; dê-me os parabens, está vendida a minha paizagem. - -Ambrosina franze o sobr’olho e morde os beiços, respondendo ao mesmo -tempo: - -—Ah! está vendida a sua paizagem... - -—Sim, e muito bem vendida, por muito mais do que eu teria ousado pedir. - -—O senhor é demasiadamente modesto, e faz mal em ser assim; nas artes, -a modestia é uma tolice, porque é um merecimento que ninguem leva em -conta ao artista, e que muitas vezes o impede de chegar á celebridade. -Porquanto lhe pagaram o seu quadro? - -—Quatrocentos e cincoenta francos. - -—Ah! que miseria! e é isso que o senhor chama bem vendido! pensava que ia -dizer-me dois ou tres mil francos. - -—Ah! está zombando commigo! bem sabe que aquella pequena paizagem não -valia isso; para uma estreia é um preço muito bonito; isto anima-me, e -quero trabalhar de modo que possa vender mais caro os quadros que fizer. - -—Ah! o senhor tenciona fazer outros quadros de _genero_; então renuncia -ao retrato? Provavelmente não acabará o meu, pelo qual não mostrava -nenhum enthusiasmo. - -—Como é injusta! sou sempre eu que lhe peço para se pôr em attitude; mas -a senhora, em estando em posição um quarto de hora enfada-se, já não pode -estar quieta no mesmo sitio. - -—Ah! é que me faz mal aos nervos! Vamos, a sem razão está da minha parte, -convenho. D’aqui em deante serei mais razoavel, irei metter-me em sua -casa logo pela manhã, e não arredarei pé do seu _atelier_, assim, poderá -fazer-me estar em posição todo o tempo que quizer. - -D’esta vez, é Casimiro que morde os labios e franze ligeiramente as -sobrancelhas. É coisa para se notar que, n’um colloquio de duas pessoas, -fazem-se muitissimas vezes d’estas mudanças physionomicas, que dizem o -que a bocca não diz, ou que significam inteiramente o contrario do que -ella diz. Porque, por mais que se queira dissimular o pensamento, ha -sempre alguma coisa que transparece n’este semblante que a natureza nos -deu, e que é por vezes rebelde ás transformações que lhe queremos impôr. - -Ambrosina deseja ir passear ao campo. Casimiro accede a esse desejo com -alegria; como trouxe comsigo o seu livro de lembranças, tomará notas, -esboçará alguns pontos de vista. - -—Se nós fossemos á Suissa? diz a bella morena; é lá que o meu amigo -acharia vistas admiraveis, que poderia fazer ampla provisão de bosquejos -para os seus quadros de _genero_. - -Mas o joven pintor não está por forma alguma disposto a viajar. - -—Sem ir tão longe, diz elle, ha nos arredores de Paris sitios lindos, -vistas encantadoras; mas ninguem pensa em pintal-as, porque estão ás -portas de Paris, e não se liga merecimento senão ao que está longe de -nós. Eu, minha querida amiga, não vejo razão para se fazer pouco caso -d’uma coisa que nós podemos arranjar sem incommodo e sem despeza. Assim, -por exemplo, muito perto d’aqui, por detraz do forte de Romainville, -n’aquelle sitio que era n’outro tempo o bosque, ha outeiros d’onde a -vista é magnifica, tem a gente deante de si uma extensão immensa de -terreno; podem os olhos abranger mais de doze leguas em redor. Em baixo -fica Patim com os seus fornos de cal, que tornam a paizagem pittoresca; -depois está o canal que corta o caminho, e um pouco mais adiante S. -Diniz, Montmorency, Pierrefitte. Á esquerda vê-se Montmartre, o Monte -Valeriano, e Saint-Cloud, que se desenha no horizonte. E tudo isto -entremeado de bosquesinhos, de bonitas casas de campo, de fabricas. -Affianço-lhe que é um panorama admiravel. Quer ir vel-o? - -A sr.ª Montémolly deixa-se conduzir ao que era n’outro tempo o bosque de -Romainville, e entretem-se a colher algumas flores campestres, emquanto -Casimiro está sentado na relva esboçando á pressa algumas vistas; mas as -flôres são raras no terreno barrento, que é bom para fabricar louça, mas -não para fazer brotar as rosas. Demais, Ambrosina é sempre a mulher da -moda, e portanto leva d’alli o seu companheiro dizendo-lhe: - -—Meu riquinho, por mais que o senhor diga, as suas lindas vistas de -Romainville não valem a cascata e o lago do Bosque de Bolonha. - -—Para a senhora, comprehendo isso; perdõe-me pois, nunca mais a trarei -para este lado, é preciso ser pintor para o apreciar. - -—Meu amigo, é mister procurarmos a nossa _victoria_, que não poude -seguir-nos n’estes caminhos cheios de barrancos, onde a gente a cada -instante corre risco de cair n’um buraco, ou de se enterrar na areia! -Vamos jantar ao _Ledoyen_ nos Campos-Elyseos, isso ha de mudar-nos -completamente... - -—Ahi está o que são as mulheres! e falava a senhora em ir á Suissa! lá é -que ha caminhos escarpados, difficeis de trepar! - -—Sim, mas está a gente na Suissa, inscreve o seu nome no registo das -estalagens; e vê-se alli que os srs. Fulanos de tal passaram por aquelle -sitio, e quizeram trepar o monte Righi. - -Este dia passa mui lentamente para o joven pintor, que almeja pelo -momento em que poderá fazer o retrato de Lisa. E, posto que faça todo o -possivel para ser com Ambrosina tão amavel, tão alegre como de costume, -tem por vezes momentos de preoccupação, ou de distracção, que não escapam -á sua zelosa amante; esta diz-lhe então de subito: - -—Em que é que está pensando? - -—Eu... em nada... estou-a ouvindo. - -—Está-me ouvindo? O que é que eu acabo de dizer? - -—O que acaba de dizer-me? já não sei o que foi, era então alguma coisa -muito interessante? - -—Bem vê que não me estava ouvindo. Ah! olhe, Casimiro, eu não sei o que -lhe aconteceu, mas, com toda a certeza, o senhor tem alguma coisa! anda -pensativo, responde fóra de proposito ao que lhe digo. Oh! n’isto andam -amoricos. - -—É que vendi o meu quadro, e ando a pensar n’aquelle que hei de fazer -agora, aqui está o que é. - -—O senhor não fala verdade! não é n’isso que pensa. Oh! eu conheço bem o -mundo! não me enganam assim! - -—Tanto peior para a senhora, porque as pessoas mais felizes são aquellas -que se deixam enganar mais facilmente. - -—É possivel, mas não quero essa felicidade. - -Emfim, passa-se o dia e a noite tambem; Casimiro levanta-se muito cedo, -escolhe a téla, arranja a palheta, e prepara um cavallete que já lhe não -servia e que elle tencionava deixar em casa da sua vizinha, para não ter -o trabalho de o levar e trazer todos os dias. Olha a cada instante para o -relogio, receia ser indiscreto chegando antes da hora que se ajustou. - -Dão oito horas: Casimiro vae abrir a porta da escada, certifica-se de que -não está ainda alli ninguem, depois vae buscar todos os objectos de que -precisa, e sobe lentamente os dois andares. - -A porta de Lisa tem a chave na fechadura; mas vem ella pessoalmente -abril-a, porque ouviu subir e desconfiou logo que é a pessoa por quem -espera. - -—Oh! meu Deus! como o senhor vem carregado! exclama Lisa querendo -desembaraçar Casimiro do seu cavallete. - -—Tudo isto é muito leve, menina, não se incommode. Posso entrar? - -—De certo; minha avó está a dormir, creio eu, mas, ainda mesmo que -acordasse, eu disse-lhe hontem que o senhor havia de vir aqui fazer o meu -retrato, e ella ficou muito contente. Disse-me assim: «Has de collocal-o -deante de mim para que eu te veja sempre minha filha.» Ah! é que ella -quer-me muito, a minha avósinha. - -—Bem vê pois a minha querida vizinha que, consentindo em se deixar -retratar, já fez duas pessoas felizes! - -—É verdade. Se eu soubesse que era assim, teria accedido mais cedo. Creio -que a avósinha está descançando; não faremos bulha. - -—Eu não tenho necessidade nenhuma de fazer bulha quando trabalho. Olhe, -aqui tem o cavallete armado, estou ás suas ordens. - -—Mas o senhor é que manda; como quer que eu me colloque? - -—Como costuma estar; sente-se e pegue no seu trabalho. - -—O quê! devéras posso trabalhar! - -—Sem duvida, principalmente durante a primeira sessão, em que eu não -copio senão o conjuncto da cabeça. - -—E não tenho precisão de olhar para o senhor? - -—Sim, algumas vezes, mas não sempre. - -Põem-se ambos ao trabalho. Lisa faz bainhas, o que não obriga a muita -attenção. De vez em quando Casimiro diz-lhe: - -—Olhe para mim... - -O que ella se apressa a fazer; mas baixa bem depressa os olhos, porque -encontra os do joven pintor que lhe diz então: - -—Mas a menina não olha par mim bastante tempo, mal pude apanhar-lhe a -_nuance_ dos olhos. - -—É que o senhor encara-me tanto, que me intimida; isso perturba-me. - -—É preciso que eu olhe para a menina com attenção para reproduzir as suas -feições, isso não deve intinmidar-a; não veja em mim senão um artista, ou -antes um operario que faz o seu officio, e isso não a perturbará. - -—Ah! mas o senhor não é um operario! - -—Ora adeus, minha vizinha, todos nós o somos, cada um no seu genero; -pois quem trabalha para viver não é operario? Ha porém, dirá a menina, -profissões que exigem mais estudos, mais intelligencia que outras; mas -esteja persuadida de que o poeta ou o escriptor que trabalha com o seu -pensamento, que tira do cerebro os seus materiaes, tem ás vezes muito -mais fadiga, muito maior lida em fazer a sua obra do que o marceneiro em -aplainar as suas tábuas. Olhe para mim por um pouco. - -Lisa ergue os olhos, e d’esta vez torna a baixal-os menos depressa -encontrando os de Casimiro. Este gosta de fazer conversar o seu modelo, -o que não receiam fazer os pintores de grande talento, porque apanham -melhor a expressão da nossa physionomia emquanto falamos, do que o -fazem aquelles que nos prohibem de nos mexermos, o que nos dá então um -ar aborrecido, ou contrafeito, ou affectado; eu poderia mesmo dizer -apalermado. - -Lisa estima bastante poder conversar; em vida da sua ama, quando esta -tinha uma venda de leite e fazia muito bom negocio, levou tres vezes a -pequena ao theatro, e esta lembra-se sempre d’isso, porque gostou muito -do espectaculo. Este divertimento e a leitura são os unicos que ella -deseja; a dansa, os passeios, as festas campestres teem para ella poucos -attractivos. Antes de cair doente, a boa da avó queria que a sua Lisa -procurasse estas distracções; mas, em vez de ir vêr esses bailes que -ha no termo de Paris com o falso nome de campestres, Lisa levava a sua -companheira para um passeio pouco frequentado, para uma vereda solitaria, -coberta de sombra, e alli, sentando-se na relva, lia um romance que -tinha alugado economizando alguns soldos na despeza do sustento. Lia em -voz alta; a velha adormecia, mas Lisa continuava a lêr, e ambas estavam -contentes. - -—Se a minha vizinha gosta de lêr, diz Casimiro, posso emprestar-lhe -alguns livros; tenho todos os romances de Alexandre Dumas, e estou bem -certo de que lhe hão de agradar muito. - -—Ah! agradeço a sua bondade; mas, desde que a avó caíu doente, não tenho -já tempo de lêr, vale mais trabalhar. - -—É mister todavia ter alguns instantes de repouso. - -—O trabalho que eu faço não cansa. - -Na primeira sessão, Casimiro não quer demorar muito tempo o seu modelo; -levanta-se pois, dizendo: - -—Basta por hoje; obrigado, minha vizinha. - -—Ah! está acabado? - -—Acabado por esta sessão; permitte-me que deixe aqui o cavallete? - -—Oh! certamente. Ah! leva o quadro; mas o senhor não precisa d’elle sem -mim! - -—Perdão, ha coisas em que posso trabalhar sem ter o modelo á vista. - -—Deixa-me ver? - -—Ainda não, peço-lhe eu. Está muito pouco adeantado; em tres ou quatro -sessões, poderá ver á sua vontade. São dez horas, vou almoçar. - -—Já dez horas! é singular como o tempo passa depressa quando se está -servindo de modelo. O senhor virá ámanhã? - -—De certo, se isto não a contraria. - -—Oh! de modo algum. - -A pequena ia dizer: _pelo contrario_, mas parou fazendo-se muito córada, -e limita-se a murmurar: - -—Então, até ámanhã. - -No dia seguinte, Casimiro não falta a dirigir-se a casa do seu encantador -modelo, que o vê agora chegar com prazer, e, sem ser _coquette_, tem -todavia mais esmero no seu penteado, no arranjo dos seus cabellos; -o joven pintor repara n’isto, não diz nada, mas fica secretamente -lisonjeado, porque ha uma multidão de pequenas coisas que fazem presagiar -as grandes. - -Trabalha-se, e conversa-se a meia voz; é quasi sempre de manhã que a avó -descança melhor. Lisa levanta mais vezes os olhos para o seu pintor e -sustenta um pouco melhor o fogo dos seus olhares; algumas vezes, comtudo, -um vivo rubor lhe sobe á cara, emquanto Casimiro murmura: - -—Ah! como a menina se colloca bem! que lindo retrato eu vou fazer, sim, -ha de ficar muito parecido; tenho as suas feições tão bem gravadas na -memoria! - -—Então, já não é preciso que eu olhe para o senhor? - -—Oh! sim! sim! eu nunca a vejo bastante. - -—Que felicidade saber pintar! - -—Sim, tambem acho isso agora, e ainda ha pouco tempo nem o suspeitava! -Ah! minha vizinha, saiba que se eu chegar a adquirir algum talento, é á -menina que o deverei. - -—A mim! ora essa! não foi olhando para mim que o senhor fez essa linda -paizagem que vendeu. - -—Não, mas foi vendo-a trabalhar sem descanço, n’este modesto aposento, -sabendo que achava meio de prover ás necessidades de sua velha avô -paralytica, que eu tive vergonha da minha existencia, da minha preguiça, -que comprehendi que havia de lamentar um dia o ter empregado tão mal a -minha mocidade e emfim que tomei a resolução de mudar de vida. Bem vê -pois que, se eu obtiver um dia talento, é á menina que o deverei. - -Lisa não responde nada, porque está demasiadamente commovida, mas o seu -olhar fita-se em Casimiro, e tem uma expressão tão terna, tão meiga, que -d’esta vez é o pintor que deixa de trabalhar. - -Estes colloquios confidenciaes renovam-se todos os dias e tornam mais -intimas as relações que existem entre o pintor e o seu modelo. Pouco a -pouco, uma affectuosa confiança substitue a fria polidez. Conversam mais, -fazem as sessões maiores, separam-se a custo, porque teem sempre alguma -coisa para se dizerem; acham-se tão bem juntos, que Lisa impacienta-se -e abre a porta quando Casimiro tarda alguns minutos. E, comtudo, nunca -uma palavra de amor foi pronunciada n’estas sessões de todas as manhãs; -mas ha coisas que a gente não tem precisão de dizer para se fazer -comprehender, e o amor é uma d’essas coisas. - -O retrato adeantava-se; mas, como Casimiro queria fazer durar muito as -sessões, achava sempre alguma coisa para pintar de novo, para retocar. -Lisa não se queixava d’isso, pelo contrario, quando o seu pintor dizia: -«Basta por hoje,» acontecia-lhe ás vezes exclamar: - -—Já! ah! parece-me que não trabalhámos muito esta manhã! - -Então Casimiro sorria-se, e continuavam a conversar. A rapariga examinára -o retrato, e pulára de prazer vendo-se tão bonita. Tinha exclamado: - -—Ah! o senhor lisonjeia-me; eu não sou assim!... - -Não se atrevera a dizer: «Tão bonita!» Mas as mulheres param muitas vezes -no momento de dizerem o verdadeiro fundo do seu pensamento. - - - - -XIII - -Um rapazito endiabrado - - -O retrato de Lisa fazia muitas vezes descuidar o de Ambrosina, e não era -só em pintura que esta dama notava que se descuidavam d’ella. Casimiro ia -a sua casa cada dia mais tarde, e, quando ella lhe lançava isso em rosto, -elle achava por desculpa a nova paizagem que estava fazendo, as sessões -que dava á sr.ª Proh ou a Rouflard e Ambrosina exclamava: - -—Mas não é possivel que o senhor não tenha acabado essas cabeças! E -quando eu lhe peço para termos sessão, diz-me que não me quer fatigar. O -senhor tem alguns amoricos, alguma nova ligação que arranjou; mas tome -cuidado! eu o saberei. - -Um dia pela manhã, a sr.ª Montémolly, sem ter prevenido o amante da -sua visita, levanta-se muito mais cedo do que costuma, faz-se vestir á -pressa por Adriana, e chega a casa de Casimiro pelas dez horas. Perguntou -ao porteiro se o rapaz tinha saído; Chausson respondeu que o não vira -descer. Ella sobe os tres andares, vê a chave na porta da habitação do -pintor, e entra sem bater, sem tocar a campainha, dizendo comsigo: - -—Vou surprehendel-o e saber emfim em que trabalha tão assiduamente. - -Ambrosina entra na saleta que serve de _atelier_ a Casimiro, e não acha -alli senão Rouflard, que está ensaiando posições deante d’um espelho. - -—O sr. Casimiro não está aqui? diz Ambrosina, correndo os olhos pelo -_atelier_. - -Rouflard, que reconheceu a dama e adivinha a situação, apressa-se a -cortejar profundamente, respondendo: - -—Não, minha senhora, o sr. Dernold saíu. - -Apezar d’esta resposta, Ambrosina vae vêr ao quarto da cama, depois -volta, dizendo: - -—É verdade, não está, effectivamente. - -—A senhora verificou que eu não menti, murmura Rouflard com um sorriso -ligeiramente ironico. - -—Mas onde está? voltará breve? - -—Oh! não creio, minha senhora; o sr. Dernold disse: «Vou almoçar, e -depois irei dar uma volta pelo Louvre, onde tenho que fazer uns estudos.» - -—É singular, o porteiro disse-me que Casimiro não tinha saído. - -—Oh! minha senhora! esse miseravel Chausson nunca vê o que se passa; -fazia-me muitas d’essas quando era meu creado. Eu dizia-lhe: «Põe-te de -sentinella, não deixes entrar os meus crédores, não quero receber senão -senhoras...» e o imbecil fazia exactamente o contrario. - -—Mas o que faz o senhor aqui? - -—Eu, minha senhora, tinha vindo agradecer ao meu artista, que teve a -bondade de se occupar de mim, e de me arranjar collocação em casa d’um -pintor seu amigo, um pintor de historia; devo fazer um romano. E o sr. -Casimiro disse-me: «Arranje um penteado á romana, ponha-se deante do -espelho, ate uma fita vermelha á roda da cabeça, eu lhe direi depois se -tem um falso ar de Romulo...» porque parece que é um Romulo que devo -representar. - -Ambrosina não parece dar muito credito a esta historia romana. Passeia -pelo _atelier_, pára por momentos, parece reflectir, e diz: - -—Não sei se devo esperar por elle. - -—A senhora tem para isso todo o direito, certamente; mas temo que espere -por muito tempo. Quando um pintor vae ao Louvre, nunca se sabe quando de -lá sairá. - -—O sr. Rouflard vem aqui muito amiude? - -—Sim, minha senhora, estou sempre ás ordens do meu artista quando elle -tem precisão de mim. - -—E vê vir aqui muitas mulheres? não me engane... - -[Illustration: Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...] - -—Minha senhora, posso affiançar-lhe que nunca vi aqui senão a senhora e -a vizinha alli defronte; mas áquella não chamo eu uma mulher, o marido -alcunhou-a de girafa, e fez muito bem. - -—Vamos, acredito no senhor, e vou-me embora, terá a bondade de lhe dizer -que vim aqui... e que o espero em minha casa, não é verdade? - -—Executarei as suas ordens, minha senhora. - -Ambrosina retira-se, e Rouflard acompanha-a até ao patamar; mas aqui -encontram-se de cara com a sr.ª Proh e o filho, o joven Fonfonso, que -teima em querer montar-se na balaustrada. A amante de Casimiro tinha -encontrado duas vezes em casa d’elle esta senhora estando em sessão para -o retrato, conhecem-se pois um pouco. Cumprimemtam-se e trocam algumas -phrases banaes. - -—Minha senhora, tenho a honra de a cumprimentar; a sua saude parece-me -sempre perfeita?... - -—É? optima, muito agradecida, minha senhora. Ia a casa do sr. Casimiro? - -—Não, minha senhora, n’este momento não ia lá; vou comprar cabeça de -vitella para meu marido, que não gosta d’outra coisa para o almoço. É um -habito em que se pôz. Oh! meu marido é devéras insupportavel com a sua -cabeça de vitella! A senhora vem de casa do meu vizinho, do sr. Casimiro? - -—Sim, tencionava dar-lhe sessão para o meu retrato. - -—O meu está acabado, perfeitamente acabado; estou muito satisfeita com -elle, ainda que toda a gente sustenta que me pareço com a sr.ª Saqui, que -Deus haja, nos seus bons tempos; parece que era uma bonita mulher. E a -senhora já acabou a sua sessão? - -—Hoje não poude ser, o sr. Casimiro não está em casa, isto contraria-me, -porque tinha sido hoje mais madrugadora do que costumo ser. - -—Ah! o meu vizinho já saiu... - -—Não! não! não! não saiu. Oh! oh! oh! hi! hi! hi! grita o Fonfonsinho, -pendurando-se da balaustrada. - -—Fonfonso, não te balouces assim da balaustrada, que podes cair. - -—Mas quero eu balouçar-me! - -—Este pequeno é incorrigivel! - -—Perdão, minha senhora, mas parece-me que seu filho disse que o sr. -Casimiro não tinha saído. - -—O pequeno sabe lá o que diz, minha senhora! - -—Sim, sim, eu bem sei onde está o pintor, onde elle vae todas as manhãs... - -—Aonde vae todas as manhãs, mas então, Fonfonso, bem vês que o sr. -Casimiro saiu. - -—Não, porque elle vae lá acima, a casa da menina Lisa, para onde levou o -cavallete e as tintas para estar a pintar como em sua casa. Hi! hi! hi! -oh! oh! oh! - -Ambrosina muda de côr, e a sr.ª Proh escancara os olhos, exclamando: - -—O quê! o meu vizinho vae pintar em casa da pequena do quinto andar! -palavra de honra, é a primeira vez que tal sei; mas este pequeno é -extraordinario, minha senhora, sabe tudo, vê tudo o que se passa, não lhe -escapa nada! - -—Quem será essa menina Lisa que recebe o sr. Casimiro? - -—É uma rapariga que vive com sua avó; a pobre velha está doente, meio -paralytica; Lisa trabalha para a sustentar. Oh! é uma donzella honesta, -muito capaz... pelo menos assim o creio. - -—É bonita? - -—Hum? bem sabe que isso depende do gosto, uma carinha que não é de todo -desengraçada... - -—Não! não! não! Rouflard diz que a menina Lisa é um anjo. Oh! oh! oh! ah! -ah! ah! - -—Ah! o Rouflard conhece-a, perdão, minha senhora, mas como é -absolutamente preciso que eu fale ao Casimiro, tomo a liberdade de o ir -procurar a casa d’essa menina. Não me disse que é no quinto andar? - -—Sim, a porta á direita... - -—A chave está sempre na fechadura. Hu! hu! hu!... - -Ambrosina não quer ouvir mais, e galga os andares como um valente soldado -sobe ao assalto. Chega acima n’um instante; acha effectivamente a chave -na porta á direita, abre de repente, e dá com a menina Lisa sentada -defronte de Casimiro, com a sua costura na mão, mas sem trabalhar; pela -sua parte, o joven pintor está ao seu cavallete, com a palheta e o pincel -nas mãos, mas sem pintar. Á vista d’esta pessoa que abriu a porta e se -conserva immovel á entrada do quarto, o artista e o seu modelo ficam -espantados. Mas Casimiro é o mais impressionado, porque Lisa recobra logo -a sua placidez e diz a Ambrosina: - -—É sem duvida a mim que a senhora procura, e é para me dar alguma obra a -fazer? tenha a bondade de entrar... - -—Não, responde Ambrosina com um tom arrogante, não é a menina quem eu -procuro, não é pela menina que estou aqui, é este senhor quem venho -procurar, este senhor que já não tem um momento para me dedicar, que não -acaba o meu retrato, porque está fazendo o da menina. Aqui está então a -causa de todas as suas mentiras, da sua mudança de procedimento; eu bem -sabia que n’isto andavam amoricos! é para estar com esta menina que já -não tem tempo de me ir vêr. Ah! como os homens são falsos! - -A voz da mulher ciumenta torna-se estrepitosa, os seus olhares lançam -chispas. Lisa está toda a tremer, grossas lagrimas lhe obscurecem os -olhos, depois uma voz tremula e quebrada sae do leito, e diz: - -—Lisa! o que é isso? pareceu-me ouvir gritar; estás altercando com alguem? - -—Não, avósinha, não, não é nada... - -E a donzella deita para Ambrosina uns olhares supplicantes, como para lhe -dizer: - -—Por quem é, não fale tão alto! - -Mas já Casimiro se tem levantado, pegando na palheta, no quadro e nos -pinceis, e dirige-se para a porta dizendo á sr.ª Montémolly: - -—Faça favor de sair commigo, minha senhora, para pouparmos a esta menina -uma bulha e uma scena pouco decorosa, faço isto, não pela senhora, mas -em attenção a ella. Menina Lisa, desculpe-me de ter sido a causa d’este -barulho, que acordou a sua avó, e pode ficar certa de que não tornará a -acontecer similhante coisa. - -Casimiro sae immediatamente para o patamar; Ambrosina, furiosa de ciumes, -hesita em saír, e olha para Lisa, que parece sempre pedir-lhe que se -cale, mostrando-lhe o leito da enferma. A zelosa dama decide-se emfim, -sae do quarto, depois de ter lançado sobre a rapariga um olhar ameaçador, -depois desce atraz de Casimiro, que entra para sua casa. Ella entra -tambem, e deita um olhar furioso sobre Rouflard, que se afasta encolhendo -os hombros e olha para o pintor como para lhe dizer: - -—Não é culpa minha; o senhor é que não teve a prudencia necessaria. - -Ambrosina entra no _atelier_, e atira comsigo para uma poltrona, -exclamando: - -—Ha muito tempo que duram estes amores, senhor, e que esta rapariga é sua -amante? - -Casimiro, que recobrou todo o seu socego, põe-se a trabalhar na sua -obrasinha, e responde: - -—Minha senhora, o ciume cega-a e faz-lhe dizer coisas indignas d’uma -mulher que se preza. Estou fazendo o retrato d’uma menina que mora no meu -predio; parece-me que isto é uma coisa que me é permittida, pois que o -meu officio é tirar retratos. Achei alli uma cabeça encantadora, senti -o desejo de a reproduzir na tela, tudo isto é muito natural. Propuz á -menina Lisa que me servisse de modelo; ella a principio recusou-se por -muito tempo, porque não quer deixar a avó um unico instante. Eu disse-lhe -que iria trabalhar em sua casa, e ella recusava-se ainda; mas ganha -apenas com que prover á sua existencia, e a doença de sua avó exige por -vezes gastos inesperados; fiz comprehender a esta menina que, consentindo -em me servir de modelo melhoraria a sua situação, e ella finalmente -cedeu. A senhora pergunta-me desde quando sou amante d’essa pobre menina. -Ah! se a conhecesse, não teria similhante pensamento! ella é recatada, -honesta, não pensa senão no seu trabalho, em alliviar e consolar a sua -velha doente, e eu, deante d’um procedimento tão digno, tão puro, -ter-me-hia envergonhado de lhe dirigir uma unica palavra de amor. - -A sr.ª Montémolly, que tem escutado tudo isto com impaciencia batendo -muitas vezes com o pé no sobrado, assim que Casimiro acabou de falar, -exclama: - -—O senhor pensa que vou dar credito ás suas historias, aos seus contos! -ao que parece, tem-me por tola! O senhor não tem dito uma palavra de amor -a essa rapariga? O que estava então a fazer quando eu entrei? não estavam -em atitude de quem trabalha, nem o senhor nem o seu modelo, olhavam um -para o outro muito attentos, como se quizessem comer-se com os olhos; não -ha necessidade de se falar de amor, quando se olha assim para alguem; os -olhos dizem o bastante! e se o senhor não tivesse pensado em vir a ser -amante d’essa rapariga, acaso teria feito um mysterio d’esse retrato, das -suas idas ao quinto andar? E que tenciona então fazer do retrato d’essa -menina? - -—É um estudo, pol-o-hei no meu _atelier_. - -—Pois saiba que o hei-de de fazer em tiras! E esse miseravel Rouflard, a -quem o senhor tinha ensinado o recado, e que me disse que tinha ido ao -Louvre! Estavam todos combinados para zombarem de mim!... - -—Eu não ensinei recado nenhum a Rouflard, elle disse-lhe o que quiz. - -—Bom! basta! para que não torne mais a acontecer similhante coisa, o -senhor vai já deixar esta casa e não terá o capricho de subir todas as -manhãs ao quinto andar; venha commigo é um momento emquanto lhe arranjo -uma casa decente; mandarei buscar os seus moveis. - -Casimiro encolhe os hombros, e continua a pintar dizendo: - -—A senhora está doida! - -—Como é que o senhor disse? - -—Que a senhora não tem senso commum! e que eu não desejo mudar-me... - -—Não quer mudar-se para não deixar a rapariga da agua-furtada? - -—A rapariga da agua-furtada não entra para nada na minha resolução; não -quero deixar esta casa, porque não quero fazer as suas vontades, porque -estou cansado de ser escravo, e porque é tempo que isto acabe. - -—Ah! ahi está aonde o senhor queria chegar; é um rompimento que me -propõe!... - -—Será um rompimento se a senhora quizer, mas repito-lhe que não me quero -submetter mais a todos os seus caprichos, e que me não mudarei. - -—Casimiro! tome cuidado, se fica n’esta casa, não lh’o perdoarei... - -—Hei de ficar. - -—E é a essa delambida que o senhor me sacrifica! Oh! é indigno! é infame! - -—Nada de palavrões, minha senhora, bem sabe que commigo perdem o seu -effeito; eu não a sacrifico a ninguem. Digo-lhe que não quero ser mais -seu escravo, que quero ser senhor de mim, se isto lhe não convem, tanto -peior! - -—É porque já me não ama que o senhor me fala assim! - -—Olhe, Ambrosina, seja franca, se eu fizesse o que me ordena, havia de -desprezar-me e teria razão. - -—Oh! o senhor é um traidor, tem zombado commigo, mas não quero continuar -a ser enganada! depois de tudo quanto eu tenho feito por sua causa... - -—Ah! eu estava á espera d’essa phrase! teria faltado á situação! -Effectivamente a senhora tem feito muito por mim, eu não me esqueço, -permitta-me sómente dizer-lhe que era sempre contra a minha vontade; -que ha muito tempo que eu me queria dar ao trabalho e que a senhora -incessantemente me impedia de o fazer, porque queria ter-me -constantemente nas suas rêdes, impedir-me de ser livre emfim e de poder -tomar qualquer resolução sem a consultar. Se a fortuna um dia me fôr -favoravel, creia, minha senhora, que terei muito prazer em pagar tudo -quanto lhe devo! - -—Casimiro, esqueça-se do que eu acabo de dizer, o ciume faz-me perder a -cabeça, vamos, ceda-me ainda por esta vez, peço-lhe eu, venha commigo, -deixe esta casa... e não lhe falarei mais n’essa menina da agua-furtada... - -—As suas instancias são inuteis, a minha resolução é inabalavel, não saio -d’aqui. - -Ambrosina ergue-se furiosa, dá alguns passos pelo quarto, pára deante de -Casimiro, e exclama: - -—Então, senhor, está tudo acabado entre nós! - -—Como a senhora quizer. - -—Sim, senhor, nunca mais na minha vida o tornarei a vêr!... - -Depois de haver dito estas palavras, Ambrosina sae arrebatadamente, -fechando a porta com estrondo, desce a escada sem parar, depois atravessa -o pateo, passa por deante do porteiro que lhe varre para cima, e dá -alguns passos na rua. Mas alli, pára, volta-se, olha para a casa d’onde -acaba de sair, e vê um rotulo pendurado por cima da porta. Entra -immediatamente na casa e diz ao porteiro, que está ainda no pateo: - -—Tem cá alguns quartos para arrendar? vi um rotulo. - -—Sim, minha senhora, um magnifico primeiro andar, com sete casas, todo -forrado de novo, e uma bella adega! - -—Quando está desoccupado? - -—D’aqui a dez dias, minha senhora... - -—Fica por minha conta... - -—O preço é de dois mil e duzentos francos. - -—Muito bem, arrendo-o eu. - -—Mas a senhora não o viu, se quer subir, os inquilinos saíram agora -mesmo... - -—Não é preciso, repito-lhe que eu arrendo a casa. Tome, aqui tem o -signal... - -E Ambrosina mette uma moeda de vinte francos na mão de Chausson, -accrescentando: - -—Tome; mas ficar-lhe-hei muito agradecida se não disser ao sr. Casimiro -que fui eu que arrendei a casa, aqui tem a minha morada e o meu nome... -se quizer ir tirar informações... - -—Oh! minha senhora, eu bem vejo que não é preciso, quando se tem maneiras -como a senhora; demais, a senhora é conhecida do sr. Casimiro! - -—Tome; aqui tem mais vinte francos, seja discreto, que não ficarei -sómente n’isto... - -—Estarei ás ordens da senhora tanto de dia como de noite, sempre -prompto!... - -Ambrosina retira-se, e Chausson admira as duas moedas de vinte francos, -dizendo comsigo: - -—Isto é que é a nata das inquilinas! logo eu estava indo tirar -informações!... - - - - -XIV - -A senhora do primeiro andar - - -Dez minutos depois da saída de Ambrosina, subia Casimiro ao quinto andar -e entrava em casa da sua joven vizinha. - -Lisa está trabalhando, mas grossas lagrimas lhe rebentam dos olhos e por -momentos caem sobre a sua costura. O seu lindo rosto parece ainda mais -seductor sob esta nuvem de tristeza espalhada por todas as suas feições. -Ao vêr Casimiro, o seu primeiro movimento é limpar os olhos e esforçar-se -por sorrir. - -Mas o rapaz, que já lhe viu as lagrimas, apressa-se a correr para ella, -exclamando: - -—Lisa, está chorando, e sou eu a causa da sua tristeza. Ah! perdôe-me, se -soubesse quanto estou afflicto pelo que succedeu. - -—Oh! eu não lhe quero mal, não chorava... - -—Chorava, sim, em vão procura occultar-m’o. - -—É sómente, porque sinto haver sido a causa de que aquella senhora -ralhasse com o sr. Casimiro; ella parecia muito encolerisada, disse que o -senhor já não cuida do seu retrato e que é por culpa minha. Bem vê que -fiz mal em consentir que fizesse o meu; mas está tudo acabado; não lhe -servirei mais de modelo; poderá assim retratar aquella senhora; não lhe -farei mais perder o seu tempo... - -—Não diga isso, Lisa, continuarei a retratal-a como de costume... - -—Oh! não, aquella senhora não quer; se ella voltasse e o encontrasse -aqui, teriamos nova scena, isto assusta minha avó, e eu não quero... - -—Aquella senhora não voltará aqui; demais, não tem o direito de me -impedir de fazer o que me agrada; conheço-a ha muito tempo, ella estava -habituada a dar-me conselhos e eu ouvia-a como se ouve um antigo -conhecimento... - -—Aquella senhora é mais velha que o sr. Casimiro?... - -—Sim, é por isso que eu lhe mostrava uma certa deferencia. Mas não é -razão para que ella me tracte como uma creança... - -—E é bem bonita, aquella senhora, mas deitava-me uns olhos cheios de -odio, que me faziam muita pena... - -—Não pense mais n’ella, não tornará a vel-a. - -—Parece-me que teria muito gosto em a ver, se ella me não tivesse deitado -uns olhos tão terriveis. Sr. Casimiro, é preciso levar o seu cavallete e -não vir mais aqui pintar... - -—Minha querida vizinha, espero que terá a bondade de me dar ainda as -sessões de que necessito, não ha de querer que eu deixe um trabalho -imperfeito; a sua cabeça é um estudo que me fará muita honra, assim o -espero; permitta-me acabal-o com cuidado e satisfazer-lhe o que lhe devo -por todas as sessões que me tem dado... - -—Mas o senhor não me deve nada, comprou-me o vinho quinado... - -—Oh! isso pagava apenas tres sessões! depois tivemos mais dez pelo menos, -que eu pago bem mesquinhamente dando-lhe esta remuneração. - -Casimiro põe trinta francos em cima da mesa, volta a pegar na mão da -rapariga, e aperta-a ternamente nas suas, dizendo-lhe: - -—Não chorará mais, esquecerá a scena d’esta manhã, e dar-me-ha ainda -algumas sessões, não é verdade? - -Lisa sorri-se, e responde: - -—Far-lhe-hei a vontade, visto que assim o quer! - -Casimiro retira-se muito satisfeito. - -No dia seguinte, Rouflard, que entra todas as manhãs em casa de Casimiro -para saber se elle tem algum recado para lhe dar, diz ao joven pintor: - -—Acabo de vêr o meu bom anjo, a menina Lisa, que está feliz como uma -rainha, e isto graças ao sr. Casimiro! - -—Graças a mim! como é isso, Rouflard? - -—Porque, com o dinheiro que o senhor lhe deu hontem, comprou ella uma -colhér, de prata á avó, uma bella colhér effectivamente, que lhe custou -vinte e dois francos. A velha doente está encantada, era a sua mania, -isto restituir-lhe-ha uma parte das forças. - -—Estimo immenso ter podido melhorar um pouco a posição de Lisa, que se -mata com trabalho. E o sr. Rouflard tem ido a casa do pintor a quem eu o -recommendei? - -—Sim, senhor, mas não para fazer de romano, é para fazer de saltimbanco. -É verdade que isso para mim é indifferente! servir de modelo para um -heroe ou para um salteador, é sempre servir de modelo. - -Decorrem alguns dias; Casimiro não deixa passar um unico dia sem subir a -casa de Lisa, que lhe mostra a colhér de prata, dizendo-lhe: - -—Estou muito contente! mas acreditará o senhor que sonho todas as noites -que m’a roubam? Isto faz-me pesadelos. - -—Isso ha de passar, minha vizinha, a gente habitua-se a tudo, mesmo aos -talheres de prata. - -Casimiro não tornou a casa da sr.ª Montémolly, e, com grande surpreza -sua, não ouviu falar mais d’ella desde o seu rompimento. Applaude-se por -emfim quebrado um grilhão que já não podia supportar, e entrega-se com -ardor ao trabalho, porque quer poder passar sem o socorro alheio. O seu -quadrosinho de _genero_ vae saindo muito bom; o negociante de quadros que -veiu vel-o, ficou muito satisfeito, e offereceu-lhe mesmo algum dinheiro -adeantado, se elle o precisasse. - -Mas, nas suas idas e vindas a casa, Rouflard, que conversa amiude com -o porteiro, repara, no penultimo dia do arrendamento, que emquanto o -inquilino do primeiro andar faz a sua mudança, Chausson esfrega as mãos, -apressa quanto pode essa mudança, depois, assim que vê a casa despejada, -põe-se a encerar o patamar do primeiro andar, a varrer cuidadosamente os -quartos desoccupados, e a observar se tudo está aceiado e se ha têas de -aranha n’algum recanto. - -—Com a breca! como se afadiga com o seu primeiro andar! diz Rouflard ao -porteiro, nunca esfregou tanto em minha casa, nos meus bons tempos! - -—É que mesmo nos seus bons tempos nunca teve uns aposentos tão -esplendidos! - -—Está então arrendado o seu primeiro andar? - -—Sim, de certo, está arrendado, e magnificamente arrendado; presumo que -se muda para cá ámanhã o novo inquilino, por isso fiz saír o outro hoje, -para ter tempo de arranjar tudo. Ah! ah! quero que ao entrar aqui se veja -tudo reluzente... - -—É algum dentista que vem para a casa? - -—Não... não é um dentista! é uma senhora... e mesmo uma bonita senhora... - -—Ah! entendo, é uma _cocotte_ de primeira ordem! - -—Não, senhor, pois eu arrendo lá a casa a _cocottes_! porventura o predio -não está bem habitado, não contando com o senhor?... - -—Chausson, não me insulte; difficilmente acharia um homem tão fino como -eu para morar na sua agua-furtada. - -—Sim, quando não está bebedo, tem ainda uma boa presença. - -—A tal senhora bonita tem marido? - -—Não; pelo menos, creio que não. A final de contas, como ella vem ámanhã, -posso dizer ao senhor quem é. - -—Então eu conheço-a? - -—Deve tel-a visto em casa do sr. Casimiro, é aquella senhora que o vinha -visitar tantas vezes, antigamente, porque não tem aqui voltado desde que -arrendou o primeiro andar. - -—Como! seria a sr.ª Montémolly que arrendou o quarto do primeiro andar? - -—Exactamente, a sr.ª Montémolly, é o nome que está no seu bilhete. - -—Oh! com mil diabos!... - -Rouflard apressa-se a subir a casa do pintor, e diz-lhe: - -—Venho dar-lhe uma noticia! o quarto do primeiro andar foi arrendado pela -sr.ª Montémolly, que se muda para cá ámanhã. - -Casimiro fica aterrado; julgava-se para sempre livre de Ambrosina, e ella -vem morar para o seu predio; não duvida que não seja para espreitar o seu -procedimento e saber que relações existem entre elle e a menina do quinto -andar. Estas relações são muito innocentes, mas aos olhos do mundo, que -procura por toda a parte o mal e nunca o bem hão de parecer criminosas. O -que Casimiro receia sobretudo, é que as frequentes visitas que elle faz a -Lisa lhe tragam ainda alguma scena desagradavel. Está a ponto de subir a -casa da sua vizinha para a prevenir do que acontece, mas diz comsigo: Não -devo assustal-a antes de tempo. Aguardemos. Ambrosina não arrendou talvez -a casa para si, é tambem possivel que se não mude ainda ámanhã. - -Mas no dia seguinte não é já possivel a duvida: faz-se a mudança para o -primeiro andar, e é effectivamente a sua antiga amante que Casimiro vê -chegar; ouve já na escada a voz estrondosa da creada Adriana, que está -muito contrariada por ter saído da casa da rua Meslée, que dava sobre o -_boulevard_, para virem morar na rua Paradis-Poissonniére e tomarem uma -casa onde o quarto da creada está debaixo da mesma chave que a dos amos. - -Então o joven pintor decide-se a subir a casa de Lisa. Pelo seu ar -perturbado, commovido, a rapariga adivinha que succedeu algum caso -desagradavel, e diz: - -—O senhor tem alguma coisa; aquella senhora voltou a vel-o; virá ella -aqui, porventura. - -—Não, não é isso, Lisa, entretanto, é alguma coisa que a vae contrariar, -tenho a certeza. - -—Então, fale! - -—Aquella senhora, porque effectivamente é d’ella que se tracta... o -primeiro andar estava sem inquilino para este semestre... a menina sabe -isto sem duvida. - -—Eu! não! pois eu occupo-me lá do que se passa no predio? E então, o -primeiro andar?... - -—Está arrendado... por... por essa senhora... - -—Que veiu aqui. - -—Sim. - -—Ah! meu Deus! e virá para cá brevemente? - -—Muda-se hoje... - -—Ella está aqui! no predio. Ah! vá-se embora, sr. Casimiro, vá-se embora, -muito depressa, se ella subisse e o encontrasse... tenho medo d’essa -senhora. - -—Socegue, ella não virá mais a sua casa, estou persuadido d’isso; que -motivo teria para cá voltar? - -—Virá procural-o... - -—Não, eu disse-lhe que já não a via. Estamos indifferentes, e se ella me -quizesse falar, é a minha casa e não á sua que viria ter commigo... - -—Ah! o senhor diz isso para me socegar; d’aqui em deante não me atreverei -muis a descer a escada; felizmento, não a desço muito! uma vez sómente, -de madrugada, para ir fazer as minhas compras; mas não importa, sr. -Casimiro, o meu retrato está acabado, como o senhor hontem confessou; -portanto é mister que não venha mais visitar-me... - -—Ah! Lisa, então já não sou seu amigo? não quer receber-me em sua casa? - -—Não digo isso, mas não quero que essa senhora aqui o encontre. - -—Serei prudente, eu conheço os habitos d’essa senhora, e depois -espreitarei as occasiões em que ella sair, incumbirei isso a Rouflard, -posso contar n’elle. - -—Oh! é um excellente homem, esse Rouflard; é pena embriagar-se; meu Deus! -parece-me que ouço subir!... - -—Não... é no quarto andar que abrem a porta... - -—Sr. Casimiro, leve d’aqui o seu cavallete... vendo-o em minha casa, -dirão: «Então elle continúa a ir pintar lá?» e é preciso que se não possa -dizer isto... - -—Pois sim, levarei o cavallete; mas isso não me impedirá de a vir ver -todos os dias, é para mim um habito tão agradavel... não poderia mais -trabalhar em todo o dia se não a visse pela manhã; outro tanto não -acontece á menina... - -Lisa não responde, mas suspira olhando para Casimiro, e o seu olhar vale -a melhor resposta. O joven pintor aperta-lhe a mão, e decide-se emfim a -levar o cavallete. - - - - -XV - -A menina Proh doente - - -Durante todo este dia Casimiro teve uma especie de febre; ficou em casa, -mas deixou entreaberta a porta da entrada para ouvir o que se passa na -escada; não ouviu senão o joven Fonfonso cantar com a musica do carrilhão -de Dunkerque: - - Uma esgalgada girafa - Rima certo com garrafa; - Mas chimpanzé pelladinho - Rima bem com coitadinho! - -—Quem é que te ensinou essa infame cantiga? diz de repente a sr.ª Proh, -saíndo ao patamar. - -—Foi Rouflard, que a canta muitas vezes quando desce da agua-furtada. - -—Que monstro que é esse borrachão do Rouflard! não comprehendo que o meu -vizinho Casimiro empregue similhante homem; e tu, Fonfonso, se tornas a -cantar essa cantiga, levas uma roda de açoutes e ponho-te a pão secco. - -—Sim? pois se me dás pão secco, direi que hontem, com a força d’um -espirro, deixaste cair os dentes postiços. - -—Cala-te, Lucifer! Ó céus! e dizer que ha pessoas que desejam ter filhos! - -Casimiro não sae de casa senão para ir jantar. Quando chega ao patim do -primeiro andar, passa muito depressa e depois sae sem levantar a cabeça. -Vae á noite ao theatro, e só recolhe depois da meia noite, mas vê ainda -luz nos quartos do primeiro andar. A sr.ª Montémolly entretem-se sem -duvida em arranjar os seus novos aposentes. Elle, segundo o costume, vae -buscar a luz ao cubiculo do porteiro; então este diz-lhe com ar malicioso: - -—O senhor sabe sem duvida quem tem agora a felicidade de ter por vizinha? - -—Não, sr. Chausson, e affianço-lho que isso me interessa pouco. - -—Não dirá o mesmo quando souber que arrendei o primeiro andar á sr. -Montémolly, uma amiga intima do senhor. - -—Em primeiro logar, o sr. Chaussom faz amigas intimas de simples -conhecimentos, depois, nós tivemos uma ligeira discussão, essa senhora e -eu... estamos indifferentes. - -—Ah! que pena! aposto que foi por causa da maldita politica! isso -malquista toda a gente, mas o senhor ha de fazer as pazes com essa -senhora, que tem muito bonitas maneiras. - -—Dê cá a minha luz, e faça favor de não me tornar a falar em tal assumpto. - -Casimiro apressa-se a subir a casa, e o perteiro segue-o com a vista, -murmurando: - -—Ah! elle está arrufado com esta senhora! como os homens são voluveis! -dirá muita gente, e as mulheres tambem: então, é coisa que está na -natureza!... - -No dia seguinte pela manhã, o joven pintor sobe a casa de Lisa; mas, -antes d’isso, procurou Rouflard, e pôl-o de sentinella na escada, com -ordem de cantar a canção dos _Lampiões_ se vir subir a inquilina do -primeiro andar. D’este modo, não será surprehendido em casa da sua -vizinha; terá descido os dois andares antes que Ambrosina tenha tido -tempo de subir os seus... - -Lisa põe-se ainda a tremer vendo entrar Casimiro em sua casa. Mas este -tranquilliza-a dizendo-lhe a ordem que deu a Rouflard, relativamente -á senhora do primeiro andar. Casimiro não cessa de repetir a Lisa que -não era para elle mais que um simples conhecimento, uma pessoa que o -queria proteger, mas que abusava da influencia que tinha tomado sobre -elle, influencia de que ha muito tempo estava, resolvido a libertar-se. -A rapariga, que não sabe nada do que se passa no mundo, acredita tudo o -que lhe diz o vizinho. Conversam largo espaço; o tempo corre tão depressa -quando se está bem acompanhado! De repente, Lisa empallidece, exclamando: - -—Ouvi cantar!... - -—Mas não é o Rouflard, é aquelle maldito garoto do menino Proh! - -—É o mesmo, ouço muito barulho no predio é preciso ir-se embora. - -—É Adriana que a menina ouve, a creada da sr.ª Montémolly, quando esta -rapariga está em alguma parte, não se ouve senão ella. - -—Mas vae ver o Rouflard na escada. - -Em primeiro logar, para o ver, será preciso que ella olhe para o ar. - -—Oh! estou bem certa que é a ordem que tem. - -—Vamos, socegue minha encantadora Lisa, eu me vou embora, mas ámnhã... - -—Oh! sim, ámanhã tratarei de me habituar a ter medo. - -Passam-se d’esta sorte oito dias. Casimiro sobe pela manhã a casa de -Lisa, depois de ter posto Rouflard de sentinella na escada. Não tem -encontrado Ambrosina, nem mesmo a tem visto de longe, entretanto está bem -persuadido de que ella não veiu morar para o mesmo predio sem ter o seu -plano. Sabe que a sr.ª Montémolly é bastante altiva, bastante orgulhosa -para procurar fazer as pazes com elle; mas sabe tambem que é vingativa e -deve ter formado o projecto de se vingar. - -Ao nono dia da sua entrada nos seus novos aposentos, alli pela volta do -meio dia, Ambrosina sobe os quatro andares que vão ter á morada de Lisa, -e entra de repente em casa da rapariga, que fica pallida e tremula ao seu -aspecto. - -«Todavia a sr.ª Montémolly não tem aquelle ar terrivel com que uma vez -se apresentou a Lisa; pelo contrario, é sorrindo, é com um ar amavel, -gracioso mesmo, que ella se approxima, e lhe diz: - -—Perdão, menina, venho talvez incommodal-a, mas sou ha oito dias sua -vizinha, moro no primeiro andar, soube, pela sr.ª Proh, que a menina se -occupava em trabalhar em roupa branca, e venho perguntar-lhe se quererá -trabalhar para mim? - -Lisa está de tal modo perturbada, que pode apenas balbuciar: - -—Mas, minha senhora, queira sentar-se... Perdão, não ouvi bem o que me -disse. - -—Socegue, menina; pois eu metto-lhe medo? - -—Oh! sim, minha senhora, quero dizer, não, minha senhora, agora não... -mas é que receava... - -—Que viesse ainda contender com o sr. Casimiro? Socegue, no outro dia -fiz mal, convenho n’isso, mas eu sou muito arrebatada; aquelle senhor -tinha-me faltado muitas vezes á sua palavra para o meu retrato e isto -tinha-me encolerisado. E o retrato da menina está acabado? - -—Sim, minha senhora. - -—Mas o sr. Casimiro continúa a vir vizital-a? - -—Algumas vezes, minha senhora... - -—Ora, tem todo o direito de o fazer. Mas a menina ainda me não respondeu -sobre o fim da minha visita; quer trabalhar para mim? - -—Oh! certamente, minha senhora, com muito gosto. - -—Muito bem. E borda tambem? - -—Sim, minha senhora. - -—Então, aqui tem estes lenços de cambraia, quero as minhas iniciaes -bordadas; olhe, como este... pode bordar-m’as? - -—De certo, minha senhora. - -—Pois aqui lhe deixo estes seis e o modelo; mas faça isto de seu vagar, -quando tiver tempo, eu não tenho pressa nenhuma. Emquanto ao preço, a -menina dirá quanto quer. - -—Oh! minha senhora, ficarei satisfeita com o que a senhora me der. - -—Adeus, menina, ou antes, até á vista, porque ha-de permittir que eu -venha algumas vezes saber se pensa em mim. - -—Oh! quando a senhora quizer. - -—Já lhe não metto medo, espero? - -—Não, minha senhora, pelo contrario, sinto agora que terei muito prazer -em a receber. - -Estas palavras parecem surprehender Ambrosina que, entretanto, faz uma -mesura graciosa á rapariga e retira-se. Lisa está bastante commovida, mas -muito contente de não ter já em sua casa o cavallete. No dia seguinte, -não falta a dar parte a Casimiro da visita que recebeu. Este não fica -satisfeito com isso; abana a cabeça murmurando: - -—Ambrosina, que quer que a menina trabalhe para ella... Ambrosina, -amavel, affectuosa com a menina.... hum! isso não é natural; tome -cuidado, Lisa, não confie n’essa senhora, porque tudo isto esconde alguma -perfidia! - -—Oh! sr. Casimiro, creio que não tem razão, e que d’esta vez é injusto -para com essa senhora; já não tenho nenhum receio d’ella; pelo contrario, -é uma coisa bem exquisita, parece-me que estou quasi a ter-lhe affeição... - -—Ah! é que a menina não suspeita de nada, não desconfia dos laços que lhe -podem armar! - -—Laços? oh! aquella senhora tem um sorriso encantador... isso não pode -occultar uma perfidia. - -—Bem se vê que não conhece o mundo. - -—Meu Deus! é então um conhecimento bem máu, pois que se deve sempre -desconfiar d’elle! - -—D’esse modo, fará a obra que a senhora lhe deu? - -—Sem duvida, são uns lenços magnificos para bordar... mas é obra que ha -de levar muito tempo. - -—E irá levar-lh’os a casa quando estiverem promptos? - -—Sim. Acaso não faço eu o mesmo á sr.ª Proh? porque havia de ser menos -cortez com esta senhora do primeiro andar? - -Casimiro não diz nada, mas deixa Lisa, muito inquieto com a visita que -ella recebeu. - -D’ahi a poucos dias cae doente a menina Angelina Proh; a mãe receia que -seja uma constipação de peito; o pae sustenta que é uma febre miliar, -e o menino Proh affirma que sua irmã está doente por ter comido uvada -de mais. Mas as indigestões são ás vezes perniciosas, e podem dar logar -a outras doenças; quer a uvada tenha ou não alguma coisa n’isso, o que -é certo é que a rapariga tem uma grande febre, uma sede ardente, e por -vezes um pouco de delirio. - -Os Proh não têem creada, porque o ex-professor sustenta que, n’uma casa -onde ha duas mulheres, não se deve ter necessidade de tomar uma terceira -para os arranjos domesticos, e que seria isso um luxo inutil. Não ha pois -senão a sr.ª Proh para tractar de sua filha, porque o papá encerra-se na -sua dignidade, e o Fonfonsinho, como quebra tudo quanto apanha, não pode -ser utilizado. Como a joven Angelina tem estado bastante doente para que -seja mister velar junto d’ella de noite, a sr.ª Proh anda que não pode -comsigo, e diz um dia ao maride: - -—Senhor, eu não posso mais; se isto continua, vou tambem caír doente; ha -duas noites que não durmo e eu não sou de ferro... - -—Eu nunca disse que a senhora era de ferro, se as mulheres fossem de -ferro, seria isso bem incommodo nas relações que a natureza nos manda ter -com ellas. - -—Vejamos, Castor, porque é que não quer tomar uma creada? a nossa posição -permitte-nos isso... - -—A nossa posição é muito correcta como está: nós somos quatro, o -quadrado perfeito, uma pessoa de mais em casa desarranjaria o equilibrio -e a rectidão; não, a rectidão não é o termo próprio, devo dizer o -rectangulo... - -—Oh! senhor, quanto me aborrece com os seus quadrados e as suas -combinações. Quer então que eu caia doente? - -—Não, senhora, porque seria preciso dobrada tisana, dodrado xarope, e por -conseguinte seria dobrada despeza; não poderia ser esse o meu desejo. - -—E’ todavia o que ha de acontecer se eu tiver de passar ainda esta noite -velando á cabeceira de nossa filha. Quer o seehor ficar? - -—Eu? mas a senhora bem sabe que, em chegando a minha hora de dormir, é-me -impossivel resistir-lhe; torno-me um arganaz, um buzio, se acham melhor, -ainda que a comparação é estrambotica; eu por consequencia não seria de -nenhuma utilidade. - -—Então é mister tomar uma enfermeira... - -—Uma enfermeira! introduzir uma estranha nos meus lares! Nunca! isso é -estupido e perigoso. - -—Entretanto, declaro-lhe que não quero passar em claro a noite proxima; -não poderia resistir... Ah! uma idéa!... a menina Lisa... sim, ella é -muito obsequiadora, não se negará a vir um instante revzar-me; esta não -dirá o senhor que é uma estranha... conhecemol-a perfeitamente. - -—A menina Lisa... sim, essa mora no predio. Em rigor, podemos occupal-a. - -—Subo immediatamente a casa d’ella; quero estar certa de ter alguem esta -noite ao pé de minha filha. - -Lisa fica menos admirada vendo entrar em sua casa a vizinha do terceiro -andar, para quem tem trabalhado muitas vezes. A sr.ª Proh explica-lhe -immediatamente o motivo da sua visita, e a rapariga responde-lhe: - -—Oh! minha senhora, eu estimaria muito poder ser-lhe prestavel; mas, para -ir para sua casa, teria de deixar minha avó... - -—Mas sua avó, emquanto está a dormir não tem precisão da menina; -lembre-se de que pode ir lá para baixo ás dez horas da noite, e pela -manhã ás sete e meia, oito horas quando muito, voltará para junto d’ella. -Demais, sua avó não está melhor? - -—Sim, minha senhora, graças ao vinho quinado, passa muito melhor desde -certo tempo para cá. Não é verdade, avósinha, que vae agora melhor? - -A velha levanta-se um poucochinho na cama, dizendo: - -—Sim, minha filha, sim, vou melhor. Ah! é que tu tractas bem de mim; -e depois déste-me uma colhér de prata, e isso deu-me grande prazer. -Mostra-a lá á nossa vizinha. - -—Oh! avósinha, isso pouco interessa a esta senhora. - -No entanto, para fazer a vontade á avó, Lisa mostra á sr.ª Proh a colhér -de prata, que é muito simples. - -—É uma prova de que a menina faz as suas economias, diz Celeste, dou-lhe -os meus parabens... - -Depois a sr.ª Proh approxima-se da paralytica, e diz-lhe: - -—Não é verdade que a senhora poderia dispensar a sua neta por uma noite, -e permittir que ella venha velar á cabeceira de minha filha, que está -doente? desceria só ás dez horas da noite e voltaria logo de manhã; oh! -com isso me faria um grande serviço. - -—Sim, sim, pode ir; vae, Lisa, para obsequiares a senhora. Bem sabes que -eu, em adormecendo á noite, não tenho mais precisão de ti. Oh! eu estou -melhor. - -—Como! pois a avósinha consente em que eu a deixe uma noite inteira? - -—Sim, minha filha, sim; é preciso obsequiar esta senhora. - -—Pois bem, visto que a avósinha consente. Minha senhora, esta noite ás -dez horas, estarei em sua casa. - -—Ah! muito agradecida, a menina é muito amavel; retiro-me sem mais -demora, porque tenho que preparar a cabeça de vitella para meu marido; -até á noite. - -Ás dez horas em ponto, assim que adquire a certeza de que sua avó dorme -socegadamente, Lisa sae do seu quarto e dirige-se a casa da sr.ª Proh. -Esta aguardava-a com impaciencia, porque tinha muita necessidade de -dormir. Leva a sua joven vizinha para o quarto de cama de sua filha, e -ahi a deixa, dizendo-lhe: - -—Angelina está hoje melhor, creio que não terá uma noite desassocegada; -em todo o caso, aqui está em cima d’esta mesa tudo o que é preciso: a -tisana sobre a lampada de espirito de vinho, assucar para a tisana, uma -colherinha para a mecher, depois uma colhér de sopa para dar d’este -xarope que vê n’esta garrafa; mas isto, sómente lh’o dará se ella não -puder dormir e estiver agitada; comprehende bem? - -—Sim, minha senhora, tudo isso não é difficil. - -—Se por acaso sobrevier alguma coisa extraordinaria, acorde-me, eu durmo -aqui no quarto do lado; mas espero que não acontecerá nada. Aqui tem uma -grande poltrona onde ficará perfeitamente... e livros. A menina gosta de -ler? - -—Oh! muito, minha senhora. - -—Então aqui tem um romance que a ha de captivar, está cheio de crimes, -assassinatos, enforcamentos, torturas, é muito interessante. Angelina -já o leu duas vezes; é desde esse tempo que ella tem tido delirio. Mas -eu vou-me deitar, porque estou com muito somno; os meus homens dormem já -como pedra em poco... vou fazer outro tanto; minha filha está socegada, -não tenho precisão de lhe dizer que é mister não a acordar. - -—Oh! pode ir descansada, minha senhora. - -—Não se esqueça das minhas instrucções: uma colhér de xarope, sómente se -ella estiver agitada. - -—Sim, minha senhora. - -E a sr.ª Proh retira-se. Lisa, que não deixou de trazer trabalho para -fazer, senta-se a bordar. Passado algum tempo a doente pede de beber, -e Lisa apressa-se a dar-lhe um copo de tisana. Angelina reconhece-a, e -diz-lhe: - -—Ah! é a menina que me está velando... sim a mamã tinha-me prevenido... - -—Como se acha a menina? - -—Muito melhor. - -—Quer uma colhér de xarope? - -—Não, não é preciso... sinto que vou outra vez adormecer; agradecida. - -Effectivamente, a menina Proh torna em breve a pegar no somno. Lisa -volta ao seu bordado, mas este genero de trabalho cansa muito a vista. -Larga-o pois por um momento, e cede ao desejo de conhecer o romance que a -sr.ª Proh lhe gabou. Senta-se para isso na grande poltrona; mas, no fim -d’algum tempo, quer por fadiga quer por effeito do romance, Lisa adormece -profundamente. - -São seis horas da manhã quando a sr.ª Proh entra no quarto da filha, e -ainda Lisa esfrega os olhos. - -—Então, como se passou esta noite? pergunta Celeste. A nossa doente ainda -está a dormir, é bom signal. - -—Oh! minha senhora, a noite foi muito socegada; a menina só pediu de -beber uma vez. - -—Muito bem; então não tomou o xarope? - -—Não, minha senhora. - -—Ás mil maravilhas! Decididamente, creio que Angelina vae entrar em -convalescença. - -—Minha senhora, visto que está levantada, permitte-me que volte -immediatamente para junto de minha avó, não é verdade? - -—Sim, certamente, vá, minha menina, nós nos entenderemos a respeito da -remuneração pela sua noite de véla. - -—Oh! minha senhora, não falemos n’isso, estimo muito ter podido -obsequial-a!... - -E a joven enfermeira, com a pressa de subir a sua casa, está já na saleta -de entrada, quando a voz da sr.ª Proh a chama: - -—Lisa, Lisa!... - -—O que quer, minha senhora? - -—Onde metteu a menina a colhér do xarope!... não a acho. - -—Não a acha!... deve estar no mesmo sitio, minha senhora; pois que não -tive precisão de me servir d’ella... - -—Diz que não se serviu d’ella!... comtudo, a colhér não está já em cima -da mesa... olhe, veja a menina... - -Lisa vê em cima da mesa, depois debaixo, depois em todos os moveis, em -toda a parte, e a sr.