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If you are not located in the United States, you'll have -to check the laws of the country where you are located before using this ebook. - -Title: A menina Lisa - -Author: Paul de Kock - -Release Date: September 13, 2020 [EBook #63195] - -Language: Portuguese - -Character set encoding: UTF-8 - -*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - - - - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - - - - - - - - - - - _XXIII—COLECÇÃO PAULO DE KOCK_ - - A menina Lisa - - [Illustration] - - GUIMARÃES & C.ª EDITORES - R. DO MUNDO, 68—LISBOA - - Imp. Lucas - - - - -Livraria editora GUIMARÃES & C.ª - -68, RUA DO MUNDO, 70—LISBOA - - -_O LIVRO DE MARIETA_ - - (1.º vol. da Biblioteca Infantil)—1 vol. com 23 contos - ilustrados com 25 gravuras, br. 300 rs. Enc. 400 rs. - -_AS MIL E UMA NOITES_ - - (Contos arabes)—2 vol. br. 600 rs. Enc. com linda capa de - percalina impressa a 4 cores e ouro 900 rs. - -_CONTOS_ - - de D. João da Camara—1 vol. br. 600 rs. - -_CONTOS_ - - do Dr. Candido de Figueiredo—1 vol. br. 200 rs. Enc. 300 rs. - -_TRATADO DE CIVILIDADE E ETIQUETA_ - - pela condessa de Gencé—1 vol. br. 600 rs. Enc. 800 rs. - -_GUIA MUNDANO DAS MENINAS CASADOIRAS_ - - da Condessa de Gencé—1 vol. br. 500 rs. Enc. 700 rs. - -_IVANHOÉ_ - - romance de Walter Scott—4 vol. br. 800 rs. - -_O VIGARIO DE WAKEFIELD_ - - de Goldsmith—1 vol. br. 200 rs. - -_SAUDADES_ - - (Menina e moça) de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 200 rs. - -_TROVAS DE CRISFAL_ - - de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 300 rs. - -_VERSOS PORTUGUESES_ - - de Sá de Miranda—1 vol. br. 500 rs. - -_PAULO E VIRGINIA_ - - romance de Bernardim de Saint-Pierre—1 vol. III. br. 200 rs. - - - - -PAULO DE KOCK - -OBRAS COMPLETAS E ILLUSTRADAS - -XXIII - - - - - A MENINA LISA - - (VERSÃO PORTUGUEZA) - - [Illustration] - - LISBOA - EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL - _Sociedade editora_ - LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHIA - _R. Augusta, 95_ - _45, R. Ivens, 47_ - 1907 - - - - -VOLUMES PUBLICADOS - - - I—A menina das tres saias—1 vol. - - II—Uma vida attribulada—1 vol. - - III—Taquinet o Corcunda—1 vol. - - IV—O sr. Choublanc á procura da mulher.—1 vol. - - V—A Lagôa d’Auteuil (1.º vol.) - - VI—A Lagôa d’Auteuil (2.º vol.) - - VII—A Lagôa d’Auteuil (3.º vol.) - - VIII—A menina dos tres espartilhos—1 vol. - - IX—O porteiro da rua du Bac—1 vol. - - X—Um namorado caloiro (1.º vol.) - - XI—Um namorado caloiro (2.º vol.) - - XII—A noiva de Fontenay aux Roses—1 vol. - - XIII—A Viuva Tapin—1 vol. - - XIV—A Leiteira de Montfermeil (1.º vol.) - - XV—A Leiteira de Montfermeil (2.º vol.) - - XVI—A Leiteira de Montfermeil (3.º vol.) - - XVII—Um rapaz mysterioso—1 vol. - - XVIII—Papá-sogro—1 vol. - - XIX—A menina do quinto andar (1.º vol.) - - XX—A menina do quinto andar (2.º vol.) - - XXI—A menina do quinto andar (3.º vol.) - - XXII—A Baroneza Blaguiskoff—1 vol. - - XXIII—A menina Lisa—1 vol. - -NO PRELO: - - XXIV—O homem dos tres calções—2 vol. - - - - -[Illustration] - - - - -PALAVREADO PARA SERVIR DE PREFACIO - - -De certo tempo para cá, uma nova molestia tem feito irrupção em Paris, -por outra, em toda a França; eu poderia mesmo accrescentar que se vae -extendendo tambem aos paizes estrangeiros. Socegae, querido leitor e -formosa leitora (eu acho sempre as minhas leitoras formosissimas), esta -molestia não é d’aquellas de que se morre, ou que podem desfigurar as -vossas lindas feições (folgo tambem de crer que possuis umas feições -encantadoras); é simplesmente a mania dos _autographos_, que traz quasi -sempre após si a dos _albuns_. - -Quando um homem tem a fortuna—parece-me que seria melhor dizer a -desgraça!—emfim, quando um homem tem alguma celebridade, não se passa dia -algum em que não receba pedidos de autographos, ou não veja entrar-lhe -em casa um sujeito, que lhe é inteiramente desconhecido, mas que traz -debaixo do braço um objecto bastante volumoso, cuidadosamente embrulhado -em papel e mettido n’uma caixa de cartão. Este sujeito, depois de muitos -cumprimentos e d’essas phrases banaes que se dizem a toda e qualquer -pessoa de quem se deseja obter alguma coisa, desembrulha o objecto -que traz debaixo do braço, tira o papel, abre a caixa, e mostra-nos -um _album_ mais ou menos bem encadernado, mas no qual ha ainda uma -grandissim quantidade de folhas em branco; depois diz-nos com a sua voz -mais insinuante: - -—Meu caro senhor, eu possuo já no meu _album_ muitos nomes celebres; mas -falta-me o seu, o seu que é indispensavel á minha felicidade! Por quem -é não me recuse o que lhe venho pedir! faça-me o obsequio de escrever -algumas linhas n’uma d’estas paginas em branco, o que quizer, a mais -pequena coisa, não exijo que seja em verso... Entretanto confesso que -os versos teem mais encanto, conservam-se melhor na memoria; se não tem -agora tempo, se deseja meditar sobre o que ha-de escrever, deixo-lhe cá -o meu _album_; voltarei d’aqui a tres ou quatro dias, quando o senhor -quizer! - -Estamos já de muito mau humor por sermos incommodados por este sujeito, -que nos perturba no nosso trabalho, e que, sem nenhum titulo, nenhuma -recommendação, vem fazer-nos um pedido a que muitos amigos e pessoas -das nossas relações se não atrevem algumas vezes. Um pedinte de certo -nos enfadaria menos, porque teriamos o direito de o pôr immediatamente -na rua. Mas o homem—_album_—olha para nós como se viesse pedir-nos o -nosso voto para a academia. Nós não queremos por fórma alguma, ficando -com o _album_, receber uma nova visita d’este senhor, e por isso, mesmo -resmungando, mesmo deixando vêr o aborrecimento que isto nos causa, -abrimos o _album_ n’uma pagina em branco, pegamos na pena... O tal senhor -está cheio de jubilo; ficará talvez menos encantado quando ler o que -escrevemos; mas emfim, visto que elle não quer senão a nossa lettra e a -nossa assignatura, não póde deixar de ficar satisfeito. - -Escrevemos a primeira coisa que nos vem á idéa; mas sempre se deve -procurar que seja uma tolice, o que é ás vezes mais difficil de achar do -que se julga. Dizem-me que o nosso Scribe, apoquentado tambem pela gente -de _album_, escrevia sempre esta phrase: Perdi o meu guarda-chuva!... e -isto era mais que sufficiente. - -Devo entretanto dizer que os _albuns_ apresentam-se menos vezes em -nossa casa que os simples pedidos de autographos. Estes pedidos quasi -sempre se fazem por correspondencia. Recebemos a cada instante cartas, -não só de Paris, mas da provincia e mesmo do estrangeiro. Algumas vezes -julgâmos reconhecer a letra d’uma pessoa que estimâmos muito e de quem -ficariamos encantados de ter noticia; abrimos a carta muito depressa... -mas nada! é ainda um pedido de autographo, d’uma pessoa que nunca vimos, -que provavelmente não veremos nunca, e que acha simplicissimo talhar-nos -obra, como se devessemos estar ás suas ordens! - -Ultimamente recebo uma carta d’um sujeito que me manda uns versos de -que eu sou o auctor, e que provavelmente elle tinha lido e copiado d’um -_album_. Espero que isto me servirá de lição para não tornar a cair em -escrever versos em _albuns_. Se, como Scribe, eu não tivesse escripto -senão: _Perdi o meu guarda-chuva!_ ou _perdi a minha bengala_, aposto que -o tal senhor não teria copiado isto nem m’o teria enviado, fazendo-me o -pedido de lh’o transcrever para ter estes _lindos_ versos escriptos por -mim? O homem não cessa de me repetir na sua carta que quer por força ter -alguma coisa minha. - -Se lhe respondesse, o que não tenho tenção de fazer, havia de dizer-lhe: -O senhor quer ter alguma coisa minha; mas com que titulo? Recebi eu por -ventura alguma coisa sua? - -Contaram-me que n’outro tempo, Lablache, famoso cantor italiano, -recebêra dos seus admiradores um tão grande numero de caixas de tabaco, -que poderia assoalhar com ellas os seus aposentos, e passear em tres -casas, pisando sempre caixas de tabaco, todas mais ou menos bonitas, das -quaes lhe haviam feito presente. Certamente, eu não cantei nunca como -Lablache! mas emfim, pela quantidade immensa de pedidos que recebo, e de -amabilidades que muitas pessoas hão por bem dirigir-me, devo pensar que -tenho tambem um numero bastante crescido de apreciadores. Pois bem! desde -que escrevo... o que faço ha muito tempo, bem sabem, nunca recebi outra -cousa senão pedidos de autographos. - -Eu não peço nada, nunca pedi nada, em nenhum genero, nem pedirei nunca -graças a Deus! se tenho feito o meu caminho, tenho-o feito á minha custa, -sem intriga e sem apoio. Mas, por favor, deixem-me socegado e não me -apoquentem com os seus pedidos de autographos! Não desejo as caixas de -tabaco de Lablache, pois que nunca tomei tabaco!... o que me não impede -de admirar uma caixa bonita, quando vale a pena de ser admirada. - -—Que diabo se lhe poderia então offerecer? me dizia um sujeito que sempre -me pede exemplares dos meus romances, o que é ainda mais indiscreto que -um autographo. - -—Meu caro senhor, lhe disse eu, quando se tem a peito receber uma -resposta de alguem, ha um meio muito simples. Se eu residisse em -Tours, mandava-lhe ameixas passadas; em Mans, mandava-lhe um capão; em -Strasburgo, um pastel; em Reims, meia duzia de garrafas de Champagne. -Cada terra tem a sua especialidade, e o homem por força teria de -accusar-me a recepção do meu presente. - -Pois o tal sujeito pareceu ficar muito espantado de eu ter achado este -meio. - -Emquanto estou falando a respeito de autographos, não posso deixar de -lhes citar um sujeito que me escrevia de Nice, e que, depois de me ter -feito o seu pedido, me rogava que lhe dirigisse a minha resposta para -Nice, _posta restante_, com o nome que elle me indicava. - -Se eu respondesse a este senhor, o que tive o cuidado de não fazer, havia -de dizer-lhe: «Meu caro senhor: A _posta restante_ não se emprega senão -em dois casos: em amor e em politica. O senhor não está namorado de mim, -folgo de o crer; e pelo que toca a politica, nunca me occupei de tal -coisa, nem já agora me hei-de occupar nunca. Por que razão pois, em vez -de me dar francamente o seu endereço, quer que eu lhe responda para a -_posta restante_? Tem então medo de que eu saiba quem é e onde mora? E -pede-me a minha assignatura! Realmente, o senhor não é logico! - -Emquanto estou de vez para conversar com o meu caro leitor e com a minha -adorada leitora, podia confiar-lhes ainda uma d’essas apoquentações a que -algumas vezes nos é difficil escapar, desgraçadas celebridades que nós -somos. Receio porém abusar da sua paciencia, e portanto ficará para outra -occasião. - - -[Illustration] - - - - -[Illustration] - - - - -A MENINA LISA - - - - -I - -Uma creada que sae a recados - - -—Adriana! Adriana! vejam lá se ella apparece! Adriana! Ah! esta rapariga -é insupportavel! Nunca vem quando se precisa d’ella! E depois, não ha com -que chamar! aqui porém deve haver uma campaínha... Adriana!... - -Uma rapariga gorda, fresca, bem feita, cara vulgar, nariz mais grosso que -comprido e cabello loiro-arruivado, apparece emfim á porta d’um quarto -que podia passar por um camarim, e no qual estava uma senhora estendida, -como que desmaiada, em cima d’uma poltrona, emquanto que outra senhora, -mais nova, mas pouco bonita e cujo vestuario elegante não conseguia fazer -esquecer a sua fealdade, lhe batia na mão, sempre chamando em altos -gritos a creada grave. - -—O que é minha senhora? pergunta a menina Adriana, que parece não se ter -apressado nada; a senhora está a gritar! grita como se houvesse fogo em -casa!... - -—O que é, pois não vê? é a sua ama que acaba de perder os sentidos, -depois de ter dado um grito muito grande; como ella se agita... como se -põe interiçada... - -—Ah! sim, eu conheço isso; a senhora está com o seu ataque de nervos, com -o seu _faniquito_; isso dá-lhe quando é contrariada, ou quando tem alguma -altercação com o sr. Casimiro. - -—Deu-lhe isso ainda agora depois de ter lido uma carta que a menina acaba -de lhe trazer. Mas emfim, quando Ambrosina tem o seu ataque de nervos, a -menina faz-lhe tomar alguma coisa, penso eu, não a deixa sem soccorro? - -—De certo, minha senhora, faço-lhe tomar a limonada que o medico lhe -receitou. E isso faz com que a senhora torne a si ao cabo de alguns -minutos. - -—Pois bem! dê-lhe a tal limonada; ande depressa, porque ella parece -soffrer muito, esta pobre Ambrosina. Sabe onde ella tem essa limonada? - -—Sei sim, minha senhora, sei, certamente que sei... Ai! Jesus! agora me -lembro... - -—De que? - -—Ai! valha-me Deus! sim, a senhora tinha-me dito hontem que lhe fosse -buscar outra garrafa. É verdade... agora me recordo... - -—Como? pois não ha limonada em casa? - -A creada grave, que tem ido abrir um armario, traz de lá uma garrafa -branca, mas que está de todo vasia, e vem mostral-a á amiga de sua ama, -dizendo: - -—Aqui tem, veja, não lhe minto, não resta nem uma gota. - -—E