ª Proh faz outro tanto do seu lado; mas não se acha -a colhér. - -—É singular! diz Lisa. - -—E mais que singular! exclama Celeste, cuja physionomia tomou já um -aspecto severo. Emfim, a menina bem sabe que eu deixei-lhe sobre esta -mesa duas colheres de prata, uma pequena e uma grande, a pequena aqui -está, mas que é feito da grande? é preciso que appareça, é preciso! -não entrou aqui outra pessoa além da menina... logo é a menina a unica -responsavel pela colhér...e a menina ia saindo com tanta pressa... - -—Oh! minha senhora, pois pode suspeitar que eu levava a sua colhér! ah! -veja bem, minha senhora, esquadrinhe tudo... veja nas minhas algibeiras, -no meu vestido. Oh! meu Deus! suspeitar-me de-furtar... - -—Eu não digo isso; mas algumas vezes, inadvertencia... sem fazer reparo... - -—Oh! veja, minha senhora, peço-lhe eu, faça favor de me revistar!... - -A sr.ª Proh apressa-se a passar revista ás algibeiras de Lisa; apalpa-a -por toda a parte, ausculta-a como faria um cirurgião, examina-lhe até os -sapatos, ainda que a rapariga tem o pé tão pequeno que o seu calçado mal -poderia conter uma colhér pequena. Esta inspecção severa prova á esposa -do antigo professor que Lisa não levava a colhér. - -—Então, minha senhora, está agora persuadida de que eu não levava nada? -diz Lisa. - -—De certo, bem vejo que a não tem em si, mas então o que fez a menina á -colhér? vamos... procure... atirou certamente alguma agua pela janella e -deitou fóra tambem a colhér. - -—Não, minha senhora, não atirei nada pela janella. - -—Ou deixou-a caír n’alguma parte? - -—Eu não saí d’este quarto, minha senhora; não fui ao patamar... - -—Oh! ao patamar, de facto, não teria podido lá ir, porque eu fecho sempre -com tres voltas a porta que dá para a escada; e tem um ferrolho de -segredo... acabo agora de a abrir... - -—De modo que a senhora está bem certa de que eu não saí de sua casa esta -noite durante o seu somno... - -—Valha-me Deus! não digo o contrario!... mas tudo isso não me restitue a -minha colhér... - -—Ha-de se achar, minha senhora, ha de se achar no momento em que menos se -pensar n’ella. - -—Mas onde diabo a escondeu?... - -—Para que quer a senhora que eu a tenha escondido? com que fim? porque -motivo? Volto para juncto de minha avó, que deve estar agora acordada... -a senhora fica bem certa de que não levo a sua colhér, não é verdade? - -—Estou certa de que não a tem em si... mas que diabo fez d’ella? - -—Oh! se é preciso pagar-lhe o valor da colhér, eu lh’o pagarei, chegarei -a isso á força de trabalho; mas, por quem é, não fale em similhante coisa -a minha avó, que lhe faria muito mal... - -—Está bem, menina, está bem, falarei a esse respeito com o sr. Proh. - -Lisa sobe para sua casa muito triste e com os olhos rasos de lagrimas, -dizendo comsigo: - -—Suspeitarem de ter furtado! oh! é horrivel isto! O sr. Casimiro tinha -muita razão em dizer que desconfiasse do mundo! E todavia esta senhora -não pode querer affligir-me; mas que foi então feito d’aquella maldita -colhér!... - - - - -XVI - -Mais um caso extraordinario - - -A sr.ª Proh não falta a contar esta aventura a seu esposo, e o professor -exclama: - -—Não introduza nunca pessoas estranhas nos seus lares, eu tinha-a -prevenido; ahi estamos com uma colhér de menos, por sua culpa. - -—Mas, senhor, a menina Lisa não é uma estranha... demais estou bem -persuadida de que ella não levou a nossa colhér. - -—Então foi a colhér que se foi embora sósinha. - -—Eu apalpei-a, revistei-a bem por toda a parte e ella não a tinha. - -—Pensou a senhora revistar tudo... ha sitios mysteriosos onde se escondem -muitas coisas; pergunte aos ladrões onde escondem os diamantes que -roubaram!... - -—Oh! senhor, uma colhér de sopa não se esconde como um diamante, ainda se -fosse uma das pequenas!... - -—Senhora, ha pessoas que teem grandes facilidades. - -Esta historia da colhér de prata desapparecida não tarda a saber-se em -todo o predio, e a ser o assumpto de todas as conversações. Adriana, que -a ouve contar no cubículo do porteiro, não falta a ir referil-a a sua -ama, que a escuta muito atenta, mas sem fazer reflexão. - -—A senhora deu obra a fazer áquella rapariga, diz Adriana, mas quando -ella aqui vier trazel-a, terei o cuidado de não lhe tirar a vista de -cima, e de não deixar por ahi nada ao alcance da mão. - -—Quando ella aqui vier, diz Ambrosina, ficará a menina no seu quarto até -que eu a chame. Não se esqueça disto... - -Adriana retira-se resmungando. O porteiro revistou o pateo e os canos das -aguas; está persuadido de que a menina Lisa não é culpada. O Fonfonsinho -canta na escada: - - Ficámos sem uma colhér de prata, - Desde que Lisa velou minha mana - -E Rouflard, que ouve isto, apanha o rapazito pelos fundilhos das calças e -suspende-o no ar, dizendo-lhe: - -—Aposto que foste tu, velhaquete, que pregaste a peça; provavelmente -foste buscar a colhér durante a noite para tomares xarope. - -—Não é verdade... eu durmo com o papá, não me levanto de noite; isso é -bom para o senhor. - -—Cala-te, sapo!... - -Os gritos do rapazinho fazem acudir os esposos Proh, assim como o jovem -pintor. Ao saber dos boatos que correm a respeito de Lisa, Casimiro fica -furioso; dirige-se à sr.ª Proh: - -—Espero, minha senhora, que não suspeite que Lisa lhe tenha furtado essa -peça de baixela que lhe falta? - -—Eu não digo que foi ela que a tirou, mas digo que foi quem a perdeu; -acha que isto me possa ser agradavel? - -—Minha senhora, eu fico responsavel por essa menina, e, aconteça o que -acontecer, a senhora não perderá nada. - -—E eu, exclama Rouflard, repito que a menina Lisa é incapaz de commetter -uma acção feia! é um modelo de probidade, como de juizo, de prudencia, de -bondade. Quem trabalha sem descanço para sustentar uma velha paralytica, -não deve um instante ser suspeitada. - -—Mas parece que a velha tem um grande amor pelas colhéres de prata, -replica a sr.ª Proh, porque ella propria me mostrou uma que a sua Lisa -lhe tinha comprado... - -—O que prova á senhora que ella não tem precisão da sua. - -—Abundancia de bens não prejudica, diz o professor. - -—Ahi está uma reflexão bem digna do sr. Prorata. - -Os esposos Proh voltam para sua casa cheios de colera. Casimiro -apressa-se a subir a casa de Lisa. Acha-a com os olhos vermelhos -de chorar; ella põe um dedo na bocca mostrando-lhe a avó. Casimiro -comprehende que a rapariga occulta á pobre velha o caso da colhér; vae -sentar-se ao pé da donzella e pega-lhe na mão, murmurando muito baixo: - -—Tem então ainda algum desgosto, Lisa, a menina que merecia ser tão feliz? - -—Ah! sr. Casimiro, o senhor sabe sem duvida a historia da colhér, ouço -d’aqui o filho da sr.ª Proh que a canta na escada. - -—Sim... eu sei pouco mais ou menos... - -—Mas não acredita que eu tenha querido tirar uma colhér de prata á sr.ª -Proh, não é verdade? - -—Pois a menina pode fazer-me similhante pergunta! acaso não sei eu o que -a menina vale! ah! eu faço-lhe justiça, a sua alma é pura como o seu -olhar... - -—E a senhora Montémolly, tem-n’a visto? sabe o que ella pensa a este -respeito? - -—Não tenho visto essa senhora, não a encontro nunca, ella deve pensar -como quasi todos os outros inquilinos do predio, que anda aqui -brincadeira, ou antes maldade do rapazinho. - -—Não, elle não veiu ao quarto. - -—Mas a menina não dormiu um só instante em toda a noite? - -—Sim... dormi... até bastante tempo. - -—Pois então alguem poude entrar durante o seu somno, e tirar essa colhér; -mas esteja socegada aposto que brevemente descobriremos essa pessoa... - -São passados seis dias, e os Proh não acharam ainda a colhér. Entretanto -Ambrosina levou para sua casa a filha da sua amiga Florentina, -emquanto esta foi tomar banhos do mar. A pequenita tem oito annos, e -é muito bonita; mas sobrevem-lhe o sarampo, acompanhado d’uma febre -violentissima. A menina Adriana, que tem muito medo de que se lhe pegue o -sarampo, não se approxima do leito da doentinha senão de má vontade. - -Então Ambrosina sobe de manhã cedo a casa de Lisa, que primeiramente se -põe a tremer ao seu aspecto, mas logo se tranquilliza ao ver o sorriso -d’esta senhora, que lhe diz: - -—Menina, venho pedir-lhe um obsequio; tenho em minha casa a filha d’uma -das minhas melhores amigas, que m’a confiou emquanto dura uma viagem que -ella era obrigada a fazer; tenho os maiores cuidados com a Adelinasinha; -mas este anjinho está n’este momento com sarampo e com uma febre -ardentissima; a minha creada, que tem medo do sarampo, não tracta d’ella -muito bem. Emfim, a menina fazia-me um grandissimo obsequio se quizesse -vir passar esta noite á cabeceira da doentinha. Como sei que teve essa -complacencia para com a sr.ª Proh, pensei que se não recusaria a fazer -outro tanto por mim. - -—Sim, minha senhora, responde Lisa suspirando sim, passei uma noite á -cabeceira da filha da sr.ª Proh, mas deve saber que desgosto isso me -occasionou; desappareceu n’essa noite uma colhér de prata, que não se -achou mais; a sr.ª Proh bem sabe que não fui eu que lh’a tirei; mas, -apesar d’isso, quem sabe! ha talvez ainda pessoas que suspeitam de mim. - -—Este meu passo, deve provar-lhe que eu não sou d’essas pessoas; ao -contrario, pedindo-lhe que vá ficar de noite em minha casa, pensei que -isso poria termo a todos esses contos inconvenientes. A menina não se -pode recusar... - -—Mas, minha senhora... - -—Não lhe peço que vá ás dez horas, desça um pouco antes da meia noite; -depois, voltará cedo para sua casa. Bem vê que sua avó não terá tempo de -dar pela sua ausencia... - -—Minha senhora, não me atrevo a recusar; entretanto isto custa-me muito; -tenho tanto desgosto pela noite que passei em casa da sr.ª Proh. - -—Isso é uma creancice; em minha casa nada tem que recear. Até á noite, -alli pela volta da meia noite... ou antes se quizer. - -—Oh! prefiro ir tarde. - -—Muito bem, está tractado; espero pela menina, porque quero eu mesma -apresental-a no quarto da minha doentinha. - -Ambrosina retira-se. Lisa deseja ardentemente ver Casimiro para lhe dar -parte da sua nova contrariedade; o joven pintor não se faz esperar muito -tempo. Ao saber o que a sr.ª Montémolly acaba de pedir a Lisa, fica -bastante surprehendido, e parece não gostar de que esta tenha acceitado. - -—Acaso fiz mal em acceder a ir ficar de noite em casa d’essa senhora? diz -a donzella. - -—A menina não se podia excusar, comprehendo, tendo-se já prestado a ir a -casa da sr.ª Proh. - -—E depois, aquella senhora é agora muito amavel commigo; bem vê que não -dá credito aos aleives que se teem espalhado por causa d’aquella colhér -perdida. - -—Vejo; effectivamente, o procedimento d’essa senhora prova que ella -faz-lhe justiça; e todavia custa-me a acreditar que ella lhe queira bem... - -—Porque não? - -—Ah! porque... emfim, vá esta noite velar a Adelinasinha, mas ámanhã, de -manhã cedo, eu espreitarei a sua volta para casa. - -—Oh! voltarei muito cedo. - -É meia noite menos alguns minutos quando Lisa bate á porta da senhora do -primeiro andar. É a gorda Adriana que vem abrir-lh’a e a introduz junto -de sua ama, que recebe a donzella com um sorriso que não é talvez bem -franco, mas que quer parecel-o. A sr.ª Montémolly apressa-se a conduzir -Lisa para um lindo quarto onde dorme a doentinha, dizendo: - -—Puz Adelina no quarto que reservo para a mãe d’ella, quando habita no -campo e vem por acaso a Paris. Penso que a menina ficará aqui muito bem; -por este corredor pode-se sair sem haver necessidade de acordar ninguem. - -—Oh! minha senhora, eu não terei necessidade de sair esta noite, para quê? - -—Ahi tem uma poltrona onde poderá repousar e mesmo dormir um pouco, se a -doentinha estiver em socego. Aqui tem livros... Ah! quer cear? - -—Oh! não, minha senhora, eu nunca ceio. - -—Em todo o caso, se tiver fome, aqui tem bolos, biscoitos e vinho. Isto -é tisana para a pequena; n’esta garrafinha está um calmante. E então, -aquella tola da Adriana não poz aqui uma colhér! Adriana! Adriana!... - -A creada acode esfregando os olhos. - -—Adriana, traga para aqui uma colhér grande e algumas pequenas; se esta -menina quizer tomar vinho com assucar, não se ha de servir da mesma -colhér que empregar para a tisana. - -A creada sae, e volta logo em seguida com uma colhér grande e duas -pequenas, que ella põe em cima da mesa de cabeceira, dizendo: - -—Isto faz uma colhér grande e tres pequenas... porque já cá estava uma. - -—Está bem, Adriana, está bem! ninguem lhe pergunta a conta. - -—Mas eu desejo muito fazer ver isto á senhora. - -—Vá-se deitar. - -—Isso e o que eu quero é a mesma coisa. - -—Agora, menina Lisa, vou tambem descançar... a menina tem o que lhe é -preciso; não deseja mais nada? - -—Não, minha senhora, muito agradecida. - -—Quando a pequenita acordar, é preciso fazel-a beber; depois, se tossir, -deve-lhe dar o calmante. - -—Pode ir socegada, minha senhora. - -—Boa noite, até ámanhã. Virei cedo saber noticias da minha Adelina. - -Lisa fica só. Põe-se a admirar o quarto onde se acha; a mobilia é toda -nova e d’um gosto lindo. - -—Que felicidade não é viver n’um aposento tão bonito, diz ella comsigo; -mas a final de contas, tambem aqui se pode estar muito doente, e ter -tanto desgosto como n’um modesto quarto de qualquer agua-furtada; eis -aqui uns livros, mas não lerei nenhum, trouxe o meu trabalho, vou -trabalhar. - -Lisa deita-se ao bordado. D’ahi a pouco a Adelinasinha acorda, e ella -dá-lhe de beber; um pouco mais tarde a creança tosse, e ella faz-lhe -tomar uma colhér do calmante. Assim se passa uma parte da noite. Pela -volta das tres horas, o somno apodera-se de Lisa, que procura em vão -resistir-lhe porque n’ella a necessidade de dormir era tão imperiosa que -não a podia vencer. Mas, como a sua doentinha dorme mui socegadamente, a -joven enfermeira não tarda a fazer outro tanto. - -Cerca das sete horas da manhã, Lisa acorda, e quasi no mesmo instante, -abre-se uma porta e aparece a sr.ª Montémolly embrulhada n’um lindo -roupão. Approxima-se da cama dizendo: - -—Então, como vae a pequenita? passou bem a noite? - -—Sim, minha senhora, muito bem; a menina tossiu pouco e dormiu -optimamente; eu mesma cedi um pouco ao somno esta madrugada. - -—Não ha mal nenhum n’isso, visto que a pequena não precisava de nada. Ah! -ahi acorda ella. Bons dias, Adelina, como te sentes esta manhã? - -A pequenita responde que se sente melhor, mas põe-se a tossir; Ambrosina -exclama logo: - -—Dê-me uma colhér do calmante, para eu lh’o fazer tomar; isso ha de -aplacar-lhe a tosse. - -Lisa corre á mesa onde estava o frasquinho e a colhér. - -—Então, dê-me esse calmante, torna Ambrosina, bem ouve a creança estar a -tossir... - -—Sim, minha senhora, sim... mas é que... não acho a colhér... - -—É que a pôz n’outro sitio... faça favor de a procurar... - -—Valha-me Deus! é o que eu estou fazendo, minha senhora; mas não percebo -isto... não a vejo... - -—Mas a menina sabe muito bem que lhe ficou aqui uma, não é verdade? - -—De certo, minha senhora, pois que me servi d’ella duas vezes esta -noite... - -—Então é que procura mal. Adriana! Adriana!... ah! é capaz de estar ainda -a dormir... Adriana!... - -Chega emfim a creada, esfregando os olhos: - -—O que é, minha senhora? - -—É que esta menina não acha a colhér que estava aqui hontem á noite... - -—Ah! bem me lembro, havia uma grande e tres pequenas... - -—As tres pequenas aqui estão, diz Lisa, mas não comprehendo como a grande -não está aqui tambem... - -—Ora! exclama a menina Adriana, olhem que admiração! terá ido juntar-se -com a da sr.ª Proh... - -—Oh! menina, é indigno isso que está dizendo! Minha senhora, acaso vae -tambem pensar que tenho eu a sua colhér? - -—Menina, o que quer que eu lhe diga... quando os factos falam... é -preciso render-se a gente á evidencia; a menina mesma concorda em que -tinha aqui uma colhér de prata... - -—Sim, minha senhora, sim convenho n’isso; repito-lhe que me servi d’ella -esta noite para dar o calmante á menina... - -—Pois bem! vossemecê ficou sósinha aqui esta noite... e esta manhã esse -objecto desappareceu. Que outra pessoa, por consequencia, pode tel-a -tirado? - -—Oh! minha senhora, reviste-me, faça favor... verá que o não tenho... - -—É inutil, quando alguem tira uma coisa não a esconde em si. - -—Oh! é o mesmo, exclama Adriana, vou revistal-a eu; porque, emfim, não -quero que se perca prata nenhuma na casa onde eu estou a servir. - -A creada corre ás algibeiras de Lisa, e vira-as inteiramente; depois -apalpa a rapariga de alto a baixo, e termina a sua inspecção exclamando: - -—Nada! oh! affianço que não tem a colhér em si. - -—Então, minha senhora, bem vê, diz Lisa. - -—Vejo que a não escondeu em si; mas, se não a acharmos, é que a menina a -terá levado para outra parte. - -—Mas para onde, minha senhora, se não saí d’este quarto? - -—Quem me prova isso? por este corredor pode-se sair perfeitamente sem -acordar ninguem... - -—Oh! minha senhora, é horrivel pensar isso. Meu Deus meu Deus! sou bem -desgraçada!... - -Lisa rompe em soluços. Adriana tem-se posto de gatas e esquadrinha -debaixo de todos os moveis; mae em vão se procura por toda a parte, a -colhér não se acha. Ambrosina approxima-se da pobre Lisa, que se afflige -muito, e diz-lhe: - -—Socegue, não darei seguimento a este negocio, o que outrem talvez faria, -vá, não a demoro mais. Tomarei unicamente a liberdade de dizer ao sr. -Casimiro que não é feliz na escolha dos seus novos conhecimentos. - -Lisa não escuta mais nada; tarda-lhe sair d’aquelle quarto, que ella -achou tão bonito na vespera. Caminha, mal podendo suster-se, e chega -assim até á escada. Mas, no segundo andar, encontra Casimiro, que a -estava esperando, e que exclama, vendo-a lavada em lagrimas: - -—O que foi? que succedeu? o que tem a menina ainda? o que é que lhe -fizeram para chorar assim? - -Lisa conta a Casimiro o que se acaba de passar, e refere-lhe as palavras -de Ambrosina, que lhe disse que ella teria podido sair sem acordar -ninguem. - -—Mas então, diz Casimiro, podia-se tambem chegar até junto da menina sem -ser ouvido. A menina dormiu durante a noite? - -—Ai! sim, pelas tres horas não pude resistir ao somno, é mais forte do -que eu. - -—Ah! que fatalidade, porque durante o seu somno poude alguem entrar -n’esse quarto.. - -—Não me parece porque teria acordado.,. - -—Suppôr que a menina tenha tirado essa colhér, isso não tem senso commum, -depois do que aconteceu em casa da sr.ª Proh... que lhe causou tão grande -degosto! - -—É justamente por isso que me accusam ainda, a creada d’essa senhora -disse-me: «A colhér foi-se juntar cem a da sr.ª Proh.» - -—Isso é indigno!... mas socegue, Lisa, ha em tudo isto um mysterio que -eu conseguirei descobrir, não descançarei emquanto a sua innocencia não -estiver completamente reconhecida. - -O joven pintor consegue acalmar um pouco a magua de Lisa, acompanha-a até -á sua porta, e deixa-a promettendo-lhe mais uma vez que ha-de obrigar -toda a gente a fazer-lhe justiça. Mas Casimiro promettia o que elle -proprio não sabia como cumprir, porque debalde dava tratos á imaginação -para adivinhar como era que as colhéres de prata desappareciam dos -quartos onde Lisa passava a noite. - -Depois de ter entrado um momento em sua casa, Casimiro sae, decidido a -ir ter com Ambrosina, para saber se ella crê devéras que a rapariga seja -criminosa. Mas já a aventura da noite é sabida em todo o predio; porque -o primeiro cuidado de Adriana foi ir dizer ao porteiro que a menina Lisa -deu em casa de sua ama segunda representação da noite em que ficara em -casa da sr.ª Proh. Chausson, que sente certa sympathia pela inquilina do -quinto andar, tem muita pena de ser obrigado a julgal-a criminosa, mas -Rouflard, que escutou a creada de Ambrosina, diz-lhe: - -—A menina é uma tola em ter má lingua! é mister ser imbecil, depois das -historias da colhér perdida em casa da sr.ª Proh, para suppôr que uma -rapariga que quizesse commetter um furto repetisse exactamente a mesma -historia dois andares mais abaixo... - -—Pois bem! então onde está a colhér? - -—Que sei eu? debaixo das suas saias talvez.... - -—O senhor insulta-me, eu sou uma rapariga honrada, toda a gente o sabe, e -tenho orgulho n’isso. - -—Quem é honrada, não se gaba de o ser, não faz mais que o seu dever.... - -—Fica-lhe bem falar assim, o senhor que bebe o _rhum_ que lhe mandam -comprar. Ah! eu sei essa historia; o porteiro tem-me contado as suas -proezas. - -—Contou-lhe tambem as d’elle, quando era meu creado? - -—O senhor teve um creado? oh! é boa pilheria... - -—Pouco me importa que o acredite ou não, não é de mim que se tracta, é da -menina Lisa, que eu lhe prohibo accusar de furto. - -—O senhor prohibe-me! Ah! eu não faço caso das suas prohibições, sim, a -menina Lisa furtou uma cochér, ou duas, para melhor dizer... - -Adriana dizia isto gritando com todas as suas forças; Rouflard está -furioso. Ao barulho que se faz no patamar do primeiro andar, quasi todos -os inquilinos do predio teem saído de suas casas, e Casimiro chega alli -no momento em que Ambrosina vinha tambem á escada para ordenar á sua -creada que se callasse. - - - - -XVII - -O que era - - -Casimiro pára deante de Ambrosina, dizendo-lhe. - -—E a senhora tambem acredita que aquella menina lhe tenha tirado essa -colhér de prata que lhe falta? - -Ambrosina tracta de dominar a impressão que lhe causa a vista de -Casimiro, com quem ella se não tinha encontrado desde a altercação que -dera em resultado o rompimento das suas relações, e responde-lhe com um -tom levemente ironico: - -—Na verdade, sinto muito o que acontece, sobretudo por sua causa; lamento -que seja a sua protegida aquella a quem o senhor sacrificou uma antiga -amizade, que se tenha tornado culpada d’uma acção tão reprehensivel, mas -é forçoso reconhecer o que é, o que não se pode negar... - -—Mas, minha senhora, essa menina tem sido sempre um modelo de -honestidade, de bom comportamento. A senhora sabe como ella trabalha para -que a sua velha paralytica não sinta falta de coisa alguma... - -—Tudo o que quizer, senhor, mas então ache-me a colhér... - -—Podia ter entrado alguem em sua casa emquanto Lisa dormia, porque ella -dormiu. - -—Quem queria o senhor que entrasse... ladrões? mas o porteiro havia de -saber se entraram alguns no predio, e o senhor não suppõe, presumo eu, -que seja alguem da minha casa que tenha entrado no quarto onde a menina -Lisa estava velando a Adelinasinha... Ella dormiu, diz o senhor, dil-o -ella, mal quem o prova? - -—Ora! demais, exclama a sr.ª Proh, que desceu do terceiro andar para -se metter na conversação; não se dirá que em minha casa poude alguem -entrar até junto da enfermeira; depois, ha em tudo isto alguma coisa que -deve fazer condemnar Lisa, é o amor, a paixão da avó pelas colhéres de -prata, a sua menina comprou-lhe uma ultimamente, que ella se apressou a -mostrar-me. E’ provavel que a velha tenha querido ter outras... - -—A senhora está a calumniar pessoas honradas, não o consentirei!... - -—Eu não calumnio, digo o que é e custa pouco a dizer: Ella está -innocente! está innocente! então onde estão as nossas colhéres? - -Uma senhora que mora por cima de Ambrosina, que tem cincoenta annos, o ar -muito distincto, o aspecto frio, severo mesmo, e não fala a ninguem no -predio, mas que, attrahida pelo barulho que se faz na escada, ouviu tudo -o que se acaba de dizer no patamar do primeiro andar, desce tambem ahi -por sua vez, e diz a Casimiro: - -—O senhor não crê a menina Lisa culpada, nem eu tão pouco; mas ha em tudo -isto um mysterio que é preciso descobrir, estou persuadida de que o hei -de conseguir eu... - -—Ah! minha senhora! restituirá a vida a essa pobre Lisa, porque ella -morrerá de desgosto se a sua innocencia não fôr por todos reconhecida... -fale, o que tenciona fazer?... - -—Senhor, para isso é preciso que essa menina consinta em vir passar esta -noite em minha casa, dir-lhe-hei que minha irmã, que vive commigo, está -doente, e que é preciso que alguem a fique velando... - -—Ah! minha senhora, Lisa não quererá; depois do que lhe aconteceu duas -vezes, como quer a senhora que ella consinta ainda em velar alguem? - -—Consentirá se o senhor se encarregar de lhe pedir, se lhe disser que é -para ficar certa da sua innocencia que lhe pede este ultimo sacrificio -d’uma noite... - -—Oh! minha senhora, se assim é, eu a decidirei a ficar velando esta noite -em sua casa. - -—Pois bem! então, mande-a vir á meia noite. Pedirei a estas senhoras que -estejam em minha casa um pouco antes. - -—Para quê? pergunta a sr.ª Proh. - -—Para serem testemunhas do que lá se ha de passar, e, como espero, -reconhecerem a innocencia de Lisa. - -—Oh! a mim é-me impossivel estar de véla, isso constipa-me... - -—Eu não faltarei, diz Ambrosina, antes da meia noite terei a honra de a -ir visitar. - -—Muito bem, com o sr. Casimiro e commigo, será o sufficiente. O senhor -terá a extrema bondade de vir durante o dia dizer-me se Lisa consente em -vir ficar de véla em minha casa?... - -—Vou immediatamente lá acima, minha senhora, e em breve terá a sua -resposta. - -—Muito bem. Minhas senhoras, tenho a honra de as cumprimentar. - -A sr.ª Durmont, é este o nome da inquilina do segundo andar, sobe para -sua casa, deixando cada vizinha a fazer os seus commentarios. - -—Eu não creio nada que esta senhora descubra o mysterio, diz a sr.ª Proh. - -—Ficará tambem sem uma colhér, murmura Adriana. - -A sr.ª Montémolly manda calar a creada, e entra com ella para casa. - -—Ahi está uma senhora respeitavel, exclama Rouflard olhando para o -segundo andar; aquella não é de continhos, diz lá comsigo: A pequena -não tirou as colhéres, mas ha n’isso um mysterio, logo é preciso -descobril-o... - -—E como se haverá ella para isso? diz o porteiro. - -—Isso está acima da sua capacidade... - -—E da sua tambem... - -—Vossê esquece-se da sua posição, meu ex-_frontinio_!... - -—Qual _frontinio_!... eu sou guarda-portão... - -—Então, varra melhor o pateo. - -Casimiro não perde um instante; sobe a casa de Lisa, que elle acha sempre -na mesma tristeza, e diz-lhe: - -—Tenho boas noticias a annunciar-lhe. A sr.ª Durmont, esta senhora que -mora no segundo andar, interessa-se pela menina e não duvida da sua -innocencia... - -—Ah! agradeço-lhe muito; com effeito, essa senhora sempre olhou para mim -com bondade... - -—Mas não é só isso; ella quer que a verdade seja conhecida de todos, que -se descubra o que é feito das duas colhéres que desappareceram. - -—Ah! como serei feliz se ella consegue fazer isso; é a vida, porque é a -honra que essa senhora me restituirá. E o que fará ella para isso? - -—Oh! vae parecer-lhe singular; mas é preciso que esta noite a menina -consinta ainda em ir velar em casa d’ella, ao pé de sua irmã, que está -doente. - -—Velar, passar a noite longe de minha avó? oh! não, não, bem sabe que é -uma coisa que sempre me traz desgraça. - -—Mas d’esta vez é pelo contrario para a justificar que se lhe pede isso. -O que pode recear? aquella senhora interessa-se pela menina, ceda pois, -peço-lhe eu, consinta mais esta vez; tenho confiança na sr.ª Durmont, -ella descobrirá de certo o mysterio que reina n’essas duas noites -inexplicaveis... - -—E’ essa a sua vontade? pois bem! farei o que o senhor quer; mas em casa -d’essa senhora terei o cuidado de não adormecer. - -—Sim, é isso; d’esse modo verá o que se passar. A’ meia noite virei -buscal-a, e eu mesmo a levarei a casa d’essa senhora. - -—Terá essa bondade? - -—Ah! Lisa, tracta-se da sua felicidade, da sua reputação; pois a menina -acredita que alguem tome n’isso mais interesse do que eu? Então, está -ajustado; á meia noite estará prompta? - -—Oh! sim, a essa hora já minha avó está a dormir. - -—Eu virei buscal-a. - -E, deixando Lisa, Casimiro dirige-se immediatamente a casa da vizinha do -segundo andar, e diz-lhe: - -—Lisa consentiu; á meia noite eu lh’a trarei. - -—Muito bem. - -—Prometteu não se deixar dormir, e eu incitei-a tambem a isso, para que -ella veja se alguem vem ter com ella durante a noite. - -—Oh! o senhor fez muito mal, pelo contrario, é preciso que Lisa durma, é -indispensavel; é com isso que eu conto... - -—Não a comprehendo, minha senhora. - -—Ha de comprehender-me esta noite; demais, vou preparar uma bebida -ligeiramente soporifica, e pedir-lhe-hei que a faça beber o senhor mesmo -a essa menina, dizendo-lhe que é para se conservar bem esperta. - -—Mas, minha senhora... - -—Senhor, se Lisa não dormir, não saberemos nada, e esta experiencia será -completamente inutil. - -—Oh! n’esse caso obedecerei, porque tenho confiança na senhora. - -—Folgo de crer que se não arrependerá. Venha, senhor, acompanhe-me, vou -leval-o ao quarto onde Lisa ha de ficar velando esta noite; é onde dorme -minha mana, que goza de perfeita saude, mas que fingirá estar doente, -e pela noite adeante pedirá de beber duas ou tres vezes quando a sua -enfermeira não estiver a dormir. - -A sr.ª Durmont faz entrar o rapaz n’um bello quarto de dormir, que tem -duas portas: uma, que é de vidraça, dá para outro quarto; ahi estão os -vidros apenas cobertos por uma ligeira cortina de cassa. A senhora leva -Casimiro a este quarto, e diz-lhe: - -—Não acha, senhor, que detraz d’esta vidraça se pode ver tudo quanto se -faz no quarto onde Lisa ha de ficar? - -—Sim, minha senhora, effectivamente, não ha nada mais facil; como a -cortina está d’este lado, pode-se facilmente affastar. - -—Tanto mais que, pela maneira porque ha de estar allumiado o quarto de -minha mana, esta porta de vidraça ficará completamente na obscuridade. -Pois bem, senhor, é aqui, de traz d’esta vidraça e sem que a pequena o -saiba, que nós passaremos a noite, o senhor, a vizinha do primeiro andar -e eu; parece-lhe que poderemos assim vêr tudo o que Lisa fizer? - -—Certamente, minha senhora; mas, não comprehendo... - -—Espere, espere, e estou certa de que ha de comprehender esta noite. -O senhor terá a bondade de me trazer a menina Lisa, e fingirá que vae -para sua casa, mas voltará aqui por est’outro lado; não se esquecerá do -caminho? - -—Fique descançada, minha senhora, não me esquecerei de coisa alguma... - -—Até á noite, senhor. - -Casimiro deixa esta senhora, procurando em vão adivinhar o que ella -espera. Emcontra Rouflard e communica-lhe as suas inquietações. O -ex-janota abana a cabeça, dizendo: - -—Eu tambem não adivinho nada em tudo isso; mas em todo o caso, -affianço-lhe que passarei a noite na escada deante da porta d’essa -senhora, e que se algum larapio de colhéres tentar introduzir-se na casa, -começarei pelo desancar. - -Assim que dá meia noite, Casimiro dirige-se a casa da sua vizinha. Acha-a -muito triste, a tremer, mas prompta a seguil-o, porque sua avó está a -dormir. A rapariga apressa-se a pegar no seu trabalho, e, sem dizer -palavra, vae acceitar o braço que lhe offerece Casimiro. Descem assim -alguns degraus. - -—A menina está a tremer, diz-lhe o seu braceiro, tem frio? - -—Não, pelo contrario, tenho muito calor; mas estou a tremer, porque -adivinho ainda uma desgraça... - -—Mas, ao contrario, são os seus desgostos que vão acabar, socegue, esta -senhora quer que a sua innocencia brilhe aos olhos de toda a gente. - -—E como se haverá para isso?... - -—E’ segredo d’ella... tenha confiança. - -Chegam ao segundo andar. A sr.ª Durmont vem pessoalmente ao seu encontro, -e leva-os para o quarto onde a irmã está deitada ha muito tempo. - -—E’ aqui que a menina ficará velando, diz ella á sua joven vizinha; tome -uma chavena de chá, que lhe ha de fazer bem e conserval-a acordada. - -—Agradecida, minha senhora, não preciso de nada. - -—Lisa, diz Casimiro, tome o que esta senhora lhe offerece, peço-lhe eu, -isso ha-de socegal-a. - -—Se o senhor o deseja... - -E a rapariga bebe o conteúdo da chavena que lhe apresentam. - -—Agora, boa noite, diz Casimiro, vou para minha casa... até ámanhã... - -—Sim, até ámanhã. - -O joven pintor retira-se. A sr.ª Durmont diz então a Lisa: - -—Minha menina, aqui tem tudo quanto lhe é preciso; tisana para quando -minha irmã pedir de beber... uma colhér d’este xarope quando ella tossir. - -—Uma colhér, ah! sim... ahi temos outra; mas podia-se passar sem ella, -minha senhora. - -—Não... pelo contrario, é indispensavel; precisa mais alguma coisa? - -—Oh! não, minha senhora, de nada absolutamente. - -—N’esse caso, vou deixal-a; minha irmã parece menos afflicta esta noite, -creio que lhe dará pouco que fazer, aqui tem uma grande poltrona onde -estará á sua vontade para repousar. Porque, se minha irmã dormir, tambem -a menina pode descançar um pouco. - -—Oh! não, minha senhora, não quero... velarei sempre... - -—Boa noite, menina, até ámanhã. - -Assim que a sr.ª Durmont se retira, Lisa senta-se n’uma cadeira e pega no -seu trabalho, dizendo comsigo: - -—Oh! não, não me deixarei dormir, para que durante o meu somno venham -ainda tirar a colhér... Ah! se eu tivesse velado sempre, não teria -acontecido isso; mas esta lampada allumia perfeitamente, posso bordar. - -Casimiro entretanto dirigiu-se ao quarto que lhe foi indicado e que está -apenas allumiado por uma lamparina. Encontra alli Ambrosina, que está -sentada junto da porta de vidraça; toca um frio cumprimento com ella, -dizendo-lhe: - -—Agradeço-lhe, minha senhora, o não ter faltado aqui, para ter a prova da -innocencia de Lisa... - -—Desejo-o muito, porque eu não sou tão má como o senhor pensa; mas -confesso-lhe que duvido que se consiga proval-a. - -Põe termo a este colloquio a chegada da sr.ª Durmont, que colloco a -lamparina muito longe da porta de vidraça, dizendo: - -—D’esta maneira, é impossivel que do quarto da minha mana se veja que -ha luz aqui, emquanto que nós, atravez d’esta ligeira cortina de cassa, -podemos ver tudo o que alli se passa. Olhe, minha senhora, tenha a -bondade de vêr... - -—Ambrosina põe a cara á vidraça e murmura: - -—Effectivamente, vejo muito bem, porque o quarto està muito illuminado... -a rapariga trabalha... - -—Sim, e agora é preciso termos paciencia, devemos esperar que ella -adormeça. - -—Mas se não adormecer? - -—Oh! estou certa do contrario, graças a um ligeiro narcotico que misturei -na chavena de chá que lhe fiz tomar, e creio que era isso necessario, -porque ella estava muito decidida a não dormir. Mas aquella beberagem não -fará talvez o seu effeito senão dentro de duas ou tres horas... d’aqui -até lá, se a senhora quer encostar-se n’esta poltrona... - -—Não, minha senhora, muito agradecida, não tenho vontade de dormir, -porque estou com muita curiosidade de saber o que sairá de tudo isto. - -Esta conversação era toda em voz baixa, o que augmentava o mysterio -que esta noite devia descobrir. As tres pessoas alli reunidas teem-se -sentado e guardam silencio, pondo os ouvidos á escuta do que se passa no -quarto onde está Lisa. A irmã da sr.ª Durmont, que sabe bem o seu recado, -pede de beber; a rapariga apressa-se a dar-lhe a tisana, e em seguida -offerece-lhe uma colhér de xarope, que é logo acceita. Lisa torna a pôr a -colhér em cima do meza, e senta-se ao lado. A supposta enferma adormece -devéras, e a rapariga põe-se de novo ao seu trabalho. - -Assim se passa uma hora, e depois outra. A anciedade de Casimiro -augmenta; Ambrosina não diz palavra, mas não fecha os olhos. A sr.ª -Durmont olha constantemente pela vidraça, murmurando: - -—Mas a pequena não adormece... conseguiria ella vencer o narcotico!... - -—Passam ainda alguns minutos, que parecem seculos; a final a sr.ª Durmont -exclama: - -—Ah! debalde pretende resistir, cae-lhe o trabalho das mãos, vae -adormecer... - -—Sim, sim, adormece, diz Casimiro; veja, lá inclinou a cabeça para traz. -Oh! ella ahi está bem adormecida... - -—E agora, diz Ambrosina olhando tambem pela vidraça, o que é que se vae -passar?... - -—Espere, minha senhora, espere que o somno seja bem profundo, agora -podemos levantar de todo esta cortina sem receio de sermos vistos. - -E’ levantada a cortina. As tres pessoas que espreitam estão com os olhos -pregados em Lisa; esta, no fim de algum tempo, agita-se; o seu somno -parece desassocegado e molesto. - -—Coitada! parece-me bem afflicta, diz Casimiro, deve estar com algum -sonho máu... - -—Ah! ahi acorda ella... porque lá se levanta e abre os olhos, diz -Ambrosina. - -—Silencio, minha senhora, silencio, diz a sr.ª Durmont; ella continúa -dormindo, não vê que é somnambula? - -—Somnambula! - -—Pois! escute... está falando... - -Lisa, que continua a dormir, não obstante estar com os olhos muito -abertos, levanta-se da cadeira, dizendo: - -—Sim, avósinha, sim, vou fechar a sua colhér de prata... que a avósinha -estima tanto, e que tem tanto medo que nos furtem. Oh! mas eu a -esconderei bem, não tenha cuidado, sempre no mesmo sitio, a avósinha bem -sabe, debaixo do meu colchão de crina... - -E Lisa vae immediatamente buscar a colhér que está em cima da mesa, e, -indo pôr-se de joelhos deante da cama, mette-a entre o leito e o colchão; -depois ergue-se, dizendo: - -—Oh! está bem escondida, ninguem dará com ella... não tenha medo agora, -avósinha... - -Lisa volta para o seu logar, torna a sentar-se e fecha os olhos. A’s -tres pessoas que espreitam pela vidraça, não lhes escapou nada do que se -passou. Casimiro está transportado de alegria. - -—Justificada! exclama elle, está justificada, porque as outras colhéres -devem estar escondidas no mesmo sitio, não é verdade, minha senhora? - -—Certamente! responde a sr.ª Durmont, esta rapariga é somnambula, eis -o que eu havia adivinhado; eis o que eu tinha a peito fazer-lhes ver: -agora, venham, podemos entrar no quarto, que ella não acordará... - -—Somnambula! diz Ambrosina, que custa a cair em si do seu espanto. Ah! -estou com muita curiosidade de a examinar de perto. - -Aberta a porta de vidraça, entram todos tres no quarto de dormir. Lisa -está na poltrona, com a cabeça inclinada para traz, e, na agitação do seu -somno, afastou completamente o lencinho que lhe cobria o pescoço; pode-se -então ver uma pequena medalha presa a uma fita preta, que ella traz -sempre escondida debaixo do vestido. - -A sr.ª Montémolly, que duvida ainda do somno de Lisa, approxima-se d’ella -e examina-a com muita attenção. - -—Venha, minha senhora, diz-lhe Casimiro, venha, vamos a sua casa, a -colhér deve estar egualmente escondida debaixo do leito da sua doentinha; -é preciso que a senhora tenha pessoalmente a prova da innocencia de -Lisa... - -Mas Ambrosina parece estar attonita; acaba de ver a medalha que a -rapariga traz ao pescoço; essa medalha, que tem uma fórma particular, é -esmaltada toda em roda e artisticamente lavrada. Ambrosina não pode tirar -d’ella os olhos, e responde apenas a Casimiro: - -—Vá, senhor, vá com essa senhora... não precisam de mim; a minha creada -está velando, com luz... demais, aqui teem a minha chave... - -—Mas porque não vem a senhora comnosco? - -—Porque não, alguma coisa muito mais importante me faz ficar ao pé de -Lisa; logo saberão o que é... andem, vão... - -Casimiro não insiste, porque demais está com pressa de ir procurar a -outra colhér; a sr.ª Durmont não tem menos pressa, porque sente certo -orgulho em ter conseguido descobrir o mysterio que envolvia as acções de -Lisa. Na escada encontram Rouflard, o qual se puzera alli de sentinella. - -—Justificada! diz-lhe logo Casimiro, Lisa é somnambula, e a dormir, -pensando sempre na colhér da avó, esconde debaixo do colchão de crina -quantas colhéres encontra á mão. Vamos procurar a que ella deve ter -escondido assim em casa da sr.ª Montémolly. - -—Ah! por favor, permittam-me que vá tambem, exclama Rouflard, gostarei -muito de ver a cara que vae fazer a besbilhoteira da creada!... - -—Venha, Rouflard, venha... - -Entram em casa de Ambrosina, e acham a menina Adriana a dormir na sala em -vez de estar velando á cabeceira da doentinha; mas Casimiro desperta-a -dizendo-lhe: - -—Venha comnosco, menina, conduza-nos ao quarto onde Lisa passou hontem a -noite; vamos lá achar esse objecto perdido... - -—A colhér? ah! isso agora é forte de mais; se eu procurei por toda a -parte inutilmente!... - -Mas não fazem caso do que diz a creada, e dirigem-se todos ao bonito -quarto onde dorme a pequenita. Ahi, Casimiro corre á cama, busca debaixo -do colchão de crina e não tarda a soltar um grito de jubilo, tirando para -fóra a colhér e mostrando-a a toda a gente. - -Então Rouflard pula de alegria, e diz a Adriana: - -—Responda a isto, má lingua! parece que não tinha buscado por toda a -parte! - -—Oh! valha-me Deus! quem é que podia suspeitar que se fosse pôr uma -colhér de prata n’este sitio; com que fim? - -—Quando uma pessoa é somnambula faz coisas muito mais admiraveis! - -—Somnambula?... - -—Sim, eis todo o mysterio! Ah! subo a casa dos Proh, para lhes dizer onde -teem a colhér... - -—Mas elles estão a dormir, Rouflard! - -—Razão de mais, meu artista; isso ha de fazer-lhes mais effeito! quero -que a justificação do meu anjo bom faça tanta bulha como as calumnias que -lhe accusavam. - - - - -XVIII - -Outra descoberta - - -Casimiro e a sr.ª Durmont voltam a ter com Ambrosina; acham-n’a ainda ao -pé de Lisa, que não acordou, devorando com os olhos a medalha suspensa ao -pescoço da donzella, mas não se atrevendo a tocar-lhe, com receio de a -fazer sair do somno um pouco forçado em que a mergulhou o narcotico que -lhe fizeram tomar. - -—Minha senhora! minha senhora! aqui tem a sua colhér! exclama Casimiro -mostrando a colhér de prata; estava escondida como aqui; graças a esta -senhora, a pobre rapariga está plenamente justificada... - -—Sim, senhor, sim; eu não duvidava d’isso; mas alguma coisa que não -posso comprehender me detem ao pé de Lisa; esta medalha que ella traz, é -exactamente como aquella que eu tinha posto ao pescoço de minha filha; a -minha abria-se, e na parte anterior tinha eu mandado gravar duas letras: -um A e um G, que eram as iniciaes do meu nome e do de seu pae; ardo -em desejo de saber se esta medalha se pode abrir, mas não me atrevo a -tocar-lhe com receio de acordar esta menina... - -—Oh! não ha perigo! diz a sr.ª Durmont, o seu somno é profundo agora; -espere... espere, vou tirar-lhe; ou antes desatar esta fita. - -A inquilina do segundo andar faz esta operação com muito geito; desata -a fita, tira a medalha, e apresenta-a a Ambrosina; esta pega n’ella com -a mão tremula, busca, descobre a juntura; a medalha abre-se. Ambrosina -dá um grande grito, acaba de reconhecer as duas letras, e mostra-as ás -pessoas que a rodeiam, dizendo-lhes: - -—Olhem! vejam... um A e um G... é exactamente a medalha que eu tinha -posto ao pescoço de minha filha quando a entreguei á ama. Como é que ella -se acha ao pescoço d’esta menina? - -Entretanto o grito dado por Ambrosina acordou Lisa, que abre os olhos, -põe-se a olhar para as pessoas que a cercam, e balbucia: - -—Meu Deus! o que é que eu fiz ainda?... - -—Não receie nada, minha menina, diz a sr.ª Durmont, a sua innocencia está -reconhecida; tudo lhe será explicado... - -—Mas n’este momento, diz Ambrosina, queira responder-me, esta medalha, -que a menina trazia ao pescoço, e que eu tomei a liberdade de lhe tirar -para a examinar de mais perto, d’onde lhe veiu? de quem a houve? - -—De quem a houve? mas eu tenho-a tido sempre, foi minha mãe que m’a pôz -ao pescoço quando me levou para casa da minha ama. - -—Sua mãe? meu Deus!... como se chama ella? - -—Eu nunca o soube, ella não dizia o seu nome quando vinha ver-me a casa -da minha ama... - -—Como! a menina não sabe? e tem comsigo sua avó... ella existe?... - -—Ah! minha senhora, a pobre velha paralytica não é minha parenta; era -mãe da minha boa ama, que tinha muito cuidado em mim, que me conservou -comsigo, quando minha mãe me abandonou; eis a razão por que eu, quando a -minha ama morreu, tive sempre cuidado em sua mãe... - -—Meu Deus! tudo o que estou ouvindo... minha menina... por quem é... -diga-me a terra onde foi educada... - -—Em Pierrefitte, minha senhora... - -—Pierrefitte... está bem, ah!... e o nome da sua ama... - -—Catharina Vauger... - -—Ah! não me resta duvida! és minha filha!... - -Ambrosina aperta Lisa nos braços, e cobre-a de beijos, dizendo-lhe: - -—Sim, és effectivamente minha filha, mas não creias que eu tivesse nunca -o pensamento de te abandonar, eu, que era tão feliz em ter uma filha! -Tu foste... fomos ambas indignamente enganadas; eu tinha uma tia que te -detestava; durante uma viagem que fiz a Italia para restabelecer a minha -saude, essa tia, a quem eu tinha recommendado muito que velasse por ti, -annunciou-me que tinhas deixado de viver!... - -—Oh! então, deve ter sido ella que escreveu á minha ama, remettendo-lhe -uma quantia bastante avultada, para que viesse estabelecer-se em Paris, -e não me chamasse mais senão Lisa em vez de Leontina, que era o nome que -minha mãe me tinha dado... - -—Leontina... ah! é isso mesmo... tua mãe... mas sou eu... querida -filha, sou eu mesma... acaso não terás por mim alguma affeição... não me -perdoarás... o mal que te tenho feito?... - -—Oh! minha senhora... minha mãe... já me não lembro d’isso! - -As testemunhas d’esta scena tomam parte na alegria, no enternecimento -d’estas duas mulheres, uma das quaes torna a encontrar a filha que -tinha por morta ha muito tempo, emquanto que a outra, que quasi todos -accusavam, que suspeitavam culpada d’uma acção deshonrosa, se vê agora -abraçada, coberta de caricias e de lagrimas por uma bella senhora que -é sua mãe. Lisa, no auge da sua alegria, extende as mãos a Casimiro, -exclamando: - -—Ah! o senhor é que nunca me julgou criminosa! - -Depois agradece á sr.ª Durmont dizendo-lhe: - -—E’ pois á senhora que eu devo o ter recuperado a estima do mundo, como é -que se houve então para provar a minha innocencia? - -—Minha querida menina, depois de tudo o que se passára, eu tinha -adivinhado que a menina era somnambula, e não me enganava. - -—O quê! eu sou somnambula!... - -—Sim, sem duvida, quando está a dormir, sempre preoccupada com a colhér -de prata que deu á sua velha companheira, e receando que lh’a furtem, a -menina pega na que tem perto de si, pensando que é a sua, e esconde-a. -Oh! isso não tem nada de muito extraordinario; tenho visto fazer a -somnabulos coisas muito mais de espantar!... - -—Mas, quando estou acordada, devia lembrar-me do que fiz estando a -dormir!... - -—Não, minha filha, os somnambulos não se recordam nunca do que fizeram -emquanto estiveram entregues a esse somno em acção, e é isso o que ha -de mais singular n’essa doença, porque é effectivamente uma doença, mas -que passa com a mocidade, e desapparece inteiramente quando a edade tem -acalmado as nossas paixões e o calor do nosso sangue. - -—Agora, diz Ambrosina, não incommodemos mais tempo esta senhora, a quem -eu devo tambem a minha felicidade, pois que é, graças á idéa que ella -teve de te ver adormecida, que eu pude examinar essa medalha e tornar a -achar minha filha. Vem, minha querida Lisa, vem para casa de tua mãe, a -quem não deixarás mais d’aqui em deante. - -Lisa está perplexa e confusa, sorri-se para sua mãe, e balbucia: - -—E a pobre velha de quem nunca me tenho separado... acaso quereria que eu -a abandonasse? - -—Não, não querida filha, comprehendo o teu coração, não quero causar-te -nenhum desgosto; a mãe da tua ama não se ha de separar de ti, tomal-a-hei -para a nossa companhia, a minha casa é bastante grande para que eu possa -dar-lhe um quarto. D’este modo nada lhe faltará, e tu velarás sempre por -ella... - -—Ah! minha senhora... minha mãe... é tambem muito bondosa! - -—E, agora que vem rompendo a aurora, vou subir comtigo a esse pobre -quarto que habitavas; participaremos á boa velha que já não és orphã e -que tua mãe nunca te tinha abandonado; eu te mostrarei a carta de minha -tia, em que ella me annunciava que tinha perdido minha filha; tenho -conservado sempre essa carta... - -—E eu, minha mãe, hei de mostrar-lhe a carta que a minha ama recebeu -juntamente com uma quantia, e na qual se lhe ordenava que não me chamasse -mais senão Lisa e que viesse estabelecer-se em Paris. - -—Oh! sim, e estou certa que hei de reconhecer a letra de minha tia. - -Ambrosina está contentissima; estende a mão a Casimiro, dizendo-lhe: - -—De hoje em deante somos amigos, e espero que não veja mais em mim senão -a mãe de Lisa, que lhe agradece de todo o coração o interesse, a amizade -que o senhor tinha por sua filha e que nunca se opporá ao que podér fazer -a sua felicidade. - -Casimiro aperta de bom grado esta mão, que ê agora a d’uma pessoa amiga. - -Despedem-se todos da sr.ª Durmont, reiterando-lhe os seus agradecimentos, -que tão bem merecidos eram. Lisa sobe ao seu quarto acompanhada por sua -mãe, que não quer deixar mais a filha que um tão grande acaso acaba de -lhe restituir. Na escada encontram ainda Rouflard, que sae de casa dos -Proh, gritando: - -—Elles lá teem a colhér, que nunca lhes tinha saído de casa. Mas, apre! -tive um trabalhão immenso! não me queriam abrir a porta! - -Ouvindo tocar a sua campainha no meio da noite, a familia Proh julgára -primeiro inutil responder; mas, como o repique não cessava, tinha -perguntado: - -—Quem está ahi? - -—Sou eu, gritára Rouflard, que venho fazer-lhe achar a sua colhér! - -Ao reconhecer a voz de Rouflard, o professor respondera: - -—O senhor é um maroto, quer perturbar o nosso somno com esse ignobil -gracejo, ámanhã hei de mettel-o em processo. - -Ao que Rouflard, replicára: - -—Eu não gracejo, é o senhor e todos os seus que são uma familia de -pepinos! Eu tenho a peito fazer-lhes reconhecer a innocencia de Lisa, que -é somnambula, e vou fazer-lhes achar a sua colhér! tocarei a campainha -até ámanhã se fôr necessario. - -A sr.ª Proh decide-se emfim a abrir. Então Rouflard diz: - -—Venham todos commigo ao quarto onde Lisa passou a noite; ella escondeu a -colhér debaixo do colchão de crina... - -—Não é possivel, diz Angelina, eu teria dado por isso! - -—E de que modo, se a menina estava a dormir?... Vamos lá sempre. - -Dirigem-se todos ao quarto da donzella. O rapazinho que se tem tambem -levantado e ouve tudo, exclama: - -—Eu vou procurar debaixo do colchão... - -—Não, não, tu não tens o braço bastante comprido, diz Rouflard, que -busque o illustre professor, se isso lhe é agradavel... - -—Eu! prestar-me a essa nova mangação, para o senhor fazer chacota de -mim!...não conte com isso... - -Mas, durante esta altercação, a sr.ª Proh, que está muito impaciente, -tem-se já posto de joelhos deante da cama; mette o braço debaixo do -colchão, e em seguida tira de lá para fóra a colhér, dizendo: - -—Pois é verdade, ella cá está! - -—Então, professor, é mentira o que eu lhe dizia? Que diz a isto? - -—Direi o que isso prova: que as nossas mulheres, filhas ou creadas que -teem a seu cargo o arranjo da casa, não se dão ao trabalho de levantar os -colchões quando fazem as camas!... - -—Ora, senhor! exclama a sr.ª Proh, as mulheres teem já tantas coisas que -levantar! - -Ambrosina acompanha a filha até á agua-furtada; acham a avó acordada, -contam-lhe os acontecimentos da noite, e a boa da velha, á força de olhar -para Ambrosina, de a examinar bem, exclama: - -—Sim... é verdade... reconheço-a agora... foi a senhora que nos trouxe a -pequena... e que voltou a vel-a muitas vezer a Pierrefitte. - -Depois Lisa mostra a carta que a sua ama tinha recebido; Ambrosina -reconhece a letra de sua tia, e, se ella tivesse ainda alguma duvida -sobre a identidade de sua filha, esta ultima prova não podia deixar-lhe -mais nenhuma. Pela sua parte, mostra tambem a Lisa a carta de sua tia que -lhe annunciava a morte da filha, porque tem a peito provar a Lisa que -nunca tivera a idéa de a abandonar. - -No dia immediato a esta noite tão fecunda em acontecimentos, faz-se -na casa uma grande mudança: como Florentina viera buscar a filha, -Ambrosina dá a Lisa o lindo quarto azul onde estivera a pequenita; depois -arranja-se um outro quarto para a velha paralytica, que é trazida da sua -agua-furtada para o primeiro andar, e que fica muito satisfeita ao saber -que, apezar da sua mudança de fortuna, a Lisinha, que ella considera como -filha, não se quer separar d’ella. - -Casimiro ficou muito espantado, e assim a modo triste, quando se -descobriu o segredo do nascimento de Lisa; teve mesmo por um momento -o coração opprimido, como quem receia perder a pessoa que ama. Mas em -breve adquire a prova de que o amor maternal extinguiu em Ambrosina -qualquer outro sentimento, e que para esta mulher, tão feliz por ter -achado sua filha, o passado não é mais do que um sonho, de que ella nem -mesmo quer conservar a recordação. O joven pintor pode pois agora ver -Lisa em casa de sua mãe. Mas durante os primeiros mezes que se seguem a -este acontecimento, põe n’isso certa discreção, porque comprehende que ha -situações que precisam de tempo para se consolidarem. Demais, Casimiro -trabalha agora muito; o bom acolhimento que os seus quadros obteem, -redobra o seu enthusiasmo, o seu amor pela pintura; em todas as artes, -não é preciso muitas vezes mais que um bom exito para tirar um homem da -mediocridade, para fazer d’elle uma celebridade, e por falta d’esse bom -exito quantos talentos não teem morrido, sem terem desenfardado as suas -mercadorias, como diz Montaigne. - -Seis mezes depois d’estes acontecimentos, morre o sr. Loursain, em -consequencia d’uma indigestão. Ambrosina sabe que está viuva, e, o que a -surprehende muito mais, é que recebe uma carta d’um tabellião, que lhe -participa que seu marido lhe deixou toda a sua fortuna, que anda por -perto de trezentos mil francos. A menina Rosa, a creada tão janota e -presumida, que seu amo tratava por tu, teve apenas em legado uma quantia -de seiscentos francos, e o retrato do corpo inteiro do sr. Loursain. A -creadinha, na força da sua colera, manda accrescentar no retrato um par -de chifres e vende-o para servir de taboleta a um salsicheiro, que manda -escrever por baixo: _O boi da moda_. - -Ambrosina, que tencionava entregar á filha uma parte dos seus haveres, -dá-lhe primeiro em dote a fortuna que lhe deixa o sr. Loursain, comprando -ella para si uma bonita casa nos suburbios de Paris, onde faz tenção de -ir viver quando Lisa casar com Casimiro. - -Essa união pouco tarda a fazer-se, porque Lisa confessou a sua mãe que -ama o rapaz que lhe fez o retrato. Ambrosina estabelece os jovens noivos -n’uma linda habitação, e retira-se para a casa de campo, onde agora quer -viver sempre; Lisa, porém, se deixou sua mãe, não quiz, posto que casada -separar-se d’aquella de quem cuidava tão carinhosamente na sua pobre -agua-furtada, da boa velha a quem ella chamava avó, e Casimiro, lá de si -para si, estima cem vezes mais que ella tenha na sua companhia esta do -que a outra. - -Desde que em casa dos Proh se achou a colhér de prata, o Fonfonsinho não -cessa de gritar por toda a parte: - -—Lisa é funanbula! e quando uma pessoa é funanbula esconde tudo quanto -quer: - -Debalde a sr.ª Proh diz ao filho: - -—Não é funambula, somnambula é que essa menina era... - -—Qual é a differença? - -—A differença, meu filho, é que os somnambulos andam a dormir e os -funambulos andam n’uma corda e até dansam, estando acordados. - -—Pois bem! eu antes quero ser somnambulo! - -—Para quê, filho? o somnambulismo é uma enfermidade, emquanto que o -funambulismo é um talento! - -—Sim, mas quando eu fôr somnambulo hei de esconder todos os covilhetes de -doce. - -—Nada ganharias com isso, Affonso, pois que, em acordando, ninguem se -lembra mais do que fez no estado de somnambulismo. - -—Ah! pois não! então eu sou tolo! não serei somnambulo senão d’um olho!... - -O sr. Proh bate com a mão na testa, exclamando: - -—Este rapazinho ha de ir longe! - -Graças ao trabalho que Casimiro lhe arranja Rouflard pode viver; poderia -mesmo ter um quarto um pouco melhor, mas elle não quer mudar-se, dizendo -que está habituado a morar alli, assim como a chamar ao porteiro seu -creado; como o pintor já não mora no predio, Chausson deixa algumas vezes -o seu antigo amo dormir na rua, porque este continúa a embriagar-se do -mesmo modo. Em vão Casimiro lhe diz: - -—É preciso corrigir-se d’esse ruim defeito, Rouflard; quando um homem -quer devéras, de tudo se emenda! veja o exemplo em mim, eu era um -preguiçoso, hoje gosto do trabalho. - -—Isso é muito bonito, responde Rouflard, mas eu preciso de consolações; -morava por baixo de mim um anjo, o senhor levou-o para longe! quando -estou bebedo, affigura-se-me que o tenho ainda ao pé de mim, e é por isso -que bebo! - - -FIM DA «A MENINA LISA» - - - - - OBRAS COMPLETAS DE PAULO DE KOCK - - _Estão publicados 23 volumes_ - - A seguir: - - O homem dos tres calções (2 vol.) - - - - -INDICE - - - Pag. - - Palavreado para servir de prefacio 5 - - I—Uma creada que sae a recados 11 - - II—Na botica 22 - - III—Um rapaz manteúdo 36 - - IV—Um almoço em intimidade 48 - - V—O lindo Rouflard 62 - - VI—A familia Proh 72 - - VII—A menina Lisa 79 - - VIII—Travam conhecimento 88 - - IX—Uma colhér de prata 97 - - X—Ainda as creadas 105 - - XI—O vinho quinado 111 - - XII—A primeira sessão 117 - - XIII—Um rapazito endiabrado 128 - - XIV—A senhora do primeiro andar 137 - - XV—A menina Proh doente 143 - - XVI—Mais um caso extraordinario 155 - - XVII—O que era 166 - - XVIII—Outra descoberta 177 - - -REFERENCIA DAS ESTAMPAS - - Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado 83 - - Mas o que faz o senhor aqui? 129 - - - - - -End of the Project Gutenberg EBook of A menina Lisa, by Paul de Kock - -*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - -***** This file should be named 63195-0.txt or 63195-0.zip ***** -This and all associated files of various formats will be found in: - http://www.gutenberg.org/6/3/1/9/63195/ - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the -trademark license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. 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You may copy it, give it away or re-use it under the terms of -the Project Gutenberg License included with this eBook or online at -www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have -to check the laws of the country where you are located before using this ebook. - -Title: A menina Lisa - -Author: Paul de Kock - -Release Date: September 13, 2020 [EBook #63195] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: UTF-8 - -*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - - - - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - - - - - - -</pre> - - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_1"></a>[1]</span></p> - -<p class="titlepage"><span class="u">XXIII—COLECÇÃO PAULO DE KOCK</span></p> - -<p class="titlepage larger">A menina Lisa</p> - -<div class="figcenter" style="width: 400px;"> -<img src="images/coverimg.jpg" width="400" height="520" alt="" /> -</div> - -<p class="titlepage">GUIMARÃES & C.ª EDITORES<br /> -R. DO MUNDO, 68—LISBOA</p> - -<p class="center smaller">Imp. Lucas</p> - -<hr /> - -<div class="ad"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_2"></a>[2]</span></p> - -<p class="center larger"><b>Livraria editora GUIMARÃES & C.ª</b></p> - -<p class="center">68, RUA DO MUNDO, 70—LISBOA</p> - -<p class="noindent"><i>O LIVRO DE MARIETA</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">(1.º vol. da Biblioteca Infantil)—1 vol. com 23 contos -ilustrados com 25 gravuras, br. 300 rs. Enc. 400 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>AS MIL E UMA NOITES</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">(Contos arabes)—2 vol. br. 600 rs. Enc. com linda -capa de percalina impressa a 4 cores e ouro 900 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>CONTOS</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">de D. João da Camara—1 vol. br. 600 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>CONTOS</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">do Dr. Candido de Figueiredo—1 vol. br. 200 rs. -Enc. 300 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>TRATADO DE CIVILIDADE E ETIQUETA</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">pela condessa de Gencé—1 vol. br. 600 rs. Enc. -800 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>GUIA MUNDANO DAS MENINAS CASADOIRAS</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">da Condessa de Gencé—1 vol. br. 500 rs. Enc. 700 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>IVANHOÉ</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">romance de Walter Scott—4 vol. br. 800 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>O VIGARIO DE WAKEFIELD</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">de Goldsmith—1 vol. br. 200 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>SAUDADES</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">(Menina e moça) de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. -200 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>TROVAS DE CRISFAL</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 300 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>VERSOS PORTUGUESES</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">de Sá de Miranda—1 vol. br. 500 rs.</p> - -</div> - -<p class="noindent"><i>PAULO E VIRGINIA</i></p> - -<div class="blockquote"> - -<p class="noindent">romance de Bernardim de Saint-Pierre—1 vol. III. br. -200 rs.</p> - -</div> - -</div> - -<hr /> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_3"></a>[3]</span></p> - -<p class="titlepage">PAULO DE KOCK</p> - -<p class="center">OBRAS COMPLETAS E ILLUSTRADAS</p> - -<p class="center">XXIII</p> - -<p class="titlepage larger">A MENINA LISA</p> - -<p class="titlepage">(VERSÃO PORTUGUEZA)</p> - -<div class="figcenter titlepage" style="width: 100px;"> -<img src="images/tp.jpg" width="100" height="140" alt="" /> -</div> - -<p class="titlepage smaller">LISBOA<br /> -<span class="smcap">Empreza da Historia de Portugal</span><br /> -<i>Sociedade editora</i><br /> -LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHIA<br /> -<i>R. Augusta, 95</i><br /> -<i>45, R. Ivens, 47</i><br /> -1907</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_4"></a>[4]</span></p> - -<h2 class="nobreak">VOLUMES PUBLICADOS</h2> - -</div> - -<table summary="Volumes publicados"> - <tr> - <td class="tdr">I—</td> - <td>A menina das tres saias—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">II—</td> - <td>Uma vida attribulada—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">III—</td> - <td>Taquinet o Corcunda—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">IV—</td> - <td>O sr. Choublanc á procura da mulher.—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">V—</td> - <td>A Lagôa d’Auteuil (1.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VI—</td> - <td>A Lagôa d’Auteuil (2.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VII—</td> - <td>A Lagôa d’Auteuil (3.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VIII—</td> - <td>A menina dos tres espartilhos—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">IX—</td> - <td>O porteiro da rua du Bac—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">X—</td> - <td>Um namorado caloiro (1.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XI—</td> - <td>Um namorado caloiro (2.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XII—</td> - <td>A noiva de Fontenay aux Roses—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XIII—</td> - <td>A Viuva Tapin—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XIV—</td> - <td>A Leiteira de Montfermeil (1.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XV—</td> - <td>A Leiteira de Montfermeil (2.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVI—</td> - <td>A Leiteira de Montfermeil (3.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVII—</td> - <td>Um rapaz mysterioso—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVIII—</td> - <td>Papá-sogro—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XIX—</td> - <td>A menina do quinto andar (1.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XX—</td> - <td>A menina do quinto andar (2.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XXI—</td> - <td>A menina do quinto andar (3.º vol.)</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XXII—</td> - <td>A Baroneza Blaguiskoff—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XXIII—</td> - <td>A menina Lisa—1 vol.</td> - </tr> - <tr> - <td class="pad" colspan="2">NO PRELO:</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XXIV—</td> - <td>O homem dos tres calções—2 vol.</td> - </tr> -</table> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_5"></a>[5]</span></p> - -<div class="figcenter" style="width: 500px;"> -<img src="images/header.jpg" width="500" height="100" alt="" /> -</div> - -<h2 class="nobreak" id="PREFACIO">PALAVREADO PARA SERVIR DE PREFACIO</h2> - -</div> - -<p>De certo tempo para cá, uma nova molestia tem -feito irrupção em Paris, por outra, em toda a França; -eu poderia mesmo accrescentar que se vae extendendo -tambem aos paizes estrangeiros. Socegae, querido leitor -e formosa leitora (eu acho sempre as minhas leitoras -formosissimas), esta molestia não é d’aquellas -de que se morre, ou que podem desfigurar as vossas -lindas feições (folgo tambem de crer que possuis umas -feições encantadoras); é simplesmente a mania dos -<i>autographos</i>, que traz quasi sempre após si a dos <i>albuns</i>.</p> - -<p>Quando um homem tem a fortuna—parece-me que -seria melhor dizer a desgraça!—emfim, quando um -homem tem alguma celebridade, não se passa dia algum -em que não receba pedidos de autographos, ou -não veja entrar-lhe em casa um sujeito, que lhe é inteiramente -desconhecido, mas que traz debaixo do braço -um objecto bastante volumoso, cuidadosamente embrulhado -em papel e mettido n’uma caixa de cartão. -Este sujeito, depois de muitos cumprimentos e d’essas -phrases banaes que se dizem a toda e qualquer pessoa -de quem se deseja obter alguma coisa, desembrulha o -objecto que traz debaixo do braço, tira o papel, abre a -caixa, e mostra-nos um <i>album</i> mais ou menos bem encadernado, -mas no qual ha ainda uma grandissim<span class="pagenum"><a id="Page_6"></a>[6]</span> -quantidade de folhas em branco; depois diz-nos com a -sua voz mais insinuante:</p> - -<p>—Meu caro senhor, eu possuo já no meu <i>album</i> muitos -nomes celebres; mas falta-me o seu, o seu que é -indispensavel á minha felicidade! Por quem é não me -recuse o que lhe venho pedir! faça-me o obsequio de -escrever algumas linhas n’uma d’estas paginas em -branco, o que quizer, a mais pequena coisa, não exijo -que seja em verso... Entretanto confesso que os versos -teem mais encanto, conservam-se melhor na memoria; -se não tem agora tempo, se deseja meditar sobre -o que ha-de escrever, deixo-lhe cá o meu <i>album</i>; -voltarei d’aqui a tres ou quatro dias, quando o senhor -quizer!</p> - -<p>Estamos já de muito mau humor por sermos incommodados -por este sujeito, que nos perturba no nosso -trabalho, e que, sem nenhum titulo, nenhuma recommendação, -vem fazer-nos um pedido a que muitos -amigos e pessoas das nossas relações se não atrevem -algumas vezes. Um pedinte de certo nos enfadaria -menos, porque teriamos o direito de o pôr immediatamente -na rua. Mas o homem—<i>album</i>—olha para -nós como se viesse pedir-nos o nosso voto para a academia. -Nós não queremos por fórma alguma, ficando -com o <i>album</i>, receber uma nova visita d’este senhor, -e por isso, mesmo resmungando, mesmo deixando vêr -o aborrecimento que isto nos causa, abrimos o <i>album</i> -n’uma pagina em branco, pegamos na pena... O tal -senhor está cheio de jubilo; ficará talvez menos encantado -quando ler o que escrevemos; mas emfim, visto -que elle não quer senão a nossa lettra e a nossa assignatura, -não póde deixar de ficar satisfeito.</p> - -<p>Escrevemos a primeira coisa que nos vem á idéa; -mas sempre se deve procurar que seja uma tolice, o -que é ás vezes mais difficil de achar do que se julga. -Dizem-me que o nosso Scribe, apoquentado tambem -pela gente de <i>album</i>, escrevia sempre esta phrase: -Perdi o meu guarda-chuva!... e isto era mais que -sufficiente.</p> - -<p>Devo entretanto dizer que os <i>albuns</i> apresentam-se<span class="pagenum"><a id="Page_7"></a>[7]</span> -menos vezes em nossa casa que os simples pedidos de -autographos. Estes pedidos quasi sempre se fazem -por correspondencia. Recebemos a cada instante cartas, -não só de Paris, mas da provincia e mesmo do estrangeiro. -Algumas vezes julgâmos reconhecer a letra -d’uma pessoa que estimâmos muito e de quem ficariamos -encantados de ter noticia; abrimos a carta -muito depressa... mas nada! é ainda um pedido de -autographo, d’uma pessoa que nunca vimos, que provavelmente -não veremos nunca, e que acha simplicissimo -talhar-nos obra, como se devessemos estar ás -suas ordens!</p> - -<p>Ultimamente recebo uma carta d’um sujeito que -me manda uns versos de que eu sou o auctor, e que -provavelmente elle tinha lido e copiado d’um <i>album</i>. -Espero que isto me servirá de lição para não tornar -a cair em escrever versos em <i>albuns</i>. Se, como Scribe, -eu não tivesse escripto senão: <i>Perdi o meu guarda-chuva!</i> -ou <i>perdi a minha bengala</i>, aposto que o tal -senhor não teria copiado isto nem m’o teria enviado, -fazendo-me o pedido de lh’o transcrever para ter -estes <i>lindos</i> versos escriptos por mim? O homem não -cessa de me repetir na sua carta que quer por força -ter alguma coisa minha.</p> - -<p>Se lhe respondesse, o que não tenho tenção de fazer, -havia de dizer-lhe: O senhor quer ter alguma coisa -minha; mas com que titulo? Recebi eu por ventura -alguma coisa sua?</p> - -<p>Contaram-me que n’outro tempo, Lablache, famoso -cantor italiano, recebêra dos seus admiradores um tão -grande numero de caixas de tabaco, que poderia assoalhar -com ellas os seus aposentos, e passear em tres -casas, pisando sempre caixas de tabaco, todas mais -ou menos bonitas, das quaes lhe haviam feito presente. -Certamente, eu não cantei nunca como Lablache! -mas emfim, pela quantidade immensa de pedidos que -recebo, e de amabilidades que muitas pessoas hão -por bem dirigir-me, devo pensar que tenho tambem -um numero bastante crescido de apreciadores. -Pois bem! desde que escrevo... o que faço ha muito<span class="pagenum"><a id="Page_8"></a>[8]</span> -tempo, bem sabem, nunca recebi outra cousa senão -pedidos de autographos.</p> - -<p>Eu não peço nada, nunca pedi nada, em nenhum -genero, nem pedirei nunca graças a Deus! se tenho -feito o meu caminho, tenho-o feito á minha custa, sem -intriga e sem apoio. Mas, por favor, deixem-me socegado -e não me apoquentem com os seus pedidos de -autographos! Não desejo as caixas de tabaco de -Lablache, pois que nunca tomei tabaco!... o que me -não impede de admirar uma caixa bonita, quando -vale a pena de ser admirada.</p> - -<p>—Que diabo se lhe poderia então offerecer? me dizia -um sujeito que sempre me pede exemplares dos meus -romances, o que é ainda mais indiscreto que um autographo.</p> - -<p>—Meu caro senhor, lhe disse eu, quando se tem a -peito receber uma resposta de alguem, ha um meio -muito simples. Se eu residisse em Tours, mandava-lhe -ameixas passadas; em Mans, mandava-lhe um -capão; em Strasburgo, um pastel; em Reims, meia -duzia de garrafas de Champagne. Cada terra tem a -sua especialidade, e o homem por força teria de accusar-me -a recepção do meu presente.</p> - -<p>Pois o tal sujeito pareceu ficar muito espantado de -eu ter achado este meio.</p> - -<p>Emquanto estou falando a respeito de autographos, -não posso deixar de lhes citar um sujeito que me escrevia -de Nice, e que, depois de me ter feito o seu pedido, -me rogava que lhe dirigisse a minha resposta -para Nice, <i>posta restante</i>, com o nome que elle me indicava.</p> - -<p>Se eu respondesse a este senhor, o que tive o cuidado -de não fazer, havia de dizer-lhe: «Meu caro senhor: -A <i>posta restante</i> não se emprega senão em dois -casos: em amor e em politica. O senhor não está namorado -de mim, folgo de o crer; e pelo que toca a -politica, nunca me occupei de tal coisa, nem já agora -me hei-de occupar nunca. Por que razão pois, em vez -de me dar francamente o seu endereço, quer que eu -lhe responda para a <i>posta restante</i>? Tem então medo<span class="pagenum"><a id="Page_9"></a>[9]</span> -de que eu saiba quem é e onde mora? E pede-me a -minha assignatura! Realmente, o senhor não é logico!</p> - -<p>Emquanto estou de vez para conversar com o meu -caro leitor e com a minha adorada leitora, podia confiar-lhes -ainda uma d’essas apoquentações a que algumas -vezes nos é difficil escapar, desgraçadas celebridades -que nós somos. Receio porém abusar da sua -paciencia, e portanto ficará para outra occasião.</p> - -<div class="figcenter" style="width: 200px;"> -<img src="images/footer.jpg" width="200" height="75" alt="" /> -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_10"></a>[10]</span></p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_11"></a>[11]</span></p> - -<div class="figcenter" style="width: 500px;"> -<img src="images/header.jpg" width="500" height="100" alt="" /> -</div> - -<h1>A MENINA LISA</h1> - -<h2 class="nobreak" id="I">I<br /> -<span class="smaller">Uma creada que sae a recados</span></h2> - -</div> - -<p>—Adriana! Adriana! vejam lá se ella apparece! -Adriana! Ah! esta rapariga é insupportavel! Nunca -vem quando se precisa d’ella! E depois, não ha com -que chamar! aqui porém deve haver uma campaínha... -Adriana!...</p> - -<p>Uma rapariga gorda, fresca, bem feita, cara vulgar, -nariz mais grosso que comprido e cabello loiro-arruivado, -apparece emfim á porta d’um quarto que -podia passar por um camarim, e no qual estava uma -senhora estendida, como que desmaiada, em cima -d’uma poltrona, emquanto que outra senhora, mais -nova, mas pouco bonita e cujo vestuario elegante não -conseguia fazer esquecer a sua fealdade, lhe batia na -mão, sempre chamando em altos gritos a creada grave.</p> - -<p>—O que é minha senhora? pergunta a menina -Adriana, que parece não se ter apressado nada; a senhora -está a gritar! grita como se houvesse fogo em -casa!...</p> - -<p>—O que é, pois não vê? é a sua ama que acaba de<span class="pagenum"><a id="Page_12"></a>[12]</span> -perder os sentidos, depois de ter dado um grito muito -grande; como ella se agita... como se põe interiçada...</p> - -<p>—Ah! sim, eu conheço isso; a senhora está com o -seu ataque de nervos, com o seu <i>faniquito</i>; isso dá-lhe -quando é contrariada, ou quando tem alguma altercação -com o sr. Casimiro.</p> - -<p>—Deu-lhe isso ainda agora depois de ter lido uma -carta que a menina acaba de lhe trazer. Mas emfim, -quando Ambrosina tem o seu ataque de nervos, a -menina faz-lhe tomar alguma coisa, penso eu, não a -deixa sem soccorro?</p> - -<p>—De certo, minha senhora, faço-lhe tomar a limonada -que o medico lhe receitou. E isso faz com que a -senhora torne a si ao cabo de alguns minutos.</p> - -<p>—Pois bem! dê-lhe a tal limonada; ande depressa, -porque ella parece soffrer muito, esta pobre Ambrosina. -Sabe onde ella tem essa limonada?</p> - -<p>—Sei sim, minha senhora, sei, certamente que sei... -Ai! Jesus! agora me lembro...</p> - -<p>—De que?</p> - -<p>—Ai! valha-me Deus! sim, a senhora tinha-me dito -hontem que lhe fosse buscar outra garrafa. É verdade... -agora me recordo...</p> - -<p>—Como? pois não ha limonada em casa?</p> - -<p>A creada grave, que tem ido abrir um armario, -traz de lá uma garrafa branca, mas que está de todo -vasia, e vem mostral-a á amiga de sua ama, dizendo:</p> - -<p>—Aqui tem, veja, não lhe minto, não resta nem -uma gota.</p> - -<p>—E não foi hontem encommendar mais?!...</p> - -<p>—Esqueci-me, a culpa é da porteira, que me demorou -para me falar do gato quando eu saîa, o gato -desappareceu-lhe ha dois dias.</p> - -<p>—Mas não se tracta do gato da porteira, o que é -preciso ê soccorrer sua ama. Tem a receita para essa -limonada?</p> - -<p>—Tenho sim, minha senhora, porque eu tinha tenção -de ir hontem á botica, devo-a ter ainda na algibeira.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_13"></a>[13]</span></p> - -<p>E a menina Adriana mette a mão na algibeira, tira -de lá primeiramente algumas passas de uva, e sorri-se -dizendo:</p> - -<p>—É aquelle toleirão do caixeiro da tenda que sempre -me ha de metter alguma coisa no bolso. Por mais -que eu lhe diga: Deixe-me socegada, guarde as suas -passas, não quero brincadeiras...</p> - -<p>—Mas que é da receita? não se tracta agora do que -a menina diz ao caixeiro da tenda.</p> - -<p>—Ah! deve ser isto!...</p> - -<p>Adriana desembrulha um papel e lê o annuncio -d’uma loja nova em que se offerecem as fazendas com -oitenta por cento de abatimento; depois atira com o -papel para o lado, dizendo:</p> - -<p>—Ora! fui lá, minha senhora, mas são uns mentirosos, -não vendem nada novo, venderam-me umas -calças de panno que tinha sido virado.</p> - -<p>—Ah! compra calças de panno para si?</p> - -<p>—Nada, era para o irmão d’uma patricia minha.</p> - -<p>—Mas então perdeu a receita, desgraçada!</p> - -<p>—Não minha senhora; olhe, aqui está, aqui a tem, -tinha embrulhado com ella uns torrões de assucar -que me deu o moço do botequim.</p> - -<p>—Agora corra depressa á botica. É muito longe?</p> - -<p>—Não minha senhora, é aqui perto, no fim da rua -Meslé, uma bonita botica, no predio novo, que dá -quasi para a rua do Templo. Ah! é uma das melhores -de Paris.</p> - -<p>—Comtanto que o remedio não leve muito tempo -a fazer.</p> - -<p>—Oh! não, minha senhora, não leva. E depois, direi -que tenho muita pressa, para me despacharem logo; -aquelles senhores da botica são muito amaveis, muito -obsequiadores.</p> - -<p>—Vae já muito depressa, não é verdade?</p> - -<p>—Sim, minha senhora; é só pôr uma touca na cabeça, -e vou immediatamente.</p> - -<p>—Para que precisa de touca? Não pode ir assim -mesmo como está?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_14"></a>[14]</span></p> - -<p>—Oh! a senhora não quer que eu saia em cabello; -diz que não é bonito.</p> - -<p>—Mas sua ama não o saberá.</p> - -<p>—Perdão, podia alguem encontrar-me e vir dizer-lhe -que me viu na rua sem touca! A senhora despedia-me -logo: mas esteja descançada, não gasto n’isso -muito tempo.</p> - -<p>A creada grave corre ao seu quarto, que é nas -aguas-furtadas, pega n’uma touca, põe-na na cabeça, -vê-se a um espelhinho, mas não fica satisfeita; tira a -touca, procura outra no fundo d’uma caixa de papelão, -experimenta-a, torna a ver-se ao espelho; depois, -passado um momento de hesitação, tira ainda esta e -torna a pôr a primeira; d’esta vez contenta-se com -ella, e desce emfim os cinco andares, para ir buscar o -remedio para sua ama, que tem muito tempo para -estar demaiada.</p> - -<p>Mas, quando vae passar por deante do cubiculo da -porteira, grita-lhe esta:</p> - -<p>—Menina Adriana! menina Adriana! ah! uma boa -noticia...</p> - -<p>—Então o que é, sr.ª Bedou?</p> - -<p>—Achei já o meu gato; o pobre Pagnole! Achei-o. -Olhe! aqui o tem.</p> - -<p>—É verdade; e aonde é que estava?</p> - -<p>—Ah! eu lhe vou contar o caso, é uma historia completa. -Entre cá um instantinho.</p> - -<p>—Não posso, vou á botica buscar um remedio para -a senhora, que está incommodada, está com o seu ataque -de nervos.</p> - -<p>—Bem sabe que ella é propensa a esses ataques. Imagine -que foi aquelle maroto, aquelle patife do quinto -andar, o tal que se diz litterato...</p> - -<p>—Ah! o sr. Denegrido.</p> - -<p>—Sim, foi aquelle malvado que, para se vingar de -eu no outro dia não lhe ter aberto a porta ás duas horas -da manhã... A menina comprehende que um homem -que mora n’uma agua-furtada de cento e sessenta -francos, tenha o atrevimento de recolher para casa -ás duas horas da manhã? E demais-a-mais nunca me<span class="pagenum"><a id="Page_15"></a>[15]</span> -deu a mais pequena gratificação! Pois bem! elle é que -tinha o Pagnole fechado em casa, onde estou bem certa -que nunca lhe dava de comer; por isso este pobre -martyr emmagreceu tanto n’estes dois dias. Felizmente -a creada do procurador do segundo andar ouviu-lhe -os gemidos, e veiu dizer-me: «Parece-me que o seu gato -está fechado em casa do litterato. Subi n’um pulo -até ao quinto andar e reconheci a voz do meu querido -bichano. Bati, teria arrombado a porta se elle não -a abrisse. Elle gritava-me: «Não estou ainda levantado.»—«Pois -levante-se,» respondi eu.—«Não estou -vestido.»—Que me importa a mim isso?! pensa que -tenho vontade de o retratar?! O homem afinal abriu -a porta; o gato veiu logo lançar-se-me nos braços. -Affianço-lhe que o tal Denegrido ha de ser despedido -no fim do seu arrendamento; demais, elle não paga, -não tinhamos tenção de o conservar.</p> - -<p>—Até logo, sr.ª Bedou.</p> - -<p>—Quando voltar lhe direi o que o escrevinhador -me disse para se desculpar de ter fechado o Pagnole. -Imagine...</p> - -<p>—Sim, sim, quando voltar.</p> - -<p>A menina Adriana acha-se emfim na rua. Quando -passa por deante da tenda, um dos caixeiros, que parecia -estar a espreital-a, toma-lhe o passo, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Aonde é que vae com tanta pressa? parece que -corre n’um velocipede.</p> - -<p>—Ora! que tolice! como se as mulheres podessem -andar em velocipedes! o que é pena, porque seria uma -coisa muito commoda para nós fazermos os nossos recados.</p> - -<p>—As mulheres podem muito bem andar em velocipede, -o caso é acostumarem-se.</p> - -<p>—Vamos, sr. Cebolinha, deixe-me passar, não tenho -tempo para conversar agora.</p> - -<p>—Oh! a menina commigo nunca tem tempo, mas -hontem, ás dez horas da noite, bem a vi estar de <i>paleio</i> -com o moço do botequim do <i>boulevard</i>, as casas -do <i>boulevard</i> S. Martinho, na margem esquerda têem -todas uma saida para a rua Meslée, é commodo...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_16"></a>[16]</span></p> - -<p>—E então? sim, bem me lembro, effectivamente, -estive a falar com o Alexandre, a senhora queria -tomar um capilé de leite antes de se deitar, porque -tinha tossido um pouco, e pensava que aquella bebida -lhe faria bem á constipação, ia eu então ao café -encommendar o que a senhora queria, quando encontrei -na rua o Alexandre.</p> - -<p>—Ah! não é máu o tal capilé, acho-o porém muito -assucarado...</p> - -<p>—O quê? o que é que o senhor quer dizer com esse -ar de mangação?</p> - -<p>—Quero dizer que se a sua ama a esperava para se -deitar, teve tempo para adormecer antes de tomar a -tal bebida, a menina demorou-se uma boa meia hora -na rua com o moço do botequim.</p> - -<p>—É que elle provavelmente tinha muito que me -contar.</p> - -<p>—Se é d’aquella maneira que elle faz o seu serviço, -não tarda que o despeçam.</p> - -<p>—Bem se importa elle com isso! não tem vontade -nenhuma de ficar onde está; vae tomar um café e -estabelecer-se por sua conta.</p> - -<p>—Oh! então o caso é differente. E a menina é que -vae para o balcão?</p> - -<p>—Ora! quem sabe! tem-se visto coisas mais de espantar.</p> - -<p>—O Alexandre vae tomar um botequim por sua -conta! Ah! ah! ah! essa é forte de mais, pode-se juntar -com o capilé.</p> - -<p>—Sr. Cebollinha, o senhor é muito maldoso, diz -mal de toda a gente, desacredita todo o bairro. É uma -coisa muito trivial, todos os dias se estão a estabelecer -os moços de botequim por sua conta, isso vê-se -a cada passo!...</p> - -<p>—Sim, mas os que fazem isso são aquelles que têem -feito economias, que têem forrado alguma coisa do -seu ordenado, e não os gastadores, os extravagantes -como o seu Alexandre.</p> - -<p>—Porque é que diz: o seu Alexandre? Elle é tanto -meu como de qualquer outra! o rapaz deve-lhe alguma<span class="pagenum"><a id="Page_17"></a>[17]</span> -coisa, para o senhor estar assim a dizer mal d’elle?</p> - -<p>—É verdade que sim; deve-me ainda uma libra de -mel que lhe vendi para adoçar as suas tisanas, quando -esteve doente, e, como o patrão me tinha prohibido -de lhe dar fiado, sou eu que terei de pagar.</p> - -<p>—Ora! elle lhe pagará o seu mel. Olhe, lá o chamam, -ande, volte para a loja.</p> - -<p>—A menina volta?</p> - -<p>—Nunca! o senhor tem muito má lingua.</p> - -<p>A creada continúa o seu caminho; mas cem passos -mais adeante encontra-se com outra creada quasi da -mesma edade e que está vestida com muita garridice.</p> - -<p>—Ah! és tu Rosa!</p> - -<p>—Boas noites, Adriana. Aonde vaes com tanta pressa?</p> - -<p>—Vou á botica buscar uma limonada para minha -ama, que está com o seu ataque de nervos.</p> - -<p>—Ainda estás em casa da tal sr.ª Montémolly?</p> - -<p>—Ainda.</p> - -<p>—Gostas de lá estar?</p> - -<p>—Hum! não muito, não se diverte a gente quasi -nada; mas tambem não se está aperreada, pode-se -saír e voltar tarde; é o que a casa tem de bom.</p> - -<p>—E tua ama é senhora capaz?</p> - -<p>—Ora! não sei bem... ella dá-se por viuva.</p> - -<p>—D’um general sem duvida? todas ellas são viuvas -de um general; é uma das suas manias...</p> - -<p>—Não, a minha diz que o marido era banqueiro. O -que é certo, é que elle deixou-lhe fortuna: ella -tem pelo menos quinze mil francos de renda, talvez -mais alguma coisa; nós não fazemos dividas, pagamos -tudo a dinheiro de contado. Oh! temos bom governo.</p> - -<p>—Que edade tem a tua sr.ª Montémolly?</p> - -<p>—Ella diz que tem trinta e quatro annos, mas eu -dou-lhe trinta e oito, tambem mais não; foi muito -bonita, e está ainda bem conservada.</p> - -<p>—E tem muitos adoradores?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_18"></a>[18]</span></p> - -<p>—Não! infelizmente! porque se assim fosse, havia -de divertir-se a gente muito mais, e seriam maiores os -lucros.</p> - -<p>—O quê! pois tua ama renunciou aos amores, ainda -em edade de agradar!</p> - -<p>—Não! é que não percebes; minha ama não renunciou -ao amor, muito pelo contraio, ella ama, oh! ama -apaixonadamente um rapaz, um bello moço, o Casimiro -Dernold, que vem quasi todos os dias fazer-lhe -companhia, que é musico, que é pintor tambem... -emfim, que faz tudo quanto quer, mas que, segundo -eu creio, não quer fazer outra coisa senão divertir-se! -A senhora está doida pelo tal Casimiro, não pensa -senão n’elle, não sonha n’outra coisa, não se importa -com mais ninguem. É por isso que não dá attenção -a todos os que procuram fazer-lhe a côrte. É verdadeiramente -fiel ao amante, a ponto de adoecer, de -sentir as mais vivas inquietações, se elle não chega á -hora do costume. Ah! minha querida Rosa! que asneira -é amar um homem assim; e como a gente é -muito feliz em não se prender! Não pensas como eu?</p> - -<p>—Já se vê que sim! eu dou attenção a todos quantos -me falam; por isso não tenho um instante de meu. -Quando não converso com este, é porque estou conversando -com aquelle! Ah! ah! é muito mais divertido! -E que edade pode ter esse Casimiro, amante de -tua ama?</p> - -<p>—Vinte seis a vinte sete annos, talvez.</p> - -<p>—E tua ama tem trinta e oito! elle deve-lhe fazer -muita falcatrua!...</p> - -<p>—Não sei, em todo o caso, a senhora vigia-o muito, -é ciumenta como uma panthera! fal-o seguir; é -mister que elle lhe dê conta do que faz cada dia, hora -por hora.</p> - -<p>—Pobre rapaz! olhem que vida! Eu antes queria -estar nas galés!...</p> - -<p>—Por isso elle algumas vezes respinga, grita, manda -bugiar a senhora. Oh! então, são scenas terriveis! -A senhora chora, ou pega n’um punhalzinho que -traz escondido no seio, e diz que se vae matar...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_19"></a>[19]</span></p> - -<p>—Bom! eu conheço essa giria! não tenhas medo -de que se mate!...</p> - -<p>—Olha, ha um mez, quando ella soube que o seu -Casimiro tinha estado no Mabille, quiz cravar o punhal -no peito; mas, ao que parece, dirigiu mal o -golpe, porque não se feriu senão na orelha, que verteu -algum sangue!</p> - -<p>—Ah! ah! ah! ella quer-se apunhalar pela orelha. -É uma grande farcista a tua ama. E esse Casimiro -é rico tambem?</p> - -<p>—Rico! elle! pelo contrario, não tem nada de seu. -Então não percebeste a situação, e porque é que elle -é escravo da senhora?</p> - -<p>—Ah! sim, percebo agora; é ella quem o sustenta.</p> - -<p>—Exactamente; tem-no seguro pela fome. Se o -rapaz tivesse dinheiro, estou bem certa de que ella o -não prenderia muito tempo.</p> - -<p>—Olha, Adriana, não sei se tu és como eu, mas para -mim os homens que não têem nada de seu, não prestam!...</p> - -<p>—Eu não faço caso nenhum d’elles! Ora! um homem -viver á custa d’uma mulher... é andar o mundo ás -avessas! Por ventura o homem não foi feito para -ganhar dinheiro e a mulher para o gastar.</p> - -<p>—Pois, minha rica, ha ainda muitas mulheres bastante -tolas que se deixam depennar pelos derriços. -Olha, ahi tens a Bochechuda, tu conheces a Bochechuda?...</p> - -<p>—Quem? A Luizita?</p> - -<p>—Sim, mas todos lhe chamam a Bochechuda, porque -parece ter sempre as faces inchadas. Emfim, ha -já algum tempo, a Bochechuda travou conhecimento -no baile Pilodo com um bonito rapaz, que lhe diz -que é da mesma terra. Dansa com ella todas as dansas -mais finas, mesmo as que ella não sabia. Depois convida-a -para um jantar no campo no domingo seguinte; -ella aceita; vae jantar com o seu novo conhecimento, -que bebe como uma esponja; depois, quando chega a -occasião de pagar a conta, aquelle senhor declara á -Bochechuda que não recebeu da terra um dinheiro<span class="pagenum"><a id="Page_20"></a>[20]</span> -com que contava, e pede-lhe que lhe empreste com -que pagar a despeza. Ella tinha felizmente levado o -<i>porte-monnaie</i>. Empresta vinte francos ao tal sujeitinho, -que paga e não lhe dá o troco. O jantar tinha -custado apenas nove francos e dez soldos. Volta com -ella a pé, não lhe offerece mais nada e larga-a muito -cedo, com o pretexto de que tem um trabalho de escripturação -a fazer para um tendeiro a quem serve -de guarda-livros. A Bochechuda, que não gosta de -ir para casa cedo n’um domingo, põe uma touca nova -e vae ao baile Pilodo com uma vizinha. Quem é que -ella encontra lá? o seu parasita, o seu novo conhecimento, -que fazia a côrte a uma mulher e lhe pagava -ponche com o troco da moeda de vinte francos que -ella lhe tinha emprestado...</p> - -<p>—Ah! a peça é bem pregada! e o que fez a Luizita?</p> - -<p>—É tão tola que se foi embora chorando. Mas o -mais curioso da historia, é que, no domingo seguinte, -o tal sujeitinho tornou-lhe a pregar a mesma peça. -Jantam n’uma casa de pasto, e na occasião de pagar a -despeza o patife diz que não tem dinheiro.</p> - -<p>—Ah! isso é forte demais! e ella pagou outra vez?</p> - -<p>—Pagou, mas pelas suas proprias mãos, e guardou -o troco. Desde esse dia, nunca mais tornou a vêr o -seu parasita.</p> - -<p>—Pobre Luizita! mas eu não a devo lastimar, que -ella é muito presumida. E tu, Rosa, ainda estás em -casa dos mesmos patrões?</p> - -<p>—Dos Dupont? oh! não, graças a Deus! deixei-os! -não era gente fina, aquillo não me convinha! A senhora -ia á praça, ella é que me comprava tudo: O patrão -descia elle mesmo á adega; sabia a conta das garrafas. -Não se podia fazer nada com aquella gente! eram uns -piolhosos, minha rica! Fechavam o assucar e os licores; -aquillo não me podia convir. Eu tinha acceitado -aquella casa emquanto me não apparecia outra; eu bem -sabia que não ficaria lá muito tempo.</p> - -<p>—E hoje estás melhor?</p> - -<p>—Ah! minha rica, tenho um bello commodo! estou -em casa d’um homem só, um patrão rico, generoso,<span class="pagenum"><a id="Page_21"></a>[21]</span> -nada apoquentador, negoceia por gosto, sómente para -se entreter. Temos uma bella casa aqui perto, na rua -Béranger, seis casas n’um segundo andar. Fiz com que -o senhor tomasse um criado para esfregar; elle não o -tinha, mas percebeu que eu não podia fazer tudo.</p> - -<p>—Tens boa soldada!</p> - -<p>—Seiscentos francos, sem contar as gratificações, os -presentes!...</p> - -<p>—Teu amo dá-te presentes! sempre és muito feliz!</p> - -<p>—É verdade, ainda ultimamente me deu um rico -lenço de seda da India!</p> - -<p>—Que edade tem o teu patrão?</p> - -<p>—E’ um homem que anda pelos seus sessenta annos, -mas não parece, está ainda muito bem conservado!...</p> - -<p>—Ah! entendo... estás em casa d’elle para todo o -serviço. Ah! ah! esses commodos é que são bons!...</p> - -<p>—Ah! tu pensas tolices... pois enganas-te, affianço-te -que não é isso...</p> - -<p>—Ora adeus! então por que te dá elle presentes?...</p> - -<p>—Ah! não digo que elle ás vezes não goste de brincar -um pouco, de rir, de me deitar os braços á roda -da cintura, mas a coisa não chega nunca aonde tu imaginas.</p> - -<p>—Deves perceber que isso para mim é-me indifferente; -estás no teu direito de fazeres o que quizeres, -assim como o teu patrão, visto que não tem mulher a -quem dar satisfações. Elle é viuvo ou solteiro?</p> - -<p>—Olha! não sei, que ainda lhe não pergunteí isso... -mas preciso sabel-o...</p> - -<p>—Ai! Jesus! minha ama que está á espera do remedio... -e eu aqui a dar á lingua contigo.</p> - -<p>—Ninguem pode levar a mal que a gente converse -o seu boccado; nós não nos encontramos todos os dias!</p> - -<p>—Pois sim, mas agora vou de corrida á botica. Adeus! -Rosa!</p> - -<p>—Até outra vez, Adriana.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_22"></a>[22]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="II">II<br /> -<span class="smaller">Na botica</span></h2> - -</div> - -<p>Quando a menina Adriana entra emfim na botica, -que é quasi á esquina da rua Meslée e da rua do Templo, -havia lá tanta gente, que os praticantes não sabiam -a quem haviam de attender primeiro. Demais -d’isso, é muito raro achar uma botica deserta; a concorrencia -abunda n’estes laboratorios, onde todos esperamos -encontrar remedio ou pelo menos allivio para -os nossos soffrimentos ou para os das pessoas que -nos são caras. Se isto prova que a profissão é boa, prova -tambem que o nosso physico tem amiudadas vezes -necessidade de reparo, e que estamos longe de ser -perfeitos; é, pelo menos, aquillo de que estamos convencidos -ha muito tempo.</p> - -<p>Entre os freguezes da botica torna-se saliente uma -mulher gorda, que segura pela mão uma criança de -quatro a cinco annos, que está de tal modo embrulhada -em casacos, aventaes e chales, que é difficil adivinhar -se é rapaz ou rapariga; a mãe dirige-se a um dos -praticantes:</p> - -<p>—Olhe, senhor, o meu pequeno anda ha tres dias com -uma tosse, que me parte o coração ouvil-o tossir: são -uns ataques como tinha o pae, que padecia d’um catarrho -que o não deixava pregar olho toda a noite, e -que o levou á cova o anno passado, com uma indigestão -que apanhou em consequencia d’um banho de vapor, -porque...</p> - -<p>—Mas, minha senhora, agora não se tracta de seu -marido, visto que morreu; tracta-se do seu pequeno, -que está constipado; creio que é por causa d’elle que -a senhora cá vem?</p> - -<p>—De certo; olhe, aqui o tem, é uma joia.</p> - -<p>—É o seu menino?</p> - -<p>—Sim, senhor.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_23"></a>[23]</span></p> - -<p>—Parecia uma menina.</p> - -<p>—Por causa do seu ar malicioso? ah! sim, que elle -é muito malicioso; mas veja como está vermelho.</p> - -<p>—Não admira! a senhora tral-o tão embrulhado, -que o pequeno deve por força sentir muito calor.</p> - -<p>—Mas, como elle anda com tosse...</p> - -<p>—Não é uma razão para o suffocar.</p> - -<p>—O que é então preciso fazer-lhe tomar?</p> - -<p>—Uma tisana de flor de malva com mel, e pode -tambem dar-lhe um pouco de leite.</p> - -<p>—De vacca?</p> - -<p>—Já se vê.</p> - -<p>—Tinham-me dito que lhe fizesse tomar leite de -burra.</p> - -<p>—Não é preciso, o menino é ainda muito novo, e não -tem cara de quem padece do peito.</p> - -<p>—Veja se tem febre.</p> - -<p>O praticante quer pegar na mão do pequeno, mas -este foge com ella rompendo em altos gritos.</p> - -<p>—Então, Dodoro! porque é que não queres que este -senhor te pegue na mão? dá-lhe já a mão depressa, -patife.</p> - -<p>—Não quero! não quero!</p> - -<p>—É travesso como um macaco. Faze lá uma careta -a este senhor.</p> - -<p>—Não quero!</p> - -<p>—Então, é ou não velhaco?</p> - -<p>—Não lhe tem respeito nenhum.</p> - -<p>—Elle é ainda tão pequeno, e depois aprendeu a -responder assim com o pae. Isto faz-me lembrar tanto -o meu homem! Faça favor de me dar a flor de -malva e o mel.</p> - -<p>—Sim, senhora, vou avial-a immediatamente.</p> - -<p>—E não lhe parece que seria melhor dar-lhe leite -de burra?</p> - -<p>—Não, senhora; torno-lhe a dizer que o seu menino -não precisa d’isso. Mas emfim, se a senhora quer -dar-lh’o por força, mal não lhe pode elle fazer.</p> - -<p>—Não acha? O senhor não tem cá uma burra?</p> - -<p>—Oh! não, senhora, nós não temos leite de burra!</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_24"></a>[24]</span></p> - -<p>—Que pena! pois ao pé de mim mora uma vizinha -que tem uma cabra; o senhor não acha que o leite de -cabra lhe faria o mesmo effeito?</p> - -<p>—Todos os leites que quizer; o leite não faz nunca -mal. Aqui tem a flor de malva e o mel.</p> - -<p>—Muito agradecida; isto é para beber quente?</p> - -<p>—Tanto quanto seja possivel; sempre é melhor tomal-o -quente do que frio...</p> - -<p>—Dodoro, atira lá um beijo a este senhor...</p> - -<p>Em vez de atirar um beijo, e rapazinho faz uma -careta, deitando a lingua de fóra, e resmunga:</p> - -<p>—Não quero! não quero!</p> - -<p>A mãe pega n’lle e retira-se, exclamando:</p> - -<p>—Ah! é exactamente como o pae!...</p> - -<p>Uma senhora, de meia edade, com certa garridice -no trajo e nas maneiras, dirige-se a outro praticante, -requebrando-se toda e fazendo boquinha de sorriso, -para deixar vêr uma dentadura completamente postiça, -mas que ella suppõe que imita a natural de modo -a illudir os mais espertos, e diz-lhe:</p> - -<p>—Acontece-me um desastre bem desagradavel, e -venho pedir-lhe que me tire isto quanto antes...</p> - -<p>—O que é que precisa tirar, minha senhora? Se é -algum dente, nós não somos dentistas...</p> - -<p>—Não, senhor, não se trata de dentes; por esse lado -não preciso nada, graças a Deus! e o senhor bem o -deve vêr... mas olhe aqui para cima da minha bocca; -o que é que vê?</p> - -<p>—Vejo o seu nariz, minha senhora, e de ordinario -é n’esse sitio que elle se encontra.</p> - -<p>—Sim, senhor, está o meu nariz, que tem uma forma -bastante engraçada, posso dizel-o sem desvanecimento; -mas sobre o nariz... aqui... á esquerda, não -vê nada?</p> - -<p>—Ah! sim, vejo uma borbulha... já bastante pronunciada -e que está mesmo muito vermelha.</p> - -<p>—Está vermelha e pronunciada!... ah! senhor! o -que quer isso dizer!...</p> - -<p>—Quer dizer que ainda não está madura.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_25"></a>[25]</span></p> - -<p>—Madura! como madura? o senhor acha que isto -deve amadurecer?</p> - -<p>—Naturalmente, minha senhora: não é mais que -uma borbulhita, por emquanto, mas assim mesmo tem -de seguir o seu curso... amadurecer, crear cabeça, -rebentar e sarar...</p> - -<p>—Amadurecer, crear cabeça!.. pois eu havia de -ter uma borbulha com cabeça no nariz! ah! que horror!... -não quero tal coisa!... eu, que nunca tive a -mais pequena beliscadura em parte alguma... entende, -senhor? em parte alguma... porque me viria nascer -uma borbulha no nariz?... qual pode ser a causa -d’isto?</p> - -<p>—Ignoro totalmente, minha senhora; mas uma borbulha -nasce sem se saber porquê; isso pode acontecer -a toda a gente!...</p> - -<p>—Oh! não, senhor, quando se é d’um aceio minucioso, -isto não deve acontecer... Eu não fui metter -o nariz em sitios insalubres, pode acreditar-me!</p> - -<p>—Estou persuadido d’isso, minha senhora!</p> - -<p>—Lavo-me vinte vezes por dia! esfrego-me com -<i>cold-cream</i>, com vinagre de Bully, com agua de Portugal, -com essencia de jasmim...</p> - -<p>—São coisas de mais, minha senhora, é preciso não -abusar dos cosmeticos, isso produz ás vezes um effeito -muito diverso d’aquelle que se espera...</p> - -<p>—Emfim, o senhor vae-me dar alguma coisa para -fazer desapparecer isto que me nasceu aqui, logo no -nariz... é preciso que se não veja nem o signal...</p> - -<p>—Minha senhora, isso ha de ser muito difficil... -seria mesmo perigoso; com o nariz não se deve brincar... -Já consultou o seu medico?</p> - -<p>—Um medico para uma borbulhita... ora essa. Em -primeiro logar, eu não posso vêr os medicos, detesto-os, -querem sempre purgar-me! E eu não me quero -purgar, não quero!</p> - -<p>—Faz mal, minha senhora, porque se se tivesse -purgado, é provavel que essa borbulha não lhe nascesse -no nariz.</p> - -<p>—Com que é preciso untar esta borbulha para que<span class="pagenum"><a id="Page_26"></a>[26]</span> -desappareça immediatamente? Deve haver algum -remedio.</p> - -<p>—Minha senhora, advirto-a de que será perigoso; -se faz recolher essa borbulha, hão de rebentar-lhe -muitas outras n’outros sitios!</p> - -<p>—N’outros sitios não me importa, comtanto que -não seja na cara.</p> - -<p>—A senhora quer?</p> - -<p>—Sim, senhor, vou ámanhã a uma <i>soirée</i>... quero -ir sem borbulha.</p> - -<p>—Então aqui tem ceroto de chumbo, minha senhora, -para fazer seccar a sua borbulhinha...</p> - -<p>—Oh! muito obrigada, vou untar bem todo o nariz!...</p> - -<p>—Só a borbulha, minha senhora... mas previno-a -de que lhe hão-de nascer outras...</p> - -<p>—Muito bem... farei recolher todas.</p> - -<p>A senhora pega no seu boiãosinho de ceroto, paga -e vae-se embora, muito contente por ter com que curar -ou pelo menos dissimular a sua borbulha.</p> - -<p>É substituída por um sujeito moço, bem abafado, -mas que tem máu parecer, e se approxima do praticante -com um ar acanhado. Os estudantes de pharmacia -sabem muito d’isto; adivinham logo por que razão -este senhor os quer consultor e vão ao seu encontro. -Effectivamente, elle fala-lhes ao ouvido; e então fazem-n’o -passar para uma salinha que fica por traz da -botica. Alli, o homem explica o seu caso, sempre a -meia voz. Dão-lhe uma caixa de pilulas, umas poucas -de raízes de morangueiro para fazer tisana, uma garrafa -com um xarope já preparado, e o homem leva -tudo isto, dando um profundo suspiro.</p> - -<p>Os praticantes da pharmacia olham uns para os outros -sorrindo, e um d’elles murmura:</p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">—Ita dis placitum, voluptatem ut moeror</div> - <div class="verse indent0">Comes consequatur!...</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>—Os deuses! responde outro, quer dizer, foi só -<i>Mercurio</i> que assim o quiz! É o Deus do commercio;<span class="pagenum"><a id="Page_27"></a>[27]</span> -terá lá dito comsigo: Isto ha-de-me fazer vender -muito.</p> - -<p>—Meus senhores! vamos! tomem cuidado nas suas -palavras! diz o rapaz que está sentado á carteira.</p> - -<p>—Oh! não ha perigo, as senhoras não sabem latim!</p> - -<p>Chega um velho gordo, bufando, e atira comsigo -para cima d’uma cadeira, dizendo:</p> - -<p>—Ah! senhores, que dôr! Irra! que dôr!</p> - -<p>—O que foi isso? deu alguma queda?</p> - -<p>—Não, oh! não dei queda nenhuma; não me faltava -mais nada!... É uma dôr que me apanha desde o -quadril até ao joelho, do lado direito...</p> - -<p>—E essa dôr deu-lhe agora quando ia andando?</p> - -<p>—Deu-me agora? Ha tres semanas que padeço d’ella. -Não lhe tenho feito nada, porque dizia sempre -commigo! Isto ha-de passar! mas, qual historia! não -me passa. Por isso é que me resolvi a vir...</p> - -<p>—Teria feito melhor em vir mais cedo.</p> - -<p>—Ah! é que eu não gosto de tomar remedios de -botica! Receitem-me tuberas, lagosta, Champagne, -então bem! applicarei a receita immediatamente.</p> - -<p>—Tem talvez abusado de tudo isso, e ahi está o -motivo por que tem agora dores. Consultou já algum -medico?</p> - -<p>—Tenho consultado dez, doze, vinte. Cada vez que -me acho n’um sitio onda ha um medico, tracto logo -de o consultar.</p> - -<p>—O que lhe disseram elles que era?</p> - -<p>—Um diz que é rheumatismo; outro que é uma -dôr sciatica; este diz que é gotta; aquelle, que é só -cançaço. Todos elles me têem receitado umas fricções.</p> - -<p>—De quê?</p> - -<p>—De balsamo de Opodeldoch, de balsamo Tranquillo, -de balsamo de Fioravanti! e ainda muitos outros -balsamos... Eu, como tenho excellente <i>rhum</i>, verdadeiro -<i>rhum</i> da Jamaica, tive a lembrança de dar umas -fricções com elle...</p> - -<p>—Não era mau.</p> - -<p>—Não é verdade? Ora, como não tenho criado, pedi<span class="pagenum"><a id="Page_28"></a>[28]</span> -ao meu porteiro que me viesse dar as fricções; elle -promptificou-se da melhor vontade. Dei-lhe o <i>rhum</i>, -e deitei-me sobre o lado que me não dóe. O porteiro -esfregava-me com toda a força... fazia-me arder a -pelle como todos os diabos! O homem descançava -muito a miudo. Tenho uma vez a lembrança de me -voltar, e dou com elle a beber-me o <i>rhum</i> mesmo pela -botija; o maroto esfregava-me em secco! Nunca mais -quiz que elle me desse as fricções. Os senhores podem-me -arranjar uma mulher para me fazer este serviço, -antes quero uma mulher que um homem...</p> - -<p>—Podemos inculcar-lhe uma mulher que deita bichas -e ventosas, e tambem dá fricções quando é necessario.</p> - -<p>—É moça?</p> - -<p>—Cincoenta a sessenta annos.</p> - -<p>—Preferia-a de vinte e cinco a trinta.</p> - -<p>—Que importa, comtanto que ella lhe dê bem as -fricções. Uma mulher nova poderia causar-lhe distracções, -e é isso que é preciso evitar.</p> - -<p>—Ah! o senhor acha que as distracções são contrarias -á minha dôr?...</p> - -<p>—Certamente. Tambem seria bom deitar umas ventosas -e alguns causticos volantes.</p> - -<p>—Oh! emquanto estiver n’este estado não ponho -difficuldades a coisa nenhuma, farei uso de tudo para -me curar mais depressa. Aqui tem a minha morada, -mande-me lá ámanhã a tal mulher com as bichas, as -ventosas e os causticos.</p> - -<p>—Mas não vá applicar tudo isso ao mesmo tempo.</p> - -<p>—Com certeza que vou; a coisa assim vae mais depressa! -Olhe, eu nunca faço remedios! mas quando -me resolvo a isso, então não quero privar-me de nada. -Dê cá sempre um balsamo qualquer, tractarei de me -untar e esfregar eu mesmo emquanto a tal mulher -não apparece.</p> - -<p>Emquanto estão aviando este senhor, entra muito -afflicta uma mulher de lencinho na cabeça, e dirige-se -logo ao rapaz que está sentado á carteira:</p> - -<p>—Ah! meu caro sr. Narciso! que má sorte que me<span class="pagenum"><a id="Page_29"></a>[29]</span> -persegue desde certo tempo para cá! Mal a minha pequena -está restabelecida do catarrhal e o meu rapaz -do sarampo, e ahi me cae o meu homem doente, sem -poder trabalhar! é o remate da desgraça!</p> - -<p>—Mas o que é que o seu marido tem?</p> - -<p>—Ora! uma molestia exquisita... mas parece que é -perigosa. Faça ideia, tem um anthraz!</p> - -<p>—Um anthraz! que me diz?!</p> - -<p>—Foi o que disse o medico, que é um sabio, e que -disse logo: Não tem que vêr! é um anthraz! Aqui está -o que tem o meu André, nasceu-lhe um anthraz nas -costas! Aquillo foi um golpe de ar, não é verdade?</p> - -<p>—Não, mas é uma coisa muito má; a senhora deve -trazer uma receita.</p> - -<p>—Sim, senhor, oh! de certo o medico escreveu -tudo isto... Levará muito tempo a fazer?</p> - -<p>—Não, faça favor de se sentar e de esperar cinco -minutos; vou já despachal-a.</p> - -<p>—Então espero.</p> - -<p>Entra na botica, com ar assustado, uma senhora -já velha, trazendo um cãosinho atrelado, e exclama:</p> - -<p>—Meus senhores, é verdade estar já em Paris, ter -já feito muitos estragos? ataca com muita força?</p> - -<p>—Perdão, minha senhora, mas de quem é que -falla?</p> - -<p>—Do cholera, senhor, disseram-me que já estava -em Paris, que tinha apparecido no arrabalde de Santo -Antonio.</p> - -<p>—É a primeira vez que ouço falar de similhante -coisa, minha senhora.</p> - -<p>—Devéras, não tem ouvido falar em tal?</p> - -<p>—Não, minha senhora.</p> - -<p>—O que confirmava os meus receios, foi que ao passar -por deante de uns urinoes, reparei que os estavam -alimpando com chloreto.</p> - -<p>—Isso faz-se muito amiude, é para destruir o mau -cheiro...</p> - -<p>—Acha que é só para esse fim? Devo tambem -dizer-lhe que tenho uma amiga a quem acaba de morrer -o marido muito repentinamente.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_30"></a>[30]</span></p> - -<p>—Uma apoplexia, talvez.</p> - -<p>—Oh! não, senhor, elle não era sanguineo; mas -voltou uma noite para casa com uma lagosta e um -salsichão de Lyão, era o seu petisco favorito acompanhado -de muita cerveja. Comeu menos mal; mas no -outro dia pela manhã estava morto e da côr do salsichão.</p> - -<p>—Teve uma indigestão, minha senhora.</p> - -<p>—Mas elle já muitas vezes tinha comido tanto -como d’essa vez e não morrêra.</p> - -<p>—Essas coisa não acontecem nunca duas vezes, minha -senhora.</p> - -<p>—Ahi está tambem o pequeno da minha porteira, -um rapazito sadio e córado, pois está ha tres dias -com uma dor de barriga e com uma dysenteria.</p> - -<p>—Isso é muito commum nas creanças.</p> - -<p>—Emfim, acabo de encontrar um sujeito que jantou -em minha casa ha quinze dias, e estava então de perfeita -saude. Achei-o muito amarello, com os olhos -encovados, mudado a ponto que não me pude conter -que lhe não dissesse: «Ai! Jesus! que cara que o senhor -tem!» então está doente? E elle responde-me: Não -sei o que tenho, sinto dores por todo o corpo. É assim -que principia o cholera?</p> - -<p>—Não, minha senhora, esse sujeito tem provavelmente -uma grande constipação, é o que é.</p> - -<p>—Oh! não importa, asseguro-lhe que anda no ar -alguma coisa que não é natural. Eu esta manhã tinha -quasi frio quando me levantei, e agora estou com -muito calor!</p> - -<p>—É que andou muito depressa.</p> - -<p>—Não, senhor; o Zozor obriga-me a parar a cada -instante; o pobre animalsinho tambem não está no -seu estado normal... Faça favor de me dar uma -pouca de camphora, sei que é um preservativo contra -as más emanações.</p> - -<p>—Vou dar-lh’a immediatamente.</p> - -<p>—Metterei um pedaço no meu espartilho: isso não -me pode fazer mal.</p> - -<p>—Pelo contrario, minha senhora.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_31"></a>[31]</span></p> - -<p>—Ha de dar-me tambem um pouco de chloro; é -outro preservativo.</p> - -<p>—Liquido ou solido, minha senhora?</p> - -<p>—Não comprehendo.</p> - -<p>—Minha senhora, solido é em pó; liquido é em -garrafa, uma agua preparada.</p> - -<p>—Ah! eu não conhecia o solido. Dê-me dos dois, -farei uso de ambos; lavar-me-hei com um, e trarei -commigo o outro. Ah! tem arruda?</p> - -<p>—Tenho, sim, minha senhora.</p> - -<p>—É tambem um preservativo.</p> - -<p>—Afugenta os insectos.</p> - -<p>—Oh! e preserva tambem do mau ar, dê-me uma -pouca; hei de trazel-a sempre no espartilho.</p> - -<p>—Fará a senhora muito bem.</p> - -<p>—A alfazema tambem tem propriedades reconhecidas?</p> - -<p>—Tem, sim, minha senhora, é aromatica.</p> - -<p>—Dê-me tambem uma porção de alfazema, que é -para trazer nas algibeiras. Que mais me poderá o senhor -dar que seja contra os maus ares? Ah! <i>patchouli</i>... -tem <i>patchouli</i>?</p> - -<p>—Não, minha senhora, isso vende-se nas perfumarias; -mas olhe que o <i>patchouli</i> cheira muito bem mas não -combate o mau ar, e, se abusar d’elle, pode alguma -vez atacar-lhe o systema nervoso.</p> - -<p>—Ah! eu não quero nada que ataque o meu systema; -a mais pequena coisa me irrita os nervos!</p> - -<p>—Então, minha senhora, leve antes valeriana, é -uma raiz com que se faz uma infusão como o chá. -Comtudo, devo prevenil-a de que não é agradavel -de beber, e que tem muito mau cheiro, mas é muito -saudavel.</p> - -<p>—Oh! dê-me cá d’essa raiz, bebel-a-hei e tral-a-hei -sempre commigo.</p> - -<p>O praticante dá a esta senhora tudo quanto ella lhe -pede; ella enche as algibeiras e o seio de camphora, -arruda, chloro, alfazema, valeriana, e leva uma garrafa -de agua chloretada. Vae deixando por onde passa<span class="pagenum"><a id="Page_32"></a>[32]</span> -uma mistura de cheiros cuja reunião nada tem de -agradavel.</p> - -<p>—Se esta senhora não tem á noite uma forte enxaqueca, -será um grande milagre! diz um dos rapazes.</p> - -<p>—Não falando em todos os gatos que vão correr e -saltar atraz d’ella, attrahidos pelo cheiro da valeriana, -que os faz quasi endoudecer. Se não gosta de gatos, -vae ver-se muito apoquentada.</p> - -<p>Entra na botica um pedreiro mostrando o braço -esquerdo todo ferido; ia sendo esmagado por uma -trave que quasi lhe caíu em cima, mas apenas apanhou -um forte raspão no antebraço. Curam-n’o, ligam-lhe -a ferida, dão-lhe um frasco de agua-ardente -camphorada, para elle embeber o apparelho, e, quando -quer pagar, despedem-n’o dizendo:</p> - -<p>—Nós não acceitamos nada aos doentes pobres! Vá-se -tractar, e, se tiver precisão de mais alguma coisa, -não receie vir pedil-o que não lhe custará nada.</p> - -<p>Hão-de convir que, quando a gente vê os pharmaceuticos -mostrarem-se tão solicitos em soccorrer os -desgraçados, não deve ter mais a confiança de os tractar -por <i>boticarios</i>.</p> - -<p>No emtanto têem entrado na pharmacia muitas creadas -de servir; falam todas ao mesmo tempo, e dizem:</p> - -<p>—Vá! despache-me, que estou com pressa.</p> - -<p>—Oh senhor, eu tenho tosse: dê-me rebuçados de -althéa! são muito bons! Aqui está um remedio que -me agrada.</p> - -<p>—A mim dóe-me a garganta...</p> - -<p>—Tome gargarejos de agua de cevada com mel rosado...</p> - -<p>—Minha ama quer pomada para os beiços, não ha -pomada que lhe chegue; eu não uso d’isso, e tenho a -bocca mais fresca do que ella.</p> - -<p>—Eu fiz um gallo na testa, e dóe-me muito.</p> - -<p>—Deu alguma pancada?</p> - -<p>—Foi n’uma porta. Eu estava muito quieta, de repente -abriram-n’a... eu não esperava...</p> - -<p>—Provavelmente estava a escutar?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_33"></a>[33]</span></p> - -<p>—Effectivamente escutava; tinha chegado o magnetizador?</p> - -<p>—O que é isso de magnetizador?</p> - -<p>—É um sujeito que anda ensinando a senhora a ser -somnanbula lucida, para fazer experiencias em sociedade.</p> - -<p>—Ah! sua ama quer ser somnanbula?</p> - -<p>—É verdade, metteu-se-lhe aquillo na cabeça; por -mais que o marido lhe diga: «Olha que vaes adoecer!» -a senhora não desiste. E, quando chega o magnetizador, -mandam-me embora.</p> - -<p>—E o marido?</p> - -<p>—Meu amo? oh! esse está na repartição; sae de casa -ás nove horas, e só volta ás cinco, é coisa eabida.</p> - -<p>—Percebo. Onde é que deu a pancada?</p> - -<p>—Aqui, na testa... apalpe...</p> - -<p>—Ah! sim, cá sinto.</p> - -<p>—Meu amo disse-me que não precisava fazer-lhe -nada, que os gallos na testa não são perigosos. Elle -deve entender d’isto...</p> - -<p>—Tome sempre cosimento de vulneraria, será mais -prudente.</p> - -<p>—Então arranje-me isso n’um instante.</p> - -<p>Abre-se a porta, e sente-se um cheiro fortissimo; é -a velha dos preservativos que volta, dizendo:</p> - -<p>—Senhor, esqueci-me de levar agua de melissa dos -Carmelitas; é uma coisa indispensavel quando a gente -se sente incommodada; podem-se tambem esfregar -as fontes com ella; é um preservativo... faça favor -de me dar um frasco.</p> - -<p>—Aqui está, minha senhora.</p> - -<p>—Esta é da verdadeira, não é assim? o senhor não -quererá enganar-me! É dos verdadeiros Carmelitas, -da verdadeira rua Taranne?</p> - -<p>—Minha senhora, eu não conheço duas em Paris:</p> - -<p>—Muito agradecida.</p> - -<p>A velha mette o frasco na algibeira e retira-se.</p> - -<p>A menina Adriana entra emfim na pharmacia, exclamando:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_34"></a>[34]</span></p> - -<p>—Ah! cá estou finalmente! ainda bem! pensei que -não chegaria nunca...</p> - -<p>—Tem alguem doente em casa, menina Adriana?</p> - -<p>—Tenho; é minha ama que está com o seu ataque -nervoso, com a sua crise, e com um grande tremor. -Tome, aqui tem a receita, avie-me depressa... eu vim -a correr quanto pude, agora não me demore muito -tempo...</p> - -<p>—Sente-se, que vou já despachal-a.</p> - -<p>—Ah! agradeço-lhe muito a sua bondade! é que me -faz muita pena vêr soffrer a pobre de minha ama.</p> - -<p>Começa o praticante a aviar a receita da sr.ª Montémolly, -quando se abre de novo a porta, e invade a -pharmacia uma mistura de cheiros activissimos; é a -senhora que tem medo do cholera, que torna a entrar -e vae importunar o rapaz que está ao balcão, exclamando:</p> - -<p>—Ah! senhor! não pode fazer idéa de como cheira -mal a rua Meslée!...</p> - -<p>—Sinto muito, mas que quer que lhe faça?</p> - -<p>—Anda alguma coisa no ar, oh! certamente, o ar -está máu n’este momento!...</p> - -<p>—É talvez uma trovoada que se prepara!...</p> - -<p>—Oh! o que se prepara é outra coisa. Quer ter a -bondade de me desrolhar o meu frasco de agua de -Melissa? Se me dá licença, vou esfregar o nariz e as -fontes, e então poderei affrontar com menos susto os -miasmas da rua.</p> - -<p>—Faça o que quizer, minha senhora, aqui tem o -seu frasco aberto; quer uma chicara?</p> - -<p>—Bastará a ponta do meu lenço, vou embebel-a -muito bem...</p> - -<p>Effectivamente, esta senhora deita agua de Melissa -no lenço, depois esfrega as fontes, lava o nariz, introduz -tanto quanto pode o lenço molhado nas ventas, -esfrega tambem a testa, deita agua de Melissa na -palma da mão, depois aspira-a a ponto de espirrar -oito vezes a fio. Emfim acabada esta ceremonia, torna -a rolhar o frasco, mette-o na algibeira, vae-se, dizendo:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_35"></a>[35]</span></p> - -<p>—D’esta vez, creio que estou bem preservada do -máu ar!...</p> - -<p>—Oh! sim, minha senhora, está bem preservada, -exclama o aprendiz de boticario. Folgo de crer que -tambem nós o estamos agora das suas visitas. Que -fregueza!...</p> - -<p>—Mas é ella que empesta a gente, diz Adriana; o -que foi então que o senhor deu áquella senhora?</p> - -<p>—Tudo o que ella quiz!...</p> - -<p>—Qual é a doença d’ella?</p> - -<p>—A doença é medo, que é o mal mais commum e -que nos manda cá mais gente. Esta senhora tem medo -do cholera; outras têem medo d’uma molestia de -que não apresentam o mais pequeno symptoma mas -de que se julgam ameaçadas... o medo não raciocina! -Ninguem faz idéa de quantos freguezes elle nos arranja...</p> - -<p>—Ai! com a bréca! exclama um dos praticantes, -eil-a ahi outra vez de volta comnosco!...</p> - -<p>—Quem?</p> - -<p>—A senhora dos preservativos...</p> - -<p>—Ora essa! nada, isso agora torna-se forte de mais. -Que mais quererá ella lavar aqui? isto começa a dar-me -cuidado.</p> - -<p>A senhora, que recende fortemente, abre a porta e -pára no limiar, dizendo:</p> - -<p>—Perdão, meus senhores, uma pergunta, se me dão -licença... Se eu tomasse tabaco?... É uma coisa que -tambem deve preservar, penso eu?...