não foi hontem encommendar mais?!... - -—Esqueci-me, a culpa é da porteira, que me demorou para me falar do gato -quando eu saîa, o gato desappareceu-lhe ha dois dias. - -—Mas não se tracta do gato da porteira, o que é preciso ê soccorrer sua -ama. Tem a receita para essa limonada? - -—Tenho sim, minha senhora, porque eu tinha tenção de ir hontem á botica, -devo-a ter ainda na algibeira. - -E a menina Adriana mette a mão na algibeira, tira de lá primeiramente -algumas passas de uva, e sorri-se dizendo: - -—É aquelle toleirão do caixeiro da tenda que sempre me ha de metter -alguma coisa no bolso. Por mais que eu lhe diga: Deixe-me socegada, -guarde as suas passas, não quero brincadeiras... - -—Mas que é da receita? não se tracta agora do que a menina diz ao -caixeiro da tenda. - -—Ah! deve ser isto!... - -Adriana desembrulha um papel e lê o annuncio d’uma loja nova em que se -offerecem as fazendas com oitenta por cento de abatimento; depois atira -com o papel para o lado, dizendo: - -—Ora! fui lá, minha senhora, mas são uns mentirosos, não vendem nada -novo, venderam-me umas calças de panno que tinha sido virado. - -—Ah! compra calças de panno para si? - -—Nada, era para o irmão d’uma patricia minha. - -—Mas então perdeu a receita, desgraçada! - -—Não minha senhora; olhe, aqui está, aqui a tem, tinha embrulhado com -ella uns torrões de assucar que me deu o moço do botequim. - -—Agora corra depressa á botica. É muito longe? - -—Não minha senhora, é aqui perto, no fim da rua Meslé, uma bonita botica, -no predio novo, que dá quasi para a rua do Templo. Ah! é uma das melhores -de Paris. - -—Comtanto que o remedio não leve muito tempo a fazer. - -—Oh! não, minha senhora, não leva. E depois, direi que tenho muita -pressa, para me despacharem logo; aquelles senhores da botica são muito -amaveis, muito obsequiadores. - -—Vae já muito depressa, não é verdade? - -—Sim, minha senhora; é só pôr uma touca na cabeça, e vou immediatamente. - -—Para que precisa de touca? Não pode ir assim mesmo como está? - -—Oh! a senhora não quer que eu saia em cabello; diz que não é bonito. - -—Mas sua ama não o saberá. - -—Perdão, podia alguem encontrar-me e vir dizer-lhe que me viu na rua -sem touca! A senhora despedia-me logo: mas esteja descançada, não gasto -n’isso muito tempo. - -A creada grave corre ao seu quarto, que é nas aguas-furtadas, pega -n’uma touca, põe-na na cabeça, vê-se a um espelhinho, mas não fica -satisfeita; tira a touca, procura outra no fundo d’uma caixa de papelão, -experimenta-a, torna a ver-se ao espelho; depois, passado um momento -de hesitação, tira ainda esta e torna a pôr a primeira; d’esta vez -contenta-se com ella, e desce emfim os cinco andares, para ir buscar o -remedio para sua ama, que tem muito tempo para estar demaiada. - -Mas, quando vae passar por deante do cubiculo da porteira, grita-lhe esta: - -—Menina Adriana! menina Adriana! ah! uma boa noticia... - -—Então o que é, sr.ª Bedou? - -—Achei já o meu gato; o pobre Pagnole! Achei-o. Olhe! aqui o tem. - -—É verdade; e aonde é que estava? - -—Ah! eu lhe vou contar o caso, é uma historia completa. Entre cá um -instantinho. - -—Não posso, vou á botica buscar um remedio para a senhora, que está -incommodada, está com o seu ataque de nervos. - -—Bem sabe que ella é propensa a esses ataques. Imagine que foi aquelle -maroto, aquelle patife do quinto andar, o tal que se diz litterato... - -—Ah! o sr. Denegrido. - -—Sim, foi aquelle malvado que, para se vingar de eu no outro dia não -lhe ter aberto a porta ás duas horas da manhã... A menina comprehende -que um homem que mora n’uma agua-furtada de cento e sessenta francos, -tenha o atrevimento de recolher para casa ás duas horas da manhã? E -demais-a-mais nunca me deu a mais pequena gratificação! Pois bem! elle -é que tinha o Pagnole fechado em casa, onde estou bem certa que nunca -lhe dava de comer; por isso este pobre martyr emmagreceu tanto n’estes -dois dias. Felizmente a creada do procurador do segundo andar ouviu-lhe -os gemidos, e veiu dizer-me: «Parece-me que o seu gato está fechado em -casa do litterato. Subi n’um pulo até ao quinto andar e reconheci a voz -do meu querido bichano. Bati, teria arrombado a porta se elle não a -abrisse. Elle gritava-me: «Não estou ainda levantado.»—«Pois levante-se,» -respondi eu.—«Não estou vestido.»—Que me importa a mim isso?! pensa que -tenho vontade de o retratar?! O homem afinal abriu a porta; o gato veiu -logo lançar-se-me nos braços. Affianço-lhe que o tal Denegrido ha de ser -despedido no fim do seu arrendamento; demais, elle não paga, não tinhamos -tenção de o conservar. - -—Até logo, sr.ª Bedou. - -—Quando voltar lhe direi o que o escrevinhador me disse para se desculpar -de ter fechado o Pagnole. Imagine... - -—Sim, sim, quando voltar. - -A menina Adriana acha-se emfim na rua. Quando passa por deante da tenda, -um dos caixeiros, que parecia estar a espreital-a, toma-lhe o passo, -dizendo-lhe: - -—Aonde é que vae com tanta pressa? parece que corre n’um velocipede. - -—Ora! que tolice! como se as mulheres podessem andar em velocipedes! o -que é pena, porque seria uma coisa muito commoda para nós fazermos os -nossos recados. - -—As mulheres podem muito bem andar em velocipede, o caso é acostumarem-se. - -—Vamos, sr. Cebolinha, deixe-me passar, não tenho tempo para conversar -agora. - -—Oh! a menina commigo nunca tem tempo, mas hontem, ás dez horas da noite, -bem a vi estar de _paleio_ com o moço do botequim do _boulevard_, as -casas do _boulevard_ S. Martinho, na margem esquerda têem todas uma saida -para a rua Meslée, é commodo... - -—E então? sim, bem me lembro, effectivamente, estive a falar com o -Alexandre, a senhora queria tomar um capilé de leite antes de se deitar, -porque tinha tossido um pouco, e pensava que aquella bebida lhe faria bem -á constipação, ia eu então ao café encommendar o que a senhora queria, -quando encontrei na rua o Alexandre. - -—Ah! não é máu o tal capilé, acho-o porém muito assucarado... - -—O quê? o que é que o senhor quer dizer com esse ar de mangação? - -—Quero dizer que se a sua ama a esperava para se deitar, teve tempo para -adormecer antes de tomar a tal bebida, a menina demorou-se uma boa meia -hora na rua com o moço do botequim. - -—É que elle provavelmente tinha muito que me contar. - -—Se é d’aquella maneira que elle faz o seu serviço, não tarda que o -despeçam. - -—Bem se importa elle com isso! não tem vontade nenhuma de ficar onde -está; vae tomar um café e estabelecer-se por sua conta. - -—Oh! então o caso é differente. E a menina é que vae para o balcão? - -—Ora! quem sabe! tem-se visto coisas mais de espantar. - -—O Alexandre vae tomar um botequim por sua conta! Ah! ah! ah! essa é -forte de mais, pode-se juntar com o capilé. - -—Sr. Cebollinha, o senhor é muito maldoso, diz mal de toda a gente, -desacredita todo o bairro. É uma coisa muito trivial, todos os dias se -estão a estabelecer os moços de botequim por sua conta, isso vê-se a cada -passo!... - -—Sim, mas os que fazem isso são aquelles que têem feito economias, que -têem forrado alguma coisa do seu ordenado, e não os gastadores, os -extravagantes como o seu Alexandre. - -—Porque é que diz: o seu Alexandre? Elle é tanto meu como de qualquer -outra! o rapaz deve-lhe alguma coisa, para o senhor estar assim a dizer -mal d’elle? - -—É verdade que sim; deve-me ainda uma libra de mel que lhe vendi para -adoçar as suas tisanas, quando esteve doente, e, como o patrão me tinha -prohibido de lhe dar fiado, sou eu que terei de pagar. - -—Ora! elle lhe pagará o seu mel. Olhe, lá o chamam, ande, volte para a -loja. - -—A menina volta? - -—Nunca! o senhor tem muito má lingua. - -A creada continúa o seu caminho; mas cem passos mais adeante encontra-se -com outra creada quasi da mesma edade e que está vestida com muita -garridice. - -—Ah! és tu Rosa! - -—Boas noites, Adriana. Aonde vaes com tanta pressa? - -—Vou á botica buscar uma limonada para minha ama, que está com o seu -ataque de nervos. - -—Ainda estás em casa da tal sr.ª Montémolly? - -—Ainda. - -—Gostas de lá estar? - -—Hum! não muito, não se diverte a gente quasi nada; mas tambem não se -está aperreada, pode-se saír e voltar tarde; é o que a casa tem de bom. - -—E tua ama é senhora capaz? - -—Ora! não sei bem... ella dá-se por viuva. - -—D’um general sem duvida? todas ellas são viuvas de um general; é uma das -suas manias... - -—Não, a minha diz que o marido era banqueiro. O que é certo, é que elle -deixou-lhe fortuna: ella tem pelo menos quinze mil francos de renda, -talvez mais alguma coisa; nós não fazemos dividas, pagamos tudo a -dinheiro de contado. Oh! temos bom governo. - -—Que edade tem a tua sr.ª Montémolly? - -—Ella diz que tem trinta e quatro annos, mas eu dou-lhe trinta e oito, -tambem mais não; foi muito bonita, e está ainda bem conservada. - -—E tem muitos adoradores? - -—Não! infelizmente! porque se assim fosse, havia de divertir-se a gente -muito mais, e seriam maiores os lucros. - -—O quê! pois tua ama renunciou aos amores, ainda em edade de agradar! - -—Não! é que não percebes; minha ama não renunciou ao amor, muito pelo -contraio, ella ama, oh! ama apaixonadamente um rapaz, um bello moço, o -Casimiro Dernold, que vem quasi todos os dias fazer-lhe companhia, que é -musico, que é pintor tambem... emfim, que faz tudo quanto quer, mas que, -segundo eu creio, não quer fazer outra coisa senão divertir-se! A senhora -está doida pelo tal Casimiro, não pensa senão n’elle, não sonha n’outra -coisa, não se importa com mais ninguem. É por isso que não dá attenção -a todos os que procuram fazer-lhe a côrte. É verdadeiramente fiel ao -amante, a ponto de adoecer, de sentir as mais vivas inquietações, se -elle não chega á hora do costume. Ah! minha querida Rosa! que asneira é -amar um homem assim; e como a gente é muito feliz em não se prender! Não -pensas como eu? - -—Já se vê que sim! eu dou attenção a todos quantos me falam; por isso não -tenho um instante de meu. Quando não converso com este, é porque estou -conversando com aquelle! Ah! ah! é muito mais divertido! E que edade pode -ter esse Casimiro, amante de tua ama? - -—Vinte seis a vinte sete annos, talvez. - -—E tua ama tem trinta e oito! elle deve-lhe fazer muita falcatrua!... - -—Não sei, em todo o caso, a senhora vigia-o muito, é ciumenta como uma -panthera! fal-o seguir; é mister que elle lhe dê conta do que faz cada -dia, hora por hora. - -—Pobre rapaz! olhem que vida! Eu antes queria estar nas galés!... - -—Por isso elle algumas vezes respinga, grita, manda bugiar a senhora. Oh! -então, são scenas terriveis! A senhora chora, ou pega n’um punhalzinho -que traz escondido no seio, e diz que se vae matar... - -—Bom! eu conheço essa giria! não tenhas medo de que se mate!... - -—Olha, ha um mez, quando ella soube que o seu Casimiro tinha estado no -Mabille, quiz cravar o punhal no peito; mas, ao que parece, dirigiu mal o -golpe, porque não se feriu senão na orelha, que verteu algum sangue! - -—Ah! ah! ah! ella quer-se apunhalar pela orelha. É uma grande farcista a -tua ama. E esse Casimiro é rico tambem? - -—Rico! elle! pelo contrario, não tem nada de seu. Então não percebeste a -situação, e porque é que elle é escravo da senhora? - -—Ah! sim, percebo agora; é ella quem o sustenta. - -—Exactamente; tem-no seguro pela fome. Se o rapaz tivesse dinheiro, estou -bem certa de que ella o não prenderia muito tempo. - -—Olha, Adriana, não sei se tu és como eu, mas para mim os homens que não -têem nada de seu, não prestam!... - -—Eu não faço caso nenhum d’elles! Ora! um homem viver á custa d’uma -mulher... é andar o mundo ás avessas! Por ventura o homem não foi feito -para ganhar dinheiro e a mulher para o gastar. - -—Pois, minha rica, ha ainda muitas mulheres bastante tolas que se deixam -depennar pelos derriços. Olha, ahi tens a Bochechuda, tu conheces a -Bochechuda?... - -—Quem? A Luizita? - -—Sim, mas todos lhe chamam a Bochechuda, porque parece ter sempre -as faces inchadas. Emfim, ha já algum tempo, a Bochechuda travou -conhecimento no baile Pilodo com um bonito rapaz, que lhe diz que é da -mesma terra. Dansa com ella todas as dansas mais finas, mesmo as que ella -não sabia. Depois convida-a para um jantar no campo no domingo seguinte; -ella aceita; vae jantar com o seu novo conhecimento, que bebe como uma -esponja; depois, quando chega a occasião de pagar a conta, aquelle -senhor declara á Bochechuda que não recebeu da terra um dinheiro com -que contava, e pede-lhe que lhe empreste com que pagar a despeza. Ella -tinha felizmente levado o _porte-monnaie_. Empresta vinte francos ao -tal sujeitinho, que paga e não lhe dá o troco. O jantar tinha custado -apenas nove francos e dez soldos. Volta com ella a pé, não lhe offerece -mais nada e larga-a muito cedo, com o pretexto de que tem um trabalho de -escripturação a fazer para um tendeiro a quem serve de guarda-livros. -A Bochechuda, que não gosta de ir para casa cedo n’um