</p> - -<p>—Sim, minha senhora, de certo, tome tabaco... tome -mesmo muito; não cheirará mais nada!...</p> - -<p>—Então faça favor de me dar uma porção de tabaco...</p> - -<p>—Nós não vendemos tabaco, minha senhora, no <i>boulevard</i> -encontra-o logo.</p> - -<p>—Corro a compral-o. Cheirarei primeiramente, e -depois talvez me arrisque a fumar um cigarrinho; as -senhoras agora fumam, não é verdade?</p> - -<p>—Sim, minha senhora. Oh! as senhoras fumam,<span class="pagenum"><a id="Page_36"></a>[36]</span> -fazem agora tudo o que fazem os homens; isso não -as aformoseia, mas diverte-as...</p> - -<p>—Oh! mas eu cá, não é com o fim de me aformosear, -é para affrontar os máus ares. Vou comprar tabaco...</p> - -<p>—Vá, minha senhora, vá! diz o joven pharmaceutico -fechando-lhe a porta nas costas; cheire, fume, masque -mesmo, se isso lhe dá prazer mas, por favor, deixe-nos -socegados um instante! Tome, menina Adriana, aqui -tem o remedio para sua ama...</p> - -<p>—Obrigada; vou de corrida levar-lh’o... faz-me -tanta pena vel-a soffrer!... Boa tarde, meus senhores...</p> - -<p>A creada grave retira-se, e d’esta vez chega a casa -sem ter tido outros encontros. Quando passa diz á -porteira:</p> - -<p>—Aqui me tem; cá trago o remedio; pensei que -não acabavam de me aviar hoje; havia muita gente -na botica...</p> - -<p>—Pois olhe, não vale a pena apressar-se...</p> - -<p>—Então porquê, sr.ª Bedou?</p> - -<p>—Porque sua ama saíu de carruagem com a sua -amiga, ha já bastante tempo...</p> - -<p>—A senhora saíu! oh! isso era de esperar! vá lá -uma pessoa estafar-se a correr para dar conta do seu -recado! vá lá a gente privar-se de conversar com os -seus conhecimentos! Ah! esta não me ha de esquecer...</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="III">III<br /> -<span class="smaller">Um rapaz manteúdo</span></h2> - -</div> - -<p>O joven Casimiro Dernold occupa um lindo aposento -de rapaz solteiro, n’um terceiro andar, n’uma -bella casa da rua de Paradis-Poissonniére. Tem uma -saleta, uma sala e um quarto de dormir. Tudo isto está -no maior aceio, e bem adornado; a mobilia, sem ser -d’uma extrema elegancia, é de bom gosto e ainda da -moda. Emfim, tudo annuncia que quem occupa este<span class="pagenum"><a id="Page_37"></a>[37]</span> -pequeno aposento não deve ser, como se diz vulgarmente, -um semsaborão.</p> - -<p>E entretanto aquelle que alli habita, rapaz de vinte -e seis annos, bonito de cara, bem feito de corpo, cujo -porte é elegante e o trajo sempre apurado, passeia -n’este momento na sala com um ar de muito máu -humor, batendo algumas vezes nos moveis com uma -chibatinha, ou amarrotando as luvas com colera, e -falando alto, o que acontece amiude ás pessoas fortemente -excitadas por um sentimento qualquer; porque -parece que desafogamos dizendo o que nos afflige, -mesmo quando ninguem mais nos pode ouvir.</p> - -<p>—Nada! não!... isto não pode durar assim... é -preciso acabarmos com isto! exclama o rapaz, que -acaba de bater com a chibatinha n’uma poltrona fazendo -sair d’ella uma nuvem de poeira, o que o detem -na sua exclamação e lhe faz dizer: Se é assim que o -meu porteiro me sacode a mobilia, não se deve cansar -muito... Nada! estou cançado de ser escravo de Anbrosina, -porque sou completamente seu escravo!... -Não posso dar um passo, nem ir a parte alguma, sem -que ella o saiba... Estou persuadido de que me manda -espreitar; diz que é por amor; ella ama-me, sim, -concordo n’isso, devo mesmo acredital-o... porque -eu custo-lhe muito caro... Ella compra-me tudo o -que eu desejo; paga-me o alfaiate, o sapateiro, emfim, -todos os meus fornecedores... Aliás, como havia de -eu pagar-lhes, eu que não faço nada, que não ganho -nada, que para nada sirvo? Oh! mas, se não faço nada, -ella é que tem a culpa! Todas as vezes que tenho querido -procurar um emprego, ella tem-se opposto a isto. -Quando me quero deitar de novo á pintura, porque -eu principiava a ir menos mal na paizagem, tinha -tambem conseguido fazer alguns retratos, tinha experimentado -a mão com os amigos. Eu devia ter continuado, -mas Ambrosina acha sempre meio de me -impedir de trabalhar, levando-me para o campo, obrigando-me -a acompanhal-a constantemente, a andar -passeando com ella, a leval-a a alguma festa... Emfim, -imagina sempre alguma coisa, tudo para fazer<span class="pagenum"><a id="Page_38"></a>[38]</span> -monopolio de mim, para me ter sempre na sua dependencia. -Havia de affligir-se muito se eu ganhasse dinheiro, -porque então poderia passar sem ella, escapar-me -das suas garras! E eu, covarde, preguiçoso, -comilão, gostando dos prazeres, da vida regalada, deixei-me -enredar por esta mulher, por quem senti algum -amor, no começo, e da qual depois não tive força para -recusar os favores. E quando a gente se acha n’este -declive, é muito difficil parar, sobretudo quando se -é, como eu dizia, preguiçoso, comilão, e amigo das -suas commodidades. Ah! os rapazes deviam tomar -muito cuidado nas ligações que arranjam... essas ligações -influem em todo o resto da existencia. Tenham -duas, tres, doze amantes se se acham com forças para -tanto, mas não se prendam com nenhuma... porque -é essa que os fará commetter tolices e perder o futuro. -Aquelles que passam por doudos e extravagantes, -são portanto os que têem mais juizo; pelo menos não -se deixam cair no laço e conservam o seu livre arbitrio. -Nada, não, ha dois annos que sou o chichisbéo -da sr.ª Montémolly, irra! já estou farto!</p> - -<p>Casimiro dá nova chibatada n’uma das suas poltronas; -levanta-se uma tal poeirada, que o rapaz fica -quasi cego, e tem de, se refugiar na outra extremidade -da sala, murmurando:</p> - -<p>—Olhem o maroto do porteiro! não é possivel ter -menos cuidado com os meus moveis! E diz elle que -passa metade do dia a arranjar-me a casa. Ah! se -Ambrosina soubesse que dou lições da desenho a uma -menina do predio, como não ficaria furiosa! É todavia -uma coisa bem innocente. A menina Angelina Proh -é uma rapariga nem feia nem bonita; antes tola que -espirituosa; mas creio que isso é de familia. Mora -com o pae, com a mãe e com um irmãosinho, no mesmo -patamar defronte de mim. Esta familia Proh é d’uma -extrema polidez; a mãe, que ainda tem pretenções, -dizia-me a cada passo:</p> - -<p>«—O senhor é pintor, ah! eu estimaria muito ter -o meu retrato, e, se o senhor não levasse muito caro, -pedia-lhe que m’o tirasse, mas a oleo, com tintas<span class="pagenum"><a id="Page_39"></a>[39]</span> -porque eu detesto a photographia, acho que faz a -gente feia consideravelmente.</p> - -<p>«—Minha senhora, sinto muito, mas não me julgo -ainda com forças bastantes para tirar um retrato do -nutural.</p> - -<p>«—Oh! isso é talvez demasiada modestia! Será -preciso experimentar; nós somos visinhos, não virei -senão quando o senhor tiver tempo de seu.</p> - -<p>«Tempo de meu! tenho-o sempre, quando porém -Ambrosina me dá liccença para o ter!... Depois o -papá Proh, que é, creio eu, um antigo professor de -grego e de latim, propoz-me o dar algumas lições de -desenho á filha e ao filho, quando elle não fizer travessuras. -Já se vê, aceitei. Vinte e cinco francos por -mez não são grande coisa, mas eu não poderia dizer -com que sentimento de alegria, de felicidade, recebo -este dinheiro, que é adquirido pelo meu trabalho. -Sinto-me deveras orgulhoso! Ah! estes vinte e cinco -francos dão-me cem vezes mais prazer que o cartucho -de moedas de ouro que Ambrosina me mette no -bolso; tanto mais que ao depois é preciso que eu lhe -dê uma conta exacta do emprego que fiz d’esse ouro...</p> - -<p>«Hoje devia ir buscal-a ás oito horas para a levar -a um café-concerto. Ella havia de escolher o que -mais a tentasse. Mas como isso me não tentava nada -a mim, e como desde muito tempo ardo em desejos -de ir ao Mabille ver as damas que dansam com tanto -<i>chic</i>, escrevi-lhe um bilhetinho dizendo que o meu -amigo Miflaud tinha uma pendencia de honra para -ámanhã pela manhã, que elle contava commigo para -ser um dos padrinhos, e que era absolutamente preciso -que eu lhe fosse falar esta noite, para me entender -com elle e com o outro padrinho sobre as condições -do duello e sobre o motivo da pendencia. Engulirá -ella esta peta?... Hum! não é muito provavel; o -importante é que Miflaud, que deve ir commigo ao -Mabille, não me faça esperar muito tempo. Logo que -eu me apanhe fóra de casa, tanto peor! se Ambrosina -aqui mandar, não me encontrarão.</p> - -<p>«Vejamos as horas que são: já oito horas! e este<span class="pagenum"><a id="Page_40"></a>[40]</span> -tolo de Miflaud devia cá estar ás sete e meia. Felizmente, -mandei a minha carta a Ambrosina muito tarde; -de certo não a recebeu antes das oito horas. Quem a -ha de aturar ámanhã! Mas, em ella vendo que me -zango devéras, oh! então, acalma-se logo; ella no -fundo não é má, mas muito ciosa de mais! infinitamente -ciosa; uma verdadeira andaluza. Graças a Deus -não traz faca na liga. Ah! lá tocam a campainha, é -Miflaud, finalmente...»</p> - -<p>Casimiro corre a abrir a porta, mas, em vez do -rapaz por quem esperava, acha-se com um menino de -seis annos, que lhe diz:</p> - -<p>—Sr. Casimiro, venho da parte da mamã saber se -o senhor está em casa?</p> - -<p>—Bem vê que estou, Affonsinho, e o que me quer -a sua mamã, a sr.ª Proh?</p> - -<p>—Acaba a costureira de lhe trazer um vestido novo -muito bonito, de riscas verdes e encarnadas. A mamã -vestiu-o, e queria que o senhor a visse com elle, para -lhe dizer se a quer retratar assim.</p> - -<p>—Mas meu menino, eu não vou agora fazer o retrato -da sua mamã; terei muito tempo para ver o seu -vestido.</p> - -<p>—Sim, porém ella disse-me: Vae pedir ao nosso -vizinho que entre cá um minuto; quero que elle me -veja assim vestida...</p> - -<p>—É que estou á espera d’uma pessoa. Ah! mas -posso deixar a porta aberta. Ande lá adeante de mim, -Affonsinho! Seu papá não está em casa?</p> - -<p>—Não, senhor, saiu agora mesmo dizendo á mamã -que ella parecia uma girafa com o seu vestido de -riscas.</p> - -<p>—Oh! com a breca! mas a sr.ª Proh não havia de -ficar muito contente!</p> - -<p>—Por isso respondeu ao papá: «Tu então não precisas -estar vestido para pareceres um chimpanzé.» -Sr. Casimiro, o que é um chimpanzé, com que o papá -se parece?</p> - -<p>—Meu caro amigo, é... ora... um chimpanzé é<span class="pagenum"><a id="Page_41"></a>[41]</span> -um homem dos bosques, um bonito homem dos bosques, -emfim é um quadrumano.</p> - -<p>—É o que é um quadrumano?</p> - -<p>—É um homem que tem os pés com forma de -mãos.</p> - -<p>A apparição da sr.ª Proh vem pôr termo ás perguntas -do filho. Esta senhora vem até á porta da escada -ao encontro do seu vizinho. Celeste Proh é uma -mulher de quarenta e sete annos, loura, deslavada, -com olhos azues muito desmaiados, e sem rasto de -sobrancelhas; é obrigada a fazel-as com um pincel, -que ella molha n’uma composição, cuja côr nem sempre -é a que se esperava, o que faz com que esta senhora -tenha por cima dos olhos um arco, ora preto, -ora côr de castanha, ora avermelhado; ella porém -acha que isso lhe dá mais graça á physionomia; tem-se -por muito bonita e julga parecer mais nova que -sua filha, que tem dezeseis annos. Repete muito -amiude na conversação que não comprehende seu -marido, que nunca mostrou empenho em possuir o -retrato de sua mulher, com o qual elle deveria ter -adornado todos os seus aposentos.</p> - -<p>A sr.ª Proh tem effectivamente um vestido novo de -riscas largas d’um encarnado muito vivo e d’um verde -claro, o que lhe dá quasi o ar d’uma mouta florida -e attrahe a vista a cincoenta passos. Avança sorrindo -para o vizinho.</p> - -<p>—Mil perdões, sr. Casimiro, fui indiscreta, mandei-lhe -lá o Fonfonso; é que eu queria saber a sua -opinião a respeito d’este vestido; como o acha?</p> - -<p>—Acho-o muito bonito, é original e faz sobre-tudo -muito effeito; emfim, vê-se de longe.</p> - -<p>—Eu gosto d’isto, gosto do que dá nas vistas. Acha -que me fica bem?</p> - -<p>—Admiravelmente! assenta-lhe que nem uma -luva!</p> - -<p>—Gosto muito do vestido bem justo ao corpo. Demais, -creia que não me tolhe por modo algum os movimentos. -Então está dito, ha-de retratar-me com -este vestido, não é verdade?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_42"></a>[42]</span></p> - -<p>—Então sempre quer que lhe tire o retrato?</p> - -<p>—De certo que sim.</p> - -<p>—Mas eu já lhe disse que me não julgo com forças -de tirar um retrato do natural.</p> - -<p>—Mas o senhor pintou o retrato da gata do porteiro, -já lh’o vi lá em baixo no cubiculo.</p> - -<p>—Aquillo foi um ensaio, para me distrahir.</p> - -<p>—Pois bem! fará tambem o meu para se distrahir. -O sr. Casimiro é demasiadamente modesto, desconfia -muito do seu talento; a gata do porteiro parece que -está viva, e todavia ella não esteve muito tempo em -posição deante do senhor?</p> - -<p>—Não esteve tempo nenhum, pintei-a de memoria.</p> - -<p>—Eu estarei o tempo que o senhor quizer. O meu -Proh queria fazer-me photographar, mas eu não quiz; -detesto a photographia, desfeia e envelhece a gente, -mas não custa caro, e por isso toda a gente se serve -d’ella. Falem-me da pintura! isso é que tem vida, -expressão, côr...</p> - -<p>—Sou inteiramente do seu parecer, minha senhora.</p> - -<p>—Entre e descance um pouco...</p> - -<p>—Muito obrigado, mas espero uma pessoa, e é preciso -que eu esteja em casa.</p> - -<p>—Então como este vestido lhe agrada, poderá -retratar-me com elle?</p> - -<p>—Estou prompto a retratal-a com o trajo de que -a senhora mais goste, mesmo de Diana caçadora, se -quizer.</p> - -<p>—Oh! mas é uma bella idéa essa. Diana caçadora! -oh! isso é que seria de bom gosto...</p> - -<p>—Boa tarde, minha senhora, e fico ás suas ordens.</p> - -<p>—Mas, vizinho, onde poderei encontrar o trajo -d’essa deusa da caça?</p> - -<p>—Casimiro não responde mais á vizinha, porque -fechou já a porta, dizendo comsigo:</p> - -<p>—Esta sr.ª Proh é massadora! Se não fosse o interesse -que tenho em lhe dar lições aos filhos, já a -teria mandado para o diabo com o seu retrato! E este -Miflaud sem apparecer! São quasi oito horas e meia,<span class="pagenum"><a id="Page_43"></a>[43]</span> -estou capaz de me ir embora sem elle. Mas ir sósinho -ao Mabille não é nada divertido!</p> - -<p>Passam ainda cinco minutos quando finalmente -tocam a campainha com violencia; o rapaz corre a -abrir a porta, mas é a sr.ª Montémolly, que entra com -um ar decidido, furibundo, toda esbaforida e a escorrer -em suor, porque subiu a escada a toda a pressa. Os -leitores já sabem pela menina Adriana que sua ama, -que quer passar por ter trinta e quatro annos, deve -andar perto dos trinta e oito. Para completar o retrato, -accrescentaremos que é uma mulher alta e bonita, -que tem uma certa graça nas maneiras, uma certa -perfeição nas fórmas, e que veste muito bem. É uma -mulher trigueira, cujos olhos bem rasgados nem sempre -são meigos, e cuja bocca, um pouco mettida para -dentro, é muitas vezes desdenhosa e altiva; mas, -quando ella quer ser amavel, é uma bonita mulher, -um verdadeiro typo andaluz; para ser uma perfeita -hespanhola, não lhe falta senão o pente muito alto -debaixo do véu preto e umas castanholas nas mãos.</p> - -<p>Esta senhora entra sem se demorar um instante, -sem mesmo dizer uma palavra áquelle que lhe abre -a porta; atravessa immediatamente a saleta de entrada, -a sala, vae passar revista ao quarto da cama, esquadrinha -todos os cantos á casa para vêr se está por -alli alguem escondido; só depois de ter acabado esta -inspecção é que volta á sala, e atira comsigo para cima -d’uma poltrona exclamando:</p> - -<p>—Ah! não era a mim que o senhor esperava, não é -verdade?</p> - -<p>—De certo! responde Casimiro sentando-se com o -ar d’uma pessoa que acaba de levar com uma telha -na cabeça; e é devéras um acaso o ter-me encontrado -aqui. Já teria sahido para ir a casa de Miflaud, se elle -me não tivesse escripto novamente dizendo-me que -viria elle mesmo cá, que antes queria isso, porque em -sua casa, como mora com a mãe, receava que ella -suspeitasse do duello e então...</p> - -<p>—Sr. Casimiro, quando faz tenção de acabar com -essas mentirolas? Pensa porventura que acredito todas<span class="pagenum"><a id="Page_44"></a>[44]</span> -essas patranhas que me conta, e mesmo muito -mal.</p> - -<p>—Mas, minha senhora, não ha aqui patranha nenhuma. -Que espanto é que um meu amigo tenha uma -pendencia de honra? é uma coisa que acontece todos -os dias. Elle pede-me que seja seu padrinho, e isto -não se recusa...</p> - -<p>—Em primeiro logar, ha muito tempo que o senhor -me não falava no seu amigo Miflaud; parece-me que -tinha deixado de andar com elle.</p> - -<p>—Deixado... porque, estando sempre com a senhora, -não posso andar com elle, mas não estavamos -desavindos.</p> - -<p>—O senhor devia passar o serão commigo.</p> - -<p>—Isso nada tem de notavel, porque os passo todos!</p> - -<p>—Então com quem queria passal-os? O senhor escreve-me: -«Não espere por mim esta noite.» Como é -amavel!...</p> - -<p>—Visto que era para obsequiar Miflaud. Mas tanto -peor para elle; não estou para o esperar mais tempo. -Venha, vamos passear.</p> - -<p>—Ah! agora tem pressa de sair, está com medo não -chegue essa pessoa. Isto esconde uma perfidia; não -é Miflaud que o senhor espera!</p> - -<p>—É sim, é elle. Mas, visto que a senhora se deu -ao incommodo de cá vir, que o leve o diabo. Vamos, -Ambrosina, estou ás suas ordens. Hein? isto é que -é ser amavel! Vamos embora...</p> - -<p>—Oh! que pressa que tem de sair! isto não é natural, -o senhor está-me a atraiçoar!</p> - -<p>Cazimiro levanta-se encolerizado, e põe-se a passear -pelo quarto dizendo:</p> - -<p>—Isto é demais! o demonio leve as mulheres com -o seu genio infernal! Quer a gente sair sem ellas, gritam; -quer estar com ellas, gritam do mesmo modo! -Emfim, faça-se o que se fizer, gritam sempre! Ah! -não estou para aturar mais scenas d’estas! Adeus, -minha senhora, faça o que quizer, eu cá vou-me embora!</p> - -<p>E já o rapaz tem dado alguns passos para a porta;<span class="pagenum"><a id="Page_45"></a>[45]</span> -mas Ambrosina corre para elle com a rapidez d’uma -corça, segura-o, enlaça-o nos braços, olha para elle -amorosamente, e diz-lhe com ternura:</p> - -<p>—Aonde vaes, ingrato? queres abandonar-me? bem -sabes porém que não posso viver sem ti, que és a minha -felicidade, a minha alma, a minha vida! Reputas -um crime o eu ter vindo aqui? não era muito natural -que eu me quizesse certificar de que não recebias -aqui outra mulher, ou de que não ias ter com ella a -alguma parte?...</p> - -<p>—Bem vê que não escondo aqui mulher alguma; o -que me havia de ser difficil! a senhora esquadrinhou -todos os cantos á casa.</p> - -<p>—Não, mas estás talvez á espera d’ella!</p> - -<p>—Outra vez! ah! a senhora é terrivel!</p> - -<p>—Não! não! não tenho razão, meu amigo, sou injusta, -não o serei mais...</p> - -<p>—Bom! ainda bem! vamos passear.</p> - -<p>Casimiro está com pressa de sair, porque receia -agora que a chegada do seu amigo Miflaud ponha a -descoberto as suas mentiras. Mas, sempre promettendo -não tornar a ser ciosa, Ambrosina, que continua -a ter suspeitas, acha meios para não sair tão depressa: -é o seu chapéu que não está bem posto, depois é -a cuia que não está muito segura, e é preciso que ella -arranje tudo isto; o seu amante está sobre brazas; -já pôz o chapéu na cabeça, tem a bengala na mão, e a -sua amante tem sempre alfinetes a pregar em alguma -parte. Succede alfim o que elle receava, batem á porta.</p> - -<p>O rapaz não dá mais que um pulo da sala á porta -de entrada, afim de tratar de prevenir o seu amigo; -mas, por mais prompto que tenha sido, Ambrosina -chega lá ao mesmo tempo que elle, depois de ter atirado -ao chão os alfinetes que estava a pregar.</p> - -<p>É effectivamente Miflaud, joven corrector de commercio, -da edade de Casimiro, que não é bonito, mas -que tem uma cara bastante original, que gosta de -<i>grisettes</i>, de dança, de vinho branco e de camarões; -não foi muito favorecido pela natureza emquanto ao<span class="pagenum"><a id="Page_46"></a>[46]</span> -espirito, mas está sempre prompto para se divertir, -para rir, emfim para brincar, comtanto que não seja -encarregado de inventar as brincadeiras.</p> - -<p>—Boa noite, Miflaud, vens por causa do teu duello... -pois que te bates ámanhã, e eu devo servir-te -de padrinho. Mas sinto muito, meu amigo; procura -outro... Tenho que fazer ámanhã.</p> - -<p>Tudo isto foi dito por Casimiro d’um só jacto, sem -tomara respiração. Um outro que não fosse Miflaud, -um d’estes farçantes como ha tantos, teria comprehendido -a situação, sobretudo vendo os signaes que -o seu amigo tratava de lhe fazer; mas Miflaud não -era esperto, e emquanto que a sr.ª Montémolly o mira -com anciedade, elle toma um ar muito espantado respondendo:</p> - -<p>—Eu! bato-me em duello! Essa é muito boa! Mas -não percebo nada, isso é uma brincadeira!</p> - -<p>—Vamos Miflaud, não vale a pena occultal-o... -esta senhora tudo sabe, eu contei-lhe tudo; não se -dirá nada a tua mãe. Boa noite... vamos sair...</p> - -<p>—Mas eu estimaria bem saber o que tu queres -dizer com o teu duello...</p> - -<p>—Este senhor fez todavia tudo quanto é possivel -para que o senhor comprehendesse! diz Ambrozina -lançando sobre Casimiro um olhar fulminante; elle -quiz immediatamente pôl-o ao facto de tudo, para -que o senhor não desmentisse as patranhas que elle -me contou... mas perdeu o tempo e o trabalho; não -me deixo enganar tão facilmente! Vamos, sr. Miflaud, -não esteja a quebrar a cabeça, não se cance a querer -adivinhar o que significam os signaes que o seu amigo -lhe faz... O senhor não tem nenhum duello, não -se bate ámanhã, e estimo muito que assim seja.</p> - -<p>—Muito obrigado pela sua bondade, minha senhora; -é certo que não tenho nenhuma tenção de me bater -ámanhã, nem mesmo depois de ámanhã...</p> - -<p>—E vinha buscar este senhor para ir com elle... a -algum baile de tasca, sem duvida?</p> - -<p>—Oh! minha senhora!... ora essa!... um baile de<span class="pagenum"><a id="Page_47"></a>[47]</span> -tasca!... eu vinha... nós deviamos ir... Casimiro, -dize lá onde é que estavamos para ir...</p> - -<p>Casimiro encolhe os hombros, e atira comsigo para -uma cadeira exclamando:</p> - -<p>—Oh! não te embaraces... pois que com esta senhora -não ha meio de dar um passo, de ir a um divertimento -sem sua licença... Pois bem! é verdade, iamos, -ou pelo menos deviamos ir ao Mabille passar -uma hora. Isto não é crime! mas a senhora é tão ridicula, -tão ciosa, que em tudo vê maldade! e obriga-me -a mentir para evitar as scenas de ciume; mas com -a senhora não se evitam nunca!</p> - -<p>—Ao Mabille! quer ir ao Mabille! que horror! um -logar de perdição! Bem se sabe o que os homens vão -lá procurar!...</p> - -<p>—Mas, minha senhora, engana-se, diz Miflaud; o -Mabille é um jardim frequentado pela boa sociedade, -pelos estrangeiros mais distinctos, por lindas mulheres...</p> - -<p>—Por <i>cocottes</i>! diga o termo.</p> - -<p>—Mas lá não ha só <i>cocottes</i>; e ao menos as que lá -vão, apresentam-se vestidas no rigor da moda, e algumas -que dançam com uma graça, uma desenvoltura. -Asseguro-lhe que é muito curioso vêr aquillo.</p> - -<p>—Oh! desconfio bem que não é só para vêr que os -senhores lá vão...</p> - -<p>—Mas, como Casimiro parece estar agora occupado -com a senhora, penso que não iremos, e portanto -vou...</p> - -<p>—Nada! nada! vamos lá, eu quero ir por força! -exclama Casimiro levantando-se arrebatadamente. -Não se ha de dizer que nunca faço o que me dá na -vontade. Vem, Miflaud, vamos tomar uma carruagem.</p> - -<p>—Ah! querem por força ir ao Mabille, diz Ambrosina -correndo a buscar o chale; pois bem! vou -tambem com os senhores. Penso que o sr. Miflaud -não se recusará a dar-me o braço...</p> - -<p>—De certo que não, minha senhora, terei até muita -honra n’isso.</p> - -<p>—Ah! lá me esqueciam as luvas...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_48"></a>[48]</span></p> - -<p>Emquanto a sr.ª Montémolly vae ao fundo da sala -buscar as luvas, diz Miflaud em voz baixa a Casimiro:</p> - -<p>—Com ella não será a coisa tão divertida!</p> - -<p>—Tu é que tens a culpa, imbecil! responde Casimiro; -se tivesses entendido os meus signaes, ella teria acreditado -no duello, e deixava-me sair comtigo.</p> - -<p>—Mas... se eu não sou forte em mimica!</p> - -<p>Ambrosina volta calçando as luvas e parte com -os dois rapazes. Casimiro faz quanto pode para occultar -o seu mau humor; a sua amante olha para elle, -com ar meio ironico e meio de ameaça.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="IV">IV<br /> -<span class="smaller">Um almoço em intimidade</span></h2> - -</div> - -<p>No dia seguinte, depois do meio dia, Casimiro está -em casa da amante, sentado a uma mesa sobre a qual -se acha servido um magnifico almoço, defronte da -sr.ª Montémolly, com quem elle fez as pazes n’essa -mesma noite do baile Mabille, que se passou sem nova -scena de ciumes. Miflaud, como não podia deixar de -entregar-se á sua paixão pela dansa, teve de largar o -braço de Ambrosina, a qual, naturalmente, tomou o -de Casimiro; mas este, que não tinha a menor propensão -para o <i>cancan</i>, ainda o mais burguez, contentou-se -em ver Miflaud fazer prodigios de destreza e de -audacia, executando a <i>tulipa tempestuosa</i> e outras dansas -em voga nas quadrilhas excentricas; depois, enternecido -emfim pelos suspiros que dá Ambrosina -apertando-lhe o braço, pelos olhares ardentes que -succederam aos que ella a principio lhe lançava, por -estas palavras: «Então já me não amas?» que são -pronunciadas com uma voz quasi supplicante, elle -responde meigamente á pressão do braço, olha para -ella sorrindo, e está feita a paz. Não é talvez uma -paz bem solida, bem duravel, mas emfim é uma reconciliação.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_49"></a>[49]</span></p> - -<p>A sr.ª Montémolly está com um lindo trajo caseiro -de manhã, que dá muito realce aos seus contornos -bem pronunciados; na cabeça não tem mais enfeites -que os seus lindos cabellos, muito negros e espessos, -que ella propria sabe arranjar de maneira que harmonisem -com a sua physionomia, talento que nem -sempre possuem os artistas cabelleireiros, que nos -penteiam a seu modo, sem se importarem que o penteado -fique bem ou mal á nossa cara.</p> - -<p>Ambrosina é ainda uma mulher muito seductora e -que muitos homens se julgariam felizes de conquistar; -mas, n’este momento é ella que parece procurar -agradar ao seu amante, prendel-o em novas cadeias, -emfim captival-o ainda mais. Estão trocados os papeis: -é a senhora quem faz a côrte, e o homem quem a recebe.</p> - -<p>—Meu amiguinho, coma um bocadinho d’este -<i>foie gras</i>, diz Ambrosina a Casimiro. Não o acha bom?</p> - -<p>—Delicioso, optimo! mas já comi.</p> - -<p>—Não importa. Então vae perdendo o appetite?</p> - -<p>—Pelo contrario, tenho um appetite enorme, e parece-me -que o mostro bem; faço honra ao seu almoço.</p> - -<p>—Que tal acha este Chambertin?</p> - -<p>—Excellente: sinto-me tentado a cantar aquella -copla do <i>Novo senhor de aldeia</i>: <i>É um vinho dos mais -excellentes!... tem dez tem doze annos!...</i></p> - -<p>—Tenho aqui um velho Madeira, de retorno da -India, que o meu fornecedor de vinhos me recommendou; -vae dizer-me o que pensa d’elle.</p> - -<p>—Estou d’antemão persuadido de que pensarei -muito bem; a senhora tem sempre vinhos deliciosos.</p> - -<p>—É verdade, estou muito contente com o meu fornecedor. -Coma d’esta lagosta em <i>mayonnaise</i>...</p> - -<p>—É o que estou fazendo.</p> - -<p>—Aqui tem azeitonas... e atum.</p> - -<p>—Logo, logo, temos muito tempo; a senhora não -tem que sahir hoje de manhã?</p> - -<p>—Eu? ora essa! E aonde poderia eu ir quando estou -com o senhor, quando o pussuo aqui, ao pé de<span class="pagenum"><a id="Page_50"></a>[50]</span> -mim, em minha casa? Ah! sou tão feliz então! queria -estar sempre assim...</p> - -<p>—Provemos uma gota d’este famoso Madeira de -retorno da India. Hum! que linda côr... e como está -<i>nif</i>....</p> - -<p>—O que entende por <i>nif</i>, meu amiguinho?</p> - -<p>—É um termo de camponio que quer dizer claro, -puro. Hum! bello aroma, este não cheira a agua-ardente -como todo o Madeira falsificado... Á sua saude, -minha querida amiga...</p> - -<p>Vá á sua, meu brégeiro: mas sobretudo não me -prégue petas como hontem.</p> - -<p>—Ah! quer tornar á mesma? Afinal de contas, o -crime não era grande. Toda a gente vae ao Mabille, -e pode-se estar lá com muito juizo.</p> - -<p>—Sim, mas não se deve dansar como o seu amigo -Miflaud; aquelle rapaz tem os ossos deslocados!</p> - -<p>—Então que quer? elle aspira a uma reputação no -genero da do famoso Chicard!</p> - -<p>—Felizmente o senhor não gosta de dansa...</p> - -<p>—Ainda que gostasse, peço-lhe que acredite que -não seria isso razão para eu me entregar a um <i>cancan</i> -tão descabellado.</p> - -<p>—Meu amiguinho, aqui tem salmão grelhado que -ha de ser muito bom com este môlho á genebriana.</p> - -<p>—Diabo! ainda salmão; já tenho comido muito! -Emfim, tanto peior! sacrifico-me...</p> - -<p>—Então não bebe!</p> - -<p>—Não faço outra coisa...</p> - -<p>—Temos aqui Champagne <i>rosey</i>; gosta, creio eu?</p> - -<p>—Oh! eu gosto de todos os vinhos quando são -bons, é como as mulheres.</p> - -<p>—Como, senhor! gosta de todas as mulheres?...</p> - -<p>—Perdão! é quando ellas são boas, e asseguro-lhe -que não me prende isso muito.</p> - -<p>—Ah! mau! então acha as mulheres más?</p> - -<p>—Sim, em geral, mas ha excepções.</p> - -<p>—É uma felicidade! e eu sou uma excepção?</p> - -<p>—Oh! a senhora abusa da minha situação, faz-me<span class="pagenum"><a id="Page_51"></a>[51]</span> -beber uma grande diversidade de vinhos... e depois -faz-me perguntas insidiosas...</p> - -<p>—Vamos, responda: eu sou boa?</p> - -<p>—Ah! ah! ah!</p> - -<p>—Não se ria! quero que me diga se sou boa.</p> - -<p>—Só pela maneira de me perguntar isso, se poderia -logo pensar o contrario! mas não, pode estar socegada, -a senhora é boa, é um carneiro, um cordeirinho... -nunca se zanga...</p> - -<p>—Creio que está mangando commigo?</p> - -<p>—Não, oh! francamente, julgo-a boa, quando não -está debaixo do imperio d’uns zelos que lhe estragam -ás vezes o genio.</p> - -<p>—É minha a culpa? Eu não seria ciosa de certo se -o amasse menos...</p> - -<p>—Sim, isso diz-se sempre, mas eu não duvido dos -seus sentimentos. Tem-me dado bastantes provas de -affeição, tem-m’as dado até de mais... e como poderei -eu pagar...</p> - -<p>—Cale-se! agora vae dizer tolices, beba, que é melhor. -O Champagne está á sua espera. Vamos, faça-me -a razão... este é o meu vinho favorito...</p> - -<p>—Á sua saude, querida Ambrosina; sim, bebo -mas isso não me impedirá de lhe dizer que no fundo -do coração não estou contente commigo. Não faço -coisa alguma, não me falta nada, a senhora corre ao -encontro de todos os meus desejos, paga a todos os -meus fornecedores: é odioso, isto assim não pode durar!</p> - -<p>—Na verdade, Casimiro, não sei o que tem hoje, -mas está a dizer-me coisas muito desagradaveis. Como, -porventura entre duas pessoas que se amam, não deve -ser tudo commum, o prazer e o desgosto, a miseria -e a riqueza? Se eu não tivesse um soldo de meu, se -carecesse de tudo, pensa que me havia de envergonhar -de lhe dever tudo, de partilhar da sua fortuna, -de viver dos seus beneficios?...</p> - -<p>—Oh! n’uma mulher, o caso é muito differente! -uma mulher, é esse o seu papel, é a sua sorte; a mulher -nasceu para ser protegida, soccorrida, sustentada<span class="pagenum"><a id="Page_52"></a>[52]</span> -pelo homem. As senhoras são feitas de uma das -nossas costellas, por conseguinte são uma parte de -nós mesmos. Mas o homem nasceu para trabalhar, -para ganhar dinheiro, ou para o perder quando não -é bem succedido nas suas emprezas. E quando elle -passa todo o seu tempo a passear, a não fazer nada, -senão divertir-se á custa da mulher, é o mundo ás -avessas!</p> - -<p>—Ah! como é cruel! E todos aquelles que nasceram -com fortuna, com herdades, quintas... têem acaso -necessidade de trabalhar?</p> - -<p>—Não, mas tambem não têem necessidade de que -os seus fornecedores sejam pagos pela dama a quem -fazem a côrte.</p> - -<p>—Mas, todos os dias se está vendo um homem que -não tem nada casar com uma mulher que lhe leva um -dote consideravel; e elle não se envergonha de acceitar -esse dote. Bem vê que é a sua mulher que elle deverá -o seu bem estar, a sua fortuna, que muitas vezes elle -se apressará a dissipar com amantes. Por que razão se -acha o senhor tão reprehensivel, emquanto que esse -homem será bem visto na sociedade?</p> - -<p>—Oh! minha querida amiga, é que ha ahi uma grande -differença: esse homem veiu a ser marido da senhora -rica, ella julgou-o digno de o unir a si por laços indissoluveis, -emfim tem o nome d’elle. O marido torna-se -dono da casa, o que é muito differente! Então -pode mandar, pode pôr e dispôr d’uma fortuna que -passou a ser sua...</p> - -<p>A sr.ª Montémolly não responde nada; escutou com -attenção as ultimas palavras do seu amante, e isso -carrega-lhe de sombras a physionomia, emquanto que -Casimiro, enche um copo de Champagne, que em seguida -bebe aos golinhos, achando que é infinitamente -mais agradavel beber assim o vinho do que ingurgital-o, -e nós somos completamente da seu parecer; não -vemos que vantagem pode haver em fazer da bocca -jogo do tonel.</p> - -<p>Entretanto, espantado do silencio que guarda a sua -amante, e do ar pensativo que substituiu o prazer que<span class="pagenum"><a id="Page_53"></a>[53]</span> -lhe animava os olhos, depois de ter acabado de beber -o Champagne, Casimiro diz-lhe:</p> - -<p>—Minha boa amiga, o que é que tem? vejo-a com -um ar tão triste! está incommodada?</p> - -<p>—Não, meu amigo, não, não é isso...</p> - -<p>—Então temos outra coisa? Aind’agora parecia-me, -tão alegre...</p> - -<p>—Ah! Casimiro! foi o que o senhor acaba de dizer -que me estragou a minha felicidade...</p> - -<p>—O que foi então que eu disse para produzir esse -effeito?</p> - -<p>—Tudo coisas muito justas; mas eu comprehendi-o -perfeitamente, e além d’isso, o que me quiz fazer perceber -é naturalissimo.</p> - -<p>—O que é que eu quiz fazer-lhe perceber? Affianço-lhe -que não entendo!</p> - -<p>—Finge que me não comprehende! O senhor, falando-me -das mulheres que enriquecem um homem casando -com elle, quiz dizer-me: Por que não faz a senhora -outro tanto, se tem muito a peito ver-me gosar -da sua fortuna sem remorsos?...</p> - -<p>—Eu? nunca tive similhante pensamento. Oh! juro-lhe -que se engana. É verdade que disse isso, mas foi -sem a intenção que suppõe.</p> - -<p>—Oh! meu amigo, ainda que fosse com essa intenção, -onde estaria ahi o mal? Pensa que não tenho dito -commigo desde muito tempo: Ah! como eu me -daria por feliz em ser sua mulher, como me sentiria -ufana de usar do nome d’elle! E se fosse possivel isso, -não lhe teria eu já pedido que se ligasse a mim por -laços indissoluveis?... Se o não tenho feito, ai! é por -que é impossivel! Olhe, meu amigo, não quero ter -segredos para o senhor... Disse-lhe que era viuva, e -não é verdade! sou casada, casada realmente, e meu -marido ainda está vivo!</p> - -<p>—Ah! será possivel. Espere! espere! então vou beber -mais Champagne... o sr. Montémolly está vivo?</p> - -<p>—Esse nome não é o de meu marido; ao separar-me -d’um homem, que eu nunca tinha amado, com o -qual me era impossivel viver, apressei-me a abandonar<span class="pagenum"><a id="Page_54"></a>[54]</span> -o nome d’elle, para tractar de esquecer que era -ainda sua mulher.</p> - -<p>—Tinha para isso todo o direito. E o que faz esse -senhor? Oh! se a contraría falar mais em seu marido, -fiquemos por ahi. Por quem é, não se embarace, fiquemos -por ahi!</p> - -<p>—Não, visto que principiei, estimo muito agora -contar-lhe como este casamento se fez, e por que se -rompeu.</p> - -<p>—Fale; o seu Champagne é delicioso; sou todo ouvidos.</p> - -<p>—Vou confessar-lhe coisas... que não tenho dito a -ninguem! mas não quero ter nenhum segredo mais -para com o senhor.</p> - -<p>—Não me diga senão o que lhe apraz que eu saiba: -eu não lhe pergunto nada!</p> - -<p>—É justamente por isso que lhe quero dizer tudo. -Eu, aos dezoito annos, era muito bonita!</p> - -<p>—Creio bem que sim, pois que ainda o é, e ha-de -sel-o sempre...</p> - -<p>—Cale-se! Não tinha outros parentes senão uma -tia mui pouco amavel, que ralhava commigo constantemente, -mas que vigiava bastante mal. Um rapaz -viu-me á janella, e namorou-se de mim. Comprou a -minha creada grave, que o introduzia em nossa casa -quando minha tia saía. Elle era um rapaz muito bonito... -em summa...</p> - -<p>—Muito bem, o resto adivinha-se, passemos os pormenores.</p> - -<p>—Mas o rapaz era militar, teve de partir, de se ir -reunir ao exercito. Estava-se então em guerra. Quando -elle partiu, a minha falta havia tido consequencias...</p> - -<p>—Diabo! diabo! o negocio complica-se.</p> - -<p>—Escrevi ao meu amante participando-lhe o meu -estado; elle respondeu-me que assim que voltasse se -apressaria a reparar a minha falta, casando commigo. -Mas, pobre de mim! não devia voltar! foi morto na -primeira acção...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_55"></a>[55]</span></p> - -<p>—Pobre rapaz! ahi fica a senhora sem saber o que -ha de fazer. E a tia?</p> - -<p>—Era-me impossivel occultar-lhe o meu estado; -ella gritou muito. Mas, como a fortuna que eu possuia -me vinha de minha mãe, como eu era mais rica -de que ella, e como, se eu a deixasse, ella teria de levar -uma vida mais modesta, apaziguou-se. Fui para -o campo; alugámos uma casinha nos arredores de -Montmorency; foi lá que dei á luz uma menina, que -confiei a uma mulher de Pierrefite.</p> - -<p>—Em tudo isso não vejo seu marido...</p> - -<p>—Espere; ha de vel-o bem depressa. De volta a -Paris, ia eu frequentes vezes a Pierrefite vêr minha -filha. Isto desagradava a minha tia, que me repetia -sem cessar que eu me compromettia, que não acharia -com quem casar, se não procedesse com mais prudencia. -Eu não lhe dava ouvidos e continuava a ir vêr -minha filha, que era fraquinha e delicada, mas gosava -de boa saude. Infelizmente, a mim não me acontecia -o mesmo: ia-me definhando de dia para dia, de fórma -que os medicos receitaram-me uma viagem á -Italia, ou pelo menos uma longa estada em Nice. Parti -com minha tia, depois de ter bem recommendado minha -filha á ama. Fiquei alguns mezes em Nice; não -me restabelecia. Aconselharam-me que fosse passar -uma temporada em Napoles. Fui para lá, mas minha -tia, tendo que fazer em Paris, deixou-me por algum -tempo. Tinha-lhe recommendado muito que fosse vêr -minha filha, que se certificasse de que não lhe faltava -nada.</p> - -<p>«Quando minha tia voltou a ter commigo, disse-me -que minha filha tinha morrido, e que a camponeza -a quem eu a dera a crear, muito afflicta com essa desgraça, -tinha saído de Pierrefite sem dizer em que sitio -ia habitar. Fiquei muito mortificada com a perda da -minha filhinha. Tinha-me sentido tão feliz por ter -uma filha! fundava sobre ella toda a minha felicidade -futura! Minha tia fez quanto poude para me distrahir. -Andámos muito tempo a viajar; visitei a Italia -toda, depois uma parte da Suissa. Finalmente tinha-me<span class="pagenum"><a id="Page_56"></a>[56]</span> -restabelecido, e voltámos a residir em Paris. Aqui, -um sujeito rico, bastante amavel, ao menos fazia então -todo o possivel para o ser, veiu fazer-me a côrte; era -um antigo amigo de minha tia, e tenho motivos para -crer que, desde muito tempo, ella lhe havia promettido -fazer quanto pudesse para me levar a consentir -em casar com elle. Este sujeito era muito mais velho -do que eu; minha tia porém affirmava-me que assim -ainda eu seria mais feliz; que um marido joven abandonava -em casa a mulher para andar mettido com -amantes, emquanto que um esposo, homem de juizo, -andava sempre com a mulher nas palminhas das mãos. -Que lhe direi? eu pensava não amar nunca mais... -tinha perdido minha filha... Deixei-me casar para -estar emfim em minha casa e não viver mais com minha -tia, a quem o homem que me desposava tinha -feito presente de uma linda casinha nos arredores de -Paris.</p> - -<p>«Mas não tardei a perceber que fizera uma asneira, -e que me tinha ligado a um homem que de nenhum -modo me convinha. Meu marido era ciumento, curioso, -esmiuçador, intromettendo-se em tudo; pelo lado da -fortuna, como eu possuia a minha, não tinha precisão -de recorrer a elle. Isso contrariava-o, queria saber -como eu gastava o meu dinheiro; convidei-o a que -se não mettesse nos meus negocios; foi o começo das -nossas questões. Mas aquelle senhor, que tudo queria -saber, tinha o atrevimento de esquadrinhar tudo por -toda a parte quando eu sahia, e creio mesmo que -possuia segundas chaves de todos os meus moveis. O -que é certo, é que um dia achou n’um cofresinho, no -fundo da minha papeleira, as cartas que me escrevia -aquelle pobre Augusto quando estava no exercito, -e nas quaes falava da nossa filhinha. O meu amigo -acreditará que meu marido deu por páus e por pedras, -dizendo-me que eu o enganára indignamente deixando-o -crer que era... <i>Joanna d’Arc!</i> Respondi-lhe que -ainda se devia dar por muito feliz em eu ter consentido -em ser sua mulher, mas que eu não viveria -mais com um homem que remexia nos meus moveis<span class="pagenum"><a id="Page_57"></a>[57]</span> -e tinha a confiança de ler as cartas que eu recebêra -antes de usar do seu nome. No outro dia executei a -minha ameaça; aluguei uma casa, e mandei levar para -lá tudo o que me pertencia. Meu marido quiz oppôr-se -á minha saida; mas eu mostrei-lhe um rewólver -que tinha comprado, e disse-lhe: Não só o deixo, mas -prohibo-o, ouça-me bem, prohibo-o de se apresentar -em minha casa... A lei auctorisa-o a isso, bem sei, -porque não estamos separados judicialmente, o que -faremos ámanhã, se quizer; mas, como pelo nosso -contracto já estamos separados de bens, creio que -podemos dispensar essa formalidade. Comtudo, repito, -não tenha o atrevimento de ir nunca a minha casa, -senão... é com este rewólver que o hei de receber. -Meu marido é muito medroso... desde esse dia nunca -mais ouvi falar n’elle.</p> - -<p>—Bravo! oh! a senhora é uma mulher decidida! -E juntou-se com a sua tia?</p> - -<p>—Com minha tia! oh! nunca! não queria nada com -minha tia, que foi quem me fez aquelle odioso casamento. -Ficámos mal uma com a outra; pois não pretendia -ella fazer-me voltar para meu marido! mas eu -respondi-lhe n’um tom que lhe fez vêr que eu não era -já a menina submissa ás suas vontades. Demais, ella -morreu pouco tempo depois d’aquella separação; uma -doença repentina a levou á sepultura em poucos dias; -havia-me escripto para que a fosse vêr; tinha, affirmava, -uma coisa importante para me communicar. -Hesitei, dizendo commigo: Vae ainda pedir-me para -que volte para meu marido. Emfim, resolvi-me a ir; -mas, quando cheguei á sua quinta, já não era tempo, -tinha ella morrido! Aqui tem, meu caro Casimiro, -todos os acontecimentos da minha vida, agora já sabe -porque, com grande pezar meu, lhe não posso offerecer -que case commigo.</p> - -<p>—Oh! minha querida Ambrosina! pela parte que -me toca, devo confessar-lhe francamente que nunca -pensei em tal, o casamento não me tenta, assusta-me, -bem sabe que ha quem affirme que o casamento é o -tumulo do amor.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_58"></a>[58]</span></p> - -<p>—Oh! nem sempre... mas é certo... não me acha -talvez bastante joven para ser sua mulher?</p> - -<p>—Eu! pois eu penso lá em similhante coisa... não, -eu penso... em fazer alguma coisa... em trabalhar...</p> - -<p>—Trabalhar... Para quê? com que fim?</p> - -<p>—Para ganhar dinheiro...</p> - -<p>—Não sou eu a sua thesoureira?...</p> - -<p>—É justamente porque eu preferiria ser o meu -proprio thesoureiro. Ia menos mal na pintura a oleo, -fiz tambem alguns retratos bastante parecidos...</p> - -<p>—Fazer retratos! lembra-se d’isso! para ter modelos, -olhar muito para mulheres, estudar-lhes o sorriso, -os olhares! Não quero que faça retratos, ouve? -prohibo-lh’o expressamente.</p> - -<p>—E a paizagem? oh! a paizagem é uma coisa bem -innocente!</p> - -<p>—Com os pintores não ha nada innocente; para a -paizagem, é mister ir ao campo procurar pontos de -vista, ou carneiros e pastoras que os guardam.</p> - -<p>—E são lindas as pastoras dos arredores de Paris! -e graciosas! como as mulheres que alugam cadeiras.</p> - -<p>—Deixe-me em socego com a sua pintura.</p> - -<p>—Prefere que eu escreva para o theatro? Ah! deve -ser uma grande felicidade ver a gente representar as -suas peças, ouvir-se applaudir...</p> - -<p>—Fazer comedias! que horror! um auctor passa a -vida nos theatros, nos bastidores, com as actrizes, faz -a côrte a todas, e, promettendo-lhes papeis, faz com -que lhe dêem attenção; o senhor não saíria mais dos -bastidores, passaria alli a sua vida. Ah! peço-lhe por -tudo quanto ha, não pense em fazer peças de theatro.</p> - -<p>—Pois bem! então, se eu escrevesse um romance? -Ah! isto não exige passeios nem sahidas; escreve a -gente com todo o socego no seu gabinete. Eu tenho ás -vezes idéas bastante originaes, talvez faça um romance -divertido, um romance de costumes...</p> - -<p>—Um romance! um romance! tenho ouvido dizer -cem vezes que, para fazer um romance, era preciso ter -visto muito, que era preciso ter corrido, ter estado -nos sitios que se pretende descrever, sobretudo para<span class="pagenum"><a id="Page_59"></a>[59]</span> -fazer um romance de costumes; ah! se o senhor faz -um romance extraordinario, inverosimil, então pode -inventar...</p> - -<p>—Não, eu prefiro o ordinario ao extraordinario.</p> - -<p>—Então meu amigo, bem vê que não podia trabalhar -socegadamente no seu gabinete; teria de andar, -de ir algumas vezes a sitios muito arriscados, a esses -bailes onde se dançam todas as danças possiveis; sob -pretexto de ver como se trabalha n’um <i>atelier</i>, iria a -casa das floristas, das modistas, das costureiras, isso não -acabaria; seria para estudar os costumes das diversas -classes da sociedade. Deus sabe quanto se vê quando -se quer estudar os costumes! Não, siga o meu conselho, -não faça romance nenhum! Demais, não creio que -seja essa a sua vocação.</p> - -<p>—Ah! se eu podesse descobrir ou inventar alguma -coisa boa, util, alguma coisa que me cobrisse de gloria -e fizesse a minha fortuna.</p> - -<p>—Tem todo o direito de procurar isso...</p> - -<p>—Que pena que a batata seja conhecida! talvez eu -a tivesse descoberto!...</p> - -<p>—Sim, mas a batata é perfeitamente conhecida, não -quebre pois a cabeça a procurar invental-a.</p> - -<p>—Repito, quero occupar-me n’alguma coisa.</p> - -<p>—Pois bem! se o quer absolutamente, eu lhe procurarei -um emprego.</p> - -<p>—A senhora? E então onde?</p> - -<p>—N’uma secretaria; vae-se para a repartição não -muito cedo, sae-se de lá não muito tarde; á noite está-se -livre, isto não dá muito trabalho.</p> - -<p>—Ah! isso havia de agradar-me muito! Mas como -espera a senhora arranjar-me esse emprego?</p> - -<p>—Eu verei, falarei aos meus conhecimentos; parece-me -que o caso não é urgente. Espere, Florentina -tem um primo, que é chefe d’uma repartição; farei -com que ella fale ao primo. Aquella pobre Florentina! -como a gente é ingrata! quando se ama muito alguem, -quando não se pensa senão n’essa pessoa, esquecem-se -todas as outras! Mas o senhor faz-me andar -a cabeça á roda, tira-me o juizo!...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_60"></a>[60]</span></p> - -<p>—Que mais temos então?</p> - -<p>—Temos que hontem á noite, quando recebi a sua -carta, acabava Florentina de entrar; vinha offerecer-me -o seu camarote na Opera; mas depois de haver -lido o seu negregado bilhete em que o senhor me annunciava -que não iria lá, tive um ataque de nervos -terrivel; aquella pobre Florentina dispensou-me todos -os cuidados, mas não sabia o que me havia de -dar, mandou a minha creada buscar o remedio que -costumo tomar quando tenho d’aquelles ataques; mas -a creada não voltava, eu tornei a mim, e sem esperar -pelo remedio, disse a Florentina: «Anda commigo, -quero ir a casa d’elle; mandei vir uma carruagem, e -Florentina teve a complacencia de me acompanhar -até á sua porta, queria mesmo ficar á minha espera, -sacrificando por mim a Opera e o prazer que esperava -ter lá; mas eu não quiz consentir, mandei-a embora. -Então! ha de convir que é uma verdadeira amiga, -e que tenho muita razão em ter por ella uma affeição -sincera...</p> - -<p>—Sim, sim, não digo o contrario, ella é-lhe muito -affeiçoada, mas tambem é horrivelmente feia!...</p> - -<p>—Ah! ahi está o que são os homens!... Que importa -que seja feia, se possue todas as qualidades do -coração! Mas os senhores não apreciam senão a belleza!</p> - -<p>—E as senhoras não descobrem todas as qualidades -do coração n’uma mulher, senão quando ella não -é bonita. Oh! em o sendo, acham-lhe logo todos os -defeitos, mas não falam nunca das suas boas qualidades.</p> - -<p>—Oh! cale-se! porque é que diz isso?</p> - -<p>—É que as suas amigas intimas são todas feias -como os peccados mortaes.</p> - -<p>—Queria talvez que eu, para lhe ser agradavel, -chamasse a minha casa algumas bellezas raras, afim -de que o senhor lhes fizesse a côrte mesmo á minha -vista!</p> - -<p>—Não, eu não lhe peço bellezas raras; a senhora é -que prefere as fealdades raras! Oh! mas faça o que<span class="pagenum"><a id="Page_61"></a>[61]</span> -entender! a final de contas, isso é-me completamente -indifferente.</p> - -<p>Ambrosina reprime a grande custo um movimento -de impaciencia, depois toca a campainha a chamar -a creada grave, que apparece immediatamente.</p> - -<p>—Adriana, o café está prompto?</p> - -<p>—Está sim, minha senhora.</p> - -<p>—Então sirva-o.</p> - -<p>—E que venha bem quente, quasi a ferver, diz Casimiro. -Ouve, menina? se o posso tomar, não o tomo.</p> - -<p>Adriana sae a rir; Ambrosina exclama:</p> - -<p>—Não gosto que se graceje com os creados; isso -torna-os familiares.</p> - -<p>—Porventura gracejei com a sua creada?</p> - -<p>—Sem duvida; faz trocadilhos a respeito do café...</p> - -<p>—Minha querida amiga, com a senhora nunca a -gente sabe como ha de falar a uma mulher; em tudo -vê maldade, espero que não pense que arrasto a aza -á sua creada...</p> - -<p>—Não digo isso; mas o senhor não póde dizer que -ella seja muito feia...</p> - -<p>—Oh! tambem não me fará crer que é bonita! Um -nariz acachapado, cabello ruivo, é um bom <i>derriço</i> -para algum policia.</p> - -<p>—É uma excellente rapariga, é-me muito affeiçoada; -quando estou doente anda sempre n’uma roda -viva a tractar de mim...</p> - -<p>Adriana traz o café; emquanto ella dispõe as chicaras, -diz a ama:</p> - -<p>—Adriana, eu estive hontem muito doente, não é -verdade?</p> - -<p>—Oh! sim, minha senhora! eu estava bem afflicta. -A sr.ª Florentina disse-me que lhe fosse buscar o remedio -á botica, corri n’um pulo; mas havia lá tanta -gente, tive que esperar muito tempo; por mais que -eu pedisse que me despachassem dizendo: «É para -minha ama, a senhora está muito doente» aquelles -senhores da botica estão tão habituados a trabalhar -para doentes, que não se apressam nunca...</p> - -<p>—Minha pobre Adriana; olha, pega n’aquella touca<span class="pagenum"><a id="Page_62"></a>[62]</span> -da manhã que alli está em cima da poltrona, dout’a...</p> - -<p>—Ah! como a senhora é boa!...</p> - -<p>—Gosto de recompensar quem me serve com zelo. -Anda, podes sahir!</p> - -<p>A creada pega na touquinha que a ama lhe dá de -presente, e retira-se aos saltinhos.</p> - -<p>Casimiro toma o café, bebe um calice do divino licor -dos benedictinos de Fécamp, um outro de <i>rhum</i>, -e levanta-se dizendo:</p> - -<p>—Creio que isto é que se pode chamar ter almoçado.</p> - -<p>—Janta commigo?</p> - -<p>—Oh! minha querida amiga, são quasi tres horas; -quando se almoçou assim, não se pensa em jantar, -não terei vontade de comer.</p> - -<p>—Mas sabe que tem que me levar esta noite á Opera-Comica?</p> - -<p>—Sim, sim, está ajustado...</p> - -<p>—Não vá fazer como hontem?</p> - -<p>—Não tenha receio; vou tomar um pouco de ar e -jogar talvez uma partida de bilhar no café da Porta-São-Martinho...</p> - -<p>—Vá, meu extravagante, dê-me um beijo.</p> - -<p>—Até logo.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="V">V<br /> -<span class="smaller">O lindo Rouflard</span></h2> - -</div> - -<p>Saíndo de casa da sr.ª Montémolly, Casimiro vae -passear algum tempo no <i>boulevard</i>; sente o desejo de -tomar ar, o que é sempre optimo para a digestão, depois -d’um jantar abundante. Casimiro accende um -charuto, essa necessidade facticia dos ociosos.</p> - -<p>De repente, mexendo n’uma das algibeiras do lado, -sente debaixo dos dedos alguma coisa que tem a fórma -d’um cartucho de dinheiro. Era effectivamente -um d’estes lindos estojos de marroquim, forrados de<span class="pagenum"><a id="Page_63"></a>[63]</span> -cobre, e feitos de proposito para guardar ouro. O nosso -rapaz tira o cartucho da algibeira, desvia-se para -um lado e conta o dinheiro que ha no estojo; acha -vinte e cinco luizes. Torna a fechar o estojo, e mette-o -outra vez na algibeira, dizendo de si para si:</p> - -<p>—Quinhentos francos! ella introduziu-me isto no -bolso do paletot; terá dito comsigo: «Elle não deve -já ter muito dinheiro.» e não se enganou, restavam-me -apenas vinte francos; mas receber sempre -dinheiro d’esta mulher. Ah! é humilhante, é vergonhoso! -ainda se ella me mettesse na algibeira quatro -ou cinco mil francos de uma vez, ao menos teria eu -para muito tempo sem andar á divina; porém ella -terá todo o cuidado em me não dar nunca similhante -quantis, quer ter-me sempre debaixo da sua dependencia. -E não quer que eu trabalhe; não, teria um -desgosto se eu podesse passar sem ella. E diz que me -ama, sim, por si, mas não por mim. Infelizmente, nas -mulheres, esta maneira de amar é a mais vulgar. Ah! -as mulheres de hoje não são como as de Sparta, que -diziam ao marido que partia para a guerra: «Volta -vencedor ou faze-te matar.» Dir-me-hão talvez -que é tambem uma singular maneira de amar qualquer -pessoa o dar-lhe de conselho que se faça matar! -<i>Ne quid nimis!</i> o excesso em tudo é um defeito. Vamos -jogar o bilhar, é a estas horas que Miflaud costuma -estar no café do theatro. Ah! diabo! agora me -lembro, é hoje o meu dia de lição á menina Proh; -irei? Mas eu não estou em estado de dar uma lição -de desenho. Ambrosina fez-me beber tantas coisas! -Devo mesmo exhalar um forte cheiro a vinho e a -licor; não posso apresentar-me n’este estado deante -d’uma familia respeitavel, não, seria indecoroso. Ó -delicias de Capua! aqui tendes os vossos resultados! -Ambrosina faz bem tudo o que é necessario para me -tirar o gosto pelo trabalho. Ora adeus! tanto peior! -toca a jogar o bilhar.</p> - -<p>Quando a gente adquiriu uma vez o habito de não -pensar senão, em divertir-se, é muito difficil vencel-o -e ter força bastante para rejeitar o prazer que se apresenta<span class="pagenum"><a id="Page_64"></a>[64]</span> -e preferir-lhe o estudo ou trabalho. É o que -acontece n’este momento a Casimiro; este rapaz não -é falto de bons sentimentos, do que deu provas encarregando-se -de dar lições de desenho á filha da sua -vizinha: deseja ganhar dinheiro, já pelo seu talento, -já exercendo um emprego em qualquer secretaría; -mas lá está a amante para lhe tolher o passo; como -é rica, quer monopolizar o amante, quer o que pobre -moço não viva senão para ella e por ella! Quando uma -mulher, que é ainda muito encantadora, quer subjugar -um homem, emprega n’isso todos os seus meios, -e para agradar tem ella muitos.</p> - -<p>Casimiro não vae dar a lição á menina Angelina; -vae para o seu café favorito, onde encontra alguns -rapazes, amigos de vádiar como elle; ha mesmo alguns -que fazem ainda mais: vêm para o café assim -que elle se abre, sentam-se a uma meza e põem-se a -jogar o dóminó até á hora do jantar. Acabada esta -refeição, voltam muito depressa a continuar o seu -joguinho, e não se vão embora senão quando o estabelecimento -se fecha. Vão dizer-me que estes rapazes -são jogadores e não ociosos ou vádios; é possivel; -eu, por mim, chamo vádios áquelles que passam -a vida no café.</p> - -<p>Depois de muitas horas consagradas ás carambolas, -Casimiro lembra-se que a amante quer ir tomar sorvetes -ao café Napolitano, antes de ir para o theatro; -é pois mister que a vá buscar antes da hora em que -deve começar a peça da Opera-Comica. Dirige-se portanto -a casa da sr.ª Montémolly, que se acha lindamente -vestida, apresentando-se com essa desinvoltura -que nem todas as mulheres sabem ter; porque umas -conservam-se sempre muito direitas, muito impertigadas, -outras mostram demasiado desleixo e indolencia.</p> - -<p>—Já jantou? pergunta a formosa dama.</p> - -<p>—Não, nem mesmo pensei em tal; não tive appetite.</p> - -<p>—Pois bem! nem eu tão pouco. Mas sabe o que -devemos fazer? É irmos cear ao café Inglez depois -do espectaculo. Agrada-lhe isto?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_65"></a>[65]</span></p> - -<p>—Oh! perfeitamente; a senhora tem sempre excellentes -idéas.</p> - -<p>A menina Adriana foi arranjar uma pequena <i>victoria</i>, -e voltou com ella muito depressa para ficar mais -cedo livre de sua ama. Ambrosina e o amante fazem-se -conduzir ao café tão affamado pelos seus sorvetes, -depois dirigem-se á Opera-Comica, e vão para um -camarote que a sr.ª Montémolly mandára alugar antecipadamente.</p> - -<p>Cantava-se uma opera nova de Auber, d’esse celebre -compositor, ao qual devemos tantas obras primas, -tantas operas que ninguem se enfastia de ouvir; vae -envelhecendo, dizem algumas pessoas, mas enganam-se; -quando um homem compõe tão encantadoras -melodias, é porque se conserva sempre moço, para -Auber parou o tempo.</p> - -<p>Casimiro escutava a musica, emquanto que Ambrosina -se entretinha sobretudo em observar se o seu -companheiro dirigia o binoculo para algumas senhoras. -Mas tudo se passa em bem, porque o rapaz não -fixou muito tempo as suas vistas no mesmo lado. -Acabada a opera, o par amoroso dirige-se ao café -Inglez, que fica apenas a dois passos da Opera-Comica. -Alli, pedem um gabinete reservado e mandam vir -uma bella ceia, á qual ambos fazem honra. Não lhes -direi se esta magnifica ceia é entremeada de ternas -caricias e de juramentos de amor, deixo isso á sua -discrição; o que é certo, é que são quasi duas horas -da madrugada quando a sr.ª Montémolly diz:</p> - -<p>—Creio que é tempo de irmos para casa. Diga ao -creado que nos vá buscar uma carruagem.</p> - -<p>Nunca faltam carruagens n’este rico e elegante -bairro, onde se faz da noite dia, de modo que ás duas -horas da madrugada está ás vezes mais animado, mais -cheio de vida que ao meio dia. Casimiro leva Ambrosina -a casa, depois faz-se conduzir ao seu domicilio, -na rua de Paradis-Poissonniére, dizendo comsigo:</p> - -<p>Aqui está um dia bem empregado; foi um dia cheio.</p> - -<p>Mas, ao dizer isto, o rapaz tambem estava bem -cheio, porque se não tinha poupado mais á ceia do<span class="pagenum"><a id="Page_66"></a>[66]</span> -que ao almoço; o Champagne tinha representado um -grande papel em todo este dia; elle não estava bebedo, -porque um homem bem educado nunca se embebeda, -mas estava n’esse estado de ebriedade que é o meio -termo entre a embriaguez e o perfeito juizo.</p> - -<p>—Parou emfim a carruagem. Casimiro, que se acha -deante da sua porta, paga ao cocheiro, e vae puxar -o botão de metal que deve fazer tocar a campaínha e -acordar o porteiro, dizendo comsigo:</p> - -<p>—Comtanto que o meu estimavel porteiro não tenha -o somno muito pezado, e que saiba que não recolhi -ainda.</p> - -<p>Na occasião de tocar a campainha, Casimiro vê um -vulto estendido deante da porta; abaixa-se para ver -melhor, estende cautelosamente o pé, o vulto mexe-se; -é um homem que está alli deitado.</p> - -<p>Casimiro faz um movimento para a rectaguarda, -na idéa de que é talvez um ladrão que finge estar a -dormir, e elle não tem sequer uma bengala para se defender; -mas o vulto não se mexe mais, e o rapaz decide-se -a puxar outra vez o botão de metal.</p> - -<p>O porteiro não abre ainda, e Casimiro, impacientado, -empurra com o pé o individuo que alli está estendido -tomando-lhe a passagem; ouve-se um grunhido -surdo e levanta-se um pouco uma cabeça, que tinha -a cara voltada contra a porta, resmungando:</p> - -<p>—Então! olá! o que é que temos?</p> - -<p>—O que está aqui fazendo deitado na rua?</p> - -<p>—Bem viu que estava dormindo. Então agora já se -não pode dormir socegado?</p> - -<p>—Não se dorme deante da porta d’uma casa.</p> - -<p>—Mas eu sou cá do predio, é o meu domicilio politico... -nas aguas furtadas...</p> - -<p>—Se mora aqui, porque não entra para sua casa -em vez de estar ahi deitado? Estaria muito melhor -na sua cama.</p> - -<p>—Na minha cama!... é fresca a tal minha cama! -um enxergão e milhares de percevejos... nada mais...</p> - -<p>—Mas, emfim, na rua não se dorme; se vem por<span class="pagenum"><a id="Page_67"></a>[67]</span> -ahi alguma patrulha, algum policia, levam-n’o para -a estação.</p> - -<p>—Isso e o que eu quero é tudo um... estou á espera -d’elles. Que afinal quem tem a culpa é o maroto, -o patife do Chausson, que me não abre a porta.</p> - -<p>—Ah! o porteiro não lhe quer abrir a porta?</p> - -<p>—Sim, Chausson, o meu creado.</p> - -<p>—Quer dizer, o porteiro?</p> - -<p>—Porteiro, é verdade... mas foi meu creado e por -muito tempo. Isto fal-o admirar, mas é assim mesmo.</p> - -<p>Quando eu era amo d’elle dava-lhe ás vezes umas -correcções, elle bebia-me os licores, licores da sr.ª -Amphoux... da verdadeira, que me mandava a minha -Dulcinéa... e hoje, para se vingar, o meu creado, -que veiu a ser meu porteiro, deixa-me ficar de -noite no meio da rua.</p> - -<p>—Oh! mas ha de abrir a porta por força.</p> - -<p>E Casimiro vae puxar com todas as suas forças o -botão de metal.</p> - -<p>Ao barulho da campainha succede a voz do porteiro, -gritando:</p> - -<p>—Rouflard! se não acabas de tocar a campainha, -faço-te despedir ámanhã.</p> - -<p>—Não é Rouflard que toca, sou eu... abra immediatamente, -porteiro; mando eu!</p> - -<p>—Como! é o sr. Casimiro! Oh! perdão, eu pensava -que já estava recolhido ha muito tempo. Ah! se eu -soubesse que era o senhor, bem sabe que não costumo -fazel-o esperar...</p> - -<p>Abre-se a porta effectivamente. Casimiro entra, -dizendo ao homem que está deitado no chão:</p> - -<p>—Bom! aqui tem a porta aberta... Então agora -fica na rua?</p> - -<p>O tal individuo, a quem o porteiro chamou Rouflard, -parece hesitar em abandonar a sua posição horisontal, -decide-se comtudo a fazel-o, ergue-se ou -antes enfia pela porta dentro aos trambulhões, e vae -agarrar-se á parede. Chausson, o porteiro, levanta-se, -veste uma jaqueta, que lhe serve de chambre, e vem -com um castiçal na mão tornar a fechar a porta e<span class="pagenum"><a id="Page_68"></a>[68]</span> -offerecer luz ao seu joven inquilino para subir a escada.</p> - -<p>Casimiro está entretido a examinar o homem que -se acha encostado á parede, contra a qual muito lhe -custa a segurar-se, porque está completamente ebrio.</p> - -<p>—Se o senhor quer levar esta luz para subir a sua -casa... sinto immenso tel-o feito esperar; eu bem ouvia -tocar, mas pensava que era ainda o Rouflard, e por -isso é que não abria...</p> - -<p>—Vejam este brégeiro! queria deixar o amo na -rua... n’isso reconheço bem o meu antigo lacaio...</p> - -<p>—Cale-se, Rouflard; quando um homem se põe -n’esse estado, recolhe-se antes da meia noite, ao menos.</p> - -<p>—Mas se eu me quero recolher mais tarde, porque -assim me dá na vontade, tens obrigação de me abrir -a porta, percebeste tu, meu creado?</p> - -<p>—Graças a Deus, já não sou seu creado! esse tempo -já lá vae.</p> - -<p>—Quando me bebias os licores!</p> - -<p>—Tu não me pagavas as minhas soldadas, portanto -era forçoso que eu apanhasse alguma coisa para me -sustentar... mas tu comias tudo!</p> - -<p>—Prohibo-te que me trates por tu, percebes meu -creado?</p> - -<p>—E eu prohibo-te que me chames teu creado... -Vae-te deitar, borrachão.</p> - -<p>—Vae para o teu cubiculo, perro, ámanhã falaremos... -não te digo mais nada... teu amo te ensinará!</p> - -<p>Depois de haver atirado esta ameaça, que faz encolher -os hombros ao porteiro, Rouflard dirige-se, -cambaleando, para a escada, apoia-se ao corrimão e -lá consegue subir a muito custo. Casimiro tinha ficado -em baixo para assistir ao dialogo entre o bebedo -e o porteiro; sentia tambem uma certa curiosidade, e -desejava saber como é que aquelle homem, tão mal -arranjado, que parecia tão miseravel, pudera ter por -creado o sr. Chausson; pergunta pois ao porteiro, assim -que Rouflard desapparece na escada:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_69"></a>[69]</span></p> - -<p>—Este bebedo, que affirma que o senhor esteve ao -seu serviço, fala verdade?</p> - -<p>—Oh! sim, senhor, não o nego; mas o que o senhor -difficilmente acreditará, vendo-o agora tão miseravel, -é que, ha vinte e cinco annos, este mesmo individuo -era então um homem da moda, o menino querido de -todas as mulheres, que não lhe chamavam senão o -lindo Rouflard! o encantador Rouflard! e, a dizer a -verdade, era então um bonito rapaz, bem feito, airoso -de corpo, uma cara amavel, fino... Oh! o maganão -sabia dar aos olhos todas as expressões possiveis para -seduzir as mulheres, e, palavra! entendia da coisa... -era o seu officio?</p> - -<p>—O seu officio? O que quer dizer com isso?</p> - -<p>—Pois é bem facil de perceber: quero eu dizer na -minha, que o lindo Rouflard não se occupava n’outra -coisa senão em fazer a côrte ás senhoras, e atirava-se -de preferencia ás senhoras ricas. Então recebia d’uma, -e depois de outra! mimos d’esta, presentes d’aquella. -Quando os fornecedores, os crédores, lhe vinham pedir -dinheiro, nunca era elle quem lhes pagava. Eu estava -ao facto de tudo, era o seu creado grave, o seu homem -de confiança; elle dava-me as intrucções, dizia-me: -«Chausson, has de mandar o meu alfaiate a casa de Leonor -e o meu sapateiro a casa da Ernestina, ellas pagarão -a esses patifes; não quero descer a pagar aos meus -crédores; é de muito máu tom! Ah! é verdade, has -de ir a casa da sr.ª fulana, ganhei-lhe hontem cem luizes -ao <i>écarté</i>; irás pedir-lh’os, que ella dá-t’os immediatamente, -já se sabe; demais, as dividas de jogo são -sagradas, pagam-se em vinte e quatro horas. Passarás -tambem por casa da baroneza ou da condessinha; apostámos -nas corridas, ganhei mil escudos a uma, mil francos -á outra, receberei tudo isso, tenho precisão de -dinheiro!» Eu ia fazer estes recados, e durante muito -tempo aquellas senhoras pagaram, pagaram muito -bem sem fazerem a menor observação. Então apanhava -eu alguma coisa por conta das minhas soldadas, e bebia -licores da sr.ª Amphoux pelo resto. Oh! os licores das -ilhas! aquillo era o meu fraco! Mas a pouco e pouco<span class="pagenum"><a id="Page_70"></a>[70]</span> -as coisas principiaram a não correr tão bem: Rouflard, -que bebia como uma esponja, viu dentro de pouco tempo -o nariz pôr se-lhe côr de beterraba; isto fez-lhe muito -mal no conceito das amantes; em geral as mulheres -não gostam dos narizes vermelhos. Quando meu patrão -me mandava buscar a quantia d’uma aposta ou o dinheiro -perdido ao jogo, aquellas senhoras diziam-me -algumas vezes: «Rouflard engana-se, não fui eu que -perdi, foi elle;» ou então: «Sinto muito, mas a minha -thesouraria está fechada.» Algumas tinham a confiança -de me dizer: Apre! estou farta de aturar esse bebedo -do Rouflard, não estou para o sustentar por mais -tempo.» Quando eu voltava com estas respostas a -meu amo, elle ficava furioso, queria desancar-me: -depois, para arranjar dinheiro, via-se obrigado a vender -uns apoz outros os lindos presentes, ou as -joias que havia recebido das suas apaixonadas. Quando -não lhe restou mais nada que vender, e quando eu -vi que já lhe não mandavam licores das ilhas, disse -commigo: «É tempo de largar o commodo!...» Deviam-se-me -seis mezes das minhas soldadas, mas era -mister não pensar em tal. Deixei pois o lindo Rouflard, -que já não tinha nada de bonito nem se vestia como -um elegante, e que para salvar-se das difficuldade, procurava -arranjar outra amante nos casos de o sustentar, -e consegui achar um bom emprego. Pude ajuntar alguma -coisa, casei-me e obtive um logar de porteiro -n’esta casa, onde estou ha oito annos, e onde morreu -minha mulher, o que me não impede de ser muito feliz. -Mas faça o senhor idéa de qual não foi a minha surpreza -quando, ha perto de nove mezes, vejo chegar aqui -um homem vestido como um mendigo, sujo, desfigurado, -que me perguntou se eu tinha no predio um -cantinho, um sotão, ou mesmo uma agua-furtada -para lhe alugar. Eu não o podia crer; todavia, na expressão -do rosto fica sempre alguma coisa do que a -gente era, e exclamei: «Deus me perdõe! mas é o sr. -Rouflard!...» «Foste tu que o disseste! me respondeu -elle; sim, sou o outr’ora bonito Rouflard! que o -tempo e as desgraças têem um pouco deteriorado.<span class="pagenum"><a id="Page_71"></a>[71]</span> -Mas deixa-me encarar-te bem... Ah! agora!... és o -Chausson... és o meu creado, pois bem! aluga-me -um quarto, e sê hoje o meu porteiro; tenho tomado -muito juizo, deito-me todas os dias ás nove horas, e -não bebo senão agua, quando não tenho com que comprar -vinho.» A vista da miseria de um homem, que -eu tinha conhecido tão elegante, tão appetecido e -procurado, fez-me pena, e levou-me a dizer-lhe: «Pois -sim, dou-lhe um quarto na agua-furtada; mas o que -faz o senhor agora, qual é a sua profissão?» Elle coçou -a cabeça por algum tempo, depois respondeu-me: «Faço -tudo quanto se quer! recados, cosinha; engarrafo -vinhos, tosquio cães, educo papagaios; mas o que é -sobretudo a minha occupação favorita, é servir de -modelo aos pintores.» «Pois bem! tratarei de lhe -arranjar que fazer e vou dar-lhe casa lá em cima; mas -estará aqui n’um predio socegado, será pois mister -portar-se decentemente.» Elle assim o prometteu; -mas Deus sabe como tem cumprido a sua palavra! -Arranjei que elle fizesse recados a uma inquilina; mas -assim que apanha alguns soldos, o borrachão vae -bebel-os de vinho e recolhe-se fóra de horas. Avisei-o -de que isto não podia durar assim, elle promette-me -emendar-se, quando está em jejum, mas veja como se -emenda! Esta noite estava fazendo grande barulho á -porta; mas se não fosse o senhor, dou-lhe a minha -palavra que teria dormido na rua! Decididamente -este Rouflard é um extravagante, um mal procedido! -Mas os homens que na sua mocidade vivem á custa -das mulheres, devem necessariamente acabar assim, -porque o seu ganha-pão é a sua cara bonita, e logo -que essa boniteza se vae, boas noites! acabou-se tudo! -Casimiro não responde nada, e sobe a escada com ar -muito pensativo: a historia do lindo Rouflard fez-lhe -passar a embriaguez.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_72"></a>[72]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="VI">VI<br /> -<span class="smaller">A familia Proh</span></h2> - -</div> - -<p>Achava-se a familia Proh reunida na sua sala. Os -leitores já conhecem a sr.ª Celeste Proh, de quem lhe -fizemos o retrato; seu marido, o sr. Castor Proh, é -um antigo professor de historia e de linguas mortas. -É um homem alto, magro, amarello, que era feio em -moço, e que não se fez bonito em velho; tem o nariz -de tal forma chato, de tal forma acachapado, que lhe -seria impossivel segurar n’elle uns oculos. Esse senhor -tem sempre os ares d’um preceptor prestes a -ralhar com o discipulo, conserva constantemente uns -modos arrogantes e desagradaveis; sua mulher sustenta -nunca o ter visto rir, mas ha pessoas que se divertem -por dentro sem que ninguem dê por isso: com -o sr. Proh não se dá por similhante coisa.</p> - -<p>Uma herança, com que elle não contava, permittiu -ao professor descançar e viver dos seus rendimentos; -já não quer occupar-se, diz elle, senão da educação -dos filhos; mas a filha prefere as artes agradaveis ao -estudo da historia, e o Affonsinho deita a lingua de -fóra ao pae, quando este lhe fala de linguas mortas; -é um verdadeiro diabrete, guloso, curioso, preguiçoso, -traquinas, respondão; o pae affirma que o pequeno -promette...</p> - -<p>A menina Angelina Proh approxima-se dos dezeseis -annos; n’esta edade, em não sendo torta nem corcovada, -em não tendo o nariz escarrapachado nem os -olhos remelosos, uma rapariga é sempre bonita; não -é ás vezes senão a <i>belleza do diabo</i>, mas isso faz ainda -conquistas, ha homens que não apreciam senão essa -belleza. A menina Proh não possuia outra; juntava a -isso uma dóse de toleima, que podia ainda passar por -ingenuidade, mas que mais tarde não devia deixar a -menor duvida sobre a sua qualidade.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_73"></a>[73]</span></p> - -<p>N’este momento, a sr.ª Proh está principiando a -bordar uma golla, a menina Angelina tenta desenhar -olhos e orelhas; o Fonfonsinho recorta uma estampa, -e o ex-professor passeia pelo meio da casa, cofiando -com a mão a barba e parecendo meditar. De repente -pára:</p> - -<p>—Affonso, vou-te fazer uma pergunta bem simples.</p> - -<p>—De que é que vae fazer...</p> - -<p>—Não se diz: de que é que! em primeiro logar essa -construcção de phrase é viciosa...</p> - -<p>—Viciosa! então que mal fez ella?</p> - -<p>—Meu filho, eu interrogo-o, mas o menino não tem -direito para me interrogar... Escute bem, e responda-me -<i>illico</i>! Como se chamava o primeiro homem?</p> - -<p>—<i>Illico!</i>...</p> - -<p>—Hein? vamos, menino, dê-me attenção... Pergunto-lhe -como se chamava o primeiro homem?</p> - -<p>—Pois bem! <i>Illico!</i> Disse-me que respondesse: <i>Illico!</i>... -digo-lh’o, e não está contente!...</p> - -<p>—Mas, velhaquete, eu entendo por <i>illico</i>, immediatamente... -logo, logo...</p> - -<p>—O pequeno tem razão; para que emprega com -elle termos barbaros que a creança não comprehende? -estraga-lhe a memoria, e mais nada!</p> - -<p>—Minha senhora, metta-se lá nos seus trapos, nos -seus vestidos, e deixe-me dirigir a educação de meu -filho, elle tem talento; promette, mas precisa ser bem -ensinado...</p> - -<p>—Graças a Deus, tem muito tempo deante de si.</p> - -<p>—Nunca se tem bastante. Aqui estou eu, que sei -muito, lisonjeio-me d’isso, e precisaria ainda cem annos -de existencia para ser completo!</p> - -<p>—Como um omnibus!...</p> - -<p>—Fonfonso! <i>tu castigaberis!</i>...</p> - -<p>—Papá, bem sabe que nos omnibus o conductor -grita: Completo! Olhe! desenhe-me um boneco, a -mana não me quer fazer nenhum...</p> - -<p>—A mana está trabalhando nos seus olhos e nas -suas orelhas, e tem razão. Isto porém faz-me lembrar<span class="pagenum"><a id="Page_74"></a>[74]</span> -que a sua lição de desenho era hontem... O Casimiro -veiu?</p> - -<p>—Sim, papá...</p> - -<p>—Não, é falso; a mana não fala verdade, o vizinho -não veiu hontem dar-n’os lição...</p> - -<p>—Seu mano tem razão, menina?</p> - -<p>—Ora! não sei... já me não lembro... vão fazer-me -enganar na minha orelha!</p> - -<p>—Eu não dou vinte e cinco francos por mez a esse -rapaz para que elle se descuide das suas lições. Sr.ª -Proh, a senhora é que devia tomar sentido n’essas -coisas...</p> - -<p>—Por quem é, socegue! o sr. Casimiro não é capaz -de o prejudicar n’uma lição! é um rapaz muito distincto, -e que só ensina desenho aos nossos filhos para -nos obsequiar.</p> - -<p>—Desconfio das pessoas que fazem as coisas para -obsequiarem: em geral fazem-n’as mal; é como aquelles -creados que estão sempre a dizer que não nasceram -para servir, não fazem nunca bem a sua obrigação.</p> - -<p>—Papá, faça-me um boneco.</p> - -<p>—Vamos lá; tens papel e lapis?</p> - -<p>—Aqui está tudo. Ah! mas eu quero que faça o boneco -com o pé.</p> - -<p>—Com o pé? Fonfonso, tu não sabes o que dizes! -então a gente desenha com os pés quando tem as mãos -á sua disposição?</p> - -<p>—Mas o papá deve servir-se tanto dos pés como -das mãos, visto que é quadrumano.</p> - -<p>—Quadrumano! eu sou quadrumano! quem é que -lhe disse tal insolencia? o menino sabe o que é um -quadrumano?</p> - -<p>—Sei, é um chimpanzé, e bem sabe que o outro -dia a mamã disse-lhe que era um chimpanzé. Perguntei -ao sr. Casimiro o que era um chimpanzé, e elle -respondeu-me que era um homem dos bosques, que -era um quadrumano.</p> - -<p>—A senhora bem está ouvindo; seu filho compara-me<span class="pagenum"><a id="Page_75"></a>[75]</span> -com um macaco, porque a senhora o outro dia -não receiou qualificar-me com esse epitheto.</p> - -<p>—Tambem o senhor me chamou girafa. Era porventura -mais delicado?</p> - -<p>—Papá chimpanzé, faça-me um boneco.</p> - -<p>—Se me tornas a chamar chimpanzé, levas uma -sova de açoutes que te racho! Vá estudar a sua lição -de grammatica, para m’a dizer logo.</p> - -<p>—Ora! a grammatica aborrece-me; gosto mais de -recortar estampas.</p> - -<p>—Faça o que lhe ordeno, seu patife! e não resmungue. -Angelina, quando acabares o teu desenho de -orelhas, espero que te lembres das minhas piugas, -que estão em muito máu estado, já me queixei d’isso -a tua mãe, que creio que terá attendido a minha reclamação.</p> - -<p>—As suas piugas! Ora! ainda lhes não toquei.</p> - -<p>—Como! pois a senhora não manda concertar a roupa? -na verdade, não sei em que pensa, ou antes sei-o -demasiado. É nos seus adornos, nos seus enfeites, nos -seus vestidos de cauda ou sem cauda, e a roupa fica -n’um estado miseravel! os meus colletes de flanella -não têem botões, as camisas estão todas rasgadas, as -ceroulas estão cheias de buracos; mas a senhora, comtanto -que tenha um vestido á moda, não quer saber -de mais nada.</p> - -<p>—Queria talvez que eu tivesse sempre as suas ceroulas -no pensamento! Ah! credo! seria bem triste!...</p> - -<p>—O que é triste, é achar a gente as camisas rôtas -na occasião de as vestir.</p> - -<p>—Socegue, a sua roupa ha de ser concertada; mas -como n’esta casa ha trabalho de mais e como eu e -minha filha não podemos chegar para tanto dei tudo -isso a uma costureira.</p> - -<p>—A uma costureira! mas está a senhora bem informada -a respeito d’essa costureira? ha algumas que -trocam os objectos que se lhes confiam.</p> - -<p>—Oh! não imagine que ella lhe vae trocar as piugas, -o senhor está sempre com medo de que o roubem,<span class="pagenum"><a id="Page_76"></a>[76]</span> -demais, é uma rapariga que mora no predio, no quinto -andar, é a menina Lisa.</p> - -<p>—A menina Lisa! não conheço. E trabalha bem, -essa menina Lisa.</p> - -<p>—Cose como uma fada; já lhe dei que fazer, e fiquei -muito satisfeita com ella, tanto mais que não leva -caro, dá-lhe a gente o que quer.</p> - -<p>—Oh! então é preciso dar-lhe que fazer muitas vezes. -E essa rapariga mora sózinha lá em cima?</p> - -<p>—Não, está com a avó, uma boa velhinha, quasi -paralytica, que já não se acha em estado de fazer nada; -pois bem! é a menina Lisa que tem cuidado d’ella, -que trabalha dia e noite para que não falte nada -á pobre velha. Oh! esta rapariga porta-se muito -bem... toda a gente no predio lhe faz elogios.</p> - -<p>—Hum! desconfio d’essas pessoas a quem todo o -mundo faz elogios, isso esconde ás vezes muitas coisas, -essa sujeitinha tem sem duvida namorados...</p> - -<p>—Oh! que idéa! não fale assim deante de sua filha.</p> - -<p>—Minha filha aprende desenho, e quando uma menina -quer desenhar de modelos de gesso e copiar estatuas -antigas, creio que pode comprehender o que é -um namorado. Demais, a tal menina Lisa é muito -ajuizada, não tem nenhum! estimo bastante.</p> - -<p>—Sim! sim! Lisa tem um namorado! exclama o -joven Fonfonso; eu bem sei! eu conheço-o...</p> - -<p>—O que está o menino a dizer! aonde foi aprender -essas coisas?...</p> - -<p>—Ora, ouvi dizer. Não é verdade mana, que a costureirinha -do quinto andar tem um namorado?...</p> - -<p>—Deixa-me, vaes fazer com que me engane na minha -orelha.</p> - -<p>—Menina, diz por sua vez a mamã, sou eu que a interrogo; -deixe por um momento as suas orelhas e -responda-me. A menina sabe que Lisa tem um namorado?</p> - -<p>—Se derem credito ás tolices que diz o mano, estão -bem aviados.</p> - -<p>—Tu é que és uma tola; bem ouviste o borrachão -que mora nas aguas-furtadas dizer o outro dia na escada:<span class="pagenum"><a id="Page_77"></a>[77]</span> -Viva Lisa! viva a minha namorada! E por signal -tu disseste: Ora não ha! olhem que bello namorado -que a Lisa tem!</p> - -<p>—Isso não é verdade! eu não disse tal!</p> - -<p>—Disseste, sim!</p> - -<p>—Não, não, não!</p> - -<p>—Sim, sim, sim!...</p> - -<p>—Basta, basta! <i>satis! satis!</i> grita por sua vez Castor -Proh; estes irmãos fazem-me lembrar Cain e Abel, -que eu não conheci, mas cujas questões tiveram consequencias -bem terriveis!</p> - -<p>—Desde o momento em que o bebedo das aguas-furtadas -está mettido em tudo isto, diz Celeste, já -o senhor vê que caso se pode fazer do que acaba de -dizer seu filho.</p> - -<p>—Sim, senhora, esse bebedo, esse tal Rouflard, porque -é assim que elle se chama, creio eu, esse maroto, -preguiçoso, borrachão que devia ser expulso do predio. -Chausson, o porteiro, tinha-m’o recommendado, -pedindo-me que lhe désse alguma coisa que fazer, e -dizendo-me que era um homem bem educado, que tivera -desastres na sua vida. Eu accedi a occupal-o, -ainda que desconfio sempre d’essas pessoas que tiveram -desastres. Eu tinha justamente precisão de <i>rhum</i> -da Jamaica, a senhora não gosta, prefere o licor de -herva doce, mas gosto eu. Era um dia em que a senhora -jantava fora com os pequenos. Dou dinheiro -ao tal Rouflard, ordenando-lhe que fosse aos <i>Americanos</i>, -que é onde ha certeza de o achar bom. O homem -sae d’aqui perto das quatro horas da tarde. Era preciso -quando muito uma hora para fazer o recado, e -ás seis horas ainda não tinha voltado. Vou-me queixar -ao porteiro, receioso de que tivesse acontecido -algum desastre ao seu protegido. Dão sete horas, dão -oito, finalmente, ás dez horas, vejo chegar o nosso homem, -borracho, bebedo, mal podendo suster-se nas -pernas, e que me apresenta uma garrafa quasi despejada, -dizendo com ar chocarreiro: «Aqui tem a sua -garrafa de <i>rhum</i>... entornou-se um pouco pelo caminho... -é que provavelmente não trazia a rolha bem<span class="pagenum"><a id="Page_78"></a>[78]</span> -apertada.» «Como! lhe dige eu, atreve-se a affirmar -que a garrafa se entornou! porém ella devia estar -perfeitamente lacrada! para que teve a confiança de -a abrir?... foi para beber o meu <i>rhum</i>... você é um -maroto!... um patife!...» Em vez de se desculpar, -de me pedir perdão, o tal Rouflard diz-me a modo de -injuria: «Se não está contente, vou beber o resto!...» -Effectivamente, deixei-lhe o resto; mas dei os meus -agradecimentos ao porteiro, e, repito, um tal bebedo -não devia continuar a viver no predio.</p> - -<p>—Ora adeus! o Rouflard não tem medo de vossemecê, -papá Chimpanzé, não, Chimpanzé não... papá -Castor...</p> - -<p>—Então o menino conversa com esse homem? Fonfonso, -prohibo-o que lhe fale, não quero que aprenda -máus costumes.</p> - -<p>—Não sou eu que lhe falo, elle é que me diz sempre -tolices quando passa.</p> - -<p>—Não lhe responda, encerre-se no seu foro intimo.</p> - -<p>—Não entendo, papá.</p> - -<p>—Quero dizer que não dê attenção ao que lhe diz -esse bebedo.</p> - -<p>—Ora! mas diverte-me, faz-me rir, hontem pela -manhã disse-me: Porque é que teu pae não põe o seu -nome por cima da porta? é uma coisa que sempre se -faz para os artistas.</p> - -<p>—O que, Fonfonso! esse homem tem a petulancia de -te tractar por tu! Que insolencia!</p> - -<p>—Eu não lhe posso obstar...</p> - -<p>—Deves-lhe dizer: Olhe que eu nunca guardei perús -com o senhor.</p> - -<p>—E elle responder-me-ha: Mas já os guardaste com -o teu pae.</p> - -<p>—Ah! esse tal Rouflard queria que eu puzesse o -meu nome por cima da porta!</p> - -<p>—Sim, senhor; até me disse: Fica descançado, pequeno, -hei de eu lá pôl-o e mais o de toda a familia, -é preciso que todos saibam onde hão de procurar a -familia Proh...</p> - -<p>—Elle disse-te isso! mera brincadeira, talvez...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_79"></a>[79]</span></p> - -<p>—Ah! exclama Angelina, isto faz-me lembrar que -vi hontem esse homem subir a escada com um grande -pedaço de giz na mão.</p> - -<p>—Teria elle porventura a petulancia de fazer caricaturas -ridiculas por cima da minha porta!...</p> - -<p>—Vá sempre vêr, sr. Proh, n’um bebedo tudo se -deve esperar, nós ainda hoje não saímos, poderia elle -ter effectuado hontem as suas ameaças sem que nós -o soubessemos.</p> - -<p>O sr. Proh sae da sala e dirige-se ao patamar. D’ahi -a poucos instantes ouve-se um grito de indignação; -toda a familia corre immediatamente para a escada, -com grande curiosidade de saber o que pode estar -escripto por cima da porta.</p> - -<p>—Venha, senhora, venha! exclama Castor, venham -todos, e vejam o que o tal Rouflard teve a pouca vergonha -e a audacia de escrever por cima da nossa porta. -Oh! ha para toda a gente...</p> - -<p>Com effeito, por cima da porta tinham escripto a -giz, e em grandes lettras:</p> - -<p>A sr.ª <i>Pro-fanée</i>.</p> - -<p>A menina, <i>Pro-nobis</i>.</p> - -<p>O sr. <i>Pro-fesse</i>.</p> - -<p>O menino <i>Pro-pice</i>.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="VII">VII<br /> -<span class="smaller">A menina Lisa</span></h2> - -</div> - -<p>Depois do seu dia tão bem empregado, Casimiro -não passou uma noite tão agradavel: dormiu pouco; -não se lhe tira da idéa a historia d’aquelle pobre diabo -que estava deitado na rua e que chama seu creado -ao porteiro; obriga-o a fazer reflexões que não são -côr de rosa; o rapaz, sem todavia se collocar no mesmo -nivel que o tal Rouflard, diz comsigo que um homem<span class="pagenum"><a id="Page_80"></a>[80]</span> -é infinitivamente despresivel quando vive á -custa d’uma mulher.</p> - -<p>O resultado d’estas reflexões é uma resolução, firmissima -d’esta vez, de se entregar ao trabalho, e, como -a pintura é a unica habilidade que possue e que pode -utilizar, promette a si mesmo tornar a pegar nos lapis -e nos pinceis e tractar de adquirir, trabalhando, o -que ainda lhe falta para se arrojar a fazer um retrato -do natural; demais, jura tambem não dizer nada a -Ambrosina das suas novas intenções.</p> - -<p>O que é indispensavel a um pintor de retratos, é -um modelo. Bem sabe Casimiro que a sr.ª Proh estimaria -bastante prestar-lhe esse serviço; mas o rapaz, -antes de fazer o retrato d’esta senhora, quereria exercitar-se -com outro modelo. Lembra-se do que lhe -disse o porteiro a respeito de Rouflard, e por isso, -logo depois de haver tomado a chicara de café que o -Chausson lhe traz todas as manhãs, Casimiro sobe a -escada para se dirigir a casa de Rouflard.</p> - -<p>A escada era alta. Chegava ao quinto andar, onde -não ha senão quartos occupados em grande parte pelas -creadas do predio, Casimiro pára a fim de tomar -folego, e olha depois em torno de si. Acaba alli a escada; -o porteiro porém disse-lhe que o seu antigo -amo habitava n’uma agua-furtada, no sexto andar, e -elle não vê o minimo rasto de escada.</p> - -<p>N’isto ouve-se uma voz de mulher, muito suave, -muito juvenil, cantando como se embalasse uma creança. -O quarto d’onde sae a voz tem a chave na porta. -Casimiro decide-se a entreabrir essa porta para -perguntar por onde se sobe ao sexto andar.</p> - -<p>Vê uma casa modestamente mobilada, poderia mesmo -dizer-se mobilada pobremente; no fundo está um -leito bastante confortavel, com uns grandes cortinados -de sarja, e quasi ao lado uma caminha, sem cortinas, -que apenas se compõe d’um enxergão e d’um -colchão muito pobre, de lã; depois ha uma commoda -de nogueira, uma meza, algumas cadeiras, um pequeno -espelho sobre a chaminé, tudo o que é indispensavel, -o strictamente necessario e mais nada; mas isto<span class="pagenum"><a id="Page_81"></a>[81]</span> -tudo está arranjado com um cuidado e um aceio que -dessimulam em parte a pobreza.</p> - -<p>No leito está uma velha deitada; mas ao pé da meza -ha uma rapariga sentada a coser. Casimiro fica -pasmado á vista d’esta joven, cujo trajo é bem simples, -bem modesto, mas cujo semblante agrada logo -pela expressão meiga e engraçada dos seus lindos -olhos, pelo encanto do seu sorriso, emfim por essa -sensação, difficil de analysar, que experimentamos á -vista d’uma pessoa que nos é desconhecida, mas que -nós voltamos para vêr ainda muito tempo quando o -acaso nol-a faz encontrar.</p> - -<p>—Perdão, menina, diz Casimiro conservando-se -junto da porta que acaba de abrir. Sou indiscreto. Incommodo-a -talvez. Mas, se bem que morando n’este -predio ha já muitos mezes, conheço pouco as localidás. -Procuro um individuo que mora no sexto andar, -pelo que me disse o porteiro, mas esse sexto andar -não dou com elle... não sei por onde se sobe para -lá...</p> - -<p>A rapariga sorri-se respondendo:</p> - -<p>—Effectivamente, quando se não conhece bem este -patamar, é difficil dar com a escada que vae para cima... -Mas, olhe, alem ao fundo a parede faz uma quina, -é de traz d’essa quina que o senhor achará uma -escada muito estreita, que vae ter ao sexto andar, é -tão estreita que, se o senhor fosse gordo, não caberia -por ella!...</p> - -<p>—Provavelmente o senhorio não quer que os inquilinos -carreguem a casa demais, responde Casimiro -rindo.</p> - -<p>—Oh! não ha senão um inquilino... um homem -que está muito mal lá em cima!...</p> - -<p>—Como parece que está sempre embriagado, pode -tomar a agua-furtada por um palacio.</p> - -<p>—Acha que sim? Pobre Rouflard! mas elle não está -sempre embriagado, felizmente está mais alegre -quando se acha em jejum do que quando tem bebido... -Ah! perdão, senhor, minha avó está-se voltando -na cama... Creio que quer alguma coisa... perdão...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_82"></a>[82]</span></p> - -<p>A rapariga faz-lhe uma mesura. Casimiro comprehende -que deve retirar-se; agradece outra vez á sua -formosa visinha e torna a fechar a porta, dizendo -comsigo:</p> - -<p>—Como! pois eu tinha uma visinha tão encantadora, -e nem suspeitava de tal coisa! Em Paris mora a -gente annos n’uma casa e não conhece as pessoas que -habitam na mesma escada, não as encontra nunca! É -que esta rapariga é deveras encantadora; feições finas -e suaves ao mesmo tempo, bonitos olhos, cabello -preto como ebano, uma boquinha amavel; que delicioso -modelo que isto faria! Vive com a avó; ellas -não parecem ser muito ricas... é preciso que me informe. -Vamos, procuremos a escada por onde se sobe -a casa de Rouflard. Ah! creio que achei... effectivamente -é muito estreita! é uma escada de moinho! uma -saia de balão não cabia por aqui.</p> - -<p>Casimiro, conforme pode, sobe a escada, que não -tem corrimão, mas segura-se a gente á parede dos -dois lados. Chega a uma especie de patamar que tem -tres portas; duas estão abertas de par em par, a do -centro está fechada, mas simplesmente com o trinco. -É necessariamente alli que deve morar o sujeito que -na vespera se tinha deitado na rua. Casimiro levanta -o trinco, abre a porta, e fica muito espantado do quadro -que se lhe apresenta deante dos olhos; mas d’esta -vez não é enlevo o que a sua physionomia exprime.</p> - -<p>N’uma agua-furtada que tem doze pés quadrados, -e que recebe a luz de uma trapeira construida no tecto, -está um homem estendido em cima d’um montão -de palha que sustenta uma especie de colchão feito -de aparas; um cobertor de algodão, negro de immundicie -e esburacado em muitos sitios, é tudo o que -tem para se cobrir; ausencia total de lençoes; serve-lhe -de travesseiro uma acha redonda, que, para ser -menos dura, está coberta de velhos cartazes de espectaculos, -que provavelmente foram arrancados das -esquinas. O homem que dorme alli não deve nunca -despir-se completamente; mas como se está no verão,<span class="pagenum"><a id="Page_83"></a>[83]</span> -tirou o paletot e o collete. Tem na cabeça uma velha -cassarola de lata sem cabo, a qual lhe serve de barrete -de dormir.</p> - -<p>Junto d’esta miseravel cama está uma cadeira côxa -servindo de meza de cabeceira, em cima da qual se -vê uma terrina de porcelana rachada e quebrada em -muitos sitios. Aquella terrina, que talvez outr’ora teve -dentro saborosas sopas, está reduzida a um emprego -bem humilhante! <i>Sic transit gloria mundi!</i> Ha fato -espalhado pelo meio do chão. Sobre uma tábua -pregada no tabique estão alguns boiões de pomada, -um pente, um cangirão, uma garrafa, um cachimbo e -um pedacinho de espelho.</p> - -<p>Quando o rapaz abre a porta, o sujeito que estava -deitado dorme, tem a cara voltada para a parede, e -a chegada de Casimiro não parece tel-o accordado; -por isso este ultimo pode muito á vontade examinar -o sitio em que se acha, e é o que elle faz, porque para -um pintor <i>de genero</i> havia alli assumpto d’um quadro -original e curioso.</p> - -<p>Mas, depois de ter visto e revisto tudo, o que não -podia levar muito tempo, Casimiro decide-se a levantar -a voz para despertar o dorminhoco:</p> - -<p>—Olá!... ó senhor!... sr. visinho! não se lhe poderia -dar uma palavra?</p> - -<p>Rouflard volta meio corpo, resmungando:</p> - -<p>—O que é? que me querem? não estou cá! vão para -o diabo! não pode um homem dormir socegado -n’este cochicholo!...</p> - -<p>—Perdão, sr. Rouflard, pelo ter accordado, mas são -mais de dez horas, pensava encontral-o já levantado.</p> - -<p>—Eu levanto-me tarde, porque gosto de estar deitado, -e nada tenho de melhor a fazer do que dormir. -Ah! se o senhor me paga o almoço, isso é differente...</p> - -<p>—Talvez que sim; e se lhe não offereço d’almoçar, -posso dar-lhe com que possa arranjar um almoço -muito decente.</p> - -<div class="figcenter" style="width: 400px;" id="illus1"> -<img src="images/illus1.jpg" width="400" height="600" alt="" /> -<p class="caption">—Mas o que faz o senhor aqui?</p> -</div> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_84"></a>[84]</span></p> - -<p>A estas palavras, Rouflard volta-se de todo, senta-se -na cama, tira a cassarola que lhe serve de barrete -de dormir, esfrega os olhos, e exclama:</p> - -<p>—Oh! mas então o caso é differente; isso é que são -palavras bem pensadas; espere, eu creio que o estou -reconhecendo, é o sr. Casimiro Dernold, mora cá no -predio, no terceiro andar...</p> - -<p>—Exactamente, ah! o senhor sabe o meu nome!...</p> - -<p>—Foi o meu criado que me deu estas informações. -Chausson, o nosso porteiro, que foi n’outro tempo -meu servo, e que queria hontem á noite deixar-me -dormir na rua; porque, agora me lembro muito bem, -se não fosse o meu nobre visinho, era a soleira da -porta da rua que me serviria de cama! Aquelle tratante -do Chausson!...</p> - -<p>—Se me dá licença, não foi hontem á noite, foi esta -madrugada que tudo isso aconteceu, porque era -muito mais de duas horas quando eu vim para casa...</p> - -<p>—Pois bem! ainda que fossem quatro! Por ventura -as pessoas finas, as pessoas da boa sociedade deitam-se -como as gallinhas! Já não tenho com que ir cear á -<i>Maison d’Or</i>, é verdade, mas posso sempre passear no -<i>boulevard</i> dos Italianos emquanto isso me der prazer! -e Chausson é um maroto! vinga-se dos sôcos que lhe -dei n’outro tempo. Ahi está o que são os homens! -para conhecer os seus defeitos dêem-lhes a riqueza. -Creio que foi Larochefoucauld que disse isto, ou alguma -coisa equivalente.</p> - -<p>—O senhor tem instrucção, sr. Rouflard, como é -que não tem achado em que se empregar convenientemente?</p> - -<p>—Empregar-me! empregar-me. Ah! o vizinho tem -graça! é por não ter querido nunca empregar-me que -durmo hoje em cima d’uma pouca de palha! Mas não -façamos recriminações! o senhor ficou em me dar com -que almoçar, isso cahiria do céu, porque não tenho -um soldo, e em compensação tenho grande appetite; -a tudo isto accresce que não tenho já credito -em parte nenhuma!...</p> - -<p>—Mas, se o senhor não quer empregar-se, vae talvez -rejeitar a minha proposta?...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_85"></a>[85]</span></p> - -<p>—Conforme! se é coisa que não dê muito trabalho...</p> - -<p>—Oh! não dá trabalho nenhum; tractava-se de vir -a minha casa servir-me de modelo, quatro ou cinco -horas por dia.</p> - -<p>—Servir de modelo... para a cabeça?</p> - -<p>—Naturalmente, oh! eu não quero senão o seu -busto, a cabeça e as mãos.</p> - -<p>—Bravo! isso convem-me, oh! convem-me muito! -quando quer principiar?</p> - -<p>—Hoje mesmo, esta manhã, se o senhor poder?</p> - -<p>—Eu posso sempre... todavia...</p> - -<p>—Todavia precisa almoçar, comprehendo isso! Tome, -aqui tem dez francos adeantados sobre o seu trabalho; -vá almoçar, depois venha a minha casa, que eu -vou preparar a palheta.</p> - -<p>Rouflard levanta-se muito expedito, recebe os dez -francos com uma cara radiante, e enfia logo o collete -e o paletot, dizendo:</p> - -<p>—Ha muito tempo que não tenho um despertar tão -bonito. Vamos entrar na extravagancia de comprar -uma pouca de pomada de baunilha, para fazer honra -ao nosso pintor...</p> - -<p>—Não faça despezas de toucador por minha causa, -acho-o muito bem assim como está.</p> - -<p>—Que bondade a sua. Ah! se me houvesse conhecido -outr’ora, nos meus bons tempos! então é que o -meu retrato e a minha pessoa eram disputados; mas -outros tempos, outros cuidados!</p> - -<p>—Perdão, sr. Rouflard, uma outra pergunta, que -vae talvez parecer-lhe indiscreta.</p> - -<p>—Pergunte á vontade, não faça ceremonias.</p> - -<p>—O senhor disse ahi ha pouco que não tinha nem -um soldo, e que não queriam já dar-lhe nada fiado. -Se não tivesse recebido a minha visita esta manhã, -como é que havia de almoçar?...</p> - -<p>—Como? ah! sim, comprehendo que isso lhe pareça -difficil de resolver! é que o senhor ignora que ha um -anjo n’esta casa...</p> - -<p>—Um anjo?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_86"></a>[86]</span></p> - -<p>—Sim, senhor.</p> - -<p>—No predio?</p> - -<p>—Sim, n’esta mesma escada, não falo da que vem -ter a esta agua-furtada, mas cá por baixo, no quinto -andar, n’um quarto muito modesto, mas que parece -um palacio em comparação d’este chiqueiro, mora -uma rapariga que pode ter dezoito annos, creio, e -uma velha a quem ella chama sua avó. A rapariga -chama-se Lisa, a menina Lisa, como toda a gente a -conhece; é baixinha, é verdade, mas tão bem feita, -tão graciosa... e uma cara!... linda a mais não poder -ser! Oh! nos meus bons tempos vi bastantes mulheres -bonitas! e mulheres que faziam furor, que viam a -seus pés tudo o que havia de melhor no <i>turf</i>. Pois -bem, digo-o francamente, a menina Lisa vale mais -que todas ellas...</p> - -<p>—Vi ha pouco essa rapariga, foi a ella que me dirigi -para dar com a sua escada, pareceu-me, com effeito, -muito interessante.</p> - -<p>—Interessante! oh! isso é pouco; ella é mais que -interessante! e depois um coração! uma bondade! -quando estou completamente á divina, como eu lhe -dizia ainda agora, é ella que me soccorre. Um dia, -havia eu parado deante da sua porta, que estava aberta, -tinha fome, e arrisquei-me a dizer-lhe: «Minha vizinha, -não terá por ahi um boccado de pão que me dê? não -tenho migalha em casa.» «Tem fome!...» exclamou -ella, e correu logo ao armario a buscar-me pão e um -pedacito de queijo, que me offereceu, dizendo-me: -«Tome, não lhe posso dar mais nada, não tenho vinho...» -«Oh! isto é bastante, lhe disse eu, e a menina -é um anjo de bondade!» ella accrescentou: «Quando -lhe faltar pão, venha pedir-m’o, não se constranja, é-nos -preciso tão pouco a mim e a minha avó, que sempre -tenho de sobra.» Aqui tem o senhor por que eu -chamo a essa rapariga um anjo; vê que tenho razão, -faço por não abusar da sua bondade, mas algumas -vezes, mesmo muito amiude, vejo-me obrigado a -recorrer a ella... então que quer o senhor? parece -que estava no meu destino o ser sustentado pelas mulheres;<span class="pagenum"><a id="Page_87"></a>[87]</span> -por isso chamo á menina Lisa a minha namorada. -Mas d’esta vez é honestamente! respeito essa -pequena, tanto quanto a estimo; faço mais, escuto os -seus conselhos, ella ralha commigo ás vezes, quando -venho para casa bebedo...</p> - -<p>—Mas não segue esses conselhos?</p> - -<p>—Não sigo, é verdade; ainda hontem me emborrachei... -que quer! a força do habito. Tambem, quando -estou bebedo, não ha perigo que eu pare para conversar -com Lisa; pobre pequena! a sua bondade para -commigo é tanto mais meritoria, que ella trabalha -sem descanço para sustentar sua avó, que está paralytica, -algumas vezes á meia noite, á uma hora, sinto-a -a trabalhar ainda... e então grito-lhe: «Vizinha! -isso é de mais, velar até tão tarde, vá descançar, olhe -que pode adoecer com tanto trabalho!» Ella responde-me -alegremente: «Não, não! o meu divertimento é -coser; depois, não tenho somno.» É realmente extraordinario -que n’uma rapariguita haja ás vezes mais -coragem para o trabalho do que em cinco ou seis -homens robustos com eu!</p> - -<p>Casimiro tem escutado mui attentamente tudo o -que Rouflard lhe tem dito da menina Lisa. Isso ainda -lhe dá que reflectir. Mas Rouflard, que acabou de -vestir-se, faz tinir os dez francos que tem na mão, e -diz-lhe:</p> - -<p>—Perdão, meu caro vizinho, mas a fome aperta commigo, -eu não o ponho fóra... o senhor pode ficar -aqui se se diverte com isso, eu porém peço licença -para me ir confortar.</p> - -<p>E, sem aguardar a resposta do rapaz, Rouflard sae -pela porta fóra e desce rapidamente a escada, escutando -apenas a Casimiro, que lhe grita:</p> - -<p>—D’aqui a uma hora... em minha casa!... não se -esqueça!...</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_88"></a>[88]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="VIII">VIII<br /> -<span class="smaller">Travam conhecimento</span></h2> - -</div> - -<p>Casimiro desce a escada muito devagar atraz do -inquilino da agua-furtada, não porque tenha receio -de cair, mas porque está muito preoccupado com o que -Rouflard lhe contou ácerca da rapariga que mora no -quinto andar, que trabalha toda a noite para sustentar -a avó, e acha ainda meio de ser util aos que carecem -de pão.</p> - -<p>Chegado ao patamar do quinto andar, o nosso mancebo -pára deante da porta da menina Lisa; estimaria -bastante que aquella porta estivesse aberta, mas -não acontece assim; é verdade porém que a chave -está ainda na fechadura, o que annuncia que se não -receia vísita importuna. Casimiro está morto por tornar -a vêr a rapariga de quem se lhe fez tão grande -elogio, diz de si para si que ha pouco não lhe agradeceu -bastante a indicação que ella lhe dera, accrescenta -ainda que entre visinhos não deve haver muita -cerimonia, que de mais esta menina não tem muito trabalho -para ganhar dinheiro pela sua agulha, e que se -elle podesse ser-lhe util arranjando-lhe que fazer, -n’isso lhe prestaria um grande serviço. Emfim dá a -si mesmo uma infinidade de razões para ter o direito -de abrir a porta, e é o que faz.</p> - -<p>Lisa continuava trabalhando, mas já não cantava; -tinha o parecer triste, e dirigia especialmente a vista -para o leito, onde a velha estava deitada, depois dava -um profundo suspiro. Ao vêr entrar de novo Casimiro -em sua casa, as suas feições exprimem a sua surpreza; -mas, quando o rapaz vae para falar, ella põe -um dedo na bocca, e diz-lhe a meia voz:</p> - -<p>—Baixinho! tenha a bondade de falar baixo, porque -minha avó está dormindo, e preciso não a acordar;<span class="pagenum"><a id="Page_89"></a>[89]</span> -esteve esta noite muito doente, muito inquieta, -não socegou um instante...</p> - -<p>Casimiro entra pé ante pé, e murmura approximando-se -da rapariga:</p> - -<p>—Menina, eu sou sem duvida muito indiscreto em -vir segunda vez incommodal-a, mas não sei se lhe -disse que era seu vizinho.</p> - -<p>—Sim, senhor, disse-m’o, demais, eu já o sabia, tenho-o -visto algumas vezes no predio.</p> - -<p>—Tem-me visto, e eu não tinha dado pela menina. -Onde tinha os olhos?...</p> - -<p>—É que eu estava no cubiculo do porteiro, e depois -occupo tão pouco espaço, é muito facil não me -verem...</p> - -<p>—Mas, quando alguem a vir uma vez é impossivel -que não deseje tornar a vêl-a mais vezes...</p> - -<p>Lisa não responde a isto, mas volta os olhos para -o leito; Casimiro percebe que o momento é mal escolhido -para lhe render finezas, e que, demais, não é -para lhe fazer a côrte que elle quer travar conhecimento -com a sua vizinha, mas no desejo de lhe ser -util. É esse realmente o seu unico intuito? Eu por -mim não respondo por isso; mas já é alguma coisa o -ter boas intenções. O mancebo prosegue pois falando -baixo e sentando-se n’uma cadeira que está perto -d’elle:</p> - -<p>—Perdão, minha vizinha, vou falar-lhe francamente, -e espero que nas minhas palavras não verá nada -que a possa offender. Soube pela pessoa que móra lá em -cima, com que actividade a menina se entrega ao trabalho, -para que sua avó não careça de coisa alguma; -mas o trabalho d’uma mulher é quasi sempre mal -retribuido, eu ter-me-hia por muito feliz se podesse -offerecer-lhe o meio de ganhar mais, fatigando-se menos...</p> - -<p>—Porque outro trabalho? eu não sei senão coser, -bordar e fazer meia ou renda.</p> - -<p>—Eu me explico: sou pintor; ensaiei alguns quadrosinhos -<i>de genero</i>, mas ganha-se mais dinheiro a -fazer retratos; n’isso ainda eu não sou muito forte,<span class="pagenum"><a id="Page_90"></a>[90]</span> -preciso estudar, trabalhar muito, emfim tenho necessidade -sobretudo de pintar do natural, e para isso -preciso de modelos. Notei que aquelle Rouflard tinha -uma cabeça caracteristica, eis a razão por que fui esta -manhã falar com elle. Propuz-lhe vir a minha casa -servir-me de modelo; elle acceitou com alegria, e eu -poderei occupal-o bastante tempo. Mas a minha sympathica -vizinha, que tem uma cabeça encantadora, -ah! perdôe-me este elogio, é como artista que lh’o -faço, eu julgar-me-hia muito feliz se podesse reproduzir -na tela as suas feições tão finas, tão suaves. Oh! -estou certo de que havia de conseguir! trabalha-se -tão bem quando se tem deante dos olhos um modelo -que nos encanta... não lhe pedirei que venha servir-me -de modelo senão quando não tiver nada urgente -para fazer... acceitaria a sua hora... o seu tempo vago... -e não julgaria nunca pagar bastante caro as -sessões que houvesse por bem conceder-me; eis o -motivo por que tomei a liberdade de abrir outra vez -a sua porta e de me apresentar aqui de novo. Se a -minha proposta lhe desagrada, espero, ao menos, que -não verá n’isso da minha parte nenhuma intenção má.</p> - -<p>A menina Lisa, que escutou Casimiro com muita -attenção, responde-lhe logo:</p> - -<p>—Não, senhor, não tomarei á má parte a sua proposta. -Soube pelo Rouflard que trabalho para viver, para -que nada falte á minha boa avó, e desejou ser-me util; -não posso senão agradecer-lhe muito o interesse que -se dignou tomar por mim. Mas não acceito a sua proposta; -ser modelo de pintores não é a minha occupação, -e tenho ouvido dizer... ao meu vizinho cá de cima, -que as mulheres que consentiam em servir de modelos, -não eram bem vistas na sociedade. Eu sou uma pobre -rapariga, sem amparo, sem familia, não tenho pois -por unica fortuna senão a minha reputação, e devo -ter a peito conserval-a; tenho razão não é verdade?</p> - -<p>Estas palavras tão simples, mas tão justas fazem -viva impressão em Casimiro, que não está habituado -a ouvir uma mulher falar tão discretamente. Tracta -comtudo de convencer Lisa.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_91"></a>[91]</span></p> - -<p>—Menina, convenho que o mister de modelo não -dá a qualquer mulher uma perfeita reputação de -seriedade, posto que em todas as profissões se possa -ter bom comportamente quando ha firme vontade de -proceder bem. Mas tambem eu não vinha propôr-lhe -que renunciasse ás suas occupações habituaes por -esta nova profissão. Podia-lhe que me servisse de -modelo sómente a mim, que me permittisse reproduzir -as suas feições na tela, era um favor que eu solicitava -e, para a menina, uma curta distracção aos seus trabalhos. -E como lhe podia parecer pouco regular ir a -minha casa servir de modelo, viria eu para aqui -pintar, traria para cá a minha palheta e os meus -pinceis; d’esta maneira, a menina não deixaria mesmo -um instante a pessoa a quem prodigaliza todos os -seus cuidados. Os modelos pagam-se muito caro, desculpe-me -entremetter a questão de dinheiro em tudo -isto; mas na vida não ha remedio senão attender a -essa questão: ora, se eu occupasse um modelo durante -umas dez sessões, dar-me-hia por muito feliz se elle -se contentasse em receber cincoenta francos...</p> - -<p>—Ih! Jesus! tanto dinheiro, só por servir de modelo!...</p> - -<p>—Sim; e quanto mais bonito é o modelo, mais caro -se faz pagar, isso comprehende-se. Por isso, para -achar um como a menina, em primeiro logar seria -muito difficil, depois teria de o pagar por um preço -muito mais elevado, e as minhas posses não me permittem -uma tão grande despeza. Já vê portanto que, -satisfazendo ao meu pedido, era a mim que a -menina obsequiava, era eu que lhe devia agradecimentos; -mas isto desagrada-lhe, não pensemos mais -em tal...</p> - -<p>Lisa d’esta vez hesita para responder; a final murmura.</p> - -<p>—Sinto não poder ser-lhe agradavel; parece-me -entretanto que não deve ser difficil achar uma cara -que valha bem a minha. Olhe, senhor, eu não conheço -nada o mundo, mas creio que o céu me deu o segredo -de ler no pensamento das outras pessoas: o senhor<span class="pagenum"><a id="Page_92"></a>[92]</span> -deseja ser-me util e tracta de me persuadir de que eu -é que lhe prestaria serviço. Ah! isso é bem generoso -da sua parte... confesse que adivinhei.</p> - -<p>Casimiro está muito admirado da perspicacia da -rapariga. Não pode deixar de sorrir, balbuciando:</p> - -<p>—Confesso que me espanta, menina; a sua linguagem -annuncia mais educação do que de ordinario se -recebe na posição precaria em que a vejo. Não tem -mais parentes senão essa pobre enferma, diz a menina; -mas aquelles que perdeu occupavam então uma -posição mais afortunada; perdão, sou talvez demasiadamente -curioso?</p> - -<p>—Oh! eu não tenho motivo para me rodear de mysterios! -não conheci nunca meus paes; abandonaram-me -muito cedo aos cuidados d’uma ama, depois esqueceram-se -de mim completamente.</p> - -<p>—É possivel! pobre creança! mas essa velhinha -que ahi está?...</p> - -<p>—Chamo-lhe avó, mas não me é nada; era mãe de -minha ama. Essa chamava-se Catharina Vauger; queria-me -muito, e o que mais receiava era o momento -em que teria de separar-se de mim para me entregar -á minha familia; ficou pois bem contente quando lhe -enviaram uma forte quantia, dizendo-lhe: «Saia da -sua aldeia, fique com a creança; em vez do nome que -ella tem, chame-lhe <i>Lisa</i> unicamente; mas vá para -Paris, para a morada que aqui se lhe indica, estabeça-se, -e arranje uma lojita, que alguem terá o cuidado -de a indemnisar das despezas que fizer com a menina.» -A minha ama acabava de perder o marido. -Partiu para Paris, trazendo comsigo a mãe, que alli -está, n’aquella cama. Durante algum tempo recebeu -pelo correio certas quantias para mim, depois, de repente -isso acabou, não se ouviu mais falar em coisa -alguma!...</p> - -<p>—Mas a sua ama sabia sem duvida o nome da pessoa -que lhe escrevia?</p> - -<p>—Não, as cartas não vinham assignadas; nunca -mesmo lhe tinham dito o nome de minha mãe...</p> - -<p>—É completamente um romance!...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_93"></a>[93]</span></p> - -<p>—A minha boa ama pouco se inquietou com isso; -tinha emprehendido um negociosinho de leite e de -queijos que corria bem. Assim que fiz seis annos, -mandou-me á escola; depois, um pouco mais tarde, -a um collegio semi-interna, porque ella não queria -nunca separar-se de mim mais de meio dia. Querida -e boa ama! queria-me mais que uma mãe! visto que -a minha me abandonára. Vivemos assim muito felizes -durante alguns annos; mas, ha quatro annos, -a boa Catharina caíu doente, e, apezar de todos -os meus desvelos, morreu; tinha eu apenas quatorze -annos, e comtudo a minha ama recommendou-me sua -velha mãe, porque ella conhecia-me, sabia que eu tinha -coragem, e a firme vontade de reconhecer pelo -meu trabalho tudo o que tinham feito por mim. Durante -os primeiros tempos, para vivermos, minha avó -e eu, fomos obrigadas a trespassar o estabelecimento da -minha ama. Eu procurava trabalho, mas não o podia -obter, achavam-me muito nova para m’o confiarem, -e quando minha avó o pedia, achavam-n’a muito velha. -A final, a Providencia veiu em nosso auxilio, e -eu pude ganhar a nossa vida. Mas, ha um anno, a minha -pobre companheira ficou meia paralytica, já o -senhor vê que tenho razão para trabalhar sem descanço -e para velar constantemente pela pobre velha -que não tem mais ninguem para a tractar.</p> - -<p>—O que me acaba de dizer, não tem feito mais que -augmentar o interesse que me inspirava, e perdôe, se -torno ainda a falar n’isto, o desejo que sinto de lhe -ser util. Pobre pequena, abandonada pelos paes, que -vivem talvez na abastança e podem ter todos os gozos -que a riqueza proporciona, emquanto que a menina...</p> - -<p>—Asseguro-lhe que nunca penso em tal, não choro -senão a minha ama, a minha unica mãe! e que me -queria tanto! Não tenho resentimentos contra meus -paes por me haverem deixado com ella. Nem minha -mãe nem meu pae me teriam de certo tractado melhor.</p> - -<p>—A menina tem muita philosophia, dou-lhe por<span class="pagenum"><a id="Page_94"></a>[94]</span> -isso os meus parabens: outras, no seu logar, forjariam -mil chimeras.</p> - -<p>—Oh! eu não! não penso senão no meu trabalho.</p> - -<p>—E sempre me recusa o favor que lhe peço de me -deixar tirar o seu retrato, vindo eu aqui?</p> - -<p>—Certamente; d’essa maneira, é muito mais decoroso; -mas não importa, não quero servir de modelo.</p> - -<p>Casimiro suspira e levanta-se dizendo:</p> - -<p>—Vamos, vejo perfeitamente que nada pode vencer -a sua repugnancia. Não devo por insistir mais; mas, -no emtanto, se por acaso mudar de parecer, eu estarei -sempre prompto com a palheta e os pinceis, e a -menina não tem senão uma palavra a dizer, para me -ver aqui immediatamente.</p> - -<p>—Muito agradecida.</p> - -<p>—Demais, se me dá licença, virei eu proprio saber -da saude da sua doente, a menina permitte-me, não é -verdade?</p> - -<p>A menina Lisa faz-se córada, hesita, mas este pedido -era-lhe feito com uma voz tão meiga, este rapaz -tem mostrado por ella tanto interesse, mostra-se tão -respeitoso, tão delicado, e depois não é um estranho -qualquer, mora no mesmo predio, e o porteiro nunca -disse d’elle senão bem; tudo isto decide, a rapariga -a pronunciar um sim, que enche de alegria o seu vizinho.</p> - -<p>Casimiro então torna a agradecer a Lisa a permissão -que ella acaba de lhe conceder, depois despede-se -e retira-se em bicos dos pés, sem fazer bulha, de modo -que a doente não accorda.</p> - -<p>O nosso mancebo, ao entrar em sua casa, sente-se -cheio de ardor para o trabalho; dispõe a sua tela, e -prepara a palheta e os pinceis. Os bons exemplos fazem -muito mais effeito que os bons conselhos, no que -ha a differença da practica á theoria; escuta-se muitas -vezes com indifferença, e esquece-se mesmo o que -se ouviu; mas nunca se olvida o que se viu. Tem razão -o proverbio que diz: Um olho vale mais que -dez ouvidos:</p> - -<p>O joven pintor aguarda impaciente a chegada de<span class="pagenum"><a id="Page_95"></a>[95]</span> -Rouflard para se pôr ao trabalho; mas passa-se o -tempo e o modelo não apparece. Casimiro começa a -pensar que fez mal em pagar adiantado ao inquilino -da agua-furtada, que é capaz de gastar tudo quanto -recebeu, antes de pensar em cumprir a sua promessa.</p> - -<p>Mas não tarda que se ouça um grande arruido de -vozes; grita-se, ralha-se no patamar, e a voz de Rouflard -cobre muitas vezes todas as outras. Casimiro -quer saber o que se passa, corre a abrir a porta e vê -no seu patamar a familia Proh á briga com o seu futuro -modelo.</p> - -<p>O sr. Proh e sua mulher parecem muito exaltados; -Rouflard está apenas um pouco «electrizado...»</p> - -<p>—Sim, senhor, grita o sr. Proh, que tem effectivamente -alguma similhança com um chimpanzé; eu tinha -direito para o chamar a uma policia correccional -pelo que o senhor escreveu por cima da minha porta...</p> - -<p>—Ah! ah! ah! o senhor faz-me rir com a sua policia -correccional, faça-me ir ao tribunal, isso ha de divertir-me...</p> - -<p>—Pelo menos ha de ir á presença do juiz de paz! -diz Celeste Proh, porque o senhor insultou-me, chamando-me -sr.ª <i>Profanée</i>!...</p> - -<p>—Insultei-a! com a breca! a senhora é difficil de -contentar! comparo-a com uma flor. Quando uma flor -está meio murcha, diz-se que está <i>fanée</i>... concedo-lhe -que é uma rosa <i>fanée</i>... e zanga-se com isso... eu -podia-lhe ter posto: a sr.ª <i>Probléme</i>... a sr.ª <i>Profile</i>... -um reles algodão...</p> - -<p>—Cale a bocca, insolente! meu vizinho, faço-o juiz -d’esta questão: o senhor leu sem duvida o que este -homem tinha escripto com giz por cima da nossa -porta?...</p> - -<p>—Não, minha senhora, não reparei...</p> - -<p>O rapazito põe-se a gritar:</p> - -<p>—Era: A menina <i>Pronobis</i>, a sr.ª <i>Profanée</i>...</p> - -<p>—Cale-se, Affonsinho, não é preciso repetir essas -coisas feias, visto que o nosso vizinho não as leu...</p> - -<p>—O sr. <i>Professe</i>! eu sou o menino <i>Propice</i>...</p> - -<p>—Cale a bocca. Fonfonso!... vá já para casa...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_96"></a>[96]</span></p> - -<p>—Não quero...</p> - -<p>—E porque é que me pôz a mim o sr. <i>Professe</i>?... -O que entende por esta locução? exclama o falso chimpanzé -muito zangado.