domingo, põe -uma touca nova e vae ao baile Pilodo com uma vizinha. Quem é que ella -encontra lá? o seu parasita, o seu novo conhecimento, que fazia a côrte a -uma mulher e lhe pagava ponche com o troco da moeda de vinte francos que -ella lhe tinha emprestado... - -—Ah! a peça é bem pregada! e o que fez a Luizita? - -—É tão tola que se foi embora chorando. Mas o mais curioso da historia, -é que, no domingo seguinte, o tal sujeitinho tornou-lhe a pregar a mesma -peça. Jantam n’uma casa de pasto, e na occasião de pagar a despeza o -patife diz que não tem dinheiro. - -—Ah! isso é forte demais! e ella pagou outra vez? - -—Pagou, mas pelas suas proprias mãos, e guardou o troco. Desde esse dia, -nunca mais tornou a vêr o seu parasita. - -—Pobre Luizita! mas eu não a devo lastimar, que ella é muito presumida. E -tu, Rosa, ainda estás em casa dos mesmos patrões? - -—Dos Dupont? oh! não, graças a Deus! deixei-os! não era gente fina, -aquillo não me convinha! A senhora ia á praça, ella é que me comprava -tudo: O patrão descia elle mesmo á adega; sabia a conta das garrafas. Não -se podia fazer nada com aquella gente! eram uns piolhosos, minha rica! -Fechavam o assucar e os licores; aquillo não me podia convir. Eu tinha -acceitado aquella casa emquanto me não apparecia outra; eu bem sabia que -não ficaria lá muito tempo. - -—E hoje estás melhor? - -—Ah! minha rica, tenho um bello commodo! estou em casa d’um homem só, um -patrão rico, generoso, nada apoquentador, negoceia por gosto, sómente -para se entreter. Temos uma bella casa aqui perto, na rua Béranger, seis -casas n’um segundo andar. Fiz com que o senhor tomasse um criado para -esfregar; elle não o tinha, mas percebeu que eu não podia fazer tudo. - -—Tens boa soldada! - -—Seiscentos francos, sem contar as gratificações, os presentes!... - -—Teu amo dá-te presentes! sempre és muito feliz! - -—É verdade, ainda ultimamente me deu um rico lenço de seda da India! - -—Que edade tem o teu patrão? - -—E’ um homem que anda pelos seus sessenta annos, mas não parece, está -ainda muito bem conservado!... - -—Ah! entendo... estás em casa d’elle para todo o serviço. Ah! ah! esses -commodos é que são bons!... - -—Ah! tu pensas tolices... pois enganas-te, affianço-te que não é isso... - -—Ora adeus! então por que te dá elle presentes?... - -—Ah! não digo que elle ás vezes não goste de brincar um pouco, de rir, de -me deitar os braços á roda da cintura, mas a coisa não chega nunca aonde -tu imaginas. - -—Deves perceber que isso para mim é-me indifferente; estás no teu direito -de fazeres o que quizeres, assim como o teu patrão, visto que não tem -mulher a quem dar satisfações. Elle é viuvo ou solteiro? - -—Olha! não sei, que ainda lhe não pergunteí isso... mas preciso sabel-o... - -—Ai! Jesus! minha ama que está á espera do remedio... e eu aqui a dar á -lingua contigo. - -—Ninguem pode levar a mal que a gente converse o seu boccado; nós não nos -encontramos todos os dias! - -—Pois sim, mas agora vou de corrida á botica. Adeus! Rosa! - -—Até outra vez, Adriana. - - - - -II - -Na botica - - -Quando a menina Adriana entra emfim na botica, que é quasi á esquina da -rua Meslée e da rua do Templo, havia lá tanta gente, que os praticantes -não sabiam a quem haviam de attender primeiro. Demais d’isso, é -muito raro achar uma botica deserta; a concorrencia abunda n’estes -laboratorios, onde todos esperamos encontrar remedio ou pelo menos -allivio para os nossos soffrimentos ou para os das pessoas que nos são -caras. Se isto prova que a profissão é boa, prova tambem que o nosso -physico tem amiudadas vezes necessidade de reparo, e que estamos longe de -ser perfeitos; é, pelo menos, aquillo de que estamos convencidos ha muito -tempo. - -Entre os freguezes da botica torna-se saliente uma mulher gorda, que -segura pela mão uma criança de quatro a cinco annos, que está de tal modo -embrulhada em casacos, aventaes e chales, que é difficil adivinhar se é -rapaz ou rapariga; a mãe dirige-se a um dos praticantes: - -—Olhe, senhor, o meu pequeno anda ha tres dias com uma tosse, que me -parte o coração ouvil-o tossir: são uns ataques como tinha o pae, que -padecia d’um catarrho que o não deixava pregar olho toda a noite, e -que o levou á cova o anno passado, com uma indigestão que apanhou em -consequencia d’um banho de vapor, porque... - -—Mas, minha senhora, agora não se tracta de seu marido, visto que morreu; -tracta-se do seu pequeno, que está constipado; creio que é por causa -d’elle que a senhora cá vem? - -—De certo; olhe, aqui o tem, é uma joia. - -—É o seu menino? - -—Sim, senhor. - -—Parecia uma menina. - -—Por causa do seu ar malicioso? ah! sim, que elle é muito malicioso; mas -veja como está vermelho. - -—Não admira! a senhora tral-o tão embrulhado, que o pequeno deve por -força sentir muito calor. - -—Mas, como elle anda com tosse... - -—Não é uma razão para o suffocar. - -—O que é então preciso fazer-lhe tomar? - -—Uma tisana de flor de malva com mel, e pode tambem dar-lhe um pouco de -leite. - -—De vacca? - -—Já se vê. - -—Tinham-me dito que lhe fizesse tomar leite de burra. - -—Não é preciso, o menino é ainda muito novo, e não tem cara de quem -padece do peito. - -—Veja se tem febre. - -O praticante quer pegar na mão do pequeno, mas este foge com ella -rompendo em altos gritos. - -—Então, Dodoro! porque é que não queres que este senhor te pegue na mão? -dá-lhe já a mão depressa, patife. - -—Não quero! não quero! - -—É travesso como um macaco. Faze lá uma careta a este senhor. - -—Não quero! - -—Então, é ou não velhaco? - -—Não lhe tem respeito nenhum. - -—Elle é ainda tão pequeno, e depois aprendeu a responder assim com o pae. -Isto faz-me lembrar tanto o meu homem! Faça favor de me dar a flor de -malva e o mel. - -—Sim, senhora, vou avial-a immediatamente. - -—E não lhe parece que seria melhor dar-lhe leite de burra? - -—Não, senhora; torno-lhe a dizer que o seu menino não precisa d’isso. Mas -emfim, se a senhora quer dar-lh’o por força, mal não lhe pode elle fazer. - -—Não acha? O senhor não tem cá uma burra? - -—Oh! não, senhora, nós não temos leite de burra! - -—Que pena! pois ao pé de mim mora uma vizinha que tem uma cabra; o senhor -não acha que o leite de cabra lhe faria o mesmo effeito? - -—Todos os leites que quizer; o leite não faz nunca mal. Aqui tem a flor -de malva e o mel. - -—Muito agradecida; isto é para beber quente? - -—Tanto quanto seja possivel; sempre é melhor tomal-o quente do que frio... - -—Dodoro, atira lá um beijo a este senhor... - -Em vez de atirar um beijo, e rapazinho faz uma careta, deitando a lingua -de fóra, e resmunga: - -—Não quero! não quero! - -A mãe pega n’lle e retira-se, exclamando: - -—Ah! é exactamente como o pae!... - -Uma senhora, de meia edade, com certa garridice no trajo e nas maneiras, -dirige-se a outro praticante, requebrando-se toda e fazendo boquinha de -sorriso, para deixar vêr uma dentadura completamente postiça, mas que -ella suppõe que imita a natural de modo a illudir os mais espertos, e -diz-lhe: - -—Acontece-me um desastre bem desagradavel, e venho pedir-lhe que me tire -isto quanto antes... - -—O que é que precisa tirar, minha senhora? Se é algum dente, nós não -somos dentistas... - -—Não, senhor, não se trata de dentes; por esse lado não preciso nada, -graças a Deus! e o senhor bem o deve vêr... mas olhe aqui para cima da -minha bocca; o que é que vê? - -—Vejo o seu nariz, minha senhora, e de ordinario é n’esse sitio que elle -se encontra. - -—Sim, senhor, está o meu nariz, que tem uma forma bastante engraçada, -posso dizel-o sem desvanecimento; mas sobre o nariz... aqui... á -esquerda, não vê nada? - -—Ah! sim, vejo uma borbulha... já bastante pronunciada e que está mesmo -muito vermelha. - -—Está vermelha e pronunciada!... ah! senhor! o que quer isso dizer!... - -—Quer dizer que ainda não está madura. - -—Madura! como madura? o senhor acha que isto deve amadurecer? - -—Naturalmente, minha senhora: não é mais que uma borbulhita, por -emquanto, mas assim mesmo tem de seguir o seu curso... amadurecer, crear -cabeça, rebentar e sarar... - -—Amadurecer, crear cabeça!.. pois eu havia de ter uma borbulha com cabeça -no nariz! ah! que horror!... não quero tal coisa!... eu, que nunca tive -a mais pequena beliscadura em parte alguma... entende, senhor? em parte -alguma... porque me viria nascer uma borbulha no nariz?... qual pode ser -a causa d’isto? - -—Ignoro totalmente, minha senhora; mas uma borbulha nasce sem se saber -porquê; isso pode acontecer a toda a gente!... - -—Oh! não, senhor, quando se é d’um aceio minucioso, isto não deve -acontecer... Eu não fui metter o nariz em sitios insalubres, pode -acreditar-me! - -—Estou persuadido d’isso, minha senhora! - -—Lavo-me vinte vezes por dia! esfrego-me com _cold-cream_, com vinagre de -Bully, com agua de Portugal, com essencia de jasmim... - -—São coisas de mais, minha senhora, é preciso não abusar dos cosmeticos, -isso produz ás vezes um effeito muito diverso d’aquelle que se espera... - -—Emfim, o senhor vae-me dar alguma coisa para fazer desapparecer isto que -me nasceu aqui, logo no nariz... é preciso que se não veja nem o signal... - -—Minha senhora, isso ha de ser muito difficil... seria mesmo perigoso; -com o nariz não se deve brincar... Já consultou o seu medico? - -—Um medico para uma borbulhita... ora essa. Em primeiro logar, eu não -posso vêr os medicos, detesto-os, querem sempre purgar-me! E eu não me -quero purgar, não quero! - -—Faz mal, minha senhora, porque se se tivesse purgado, é provavel que -essa borbulha não lhe nascesse no nariz. - -—Com que é preciso untar esta borbulha para que desappareça -immediatamente? Deve haver algum remedio. - -—Minha senhora, advirto-a de que será perigoso; se faz recolher essa -borbulha, hão de rebentar-lhe muitas outras n’outros sitios! - -—N’outros sitios não me importa, comtanto que não seja na cara. - -—A senhora quer? - -—Sim, senhor, vou ámanhã a uma _soirée_... quero ir sem borbulha. - -—Então aqui tem ceroto de chumbo, minha senhora, para fazer seccar a sua -borbulhinha... - -—Oh! muito obrigada, vou untar bem todo o nariz!... - -—Só a borbulha, minha senhora... mas previno-a de que lhe hão-de nascer -outras... - -—Muito bem... farei recolher todas. - -A senhora pega no seu boiãosinho de ceroto, paga e vae-se embora, muito -contente por ter com que curar ou pelo menos dissimular a sua borbulha. - -É substituída por um sujeito moço, bem abafado, mas que tem máu parecer, -e se approxima do praticante com um ar acanhado. Os estudantes de -pharmacia sabem muito d’isto; adivinham logo por que razão este senhor os -quer consultor e vão ao seu encontro. Effectivamente, elle fala-lhes ao -ouvido; e então fazem-n’o passar para uma salinha que fica por traz da -botica. Alli, o homem explica o seu caso, sempre a meia voz. Dão-lhe uma -caixa de pilulas, umas poucas de raízes de morangueiro para fazer tisana, -uma garrafa com um xarope já preparado, e o homem leva tudo isto, dando -um profundo suspiro. - -Os praticantes da pharmacia olham uns para os outros sorrindo, e um -d’elles murmura: - - —Ita dis placitum, voluptatem ut moeror - Comes consequatur!... - -—Os deuses! responde outro, quer dizer, foi só _Mercurio_ que assim o -quiz! É o Deus do commercio; terá lá dito comsigo: Isto ha-de-me fazer -vender muito. - -—Meus senhores! vamos! tomem cuidado nas suas palavras! diz o rapaz que -está sentado á carteira. - -—Oh! não ha perigo, as senhoras não sabem latim! - -Chega um velho gordo, bufando, e atira comsigo para cima d’uma cadeira, -dizendo: - -—Ah! senhores, que dôr! Irra! que dôr! - -—O que foi isso? deu alguma queda? - -—Não, oh! não dei queda nenhuma; não me faltava mais nada!... É uma dôr -que me apanha desde o quadril até ao joelho, do lado direito... - -—E essa dôr deu-lhe agora quando ia andando? - -—Deu-me agora? Ha tres semanas que padeço d’ella. Não lhe tenho feito -nada, porque dizia sempre commigo! Isto ha-de passar! mas, qual historia! -não me passa. Por isso é que me resolvi a vir... - -—Teria feito melhor em vir mais cedo. - -—Ah! é que eu não gosto de tomar remedios de botica! Receitem-me tuberas, -lagosta, Champagne, então bem! applicarei a receita immediatamente. - -—Tem talvez abusado de tudo isso, e ahi está o motivo por que tem agora -dores. Consultou já algum medico? - -—Tenho consultado dez, doze, vinte. Cada vez que me acho n’um sitio onda -ha um medico, tracto logo de o consultar. - -—O que lhe disseram elles que era? - -—Um diz que é rheumatismo; outro que é uma dôr sciatica; este diz que -é gotta; aquelle, que é só cançaço. Todos elles me têem receitado umas -fricções. - -—De quê? - -—De balsamo de Opodeldoch, de balsamo Tranquillo, de balsamo de -Fioravanti! e ainda muitos outros balsamos... Eu, como tenho excellente -_rhum_, verdadeiro _rhum_ da Jamaica, tive a lembrança de dar umas -fricções com elle... - -—Não era mau. - -—Não é verdade? Ora, como não tenho criado, pedi