</p> - -<p>—O que entendo? oh! essa é boa! Pois não é difficil -de adivinhar! É verdade que talvez isso lhe não -aconteça já!</p> - -<p>—Senhor, hei de ter uma satisfação de todas essas -offensas!...</p> - -<p>—Quer que eu lhe dê uma satisfação? Estou prompto, -um duello! agrada-me a proposta; logo cá lhe -mandarei o meu creado, para o senhor ajustar com -elle as condições do combate, acceitarei a arma que -escolher, isso para mim é indifferente! bato-me com -tudo quanto se quer, mas o florete é a arma das pessoas -de distincção...</p> - -<p>—O que é que diz? um duello! este homem propõe-me -um duello, creio eu... que desaforo! atrever-se -a suppôr que iria medir-me com elle! tem -graça!...</p> - -<p>—Medir-se, meu caro amigo! oh! não com um metro! -o senhor é uma grande vara, e eu não tenho senão -tres pollegadas e meia, a vantagem seria toda sua! -mas Chausson, o meu antigo <i>groom</i>, nos emprestará -duas espadas de guarda nacional, ou dois páus de -vassoura, á sua escolha. Convem-lhe isto, sr. <i>Pro... -rata</i>?</p> - -<p>—Sr. Casimiro, peço-lhe que diga a este homem -que se cale, aliás não respondo pelo que acontecerá...</p> - -<p>—Não te faças fanfarrão, <i>Professeur</i>! olha que te -vou á figura...</p> - -<p>—Sr. Rouflard, vê-se perfeitamente que almoçou -bem de mais, não é isso que me tinha promettido. -Esquece-se de que tem de vir a minha casa servir-me -de modêlo, e que estou á sua espera?...</p> - -<p>—Ah! é verdade, tem razão, desculpe, meu pintor, -eu ia a sua casa, para que me tomou esta gente o -caminho?...</p> - -<p>—Sr. Proh, e minha senhora, peço-lhes que não -tomem a sério os gracejos de máu gosto que este<span class="pagenum"><a id="Page_97"></a>[97]</span> -homem se atreveu a proferir, elle bebe de mais algumas -vezes para esquecer a sua miseria, devemos ser -indulgentes com os desgraçados, prometto-lhes que -não tornará mais!...</p> - -<p>—Ah! sr. Casimiro, é só em attenção ao senhor!</p> - -<p>—Vamos, Rouflard, vamos para o nosso trabalho...</p> - -<p>—Já vou, meu Miguel Angelo, meu Raphael. Familia -Proh... tornaremos a ver-nos...</p> - -<p>—Venha, Rouflard, venha d’ahi...</p> - -<p>—Vamos lá fazer de modelo <i>Pro Deo e pro patria</i>!... -É bonito isto! <i>Pro-deo</i>...</p> - -<p>Casimiro faz entrar o modelo em sua casa, e a familia -Proh retira-se tambem do patamar, depois de -ter tido o cuidado de apagar o que restava de giz por -cima da porta.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="IX">IX<br /> -<span class="smaller">Uma colhér de prata</span></h2> - -</div> - -<p>Não é sem custo que o joven artista consegue do -seu modelo que se deixe pôr em posição, e principalmente -que se não mecha depois de adoptada emfim a -sua attitude. A final Rouflard aquieta-se; demais, -Casimiro permitte-lhe conversar e elle usa da permissão. -O antigo seductor tem-se feito muito loquaz -com a edade; gosta de falar dos seus triumphos passados -e enfeita as suas recordações de reflexões que -são ás vezes picantes. Rouflard não é falto de espirito; -este homem possuia tudo o que é preciso para fazer -caminho no mundo, e foram todas as suas vantagens -que o perderam.</p> - -<p>Casimiro ouve o seu modelo contar-lhe os seus -triumphos com as damas, mas em breve conduz a -conversação a um assumpto que o interessa mais. -É da menina do quinto andar que elle gosta muito -de ouvir falar!</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_98"></a>[98]</span></p> - -<p>—Mora ha muito tempo n’este predio sr. Rouflard?</p> - -<p>—O senhor é muito delicado em dizer morar, meu -Raphael; estar empoleirado é que devia dizer. Emfim -não importa; ha seis mezes que o occupo, aquelle buraco, -e confesso que nunca lá tive vontade de cantar: -«Como se está bem n’uma agua-furtada aos vinte -annos!...» É verdade que já não tenho vinte annos; -mas, ainda que os tivesse, não seria nunca da opinião -de Béranger. Mas isto de poetas, em o pensamento -sendo original é o sufficiente! Bem se importam elles -com a verdade!</p> - -<p>—E quando o senhor veiu morar cá para cima, já -a menina Lisa aqui habitava com a avó?</p> - -<p>—Sim, já cá estava, mas havia pouco tempo, pelo -que tenho ouvido dizer.</p> - -<p>—O senhor está no caso de saber quando ella recebe -as suas visitas.</p> - -<p>—Visitas! em casa da Lisa! oh! nunca! que eu saiba, -nunca a nossa visinha recebeu ninguem de fóra. -Só a sr.ª Proh é que lá subiu uma ou duas vezes com -o filho, para levar trabalho. O garoto não cessava de -gritar: que feio que é isto aqui! e, como queria ralar -a paciencia á pobre da avó, Lisa pôl-o fóra de casa. -Emquanto á senhora <i>Pro-tocole</i>, essa não se fartava -de dizer á rapariga: «Eu não poso pagar isto por doze -soldos, é muito caro, não dou senão dez.» E tantas -vezes o repetiu, que Lisa respondeu-lhe: «Dê a senhora -o que quizer...» Pobre pequena! regatear por dois -soldos, a quem trabalha dia e noite para sustentar a -avó! é uma acção digna da sr.ª <i>Pro-fanée</i>!...</p> - -<p>—Volte a cabeça um pouco mais para a esquerda. -Muito bem, faça por conservar essa posição...</p> - -<p>—Está satisfeito commigo?</p> - -<p>—Sim, senhor, não se põe mal... isto hade ir...</p> - -<p>—O senhor está pintando o meu retrato para o -mandar á exposição?</p> - -<p>—Talvez, se me sair bom.</p> - -<p>—Em todo o caso, ha-de-m’o dizer, não é verdade? -porque eu não desgostaria de me ir contemplar.</p> - -<p>—Sim, sim, mas ainda lá não chegámos. Sabe o sr.<span class="pagenum"><a id="Page_99"></a>[99]</span> -Rouflard quem eu estimaria bastante ter por modelo?</p> - -<p>—Ora! aposto que adivinho? é a menina Lisa que -o senhor quereria retratar!</p> - -<p>—Exactamente, teria grande prazer em reproduzir -na tela as bonitas feições d’essa interessante rapariga!</p> - -<p>—Pois bem! quem é que lh’o impede!</p> - -<p>—Perguntei á nossa visinha se consentiria em me -deixar tirar-lhe o retrato, e ella recusou-se!</p> - -<p>—Ah! recusou! Aposto que foi para não deixar a -avó sósinha tanto tempo?</p> - -<p>—Mas, como eu tinha comprehendido isso, propuz-lhe -ir eu a sua casa com os pinceis e a palheta, de -modo que poderia ella servir-me de modelo sem se -afastar um momento da sua pobre doente...</p> - -<p>—Oh! isso era bonito da sua parte! E ella ainda -recusou?</p> - -<p>—Sim, recusou sempre. Tenho dobrada pena com -essa recusa, porque a menina Lisa trabalha muito e -ganha pouco...</p> - -<p>—Acredito! sobre tudo se trabalha para a sr. -Proh...!</p> - -<p>—Emquanto que consentindo em me servir de modelo -teria ganho muito mais, e mesmo sem que isso -lhe fizesse largar o seu trabalho habitual. Ter-lhe-ia -proporcionado alguns regalos, poderia comprar para a -sua doente coisas que ella por falta de dinheiro não -lhe pode agora offerecer. Pois eu não tinha razão, -Rouflard?</p> - -<p>—Tinha cem vezes, mil vezes razão! e não sei por que -ella recusou!</p> - -<p>—É que tem medo de se comprometter; tem ouvido -dizer que as mulheres que servem de modelo aos -pintores não gozam de boa reputação.</p> - -<p>—De ordinario não são nenhumas vestaes! mas -quem necessita de trabalhar para viver, não se deve -prender com isso! A susceptibilidade de Lisa é exagerada! -Esteja descançado, meu pintor, o senhor só tem -boas intenções, só quer fazer bem á pequena, fazendo -ao mesmo tempo um bonito estudo; indo pintar em -casa d’ella deante da avó, tira todo o pretexto á<span class="pagenum"><a id="Page_100"></a>[100]</span> -maledicencia. Farei comprehender isso á minha boa -vizinha, estou convencido de que a hei-de resolver a -deixar-se retratar!</p> - -<p>—Devéras! acha que vencerá a sua resistencia?</p> - -<p>—Com toda a certeza! tenho vencido outras mais -fortes. Triumphar das mulheres era a minha profissão! -É verdade que empregava para isso meios de que -não usarei com a menina Lisa; resta-me, porém, a -minha eloquencia, e o desejo que tambem tenho de -ser util áquella que nunca me recusou um boccado -de pão. Será talvez a primeira vez que prestarei serviço -a uma mulher, isso ha de fazer-me mudar.</p> - -<p>Para primeira sessão, Casimiro não quer fatigar -muito o seu modelo, e ao cabo de duas horas, conhecendo -que Rouflard começa a sentir formigueiros nas -pernas, diz-lhe:</p> - -<p>—Basta por hoje.</p> - -<p>—Devéras! põe-me em liberdade! Pois bem! gosto -d’isso, porque principiava a sentir uma especie de -caimbras nas pernas, falta de habito, já se vê mas hei-de-me -costumar. Será preciso vir ámanhã outra vez?</p> - -<p>—De certo; assusta-o isso, por ventura?</p> - -<p>—Nada, pelo contrario, creio até que tomarei gosto -pela coisa. Ganhar dinheiro assim não custa nada. -Oh! é preciso que a nossa vizinha se preste tambem -a isto, tanto mais que poderia assim dar grande -prazer á avó, estou mesmo espantado de que ella não -tenha pensado em tal.</p> - -<p>—Como é isso? explique-se melhor, Rouflard; em -que é que a menina Lisa daria grande prazer á sua -pobre paralytica?</p> - -<p>—Vae immediatamente perceber. Conversando algumas -vezes commigo, porque eu gosto muito de -conversar, sobretudo com as raparigas bonitas, é um -resto da minha juventude... <i>desinit in piscem</i>... oh! -eu tambem sabia latim! mas, com as mulheres, esquecia-me -d’elle, ellas não gostam de linguas mortas!</p> - -<p>—Voltemos a Lisa.</p> - -<p>—Tem razão, eu poderia ter sido um bello advogado, -porque trato os pormenores com muito cuidado. Ora,<span class="pagenum"><a id="Page_101"></a>[101]</span> -ia eu dizendo: conversando, a minha vizinha tem-me -dito algumas vezes: «Ah! se eu podesse ajuntar algumas -economias. Ha uma coisa que daria grande prazer -a minha avó, e que eu estimaria muito poder-lhe -offerecer, mas não o posso conseguir!» «O que é então, -lhe disse eu, que a sua avó deseja tanto?» «É, me -respondeu ella, uma colhér de prata; porque ella teve -uma muito bonita n’outro tempo, em vida da minha -ama, porém depois da sua morte, quando estive muito -tempo sem achar trabalho, foi-nos preciso pouco a -pouco vender o que possuiamos, e a colhér de prata -levou esse destino. Hoje conseguimos viver, mas não -posso ajuntar dinheiro para comprar outra; e ainda -menos agora, que o medico receita algumas vezes remedios -que são muito caros! Mas a saude está primeiro -que tudo, vale mais que uma colhér de prata!...»</p> - -<p>—Tem razão, Rouflard, essa menina, servindo-me -de modelo, teria ganho em breve com que comprar o -que deseja offerecer á avó.</p> - -<p>—A não ser que o medico receite ainda algum -remedio ruinoso; então, lá se ia embora todo o dinheiro! -porque Lisa não regateia quando se tracta -de dar allivio á pobre enferma. Mas é o mesmo, eu -lhe falarei. A sessão ámanhã é á mesma hora?</p> - -<p>—Mais cedo, ás dez horas em ponto.</p> - -<p>—Á hora que quizer; eu sou livre como o besouro! -Ah! permitte-me que veja o que o senhor fez?</p> - -<p>—Sim, pode vêr.</p> - -<p>—Espere, isto já não está mau, eu não sei pintar, mas -tive a reputação de entender de quadros e, no tempo -das minhas fortunas, comprei por vezes alguns quadrosinhos -<i>de genero</i>... e ganhei sempre n’elles.</p> - -<p>—Pois então, olhe para essa vistasinha de Bougival, -que ainda não acabei...</p> - -<p>—Vejamos; oh! é bonita, é aprazivel, tem vida! -O senhor é colorista, o que nem todos os pintores são, -mesmo alguns que teem entretanto muito talento. -Isto que lhe digo, não é para lhe fazer um elogio -banal, o senhor tem o sentimente da côr... tracte -bem este quadrosinho. Olhe, eu n’outro tempo teria<span class="pagenum"><a id="Page_102"></a>[102]</span> -pago isto por trezentos francos, e ainda havia de -ganhar...</p> - -<p>—Bom, visto que esta paizagem não lhe parece de -todo má, vou acabal-a. Eu faria talvez melhor o quadro -<i>de genero</i> que o retrato, não importa, tentarei as -duas coisas. Até ámanhã, Rouflard.</p> - -<p>—Sim, senhor, e não almoçarei senão depois da -sessão, para me collocar em posição com mais dignidade.</p> - -<p>Assim que o modelo se retira, Casimiro deixa a -cabeça de Rouflard e deita-se á paizagem; trabalha -com um ardor de que elle proprio se espanta, mas -toma gosto pela sua obra, procura-lhe cuidadosamente -os defeitos, aperfeiçôa-lhe muitas partes, e o -tempo passa depressa quando a gente se entrega a -um trabalho que agrada. Casimiro ouve dar quatro -horas, e diz comsigo:</p> - -<p>—Não é possivel que já seja tão tarde. Ah! Santo -Deus! e eu que devia ir buscar Ambrosina ás tres -horas, para ir passear com ella ao bosque! mais uma -scena que terei de aturar! Porque deixei eu esta mulher -dispôr assim do meu tempo? porque? Porque -sou um preguiçoso, um cobarde, porque a menor occupação -me mettia medo, e hoje tenho infinitamente -mais prazer em trabalhar n’este quadro do que em -ir passear ao bosque. Ah! é que penso n’essa menina -Lisa que não procura nenhuma distracção, que trabalha -constantemente n’um quarto onde não tem por -companhia senão uma velha paralytica, e isto de ter -assim vivido na inacção envergonha-me. Tenho ainda -deante dos olhos a situação de Rouflard. Este homem, -que foi tão festejado, tão amimado pelas mulheres, -viveu á custa d’ellas e eu vejo onde isso conduz, o seu -exemplo não será perdido para mim. A sr.ª Montémolly -pode zangar-se quando quizer, mas de hoje em -deante hei-de trabalhar; estou resolvido a isso, no -entanto, como é preciso ser sempre delicado com as -senhoras, vamos ter com ella, senão seria capaz de -vir aqui para saber o que estou fazendo.</p> - -<p>Casimiro dirige-se portanto a casa da formosa<span class="pagenum"><a id="Page_103"></a>[103]</span> -Ambrosina. Esta dama está de muito máu humor; -acha-se vestida e prompta ha mais de uma hora, e não -vê apparecer o amante. Passeava com impaciencia -pela sala, olhava a cada instante para o relogio, chamava -a creada e dizia-lhe que fosse perguntar que horas -eram a qualquer parte, exclamando:</p> - -<p>—Estou certa de que este relogio anda adeantado, -deve regular mal; Adriana, vá saber que horas deram -com exactidão.</p> - -<p>Adriana vae informar-se ao quarto do porteiro, e -volta dizendo:</p> - -<p>—Minha senhora, o seu relogio não está adeantado, -pelo contrario, anda atrazado seis minutos.</p> - -<p>—Você é uma tola! exclama Ambrosina, rasgando -as luvas com colera, de certo viu mal...</p> - -<p>—Não, minha senhora, eu...</p> - -<p>—Basta! não quero que sejam perto de cinco horas, -é impossivel!...</p> - -<p>—Ah! se a senhora quer que não seja mais de meio -dia, isso para mim é o mesmo.</p> - -<p>—Cale o bico! parece-me que tem a confiança de -gracejar commigo! se diz mais uma palavra, ponho-a -na rua!...</p> - -<p>Adriana retira-se, dizendo comsigo:</p> - -<p>—É que o gajo ferrou-lhe alguma peça! Ainda -agora a procissão vae na praça, minha rica!</p> - -<p>Chega finalmente Casimiro. Esperando uma scena -de ralhos, vem revestido de toda a sua paciencia; -demais, está decidido a persistir na resolução que -tomou de mudar de vida.</p> - -<p>—Ah! chegou emfim, diz Ambrosina mordendo os -labios com despeito. Sabe que horas são?</p> - -<p>—Cinco horas menos vinte minutos.</p> - -<p>—E a que horas devia o senhor vir buscar-me?...</p> - -<p>—Um pouco mais cedo, é verdade; mas puz-me a -pintar e o tempo passou mais depressa do que eu -imaginava.</p> - -<p>—De certo que não presume que eu me satisfaço -com similhantes razões; deveria, pelo menos, ter inventado -outras, dizer-me ainda que estava á espera<span class="pagenum"><a id="Page_104"></a>[104]</span> -do seu amigo Miflaud, que foi elle que o demorou...</p> - -<p>—Disse-lhe a verdade, minha senhora, não tem razão -em não me acreditar. Estive trabalhando.</p> - -<p>—Esteve trabalhando! e desde quando, se me faz -favor, desde quando lhe veio esse bello amor pelo trabalho, -que eu lhe não conhecia?</p> - -<p>—Estou admirado de que a senhora me diga isso, -porque, desde algum tempo a esta parte, temos tido -bastantes conversações a tal respeito. Sim, minha -senhora, puz-me ao trabalho, e d’aqui em deante -conto empregar assim uma parte do meu tempo, a -minha resolução está tomada e é inquebrantavel, agora -não mudarei. Estou envergonhado da vida que tenho -levado até hoje, e é preciso que isto acabe. Bastantes -vezes lhe tenho manifestado o desejo que sentia -de achar um emprego. Em vez de me confirmar -n’este designio, a senhora tem sempre procurado fazer-me -esquecer do que a minha posição tinha de -censuravel. Não lhe faço uma arguição. Deus me livre -de tal! cada um ama a seu modo: uns sómente -pelo prazer de amar; outros pela felicidade que experimentam -em ouvir fazer o elogio do objecto da -sua escolha. Eu possuo só um recurso, a pintura. -Posso, á força de estudo, de trabalho, adquirir algum -talento. É o que vou tractar de fazer; não ve o em -que isso me poderia malquistar com a senhora, porque -lhe asseguro que os prazeres parecem mais doces, -quando vêm depois das horas de trabalho.</p> - -<p>Casimiro disse tudo isto com um ar tão decidido, -n’um tom tão firme, tão convencido, que a sr.ª Montémolly -comprehende que d’esta vez não triumphará -da nova resolução do seu amante. A colera desappareceu -então como por encanto. É que ella conhece -Casimiro sufficientemente para perceber que perderia -muito no conceito d’elle, procurando ainda estorvar-lhe -os projectos. Em vez d’isso, faz esforços para retomar -o seu ar gracioso, e toma-lhe o braço, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Perdôe-me, meu amigo, eu não tinha razão; não -o censurarei mais por trabalhar. Mas isso ha-de impedir-nos<span class="pagenum"><a id="Page_105"></a>[105]</span> -por ventura de irmos ainda passear algumas -vezes?</p> - -<p>—Ah! estou ás suas ordens e encantado de a achar -tão razoavel...</p> - -<p>—Pois bem! então, vamos dar um passeio até ao -bosque, e á volta jantaremos no Ledoyen...</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="X">X<br /> -<span class="smaller">Ainda as creadas</span></h2> - -</div> - -<p>São decorridos quinze dias. Casimiro trabalha com -assiduidade no seu quadrosinho de cavallete e da cabeça -de Rouflard; este conserva a posição muito regularmente, -sobretudo desde que dá as sessões antes -do almoço. Mas não conseguiu ainda vencer a resistencia -de Lisa, que não quer deixar tirar o retrato. -Isto penaliza o joven pintor, que subiu muitas vezes -a casa da sua linda vizinha do quinto andar; mas não -se demorou muito lá, porque ella parece sempre temer -que a vista do rapaz contraríe sua avó, e é mostrando-se -bem discreto que Casimiro espera captar a -confiança de Lisa e triumphar da sua recusa.</p> - -<p>O joven pintor continúa a dar lições de desenho á -menina Proh, que não faz nenhum progresso e passa -uma semana com a mesma orelha. Começou tambem -o retrato da sr.ª Proh, mas pouco trabalha n’elle, e -prefere muito mais a cabeça de Rouflard. Emfim, -Casimiro acabou a sua pequena paizagem, e mandou-a -para uma loja de quadros, deante da qual param de -boamente os amadores, porque se expõem alli a miude -bonitas coisas e raras vezes má pintura.</p> - -<p>Deve-se bem suppôr que a ciumenta Ambrosina, -não acceitou sem desgosto, sem receio, o novo modo -de viver que o seu amante acaba de adoptar; mas -comprehendeu que era preciso fazer algumas concessões -para não perder inteiramente o seu imperio. Vê<span class="pagenum"><a id="Page_106"></a>[106]</span> -Casimiro muitas vezes; mas em vez de passar em casa -d’ella uma parte das suas manhãs e das suas tardes, -a conversar como costumava, o rapaz almoça agora -em sua casa, e trabalha algumas vezes até ás cinco -horas da tarde; quando se sente perfeitamente bem, -quando está contente de si, custa-lhe muito largar -os seus pinceis, e fica muito admirado de vêr com -que rapidez se passa um dia todo consagrado ao trabalho, -elle que outr’ora achava o tempo bem comprido -e não sabia como empregal-o para evitar o -aborrecimento.</p> - -<p>Ambrosina, que quer certificar-se de que Casimiro -não a engana, chega muitas vezes a casa d’elle sem -o prevenir da sua visita. Acha-o trabalhando com o -seu modelo, e não é Rouflard que pode inquietal-a; -encontrou lá tambem uma vez a sr.ª Proh, que dava -uma sessão ao seu vizinho, mas a esposa do antigo -professor não podia despertar-lhe ciume. Não tinha -pois nenhum motivo real para se affligir, e todavia -não estava socegada; parecia-lhe que o amante não -era já o mesmo com ella, que com o amor inteiramente -novo que lhe viera pelo estudo, tinha perdido -muito d’aquelle que n’outro tempo lhe dedicára. Não -sabia bem o que se passava no coração de Casimiro, -mas adivinhava que havia agora entre ambos alguma -coisa que devia destruir a sua felicidade. As mulheres -teem uma segunda vista, que lhes faz presentir -tudo o que tem relação com o seu amor.</p> - -<p>Isto devia necessariamente produzir um augmento -de crises nervosas, e a menina Adriana era muito a -miude enviada á pharmacia que já tivemos o prazer -de fazer conhecer aos nossos leitores.</p> - -<p>Correndo alli um dia (sabemos já como Adriana -corre, que pára a conversar com todos os conhecimentos -que encontra,) a gorda creada acha-se outra -vez cara a cara com a sua amiga, a menina Rosa, -aquella que tem um tão bello commodo em casa d’um -homem só, que lhe faz presentes, e que tomou um -creado para que ella se não cance muito com o trabalho -domestico.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_107"></a>[107]</span></p> - -<p>—Bons dias, Adriana.</p> - -<p>—Ah! és tu, Rosa! onde vaes d’esse modo?</p> - -<p>—Vou alli á pastelaria encommendar umas empadas, -que as fazem deliciosas!...</p> - -<p>—Ah! bem sei, é tambem onde nós compramos, é -a melhor do bairro.</p> - -<p>—Ainda estás em casa da tal senhora nervosa?</p> - -<p>—Oh! não me fales n’isso! desde algum tempo a -esta parte, está constantemente de máu humor! anda -furiosa! porque os amores já não correm muito -bem! Eu bem vejo, o tal sujeito já apparece menos -vezes, por mais que a senhora se apure no vestuario, -por mais que se faça bonita, estou convencida de que -elle tem vontade de a deixar.</p> - -<p>—Ora! e ella arranja logo outro!</p> - -<p>—Pensas que la em casa se faz isso com essa facilidade! -Nós adoramos o nosso pintor, minha rica, seriamos -capazes do nos deixarmos depennar por elle!</p> - -<p>—Ah! é um pintor, algum pobre pintamonos?...</p> - -<p>—Parece que desde certo tempo para cá vae adquiríndo -talento, está para fazer o retrato da senhora, é -ella que o quer, é preciso ver se elle me faz tambem -o meu em quanto está de vez. E tu, Rosa, andas muito -<i>chic</i>, pareces a mulher d’um ourives! Continúas em -casa do tal homem só?</p> - -<p>—Em casa do sr. Loursain, de certo minha rica; -sou mais sua dama de companhia que sua creada; não -faz nada sem me ouvir, hoje fui eu que appeteci as -empadas, disse-me logo: «Vae encommendal-as...»</p> - -<p>—Ah! elle tracta-te por tu!...</p> - -<p>—Não... enganei-me... elle disse-me: «Vá, Rosa, -encommende-as a seu gosto, e traga tambem pasteis -de nata.»</p> - -<p>—Caspité! és tractada como uma princeza!</p> - -<p>—O senhor não faz nada sem me consultar. Quando -os seus amigos me fazem zangar, digo-lhe a elle: -«O seu amigo fulano deu-me hontem um beliscão em -certo sitio...» Oh! o tal amigo fica pronto, é recebido -de tal maneira que nunca mais volta.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_108"></a>[108]</span></p> - -<p>—Oh! isso é bem armado, é um meio para te veres -livre das pessoas que te aborrecem.</p> - -<p>—É uma astucia velha que nunca erra o seu effeito. -Mas imagina que me tinha vindo á idéa aquillo -que me disseste o outro dia; uma d’estas tardes, depois -de jantar, á sobremesa, digo ao patrão, que estava -mais terno que de costume: «Senhor, se tem -vontade de casar commigo, não se constranja, eu -não desejo outra coisa.» A isto o patrão desata a rir, -como um perdido! Fez-me zanga vel-o rir assim, e -digo-lhe: «Então que motivo ha para rir do que lhe -proponho?» Elle ri ainda mais, e depois responde-me: -«Que diabo de idéa se te meteu na cabeça! e que tolice -ires pensar no casamento.» «Mas, senhor, tornei -eu, não acho que o casamento seja uma tolice.» «Pois -olha que é, e bem grande; não, minha rica, não casarei -comtigo, não farei similhante disparate! mas ainda -mesmo que tivesse vontade de o fazer, não me -seria isso possivel, pois que já sou casado.»</p> - -<p>«Bem deves fazer idéa que fiquei embaçada ao ouvir -isto «Como! pois o senhor é casado?» exclamei eu -«e sua mulher está viva?» «Sim Rosa, minha mulher -está viva, bem viva, e não creio que tenha vontade -de morrer, porque é muito mais moça do que eu.» -«E então porque não está o senhor com ella? para -que vive sem mais nem mais como se fosse solteiro? -É enganar a gente; isso dá ás raparigas solteiras -certas idéas a seu respeito: póde a gente illudir-se -com o senhor, pensando que é para bom fim, e depois -era uma vez!... Isso é desagradavel...» O patrão -fez então uma cara de mau humor, e respondeu-me:</p> - -<p>«—Não tenho que lhe dar satisfações; se me separei -de minha mulher, é porque provavelmente isso -me conveiu, não é negocio da sua conta. De hoje -para o futuro, ha de fazer favor de me não tornar -mais a falar a tal respeito, porque isto desagrada-me.»</p> - -<p>«Ora, bem deves suppôr que não foi preciso dizer-m’o -duas vezes; vi que tinha ido longe de mais, e<span class="pagenum"><a id="Page_109"></a>[109]</span> -desde então não tenho falado mais em tal. Mas é o -mesmo, desejava bem conhecer a mulher do sr. Loursain, -e saber o motivo por que elle a deixou.</p> - -<p>—Ora! tem muito que saber! é que lhe fez falcatrua, -e esse senhor não gostou; ha homens tão ridiculos. -Valha-me Deus! e eu sem ir buscar o remedio -á botica! Adeus, Rosa, até mais ver.</p> - -<p>—E o teu moço de quem gostavas tanto?</p> - -<p>—Ah! isso já acabou! agora é outro! eu nunca -me prendo, gosto da variedade.</p> - -<p>Quando a menina Adriana volta á presença de sua -ama, esta ralha muito com ella por se ter demorado -tanto tempo fóra; a creadinha porém não falta a responder-lhe:</p> - -<p>—Não foi por minha culpa, minha senhora, é que -encontrei uma amiga, uma patricia, que não via ha -muito tempo, então estivemos a conversar, perguntei-lhe -pela familia...</p> - -<p>—Sempre desejava saber que interesse podia ter -n’isso...</p> - -<p>—É que a Rosa tem um irmão que esteve quasi -á morte por minha causa.</p> - -<p>—Por amor?</p> - -<p>—Não, minha senhora; mas querendo levar-me -muito longe nos braços, á força de pulso, ficou corcovado.</p> - -<p>—E o que faz a sua amiga?</p> - -<p>—Oh! tem um bello commodo, em casa d’um homem -só, onde ella faz tudo quanto quer; manda fazer -empadas quando lhe dá na vontade... e pasteis -de nata, emfim, grandes banquetes.</p> - -<p>—É então rico, esse senhor?</p> - -<p>—Sim, minha senhora. Oh! parece que o sr. Loursain -é riquissimo!</p> - -<p>Ao nome de Loursain, Ambrosina sente uma viva -commoção; apressa-se porém a dominal-a replicando:</p> - -<p>—Como se chama esse senhor em casa de quem -está a sua amiga?</p> - -<p>—Loursain. A senhora conhece-o?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_110"></a>[110]</span></p> - -<p>—Não, parecia-me ter ouvido outro nome. E esse -sujeito é... viuvo?</p> - -<p>—Quer dizer, vive como se o fosse; mas na realidade -não o é. Tem ainda a mulher viva. Eu soube -tudo isto pela Rosa, de quem elle está loucamente -namorado, e com quem estimaria muito casar; mas -elle disse-lhe em confidencia: «Eu não posso casar -comtigo, Rosa, e tenho muita pena d’isso, porque sou -casado e minha mulher ainda é viva, infelizmente; -mas, se ella morrer, podes estar descançada, tens a -certeza de occupar o seu logar... o teu futuro está -seguro.» O que é pena, é que parece que a tal senhora -é muito mais moça que o marido; mas, emfim, -em todas as edades se morre, não é verdade, minha -senhora?</p> - -<p>—Certamente. E o amo da sua amiga mora perto -d’aqui?</p> - -<p>—Sim, minha senhora, na rua Béranger, aquella -que faz continuação á nossa. Parece que aquelle senhor -tem uma bella casa, n’um segundo andar, do lado -da rua, e mobilada no grande <i>chic</i>. O quarto da -Rosa é no mesmo pavimento, o que é muito commodo, -porque... a senhora bem entende... a Rosa não m’o -quiz confessar, mas é como se m’o tivesse dito, demais, -ella descuidou-se commigo... o amo trata-a por tu, e...</p> - -<p>—Basta, basta, não quero saber dos negocios da -menina Rosa; mas, para a outra vez, tracte de conversar -menos tempo quando eu a mandar a algum recado.</p> - -<p>Deixada só, Ambrosina fica por largo espaço engolphada -nas suas reflexões, das quaes sae por fim, dizendo -de si para si:</p> - -<p>—Loursain mora perto de mim, e eu não desejo -encontral-o, é preciso mudar-me.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_111"></a>[111]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="XI">XI<br /> -<span class="smaller">O vinho quinado</span></h2> - -</div> - -<p>Um dia de manhã, Casimiro fica agradavelmente -surprehendido ao receber a visita do lojista em casa -de quem expôz o seu quadrosinho, e que se approxima -d’elle dizendo:</p> - -<p>—Temos comprador para o seu quadro por quatrocentos -e cincoenta francos, quer dal-o?</p> - -<p>O joven pintor receia ter ouvido mal, abre muito -os olhos para se certificar de que é effectivamente o -seu negociante de quadros que está deante d’elle, e -exclama:</p> - -<p>—Quatrocentos e cincoenta francos, diz o senhor? -é pela minha vista de Bougival que lhe offerecem esse -dinheiro?</p> - -<p>—Sim, se lhe convem, é negocio feito, e pode logo -passar por minha casa para receber o dinheiro.</p> - -<p>—Se me convem! isso deixa-me encantado, enche-me -de alegria, nunca teria ousado pedir tanto.</p> - -<p>—Eu tinha pedido quinhentos francos, e estou certo -de que, se o senhor quizesse esperar, acabariamos por -achar quem os desse.</p> - -<p>—Nada, não, não quero esperar, parece-me que fica -muito bem pago, demais, visto que se acha valor aos -meus quadros, pintarei outros.</p> - -<p>—E fará muito bem. Trabalhe, sr. Casimiro, dê-se -antes áquelle genero que a outro qualquer. Creio que -lhe será isso muito mais rendoso que o retrato. O senhor -é colorista, o que é um dom da natureza; conheço -pintores de talento que não teem o menor sentimento -da côr; teem uma figura para fazer, empregam a -primeira coisa que acham no pincel; está perfeitamente -desenhada, é espirituosa de attitude, de maneira, -de idéas. Reina porém em tudo aquillo um tom -pardo-escuro que tira ao quadro toda a graça que deveria<span class="pagenum"><a id="Page_112"></a>[112]</span> -ter. A esses, não peçam nunca luz, claridade, sol; -é-lhes impossivel metterem d’isso nos seus quadros. -Trabalhe, que nós o auxiliaremos.</p> - -<p>Assim que o lojista se retira, Casimiro põe-se a -pular e a dansar no quarto. Não é a idéa de que vae -receber quatrocentos e cincoenta francos que o torna -tão alegre; graças á generosidade da sua amante, -tem tido muitas vezes quantias maiores á sua disposição; -mas é o pensamento de que esse dinheiro é -o fructo do seu trabalho, que elle soube ganhar por -si mesmo, e que quando o receber, poderá mettel-o -na algibeira sem córar.</p> - -<p>—Nada faltaria agora á sua felicidade, se a sua vizinha -do quinto andar consentisse em deixal-o fazer-lhe -o retrato; não conseguiu ainda vencer a sua resistencia, -e comtudo Rouflard disse-lhe no dia anterior:</p> - -<p>—Está-me parecendo que a menina Lisa não tardará -a deixar-se retratar, porque o medico que tracta da -sua velha doente tem vindo vel-as estes dias; receitou -uma nova beberagem, creio que é vinho quinado. -Seria preciso que a boa da velha o tomasse todos os -dias, e, com a breca! aquelle vinho é caro; as garrafas -são muito pequenas despejam-se em dois goles. A -pequena levanta-se ainda mais cedo, véla ainda até -mais tarde para arranjar o vinho quinado; mas creio -que lhe custa a chegar. Não faria ella cem vezes melhor -em se deixar tomar por modelo? Ainda hontem -lh’o disse. Suba lá o senhor, é agora a occasião, eu -conheço as mulheres, tanto quanto a gente as pode -conhecer; mas olhe, com ellas, o que é preciso é -aproveitar a occasião.</p> - -<p>Casimiro tracta logo de pôr em practica o conselho -de Rouflard, e sobe de novo a casa da menina -Lisa. Todas as vezes que se dirige alli, sente uma -viva commoção e o seu coração bate mais apressado. -Comtudo, tem dito muitas vezes a si proprio que -não devia pensar em fazer a côrte a Lisa; que aquella -pequena era honesta, e que da parte d’elle seria -muito mal feito procurar seduzil-a, perturbar-lhe o -socego e fazer-lhe deixar a verêda da honra, na qual,<span class="pagenum"><a id="Page_113"></a>[113]</span> -como diz o poeta: é difficil entrar uma vez que se -esteja fóra.</p> - -<p>Casimiro disse comsigo tudo isto e muitas outras -coisas, o que não impede que, ao olharem para a -linda cara d’aquella menina, os seus olhos não tenham -uma expressão que não é de modo algum a da indifferença, -e que a sua voz se não faça mais suave e -mais insinuante.</p> - -<p>Pela sua parte, Lisa sente-se inteiramente outra -desde que travou conhecimento com o seu vizinho -do terceiro andar. Tem-se mostrado para com ella -tão delicado, e sobretudo tão respeitoso, que a rapariga -pergunta a si mesma por que receia conceder-lhe -o favor que elle solicita. Mas pergunta isto muitas -vezes de mais; pensa em Casimiro todo o dia, -não pode já reprimir-se de o fazer, e, apezar de toda -a sua innocencia, uma donzella de dezoito annos -adivinha perfeitamente que é muito perigoso estar -sempre a pensar n’um rapaz, occupar-se constantemente -d’elle; e, ainda que esse rapaz lhe não tenha -dito uma unica palavra de amor, ainda que não a -veja senão deante de sua avó, a donzella deve conservar-se -acautelada contra o sentimento que se lhe -introduz na alma, e sobretudo não se expôr a amar -alguem que não pensa n’ella senão para lhe tirar o -retrato.</p> - -<p>É com receio de tomar demasiado gosto em se -achar só com o seu joven vizinho, que Lisa recusa -sempre deixar-se retratar por elle.</p> - -<p>Mas no meio de tudo isto, chegou aquella receita -de quina em vinho de Malaga. Os malditos medicos -não se importam com as posses dos seus doentes; receitam -o que é favoravel ao restabelecimento da saude, -e tanto peior para o enfermo se não pode comprar -o remedio; elles cumpriram a sua missão.</p> - -<p>Lisa havia comprado uma garrafinha do vinho receitado; -fizera-o beber á sua velha doente, a quem isso -havia dado grandes melhoras. Mas essa garrafinha -fôra bebida em sete dias, e ainda se não tinha comprado -outra.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_114"></a>[114]</span></p> - -<p>Este maldito vinho quinado preoccupava agora -Lisa quasi tanto como Casimiro, e, como na vida -todas as coisas têm o seu ricochete, ella não podia -deixar de dizer de si para para si:</p> - -<p>—Se eu me resolvesse a servir de modelo, bem depressa -teria vinho quinado.</p> - -<p>Rouflard não se enganara pois nas suas conjecturas, -e, com effeito, ao vêr entrar Casimiro no seu -aposente, Lisa experimenta um vivo sentimento de -prazer que ella dissimula o melhor que pode, cumprimentando -o seu vizinho com ar amavel e indicando-lhe -uma cadeira, porque não pode largar a obra -que está a acabar.</p> - -<p>—Bons dias, minha vizinha, diz Casimiro; aqui tem -um homem extremamente feliz.</p> - -<p>—Realmente, estimo muito; o que lhe succedeu -então para lhe causar tanta alegria?</p> - -<p>O que me acconteceu? Ah! a menina não o comprehende -talvez bem, porque é preciso ser artista para -conhecer estas alegrias! Imagine um auctor que obtem -o seu primeiro triumpho no theatro, o compositor -que ouve cantar na rua a musica que fez publicar, -emfim o pintor que vende o seu primeiro quadro, -eis os homens mais felizes da terra! pois bem! eu -sou d’esse numero... acabo de vender o meu primeiro -quadro.</p> - -<p>—O seu primeiro? como, pois ainda não tinha feito -nenhum?</p> - -<p>Esta reflexão tão natural de Lisa faz córar Casimiro, -que comprehende que a sua joven vizinha deve -perguntar lá de si para si em que tem elle empregado -o seu tempo, para não ter feito, na sua edade, senão -um quadro. O rapaz tracta de sair do embaraço, -respondendo:</p> - -<p>—Não menina, é verdade; comecei muito tarde a -pintar a paizagem, eu preferi o retrato, agradava-me -isso mais.</p> - -<p>—E agora renuncia o retrato para se dar á paizagem?</p> - -<p>—Oh! não! renunciar ao retrato! nunca! uma coisa<span class="pagenum"><a id="Page_115"></a>[115]</span> -não impede a outra! Mas eu estava tão contente esta -manhã com a venda do meu quadro, que não pude -resistir ao desejo de lhe dar parte do meu bom succedimento... -e depois, quando se está em maré de -felicidade, dizem que sempre nos chegam muitas; -então, disse commigo: Vamos vêr a minha linda vizinha; -quem sabe se ella hoje quererá tambem consentir -em deixar-se retratar, se não abrandarei a sua -resistencia!...</p> - -<p>—Isso fazia-o então ainda muito feliz, se eu lhe -deixasse fazer o meu retrato?</p> - -<p>—Ah! seria o auge da minha felicidade? Empregaria -todos os meus cuidados, todo o meu talento -n’esse trabalho! e estou bem certo de que havia de -ser bem succedido, que faria uma cabeça lindissima.</p> - -<p>—Mas esse retrato... vendia-o depois?</p> - -<p>—Vender o seu retrato! oh! nunca, minha vizinha, -nunca! conserval-o-hia toda a minha vida... mas faria -uma copia para lh’a offerecer, ou, se a menina o preferisse, -dar-lhe-hia o original e ficaria eu só com a -copia.</p> - -<p>—Mas o que fará o senhor do meu retrato em sua -casa! ha de incommodal-o...</p> - -<p>—Incommodar-me! pelo contrario, será o mais bello -ornato do meu <i>atelier</i>, olharei para elle todos os -dias, não me cansarei nunca de o contemplar. Ah! -minha vizinha, consinta, por obsequio, diga que consente.</p> - -<p>Lisa ainda hesitava, porque os olhos de Casimiro -tinham tomado uma expressão que lhe causava uma -commoção vivissima; mas n’este momento a enferma, -que estava adormecida, accorda, dizendo:</p> - -<p>—Lisa, dá-me uma gota d’esse vinho que me faz -tanto bem.</p> - -<p>—Sim, avósinha, d’aqui a um instante, já o não ha -em casa, eu o vou buscar...</p> - -<p>Depois, voltando-se para Casimiro, Lisa diz-lhe em -voz baixa:</p> - -<p>—Pois bem! consinto, começaremos ámanhã.</p> - -<p>—Oh! como a menina é cheia de bondade! e quão<span class="pagenum"><a id="Page_116"></a>[116]</span> -feliz eu sou! Corro então á pharmacia a comprar-lhe -o vinho quinado.</p> - -<p>—Não, isso não, irei eu mesma.</p> - -<p>—A menina não pode deixar a sua doente, permitta-me -fazer-lhe este pequeno serviço, eu sei que é -vinho de Malaga.</p> - -<p>—Oh! sr. Casimiro... por quem é...</p> - -<p>—Deixe-me por minha vez ser-lhe agradavel, a menina -consente em me servir de modelo... estou tão -contente! Corro a buscar o vinho, volto com elle n’um -momento.</p> - -<p>E sem attender mais á rapariga, Casimiro sae apressadamente; -desce a escada a quatro e quatro, por -pouco que não deita ao chão o menino Proh que procurava -pôr-se a cavallo na balaustrada do patamar, -passa como uma frecha por deante do porteiro, corre -á botica mais proxima, pede vinho de Malaga quinado, -compra tres garrafas, mette uma em cada um dos -bolsos lateraes, esconde a terceira debaixo de paletot -e volta a casa de Lisa com a mesma pressa com que -de lá saíu.</p> - -<p>—Valha-me Deus!... então o senhor traz tres garrafas! -exclama a rapariga vendo Casimiro tiral-as dos -bolsos.</p> - -<p>—Sim, minha vizinha, terá assim para muito tempo -sem se incommodar.</p> - -<p>—Mas não era preciso, isto custa tres francos e dez -soldos cada garrafa...</p> - -<p>—Com duas sessões ficam as nossas contas saldadas.</p> - -<p>—Ah! senhor, não é possivel!</p> - -<p>—Perdão, minha vizinha, juro-lhe que a um modelo -como a menina não se paga menos, e que lhe ficarei -ainda muito obrigado. Mas tenha a bondade de me -dizer a que hora quer que eu venha para a sessão.</p> - -<p>—É sempre de manhã cedo que minha avó descança -melhor e não tem precisão de mim; se o não contrariasse -vir ás oito horas... mas é talvez cedo de -mais para o senhor?</p> - -<p>—Não! pelo contrario, essa hora convem-me muito, -trabalharemos das oito ás dez, se me fizer esse obsequio,<span class="pagenum"><a id="Page_117"></a>[117]</span> -porque eu não a quero fatigar, e, duas horas, -isso é talvez já demasiado para a menina...</p> - -<p>—Oh! não, senhor! demais, o senhor disse-me que -eu poderia coser ao mesmo tempo...</p> - -<p>—Sim, sim, fará tudo quanto quizer; em eu podendo -olhar para a menina, é quanto basta.</p> - -<p>—Eu pensava que o modelo era tambem obrigado -a olhar para o pintor!</p> - -<p>—Algumas vezes, de certo, é isso melhor; mas nós -temos tempo, e quando fôr absolutamente necessario, -então a menina terá a bondade de levantar por um -momento os olhos de cima do seu trabalho. Assim, -está ajustado, ámanhã ás oito horas cá me tem a minha -vizinha com toda a minha bagagem...</p> - -<p>—Estarei prompta.</p> - -<p>Casimiro retira-se, e Lisa approxima-se da velha -doente, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Avósinha, aqui está o vinho quinado!</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XII">XII<br /> -<span class="smaller">A primeira sessão</span></h2> - -</div> - -<p>Casimiro está encantado com o seu dia, e assim que -sae de casa do seu novo modelo, dirige-se á morada de -Ambrosina, á qual quer participar a venda do seu -quadro. Não está bem certo se ella compartilhará da -sua alegria, mas estima muito que saiba que elle pelo -seu trabalho pode emfim prescindir dos soccorros de -outrem.</p> - -<p>Emquanto ao que acaba de obter de Lisa, terá o -cuidado de não dizer uma unica palavra á sua amante, -da qual conhece os excessivos zelos; bem pelo contrario, -espera que ella ignorará as suas relações com -a sua joven vizinha; por isso ficou muito contente -quando esta lhe propoz dar-lhe sessão ás oito horas<span class="pagenum"><a id="Page_118"></a>[118]</span> -da manhã; das oito ás dez não receia receber a visita -de Ambrosina, que se levanta habitualmente muito -tarde, e se por acaso ella viesse a sua casa antes que -elle tivesse descido do quinto andar, sempre poderia -dizer que tinha ido almoçar ao café.</p> - -<p>Ao sair de casa, Casimiro encontra-se com Rouflard; -o inquilino da agua-furtada nota o ar alegre e triumphante -do joven pintor, e exclama:</p> - -<p>—Aposto que se arranjou a coisa!</p> - -<p>—É verdade, Rouflard, sim, a menina Lisa consente -em me deixar fazer o estudo da sua cabeça, ah! -estou muito contente!</p> - -<p>—Eu bem sabia que haviamos de acabar por isso, -mas isto de mulheres, é preciso sempre que se façam -rogar um pouco.</p> - -<p>—Ámanhã pela manhã ás oito horas subo a casa -d’ella, com a palheta e os pinceis, e temos a primeira -sessão...</p> - -<p>—Quando qualquer mulher dá uma sessão, dá ao -depois tantas quantas se querem... isso vae mesmo -por si, é como o primeiro passo.</p> - -<p>—Mas, Rouflard, isto fica aqui entre nós; quando -eu estiver trabalhando com o senhor em minha casa, -se vier aquella senhora, bem sabe, aquella morena -a quem trato simplesmente por Ambrosina... e que -já aqui tem vindo muitas vezes...</p> - -<p>—Sim, sim, a senhora primeira, a sultana favorita, -percebo!</p> - -<p>—Pois bem! escuso de advertir-lhe que é preciso -não dizer palavra ácerca das minhas visitas a casa -de Lisa e do retrato que vou fazer...</p> - -<p>—Ora essa! como, meu artista! é a mim que o senhor -diz isso, a mim, um veterano nas lides amorosas! -parece-me todavia que não tenho ares de galucho! -eu, que ficaria afflicto se causasse o menor dissabor -á minha joven bemfeitora!</p> - -<p>—Tem razão, eu devia louvar-me no senhor.</p> - -<p>—Emquanto a Chausson, o meu antigo creado, -elle não é de todo máu, se quer eu lhe falarei.</p> - -<p>—Não, não é preciso, isso fica por minha conta...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_119"></a>[119]</span></p> - -<p>—Ah! é antes dos Prohs que se deve desconfiar; -são uns tagarellas, uns palradores, uns mexeriqueiros! -que ficam encantados quando sabem o que se -passa em casa dos vizinhos, e acham meio de fazer -d’um argueiro um cavalleiro!</p> - -<p>—Terei cuidado de que elles não saibam nada das -minhas visitas a casa de Lisa, e vou tratar de acabar -quanto antes o retrato da sr.ª Proh, para que ella -não venha mais a minha casa.</p> - -<p>—Ahi está um retrato que eu não queria ter nas -minhas <i>inglezas</i>, a não ser como laxante...</p> - -<p>—Rouflard, vendi a minha pequena paizagem, -aqui tem, tome lá isto para se divertir, sou hoje feliz, -quero que toda a gente esteja satisfeita.</p> - -<p>—Isto é que é falar como Buckingam obrava, o -senhor tinha nascido para semear perolas no seu -caminho e eu para as apanhar.</p> - -<p>Casimiro acha a sua amante acabando de arranjar-se -e dispondo-se para ir a sua casa.</p> - -<p>Até que emfim! é uma felicidade vel-o! exclama -Ambrosina, o senhor vem cada vez mais tarde; -d’aqui a pouco, sem duvida, deixa de vir de todo.</p> - -<p>—Minha querida amiga, desculpe-me, tenho hoje -tido muitas occupações.</p> - -<p>—Esteve a trabalhar com o borrachão do seu modelo... -como é interessante!...</p> - -<p>—Não, hoje não trabalhei com Rouflard; recebi a -visita do logista que me vende os quadros; dê-me os -parabens, está vendida a minha paizagem.</p> - -<p>Ambrosina franze o sobr’olho e morde os beiços, -respondendo ao mesmo tempo:</p> - -<p>—Ah! está vendida a sua paizagem...</p> - -<p>—Sim, e muito bem vendida, por muito mais do -que eu teria ousado pedir.</p> - -<p>—O senhor é demasiadamente modesto, e faz mal -em ser assim; nas artes, a modestia é uma tolice, porque -é um merecimento que ninguem leva em conta -ao artista, e que muitas vezes o impede de chegar á -celebridade. Porquanto lhe pagaram o seu quadro?</p> - -<p>—Quatrocentos e cincoenta francos.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_120"></a>[120]</span></p> - -<p>—Ah! que miseria! e é isso que o senhor chama -bem vendido! pensava que ia dizer-me dois ou tres -mil francos.</p> - -<p>—Ah! está zombando commigo! bem sabe que -aquella pequena paizagem não valia isso; para uma -estreia é um preço muito bonito; isto anima-me, e -quero trabalhar de modo que possa vender mais caro -os quadros que fizer.</p> - -<p>—Ah! o senhor tenciona fazer outros quadros de -<i>genero</i>; então renuncia ao retrato? Provavelmente -não acabará o meu, pelo qual não mostrava nenhum -enthusiasmo.</p> - -<p>—Como é injusta! sou sempre eu que lhe peço para -se pôr em attitude; mas a senhora, em estando em -posição um quarto de hora enfada-se, já não pode -estar quieta no mesmo sitio.</p> - -<p>—Ah! é que me faz mal aos nervos! Vamos, a sem -razão está da minha parte, convenho. D’aqui em deante -serei mais razoavel, irei metter-me em sua casa -logo pela manhã, e não arredarei pé do seu <i>atelier</i>, -assim, poderá fazer-me estar em posição todo o tempo -que quizer.</p> - -<p>D’esta vez, é Casimiro que morde os labios e franze -ligeiramente as sobrancelhas. É coisa para se notar -que, n’um colloquio de duas pessoas, fazem-se muitissimas -vezes d’estas mudanças physionomicas, que -dizem o que a bocca não diz, ou que significam inteiramente -o contrario do que ella diz. Porque, por mais -que se queira dissimular o pensamento, ha sempre -alguma coisa que transparece n’este semblante que -a natureza nos deu, e que é por vezes rebelde ás transformações -que lhe queremos impôr.</p> - -<p>Ambrosina deseja ir passear ao campo. Casimiro -accede a esse desejo com alegria; como trouxe comsigo -o seu livro de lembranças, tomará notas, esboçará -alguns pontos de vista.</p> - -<p>—Se nós fossemos á Suissa? diz a bella morena; é -lá que o meu amigo acharia vistas admiraveis, que -poderia fazer ampla provisão de bosquejos para os -seus quadros de <i>genero</i>.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_121"></a>[121]</span></p> - -<p>Mas o joven pintor não está por forma alguma -disposto a viajar.</p> - -<p>—Sem ir tão longe, diz elle, ha nos arredores de -Paris sitios lindos, vistas encantadoras; mas ninguem -pensa em pintal-as, porque estão ás portas de -Paris, e não se liga merecimento senão ao que está -longe de nós. Eu, minha querida amiga, não vejo -razão para se fazer pouco caso d’uma coisa que nós -podemos arranjar sem incommodo e sem despeza. -Assim, por exemplo, muito perto d’aqui, por detraz -do forte de Romainville, n’aquelle sitio que era n’outro -tempo o bosque, ha outeiros d’onde a vista é magnifica, -tem a gente deante de si uma extensão immensa -de terreno; podem os olhos abranger mais de doze -leguas em redor. Em baixo fica Patim com os seus -fornos de cal, que tornam a paizagem pittoresca; depois -está o canal que corta o caminho, e um pouco -mais adiante S. Diniz, Montmorency, Pierrefitte. Á -esquerda vê-se Montmartre, o Monte Valeriano, e -Saint-Cloud, que se desenha no horizonte. E tudo isto -entremeado de bosquesinhos, de bonitas casas de -campo, de fabricas. Affianço-lhe que é um panorama -admiravel. Quer ir vel-o?</p> - -<p>A sr.ª Montémolly deixa-se conduzir ao que era -n’outro tempo o bosque de Romainville, e entretem-se -a colher algumas flores campestres, emquanto Casimiro está -sentado na relva esboçando á pressa algumas -vistas; mas as flôres são raras no terreno barrento, -que é bom para fabricar louça, mas não para -fazer brotar as rosas. Demais, Ambrosina é sempre a -mulher da moda, e portanto leva d’alli o seu companheiro -dizendo-lhe:</p> - -<p>—Meu riquinho, por mais que o senhor diga, as suas -lindas vistas de Romainville não valem a cascata e o -lago do Bosque de Bolonha.</p> - -<p>—Para a senhora, comprehendo isso; perdõe-me -pois, nunca mais a trarei para este lado, é preciso ser -pintor para o apreciar.</p> - -<p>—Meu amigo, é mister procurarmos a nossa <i>victoria</i>, -que não poude seguir-nos n’estes caminhos cheios de<span class="pagenum"><a id="Page_122"></a>[122]</span> -barrancos, onde a gente a cada instante corre risco de -cair n’um buraco, ou de se enterrar na areia! Vamos -jantar ao <i>Ledoyen</i> nos Campos-Elyseos, isso ha de -mudar-nos completamente...</p> - -<p>—Ahi está o que são as mulheres! e falava a senhora -em ir á Suissa! lá é que ha caminhos escarpados, difficeis -de trepar!</p> - -<p>—Sim, mas está a gente na Suissa, inscreve o seu -nome no registo das estalagens; e vê-se alli que os -srs. Fulanos de tal passaram por aquelle sitio, e quizeram -trepar o monte Righi.</p> - -<p>Este dia passa mui lentamente para o joven pintor, -que almeja pelo momento em que poderá fazer o retrato -de Lisa. E, posto que faça todo o possivel para -ser com Ambrosina tão amavel, tão alegre como de -costume, tem por vezes momentos de preoccupação, -ou de distracção, que não escapam á sua zelosa amante; -esta diz-lhe então de subito:</p> - -<p>—Em que é que está pensando?</p> - -<p>—Eu... em nada... estou-a ouvindo.</p> - -<p>—Está-me ouvindo? O que é que eu acabo de dizer?</p> - -<p>—O que acaba de dizer-me? já não sei o que foi, era -então alguma coisa muito interessante?</p> - -<p>—Bem vê que não me estava ouvindo. Ah! olhe, Casimiro, -eu não sei o que lhe aconteceu, mas, com toda -a certeza, o senhor tem alguma coisa! anda pensativo, -responde fóra de proposito ao que lhe digo. Oh! n’isto -andam amoricos.</p> - -<p>—É que vendi o meu quadro, e ando a pensar n’aquelle -que hei de fazer agora, aqui está o que é.</p> - -<p>—O senhor não fala verdade! não é n’isso que pensa. -Oh! eu conheço bem o mundo! não me enganam -assim!</p> - -<p>—Tanto peior para a senhora, porque as pessoas -mais felizes são aquellas que se deixam enganar mais -facilmente.</p> - -<p>—É possivel, mas não quero essa felicidade.</p> - -<p>Emfim, passa-se o dia e a noite tambem; Casimiro -levanta-se muito cedo, escolhe a téla, arranja a palheta, -e prepara um cavallete que já lhe não servia e que<span class="pagenum"><a id="Page_123"></a>[123]</span> -elle tencionava deixar em casa da sua vizinha, para -não ter o trabalho de o levar e trazer todos os dias. -Olha a cada instante para o relogio, receia ser indiscreto -chegando antes da hora que se ajustou.</p> - -<p>Dão oito horas: Casimiro vae abrir a porta da escada, -certifica-se de que não está ainda alli ninguem, -depois vae buscar todos os objectos de que precisa, -e sobe lentamente os dois andares.</p> - -<p>A porta de Lisa tem a chave na fechadura; mas -vem ella pessoalmente abril-a, porque ouviu subir e -desconfiou logo que é a pessoa por quem espera.</p> - -<p>—Oh! meu Deus! como o senhor vem carregado! -exclama Lisa querendo desembaraçar Casimiro do -seu cavallete.</p> - -<p>—Tudo isto é muito leve, menina, não se incommode. -Posso entrar?</p> - -<p>—De certo; minha avó está a dormir, creio eu, -mas, ainda mesmo que acordasse, eu disse-lhe hontem -que o senhor havia de vir aqui fazer o meu retrato, -e ella ficou muito contente. Disse-me assim: «Has de -collocal-o deante de mim para que eu te veja sempre -minha filha.» Ah! é que ella quer-me muito, a minha -avósinha.</p> - -<p>—Bem vê pois a minha querida vizinha que, consentindo -em se deixar retratar, já fez duas pessoas -felizes!</p> - -<p>—É verdade. Se eu soubesse que era assim, teria -accedido mais cedo. Creio que a avósinha está descançando; -não faremos bulha.</p> - -<p>—Eu não tenho necessidade nenhuma de fazer bulha -quando trabalho. Olhe, aqui tem o cavallete armado, -estou ás suas ordens.</p> - -<p>—Mas o senhor é que manda; como quer que eu -me colloque?</p> - -<p>—Como costuma estar; sente-se e pegue no seu -trabalho.</p> - -<p>—O quê! devéras posso trabalhar!</p> - -<p>—Sem duvida, principalmente durante a primeira -sessão, em que eu não copio senão o conjuncto da cabeça.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_124"></a>[124]</span></p> - -<p>—E não tenho precisão de olhar para o senhor?</p> - -<p>—Sim, algumas vezes, mas não sempre.</p> - -<p>Põem-se ambos ao trabalho. Lisa faz bainhas, o -que não obriga a muita attenção. De vez em quando -Casimiro diz-lhe:</p> - -<p>—Olhe para mim...</p> - -<p>O que ella se apressa a fazer; mas baixa bem depressa -os olhos, porque encontra os do joven pintor que -lhe diz então:</p> - -<p>—Mas a menina não olha par mim bastante tempo, -mal pude apanhar-lhe a <i>nuance</i> dos olhos.</p> - -<p>—É que o senhor encara-me tanto, que me intimida; -isso perturba-me.</p> - -<p>—É preciso que eu olhe para a menina com attenção -para reproduzir as suas feições, isso não deve -intinmidar-a; não veja em mim senão um artista, ou -antes um operario que faz o seu officio, e isso não a -perturbará.</p> - -<p>—Ah! mas o senhor não é um operario!</p> - -<p>—Ora adeus, minha vizinha, todos nós o somos, -cada um no seu genero; pois quem trabalha para viver -não é operario? Ha porém, dirá a menina, profissões -que exigem mais estudos, mais intelligencia que -outras; mas esteja persuadida de que o poeta ou o -escriptor que trabalha com o seu pensamento, que -tira do cerebro os seus materiaes, tem ás vezes muito -mais fadiga, muito maior lida em fazer a sua obra -do que o marceneiro em aplainar as suas tábuas. Olhe -para mim por um pouco.</p> - -<p>Lisa ergue os olhos, e d’esta vez torna a baixal-os -menos depressa encontrando os de Casimiro. Este -gosta de fazer conversar o seu modelo, o que não -receiam fazer os pintores de grande talento, porque -apanham melhor a expressão da nossa physionomia -emquanto falamos, do que o fazem aquelles que nos -prohibem de nos mexermos, o que nos dá então um -ar aborrecido, ou contrafeito, ou affectado; eu poderia -mesmo dizer apalermado.</p> - -<p>Lisa estima bastante poder conversar; em vida da -sua ama, quando esta tinha uma venda de leite e fazia<span class="pagenum"><a id="Page_125"></a>[125]</span> -muito bom negocio, levou tres vezes a pequena -ao theatro, e esta lembra-se sempre d’isso, porque -gostou muito do espectaculo. Este divertimento e a -leitura são os unicos que ella deseja; a dansa, os -passeios, as festas campestres teem para ella poucos -attractivos. Antes de cair doente, a boa da avó queria -que a sua Lisa procurasse estas distracções; mas, -em vez de ir vêr esses bailes que ha no termo de -Paris com o falso nome de campestres, Lisa levava -a sua companheira para um passeio pouco frequentado, -para uma vereda solitaria, coberta de sombra, -e alli, sentando-se na relva, lia um romance que tinha -alugado economizando alguns soldos na despeza do -sustento. Lia em voz alta; a velha adormecia, mas -Lisa continuava a lêr, e ambas estavam contentes.</p> - -<p>—Se a minha vizinha gosta de lêr, diz Casimiro, -posso emprestar-lhe alguns livros; tenho todos os -romances de Alexandre Dumas, e estou bem certo -de que lhe hão de agradar muito.</p> - -<p>—Ah! agradeço a sua bondade; mas, desde que a -avó caíu doente, não tenho já tempo de lêr, vale -mais trabalhar.</p> - -<p>—É mister todavia ter alguns instantes de repouso.</p> - -<p>—O trabalho que eu faço não cansa.</p> - -<p>Na primeira sessão, Casimiro não quer demorar -muito tempo o seu modelo; levanta-se pois, dizendo:</p> - -<p>—Basta por hoje; obrigado, minha vizinha.</p> - -<p>—Ah! está acabado?</p> - -<p>—Acabado por esta sessão; permitte-me que deixe -aqui o cavallete?</p> - -<p>—Oh! certamente. Ah! leva o quadro; mas o senhor -não precisa d’elle sem mim!</p> - -<p>—Perdão, ha coisas em que posso trabalhar sem -ter o modelo á vista.</p> - -<p>—Deixa-me ver?</p> - -<p>—Ainda não, peço-lhe eu. Está muito pouco -adeantado; em tres ou quatro sessões, poderá ver á -sua vontade. São dez horas, vou almoçar.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_126"></a>[126]</span></p> - -<p>—Já dez horas! é singular como o tempo passa -depressa quando se está servindo de modelo. O senhor -virá ámanhã?</p> - -<p>—De certo, se isto não a contraria.</p> - -<p>—Oh! de modo algum.</p> - -<p>A pequena ia dizer: <i>pelo contrario</i>, mas parou fazendo-se -muito córada, e limita-se a murmurar:</p> - -<p>—Então, até ámanhã.</p> - -<p>No dia seguinte, Casimiro não falta a dirigir-se a -casa do seu encantador modelo, que o vê agora chegar -com prazer, e, sem ser <i>coquette</i>, tem todavia mais esmero -no seu penteado, no arranjo dos seus cabellos; -o joven pintor repara n’isto, não diz nada, mas fica -secretamente lisonjeado, porque ha uma multidão de -pequenas coisas que fazem presagiar as grandes.</p> - -<p>Trabalha-se, e conversa-se a meia voz; é quasi sempre -de manhã que a avó descança melhor. Lisa levanta -mais vezes os olhos para o seu pintor e sustenta um -pouco melhor o fogo dos seus olhares; algumas vezes, -comtudo, um vivo rubor lhe sobe á cara, emquanto -Casimiro murmura:</p> - -<p>—Ah! como a menina se colloca bem! que lindo retrato -eu vou fazer, sim, ha de ficar muito parecido; -tenho as suas feições tão bem gravadas na memoria!</p> - -<p>—Então, já não é preciso que eu olhe para o senhor?</p> - -<p>—Oh! sim! sim! eu nunca a vejo bastante.</p> - -<p>—Que felicidade saber pintar!</p> - -<p>—Sim, tambem acho isso agora, e ainda ha pouco -tempo nem o suspeitava! Ah! minha vizinha, saiba que -se eu chegar a adquirir algum talento, é á menina -que o deverei.