ao meu porteiro que me -viesse dar as fricções; elle promptificou-se da melhor vontade. Dei-lhe o -_rhum_, e deitei-me sobre o lado que me não dóe. O porteiro esfregava-me -com toda a força... fazia-me arder a pelle como todos os diabos! O homem -descançava muito a miudo. Tenho uma vez a lembrança de me voltar, e dou -com elle a beber-me o _rhum_ mesmo pela botija; o maroto esfregava-me -em secco! Nunca mais quiz que elle me desse as fricções. Os senhores -podem-me arranjar uma mulher para me fazer este serviço, antes quero uma -mulher que um homem... - -—Podemos inculcar-lhe uma mulher que deita bichas e ventosas, e tambem dá -fricções quando é necessario. - -—É moça? - -—Cincoenta a sessenta annos. - -—Preferia-a de vinte e cinco a trinta. - -—Que importa, comtanto que ella lhe dê bem as fricções. Uma mulher nova -poderia causar-lhe distracções, e é isso que é preciso evitar. - -—Ah! o senhor acha que as distracções são contrarias á minha dôr?... - -—Certamente. Tambem seria bom deitar umas ventosas e alguns causticos -volantes. - -—Oh! emquanto estiver n’este estado não ponho difficuldades a coisa -nenhuma, farei uso de tudo para me curar mais depressa. Aqui tem a minha -morada, mande-me lá ámanhã a tal mulher com as bichas, as ventosas e os -causticos. - -—Mas não vá applicar tudo isso ao mesmo tempo. - -—Com certeza que vou; a coisa assim vae mais depressa! Olhe, eu nunca -faço remedios! mas quando me resolvo a isso, então não quero privar-me de -nada. Dê cá sempre um balsamo qualquer, tractarei de me untar e esfregar -eu mesmo emquanto a tal mulher não apparece. - -Emquanto estão aviando este senhor, entra muito afflicta uma mulher de -lencinho na cabeça, e dirige-se logo ao rapaz que está sentado á carteira: - -—Ah! meu caro sr. Narciso! que má sorte que me persegue desde certo -tempo para cá! Mal a minha pequena está restabelecida do catarrhal e -o meu rapaz do sarampo, e ahi me cae o meu homem doente, sem poder -trabalhar! é o remate da desgraça! - -—Mas o que é que o seu marido tem? - -—Ora! uma molestia exquisita... mas parece que é perigosa. Faça ideia, -tem um anthraz! - -—Um anthraz! que me diz?! - -—Foi o que disse o medico, que é um sabio, e que disse logo: Não tem que -vêr! é um anthraz! Aqui está o que tem o meu André, nasceu-lhe um anthraz -nas costas! Aquillo foi um golpe de ar, não é verdade? - -—Não, mas é uma coisa muito má; a senhora deve trazer uma receita. - -—Sim, senhor, oh! de certo o medico escreveu tudo isto... Levará muito -tempo a fazer? - -—Não, faça favor de se sentar e de esperar cinco minutos; vou já -despachal-a. - -—Então espero. - -Entra na botica, com ar assustado, uma senhora já velha, trazendo um -cãosinho atrelado, e exclama: - -—Meus senhores, é verdade estar já em Paris, ter já feito muitos -estragos? ataca com muita força? - -—Perdão, minha senhora, mas de quem é que falla? - -—Do cholera, senhor, disseram-me que já estava em Paris, que tinha -apparecido no arrabalde de Santo Antonio. - -—É a primeira vez que ouço falar de similhante coisa, minha senhora. - -—Devéras, não tem ouvido falar em tal? - -—Não, minha senhora. - -—O que confirmava os meus receios, foi que ao passar por deante de uns -urinoes, reparei que os estavam alimpando com chloreto. - -—Isso faz-se muito amiude, é para destruir o mau cheiro... - -—Acha que é só para esse fim? Devo tambem dizer-lhe que tenho uma amiga a -quem acaba de morrer o marido muito repentinamente. - -—Uma apoplexia, talvez. - -—Oh! não, senhor, elle não era sanguineo; mas voltou uma noite para -casa com uma lagosta e um salsichão de Lyão, era o seu petisco favorito -acompanhado de muita cerveja. Comeu menos mal; mas no outro dia pela -manhã estava morto e da côr do salsichão. - -—Teve uma indigestão, minha senhora. - -—Mas elle já muitas vezes tinha comido tanto como d’essa vez e não -morrêra. - -—Essas coisa não acontecem nunca duas vezes, minha senhora. - -—Ahi está tambem o pequeno da minha porteira, um rapazito sadio e córado, -pois está ha tres dias com uma dor de barriga e com uma dysenteria. - -—Isso é muito commum nas creanças. - -—Emfim, acabo de encontrar um sujeito que jantou em minha casa ha quinze -dias, e estava então de perfeita saude. Achei-o muito amarello, com -os olhos encovados, mudado a ponto que não me pude conter que lhe não -dissesse: «Ai! Jesus! que cara que o senhor tem!» então está doente? E -elle responde-me: Não sei o que tenho, sinto dores por todo o corpo. É -assim que principia o cholera? - -—Não, minha senhora, esse sujeito tem provavelmente uma grande -constipação, é o que é. - -—Oh! não importa, asseguro-lhe que anda no ar alguma coisa que não é -natural. Eu esta manhã tinha quasi frio quando me levantei, e agora estou -com muito calor! - -—É que andou muito depressa. - -—Não, senhor; o Zozor obriga-me a parar a cada instante; o pobre -animalsinho tambem não está no seu estado normal... Faça favor de me dar -uma pouca de camphora, sei que é um preservativo contra as más emanações. - -—Vou dar-lh’a immediatamente. - -—Metterei um pedaço no meu espartilho: isso não me pode fazer mal. - -—Pelo contrario, minha senhora. - -—Ha de dar-me tambem um pouco de chloro; é outro preservativo. - -—Liquido ou solido, minha senhora? - -—Não comprehendo. - -—Minha senhora, solido é em pó; liquido é em garrafa, uma agua preparada. - -—Ah! eu não conhecia o solido. Dê-me dos dois, farei uso de ambos; -lavar-me-hei com um, e trarei commigo o outro. Ah! tem arruda? - -—Tenho, sim, minha senhora. - -—É tambem um preservativo. - -—Afugenta os insectos. - -—Oh! e preserva tambem do mau ar, dê-me uma pouca; hei de trazel-a sempre -no espartilho. - -—Fará a senhora muito bem. - -—A alfazema tambem tem propriedades reconhecidas? - -—Tem, sim, minha senhora, é aromatica. - -—Dê-me tambem uma porção de alfazema, que é para trazer nas algibeiras. -Que mais me poderá o senhor dar que seja contra os maus ares? Ah! -_patchouli_... tem _patchouli_? - -—Não, minha senhora, isso vende-se nas perfumarias; mas olhe que o -_patchouli_ cheira muito bem mas não combate o mau ar, e, se abusar -d’elle, pode alguma vez atacar-lhe o systema nervoso. - -—Ah! eu não quero nada que ataque o meu systema; a mais pequena coisa me -irrita os nervos! - -—Então, minha senhora, leve antes valeriana, é uma raiz com que se faz -uma infusão como o chá. Comtudo, devo prevenil-a de que não é agradavel -de beber, e que tem muito mau cheiro, mas é muito saudavel. - -—Oh! dê-me cá d’essa raiz, bebel-a-hei e tral-a-hei sempre commigo. - -O praticante dá a esta senhora tudo quanto ella lhe pede; ella enche as -algibeiras e o seio de camphora, arruda, chloro, alfazema, valeriana, e -leva uma garrafa de agua chloretada. Vae deixando por onde passa uma -mistura de cheiros cuja reunião nada tem de agradavel. - -—Se esta senhora não tem á noite uma forte enxaqueca, será um grande -milagre! diz um dos rapazes. - -—Não falando em todos os gatos que vão correr e saltar atraz d’ella, -attrahidos pelo cheiro da valeriana, que os faz quasi endoudecer. Se não -gosta de gatos, vae ver-se muito apoquentada. - -Entra na botica um pedreiro mostrando o braço esquerdo todo ferido; ia -sendo esmagado por uma trave que quasi lhe caíu em cima, mas apenas -apanhou um forte raspão no antebraço. Curam-n’o, ligam-lhe a ferida, -dão-lhe um frasco de agua-ardente camphorada, para elle embeber o -apparelho, e, quando quer pagar, despedem-n’o dizendo: - -—Nós não acceitamos nada aos doentes pobres! Vá-se tractar, e, se tiver -precisão de mais alguma coisa, não receie vir pedil-o que não lhe custará -nada. - -Hão-de convir que, quando a gente vê os pharmaceuticos mostrarem-se tão -solicitos em soccorrer os desgraçados, não deve ter mais a confiança de -os tractar por _boticarios_. - -No emtanto têem entrado na pharmacia muitas creadas de servir; falam -todas ao mesmo tempo, e dizem: - -—Vá! despache-me, que estou com pressa. - -—Oh senhor, eu tenho tosse: dê-me rebuçados de althéa! são muito bons! -Aqui está um remedio que me agrada. - -—A mim dóe-me a garganta... - -—Tome gargarejos de agua de cevada com mel rosado... - -—Minha ama quer pomada para os beiços, não ha pomada que lhe chegue; eu -não uso d’isso, e tenho a bocca mais fresca do que ella. - -—Eu fiz um gallo na testa, e dóe-me muito. - -—Deu alguma pancada? - -—Foi n’uma porta. Eu estava muito quieta, de repente abriram-n’a... eu -não esperava... - -—Provavelmente estava a escutar? - -—Effectivamente escutava; tinha chegado o magnetizador? - -—O que é isso de magnetizador? - -—É um sujeito que anda ensinando a senhora a ser somnanbula lucida, para -fazer experiencias em sociedade. - -—Ah! sua ama quer ser somnanbula? - -—É verdade, metteu-se-lhe aquillo na cabeça; por mais que o marido lhe -diga: «Olha que vaes adoecer!» a senhora não desiste. E, quando chega o -magnetizador, mandam-me embora. - -—E o marido? - -—Meu amo? oh! esse está na repartição; sae de casa ás nove horas, e só -volta ás cinco, é coisa eabida. - -—Percebo. Onde é que deu a pancada? - -—Aqui, na testa... apalpe... - -—Ah! sim, cá sinto. - -—Meu amo disse-me que não precisava fazer-lhe nada, que os gallos na -testa não são perigosos. Elle deve entender d’isto... - -—Tome sempre cosimento de vulneraria, será mais prudente. - -—Então arranje-me isso n’um instante. - -Abre-se a porta, e sente-se um cheiro fortissimo; é a velha dos -preservativos que volta, dizendo: - -—Senhor, esqueci-me de levar agua de melissa dos Carmelitas; é uma coisa -indispensavel quando a gente se sente incommodada; podem-se tambem -esfregar as fontes com ella; é um preservativo... faça favor de me dar um -frasco. - -—Aqui está, minha senhora. - -—Esta é da verdadeira, não é assim? o senhor não quererá enganar-me! É -dos verdadeiros Carmelitas, da verdadeira rua Taranne? - -—Minha senhora, eu não conheço duas em Paris: - -—Muito agradecida. - -A velha mette o frasco na algibeira e retira-se. - -A menina Adriana entra emfim na pharmacia, exclamando: - -—Ah! cá estou finalmente! ainda bem! pensei que não chegaria nunca... - -—Tem alguem doente em casa, menina Adriana? - -—Tenho; é minha ama que está com o seu ataque nervoso, com a sua crise, -e com um grande tremor. Tome, aqui tem a receita, avie-me depressa... eu -vim a correr quanto pude, agora não me demore muito tempo... - -—Sente-se, que vou já despachal-a. - -—Ah! agradeço-lhe muito a sua bondade! é que me faz muita pena vêr -soffrer a pobre de minha ama. - -Começa o praticante a aviar a receita da sr.ª Montémolly, quando se -abre de novo a porta, e invade a pharmacia uma mistura de cheiros -activissimos; é a senhora que tem medo do cholera, que torna a entrar e -vae importunar o rapaz que está ao balcão, exclamando: - -—Ah! senhor! não pode fazer idéa de como cheira mal a rua Meslée!... - -—Sinto muito, mas que quer que lhe faça? - -—Anda alguma coisa no ar, oh! certamente, o ar está máu n’este momento!... - -—É talvez uma trovoada que se prepara!... - -—Oh! o que se prepara é outra coisa. Quer ter a bondade de me desrolhar o -meu frasco de agua de Melissa? Se me dá licença, vou esfregar o nariz e -as fontes, e então poderei affrontar com menos susto os miasmas da rua. - -—Faça o que quizer, minha senhora, aqui tem o seu frasco aberto; quer uma -chicara? - -—Bastará a ponta do meu lenço, vou embebel-a muito bem... - -Effectivamente, esta senhora deita agua de Melissa no lenço, depois -esfrega as fontes, lava o nariz, introduz tanto quanto pode o lenço -molhado nas ventas, esfrega tambem a testa, deita agua de Melissa na -palma da mão, depois aspira-a a ponto de espirrar oito vezes a fio. Emfim -acabada esta ceremonia, torna a rolhar o frasco, mette-o na algibeira, -vae-se, dizendo: - -—D’esta vez, creio que estou bem preservada do máu ar!... - -—Oh! sim, minha senhora, está bem preservada, exclama o aprendiz de -boticario. Folgo de crer que tambem nós o estamos agora das suas visitas. -Que fregueza!... - -—Mas é ella que empesta a gente, diz Adriana; o que foi então que o -senhor deu áquella senhora? - -—Tudo o que ella quiz!... - -—Qual é a doença d’ella? - -—A doença é medo, que é o mal mais commum e que nos manda cá mais gente. -Esta senhora tem medo do cholera; outras têem medo d’uma molestia de que -não apresentam o mais pequeno symptoma mas de que se julgam ameaçadas... -o medo não raciocina! Ninguem faz idéa de quantos freguezes elle nos -arranja... - -—Ai! com a bréca! exclama um dos praticantes, eil-a ahi outra vez de -volta comnosco!... - -—Quem? - -—A senhora dos preservativos... - -—Ora essa! nada, isso agora torna-se forte de mais. Que mais quererá ella -lavar aqui? isto começa a dar-me cuidado. - -A senhora, que recende fortemente, abre a porta e pára no limiar, dizendo: - -—Perdão, meus senhores, uma pergunta, se me dão licença... Se eu tomasse -tabaco?... É uma coisa que tambem deve preservar, penso eu?... - -—Sim, minha senhora, de certo, tome tabaco... tome mesmo muito; não -cheirará mais nada!... - -—Então faça favor de me dar uma porção de tabaco... - -—Nós não vendemos tabaco, minha senhora, no _boulevard_ encontra-o logo. - -—Corro a compral-o. Cheirarei primeiramente, e depois talvez me arrisque -a fumar um cigarrinho; as senhoras agora fumam, não é verdade? - -—Sim, minha senhora. Oh! as senhoras fumam, fazem agora tudo o que fazem -os homens; isso não as aformoseia, mas diverte-as... - -—Oh! mas eu cá, não é com o fim de me aformosear, é para affrontar os -máus ares. Vou comprar tabaco... - -—Vá, minha senhora, vá! diz o joven pharmaceutico fechando-lhe a porta -nas costas; cheire, fume, masque mesmo, se isso lhe dá prazer mas, por -favor, deixe-nos socegados um instante! Tome, menina Adriana, aqui tem o -remedio para sua ama... - -—Obrigada; vou de corrida levar-lh’o... faz-me tanta pena vel-a -soffrer!... Boa tarde, meus senhores... - -A creada grave retira-se, e d’esta vez chega a casa sem ter tido outros -encontros. Quando passa diz á porteira: - -—Aqui me tem; cá trago o remedio; pensei que não acabavam de me aviar -hoje; havia muita gente na botica... - -—Pois olhe, não vale a pena apressar-se... - -—Então porquê, sr.