</p> - -<p>—A mim! ora essa! não foi olhando para mim que o -senhor fez essa linda paizagem que vendeu.</p> - -<p>—Não, mas foi vendo-a trabalhar sem descanço, n’este -modesto aposento, sabendo que achava meio de -prover ás necessidades de sua velha avô paralytica, -que eu tive vergonha da minha existencia, da minha -preguiça, que comprehendi que havia de lamentar -um dia o ter empregado tão mal a minha mocidade -e emfim que tomei a resolução de mudar de vida. Bem<span class="pagenum"><a id="Page_127"></a>[127]</span> -vê pois que, se eu obtiver um dia talento, é á menina -que o deverei.</p> - -<p>Lisa não responde nada, porque está demasiadamente -commovida, mas o seu olhar fita-se em Casimiro, e -tem uma expressão tão terna, tão meiga, que d’esta -vez é o pintor que deixa de trabalhar.</p> - -<p>Estes colloquios confidenciaes renovam-se todos os -dias e tornam mais intimas as relações que existem -entre o pintor e o seu modelo. Pouco a pouco, uma -affectuosa confiança substitue a fria polidez. Conversam -mais, fazem as sessões maiores, separam-se a -custo, porque teem sempre alguma coisa para se dizerem; -acham-se tão bem juntos, que Lisa impacienta-se -e abre a porta quando Casimiro tarda alguns -minutos. E, comtudo, nunca uma palavra de amor foi -pronunciada n’estas sessões de todas as manhãs; mas -ha coisas que a gente não tem precisão de dizer para -se fazer comprehender, e o amor é uma d’essas coisas.</p> - -<p>O retrato adeantava-se; mas, como Casimiro queria -fazer durar muito as sessões, achava sempre alguma -coisa para pintar de novo, para retocar. Lisa -não se queixava d’isso, pelo contrario, quando o seu -pintor dizia: «Basta por hoje,» acontecia-lhe ás vezes -exclamar:</p> - -<p>—Já! ah! parece-me que não trabalhámos muito -esta manhã!</p> - -<p>Então Casimiro sorria-se, e continuavam a conversar. -A rapariga examinára o retrato, e pulára de prazer -vendo-se tão bonita. Tinha exclamado:</p> - -<p>—Ah! o senhor lisonjeia-me; eu não sou assim!...</p> - -<p>Não se atrevera a dizer: «Tão bonita!» Mas as -mulheres param muitas vezes no momento de dizerem -o verdadeiro fundo do seu pensamento.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_128"></a>[128]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="XIII">XIII<br /> -<span class="smaller">Um rapazito endiabrado</span></h2> - -</div> - -<p>O retrato de Lisa fazia muitas vezes descuidar o -de Ambrosina, e não era só em pintura que esta dama -notava que se descuidavam d’ella. Casimiro ia a sua -casa cada dia mais tarde, e, quando ella lhe lançava -isso em rosto, elle achava por desculpa a nova paizagem -que estava fazendo, as sessões que dava á sr.ª -Proh ou a Rouflard e Ambrosina exclamava:</p> - -<p>—Mas não é possivel que o senhor não tenha acabado -essas cabeças! E quando eu lhe peço para termos -sessão, diz-me que não me quer fatigar. O senhor -tem alguns amoricos, alguma nova ligação que arranjou; -mas tome cuidado! eu o saberei.</p> - -<p>Um dia pela manhã, a sr.ª Montémolly, sem ter prevenido -o amante da sua visita, levanta-se muito mais -cedo do que costuma, faz-se vestir á pressa por Adriana, -e chega a casa de Casimiro pelas dez horas. Perguntou -ao porteiro se o rapaz tinha saído; Chausson -respondeu que o não vira descer. Ella sobe os tres -andares, vê a chave na porta da habitação do pintor, -e entra sem bater, sem tocar a campainha, dizendo -comsigo:</p> - -<p>—Vou surprehendel-o e saber emfim em que trabalha -tão assiduamente.</p> - -<p>Ambrosina entra na saleta que serve de <i>atelier</i> a -Casimiro, e não acha alli senão Rouflard, que está -ensaiando posições deante d’um espelho.</p> - -<p>—O sr. Casimiro não está aqui? diz Ambrosina, -correndo os olhos pelo <i>atelier</i>.</p> - -<p>Rouflard, que reconheceu a dama e adivinha a situação, -apressa-se a cortejar profundamente, respondendo:</p> - -<p>—Não, minha senhora, o sr. Dernold saíu.</p> - -<p>Apezar d’esta resposta, Ambrosina vae vêr ao -quarto da cama, depois volta, dizendo:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_129"></a>[129]</span></p> - -<p>—É verdade, não está, effectivamente.</p> - -<p>—A senhora verificou que eu não menti, murmura -Rouflard com um sorriso ligeiramente ironico.</p> - -<p>—Mas onde está? voltará breve?</p> - -<p>—Oh! não creio, minha senhora; o sr. Dernold disse: -«Vou almoçar, e depois irei dar uma volta pelo Louvre, -onde tenho que fazer uns estudos.»</p> - -<p>—É singular, o porteiro disse-me que Casimiro -não tinha saído.</p> - -<p>—Oh! minha senhora! esse miseravel Chausson -nunca vê o que se passa; fazia-me muitas d’essas -quando era meu creado. Eu dizia-lhe: «Põe-te de -sentinella, não deixes entrar os meus crédores, não -quero receber senão senhoras...» e o imbecil fazia -exactamente o contrario.</p> - -<p>—Mas o que faz o senhor aqui?</p> - -<p>—Eu, minha senhora, tinha vindo agradecer ao -meu artista, que teve a bondade de se occupar de -mim, e de me arranjar collocação em casa d’um pintor -seu amigo, um pintor de historia; devo fazer um -romano. E o sr. Casimiro disse-me: «Arranje um -penteado á romana, ponha-se deante do espelho, ate -uma fita vermelha á roda da cabeça, eu lhe direi -depois se tem um falso ar de Romulo...» porque -parece que é um Romulo que devo representar.</p> - -<p>Ambrosina não parece dar muito credito a esta -historia romana. Passeia pelo <i>atelier</i>, pára por momentos, -parece reflectir, e diz:</p> - -<p>—Não sei se devo esperar por elle.</p> - -<p>—A senhora tem para isso todo o direito, certamente; -mas temo que espere por muito tempo. -Quando um pintor vae ao Louvre, nunca se sabe -quando de lá sairá.</p> - -<p>—O sr. Rouflard vem aqui muito amiude?</p> - -<p>—Sim, minha senhora, estou sempre ás ordens do -meu artista quando elle tem precisão de mim.</p> - -<p>—E vê vir aqui muitas mulheres? não me engane...</p> - -<div class="figcenter" style="width: 400px;" id="illus2"> -<img src="images/illus2.jpg" width="400" height="600" alt="" /> -<p class="caption">Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...</p> -</div> - -<p>—Minha senhora, posso affiançar-lhe que nunca vi -aqui senão a senhora e a vizinha alli defronte; mas<span class="pagenum"><a id="Page_130"></a>[130]</span> -áquella não chamo eu uma mulher, o marido alcunhou-a -de girafa, e fez muito bem.</p> - -<p>—Vamos, acredito no senhor, e vou-me embora, -terá a bondade de lhe dizer que vim aqui... e que o -espero em minha casa, não é verdade?</p> - -<p>—Executarei as suas ordens, minha senhora.</p> - -<p>Ambrosina retira-se, e Rouflard acompanha-a até -ao patamar; mas aqui encontram-se de cara com a -sr.ª Proh e o filho, o joven Fonfonso, que teima em -querer montar-se na balaustrada. A amante de Casimiro -tinha encontrado duas vezes em casa d’elle -esta senhora estando em sessão para o retrato, conhecem-se -pois um pouco. Cumprimemtam-se e trocam -algumas phrases banaes.</p> - -<p>—Minha senhora, tenho a honra de a cumprimentar; -a sua saude parece-me sempre perfeita?...</p> - -<p>—É? optima, muito agradecida, minha senhora. Ia -a casa do sr. Casimiro?</p> - -<p>—Não, minha senhora, n’este momento não ia lá; -vou comprar cabeça de vitella para meu marido, que -não gosta d’outra coisa para o almoço. É um habito -em que se pôz. Oh! meu marido é devéras insupportavel -com a sua cabeça de vitella! A senhora vem -de casa do meu vizinho, do sr. Casimiro?</p> - -<p>—Sim, tencionava dar-lhe sessão para o meu retrato.</p> - -<p>—O meu está acabado, perfeitamente acabado; estou -muito satisfeita com elle, ainda que toda a gente -sustenta que me pareço com a sr.ª Saqui, que Deus -haja, nos seus bons tempos; parece que era uma bonita -mulher. E a senhora já acabou a sua sessão?</p> - -<p>—Hoje não poude ser, o sr. Casimiro não está em -casa, isto contraria-me, porque tinha sido hoje mais -madrugadora do que costumo ser.</p> - -<p>—Ah! o meu vizinho já saiu...</p> - -<p>—Não! não! não! não saiu. Oh! oh! oh! hi! hi! hi! -grita o Fonfonsinho, pendurando-se da balaustrada.</p> - -<p>—Fonfonso, não te balouces assim da balaustrada, -que podes cair.</p> - -<p>—Mas quero eu balouçar-me!</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_131"></a>[131]</span></p> - -<p>—Este pequeno é incorrigivel!</p> - -<p>—Perdão, minha senhora, mas parece-me que seu -filho disse que o sr. Casimiro não tinha saído.</p> - -<p>—O pequeno sabe lá o que diz, minha senhora!</p> - -<p>—Sim, sim, eu bem sei onde está o pintor, onde elle -vae todas as manhãs...</p> - -<p>—Aonde vae todas as manhãs, mas então, Fonfonso, -bem vês que o sr. Casimiro saiu.</p> - -<p>—Não, porque elle vae lá acima, a casa da menina -Lisa, para onde levou o cavallete e as tintas para estar -a pintar como em sua casa. Hi! hi! hi! oh! oh! oh!</p> - -<p>Ambrosina muda de côr, e a sr.ª Proh escancara os -olhos, exclamando:</p> - -<p>—O quê! o meu vizinho vae pintar em casa da pequena -do quinto andar! palavra de honra, é a primeira -vez que tal sei; mas este pequeno é extraordinario, -minha senhora, sabe tudo, vê tudo o que se passa, não -lhe escapa nada!</p> - -<p>—Quem será essa menina Lisa que recebe o sr. -Casimiro?</p> - -<p>—É uma rapariga que vive com sua avó; a pobre -velha está doente, meio paralytica; Lisa trabalha -para a sustentar. Oh! é uma donzella honesta, muito -capaz... pelo menos assim o creio.</p> - -<p>—É bonita?</p> - -<p>—Hum? bem sabe que isso depende do gosto, uma -carinha que não é de todo desengraçada...</p> - -<p>—Não! não! não! Rouflard diz que a menina Lisa -é um anjo. Oh! oh! oh! ah! ah! ah!</p> - -<p>—Ah! o Rouflard conhece-a, perdão, minha senhora, -mas como é absolutamente preciso que eu fale ao Casimiro, -tomo a liberdade de o ir procurar a casa d’essa -menina. Não me disse que é no quinto andar?</p> - -<p>—Sim, a porta á direita...</p> - -<p>—A chave está sempre na fechadura. Hu! hu! -hu!...</p> - -<p>Ambrosina não quer ouvir mais, e galga os andares -como um valente soldado sobe ao assalto. Chega -acima n’um instante; acha effectivamente a chave na -porta á direita, abre de repente, e dá com a menina<span class="pagenum"><a id="Page_132"></a>[132]</span> -Lisa sentada defronte de Casimiro, com a sua costura -na mão, mas sem trabalhar; pela sua parte, o joven -pintor está ao seu cavallete, com a palheta e o pincel -nas mãos, mas sem pintar. Á vista d’esta pessoa que -abriu a porta e se conserva immovel á entrada do -quarto, o artista e o seu modelo ficam espantados. -Mas Casimiro é o mais impressionado, porque Lisa -recobra logo a sua placidez e diz a Ambrosina:</p> - -<p>—É sem duvida a mim que a senhora procura, e é -para me dar alguma obra a fazer? tenha a bondade de -entrar...</p> - -<p>—Não, responde Ambrosina com um tom arrogante, -não é a menina quem eu procuro, não é pela menina -que estou aqui, é este senhor quem venho procurar, -este senhor que já não tem um momento para me -dedicar, que não acaba o meu retrato, porque está -fazendo o da menina. Aqui está então a causa de -todas as suas mentiras, da sua mudança de procedimento; -eu bem sabia que n’isto andavam amoricos! -é para estar com esta menina que já não tem tempo -de me ir vêr. Ah! como os homens são falsos!</p> - -<p>A voz da mulher ciumenta torna-se estrepitosa, -os seus olhares lançam chispas. Lisa está toda a tremer, -grossas lagrimas lhe obscurecem os olhos, depois -uma voz tremula e quebrada sae do leito, e diz:</p> - -<p>—Lisa! o que é isso? pareceu-me ouvir gritar; -estás altercando com alguem?</p> - -<p>—Não, avósinha, não, não é nada...</p> - -<p>E a donzella deita para Ambrosina uns olhares -supplicantes, como para lhe dizer:</p> - -<p>—Por quem é, não fale tão alto!</p> - -<p>Mas já Casimiro se tem levantado, pegando na -palheta, no quadro e nos pinceis, e dirige-se para a -porta dizendo á sr.ª Montémolly:</p> - -<p>—Faça favor de sair commigo, minha senhora, -para pouparmos a esta menina uma bulha e uma -scena pouco decorosa, faço isto, não pela senhora, -mas em attenção a ella. Menina Lisa, desculpe-me -de ter sido a causa d’este barulho, que acordou a<span class="pagenum"><a id="Page_133"></a>[133]</span> -sua avó, e pode ficar certa de que não tornará a acontecer -similhante coisa.</p> - -<p>Casimiro sae immediatamente para o patamar; -Ambrosina, furiosa de ciumes, hesita em saír, e olha -para Lisa, que parece sempre pedir-lhe que se cale, -mostrando-lhe o leito da enferma. A zelosa dama decide-se -emfim, sae do quarto, depois de ter lançado sobre -a rapariga um olhar ameaçador, depois desce atraz -de Casimiro, que entra para sua casa. Ella entra tambem, -e deita um olhar furioso sobre Rouflard, que -se afasta encolhendo os hombros e olha para o pintor -como para lhe dizer:</p> - -<p>—Não é culpa minha; o senhor é que não teve a -prudencia necessaria.</p> - -<p>Ambrosina entra no <i>atelier</i>, e atira comsigo para -uma poltrona, exclamando:</p> - -<p>—Ha muito tempo que duram estes amores, senhor, -e que esta rapariga é sua amante?</p> - -<p>Casimiro, que recobrou todo o seu socego, põe-se a -trabalhar na sua obrasinha, e responde:</p> - -<p>—Minha senhora, o ciume cega-a e faz-lhe dizer -coisas indignas d’uma mulher que se preza. Estou -fazendo o retrato d’uma menina que mora no meu -predio; parece-me que isto é uma coisa que me é -permittida, pois que o meu officio é tirar retratos. -Achei alli uma cabeça encantadora, senti o desejo -de a reproduzir na tela, tudo isto é muito natural. -Propuz á menina Lisa que me servisse de modelo; -ella a principio recusou-se por muito tempo, porque -não quer deixar a avó um unico instante. Eu disse-lhe -que iria trabalhar em sua casa, e ella recusava-se -ainda; mas ganha apenas com que prover á sua existencia, -e a doença de sua avó exige por vezes gastos -inesperados; fiz comprehender a esta menina que, -consentindo em me servir de modelo melhoraria a -sua situação, e ella finalmente cedeu. A senhora pergunta-me -desde quando sou amante d’essa pobre menina. -Ah! se a conhecesse, não teria similhante pensamento! -ella é recatada, honesta, não pensa senão -no seu trabalho, em alliviar e consolar a sua velha<span class="pagenum"><a id="Page_134"></a>[134]</span> -doente, e eu, deante d’um procedimento tão digno, -tão puro, ter-me-hia envergonhado de lhe dirigir -uma unica palavra de amor.</p> - -<p>A sr.ª Montémolly, que tem escutado tudo isto com -impaciencia batendo muitas vezes com o pé no sobrado, -assim que Casimiro acabou de falar, exclama:</p> - -<p>—O senhor pensa que vou dar credito ás suas historias, -aos seus contos! ao que parece, tem-me por tola! -O senhor não tem dito uma palavra de amor a essa -rapariga? O que estava então a fazer quando eu entrei? -não estavam em atitude de quem trabalha, nem -o senhor nem o seu modelo, olhavam um para o outro -muito attentos, como se quizessem comer-se com -os olhos; não ha necessidade de se falar de amor, -quando se olha assim para alguem; os olhos dizem o -bastante! e se o senhor não tivesse pensado em vir a -ser amante d’essa rapariga, acaso teria feito um mysterio -d’esse retrato, das suas idas ao quinto andar? -E que tenciona então fazer do retrato d’essa menina?</p> - -<p>—É um estudo, pol-o-hei no meu <i>atelier</i>.</p> - -<p>—Pois saiba que o hei-de de fazer em tiras! E esse -miseravel Rouflard, a quem o senhor tinha ensinado -o recado, e que me disse que tinha ido ao -Louvre! Estavam todos combinados para zombarem -de mim!...</p> - -<p>—Eu não ensinei recado nenhum a Rouflard, elle -disse-lhe o que quiz.</p> - -<p>—Bom! basta! para que não torne mais a acontecer -similhante coisa, o senhor vai já deixar esta casa e -não terá o capricho de subir todas as manhãs ao -quinto andar; venha commigo é um momento emquanto -lhe arranjo uma casa decente; mandarei buscar os -seus moveis.</p> - -<p>Casimiro encolhe os hombros, e continua a pintar -dizendo:</p> - -<p>—A senhora está doida!</p> - -<p>—Como é que o senhor disse?</p> - -<p>—Que a senhora não tem senso commum! e que eu -não desejo mudar-me...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_135"></a>[135]</span></p> - -<p>—Não quer mudar-se para não deixar a rapariga -da agua-furtada?</p> - -<p>—A rapariga da agua-furtada não entra para nada -na minha resolução; não quero deixar esta casa, porque -não quero fazer as suas vontades, porque estou -cansado de ser escravo, e porque é tempo que isto -acabe.</p> - -<p>—Ah! ahi está aonde o senhor queria chegar; é um -rompimento que me propõe!...</p> - -<p>—Será um rompimento se a senhora quizer, mas repito-lhe -que não me quero submetter mais a todos os -seus caprichos, e que me não mudarei.</p> - -<p>—Casimiro! tome cuidado, se fica n’esta casa, não -lh’o perdoarei...</p> - -<p>—Hei de ficar.</p> - -<p>—E é a essa delambida que o senhor me sacrifica! -Oh! é indigno! é infame!</p> - -<p>—Nada de palavrões, minha senhora, bem sabe que -commigo perdem o seu effeito; eu não a sacrifico a -ninguem. Digo-lhe que não quero ser mais seu escravo, -que quero ser senhor de mim, se isto lhe não convem, -tanto peior!</p> - -<p>—É porque já me não ama que o senhor me fala assim!</p> - -<p>—Olhe, Ambrosina, seja franca, se eu fizesse o que -me ordena, havia de desprezar-me e teria razão.</p> - -<p>—Oh! o senhor é um traidor, tem zombado commigo, -mas não quero continuar a ser enganada! depois de -tudo quanto eu tenho feito por sua causa...</p> - -<p>—Ah! eu estava á espera d’essa phrase! teria faltado -á situação! Effectivamente a senhora tem feito muito -por mim, eu não me esqueço, permitta-me sómente -dizer-lhe que era sempre contra a minha vontade; -que ha muito tempo que eu me queria dar ao trabalho -e que a senhora incessantemente me impedia de -o fazer, porque queria ter-me constantemente nas suas -rêdes, impedir-me de ser livre emfim e de poder tomar -qualquer resolução sem a consultar. Se a fortuna um -dia me fôr favoravel, creia, minha senhora, que terei -muito prazer em pagar tudo quanto lhe devo!</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_136"></a>[136]</span></p> - -<p>—Casimiro, esqueça-se do que eu acabo de dizer, -o ciume faz-me perder a cabeça, vamos, ceda-me ainda -por esta vez, peço-lhe eu, venha commigo, deixe -esta casa... e não lhe falarei mais n’essa menina da -agua-furtada...</p> - -<p>—As suas instancias são inuteis, a minha resolução -é inabalavel, não saio d’aqui.</p> - -<p>Ambrosina ergue-se furiosa, dá alguns passos pelo -quarto, pára deante de Casimiro, e exclama:</p> - -<p>—Então, senhor, está tudo acabado entre nós!</p> - -<p>—Como a senhora quizer.</p> - -<p>—Sim, senhor, nunca mais na minha vida o tornarei -a vêr!...</p> - -<p>Depois de haver dito estas palavras, Ambrosina -sae arrebatadamente, fechando a porta com estrondo, -desce a escada sem parar, depois atravessa o pateo, -passa por deante do porteiro que lhe varre para cima, -e dá alguns passos na rua. Mas alli, pára, volta-se, -olha para a casa d’onde acaba de sair, e vê um rotulo -pendurado por cima da porta. Entra immediatamente -na casa e diz ao porteiro, que está ainda no pateo:</p> - -<p>—Tem cá alguns quartos para arrendar? vi um -rotulo.</p> - -<p>—Sim, minha senhora, um magnifico primeiro andar, -com sete casas, todo forrado de novo, e uma bella -adega!</p> - -<p>—Quando está desoccupado?</p> - -<p>—D’aqui a dez dias, minha senhora...</p> - -<p>—Fica por minha conta...</p> - -<p>—O preço é de dois mil e duzentos francos.</p> - -<p>—Muito bem, arrendo-o eu.</p> - -<p>—Mas a senhora não o viu, se quer subir, os inquilinos -saíram agora mesmo...</p> - -<p>—Não é preciso, repito-lhe que eu arrendo a casa. -Tome, aqui tem o signal...</p> - -<p>E Ambrosina mette uma moeda de vinte francos -na mão de Chausson, accrescentando:</p> - -<p>—Tome; mas ficar-lhe-hei muito agradecida se -não disser ao sr. Casimiro que fui eu que arrendei a<span class="pagenum"><a id="Page_137"></a>[137]</span> -casa, aqui tem a minha morada e o meu nome... se -quizer ir tirar informações...</p> - -<p>—Oh! minha senhora, eu bem vejo que não é preciso, -quando se tem maneiras como a senhora; demais, -a senhora é conhecida do sr. Casimiro!</p> - -<p>—Tome; aqui tem mais vinte francos, seja discreto, -que não ficarei sómente n’isto...</p> - -<p>—Estarei ás ordens da senhora tanto de dia como -de noite, sempre prompto!...</p> - -<p>Ambrosina retira-se, e Chausson admira as duas -moedas de vinte francos, dizendo comsigo:</p> - -<p>—Isto é que é a nata das inquilinas! logo eu estava -indo tirar informações!...</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XIV">XIV<br /> -<span class="smaller">A senhora do primeiro andar</span></h2> - -</div> - -<p>Dez minutos depois da saída de Ambrosina, subia -Casimiro ao quinto andar e entrava em casa da sua -joven vizinha.</p> - -<p>Lisa está trabalhando, mas grossas lagrimas lhe -rebentam dos olhos e por momentos caem sobre a sua -costura. O seu lindo rosto parece ainda mais seductor -sob esta nuvem de tristeza espalhada por todas as -suas feições. Ao vêr Casimiro, o seu primeiro movimento -é limpar os olhos e esforçar-se por sorrir.</p> - -<p>Mas o rapaz, que já lhe viu as lagrimas, apressa-se -a correr para ella, exclamando:</p> - -<p>—Lisa, está chorando, e sou eu a causa da sua -tristeza. Ah! perdôe-me, se soubesse quanto estou -afflicto pelo que succedeu.</p> - -<p>—Oh! eu não lhe quero mal, não chorava...</p> - -<p>—Chorava, sim, em vão procura occultar-m’o.</p> - -<p>—É sómente, porque sinto haver sido a causa de -que aquella senhora ralhasse com o sr. Casimiro; ella -parecia muito encolerisada, disse que o senhor já não<span class="pagenum"><a id="Page_138"></a>[138]</span> -cuida do seu retrato e que é por culpa minha. Bem -vê que fiz mal em consentir que fizesse o meu; mas -está tudo acabado; não lhe servirei mais de modelo; -poderá assim retratar aquella senhora; não lhe farei -mais perder o seu tempo...</p> - -<p>—Não diga isso, Lisa, continuarei a retratal-a -como de costume...</p> - -<p>—Oh! não, aquella senhora não quer; se ella voltasse -e o encontrasse aqui, teriamos nova scena, isto -assusta minha avó, e eu não quero...</p> - -<p>—Aquella senhora não voltará aqui; demais, não -tem o direito de me impedir de fazer o que me agrada; -conheço-a ha muito tempo, ella estava habituada -a dar-me conselhos e eu ouvia-a como se ouve um -antigo conhecimento...</p> - -<p>—Aquella senhora é mais velha que o sr. Casimiro?...</p> - -<p>—Sim, é por isso que eu lhe mostrava uma certa -deferencia. Mas não é razão para que ella me tracte -como uma creança...</p> - -<p>—E é bem bonita, aquella senhora, mas deitava-me -uns olhos cheios de odio, que me faziam muita -pena...</p> - -<p>—Não pense mais n’ella, não tornará a vel-a.</p> - -<p>—Parece-me que teria muito gosto em a ver, se ella -me não tivesse deitado uns olhos tão terriveis. Sr. -Casimiro, é preciso levar o seu cavallete e não vir -mais aqui pintar...</p> - -<p>—Minha querida vizinha, espero que terá a bondade -de me dar ainda as sessões de que necessito, não -ha de querer que eu deixe um trabalho imperfeito; a -sua cabeça é um estudo que me fará muita honra, -assim o espero; permitta-me acabal-o com cuidado e -satisfazer-lhe o que lhe devo por todas as sessões que -me tem dado...</p> - -<p>—Mas o senhor não me deve nada, comprou-me o -vinho quinado...</p> - -<p>—Oh! isso pagava apenas tres sessões! depois tivemos -mais dez pelo menos, que eu pago bem mesquinhamente -dando-lhe esta remuneração.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_139"></a>[139]</span></p> - -<p>Casimiro põe trinta francos em cima da mesa, volta -a pegar na mão da rapariga, e aperta-a ternamente -nas suas, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Não chorará mais, esquecerá a scena d’esta -manhã, e dar-me-ha ainda algumas sessões, não é -verdade?</p> - -<p>Lisa sorri-se, e responde:</p> - -<p>—Far-lhe-hei a vontade, visto que assim o quer!</p> - -<p>Casimiro retira-se muito satisfeito.</p> - -<p>No dia seguinte, Rouflard, que entra todas as manhãs -em casa de Casimiro para saber se elle tem algum -recado para lhe dar, diz ao joven pintor:</p> - -<p>—Acabo de vêr o meu bom anjo, a menina Lisa, -que está feliz como uma rainha, e isto graças ao sr. -Casimiro!</p> - -<p>—Graças a mim! como é isso, Rouflard?</p> - -<p>—Porque, com o dinheiro que o senhor lhe deu -hontem, comprou ella uma colhér, de prata á avó, -uma bella colhér effectivamente, que lhe custou vinte -e dois francos. A velha doente está encantada, era a -sua mania, isto restituir-lhe-ha uma parte das -forças.</p> - -<p>—Estimo immenso ter podido melhorar um pouco -a posição de Lisa, que se mata com trabalho. E o sr. -Rouflard tem ido a casa do pintor a quem eu o recommendei?</p> - -<p>—Sim, senhor, mas não para fazer de romano, é -para fazer de saltimbanco. É verdade que isso para -mim é indifferente! servir de modelo para um heroe -ou para um salteador, é sempre servir de modelo.</p> - -<p>Decorrem alguns dias; Casimiro não deixa passar -um unico dia sem subir a casa de Lisa, que lhe mostra -a colhér de prata, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Estou muito contente! mas acreditará o senhor -que sonho todas as noites que m’a roubam? Isto faz-me -pesadelos.</p> - -<p>—Isso ha de passar, minha vizinha, a gente habitua-se -a tudo, mesmo aos talheres de prata.</p> - -<p>Casimiro não tornou a casa da sr.ª Montémolly, e, -com grande surpreza sua, não ouviu falar mais d’ella<span class="pagenum"><a id="Page_140"></a>[140]</span> -desde o seu rompimento. Applaude-se por emfim -quebrado um grilhão que já não podia supportar, e -entrega-se com ardor ao trabalho, porque quer poder -passar sem o socorro alheio. O seu quadrosinho de -<i>genero</i> vae saindo muito bom; o negociante de quadros -que veiu vel-o, ficou muito satisfeito, e offereceu-lhe -mesmo algum dinheiro adeantado, se elle o -precisasse.</p> - -<p>Mas, nas suas idas e vindas a casa, Rouflard, que -conversa amiude com o porteiro, repara, no penultimo -dia do arrendamento, que emquanto o inquilino -do primeiro andar faz a sua mudança, Chausson esfrega -as mãos, apressa quanto pode essa mudança, -depois, assim que vê a casa despejada, põe-se a encerar -o patamar do primeiro andar, a varrer cuidadosamente -os quartos desoccupados, e a observar se -tudo está aceiado e se ha têas de aranha n’algum recanto.</p> - -<p>—Com a breca! como se afadiga com o seu primeiro -andar! diz Rouflard ao porteiro, nunca esfregou -tanto em minha casa, nos meus bons tempos!</p> - -<p>—É que mesmo nos seus bons tempos nunca teve -uns aposentos tão esplendidos!</p> - -<p>—Está então arrendado o seu primeiro andar?</p> - -<p>—Sim, de certo, está arrendado, e magnificamente -arrendado; presumo que se muda para cá ámanhã o -novo inquilino, por isso fiz saír o outro hoje, para ter -tempo de arranjar tudo. Ah! ah! quero que ao entrar -aqui se veja tudo reluzente...</p> - -<p>—É algum dentista que vem para a casa?</p> - -<p>—Não... não é um dentista! é uma senhora... e -mesmo uma bonita senhora...</p> - -<p>—Ah! entendo, é uma <i>cocotte</i> de primeira ordem!</p> - -<p>—Não, senhor, pois eu arrendo lá a casa a <i>cocottes</i>! -porventura o predio não está bem habitado, não -contando com o senhor?...</p> - -<p>—Chausson, não me insulte; difficilmente acharia -um homem tão fino como eu para morar na sua -agua-furtada.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_141"></a>[141]</span></p> - -<p>—Sim, quando não está bebedo, tem ainda uma -boa presença.</p> - -<p>—A tal senhora bonita tem marido?</p> - -<p>—Não; pelo menos, creio que não. A final de contas, -como ella vem ámanhã, posso dizer ao senhor -quem é.</p> - -<p>—Então eu conheço-a?</p> - -<p>—Deve tel-a visto em casa do sr. Casimiro, é -aquella senhora que o vinha visitar tantas vezes, antigamente, -porque não tem aqui voltado desde que -arrendou o primeiro andar.</p> - -<p>—Como! seria a sr.ª Montémolly que arrendou o -quarto do primeiro andar?</p> - -<p>—Exactamente, a sr.ª Montémolly, é o nome que -está no seu bilhete.</p> - -<p>—Oh! com mil diabos!...</p> - -<p>Rouflard apressa-se a subir a casa do pintor, e -diz-lhe:</p> - -<p>—Venho dar-lhe uma noticia! o quarto do primeiro -andar foi arrendado pela sr.ª Montémolly, que -se muda para cá ámanhã.</p> - -<p>Casimiro fica aterrado; julgava-se para sempre -livre de Ambrosina, e ella vem morar para o seu -predio; não duvida que não seja para espreitar o seu -procedimento e saber que relações existem entre elle -e a menina do quinto andar. Estas relações são muito -innocentes, mas aos olhos do mundo, que procura -por toda a parte o mal e nunca o bem hão de parecer -criminosas. O que Casimiro receia sobretudo, é que -as frequentes visitas que elle faz a Lisa lhe tragam -ainda alguma scena desagradavel. Está a ponto de -subir a casa da sua vizinha para a prevenir do que -acontece, mas diz comsigo: Não devo assustal-a antes -de tempo. Aguardemos. Ambrosina não arrendou -talvez a casa para si, é tambem possivel que se não -mude ainda ámanhã.</p> - -<p>Mas no dia seguinte não é já possivel a duvida: -faz-se a mudança para o primeiro andar, e é effectivamente -a sua antiga amante que Casimiro vê -chegar; ouve já na escada a voz estrondosa da creada<span class="pagenum"><a id="Page_142"></a>[142]</span> -Adriana, que está muito contrariada por ter saído -da casa da rua Meslée, que dava sobre o <i>boulevard</i>, -para virem morar na rua Paradis-Poissonniére e -tomarem uma casa onde o quarto da creada está debaixo -da mesma chave que a dos amos.</p> - -<p>Então o joven pintor decide-se a subir a casa de -Lisa. Pelo seu ar perturbado, commovido, a rapariga -adivinha que succedeu algum caso desagradavel, e -diz:</p> - -<p>—O senhor tem alguma coisa; aquella senhora -voltou a vel-o; virá ella aqui, porventura.</p> - -<p>—Não, não é isso, Lisa, entretanto, é alguma coisa -que a vae contrariar, tenho a certeza.</p> - -<p>—Então, fale!</p> - -<p>—Aquella senhora, porque effectivamente é d’ella -que se tracta... o primeiro andar estava sem inquilino -para este semestre... a menina sabe isto sem -duvida.</p> - -<p>—Eu! não! pois eu occupo-me lá do que se passa -no predio? E então, o primeiro andar?...</p> - -<p>—Está arrendado... por... por essa senhora...</p> - -<p>—Que veiu aqui.</p> - -<p>—Sim.</p> - -<p>—Ah! meu Deus! e virá para cá brevemente?</p> - -<p>—Muda-se hoje...</p> - -<p>—Ella está aqui! no predio. Ah! vá-se embora, sr. -Casimiro, vá-se embora, muito depressa, se ella subisse -e o encontrasse... tenho medo d’essa senhora.</p> - -<p>—Socegue, ella não virá mais a sua casa, estou -persuadido d’isso; que motivo teria para cá voltar?</p> - -<p>—Virá procural-o...</p> - -<p>—Não, eu disse-lhe que já não a via. Estamos indifferentes, -e se ella me quizesse falar, é a minha -casa e não á sua que viria ter commigo...</p> - -<p>—Ah! o senhor diz isso para me socegar; d’aqui -em deante não me atreverei muis a descer a escada; -felizmento, não a desço muito! uma vez sómente, de -madrugada, para ir fazer as minhas compras; mas -não importa, sr. Casimiro, o meu retrato está acabado,<span class="pagenum"><a id="Page_143"></a>[143]</span> -como o senhor hontem confessou; portanto é mister -que não venha mais visitar-me...</p> - -<p>—Ah! Lisa, então já não sou seu amigo? não quer -receber-me em sua casa?</p> - -<p>—Não digo isso, mas não quero que essa senhora -aqui o encontre.</p> - -<p>—Serei prudente, eu conheço os habitos d’essa senhora, -e depois espreitarei as occasiões em que ella -sair, incumbirei isso a Rouflard, posso contar -n’elle.</p> - -<p>—Oh! é um excellente homem, esse Rouflard; é -pena embriagar-se; meu Deus! parece-me que ouço -subir!...</p> - -<p>—Não... é no quarto andar que abrem a porta...</p> - -<p>—Sr. Casimiro, leve d’aqui o seu cavallete... vendo-o -em minha casa, dirão: «Então elle continúa a -ir pintar lá?» e é preciso que se não possa dizer isto...</p> - -<p>—Pois sim, levarei o cavallete; mas isso não me -impedirá de a vir ver todos os dias, é para mim um -habito tão agradavel... não poderia mais trabalhar -em todo o dia se não a visse pela manhã; outro tanto -não acontece á menina...</p> - -<p>Lisa não responde, mas suspira olhando para Casimiro, -e o seu olhar vale a melhor resposta. O joven -pintor aperta-lhe a mão, e decide-se emfim a levar o -cavallete.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XV">XV<br /> -<span class="smaller">A menina Proh doente</span></h2> - -</div> - -<p>Durante todo este dia Casimiro teve uma especie -de febre; ficou em casa, mas deixou entreaberta a -porta da entrada para ouvir o que se passa na escada; -não ouviu senão o joven Fonfonso cantar com a musica -do carrilhão de Dunkerque:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_144"></a>[144]</span></p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Uma esgalgada girafa</div> - <div class="verse indent0">Rima certo com garrafa;</div> - <div class="verse indent0">Mas chimpanzé pelladinho</div> - <div class="verse indent0">Rima bem com coitadinho!</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>—Quem é que te ensinou essa infame cantiga? diz -de repente a sr.ª Proh, saíndo ao patamar.</p> - -<p>—Foi Rouflard, que a canta muitas vezes quando -desce da agua-furtada.</p> - -<p>—Que monstro que é esse borrachão do Rouflard! -não comprehendo que o meu vizinho Casimiro empregue -similhante homem; e tu, Fonfonso, se tornas -a cantar essa cantiga, levas uma roda de açoutes e -ponho-te a pão secco.</p> - -<p>—Sim? pois se me dás pão secco, direi que hontem, -com a força d’um espirro, deixaste cair os dentes postiços.</p> - -<p>—Cala-te, Lucifer! Ó céus! e dizer que ha pessoas -que desejam ter filhos!</p> - -<p>Casimiro não sae de casa senão para ir jantar. -Quando chega ao patim do primeiro andar, passa muito -depressa e depois sae sem levantar a cabeça. Vae -á noite ao theatro, e só recolhe depois da meia noite, -mas vê ainda luz nos quartos do primeiro andar. A -sr.ª Montémolly entretem-se sem duvida em arranjar -os seus novos aposentes. Elle, segundo o costume, -vae buscar a luz ao cubiculo do porteiro; então este -diz-lhe com ar malicioso:</p> - -<p>—O senhor sabe sem duvida quem tem agora a -felicidade de ter por vizinha?</p> - -<p>—Não, sr. Chausson, e affianço-lho que isso me interessa -pouco.</p> - -<p>—Não dirá o mesmo quando souber que arrendei -o primeiro andar á sr. Montémolly, uma amiga intima -do senhor.</p> - -<p>—Em primeiro logar, o sr. Chaussom faz amigas -intimas de simples conhecimentos, depois, nós tivemos -uma ligeira discussão, essa senhora e eu... estamos -indifferentes.</p> - -<p>—Ah! que pena! aposto que foi por causa da maldita<span class="pagenum"><a id="Page_145"></a>[145]</span> -politica! isso malquista toda a gente, mas o senhor -ha de fazer as pazes com essa senhora, que tem -muito bonitas maneiras.</p> - -<p>—Dê cá a minha luz, e faça favor de não me tornar -a falar em tal assumpto.</p> - -<p>Casimiro apressa-se a subir a casa, e o perteiro segue-o -com a vista, murmurando:</p> - -<p>—Ah! elle está arrufado com esta senhora! como -os homens são voluveis! dirá muita gente, e as mulheres -tambem: então, é coisa que está na natureza!...</p> - -<p>No dia seguinte pela manhã, o joven pintor sobe a -casa de Lisa; mas, antes d’isso, procurou Rouflard, e -pôl-o de sentinella na escada, com ordem de cantar a -canção dos <i>Lampiões</i> se vir subir a inquilina do primeiro -andar. D’este modo, não será surprehendido -em casa da sua vizinha; terá descido os dois andares -antes que Ambrosina tenha tido tempo de subir os -seus...</p> - -<p>Lisa põe-se ainda a tremer vendo entrar Casimiro -em sua casa. Mas este tranquilliza-a dizendo-lhe a -ordem que deu a Rouflard, relativamente á senhora -do primeiro andar. Casimiro não cessa de repetir a -Lisa que não era para elle mais que um simples conhecimento, -uma pessoa que o queria proteger, mas -que abusava da influencia que tinha tomado sobre -elle, influencia de que ha muito tempo estava, resolvido -a libertar-se. A rapariga, que não sabe nada do -que se passa no mundo, acredita tudo o que lhe diz -o vizinho. Conversam largo espaço; o tempo corre -tão depressa quando se está bem acompanhado! De -repente, Lisa empallidece, exclamando:</p> - -<p>—Ouvi cantar!...</p> - -<p>—Mas não é o Rouflard, é aquelle maldito garoto -do menino Proh!</p> - -<p>—É o mesmo, ouço muito barulho no predio é -preciso ir-se embora.</p> - -<p>—É Adriana que a menina ouve, a creada da sr.ª -Montémolly, quando esta rapariga está em alguma -parte, não se ouve senão ella.</p> - -<p>—Mas vae ver o Rouflard na escada.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_146"></a>[146]</span></p> - -<p>Em primeiro logar, para o ver, será preciso que -ella olhe para o ar.</p> - -<p>—Oh! estou bem certa que é a ordem que tem.</p> - -<p>—Vamos, socegue minha encantadora Lisa, eu me -vou embora, mas ámnhã...</p> - -<p>—Oh! sim, ámanhã tratarei de me habituar a ter -medo.</p> - -<p>Passam-se d’esta sorte oito dias. Casimiro sobe -pela manhã a casa de Lisa, depois de ter posto Rouflard -de sentinella na escada. Não tem encontrado Ambrosina, -nem mesmo a tem visto de longe, entretanto -está bem persuadido de que ella não veiu morar para -o mesmo predio sem ter o seu plano. Sabe que a sr.ª -Montémolly é bastante altiva, bastante orgulhosa -para procurar fazer as pazes com elle; mas sabe tambem -que é vingativa e deve ter formado o projecto -de se vingar.</p> - -<p>Ao nono dia da sua entrada nos seus novos aposentos, -alli pela volta do meio dia, Ambrosina sobe os -quatro andares que vão ter á morada de Lisa, e entra -de repente em casa da rapariga, que fica pallida e -tremula ao seu aspecto.</p> - -<p>«Todavia a sr.ª Montémolly não tem aquelle ar -terrivel com que uma vez se apresentou a Lisa; pelo -contrario, é sorrindo, é com um ar amavel, gracioso -mesmo, que ella se approxima, e lhe diz:</p> - -<p>—Perdão, menina, venho talvez incommodal-a, -mas sou ha oito dias sua vizinha, moro no primeiro -andar, soube, pela sr.ª Proh, que a menina se occupava -em trabalhar em roupa branca, e venho perguntar-lhe -se quererá trabalhar para mim?</p> - -<p>Lisa está de tal modo perturbada, que pode apenas -balbuciar:</p> - -<p>—Mas, minha senhora, queira sentar-se... Perdão, -não ouvi bem o que me disse.</p> - -<p>—Socegue, menina; pois eu metto-lhe medo?</p> - -<p>—Oh! sim, minha senhora, quero dizer, não, minha -senhora, agora não... mas é que receava...</p> - -<p>—Que viesse ainda contender com o sr. Casimiro? -Socegue, no outro dia fiz mal, convenho n’isso, mas<span class="pagenum"><a id="Page_147"></a>[147]</span> -eu sou muito arrebatada; aquelle senhor tinha-me -faltado muitas vezes á sua palavra para o meu retrato -e isto tinha-me encolerisado. E o retrato da menina -está acabado?</p> - -<p>—Sim, minha senhora.</p> - -<p>—Mas o sr. Casimiro continúa a vir vizital-a?</p> - -<p>—Algumas vezes, minha senhora...</p> - -<p>—Ora, tem todo o direito de o fazer. Mas a menina -ainda me não respondeu sobre o fim da minha visita; -quer trabalhar para mim?</p> - -<p>—Oh! certamente, minha senhora, com muito -gosto.</p> - -<p>—Muito bem. E borda tambem?</p> - -<p>—Sim, minha senhora.</p> - -<p>—Então, aqui tem estes lenços de cambraia, quero -as minhas iniciaes bordadas; olhe, como este... pode -bordar-m’as?</p> - -<p>—De certo, minha senhora.</p> - -<p>—Pois aqui lhe deixo estes seis e o modelo; mas -faça isto de seu vagar, quando tiver tempo, eu não -tenho pressa nenhuma. Emquanto ao preço, a menina -dirá quanto quer.</p> - -<p>—Oh! minha senhora, ficarei satisfeita com o que -a senhora me der.</p> - -<p>—Adeus, menina, ou antes, até á vista, porque ha-de -permittir que eu venha algumas vezes saber se -pensa em mim.</p> - -<p>—Oh! quando a senhora quizer.</p> - -<p>—Já lhe não metto medo, espero?</p> - -<p>—Não, minha senhora, pelo contrario, sinto agora -que terei muito prazer em a receber.</p> - -<p>Estas palavras parecem surprehender Ambrosina -que, entretanto, faz uma mesura graciosa á rapariga -e retira-se. Lisa está bastante commovida, mas muito -contente de não ter já em sua casa o cavallete. No -dia seguinte, não falta a dar parte a Casimiro da visita -que recebeu. Este não fica satisfeito com isso; -abana a cabeça murmurando:</p> - -<p>—Ambrosina, que quer que a menina trabalhe para -ella... Ambrosina, amavel, affectuosa com a menina....<span class="pagenum"><a id="Page_148"></a>[148]</span> -hum! isso não é natural; tome cuidado, Lisa, -não confie n’essa senhora, porque tudo isto esconde -alguma perfidia!</p> - -<p>—Oh! sr. Casimiro, creio que não tem razão, e que -d’esta vez é injusto para com essa senhora; já não tenho -nenhum receio d’ella; pelo contrario, é uma coisa -bem exquisita, parece-me que estou quasi a ter-lhe -affeição...</p> - -<p>—Ah! é que a menina não suspeita de nada, não -desconfia dos laços que lhe podem armar!</p> - -<p>—Laços? oh! aquella senhora tem um sorriso encantador... -isso não pode occultar uma perfidia.</p> - -<p>—Bem se vê que não conhece o mundo.</p> - -<p>—Meu Deus! é então um conhecimento bem máu, -pois que se deve sempre desconfiar d’elle!</p> - -<p>—D’esse modo, fará a obra que a senhora lhe deu?</p> - -<p>—Sem duvida, são uns lenços magnificos para bordar... -mas é obra que ha de levar muito tempo.</p> - -<p>—E irá levar-lh’os a casa quando estiverem promptos?</p> - -<p>—Sim. Acaso não faço eu o mesmo á sr.ª Proh? porque -havia de ser menos cortez com esta senhora do -primeiro andar?</p> - -<p>Casimiro não diz nada, mas deixa Lisa, muito inquieto -com a visita que ella recebeu.</p> - -<p>D’ahi a poucos dias cae doente a menina Angelina -Proh; a mãe receia que seja uma constipação de peito; -o pae sustenta que é uma febre miliar, e o menino -Proh affirma que sua irmã está doente por ter comido -uvada de mais. Mas as indigestões são ás vezes -perniciosas, e podem dar logar a outras doenças; quer -a uvada tenha ou não alguma coisa n’isso, o que é -certo é que a rapariga tem uma grande febre, uma -sede ardente, e por vezes um pouco de delirio.</p> - -<p>Os Proh não têem creada, porque o ex-professor -sustenta que, n’uma casa onde ha duas mulheres, não -se deve ter necessidade de tomar uma terceira para -os arranjos domesticos, e que seria isso um luxo inutil. -Não ha pois senão a sr.ª Proh para tractar de sua -filha, porque o papá encerra-se na sua dignidade, e o<span class="pagenum"><a id="Page_149"></a>[149]</span> -Fonfonsinho, como quebra tudo quanto apanha, não -pode ser utilizado. Como a joven Angelina tem estado -bastante doente para que seja mister velar junto -d’ella de noite, a sr.ª Proh anda que não pode comsigo, -e diz um dia ao maride:</p> - -<p>—Senhor, eu não posso mais; se isto continua, vou -tambem caír doente; ha duas noites que não durmo -e eu não sou de ferro...</p> - -<p>—Eu nunca disse que a senhora era de ferro, se as -mulheres fossem de ferro, seria isso bem incommodo -nas relações que a natureza nos manda ter com ellas.</p> - -<p>—Vejamos, Castor, porque é que não quer tomar -uma creada? a nossa posição permitte-nos isso...</p> - -<p>—A nossa posição é muito correcta como está: nós -somos quatro, o quadrado perfeito, uma pessoa de -mais em casa desarranjaria o equilibrio e a rectidão; -não, a rectidão não é o termo próprio, devo dizer o -rectangulo...</p> - -<p>—Oh! senhor, quanto me aborrece com os seus -quadrados e as suas combinações. Quer então que eu -caia doente?</p> - -<p>—Não, senhora, porque seria preciso dobrada tisana, -dodrado xarope, e por conseguinte seria dobrada -despeza; não poderia ser esse o meu desejo.</p> - -<p>—E’ todavia o que ha de acontecer se eu tiver -de passar ainda esta noite velando á cabeceira de -nossa filha. Quer o seehor ficar?</p> - -<p>—Eu? mas a senhora bem sabe que, em chegando -a minha hora de dormir, é-me impossivel resistir-lhe; -torno-me um arganaz, um buzio, se acham melhor, -ainda que a comparação é estrambotica; eu por consequencia -não seria de nenhuma utilidade.</p> - -<p>—Então é mister tomar uma enfermeira...</p> - -<p>—Uma enfermeira! introduzir uma estranha nos -meus lares! Nunca! isso é estupido e perigoso.</p> - -<p>—Entretanto, declaro-lhe que não quero passar -em claro a noite proxima; não poderia resistir... -Ah! uma idéa!... a menina Lisa... sim, ella é muito -obsequiadora, não se negará a vir um instante revzar-me;<span class="pagenum"><a id="Page_150"></a>[150]</span> -esta não dirá o senhor que é uma estranha... -conhecemol-a perfeitamente.</p> - -<p>—A menina Lisa... sim, essa mora no predio. Em -rigor, podemos occupal-a.</p> - -<p>—Subo immediatamente a casa d’ella; quero estar -certa de ter alguem esta noite ao pé de minha -filha.</p> - -<p>Lisa fica menos admirada vendo entrar em sua -casa a vizinha do terceiro andar, para quem tem trabalhado -muitas vezes. A sr.ª Proh explica-lhe immediatamente -o motivo da sua visita, e a rapariga -responde-lhe:</p> - -<p>—Oh! minha senhora, eu estimaria muito poder -ser-lhe prestavel; mas, para ir para sua casa, teria de -deixar minha avó...</p> - -<p>—Mas sua avó, emquanto está a dormir não tem -precisão da menina; lembre-se de que pode ir lá -para baixo ás dez horas da noite, e pela manhã ás -sete e meia, oito horas quando muito, voltará para -junto d’ella. Demais, sua avó não está melhor?</p> - -<p>—Sim, minha senhora, graças ao vinho quinado, -passa muito melhor desde certo tempo para cá. Não -é verdade, avósinha, que vae agora melhor?</p> - -<p>A velha levanta-se um poucochinho na cama, dizendo:</p> - -<p>—Sim, minha filha, sim, vou melhor. Ah! é que -tu tractas bem de mim; e depois déste-me uma colhér -de prata, e isso deu-me grande prazer. Mostra-a lá á -nossa vizinha.</p> - -<p>—Oh! avósinha, isso pouco interessa a esta senhora.</p> - -<p>No entanto, para fazer a vontade á avó, Lisa -mostra á sr.ª Proh a colhér de prata, que é muito -simples.</p> - -<p>—É uma prova de que a menina faz as suas economias, -diz Celeste, dou-lhe os meus parabens...</p> - -<p>Depois a sr.ª Proh approxima-se da paralytica, e -diz-lhe:</p> - -<p>—Não é verdade que a senhora poderia dispensar -a sua neta por uma noite, e permittir que ella venha<span class="pagenum"><a id="Page_151"></a>[151]</span> -velar á cabeceira de minha filha, que está doente? -desceria só ás dez horas da noite e voltaria logo de -manhã; oh! com isso me faria um grande serviço.</p> - -<p>—Sim, sim, pode ir; vae, Lisa, para obsequiares a -senhora. Bem sabes que eu, em adormecendo á noite, -não tenho mais precisão de ti. Oh! eu estou melhor.</p> - -<p>—Como! pois a avósinha consente em que eu a -deixe uma noite inteira?</p> - -<p>—Sim, minha filha, sim; é preciso obsequiar esta -senhora.</p> - -<p>—Pois bem, visto que a avósinha consente. Minha -senhora, esta noite ás dez horas, estarei em sua casa.</p> - -<p>—Ah! muito agradecida, a menina é muito amavel; -retiro-me sem mais demora, porque tenho que -preparar a cabeça de vitella para meu marido; até á -noite.</p> - -<p>Ás dez horas em ponto, assim que adquire a certeza -de que sua avó dorme socegadamente, Lisa sae -do seu quarto e dirige-se a casa da sr.ª Proh. Esta -aguardava-a com impaciencia, porque tinha muita -necessidade de dormir. Leva a sua joven vizinha para -o quarto de cama de sua filha, e ahi a deixa, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Angelina está hoje melhor, creio que não terá -uma noite desassocegada; em todo o caso, aqui está -em cima d’esta mesa tudo o que é preciso: a tisana -sobre a lampada de espirito de vinho, assucar para a -tisana, uma colherinha para a mecher, depois uma colhér -de sopa para dar d’este xarope que vê n’esta -garrafa; mas isto, sómente lh’o dará se ella não puder -dormir e estiver agitada; comprehende bem?</p> - -<p>—Sim, minha senhora, tudo isso não é difficil.</p> - -<p>—Se por acaso sobrevier alguma coisa extraordinaria, -acorde-me, eu durmo aqui no quarto do lado; -mas espero que não acontecerá nada. Aqui tem uma -grande poltrona onde ficará perfeitamente... e livros. -A menina gosta de ler?</p> - -<p>—Oh! muito, minha senhora.</p> - -<p>—Então aqui tem um romance que a ha de captivar, -está cheio de crimes, assassinatos, enforcamentos,<span class="pagenum"><a id="Page_152"></a>[152]</span> -torturas, é muito interessante. Angelina já o leu -duas vezes; é desde esse tempo que ella tem tido delirio. -Mas eu vou-me deitar, porque estou com muito -somno; os meus homens dormem já como pedra em -poco... vou fazer outro tanto; minha filha está socegada, -não tenho precisão de lhe dizer que é mister -não a acordar.</p> - -<p>—Oh! pode ir descansada, minha senhora.</p> - -<p>—Não se esqueça das minhas instrucções: uma -colhér de xarope, sómente se ella estiver agitada.</p> - -<p>—Sim, minha senhora.</p> - -<p>E a sr.ª Proh retira-se. Lisa, que não deixou de -trazer trabalho para fazer, senta-se a bordar. Passado -algum tempo a doente pede de beber, e Lisa -apressa-se a dar-lhe um copo de tisana. Angelina -reconhece-a, e diz-lhe:</p> - -<p>—Ah! é a menina que me está velando... sim a -mamã tinha-me prevenido...</p> - -<p>—Como se acha a menina?</p> - -<p>—Muito melhor.</p> - -<p>—Quer uma colhér de xarope?</p> - -<p>—Não, não é preciso... sinto que vou outra vez -adormecer; agradecida.</p> - -<p>Effectivamente, a menina Proh torna em breve a -pegar no somno. Lisa volta ao seu bordado, mas este -genero de trabalho cansa muito a vista. Larga-o pois -por um momento, e cede ao desejo de conhecer o romance -que a sr.ª Proh lhe gabou. Senta-se para isso -na grande poltrona; mas, no fim d’algum tempo, quer -por fadiga quer por effeito do romance, Lisa adormece -profundamente.</p> - -<p>São seis horas da manhã quando a sr.ª Proh entra -no quarto da filha, e ainda Lisa esfrega os olhos.</p> - -<p>—Então, como se passou esta noite? pergunta Celeste. -A nossa doente ainda está a dormir, é bom signal.</p> - -<p>—Oh! minha senhora, a noite foi muito socegada; -a menina só pediu de beber uma vez.</p> - -<p>—Muito bem; então não tomou o xarope?</p> - -<p>—Não, minha senhora.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_153"></a>[153]</span></p> - -<p>—Ás mil maravilhas! Decididamente, creio que -Angelina vae entrar em convalescença.</p> - -<p>—Minha senhora, visto que está levantada, permitte-me -que volte immediatamente para junto de -minha avó, não é verdade?</p> - -<p>—Sim, certamente, vá, minha menina, nós nos entenderemos -a respeito da remuneração pela sua noite -de véla.</p> - -<p>—Oh! minha senhora, não falemos n’isso, estimo -muito ter podido obsequial-a!...</p> - -<p>E a joven enfermeira, com a pressa de subir a sua -casa, está já na saleta de entrada, quando a voz da -sr.ª Proh a chama:</p> - -<p>—Lisa, Lisa!...</p> - -<p>—O que quer, minha senhora?</p> - -<p>—Onde metteu a menina a colhér do xarope!... -não a acho.</p> - -<p>—Não a acha!... deve estar no mesmo sitio, minha -senhora; pois que não tive precisão de me servir -d’ella...</p> - -<p>—Diz que não se serviu d’ella!... comtudo, a colhér -não está já em cima da mesa... olhe, veja a menina...</p> - -<p>Lisa vê em cima da mesa, depois debaixo, depois -em todos os moveis, em toda a parte, e a sr.ª Proh faz -outro tanto do seu lado; mas não se acha a colhér.</p> - -<p>—É singular! diz Lisa.</p> - -<p>—E mais que singular! exclama Celeste, cuja physionomia -tomou já um aspecto severo. Emfim, a menina -bem sabe que eu deixei-lhe sobre esta mesa duas -colheres de prata, uma pequena e uma grande, a pequena -aqui está, mas que é feito da grande? é preciso -que appareça, é preciso! não entrou aqui outra -pessoa além da menina... logo é a menina a unica -responsavel pela colhér...e a menina ia saindo com -tanta pressa...</p> - -<p>—Oh! minha senhora, pois pode suspeitar que eu -levava a sua colhér! ah! veja bem, minha senhora, -esquadrinhe tudo... veja nas minhas algibeiras, no -meu vestido. Oh! meu Deus! suspeitar-me de-furtar...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_154"></a>[154]</span></p> - -<p>—Eu não digo isso; mas algumas vezes, inadvertencia... -sem fazer reparo...</p> - -<p>—Oh! veja, minha senhora, peço-lhe eu, faça favor -de me revistar!...</p> - -<p>A sr.ª Proh apressa-se a passar revista ás algibeiras -de Lisa; apalpa-a por toda a parte, ausculta-a como -faria um cirurgião, examina-lhe até os sapatos, ainda -que a rapariga tem o pé tão pequeno que o seu calçado -mal poderia conter uma colhér pequena. Esta -inspecção severa prova á esposa do antigo professor -que Lisa não levava a colhér.</p> - -<p>—Então, minha senhora, está agora persuadida de -que eu não levava nada? diz Lisa.</p> - -<p>—De certo, bem vejo que a não tem em si, mas -então o que fez a menina á colhér? vamos... procure... -atirou certamente alguma agua pela janella e -deitou fóra tambem a colhér.</p> - -<p>—Não, minha senhora, não atirei nada pela janella.</p> - -<p>—Ou deixou-a caír n’alguma parte?</p> - -<p>—Eu não saí d’este quarto, minha senhora; não -fui ao patamar...</p> - -<p>—Oh! ao patamar, de facto, não teria podido lá ir, -porque eu fecho sempre com tres voltas a porta que -dá para a escada; e tem um ferrolho de segredo... -acabo agora de a abrir...</p> - -<p>—De modo que a senhora está bem certa de que -eu não saí de sua casa esta noite durante o seu -somno...</p> - -<p>—Valha-me Deus! não digo o contrario!... mas -tudo isso não me restitue a minha colhér...</p> - -<p>—Ha-de se achar, minha senhora, ha de se achar -no momento em que menos se pensar n’ella.</p> - -<p>—Mas onde diabo a escondeu?...</p> - -<p>—Para que quer a senhora que eu a tenha escondido? -com que fim? porque motivo? Volto para juncto -de minha avó, que deve estar agora acordada... -a senhora fica bem certa de que não levo a sua colhér, -não é verdade?</p> - -<p>—Estou certa de que não a tem em si... mas que -diabo fez d’ella?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_155"></a>[155]</span></p> - -<p>—Oh! se é preciso pagar-lhe o valor da colhér, eu -lh’o pagarei, chegarei a isso á força de trabalho; mas, -por quem é, não fale em similhante coisa a minha -avó, que lhe faria muito mal...</p> - -<p>—Está bem, menina, está bem, falarei a esse respeito -com o sr. Proh.</p> - -<p>Lisa sobe para sua casa muito triste e com os olhos -rasos de lagrimas, dizendo comsigo:</p> - -<p>—Suspeitarem de ter furtado! oh! é horrivel isto! -O sr. Casimiro tinha muita razão em dizer que desconfiasse -do mundo! E todavia esta senhora não pode -querer affligir-me; mas que foi então feito d’aquella -maldita colhér!...</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XVI">XVI<br /> -<span class="smaller">Mais um caso extraordinario</span></h2> - -</div> - -<p>A sr.ª Proh não falta a contar esta aventura a seu -esposo, e o professor exclama:</p> - -<p>—Não introduza nunca pessoas estranhas nos seus -lares, eu tinha-a prevenido; ahi estamos com uma -colhér de menos, por sua culpa.</p> - -<p>—Mas, senhor, a menina Lisa não é uma estranha... -demais estou bem persuadida de que ella não levou a -nossa colhér.</p> - -<p>—Então foi a colhér que se foi embora sósinha.</p> - -<p>—Eu apalpei-a, revistei-a bem por toda a parte e -ella não a tinha.</p> - -<p>—Pensou a senhora revistar tudo... ha sitios mysteriosos -onde se escondem muitas coisas; pergunte -aos ladrões onde escondem os diamantes que roubaram!...</p> - -<p>—Oh! senhor, uma colhér de sopa não se esconde -como um diamante, ainda se fosse uma das pequenas!...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_156"></a>[156]</span></p> - -<p>—Senhora, ha pessoas que teem grandes facilidades.</p> - -<p>Esta historia da colhér de prata desapparecida não -tarda a saber-se em todo o predio, e a ser o assumpto -de todas as conversações. Adriana, que a ouve contar -no cubículo do porteiro, não falta a ir referil-a a sua -ama, que a escuta muito atenta, mas sem fazer reflexão.</p> - -<p>—A senhora deu obra a fazer áquella rapariga, diz -Adriana, mas quando ella aqui vier trazel-a, terei o -cuidado de não lhe tirar a vista de cima, e de não -deixar por ahi nada ao alcance da mão.</p> - -<p>—Quando ella aqui vier, diz Ambrosina, ficará a -menina no seu quarto até que eu a chame. Não se esqueça -disto...</p> - -<p>Adriana retira-se resmungando. O porteiro revistou -o pateo e os canos das aguas; está persuadido de que -a menina Lisa não é culpada. O Fonfonsinho canta -na escada:</p> - -<div class="poetry-container"> -<div class="poetry"> - <div class="stanza"> - <div class="verse indent0">Ficámos sem uma colhér de prata,</div> - <div class="verse indent0">Desde que Lisa velou minha mana</div> - </div> -</div> -</div> - -<p>E Rouflard, que ouve isto, apanha o rapazito pelos -fundilhos das calças e suspende-o no ar, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Aposto que foste tu, velhaquete, que pregaste a -peça; provavelmente foste buscar a colhér durante a -noite para tomares xarope.</p> - -<p>—Não é verdade... eu durmo com o papá, não me -levanto de noite; isso é bom para o senhor.</p> - -<p>—Cala-te, sapo!...</p> - -<p>Os gritos do rapazinho fazem acudir os esposos -Proh, assim como o jovem pintor. Ao saber dos boatos -que correm a respeito de Lisa, Casimiro fica furioso; -dirige-se à sr.ª Proh:</p> - -<p>—Espero, minha senhora, que não suspeite que Lisa -lhe tenha furtado essa peça de baixela que lhe falta?</p> - -<p>—Eu não digo que foi ela que a tirou, mas digo que<span class="pagenum"><a id="Page_157"></a>[157]</span> -foi quem a perdeu; acha que isto me possa ser agradavel?</p> - -<p>—Minha senhora, eu fico responsavel por essa menina, -e, aconteça o que acontecer, a senhora não perderá -nada.</p> - -<p>—E eu, exclama Rouflard, repito que a menina Lisa -é incapaz de commetter uma acção feia! é um modelo -de probidade, como de juizo, de prudencia, de -bondade. Quem trabalha sem descanço para sustentar -uma velha paralytica, não deve um instante ser suspeitada.</p> - -<p>—Mas parece que a velha tem um grande amor -pelas colhéres de prata, replica a sr.ª Proh, porque -ella propria me mostrou uma que a sua Lisa lhe tinha -comprado...</p> - -<p>—O que prova á senhora que ella não tem precisão -da sua.</p> - -<p>—Abundancia de bens não prejudica, diz o professor.</p> - -<p>—Ahi está uma reflexão bem digna do sr. Prorata.</p> - -<p>Os esposos Proh voltam para sua casa cheios de -colera. Casimiro apressa-se a subir a casa de Lisa. -Acha-a com os olhos vermelhos de chorar; ella põe -um dedo na bocca mostrando-lhe a avó. Casimiro -comprehende que a rapariga occulta á pobre velha o -caso da colhér; vae sentar-se ao pé da donzella e -pega-lhe na mão, murmurando muito baixo:</p> - -<p>—Tem então ainda algum desgosto, Lisa, a menina -que merecia ser tão feliz?</p> - -<p>—Ah! sr. Casimiro, o senhor sabe sem duvida a -historia da colhér, ouço d’aqui o filho da sr.ª Proh -que a canta na escada.</p> - -<p>—Sim... eu sei pouco mais ou menos...</p> - -<p>—Mas não acredita que eu tenha querido tirar uma -colhér de prata á sr.ª Proh, não é verdade?</p> - -<p>—Pois a menina pode fazer-me similhante pergunta! -acaso não sei eu o que a menina vale! ah! eu faço-lhe -justiça, a sua alma é pura como o seu olhar...