ª Bedou? - -—Porque sua ama saíu de carruagem com a sua amiga, ha já bastante tempo... - -—A senhora saíu! oh! isso era de esperar! vá lá uma pessoa estafar-se a -correr para dar conta do seu recado! vá lá a gente privar-se de conversar -com os seus conhecimentos! Ah! esta não me ha de esquecer... - - - - -III - -Um rapaz manteúdo - - -O joven Casimiro Dernold occupa um lindo aposento de rapaz solteiro, n’um -terceiro andar, n’uma bella casa da rua de Paradis-Poissonniére. Tem uma -saleta, uma sala e um quarto de dormir. Tudo isto está no maior aceio, -e bem adornado; a mobilia, sem ser d’uma extrema elegancia, é de bom -gosto e ainda da moda. Emfim, tudo annuncia que quem occupa este pequeno -aposento não deve ser, como se diz vulgarmente, um semsaborão. - -E entretanto aquelle que alli habita, rapaz de vinte e seis annos, bonito -de cara, bem feito de corpo, cujo porte é elegante e o trajo sempre -apurado, passeia n’este momento na sala com um ar de muito máu humor, -batendo algumas vezes nos moveis com uma chibatinha, ou amarrotando -as luvas com colera, e falando alto, o que acontece amiude ás pessoas -fortemente excitadas por um sentimento qualquer; porque parece que -desafogamos dizendo o que nos afflige, mesmo quando ninguem mais nos pode -ouvir. - -—Nada! não!... isto não pode durar assim... é preciso acabarmos com isto! -exclama o rapaz, que acaba de bater com a chibatinha n’uma poltrona -fazendo sair d’ella uma nuvem de poeira, o que o detem na sua exclamação -e lhe faz dizer: Se é assim que o meu porteiro me sacode a mobilia, não -se deve cansar muito... Nada! estou cançado de ser escravo de Anbrosina, -porque sou completamente seu escravo!... Não posso dar um passo, nem ir -a parte alguma, sem que ella o saiba... Estou persuadido de que me manda -espreitar; diz que é por amor; ella ama-me, sim, concordo n’isso, devo -mesmo acredital-o... porque eu custo-lhe muito caro... Ella compra-me -tudo o que eu desejo; paga-me o alfaiate, o sapateiro, emfim, todos os -meus fornecedores... Aliás, como havia de eu pagar-lhes, eu que não -faço nada, que não ganho nada, que para nada sirvo? Oh! mas, se não -faço nada, ella é que tem a culpa! Todas as vezes que tenho querido -procurar um emprego, ella tem-se opposto a isto. Quando me quero deitar -de novo á pintura, porque eu principiava a ir menos mal na paizagem, -tinha tambem conseguido fazer alguns retratos, tinha experimentado a -mão com os amigos. Eu devia ter continuado, mas Ambrosina acha sempre -meio de me impedir de trabalhar, levando-me para o campo, obrigando-me -a acompanhal-a constantemente, a andar passeando com ella, a leval-a a -alguma festa... Emfim, imagina sempre alguma coisa, tudo para fazer -monopolio de mim, para me ter sempre na sua dependencia. Havia de -affligir-se muito se eu ganhasse dinheiro, porque então poderia passar -sem ella, escapar-me das suas garras! E eu, covarde, preguiçoso, comilão, -gostando dos prazeres, da vida regalada, deixei-me enredar por esta -mulher, por quem senti algum amor, no começo, e da qual depois não tive -força para recusar os favores. E quando a gente se acha n’este declive, é -muito difficil parar, sobretudo quando se é, como eu dizia, preguiçoso, -comilão, e amigo das suas commodidades. Ah! os rapazes deviam tomar muito -cuidado nas ligações que arranjam... essas ligações influem em todo o -resto da existencia. Tenham duas, tres, doze amantes se se acham com -forças para tanto, mas não se prendam com nenhuma... porque é essa que os -fará commetter tolices e perder o futuro. Aquelles que passam por doudos -e extravagantes, são portanto os que têem mais juizo; pelo menos não se -deixam cair no laço e conservam o seu livre arbitrio. Nada, não, ha dois -annos que sou o chichisbéo da sr.ª Montémolly, irra! já estou farto! - -Casimiro dá nova chibatada n’uma das suas poltronas; levanta-se uma tal -poeirada, que o rapaz fica quasi cego, e tem de, se refugiar na outra -extremidade da sala, murmurando: - -—Olhem o maroto do porteiro! não é possivel ter menos cuidado com os meus -moveis! E diz elle que passa metade do dia a arranjar-me a casa. Ah! se -Ambrosina soubesse que dou lições da desenho a uma menina do predio, como -não ficaria furiosa! É todavia uma coisa bem innocente. A menina Angelina -Proh é uma rapariga nem feia nem bonita; antes tola que espirituosa; -mas creio que isso é de familia. Mora com o pae, com a mãe e com um -irmãosinho, no mesmo patamar defronte de mim. Esta familia Proh é d’uma -extrema polidez; a mãe, que ainda tem pretenções, dizia-me a cada passo: - -«—O senhor é pintor, ah! eu estimaria muito ter o meu retrato, e, se o -senhor não levasse muito caro, pedia-lhe que m’o tirasse, mas a oleo, -com tintas porque eu detesto a photographia, acho que faz a gente feia -consideravelmente. - -«—Minha senhora, sinto muito, mas não me julgo ainda com forças bastantes -para tirar um retrato do nutural. - -«—Oh! isso é talvez demasiada modestia! Será preciso experimentar; nós -somos visinhos, não virei senão quando o senhor tiver tempo de seu. - -«Tempo de meu! tenho-o sempre, quando porém Ambrosina me dá liccença -para o ter!... Depois o papá Proh, que é, creio eu, um antigo professor -de grego e de latim, propoz-me o dar algumas lições de desenho á filha e -ao filho, quando elle não fizer travessuras. Já se vê, aceitei. Vinte e -cinco francos por mez não são grande coisa, mas eu não poderia dizer com -que sentimento de alegria, de felicidade, recebo este dinheiro, que é -adquirido pelo meu trabalho. Sinto-me deveras orgulhoso! Ah! estes vinte -e cinco francos dão-me cem vezes mais prazer que o cartucho de moedas de -ouro que Ambrosina me mette no bolso; tanto mais que ao depois é preciso -que eu lhe dê uma conta exacta do emprego que fiz d’esse ouro... - -«Hoje devia ir buscal-a ás oito horas para a levar a um café-concerto. -Ella havia de escolher o que mais a tentasse. Mas como isso me não -tentava nada a mim, e como desde muito tempo ardo em desejos de ir -ao Mabille ver as damas que dansam com tanto _chic_, escrevi-lhe um -bilhetinho dizendo que o meu amigo Miflaud tinha uma pendencia de -honra para ámanhã pela manhã, que elle contava commigo para ser um -dos padrinhos, e que era absolutamente preciso que eu lhe fosse falar -esta noite, para me entender com elle e com o outro padrinho sobre as -condições do duello e sobre o motivo da pendencia. Engulirá ella esta -peta?... Hum! não é muito provavel; o importante é que Miflaud, que -deve ir commigo ao Mabille, não me faça esperar muito tempo. Logo que -eu me apanhe fóra de casa, tanto peor! se Ambrosina aqui mandar, não me -encontrarão. - -«Vejamos as horas que são: já oito horas! e este tolo de Miflaud devia -cá estar ás sete e meia. Felizmente, mandei a minha carta a Ambrosina -muito tarde; de certo não a recebeu antes das oito horas. Quem a ha -de aturar ámanhã! Mas, em ella vendo que me zango devéras, oh! então, -acalma-se logo; ella no fundo não é má, mas muito ciosa de mais! -infinitamente ciosa; uma verdadeira andaluza. Graças a Deus não traz faca -na liga. Ah! lá tocam a campainha, é Miflaud, finalmente...» - -Casimiro corre a abrir a porta, mas, em vez do rapaz por quem esperava, -acha-se com um menino de seis annos, que lhe diz: - -—Sr. Casimiro, venho da parte da mamã saber se o senhor está em casa? - -—Bem vê que estou, Affonsinho, e o que me quer a sua mamã, a sr.ª Proh? - -—Acaba a costureira de lhe trazer um vestido novo muito bonito, de riscas -verdes e encarnadas. A mamã vestiu-o, e queria que o senhor a visse com -elle, para lhe dizer se a quer retratar assim. - -—Mas meu menino, eu não vou agora fazer o retrato da sua mamã; terei -muito tempo para ver o seu vestido. - -—Sim, porém ella disse-me: Vae pedir ao nosso vizinho que entre cá um -minuto; quero que elle me veja assim vestida... - -—É que estou á espera d’uma pessoa. Ah! mas posso deixar a porta aberta. -Ande lá adeante de mim, Affonsinho! Seu papá não está em casa? - -—Não, senhor, saiu agora mesmo dizendo á mamã que ella parecia uma girafa -com o seu vestido de riscas. - -—Oh! com a breca! mas a sr.ª Proh não havia de ficar muito contente! - -—Por isso respondeu ao papá: «Tu então não precisas estar vestido para -pareceres um chimpanzé.» Sr. Casimiro, o que é um chimpanzé, com que o -papá se parece? - -—Meu caro amigo, é... ora... um chimpanzé é um homem dos bosques, um -bonito homem dos bosques, emfim é um quadrumano. - -—É o que é um quadrumano? - -—É um homem que tem os pés com forma de mãos. - -A apparição da sr.ª Proh vem pôr termo ás perguntas do filho. Esta -senhora vem até á porta da escada ao encontro do seu vizinho. Celeste -Proh é uma mulher de quarenta e sete annos, loura, deslavada, com olhos -azues muito desmaiados, e sem rasto de sobrancelhas; é obrigada a -fazel-as com um pincel, que ella molha n’uma composição, cuja côr nem -sempre é a que se esperava, o que faz com que esta senhora tenha por cima -dos olhos um arco, ora preto, ora côr de castanha, ora avermelhado; ella -porém acha que isso lhe dá mais graça á physionomia; tem-se por muito -bonita e julga parecer mais nova que sua filha, que tem dezeseis annos. -Repete muito amiude na conversação que não comprehende seu marido, que -nunca mostrou empenho em possuir o retrato de sua mulher, com o qual elle -deveria ter adornado todos os seus aposentos. - -A sr.ª Proh tem effectivamente um vestido novo de riscas largas d’um -encarnado muito vivo e d’um verde claro, o que lhe dá quasi o ar d’uma -mouta florida e attrahe a vista a cincoenta passos. Avança sorrindo para -o vizinho. - -—Mil perdões, sr. Casimiro, fui indiscreta, mandei-lhe lá o Fonfonso; é -que eu queria saber a sua opinião a respeito d’este vestido; como o acha? - -—Acho-o muito bonito, é original e faz sobre-tudo muito effeito; emfim, -vê-se de longe. - -—Eu gosto d’isto, gosto do que dá nas vistas. Acha que me fica bem? - -—Admiravelmente! assenta-lhe que nem uma luva! - -—Gosto muito do vestido bem justo ao corpo. Demais, creia que não me -tolhe por modo algum os movimentos. Então está dito, ha-de retratar-me -com este vestido, não é verdade? - -—Então sempre quer que lhe tire o retrato? - -—De certo que sim. - -—Mas eu já lhe disse que me não julgo com forças de tirar um retrato do -natural. - -—Mas o senhor pintou o retrato da gata do porteiro, já lh’o vi lá em -baixo no cubiculo. - -—Aquillo foi um ensaio, para me distrahir. - -—Pois bem! fará tambem o meu para se distrahir. O sr. Casimiro é -demasiadamente modesto, desconfia muito do seu talento; a gata do -porteiro parece que está viva, e todavia ella não esteve muito tempo em -posição deante do senhor? - -—Não esteve tempo nenhum, pintei-a de memoria. - -—Eu estarei o tempo que o senhor quizer. O meu Proh queria fazer-me -photographar, mas eu não quiz; detesto a photographia, desfeia e -envelhece a gente, mas não custa caro, e por isso toda a gente se serve -d’ella. Falem-me da pintura! isso é que tem vida, expressão, côr... - -—Sou inteiramente do seu parecer, minha senhora. - -—Entre e descance um pouco... - -—Muito obrigado, mas espero uma pessoa, e é preciso que eu esteja em casa. - -—Então como este vestido lhe agrada, poderá retratar-me com elle? - -—Estou prompto a retratal-a com o trajo de que a senhora mais goste, -mesmo de Diana caçadora, se quizer. - -—Oh! mas é uma bella idéa essa. Diana caçadora! oh! isso é que seria de -bom gosto... - -—Boa tarde, minha senhora, e fico ás suas ordens. - -—Mas, vizinho, onde poderei encontrar o trajo d’essa deusa da caça? - -—Casimiro não responde mais á vizinha, porque fechou já a porta, dizendo -comsigo: - -—Esta sr.ª Proh é massadora! Se não fosse o interesse que tenho em lhe -dar lições aos filhos, já a teria mandado para o diabo com o seu retrato! -E este Miflaud sem apparecer! São quasi oito horas e meia, estou capaz -de me ir embora sem elle. Mas ir sósinho ao Mabille não é nada divertido! - -Passam ainda cinco minutos quando finalmente tocam a campainha com -violencia; o rapaz corre a abrir a porta, mas é a sr.ª Montémolly, que -entra com um ar decidido, furibundo, toda esbaforida e a escorrer em -suor, porque subiu a escada a toda a pressa. Os leitores já sabem pela -menina Adriana que sua ama, que quer passar por ter trinta e quatro -annos, deve andar perto dos trinta e oito. Para completar o retrato, -accrescentaremos que é uma mulher alta e bonita, que tem uma certa graça -nas maneiras, uma certa perfeição nas fórmas, e que veste muito bem. É -uma mulher trigueira, cujos olhos bem rasgados nem sempre são meigos, -e cuja bocca, um pouco mettida para dentro, é muitas vezes desdenhosa -e altiva; mas, quando ella quer ser amavel, é uma bonita mulher, um -verdadeiro typo andaluz; para ser uma perfeita hespanhola, não lhe falta -senão o pente muito alto debaixo do véu preto e umas castanholas nas mãos. - -Esta senhora entra sem se demorar um instante, sem mesmo dizer uma -palavra áquelle que lhe abre a porta; atravessa immediatamente a saleta -de entrada, a sala, vae passar revista ao quarto da cama, esquadrinha -todos os cantos á casa para vêr se está por alli alguem escondido; só -depois de ter acabado esta inspecção é que volta á sala, e atira comsigo -para cima d’uma poltrona exclamando: - -—Ah! não era a mim que o senhor esperava, não é verdade? - -—De certo! responde Casimiro sentando-se com o ar d’uma pessoa que -acaba de levar com uma telha na cabeça; e é devéras um acaso o ter-me -encontrado aqui. Já teria sahido para ir a casa de Miflaud, se elle me -não tivesse escripto novamente dizendo-me que viria elle mesmo cá, que -antes queria isso, porque em sua casa, como mora com a mãe, receava que -ella suspeitasse do duello e então... - -—Sr. Casimiro, quando faz tenção de acabar com essas mentirolas? Pensa -porventura que acredito todas essas patranhas que me conta, e mesmo -muito mal. - -—Mas, minha senhora, não ha aqui patranha nenhuma. Que espanto é que um -meu amigo tenha uma pendencia de honra? é uma coisa que acontece todos os -dias. Elle pede-me que seja seu padrinho, e isto não se recusa... - -—Em primeiro logar, ha muito tempo que o senhor me não falava no seu -amigo Miflaud; parece-me que tinha deixado de andar com elle. - -—Deixado... porque, estando sempre com a senhora, não posso andar com -elle, mas não estavamos desavindos. - -—O senhor devia passar o serão commigo. - -—Isso nada tem de notavel, porque os passo todos! - -—Então com quem queria passal-os? O senhor escreve-me: «Não espere por -mim esta noite.» Como é amavel!... - -—Visto que era para obsequiar Miflaud. Mas tanto peor para elle; não -estou para o esperar mais tempo. Venha, vamos passear. - -—Ah! agora tem pressa de sair, está com medo não chegue essa pessoa. Isto -esconde uma perfidia; não é Miflaud que o senhor espera! - -—É sim, é elle. Mas, visto que a senhora se deu ao incommodo de cá vir, -que o leve o diabo. Vamos, Ambrosina, estou ás suas ordens. Hein? isto é -que é ser amavel! Vamos embora... - -—Oh! que pressa que tem de sair! isto não é natural, o senhor está-me a -atraiçoar! - -Cazimiro levanta-se encolerizado, e põe-se a passear pelo quarto dizendo: - -—Isto é demais! o demonio leve as mulheres com o seu genio infernal! Quer -a gente sair sem ellas, gritam; quer estar com ellas, gritam do mesmo -modo! Emfim, faça-se o que se fizer, gritam sempre! Ah! não estou para -aturar mais scenas d’estas! Adeus, minha senhora, faça o que quizer, eu -cá vou-me embora! - -E já o rapaz tem dado alguns passos para a porta; mas Ambrosina corre -para elle com a rapidez d’uma corça, segura-o, enlaça-o nos braços, olha -para elle amorosamente, e diz-lhe com ternura: - -—Aonde vaes, ingrato? queres abandonar-me? bem sabes porém que não posso -viver sem ti, que és a minha felicidade, a minha alma, a minha vida! -Reputas um crime o eu ter vindo aqui? não era muito natural que eu me -quizesse certificar de que não recebias aqui outra mulher, ou de que não -ias ter com ella a alguma parte?... - -—Bem vê que não escondo aqui mulher alguma; o que me havia de ser -difficil! a senhora esquadrinhou todos os cantos á casa. - -—Não, mas estás talvez á espera d’ella! - -—Outra vez! ah! a senhora é terrivel! - -—Não! não! não tenho razão, meu amigo, sou injusta, não o serei mais... - -—Bom! ainda bem! vamos passear. - -Casimiro está com pressa de sair, porque receia agora que a chegada -do seu amigo Miflaud ponha a descoberto as suas mentiras. Mas, sempre -promettendo não tornar a ser ciosa, Ambrosina, que continua a ter -suspeitas, acha meios para não sair tão depressa: é o seu chapéu que -não está bem posto, depois é a cuia que não está muito segura, e é -preciso que ella arranje tudo isto; o seu amante está sobre brazas; já -pôz o chapéu na cabeça, tem a bengala na mão, e a sua amante tem sempre -alfinetes a pregar em alguma parte. Succede alfim o que elle receava, -batem á porta. - -O rapaz não dá mais que um pulo da sala á porta de entrada, afim de -tratar de prevenir o seu amigo; mas, por mais prompto que tenha sido, -Ambrosina chega lá ao mesmo tempo que elle, depois de ter atirado ao chão -os alfinetes que estava a pregar. - -É effectivamente Miflaud, joven corrector de commercio, da edade de -Casimiro, que não é bonito, mas que tem uma cara bastante original, que -gosta de _grisettes_, de dança, de vinho branco e de camarões; não foi -muito favorecido pela natureza emquanto ao espirito, mas está sempre -prompto para se divertir, para rir, emfim para brincar, comtanto que não -seja encarregado de inventar as brincadeiras. - -—Boa noite, Miflaud, vens por causa do teu duello... pois que te bates -ámanhã, e eu devo servir-te de padrinho. Mas sinto muito, meu amigo; -procura outro... Tenho que fazer ámanhã. - -Tudo isto foi dito por Casimiro d’um só jacto, sem tomara respiração. -Um outro que não fosse Miflaud, um d’estes farçantes como ha tantos, -teria comprehendido a situação, sobretudo vendo os signaes que o seu -amigo tratava de lhe fazer; mas Miflaud não era esperto, e emquanto que -a sr.ª Montémolly o mira com anciedade, elle toma um ar muito espantado -respondendo: - -—Eu! bato-me em duello! Essa é muito boa! Mas não percebo nada, isso é -uma brincadeira! - -—Vamos Miflaud, não vale a pena occultal-o... esta senhora tudo sabe, eu -contei-lhe tudo; não se dirá nada a tua mãe. Boa noite... vamos sair... - -—Mas eu estimaria bem saber o que tu queres dizer com o teu duello... - -—Este senhor fez todavia tudo quanto é possivel para que o senhor -comprehendesse! diz Ambrozina lançando sobre Casimiro um olhar -fulminante; elle quiz immediatamente pôl-o ao facto de tudo, para que -o senhor não desmentisse as patranhas que elle me contou... mas perdeu -o tempo e o trabalho; não me deixo enganar tão facilmente! Vamos, sr. -Miflaud, não esteja a quebrar a cabeça, não se cance a querer adivinhar -o que significam os signaes que o seu amigo lhe faz... O senhor não tem -nenhum duello, não se bate ámanhã, e estimo muito que assim seja. - -—Muito obrigado pela sua bondade, minha senhora; é certo que não tenho -nenhuma tenção de me bater ámanhã, nem mesmo depois de ámanhã... - -—E vinha buscar este senhor para ir com elle... a algum baile de tasca, -sem duvida? - -—Oh! minha senhora!... ora essa!... um baile de tasca!... eu vinha... -nós deviamos ir... Casimiro, dize lá onde é que estavamos para ir... - -Casimiro encolhe os hombros, e atira comsigo para uma cadeira exclamando: - -—Oh! não te embaraces... pois que com esta senhora não ha meio de dar um -passo, de ir a um divertimento sem sua licença... Pois bem! é verdade, -iamos, ou pelo menos deviamos ir ao Mabille passar uma hora. Isto não é -crime! mas a senhora é tão ridicula, tão ciosa, que em tudo vê maldade! e -obriga-me a mentir para evitar as scenas de ciume; mas com a senhora não -se evitam nunca! - -—Ao Mabille! quer ir ao Mabille! que horror! um logar de perdição! Bem se -sabe o que os homens vão lá procurar!... - -—Mas, minha senhora, engana-se, diz Miflaud; o Mabille é um jardim -frequentado pela boa sociedade, pelos estrangeiros mais distinctos, por -lindas mulheres... - -—Por _cocottes_! diga o termo. - -—Mas lá não ha só _cocottes_; e ao menos as que lá vão, apresentam-se -vestidas no rigor da moda, e algumas que dançam com uma graça, uma -desenvoltura. Asseguro-lhe que é muito curioso vêr aquillo. - -—Oh! desconfio bem que não é só para vêr que os senhores lá vão... - -—Mas, como Casimiro parece estar agora occupado com a senhora, penso que -não iremos, e portanto vou... - -—Nada! nada! vamos lá, eu quero ir por força! exclama Casimiro -levantando-se arrebatadamente. Não se ha de dizer que nunca faço o que me -dá na vontade. Vem, Miflaud, vamos tomar uma carruagem. - -—Ah! querem por força ir ao Mabille, diz Ambrosina correndo a buscar o -chale; pois bem! vou tambem com os senhores. Penso que o sr. Miflaud não -se recusará a dar-me o braço... - -—De certo que não, minha senhora, terei até muita honra n’isso. - -—Ah! lá me esqueciam as luvas... - -Emquanto a sr.ª Montémolly vae ao fundo da sala buscar as luvas, diz -Miflaud em voz baixa a Casimiro: - -—Com ella não será a coisa tão divertida! - -—Tu é que tens a culpa, imbecil! responde Casimiro; se tivesses entendido -os meus signaes, ella teria acreditado no duello, e deixava-me sair -comtigo. - -—Mas... se eu não sou forte em mimica! - -Ambrosina volta calçando as luvas e parte com os dois rapazes. Casimiro -faz quanto pode para occultar o seu mau humor; a sua amante olha para -elle, com ar meio ironico e meio de ameaça. - - - - -IV - -Um almoço em intimidade - - -No dia seguinte, depois do meio dia, Casimiro está em casa da amante, -sentado a uma mesa sobre a qual se acha servido um magnifico almoço, -defronte da sr.ª Montémolly, com quem elle fez as pazes n’essa mesma -noite do baile Mabille, que se passou sem nova scena de ciumes. Miflaud, -como não podia deixar de entregar-se á sua paixão pela dansa, teve de -largar o braço de Ambrosina, a qual, naturalmente, tomou o de Casimiro; -mas este, que não tinha a menor propensão para o _cancan_, ainda o mais -burguez, contentou-se em ver Miflaud fazer prodigios de destreza e de -audacia, executando a _tulipa tempestuosa_ e outras dansas em voga nas -quadrilhas excentricas; depois, enternecido emfim pelos suspiros que dá -Ambrosina apertando-lhe o braço, pelos olhares ardentes que succederam -aos que ella a principio lhe lançava, por estas palavras: «Então já me -não amas?» que são pronunciadas com uma voz quasi supplicante, elle -responde meigamente á pressão do braço, olha para ella sorrindo, e está -feita a paz. Não é talvez uma paz bem solida, bem duravel, mas emfim é -uma reconciliação. - -A sr.ª Montémolly está com um lindo trajo caseiro de manhã, que dá muito -realce aos seus contornos bem pronunciados; na cabeça não tem mais -enfeites que os seus lindos cabellos, muito negros e espessos, que ella -propria sabe arranjar de maneira que harmonisem com a sua physionomia, -talento que nem sempre possuem os artistas cabelleireiros, que nos -penteiam a seu modo, sem se importarem que o penteado fique bem ou mal á -nossa cara. - -Ambrosina é ainda uma mulher muito seductora e que muitos homens se -julgariam felizes de conquistar; mas, n’este momento é ella que parece -procurar agradar ao seu amante, prendel-o em novas cadeias, emfim -captival-o ainda mais. Estão trocados os papeis: é a senhora quem faz a -côrte, e o homem quem a recebe. - -—Meu amiguinho, coma um bocadinho d’este _foie gras_, diz Ambrosina a -Casimiro. Não o acha bom? - -—Delicioso, optimo! mas já comi. - -—Não importa. Então vae perdendo o appetite? - -—Pelo contrario, tenho um appetite enorme, e parece-me que o mostro bem; -faço honra ao seu almoço. - -—Que tal acha este Chambertin? - -—Excellente: sinto-me tentado a cantar aquella copla do _Novo senhor de -aldeia_: _É um vinho dos mais excellentes!... tem dez tem doze annos!..._ - -—Tenho aqui um velho Madeira, de retorno da India, que o meu fornecedor -de vinhos me recommendou; vae dizer-me o que pensa d’elle. - -—Estou d’antemão persuadido de que pensarei muito bem; a senhora tem -sempre vinhos deliciosos. - -—É verdade, estou muito contente com o meu fornecedor. Coma d’esta -lagosta em _mayonnaise_... - -—É o que estou fazendo. - -—Aqui tem azeitonas... e atum. - -—Logo, logo, temos muito tempo; a senhora não tem que sahir hoje de manhã? - -—Eu? ora essa! E aonde poderia eu ir quando estou com o senhor, quando -o pussuo aqui, ao pé de mim, em minha casa? Ah! sou tão feliz então! -queria estar sempre assim... - -—Provemos uma gota d’este famoso Madeira de retorno da India. Hum! que -linda côr... e como está _nif_.... - -—O que entende por _nif_, meu