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_158"></a>[158]</span></p> - -<p>—E a senhora Montémolly, tem-n’a visto? sabe o -que ella pensa a este respeito?</p> - -<p>—Não tenho visto essa senhora, não a encontro -nunca, ella deve pensar como quasi todos os outros -inquilinos do predio, que anda aqui brincadeira, ou -antes maldade do rapazinho.</p> - -<p>—Não, elle não veiu ao quarto.</p> - -<p>—Mas a menina não dormiu um só instante em -toda a noite?</p> - -<p>—Sim... dormi... até bastante tempo.</p> - -<p>—Pois então alguem poude entrar durante o seu -somno, e tirar essa colhér; mas esteja socegada -aposto que brevemente descobriremos essa pessoa...</p> - -<p>São passados seis dias, e os Proh não acharam -ainda a colhér. Entretanto Ambrosina levou para sua -casa a filha da sua amiga Florentina, emquanto esta -foi tomar banhos do mar. A pequenita tem oito annos, -e é muito bonita; mas sobrevem-lhe o sarampo, acompanhado -d’uma febre violentissima. A menina Adriana, -que tem muito medo de que se lhe pegue o sarampo, -não se approxima do leito da doentinha senão -de má vontade.</p> - -<p>Então Ambrosina sobe de manhã cedo a casa de -Lisa, que primeiramente se põe a tremer ao seu -aspecto, mas logo se tranquilliza ao ver o sorriso -d’esta senhora, que lhe diz:</p> - -<p>—Menina, venho pedir-lhe um obsequio; tenho em -minha casa a filha d’uma das minhas melhores amigas, -que m’a confiou emquanto dura uma viagem -que ella era obrigada a fazer; tenho os maiores cuidados -com a Adelinasinha; mas este anjinho está -n’este momento com sarampo e com uma febre ardentissima; -a minha creada, que tem medo do sarampo, -não tracta d’ella muito bem. Emfim, a menina -fazia-me um grandissimo obsequio se quizesse vir -passar esta noite á cabeceira da doentinha. Como sei -que teve essa complacencia para com a sr.ª Proh, -pensei que se não recusaria a fazer outro tanto por -mim.</p> - -<p>—Sim, minha senhora, responde Lisa suspirando<span class="pagenum"><a id="Page_159"></a>[159]</span> -sim, passei uma noite á cabeceira da filha da sr.ª Proh, -mas deve saber que desgosto isso me occasionou; -desappareceu n’essa noite uma colhér de prata, que -não se achou mais; a sr.ª Proh bem sabe que não fui -eu que lh’a tirei; mas, apesar d’isso, quem sabe! ha -talvez ainda pessoas que suspeitam de mim.</p> - -<p>—Este meu passo, deve provar-lhe que eu não sou -d’essas pessoas; ao contrario, pedindo-lhe que vá ficar -de noite em minha casa, pensei que isso poria -termo a todos esses contos inconvenientes. A menina -não se pode recusar...</p> - -<p>—Mas, minha senhora...</p> - -<p>—Não lhe peço que vá ás dez horas, desça um -pouco antes da meia noite; depois, voltará cedo para -sua casa. Bem vê que sua avó não terá tempo de dar -pela sua ausencia...</p> - -<p>—Minha senhora, não me atrevo a recusar; entretanto -isto custa-me muito; tenho tanto desgosto -pela noite que passei em casa da sr.ª Proh.</p> - -<p>—Isso é uma creancice; em minha casa nada tem -que recear. Até á noite, alli pela volta da meia -noite... ou antes se quizer.</p> - -<p>—Oh! prefiro ir tarde.</p> - -<p>—Muito bem, está tractado; espero pela menina, -porque quero eu mesma apresental-a no quarto da -minha doentinha.</p> - -<p>Ambrosina retira-se. Lisa deseja ardentemente ver -Casimiro para lhe dar parte da sua nova contrariedade; -o joven pintor não se faz esperar muito tempo. -Ao saber o que a sr.ª Montémolly acaba de pedir a -Lisa, fica bastante surprehendido, e parece não gostar -de que esta tenha acceitado.</p> - -<p>—Acaso fiz mal em acceder a ir ficar de noite em -casa d’essa senhora? diz a donzella.</p> - -<p>—A menina não se podia excusar, comprehendo, -tendo-se já prestado a ir a casa da sr.ª Proh.</p> - -<p>—E depois, aquella senhora é agora muito amavel -commigo; bem vê que não dá credito aos aleives que -se teem espalhado por causa d’aquella colhér perdida.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_160"></a>[160]</span></p> - -<p>—Vejo; effectivamente, o procedimento d’essa senhora -prova que ella faz-lhe justiça; e todavia custa-me -a acreditar que ella lhe queira bem...</p> - -<p>—Porque não?</p> - -<p>—Ah! porque... emfim, vá esta noite velar a -Adelinasinha, mas ámanhã, de manhã cedo, eu espreitarei -a sua volta para casa.</p> - -<p>—Oh! voltarei muito cedo.</p> - -<p>É meia noite menos alguns minutos quando Lisa -bate á porta da senhora do primeiro andar. É a gorda -Adriana que vem abrir-lh’a e a introduz junto de -sua ama, que recebe a donzella com um sorriso que -não é talvez bem franco, mas que quer parecel-o. A -sr.ª Montémolly apressa-se a conduzir Lisa para um -lindo quarto onde dorme a doentinha, dizendo:</p> - -<p>—Puz Adelina no quarto que reservo para a mãe -d’ella, quando habita no campo e vem por acaso a -Paris. Penso que a menina ficará aqui muito bem; -por este corredor pode-se sair sem haver necessidade -de acordar ninguem.</p> - -<p>—Oh! minha senhora, eu não terei necessidade de -sair esta noite, para quê?</p> - -<p>—Ahi tem uma poltrona onde poderá repousar e -mesmo dormir um pouco, se a doentinha estiver em -socego. Aqui tem livros... Ah! quer cear?</p> - -<p>—Oh! não, minha senhora, eu nunca ceio.</p> - -<p>—Em todo o caso, se tiver fome, aqui tem bolos, -biscoitos e vinho. Isto é tisana para a pequena; n’esta -garrafinha está um calmante. E então, aquella tola -da Adriana não poz aqui uma colhér! Adriana! -Adriana!...</p> - -<p>A creada acode esfregando os olhos.</p> - -<p>—Adriana, traga para aqui uma colhér grande e -algumas pequenas; se esta menina quizer tomar vinho -com assucar, não se ha de servir da mesma colhér -que empregar para a tisana.</p> - -<p>A creada sae, e volta logo em seguida com uma -colhér grande e duas pequenas, que ella põe em cima -da mesa de cabeceira, dizendo:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_161"></a>[161]</span></p> - -<p>—Isto faz uma colhér grande e tres pequenas... -porque já cá estava uma.</p> - -<p>—Está bem, Adriana, está bem! ninguem lhe pergunta -a conta.</p> - -<p>—Mas eu desejo muito fazer ver isto á senhora.</p> - -<p>—Vá-se deitar.</p> - -<p>—Isso e o que eu quero é a mesma coisa.</p> - -<p>—Agora, menina Lisa, vou tambem descançar... -a menina tem o que lhe é preciso; não deseja mais -nada?</p> - -<p>—Não, minha senhora, muito agradecida.</p> - -<p>—Quando a pequenita acordar, é preciso fazel-a -beber; depois, se tossir, deve-lhe dar o calmante.</p> - -<p>—Pode ir socegada, minha senhora.</p> - -<p>—Boa noite, até ámanhã. Virei cedo saber noticias -da minha Adelina.</p> - -<p>Lisa fica só. Põe-se a admirar o quarto onde se -acha; a mobilia é toda nova e d’um gosto lindo.</p> - -<p>—Que felicidade não é viver n’um aposento tão -bonito, diz ella comsigo; mas a final de contas, tambem -aqui se pode estar muito doente, e ter tanto -desgosto como n’um modesto quarto de qualquer -agua-furtada; eis aqui uns livros, mas não lerei nenhum, -trouxe o meu trabalho, vou trabalhar.</p> - -<p>Lisa deita-se ao bordado. D’ahi a pouco a Adelinasinha -acorda, e ella dá-lhe de beber; um pouco mais -tarde a creança tosse, e ella faz-lhe tomar uma colhér -do calmante. Assim se passa uma parte da noite. -Pela volta das tres horas, o somno apodera-se de -Lisa, que procura em vão resistir-lhe porque n’ella -a necessidade de dormir era tão imperiosa que não a -podia vencer. Mas, como a sua doentinha dorme -mui socegadamente, a joven enfermeira não tarda a -fazer outro tanto.</p> - -<p>Cerca das sete horas da manhã, Lisa acorda, e -quasi no mesmo instante, abre-se uma porta e aparece -a sr.ª Montémolly embrulhada n’um lindo roupão. -Approxima-se da cama dizendo:</p> - -<p>—Então, como vae a pequenita? passou bem a -noite?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_162"></a>[162]</span></p> - -<p>—Sim, minha senhora, muito bem; a menina tossiu -pouco e dormiu optimamente; eu mesma cedi um -pouco ao somno esta madrugada.</p> - -<p>—Não ha mal nenhum n’isso, visto que a pequena -não precisava de nada. Ah! ahi acorda ella. Bons -dias, Adelina, como te sentes esta manhã?</p> - -<p>A pequenita responde que se sente melhor, mas -põe-se a tossir; Ambrosina exclama logo:</p> - -<p>—Dê-me uma colhér do calmante, para eu lh’o -fazer tomar; isso ha de aplacar-lhe a tosse.</p> - -<p>Lisa corre á mesa onde estava o frasquinho e a -colhér.</p> - -<p>—Então, dê-me esse calmante, torna Ambrosina, -bem ouve a creança estar a tossir...</p> - -<p>—Sim, minha senhora, sim... mas é que... não -acho a colhér...</p> - -<p>—É que a pôz n’outro sitio... faça favor de a procurar...</p> - -<p>—Valha-me Deus! é o que eu estou fazendo, minha -senhora; mas não percebo isto... não a vejo...</p> - -<p>—Mas a menina sabe muito bem que lhe ficou aqui -uma, não é verdade?</p> - -<p>—De certo, minha senhora, pois que me servi d’ella -duas vezes esta noite...</p> - -<p>—Então é que procura mal. Adriana! Adriana!... -ah! é capaz de estar ainda a dormir... Adriana!...</p> - -<p>Chega emfim a creada, esfregando os olhos:</p> - -<p>—O que é, minha senhora?</p> - -<p>—É que esta menina não acha a colhér que estava -aqui hontem á noite...</p> - -<p>—Ah! bem me lembro, havia uma grande e tres -pequenas...</p> - -<p>—As tres pequenas aqui estão, diz Lisa, mas não -comprehendo como a grande não está aqui tambem...</p> - -<p>—Ora! exclama a menina Adriana, olhem que -admiração! terá ido juntar-se com a da sr.ª Proh...</p> - -<p>—Oh! menina, é indigno isso que está dizendo! -Minha senhora, acaso vae tambem pensar que tenho -eu a sua colhér?</p> - -<p>—Menina, o que quer que eu lhe diga... quando<span class="pagenum"><a id="Page_163"></a>[163]</span> -os factos falam... é preciso render-se a gente á evidencia; -a menina mesma concorda em que tinha aqui -uma colhér de prata...</p> - -<p>—Sim, minha senhora, sim convenho n’isso; repito-lhe -que me servi d’ella esta noite para dar o calmante -á menina...</p> - -<p>—Pois bem! vossemecê ficou sósinha aqui esta -noite... e esta manhã esse objecto desappareceu. -Que outra pessoa, por consequencia, pode tel-a tirado?</p> - -<p>—Oh! minha senhora, reviste-me, faça favor... -verá que o não tenho...</p> - -<p>—É inutil, quando alguem tira uma coisa não a -esconde em si.</p> - -<p>—Oh! é o mesmo, exclama Adriana, vou revistal-a -eu; porque, emfim, não quero que se perca prata nenhuma -na casa onde eu estou a servir.</p> - -<p>A creada corre ás algibeiras de Lisa, e vira-as inteiramente; -depois apalpa a rapariga de alto a baixo, -e termina a sua inspecção exclamando:</p> - -<p>—Nada! oh! affianço que não tem a colhér em si.</p> - -<p>—Então, minha senhora, bem vê, diz Lisa.</p> - -<p>—Vejo que a não escondeu em si; mas, se não a -acharmos, é que a menina a terá levado para outra -parte.</p> - -<p>—Mas para onde, minha senhora, se não saí d’este -quarto?</p> - -<p>—Quem me prova isso? por este corredor pode-se -sair perfeitamente sem acordar ninguem...</p> - -<p>—Oh! minha senhora, é horrivel pensar isso. Meu -Deus meu Deus! sou bem desgraçada!...</p> - -<p>Lisa rompe em soluços. Adriana tem-se posto de -gatas e esquadrinha debaixo de todos os moveis; mae -em vão se procura por toda a parte, a colhér não se -acha. Ambrosina approxima-se da pobre Lisa, que se -afflige muito, e diz-lhe:</p> - -<p>—Socegue, não darei seguimento a este negocio, o -que outrem talvez faria, vá, não a demoro mais. Tomarei -unicamente a liberdade de dizer ao sr. Casimiro<span class="pagenum"><a id="Page_164"></a>[164]</span> -que não é feliz na escolha dos seus novos conhecimentos.</p> - -<p>Lisa não escuta mais nada; tarda-lhe sair d’aquelle -quarto, que ella achou tão bonito na vespera. Caminha, -mal podendo suster-se, e chega assim até á escada. -Mas, no segundo andar, encontra Casimiro, que -a estava esperando, e que exclama, vendo-a lavada -em lagrimas:</p> - -<p>—O que foi? que succedeu? o que tem a menina ainda? -o que é que lhe fizeram para chorar assim?</p> - -<p>Lisa conta a Casimiro o que se acaba de passar, e -refere-lhe as palavras de Ambrosina, que lhe disse -que ella teria podido sair sem acordar ninguem.</p> - -<p>—Mas então, diz Casimiro, podia-se tambem chegar -até junto da menina sem ser ouvido. A menina -dormiu durante a noite?</p> - -<p>—Ai! sim, pelas tres horas não pude resistir ao -somno, é mais forte do que eu.</p> - -<p>—Ah! que fatalidade, porque durante o seu somno -poude alguem entrar n’esse quarto..</p> - -<p>—Não me parece porque teria acordado.,.</p> - -<p>—Suppôr que a menina tenha tirado essa colhér, -isso não tem senso commum, depois do que aconteceu -em casa da sr.ª Proh... que lhe causou tão grande -degosto!</p> - -<p>—É justamente por isso que me accusam ainda, a -creada d’essa senhora disse-me: «A colhér foi-se juntar -cem a da sr.ª Proh.»</p> - -<p>—Isso é indigno!... mas socegue, Lisa, ha em tudo -isto um mysterio que eu conseguirei descobrir, não -descançarei emquanto a sua innocencia não estiver -completamente reconhecida.</p> - -<p>O joven pintor consegue acalmar um pouco a magua -de Lisa, acompanha-a até á sua porta, e deixa-a -promettendo-lhe mais uma vez que ha-de obrigar -toda a gente a fazer-lhe justiça. Mas Casimiro promettia -o que elle proprio não sabia como cumprir, -porque debalde dava tratos á imaginação para adivinhar -como era que as colhéres de prata desappareciam -dos quartos onde Lisa passava a noite.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_165"></a>[165]</span></p> - -<p>Depois de ter entrado um momento em sua casa, -Casimiro sae, decidido a ir ter com Ambrosina, para -saber se ella crê devéras que a rapariga seja criminosa. -Mas já a aventura da noite é sabida em todo o -predio; porque o primeiro cuidado de Adriana foi ir -dizer ao porteiro que a menina Lisa deu em casa de -sua ama segunda representação da noite em que ficara -em casa da sr.ª Proh. Chausson, que sente certa -sympathia pela inquilina do quinto andar, tem muita -pena de ser obrigado a julgal-a criminosa, mas -Rouflard, que escutou a creada de Ambrosina, diz-lhe:</p> - -<p>—A menina é uma tola em ter má lingua! é mister -ser imbecil, depois das historias da colhér perdida -em casa da sr.ª Proh, para suppôr que uma rapariga -que quizesse commetter um furto repetisse exactamente -a mesma historia dois andares mais abaixo...</p> - -<p>—Pois bem! então onde está a colhér?</p> - -<p>—Que sei eu? debaixo das suas saias talvez....</p> - -<p>—O senhor insulta-me, eu sou uma rapariga honrada, -toda a gente o sabe, e tenho orgulho n’isso.</p> - -<p>—Quem é honrada, não se gaba de o ser, não faz -mais que o seu dever....</p> - -<p>—Fica-lhe bem falar assim, o senhor que bebe o -<i>rhum</i> que lhe mandam comprar. Ah! eu sei essa historia; -o porteiro tem-me contado as suas proezas.</p> - -<p>—Contou-lhe tambem as d’elle, quando era meu -creado?</p> - -<p>—O senhor teve um creado? oh! é boa pilheria...</p> - -<p>—Pouco me importa que o acredite ou não, não é -de mim que se tracta, é da menina Lisa, que eu lhe -prohibo accusar de furto.</p> - -<p>—O senhor prohibe-me! Ah! eu não faço caso das -suas prohibições, sim, a menina Lisa furtou uma cochér, -ou duas, para melhor dizer...</p> - -<p>Adriana dizia isto gritando com todas as suas forças; -Rouflard está furioso. Ao barulho que se faz no -patamar do primeiro andar, quasi todos os inquilinos -do predio teem saído de suas casas, e Casimiro -chega alli no momento em que Ambrosina vinha<span class="pagenum"><a id="Page_166"></a>[166]</span> -tambem á escada para ordenar á sua creada que se -callasse.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XVII">XVII<br /> -<span class="smaller">O que era</span></h2> - -</div> - -<p>Casimiro pára deante de Ambrosina, dizendo-lhe.</p> - -<p>—E a senhora tambem acredita que aquella menina -lhe tenha tirado essa colhér de prata que lhe falta?</p> - -<p>Ambrosina tracta de dominar a impressão que lhe -causa a vista de Casimiro, com quem ella se não tinha -encontrado desde a altercação que dera em resultado -o rompimento das suas relações, e responde-lhe -com um tom levemente ironico:</p> - -<p>—Na verdade, sinto muito o que acontece, sobretudo -por sua causa; lamento que seja a sua protegida -aquella a quem o senhor sacrificou uma antiga amizade, -que se tenha tornado culpada d’uma acção tão -reprehensivel, mas é forçoso reconhecer o que é, o que -não se pode negar...</p> - -<p>—Mas, minha senhora, essa menina tem sido sempre -um modelo de honestidade, de bom comportamento. -A senhora sabe como ella trabalha para que -a sua velha paralytica não sinta falta de coisa alguma...</p> - -<p>—Tudo o que quizer, senhor, mas então ache-me -a colhér...</p> - -<p>—Podia ter entrado alguem em sua casa emquanto -Lisa dormia, porque ella dormiu.</p> - -<p>—Quem queria o senhor que entrasse... ladrões? -mas o porteiro havia de saber se entraram alguns no -predio, e o senhor não suppõe, presumo eu, que seja -alguem da minha casa que tenha entrado no quarto -onde a menina Lisa estava velando a Adelinasinha... -Ella dormiu, diz o senhor, dil-o ella, mal quem o -prova?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_167"></a>[167]</span></p> - -<p>—Ora! demais, exclama a sr.ª Proh, que desceu do -terceiro andar para se metter na conversação; não se -dirá que em minha casa poude alguem entrar até junto -da enfermeira; depois, ha em tudo isto alguma coisa -que deve fazer condemnar Lisa, é o amor, a paixão -da avó pelas colhéres de prata, a sua menina comprou-lhe -uma ultimamente, que ella se apressou a mostrar-me. -E’ provavel que a velha tenha querido ter outras...</p> - -<p>—A senhora está a calumniar pessoas honradas, -não o consentirei!...</p> - -<p>—Eu não calumnio, digo o que é e custa pouco a dizer: -Ella está innocente! está innocente! então onde estão -as nossas colhéres?</p> - -<p>Uma senhora que mora por cima de Ambrosina, -que tem cincoenta annos, o ar muito distincto, o aspecto -frio, severo mesmo, e não fala a ninguem no -predio, mas que, attrahida pelo barulho que se faz -na escada, ouviu tudo o que se acaba de dizer no patamar -do primeiro andar, desce tambem ahi por sua -vez, e diz a Casimiro:</p> - -<p>—O senhor não crê a menina Lisa culpada, nem eu -tão pouco; mas ha em tudo isto um mysterio que é -preciso descobrir, estou persuadida de que o hei de -conseguir eu...</p> - -<p>—Ah! minha senhora! restituirá a vida a essa pobre -Lisa, porque ella morrerá de desgosto se a sua -innocencia não fôr por todos reconhecida... fale, o -que tenciona fazer?...</p> - -<p>—Senhor, para isso é preciso que essa menina consinta -em vir passar esta noite em minha casa, dir-lhe-hei -que minha irmã, que vive commigo, está doente, -e que é preciso que alguem a fique velando...</p> - -<p>—Ah! minha senhora, Lisa não quererá; depois do -que lhe aconteceu duas vezes, como quer a senhora -que ella consinta ainda em velar alguem?</p> - -<p>—Consentirá se o senhor se encarregar de lhe pedir, -se lhe disser que é para ficar certa da sua innocencia -que lhe pede este ultimo sacrificio d’uma -noite...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_168"></a>[168]</span></p> - -<p>—Oh! minha senhora, se assim é, eu a decidirei a -ficar velando esta noite em sua casa.</p> - -<p>—Pois bem! então, mande-a vir á meia noite. Pedirei -a estas senhoras que estejam em minha casa -um pouco antes.</p> - -<p>—Para quê? pergunta a sr.ª Proh.</p> - -<p>—Para serem testemunhas do que lá se ha de passar, -e, como espero, reconhecerem a innocencia de -Lisa.</p> - -<p>—Oh! a mim é-me impossivel estar de véla, isso -constipa-me...</p> - -<p>—Eu não faltarei, diz Ambrosina, antes da meia -noite terei a honra de a ir visitar.</p> - -<p>—Muito bem, com o sr. Casimiro e commigo, será -o sufficiente. O senhor terá a extrema bondade de vir -durante o dia dizer-me se Lisa consente em vir ficar -de véla em minha casa?...</p> - -<p>—Vou immediatamente lá acima, minha senhora, -e em breve terá a sua resposta.</p> - -<p>—Muito bem. Minhas senhoras, tenho a honra de -as cumprimentar.</p> - -<p>A sr.ª Durmont, é este o nome da inquilina do segundo -andar, sobe para sua casa, deixando cada vizinha -a fazer os seus commentarios.</p> - -<p>—Eu não creio nada que esta senhora descubra o -mysterio, diz a sr.ª Proh.</p> - -<p>—Ficará tambem sem uma colhér, murmura -Adriana.</p> - -<p>A sr.ª Montémolly manda calar a creada, e entra -com ella para casa.</p> - -<p>—Ahi está uma senhora respeitavel, exclama Rouflard -olhando para o segundo andar; aquella não é de -continhos, diz lá comsigo: A pequena não tirou as -colhéres, mas ha n’isso um mysterio, logo é preciso -descobril-o...</p> - -<p>—E como se haverá ella para isso? diz o porteiro.</p> - -<p>—Isso está acima da sua capacidade...</p> - -<p>—E da sua tambem...</p> - -<p>—Vossê esquece-se da sua posição, meu ex-<i>frontinio</i>!...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_169"></a>[169]</span></p> - -<p>—Qual <i>frontinio</i>!... eu sou guarda-portão...</p> - -<p>—Então, varra melhor o pateo.</p> - -<p>Casimiro não perde um instante; sobe a casa de -Lisa, que elle acha sempre na mesma tristeza, e diz-lhe:</p> - -<p>—Tenho boas noticias a annunciar-lhe. A sr.ª Durmont, -esta senhora que mora no segundo andar, interessa-se -pela menina e não duvida da sua innocencia...</p> - -<p>—Ah! agradeço-lhe muito; com effeito, essa senhora -sempre olhou para mim com bondade...</p> - -<p>—Mas não é só isso; ella quer que a verdade seja -conhecida de todos, que se descubra o que é feito das -duas colhéres que desappareceram.</p> - -<p>—Ah! como serei feliz se ella consegue fazer isso; -é a vida, porque é a honra que essa senhora me restituirá. -E o que fará ella para isso?</p> - -<p>—Oh! vae parecer-lhe singular; mas é preciso que -esta noite a menina consinta ainda em ir velar em -casa d’ella, ao pé de sua irmã, que está doente.</p> - -<p>—Velar, passar a noite longe de minha avó? oh! -não, não, bem sabe que é uma coisa que sempre me -traz desgraça.</p> - -<p>—Mas d’esta vez é pelo contrario para a justificar -que se lhe pede isso. O que pode recear? aquella -senhora interessa-se pela menina, ceda pois, peço-lhe -eu, consinta mais esta vez; tenho confiança na sr.ª -Durmont, ella descobrirá de certo o mysterio que -reina n’essas duas noites inexplicaveis...</p> - -<p>—E’ essa a sua vontade? pois bem! farei o que o -senhor quer; mas em casa d’essa senhora terei o cuidado -de não adormecer.</p> - -<p>—Sim, é isso; d’esse modo verá o que se passar. -A’ meia noite virei buscal-a, e eu mesmo a levarei a -casa d’essa senhora.</p> - -<p>—Terá essa bondade?</p> - -<p>—Ah! Lisa, tracta-se da sua felicidade, da sua -reputação; pois a menina acredita que alguem tome -n’isso mais interesse do que eu? Então, está ajustado; -á meia noite estará prompta?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_170"></a>[170]</span></p> - -<p>—Oh! sim, a essa hora já minha avó está a dormir.</p> - -<p>—Eu virei buscal-a.</p> - -<p>E, deixando Lisa, Casimiro dirige-se immediatamente -a casa da vizinha do segundo andar, e diz-lhe:</p> - -<p>—Lisa consentiu; á meia noite eu lh’a trarei.</p> - -<p>—Muito bem.</p> - -<p>—Prometteu não se deixar dormir, e eu incitei-a -tambem a isso, para que ella veja se alguem vem -ter com ella durante a noite.</p> - -<p>—Oh! o senhor fez muito mal, pelo contrario, é -preciso que Lisa durma, é indispensavel; é com isso -que eu conto...</p> - -<p>—Não a comprehendo, minha senhora.</p> - -<p>—Ha de comprehender-me esta noite; demais, -vou preparar uma bebida ligeiramente soporifica, -e pedir-lhe-hei que a faça beber o senhor mesmo a -essa menina, dizendo-lhe que é para se conservar -bem esperta.</p> - -<p>—Mas, minha senhora...</p> - -<p>—Senhor, se Lisa não dormir, não saberemos nada, -e esta experiencia será completamente inutil.</p> - -<p>—Oh! n’esse caso obedecerei, porque tenho confiança -na senhora.</p> - -<p>—Folgo de crer que se não arrependerá. Venha, -senhor, acompanhe-me, vou leval-o ao quarto onde -Lisa ha de ficar velando esta noite; é onde dorme -minha mana, que goza de perfeita saude, mas que -fingirá estar doente, e pela noite adeante pedirá de -beber duas ou tres vezes quando a sua enfermeira -não estiver a dormir.</p> - -<p>A sr.ª Durmont faz entrar o rapaz n’um bello -quarto de dormir, que tem duas portas: uma, que -é de vidraça, dá para outro quarto; ahi estão os -vidros apenas cobertos por uma ligeira cortina de -cassa. A senhora leva Casimiro a este quarto, e diz-lhe:</p> - -<p>—Não acha, senhor, que detraz d’esta vidraça se -pode ver tudo quanto se faz no quarto onde Lisa ha -de ficar?</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_171"></a>[171]</span></p> - -<p>—Sim, minha senhora, effectivamente, não ha nada -mais facil; como a cortina está d’este lado, pode-se -facilmente affastar.</p> - -<p>—Tanto mais que, pela maneira porque ha de estar -allumiado o quarto de minha mana, esta porta de -vidraça ficará completamente na obscuridade. Pois -bem, senhor, é aqui, de traz d’esta vidraça e sem que -a pequena o saiba, que nós passaremos a noite, o senhor, -a vizinha do primeiro andar e eu; parece-lhe -que poderemos assim vêr tudo o que Lisa fizer?</p> - -<p>—Certamente, minha senhora; mas, não comprehendo...</p> - -<p>—Espere, espere, e estou certa de que ha de comprehender -esta noite. O senhor terá a bondade de me -trazer a menina Lisa, e fingirá que vae para sua casa, -mas voltará aqui por est’outro lado; não se esquecerá -do caminho?</p> - -<p>—Fique descançada, minha senhora, não me esquecerei -de coisa alguma...</p> - -<p>—Até á noite, senhor.</p> - -<p>Casimiro deixa esta senhora, procurando em vão -adivinhar o que ella espera. Emcontra Rouflard e -communica-lhe as suas inquietações. O ex-janota abana -a cabeça, dizendo:</p> - -<p>—Eu tambem não adivinho nada em tudo isso; mas -em todo o caso, affianço-lhe que passarei a noite na -escada deante da porta d’essa senhora, e que se algum -larapio de colhéres tentar introduzir-se na casa, começarei -pelo desancar.</p> - -<p>Assim que dá meia noite, Casimiro dirige-se a casa -da sua vizinha. Acha-a muito triste, a tremer, mas -prompta a seguil-o, porque sua avó está a dormir. A -rapariga apressa-se a pegar no seu trabalho, e, sem -dizer palavra, vae acceitar o braço que lhe offerece -Casimiro. Descem assim alguns degraus.</p> - -<p>—A menina está a tremer, diz-lhe o seu braceiro, -tem frio?</p> - -<p>—Não, pelo contrario, tenho muito calor; mas estou -a tremer, porque adivinho ainda uma desgraça...</p> - -<p>—Mas, ao contrario, são os seus desgostos que vão<span class="pagenum"><a id="Page_172"></a>[172]</span> -acabar, socegue, esta senhora quer que a sua innocencia -brilhe aos olhos de toda a gente.</p> - -<p>—E como se haverá para isso?...</p> - -<p>—E’ segredo d’ella... tenha confiança.</p> - -<p>Chegam ao segundo andar. A sr.ª Durmont vem -pessoalmente ao seu encontro, e leva-os para o quarto -onde a irmã está deitada ha muito tempo.</p> - -<p>—E’ aqui que a menina ficará velando, diz ella á sua -joven vizinha; tome uma chavena de chá, que lhe ha -de fazer bem e conserval-a acordada.</p> - -<p>—Agradecida, minha senhora, não preciso de nada.</p> - -<p>—Lisa, diz Casimiro, tome o que esta senhora lhe -offerece, peço-lhe eu, isso ha-de socegal-a.</p> - -<p>—Se o senhor o deseja...</p> - -<p>E a rapariga bebe o conteúdo da chavena que lhe -apresentam.</p> - -<p>—Agora, boa noite, diz Casimiro, vou para minha -casa... até ámanhã...</p> - -<p>—Sim, até ámanhã.</p> - -<p>O joven pintor retira-se. A sr.ª Durmont diz então -a Lisa:</p> - -<p>—Minha menina, aqui tem tudo quanto lhe é preciso; -tisana para quando minha irmã pedir de beber... -uma colhér d’este xarope quando ella tossir.</p> - -<p>—Uma colhér, ah! sim... ahi temos outra; mas -podia-se passar sem ella, minha senhora.</p> - -<p>—Não... pelo contrario, é indispensavel; precisa -mais alguma coisa?</p> - -<p>—Oh! não, minha senhora, de nada absolutamente.</p> - -<p>—N’esse caso, vou deixal-a; minha irmã parece menos -afflicta esta noite, creio que lhe dará pouco que -fazer, aqui tem uma grande poltrona onde estará á -sua vontade para repousar. Porque, se minha irmã -dormir, tambem a menina pode descançar um pouco.</p> - -<p>—Oh! não, minha senhora, não quero... velarei -sempre...</p> - -<p>—Boa noite, menina, até ámanhã.</p> - -<p>Assim que a sr.ª Durmont se retira, Lisa senta-se -n’uma cadeira e pega no seu trabalho, dizendo comsigo:</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_173"></a>[173]</span></p> - -<p>—Oh! não, não me deixarei dormir, para que durante -o meu somno venham ainda tirar a colhér... -Ah! se eu tivesse velado sempre, não teria acontecido -isso; mas esta lampada allumia perfeitamente, -posso bordar.</p> - -<p>Casimiro entretanto dirigiu-se ao quarto que lhe -foi indicado e que está apenas allumiado por uma -lamparina. Encontra alli Ambrosina, que está sentada -junto da porta de vidraça; toca um frio cumprimento -com ella, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Agradeço-lhe, minha senhora, o não ter faltado -aqui, para ter a prova da innocencia de Lisa...</p> - -<p>—Desejo-o muito, porque eu não sou tão má como -o senhor pensa; mas confesso-lhe que duvido que -se consiga proval-a.</p> - -<p>Põe termo a este colloquio a chegada da sr.ª Durmont, -que colloco a lamparina muito longe da porta -de vidraça, dizendo:</p> - -<p>—D’esta maneira, é impossivel que do quarto da -minha mana se veja que ha luz aqui, emquanto que nós, -atravez d’esta ligeira cortina de cassa, podemos ver -tudo o que alli se passa. Olhe, minha senhora, tenha -a bondade de vêr...</p> - -<p>—Ambrosina põe a cara á vidraça e murmura:</p> - -<p>—Effectivamente, vejo muito bem, porque o quarto -està muito illuminado... a rapariga trabalha...</p> - -<p>—Sim, e agora é preciso termos paciencia, devemos -esperar que ella adormeça.</p> - -<p>—Mas se não adormecer?</p> - -<p>—Oh! estou certa do contrario, graças a um ligeiro -narcotico que misturei na chavena de chá que lhe fiz -tomar, e creio que era isso necessario, porque ella estava -muito decidida a não dormir. Mas aquella beberagem -não fará talvez o seu effeito senão dentro de -duas ou tres horas... d’aqui até lá, se a senhora -quer encostar-se n’esta poltrona...</p> - -<p>—Não, minha senhora, muito agradecida, não tenho -vontade de dormir, porque estou com muita curiosidade -de saber o que sairá de tudo isto.</p> - -<p>Esta conversação era toda em voz baixa, o que augmentava<span class="pagenum"><a id="Page_174"></a>[174]</span> -o mysterio que esta noite devia descobrir. -As tres pessoas alli reunidas teem-se sentado e guardam -silencio, pondo os ouvidos á escuta do que se -passa no quarto onde está Lisa. A irmã da sr.ª Durmont, -que sabe bem o seu recado, pede de beber; a -rapariga apressa-se a dar-lhe a tisana, e em seguida -offerece-lhe uma colhér de xarope, que é logo acceita. -Lisa torna a pôr a colhér em cima do meza, e senta-se -ao lado. A supposta enferma adormece devéras, e a -rapariga põe-se de novo ao seu trabalho.</p> - -<p>Assim se passa uma hora, e depois outra. A anciedade -de Casimiro augmenta; Ambrosina não diz palavra, -mas não fecha os olhos. A sr.ª Durmont olha -constantemente pela vidraça, murmurando:</p> - -<p>—Mas a pequena não adormece... conseguiria ella -vencer o narcotico!...</p> - -<p>—Passam ainda alguns minutos, que parecem seculos; -a final a sr.ª Durmont exclama:</p> - -<p>—Ah! debalde pretende resistir, cae-lhe o trabalho -das mãos, vae adormecer...</p> - -<p>—Sim, sim, adormece, diz Casimiro; veja, lá inclinou -a cabeça para traz. Oh! ella ahi está bem adormecida...</p> - -<p>—E agora, diz Ambrosina olhando tambem pela -vidraça, o que é que se vae passar?...</p> - -<p>—Espere, minha senhora, espere que o somno seja -bem profundo, agora podemos levantar de todo esta -cortina sem receio de sermos vistos.</p> - -<p>E’ levantada a cortina. As tres pessoas que espreitam -estão com os olhos pregados em Lisa; esta, no -fim de algum tempo, agita-se; o seu somno parece -desassocegado e molesto.</p> - -<p>—Coitada! parece-me bem afflicta, diz Casimiro, -deve estar com algum sonho máu...</p> - -<p>—Ah! ahi acorda ella... porque lá se levanta e abre -os olhos, diz Ambrosina.</p> - -<p>—Silencio, minha senhora, silencio, diz a sr.ª Durmont; -ella continúa dormindo, não vê que é somnambula?</p> - -<p>—Somnambula!</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_175"></a>[175]</span></p> - -<p>—Pois! escute... está falando...</p> - -<p>Lisa, que continua a dormir, não obstante estar -com os olhos muito abertos, levanta-se da cadeira, -dizendo:</p> - -<p>—Sim, avósinha, sim, vou fechar a sua colhér de -prata... que a avósinha estima tanto, e que tem tanto -medo que nos furtem. Oh! mas eu a esconderei bem, -não tenha cuidado, sempre no mesmo sitio, a avósinha -bem sabe, debaixo do meu colchão de crina...</p> - -<p>E Lisa vae immediatamente buscar a colhér que -está em cima da mesa, e, indo pôr-se de joelhos deante -da cama, mette-a entre o leito e o colchão; depois -ergue-se, dizendo:</p> - -<p>—Oh! está bem escondida, ninguem dará com -ella... não tenha medo agora, avósinha...</p> - -<p>Lisa volta para o seu logar, torna a sentar-se e fecha -os olhos. A’s tres pessoas que espreitam pela vidraça, -não lhes escapou nada do que se passou. Casimiro -está transportado de alegria.</p> - -<p>—Justificada! exclama elle, está justificada, porque -as outras colhéres devem estar escondidas no -mesmo sitio, não é verdade, minha senhora?</p> - -<p>—Certamente! responde a sr.ª Durmont, esta rapariga -é somnambula, eis o que eu havia adivinhado; -eis o que eu tinha a peito fazer-lhes ver: agora, venham, -podemos entrar no quarto, que ella não acordará...</p> - -<p>—Somnambula! diz Ambrosina, que custa a cair -em si do seu espanto. Ah! estou com muita curiosidade -de a examinar de perto.</p> - -<p>Aberta a porta de vidraça, entram todos tres no -quarto de dormir. Lisa está na poltrona, com a cabeça -inclinada para traz, e, na agitação do seu somno, -afastou completamente o lencinho que lhe cobria o -pescoço; pode-se então ver uma pequena medalha -presa a uma fita preta, que ella traz sempre escondida -debaixo do vestido.</p> - -<p>A sr.ª Montémolly, que duvida ainda do somno de -Lisa, approxima-se d’ella e examina-a com muita attenção.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_176"></a>[176]</span></p> - -<p>—Venha, minha senhora, diz-lhe Casimiro, venha, -vamos a sua casa, a colhér deve estar egualmente escondida -debaixo do leito da sua doentinha; é preciso -que a senhora tenha pessoalmente a prova da innocencia -de Lisa...</p> - -<p>Mas Ambrosina parece estar attonita; acaba de ver -a medalha que a rapariga traz ao pescoço; essa medalha, -que tem uma fórma particular, é esmaltada -toda em roda e artisticamente lavrada. Ambrosina -não pode tirar d’ella os olhos, e responde apenas a -Casimiro:</p> - -<p>—Vá, senhor, vá com essa senhora... não precisam -de mim; a minha creada está velando, com luz... demais, -aqui teem a minha chave...</p> - -<p>—Mas porque não vem a senhora comnosco?</p> - -<p>—Porque não, alguma coisa muito mais importante -me faz ficar ao pé de Lisa; logo saberão o que -é... andem, vão...</p> - -<p>Casimiro não insiste, porque demais está com pressa -de ir procurar a outra colhér; a sr.ª Durmont não -tem menos pressa, porque sente certo orgulho em -ter conseguido descobrir o mysterio que envolvia as -acções de Lisa. Na escada encontram Rouflard, o qual -se puzera alli de sentinella.</p> - -<p>—Justificada! diz-lhe logo Casimiro, Lisa é somnambula, -e a dormir, pensando sempre na colhér da -avó, esconde debaixo do colchão de crina quantas colhéres -encontra á mão. Vamos procurar a que ella -deve ter escondido assim em casa da sr.ª Montémolly.</p> - -<p>—Ah! por favor, permittam-me que vá tambem, -exclama Rouflard, gostarei muito de ver a cara que -vae fazer a besbilhoteira da creada!...</p> - -<p>—Venha, Rouflard, venha...</p> - -<p>Entram em casa de Ambrosina, e acham a menina -Adriana a dormir na sala em vez de estar velando á -cabeceira da doentinha; mas Casimiro desperta-a dizendo-lhe:</p> - -<p>—Venha comnosco, menina, conduza-nos ao quarto -onde Lisa passou hontem a noite; vamos lá achar -esse objecto perdido...</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_177"></a>[177]</span></p> - -<p>—A colhér? ah! isso agora é forte de mais; se eu -procurei por toda a parte inutilmente!...</p> - -<p>Mas não fazem caso do que diz a creada, e dirigem-se -todos ao bonito quarto onde dorme a pequenita. -Ahi, Casimiro corre á cama, busca debaixo do colchão -de crina e não tarda a soltar um grito de jubilo, -tirando para fóra a colhér e mostrando-a a toda a -gente.</p> - -<p>Então Rouflard pula de alegria, e diz a Adriana:</p> - -<p>—Responda a isto, má lingua! parece que não tinha -buscado por toda a parte!</p> - -<p>—Oh! valha-me Deus! quem é que podia suspeitar -que se fosse pôr uma colhér de prata n’este sitio; com -que fim?</p> - -<p>—Quando uma pessoa é somnambula faz coisas -muito mais admiraveis!</p> - -<p>—Somnambula?...</p> - -<p>—Sim, eis todo o mysterio! Ah! subo a casa dos -Proh, para lhes dizer onde teem a colhér...</p> - -<p>—Mas elles estão a dormir, Rouflard!</p> - -<p>—Razão de mais, meu artista; isso ha de fazer-lhes -mais effeito! quero que a justificação do meu anjo -bom faça tanta bulha como as calumnias que lhe -accusavam.</p> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<h2 class="nobreak" id="XVIII">XVIII<br /> -<span class="smaller">Outra descoberta</span></h2> - -</div> - -<p>Casimiro e a sr.ª Durmont voltam a ter com Ambrosina; -acham-n’a ainda ao pé de Lisa, que não -acordou, devorando com os olhos a medalha suspensa -ao pescoço da donzella, mas não se atrevendo -a tocar-lhe, com receio de a fazer sair do somno -um pouco forçado em que a mergulhou o narcotico -que lhe fizeram tomar.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_178"></a>[178]</span></p> - -<p>—Minha senhora! minha senhora! aqui tem a sua -colhér! exclama Casimiro mostrando a colhér de -prata; estava escondida como aqui; graças a esta -senhora, a pobre rapariga está plenamente justificada...</p> - -<p>—Sim, senhor, sim; eu não duvidava d’isso; mas -alguma coisa que não posso comprehender me detem -ao pé de Lisa; esta medalha que ella traz, é exactamente -como aquella que eu tinha posto ao pescoço -de minha filha; a minha abria-se, e na parte anterior -tinha eu mandado gravar duas letras: um A e um G, -que eram as iniciaes do meu nome e do de seu pae; -ardo em desejo de saber se esta medalha se pode -abrir, mas não me atrevo a tocar-lhe com receio de -acordar esta menina...</p> - -<p>—Oh! não ha perigo! diz a sr.ª Durmont, o seu -somno é profundo agora; espere... espere, vou tirar-lhe; -ou antes desatar esta fita.</p> - -<p>A inquilina do segundo andar faz esta operação -com muito geito; desata a fita, tira a medalha, e -apresenta-a a Ambrosina; esta pega n’ella com a -mão tremula, busca, descobre a juntura; a medalha -abre-se. Ambrosina dá um grande grito, acaba de -reconhecer as duas letras, e mostra-as ás pessoas que -a rodeiam, dizendo-lhes:</p> - -<p>—Olhem! vejam... um A e um G... é exactamente -a medalha que eu tinha posto ao pescoço de minha -filha quando a entreguei á ama. Como é que ella se -acha ao pescoço d’esta menina?</p> - -<p>Entretanto o grito dado por Ambrosina acordou -Lisa, que abre os olhos, põe-se a olhar para as pessoas -que a cercam, e balbucia:</p> - -<p>—Meu Deus! o que é que eu fiz ainda?...</p> - -<p>—Não receie nada, minha menina, diz a sr.ª Durmont, -a sua innocencia está reconhecida; tudo lhe será -explicado...</p> - -<p>—Mas n’este momento, diz Ambrosina, queira responder-me, -esta medalha, que a menina trazia ao -pescoço, e que eu tomei a liberdade de lhe tirar para<span class="pagenum"><a id="Page_179"></a>[179]</span> -a examinar de mais perto, d’onde lhe veiu? de quem -a houve?</p> - -<p>—De quem a houve? mas eu tenho-a tido sempre, -foi minha mãe que m’a pôz ao pescoço quando me -levou para casa da minha ama.</p> - -<p>—Sua mãe? meu Deus!... como se chama ella?</p> - -<p>—Eu nunca o soube, ella não dizia o seu nome -quando vinha ver-me a casa da minha ama...</p> - -<p>—Como! a menina não sabe? e tem comsigo sua -avó... ella existe?...</p> - -<p>—Ah! minha senhora, a pobre velha paralytica -não é minha parenta; era mãe da minha boa ama, que -tinha muito cuidado em mim, que me conservou -comsigo, quando minha mãe me abandonou; eis a razão -por que eu, quando a minha ama morreu, tive sempre -cuidado em sua mãe...</p> - -<p>—Meu Deus! tudo o que estou ouvindo... minha -menina... por quem é... diga-me a terra onde foi -educada...</p> - -<p>—Em Pierrefitte, minha senhora...</p> - -<p>—Pierrefitte... está bem, ah!... e o nome da sua -ama...</p> - -<p>—Catharina Vauger...</p> - -<p>—Ah! não me resta duvida! és minha filha!...</p> - -<p>Ambrosina aperta Lisa nos braços, e cobre-a de -beijos, dizendo-lhe:</p> - -<p>—Sim, és effectivamente minha filha, mas não creias -que eu tivesse nunca o pensamento de te abandonar, -eu, que era tão feliz em ter uma filha! Tu foste... fomos -ambas indignamente enganadas; eu tinha uma -tia que te detestava; durante uma viagem que fiz a -Italia para restabelecer a minha saude, essa tia, a -quem eu tinha recommendado muito que velasse por -ti, annunciou-me que tinhas deixado de viver!...</p> - -<p>—Oh! então, deve ter sido ella que escreveu á minha -ama, remettendo-lhe uma quantia bastante avultada, -para que viesse estabelecer-se em Paris, e não -me chamasse mais senão Lisa em vez de Leontina, -que era o nome que minha mãe me tinha dado...</p> - -<p>—Leontina... ah! é isso mesmo... tua mãe... mas<span class="pagenum"><a id="Page_180"></a>[180]</span> -sou eu... querida filha, sou eu mesma... acaso não -terás por mim alguma affeição... não me perdoarás... -o mal que te tenho feito?...</p> - -<p>—Oh! minha senhora... minha mãe... já me não -lembro d’isso!</p> - -<p>As testemunhas d’esta scena tomam parte na alegria, -no enternecimento d’estas duas mulheres, uma -das quaes torna a encontrar a filha que tinha por -morta ha muito tempo, emquanto que a outra, que -quasi todos accusavam, que suspeitavam culpada -d’uma acção deshonrosa, se vê agora abraçada, coberta -de caricias e de lagrimas por uma bella senhora que -é sua mãe. Lisa, no auge da sua alegria, extende as -mãos a Casimiro, exclamando:</p> - -<p>—Ah! o senhor é que nunca me julgou criminosa!</p> - -<p>Depois agradece á sr.ª Durmont dizendo-lhe:</p> - -<p>—E’ pois á senhora que eu devo o ter recuperado a -estima do mundo, como é que se houve então para -provar a minha innocencia?</p> - -<p>—Minha querida menina, depois de tudo o que se -passára, eu tinha adivinhado que a menina era somnambula, -e não me enganava.</p> - -<p>—O quê! eu sou somnambula!...</p> - -<p>—Sim, sem duvida, quando está a dormir, sempre -preoccupada com a colhér de prata que deu á sua -velha companheira, e receando que lh’a furtem, a menina -pega na que tem perto de si, pensando que é a -sua, e esconde-a. Oh! isso não tem nada de muito -extraordinario; tenho visto fazer a somnabulos coisas -muito mais de espantar!...</p> - -<p>—Mas, quando estou acordada, devia lembrar-me -do que fiz estando a dormir!...</p> - -<p>—Não, minha filha, os somnambulos não se recordam -nunca do que fizeram emquanto estiveram -entregues a esse somno em acção, e é isso o que -ha de mais singular n’essa doença, porque é effectivamente -uma doença, mas que passa com a mocidade, -e desapparece inteiramente quando a edade<span class="pagenum"><a id="Page_181"></a>[181]</span> -tem acalmado as nossas paixões e o calor do nosso -sangue.</p> - -<p>—Agora, diz Ambrosina, não incommodemos mais -tempo esta senhora, a quem eu devo tambem a minha -felicidade, pois que é, graças á idéa que ella teve -de te ver adormecida, que eu pude examinar essa -medalha e tornar a achar minha filha. Vem, minha -querida Lisa, vem para casa de tua mãe, a quem não -deixarás mais d’aqui em deante.</p> - -<p>Lisa está perplexa e confusa, sorri-se para sua mãe, -e balbucia:</p> - -<p>—E a pobre velha de quem nunca me tenho separado... -acaso quereria que eu a abandonasse?</p> - -<p>—Não, não querida filha, comprehendo o teu coração, -não quero causar-te nenhum desgosto; a mãe -da tua ama não se ha de separar de ti, tomal-a-hei -para a nossa companhia, a minha casa é bastante -grande para que eu possa dar-lhe um quarto. D’este -modo nada lhe faltará, e tu velarás sempre por -ella...</p> - -<p>—Ah! minha senhora... minha mãe... é tambem -muito bondosa!</p> - -<p>—E, agora que vem rompendo a aurora, vou subir -comtigo a esse pobre quarto que habitavas; participaremos -á boa velha que já não és orphã e que -tua mãe nunca te tinha abandonado; eu te mostrarei -a carta de minha tia, em que ella me annunciava -que tinha perdido minha filha; tenho conservado -sempre essa carta...</p> - -<p>—E eu, minha mãe, hei de mostrar-lhe a carta -que a minha ama recebeu juntamente com uma -quantia, e na qual se lhe ordenava que não me chamasse -mais senão Lisa e que viesse estabelecer-se em -Paris.</p> - -<p>—Oh! sim, e estou certa que hei de reconhecer a -letra de minha tia.</p> - -<p>Ambrosina está contentissima; estende a mão a -Casimiro, dizendo-lhe:</p> - -<p>—De hoje em deante somos amigos, e espero que -não veja mais em mim senão a mãe de Lisa, que lhe<span class="pagenum"><a id="Page_182"></a>[182]</span> -agradece de todo o coração o interesse, a amizade que -o senhor tinha por sua filha e que nunca se opporá ao -que podér fazer a sua felicidade.</p> - -<p>Casimiro aperta de bom grado esta mão, que ê -agora a d’uma pessoa amiga.</p> - -<p>Despedem-se todos da sr.ª Durmont, reiterando-lhe -os seus agradecimentos, que tão bem merecidos eram. -Lisa sobe ao seu quarto acompanhada por sua mãe, -que não quer deixar mais a filha que um tão grande -acaso acaba de lhe restituir. Na escada encontram -ainda Rouflard, que sae de casa dos Proh, gritando:</p> - -<p>—Elles lá teem a colhér, que nunca lhes tinha saído -de casa. Mas, apre! tive um trabalhão immenso! não -me queriam abrir a porta!</p> - -<p>Ouvindo tocar a sua campainha no meio da noite, -a familia Proh julgára primeiro inutil responder; -mas, como o repique não cessava, tinha perguntado:</p> - -<p>—Quem está ahi?</p> - -<p>—Sou eu, gritára Rouflard, que venho fazer-lhe -achar a sua colhér!</p> - -<p>Ao reconhecer a voz de Rouflard, o professor respondera:</p> - -<p>—O senhor é um maroto, quer perturbar o nosso -somno com esse ignobil gracejo, ámanhã hei de mettel-o -em processo.</p> - -<p>Ao que Rouflard, replicára:</p> - -<p>—Eu não gracejo, é o senhor e todos os seus que -são uma familia de pepinos! Eu tenho a peito fazer-lhes -reconhecer a innocencia de Lisa, que é somnambula, -e vou fazer-lhes achar a sua colhér! tocarei a -campainha até ámanhã se fôr necessario.</p> - -<p>A sr.ª Proh decide-se emfim a abrir. Então Rouflard -diz:</p> - -<p>—Venham todos commigo ao quarto onde Lisa -passou a noite; ella escondeu a colhér debaixo do -colchão de crina...</p> - -<p>—Não é possivel, diz Angelina, eu teria dado por -isso!</p> - -<p>—E de que modo, se a menina estava a dormir?... -Vamos lá sempre.</p> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_183"></a>[183]</span></p> - -<p>Dirigem-se todos ao quarto da donzella. O rapazinho -que se tem tambem levantado e ouve tudo, exclama:</p> - -<p>—Eu vou procurar debaixo do colchão...</p> - -<p>—Não, não, tu não tens o braço bastante comprido, -diz Rouflard, que busque o illustre professor, se isso -lhe é agradavel...</p> - -<p>—Eu! prestar-me a essa nova mangação, para o senhor -fazer chacota de mim!...não conte com isso...</p> - -<p>Mas, durante esta altercação, a sr.ª Proh, que está -muito impaciente, tem-se já posto de joelhos deante -da cama; mette o braço debaixo do colchão, e em seguida -tira de lá para fóra a colhér, dizendo:</p> - -<p>—Pois é verdade, ella cá está!</p> - -<p>—Então, professor, é mentira o que eu lhe dizia? -Que diz a isto?</p> - -<p>—Direi o que isso prova: que as nossas mulheres, -filhas ou creadas que teem a seu cargo o arranjo da -casa, não se dão ao trabalho de levantar os colchões -quando fazem as camas!...</p> - -<p>—Ora, senhor! exclama a sr.ª Proh, as mulheres -teem já tantas coisas que levantar!</p> - -<p>Ambrosina acompanha a filha até á agua-furtada; -acham a avó acordada, contam-lhe os acontecimentos -da noite, e a boa da velha, á força de olhar para Ambrosina, -de a examinar bem, exclama:</p> - -<p>—Sim... é verdade... reconheço-a agora... foi a -senhora que nos trouxe a pequena... e que voltou a -vel-a muitas vezer a Pierrefitte.</p> - -<p>Depois Lisa mostra a carta que a sua ama tinha -recebido; Ambrosina reconhece a letra de sua tia, -e, se ella tivesse ainda alguma duvida sobre a -identidade de sua filha, esta ultima prova não podia -deixar-lhe mais nenhuma. Pela sua parte, mostra -tambem a Lisa a carta de sua tia que lhe annunciava -a morte da filha, porque tem a peito provar -a Lisa que nunca tivera a idéa de a abandonar.</p> - -<p>No dia immediato a esta noite tão fecunda em -acontecimentos, faz-se na casa uma grande mudança:<span class="pagenum"><a id="Page_184"></a>[184]</span> -como Florentina viera buscar a filha, Ambrosina -dá a Lisa o lindo quarto azul onde estivera a -pequenita; depois arranja-se um outro quarto para -a velha paralytica, que é trazida da sua agua-furtada -para o primeiro andar, e que fica muito satisfeita -ao saber que, apezar da sua mudança de fortuna, a -Lisinha, que ella considera como filha, não se quer -separar d’ella.</p> - -<p>Casimiro ficou muito espantado, e assim a modo -triste, quando se descobriu o segredo do nascimento -de Lisa; teve mesmo por um momento o coração -opprimido, como quem receia perder a pessoa -que ama. Mas em breve adquire a prova de que -o amor maternal extinguiu em Ambrosina qualquer -outro sentimento, e que para esta mulher, tão feliz -por ter achado sua filha, o passado não é mais do -que um sonho, de que ella nem mesmo quer conservar -a recordação. O joven pintor pode pois agora -ver Lisa em casa de sua mãe. Mas durante os primeiros -mezes que se seguem a este acontecimento, -põe n’isso certa discreção, porque comprehende -que ha situações que precisam de tempo para se -consolidarem. Demais, Casimiro trabalha agora muito; -o bom acolhimento que os seus quadros obteem, -redobra o seu enthusiasmo, o seu amor pela pintura; -em todas as artes, não é preciso muitas vezes mais -que um bom exito para tirar um homem da mediocridade, -para fazer d’elle uma celebridade, e por falta -d’esse bom exito quantos talentos não teem morrido, -sem terem desenfardado as suas mercadorias, como -diz Montaigne.</p> - -<p>Seis mezes depois d’estes acontecimentos, morre -o sr. Loursain, em consequencia d’uma indigestão. -Ambrosina sabe que está viuva, e, o que a surprehende -muito mais, é que recebe uma carta d’um -tabellião, que lhe participa que seu marido lhe deixou -toda a sua fortuna, que anda por perto de trezentos -mil francos. A menina Rosa, a creada tão -janota e presumida, que seu amo tratava por tu, -teve apenas em legado uma quantia de seiscentos<span class="pagenum"><a id="Page_185"></a>[185]</span> -francos, e o retrato do corpo inteiro do sr. Loursain. -A creadinha, na força da sua colera, manda accrescentar -no retrato um par de chifres e vende-o para -servir de taboleta a um salsicheiro, que manda escrever -por baixo: <i>O boi da moda</i>.</p> - -<p>Ambrosina, que tencionava entregar á filha uma -parte dos seus haveres, dá-lhe primeiro em dote a -fortuna que lhe deixa o sr. Loursain, comprando ella -para si uma bonita casa nos suburbios de Paris, onde -faz tenção de ir viver quando Lisa casar com Casimiro.</p> - -<p>Essa união pouco tarda a fazer-se, porque Lisa confessou -a sua mãe que ama o rapaz que lhe fez o retrato. -Ambrosina estabelece os jovens noivos n’uma -linda habitação, e retira-se para a casa de campo, onde -agora quer viver sempre; Lisa, porém, se deixou sua -mãe, não quiz, posto que casada separar-se d’aquella -de quem cuidava tão carinhosamente na sua pobre -agua-furtada, da boa velha a quem ella chamava avó, -e Casimiro, lá de si para si, estima cem vezes mais -que ella tenha na sua companhia esta do que a outra.</p> - -<p>Desde que em casa dos Proh se achou a colhér de -prata, o Fonfonsinho não cessa de gritar por toda a -parte:</p> - -<p>—Lisa é funanbula! e quando uma pessoa é funanbula -esconde tudo quanto quer:</p> - -<p>Debalde a sr.ª Proh diz ao filho:</p> - -<p>—Não é funambula, somnambula é que essa menina -era...</p> - -<p>—Qual é a differença?</p> - -<p>—A differença, meu filho, é que os somnambulos -andam a dormir e os funambulos andam n’uma corda -e até dansam, estando acordados.</p> - -<p>—Pois bem! eu antes quero ser somnambulo!</p> - -<p>—Para quê, filho? o somnambulismo é uma enfermidade, -emquanto que o funambulismo é um talento!</p> - -<p>—Sim, mas quando eu fôr somnambulo hei de esconder -todos os covilhetes de doce.</p> - -<p>—Nada ganharias com isso, Affonso, pois que, em<span class="pagenum"><a id="Page_186"></a>[186]</span> -acordando, ninguem se lembra mais do que fez no -estado de somnambulismo.</p> - -<p>—Ah! pois não! então eu sou tolo! não serei somnambulo -senão d’um olho!...</p> - -<p>O sr. Proh bate com a mão na testa, exclamando:</p> - -<p>—Este rapazinho ha de ir longe!</p> - -<p>Graças ao trabalho que Casimiro lhe arranja Rouflard -pode viver; poderia mesmo ter um quarto um -pouco melhor, mas elle não quer mudar-se, dizendo -que está habituado a morar alli, assim como a chamar -ao porteiro seu creado; como o pintor já não -mora no predio, Chausson deixa algumas vezes o seu -antigo amo dormir na rua, porque este continúa a -embriagar-se do mesmo modo. Em vão Casimiro lhe -diz:</p> - -<p>—É preciso corrigir-se d’esse ruim defeito, Rouflard; -quando um homem quer devéras, de tudo se -emenda! veja o exemplo em mim, eu era um preguiçoso, -hoje gosto do trabalho.</p> - -<p>—Isso é muito bonito, responde Rouflard, mas eu -preciso de consolações; morava por baixo de mim -um anjo, o senhor levou-o para longe! quando estou -bebedo, affigura-se-me que o tenho ainda ao pé de -mim, e é por isso que bebo!</p> - -<p class="titlepage"><span class="smcap">fim da «A menina Lisa»</span></p> - -<hr /> - -<div class="blockquote"> - -<p class="center">OBRAS COMPLETAS DE PAULO DE KOCK</p> - -<p class="center"><i>Estão publicados 23 volumes</i></p> - -<p class="center">A seguir:</p> - -<p class="center"><b>O homem dos tres calções (2 vol.)</b></p> - -</div> - -<hr /> - -<div class="chapter"> - -<p><span class="pagenum"><a id="Page_187"></a>[187]</span></p> - -<h2 class="nobreak" id="INDICE">INDICE</h2> - -</div> - -<table summary="Indice"> - <tr> - <td class="tdr"></td> - <td></td> - <td class="tdpg smaller">Pag.</td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr"></td> - <td>Palavreado para servir de prefacio</td> - <td class="tdpg"><a href="#PREFACIO">5</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">I—</td> - <td>Uma creada que sae a recados</td> - <td class="tdpg"><a href="#I">11</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">II—</td> - <td>Na botica</td> - <td class="tdpg"><a href="#II">22</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">III—</td> - <td>Um rapaz manteúdo</td> - <td class="tdpg"><a href="#III">36</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">IV—</td> - <td>Um almoço em intimidade</td> - <td class="tdpg"><a href="#IV">48</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">V—</td> - <td>O lindo Rouflard</td> - <td class="tdpg"><a href="#V">62</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VI—</td> - <td>A familia Proh</td> - <td class="tdpg"><a href="#VI">72</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VII—</td> - <td>A menina Lisa</td> - <td class="tdpg"><a href="#VII">79</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">VIII—</td> - <td>Travam conhecimento</td> - <td class="tdpg"><a href="#VIII">88</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">IX—</td> - <td>Uma colhér de prata</td> - <td class="tdpg"><a href="#IX">97</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">X—</td> - <td>Ainda as creadas</td> - <td class="tdpg"><a href="#X">105</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XI—</td> - <td>O vinho quinado</td> - <td class="tdpg"><a href="#XI">111</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XII—</td> - <td>A primeira sessão</td> - <td class="tdpg"><a href="#XII">117</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XIII—</td> - <td>Um rapazito endiabrado</td> - <td class="tdpg"><a href="#XIII">128</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XIV—</td> - <td>A senhora do primeiro andar</td> - <td class="tdpg"><a href="#XIV">137</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XV—</td> - <td>A menina Proh doente</td> - <td class="tdpg"><a href="#XV">143</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVI—</td> - <td>Mais um caso extraordinario</td> - <td class="tdpg"><a href="#XVI">155</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVII—</td> - <td>O que era</td> - <td class="tdpg"><a href="#XVII">166</a></td> - </tr> - <tr> - <td class="tdr">XVIII—</td> - <td>Outra descoberta</td> - <td class="tdpg"><a href="#XVIII">177</a></td> - </tr> -</table> - -<h3>REFERENCIA DAS ESTAMPAS</h3> - -<table summary="Referencia das estampas"> - <tr> - <td>Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado</td> - <td class="tdpg"><a href="#illus2">83</a></td> - </tr> - <tr> - <td>Mas o que faz o senhor aqui?</td> - <td class="tdpg"><a href="#illus1">129</a></td> - </tr> -</table> - - - - - - - - -<pre> - - - - - -End of the Project Gutenberg EBook of A menina Lisa, by Paul de Kock - -*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - -***** This file should be named 63195-h.htm or 63195-h.zip ***** -This and all associated files of various formats will be found in: - http://www.gutenberg.org/6/3/1/9/63195/ - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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Redistribution is subject to the -trademark license, especially commercial redistribution. - -START: FULL LICENSE - -THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE -PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK - -To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free -distribution of electronic works, by using or distributing this work -(or any other work associated in any way with the phrase "Project -Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full -Project Gutenberg-tm License available with this file or online at -www.gutenberg.org/license. - -Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project -Gutenberg-tm electronic works - -1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm -electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to -and accept all the terms of this license and intellectual property -(trademark/copyright) agreement. 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