amiguinho? - -—É um termo de camponio que quer dizer claro, puro. Hum! bello aroma, -este não cheira a agua-ardente como todo o Madeira falsificado... Á sua -saude, minha querida amiga... - -Vá á sua, meu brégeiro: mas sobretudo não me prégue petas como hontem. - -—Ah! quer tornar á mesma? Afinal de contas, o crime não era grande. Toda -a gente vae ao Mabille, e pode-se estar lá com muito juizo. - -—Sim, mas não se deve dansar como o seu amigo Miflaud; aquelle rapaz tem -os ossos deslocados! - -—Então que quer? elle aspira a uma reputação no genero da do famoso -Chicard! - -—Felizmente o senhor não gosta de dansa... - -—Ainda que gostasse, peço-lhe que acredite que não seria isso razão para -eu me entregar a um _cancan_ tão descabellado. - -—Meu amiguinho, aqui tem salmão grelhado que ha de ser muito bom com este -môlho á genebriana. - -—Diabo! ainda salmão; já tenho comido muito! Emfim, tanto peior! -sacrifico-me... - -—Então não bebe! - -—Não faço outra coisa... - -—Temos aqui Champagne _rosey_; gosta, creio eu? - -—Oh! eu gosto de todos os vinhos quando são bons, é como as mulheres. - -—Como, senhor! gosta de todas as mulheres?... - -—Perdão! é quando ellas são boas, e asseguro-lhe que não me prende isso -muito. - -—Ah! mau! então acha as mulheres más? - -—Sim, em geral, mas ha excepções. - -—É uma felicidade! e eu sou uma excepção? - -—Oh! a senhora abusa da minha situação, faz-me beber uma grande -diversidade de vinhos... e depois faz-me perguntas insidiosas... - -—Vamos, responda: eu sou boa? - -—Ah! ah! ah! - -—Não se ria! quero que me diga se sou boa. - -—Só pela maneira de me perguntar isso, se poderia logo pensar o -contrario! mas não, pode estar socegada, a senhora é boa, é um carneiro, -um cordeirinho... nunca se zanga... - -—Creio que está mangando commigo? - -—Não, oh! francamente, julgo-a boa, quando não está debaixo do imperio -d’uns zelos que lhe estragam ás vezes o genio. - -—É minha a culpa? Eu não seria ciosa de certo se o amasse menos... - -—Sim, isso diz-se sempre, mas eu não duvido dos seus sentimentos. Tem-me -dado bastantes provas de affeição, tem-m’as dado até de mais... e como -poderei eu pagar... - -—Cale-se! agora vae dizer tolices, beba, que é melhor. O Champagne está á -sua espera. Vamos, faça-me a razão... este é o meu vinho favorito... - -—Á sua saude, querida Ambrosina; sim, bebo mas isso não me impedirá de -lhe dizer que no fundo do coração não estou contente commigo. Não faço -coisa alguma, não me falta nada, a senhora corre ao encontro de todos os -meus desejos, paga a todos os meus fornecedores: é odioso, isto assim não -pode durar! - -—Na verdade, Casimiro, não sei o que tem hoje, mas está a dizer-me coisas -muito desagradaveis. Como, porventura entre duas pessoas que se amam, não -deve ser tudo commum, o prazer e o desgosto, a miseria e a riqueza? Se eu -não tivesse um soldo de meu, se carecesse de tudo, pensa que me havia de -envergonhar de lhe dever tudo, de partilhar da sua fortuna, de viver dos -seus beneficios?... - -—Oh! n’uma mulher, o caso é muito differente! uma mulher, é esse o seu -papel, é a sua sorte; a mulher nasceu para ser protegida, soccorrida, -sustentada pelo homem. As senhoras são feitas de uma das nossas -costellas, por conseguinte são uma parte de nós mesmos. Mas o homem -nasceu para trabalhar, para ganhar dinheiro, ou para o perder quando não -é bem succedido nas suas emprezas. E quando elle passa todo o seu tempo a -passear, a não fazer nada, senão divertir-se á custa da mulher, é o mundo -ás avessas! - -—Ah! como é cruel! E todos aquelles que nasceram com fortuna, com -herdades, quintas... têem acaso necessidade de trabalhar? - -—Não, mas tambem não têem necessidade de que os seus fornecedores sejam -pagos pela dama a quem fazem a côrte. - -—Mas, todos os dias se está vendo um homem que não tem nada casar com uma -mulher que lhe leva um dote consideravel; e elle não se envergonha de -acceitar esse dote. Bem vê que é a sua mulher que elle deverá o seu bem -estar, a sua fortuna, que muitas vezes elle se apressará a dissipar com -amantes. Por que razão se acha o senhor tão reprehensivel, emquanto que -esse homem será bem visto na sociedade? - -—Oh! minha querida amiga, é que ha ahi uma grande differença: esse homem -veiu a ser marido da senhora rica, ella julgou-o digno de o unir a si -por laços indissoluveis, emfim tem o nome d’elle. O marido torna-se dono -da casa, o que é muito differente! Então pode mandar, pode pôr e dispôr -d’uma fortuna que passou a ser sua... - -A sr.ª Montémolly não responde nada; escutou com attenção as ultimas -palavras do seu amante, e isso carrega-lhe de sombras a physionomia, -emquanto que Casimiro, enche um copo de Champagne, que em seguida bebe -aos golinhos, achando que é infinitamente mais agradavel beber assim o -vinho do que ingurgital-o, e nós somos completamente da seu parecer; não -vemos que vantagem pode haver em fazer da bocca jogo do tonel. - -Entretanto, espantado do silencio que guarda a sua amante, e do ar -pensativo que substituiu o prazer que lhe animava os olhos, depois de -ter acabado de beber o Champagne, Casimiro diz-lhe: - -—Minha boa amiga, o que é que tem? vejo-a com um ar tão triste! está -incommodada? - -—Não, meu amigo, não, não é isso... - -—Então temos outra coisa? Aind’agora parecia-me, tão alegre... - -—Ah! Casimiro! foi o que o senhor acaba de dizer que me estragou a minha -felicidade... - -—O que foi então que eu disse para produzir esse effeito? - -—Tudo coisas muito justas; mas eu comprehendi-o perfeitamente, e além -d’isso, o que me quiz fazer perceber é naturalissimo. - -—O que é que eu quiz fazer-lhe perceber? Affianço-lhe que não entendo! - -—Finge que me não comprehende! O senhor, falando-me das mulheres que -enriquecem um homem casando com elle, quiz dizer-me: Por que não faz a -senhora outro tanto, se tem muito a peito ver-me gosar da sua fortuna sem -remorsos?... - -—Eu? nunca tive similhante pensamento. Oh! juro-lhe que se engana. É -verdade que disse isso, mas foi sem a intenção que suppõe. - -—Oh! meu amigo, ainda que fosse com essa intenção, onde estaria ahi o -mal? Pensa que não tenho dito commigo desde muito tempo: Ah! como eu me -daria por feliz em ser sua mulher, como me sentiria ufana de usar do -nome d’elle! E se fosse possivel isso, não lhe teria eu já pedido que -se ligasse a mim por laços indissoluveis?... Se o não tenho feito, ai! -é por que é impossivel! Olhe, meu amigo, não quero ter segredos para o -senhor... Disse-lhe que era viuva, e não é verdade! sou casada, casada -realmente, e meu marido ainda está vivo! - -—Ah! será possivel. Espere! espere! então vou beber mais Champagne... o -sr. Montémolly está vivo? - -—Esse nome não é o de meu marido; ao separar-me d’um homem, que eu nunca -tinha amado, com o qual me era impossivel viver, apressei-me a abandonar -o nome d’elle, para tractar de esquecer que era ainda sua mulher. - -—Tinha para isso todo o direito. E o que faz esse senhor? Oh! se a -contraría falar mais em seu marido, fiquemos por ahi. Por quem é, não se -embarace, fiquemos por ahi! - -—Não, visto que principiei, estimo muito agora contar-lhe como este -casamento se fez, e por que se rompeu. - -—Fale; o seu Champagne é delicioso; sou todo ouvidos. - -—Vou confessar-lhe coisas... que não tenho dito a ninguem! mas não quero -ter nenhum segredo mais para com o senhor. - -—Não me diga senão o que lhe apraz que eu saiba: eu não lhe pergunto nada! - -—É justamente por isso que lhe quero dizer tudo. Eu, aos dezoito annos, -era muito bonita! - -—Creio bem que sim, pois que ainda o é, e ha-de sel-o sempre... - -—Cale-se! Não tinha outros parentes senão uma tia mui pouco amavel, que -ralhava commigo constantemente, mas que vigiava bastante mal. Um rapaz -viu-me á janella, e namorou-se de mim. Comprou a minha creada grave, que -o introduzia em nossa casa quando minha tia saía. Elle era um rapaz muito -bonito... em summa... - -—Muito bem, o resto adivinha-se, passemos os pormenores. - -—Mas o rapaz era militar, teve de partir, de se ir reunir ao exercito. -Estava-se então em guerra. Quando elle partiu, a minha falta havia tido -consequencias... - -—Diabo! diabo! o negocio complica-se. - -—Escrevi ao meu amante participando-lhe o meu estado; elle respondeu-me -que assim que voltasse se apressaria a reparar a minha falta, casando -commigo. Mas, pobre de mim! não devia voltar! foi morto na primeira -acção... - -—Pobre rapaz! ahi fica a senhora sem saber o que ha de fazer. E a tia? - -—Era-me impossivel occultar-lhe o meu estado; ella gritou muito. Mas, -como a fortuna que eu possuia me vinha de minha mãe, como eu era mais -rica de que ella, e como, se eu a deixasse, ella teria de levar uma vida -mais modesta, apaziguou-se. Fui para o campo; alugámos uma casinha nos -arredores de Montmorency; foi lá que dei á luz uma menina, que confiei a -uma mulher de Pierrefite. - -—Em tudo isso não vejo seu marido... - -—Espere; ha de vel-o bem depressa. De volta a Paris, ia eu frequentes -vezes a Pierrefite vêr minha filha. Isto desagradava a minha tia, que -me repetia sem cessar que eu me compromettia, que não acharia com quem -casar, se não procedesse com mais prudencia. Eu não lhe dava ouvidos -e continuava a ir vêr minha filha, que era fraquinha e delicada, mas -gosava de boa saude. Infelizmente, a mim não me acontecia o mesmo: ia-me -definhando de dia para dia, de fórma que os medicos receitaram-me uma -viagem á Italia, ou pelo menos uma longa estada em Nice. Parti com minha -tia, depois de ter bem recommendado minha filha á ama. Fiquei alguns -mezes em Nice; não me restabelecia. Aconselharam-me que fosse passar uma -temporada em Napoles. Fui para lá, mas minha tia, tendo que fazer em -Paris, deixou-me por algum tempo. Tinha-lhe recommendado muito que fosse -vêr minha filha, que se certificasse de que não lhe faltava nada. - -«Quando minha tia voltou a ter commigo, disse-me que minha filha tinha -morrido, e que a camponeza a quem eu a dera a crear, muito afflicta -com essa desgraça, tinha saído de Pierrefite sem dizer em que sitio ia -habitar. Fiquei muito mortificada com a perda da minha filhinha. Tinha-me -sentido tão feliz por ter uma filha! fundava sobre ella toda a minha -felicidade futura! Minha tia fez quanto poude para me distrahir. Andámos -muito tempo a viajar; visitei a Italia toda, depois uma parte da Suissa. -Finalmente tinha-me restabelecido, e voltámos a residir em Paris. Aqui, -um sujeito rico, bastante amavel, ao menos fazia então todo o possivel -para o ser, veiu fazer-me a côrte; era um antigo amigo de minha tia, e -tenho motivos para crer que, desde muito tempo, ella lhe havia promettido -fazer quanto pudesse para me levar a consentir em casar com elle. Este -sujeito era muito mais velho do que eu; minha tia porém affirmava-me que -assim ainda eu seria mais feliz; que um marido joven abandonava em casa a -mulher para andar mettido com amantes, emquanto que um esposo, homem de -juizo, andava sempre com a mulher nas palminhas das mãos. Que lhe direi? -eu pensava não amar nunca mais... tinha perdido minha filha... Deixei-me -casar para estar emfim em minha casa e não viver mais com minha tia, a -quem o homem que me desposava tinha feito presente de uma linda casinha -nos arredores de Paris. - -«Mas não tardei a perceber que fizera uma asneira, e que me tinha ligado -a um homem que de nenhum modo me convinha. Meu marido era ciumento, -curioso, esmiuçador, intromettendo-se em tudo; pelo lado da fortuna, -como eu possuia a minha, não tinha precisão de recorrer a elle. Isso -contrariava-o, queria saber como eu gastava o meu dinheiro; convidei-o a -que se não mettesse nos meus negocios; foi o começo das nossas questões. -Mas aquelle senhor, que tudo queria saber, tinha o atrevimento de -esquadrinhar tudo por toda a parte quando eu sahia, e creio mesmo que -possuia segundas chaves de todos os meus moveis. O que é certo, é que -um dia achou n’um cofresinho, no fundo da minha papeleira, as cartas -que me escrevia aquelle pobre Augusto quando estava no exercito, e nas -quaes falava da nossa filhinha. O meu amigo acreditará que meu marido -deu por páus e por pedras, dizendo-me que eu o enganára indignamente -deixando-o crer que era... _Joanna d’Arc!_ Respondi-lhe que ainda se -devia dar por muito feliz em eu ter consentido em ser sua mulher, mas que -eu não viveria mais com um homem que remexia nos meus moveis e tinha a -confiança de ler as cartas que eu recebêra antes de usar do seu nome. -No outro dia executei a minha ameaça; aluguei uma casa, e mandei levar -para lá tudo o que me pertencia. Meu marido quiz oppôr-se á minha saida; -mas eu mostrei-lhe um rewólver que tinha comprado, e disse-lhe: Não só o -deixo, mas prohibo-o, ouça-me bem, prohibo-o de se apresentar em minha -casa... A lei auctorisa-o a isso, bem sei, porque não estamos separados -judicialmente, o que faremos ámanhã, se quizer; mas, como pelo nosso -contracto já estamos separados de bens, creio que podemos dispensar essa -formalidade. Comtudo, repito, não tenha o atrevimento de ir nunca a minha -casa, senão... é com este rewólver que o hei de receber. Meu marido é -muito medroso... desde esse dia nunca mais ouvi falar n’elle. - -—Bravo! oh! a senhora é uma mulher decidida! E juntou-se com a sua tia? - -—Com minha tia! oh! nunca! não queria nada com minha tia, que foi quem -me fez aquelle odioso casamento. Ficámos mal uma com a outra; pois não -pretendia ella fazer-me voltar para meu marido! mas eu respondi-lhe n’um -tom que lhe fez vêr que eu não era já a menina submissa ás suas vontades. -Demais, ella morreu pouco tempo depois d’aquella separação; uma doença -repentina a levou á sepultura em poucos dias; havia-me escripto para que -a fosse vêr; tinha, affirmava, uma coisa importante para me communicar. -Hesitei, dizendo commigo: Vae ainda pedir-me para que volte para meu -marido. Emfim, resolvi-me a ir; mas, quando cheguei á sua quinta, já não -era tempo, tinha ella morrido! Aqui tem, meu caro Casimiro, todos os -acontecimentos da minha vida, agora já sabe porque, com grande pezar meu, -lhe não posso offerecer que case commigo. - -—Oh! minha querida Ambrosina! pela parte que me toca, devo confessar-lhe -francamente que nunca pensei em tal, o casamento não me tenta, -assusta-me, bem sabe que ha quem affirme que o casamento é o tumulo do -amor. - -—Oh! nem sempre... mas é certo... não me acha talvez bastante joven para -ser sua mulher? - -—Eu! pois eu penso lá em similhante coisa... não, eu penso... em fazer -alguma coisa... em trabalhar... - -—Trabalhar... Para quê? com que fim? - -—Para ganhar dinheiro... - -—Não sou eu a sua thesoureira?... - -—É justamente porque eu preferiria ser o meu proprio thesoureiro. -Ia menos mal na pintura a oleo, fiz tambem alguns retratos bastante -parecidos... - -—Fazer retratos! lembra-se d’isso! para ter modelos, olhar muito para -mulheres, estudar-lhes o sorriso, os olhares! Não quero que faça -retratos, ouve? prohibo-lh’o expressamente. - -—E a paizagem? oh! a paizagem é uma coisa bem innocente! - -—Com os pintores não ha nada innocente; para a paizagem, é mister ir ao -campo procurar pontos de vista, ou carneiros e pastoras que os guardam. - -—E são lindas as pastoras dos arredores de Paris! e graciosas! como as -mulheres que alugam cadeiras. - -—Deixe-me em socego com a sua pintura. - -—Prefere que eu escreva para o theatro? Ah! deve ser uma grande -felicidade ver a gente representar as suas peças, ouvir-se applaudir... - -—Fazer comedias! que horror! um auctor passa a vida nos theatros, nos -bastidores, com as actrizes, faz a côrte a todas, e, promettendo-lhes -papeis, faz com que lhe dêem attenção; o senhor não saíria mais dos -bastidores, passaria alli a sua vida. Ah! peço-lhe por tudo quanto ha, -não pense em fazer peças de theatro. - -—Pois bem! então, se eu escrevesse um romance? Ah! isto não exige -passeios nem sahidas; escreve a gente com todo o socego no seu gabinete. -Eu tenho ás vezes idéas bastante originaes, talvez faça um romance -divertido, um romance de costumes... - -—Um romance! um romance! tenho ouvido dizer cem vezes que, para fazer -um romance, era preciso ter visto muito, que era preciso ter corrido, -ter estado nos sitios que se pretende descrever, sobretudo para fazer -um romance de costumes; ah! se o senhor faz um romance extraordinario, -inverosimil, então pode inventar... - -—Não, eu prefiro o ordinario ao extraordinario. - -—Então meu amigo, bem vê que não podia trabalhar socegadamente no seu -gabinete; teria de andar, de ir algumas vezes a sitios muito arriscados, -a esses bailes onde se dançam todas as danças possiveis; sob pretexto -de ver como se trabalha n’um _atelier_, iria a casa das floristas, das -modistas, das costureiras, isso não acabaria; seria para estudar os -costumes das diversas classes da sociedade. Deus sabe quanto se vê quando -se quer estudar os costumes! Não, siga o meu conselho, não faça romance -nenhum! Demais, não creio que seja essa a sua vocação. - -—Ah! se eu podesse descobrir ou inventar alguma coisa boa, util, alguma -coisa que me cobrisse de gloria e fizesse a minha fortuna. - -—Tem todo o direito de procurar isso... - -—Que pena que a batata seja conhecida! talvez eu a tivesse descoberto!... - -—Sim, mas a batata é perfeitamente conhecida, não quebre pois a cabeça a -procurar invental-a. - -—Repito, quero occupar-me n’alguma coisa. - -—Pois bem! se o quer absolutamente, eu lhe procurarei um emprego. - -—A senhora? E então onde? - -—N’uma secretaria; vae-se para a repartição não muito cedo, sae-se de lá -não muito tarde; á noite está-se livre, isto não dá muito trabalho. - -—Ah! isso havia de agradar-me muito! Mas como espera a senhora -arranjar-me esse emprego? - -—Eu verei, falarei aos meus conhecimentos; parece-me que o caso não é -urgente. Espere, Florentina tem um primo, que é chefe d’uma repartição; -farei com que ella fale ao primo. Aquella pobre Florentina! como a gente -é ingrata! quando se ama muito alguem, quando não se pensa senão n’essa -pessoa, esquecem-se todas as outras! Mas o senhor faz-me andar a cabeça á -roda, tira-me o juizo!... - -—Que mais temos então? - -—Temos que hontem á noite, quando recebi a sua carta, acabava Florentina -de entrar; vinha offerecer-me o seu camarote na Opera; mas depois de -haver lido o seu negregado bilhete em que o senhor me annunciava que não -iria lá, tive um ataque de nervos terrivel; aquella pobre Florentina -dispensou-me todos os cuidados, mas não sabia o que me havia de dar, -mandou a minha creada buscar o remedio que costumo tomar quando tenho -d’aquelles ataques; mas a creada não voltava, eu tornei a mim, e sem -esperar pelo remedio, disse a Florentina: «Anda commigo, quero ir a -casa d’elle; mandei vir uma carruagem, e Florentina teve a complacencia -de me acompanhar até á sua porta, queria mesmo ficar á minha espera, -sacrificando por mim a Opera e o prazer que esperava ter lá; mas eu não -quiz consentir, mandei-a embora. Então! ha de convir que é uma verdadeira -amiga, e que tenho muita razão em ter por ella uma affeição sincera... - -—Sim, sim, não digo o contrario, ella é-lhe muito affeiçoada, mas tambem -é horrivelmente feia!... - -—Ah! ahi está o que são os homens!... Que importa que seja feia, se -possue todas as qualidades do coração! Mas os senhores não apreciam senão -a belleza! - -—E as senhoras não descobrem todas as qualidades do coração n’uma mulher, -senão quando ella não é bonita. Oh! em o sendo, acham-lhe logo todos os -defeitos, mas não falam nunca das suas boas qualidades. - -—Oh! cale-se! porque é que diz isso? - -—É que as suas amigas intimas são todas feias como os peccados mortaes. - -—Queria talvez que eu, para lhe ser agradavel, chamasse a minha casa -algumas bellezas raras, afim de que o senhor lhes fizesse a côrte mesmo á -minha vista! - -—Não, eu não lhe peço bellezas raras; a senhora é que prefere as -fealdades raras! Oh! mas faça o que entender! a final de contas, isso -é-me completamente indifferente. - -Ambrosina reprime a grande custo um movimento de impaciencia, depois toca -a campainha a chamar a creada grave, que apparece immediatamente. - -—Adriana, o café está prompto? - -—Está sim, minha senhora. - -—Então sirva-o. - -—E que venha bem quente, quasi a ferver, diz Casimiro. Ouve, menina? se o -posso tomar, não o tomo. - -Adriana sae a rir; Ambrosina exclama: - -—Não gosto que se graceje com os creados; isso torna-os familiares. - -—Porventura gracejei com a sua creada? - -—Sem duvida; faz trocadilhos a respeito do café... - -—Minha querida amiga, com a senhora nunca a gente sabe como ha de falar a -uma mulher; em tudo vê maldade, espero que não pense que arrasto a aza á -sua creada... - -—Não digo isso; mas o senhor não póde dizer que ella seja muito feia... - -—Oh! tambem não me fará crer que é bonita! Um nariz acachapado, cabello -ruivo, é um bom _derriço_ para algum policia. - -—É uma excellente rapariga, é-me muito affeiçoada; quando estou doente -anda sempre n’uma roda viva a tractar de mim... - -Adriana traz o café; emquanto ella dispõe as chicaras, diz a ama: - -—Adriana, eu estive hontem muito doente, não é verdade? - -—Oh! sim, minha senhora! eu estava bem afflicta. A sr.ª Florentina -disse-me que lhe fosse buscar o remedio á botica, corri n’um pulo; -mas havia lá tanta gente, tive que esperar muito tempo; por mais que -eu pedisse que me despachassem dizendo: «É para minha ama, a senhora -está muito doente» aquelles senhores da botica estão tão habituados a -trabalhar para doentes, que não se apressam nunca... - -—Minha pobre Adriana; olha, pega n’aquella touca da manhã que alli está -em cima da poltrona, dout’a... - -—Ah! como a senhora é boa!... - -—Gosto de recompensar quem me serve com zelo. Anda, podes sahir! - -A creada pega na touquinha que a ama lhe dá de presente, e retira-se aos -saltinhos. - -Casimiro toma o café, bebe um calice do divino licor dos benedictinos de -Fécamp, um outro de _rhum_, e levanta-se dizendo: - -—Creio que isto é que se pode chamar ter almoçado. - -—Janta commigo? - -—Oh! minha querida amiga, são quasi tres horas; quando se almoçou assim, -não se pensa em jantar, não terei vontade de comer. - -—Mas sabe que tem que me levar esta noite á Opera-Comica? - -—Sim, sim, está ajustado... - -—Não vá fazer como hontem? - -—Não tenha receio; vou tomar um pouco de ar e jogar talvez uma partida de -bilhar no café da Porta-São-Martinho... - -—Vá, meu extravagante, dê-me um beijo. - -—Até logo. - - - - -V - -O lindo Rouflard - - -Saíndo de casa da sr.ª Montémolly, Casimiro vae passear algum tempo no -_boulevard_; sente o desejo de tomar ar, o que é sempre optimo para a -digestão, depois d’um jantar abundante. Casimiro accende um charuto, essa -necessidade facticia dos ociosos. - -De repente, mexendo n’uma das algibeiras do lado, sente debaixo dos -dedos alguma coisa que tem a fórma d’um cartucho de dinheiro. Era -effectivamente um d’estes lindos estojos de marroquim, forrados de -cobre, e feitos de proposito para guardar ouro. O nosso rapaz tira o -cartucho da algibeira, desvia-se para um lado e conta o dinheiro que ha -no estojo; acha vinte e cinco luizes. Torna a fechar o estojo, e mette-o -outra vez na algibeira, dizendo de si para si: - -—Quinhentos francos! ella introduziu-me isto no bolso do paletot; terá -dito comsigo: «Elle não deve já ter muito dinheiro.» e não se enganou, -restavam-me apenas vinte francos; mas receber sempre dinheiro d’esta -mulher. Ah! é humilhante, é vergonhoso! ainda se ella me mettesse na -algibeira quatro ou cinco mil francos de uma vez, ao menos teria eu -para muito tempo sem andar á divina; porém ella terá todo o cuidado em -me não dar nunca similhante quantis, quer ter-me sempre debaixo da sua -dependencia. E não quer que eu trabalhe; não, teria um desgosto se eu -podesse passar sem ella. E diz que me ama, sim, por si, mas não por -mim. Infelizmente, nas mulheres, esta maneira de amar é a mais vulgar. -Ah! as mulheres de hoje não são como as de Sparta, que diziam ao marido -que partia para a guerra: «Volta vencedor ou faze-te matar.» Dir-me-hão -talvez que é tambem uma singular maneira de amar qualquer pessoa o -dar-lhe de conselho que se faça matar! _Ne quid nimis!_ o excesso em tudo -é um defeito. Vamos jogar o bilhar, é a estas horas que Miflaud costuma -estar no café do theatro. Ah! diabo! agora me lembro, é hoje o meu dia de -lição á menina Proh; irei? Mas eu não estou em estado de dar uma lição -de desenho. Ambrosina fez-me beber tantas coisas! Devo mesmo exhalar um -forte cheiro a vinho e a licor; não posso apresentar-me n’este estado -deante d’uma familia respeitavel, não, seria indecoroso. Ó delicias de -Capua! aqui tendes os vossos resultados! Ambrosina faz bem tudo o que é -necessario para me tirar o gosto pelo trabalho. Ora adeus! tanto peior! -toca a jogar o bilhar. - -Quando a gente adquiriu uma vez o habito de não pensar senão, em -divertir-se, é muito difficil vencel-o e ter força bastante para rejeitar -o prazer que se apresenta e preferir-lhe o estudo ou trabalho. É o -que acontece n’este momento a Casimiro; este rapaz não é falto de bons -sentimentos, do que deu provas encarregando-se de dar lições de desenho -á filha da sua vizinha: deseja ganhar dinheiro, já pelo seu talento, já -exercendo um emprego em qualquer secretaría; mas lá está a amante para -lhe tolher o passo; como é rica, quer monopolizar o amante, quer o que -pobre moço não viva senão para ella e por ella! Quando uma mulher, que é -ainda muito encantadora, quer subjugar um homem, emprega n’isso todos os -seus meios, e para agradar tem ella muitos. - -Casimiro não vae dar a lição á menina Angelina; vae para o seu café -favorito, onde encontra alguns rapazes, amigos de vádiar como elle; ha -mesmo alguns que fazem ainda mais: vêm para o café assim que elle se -abre, sentam-se a uma meza e põem-se a jogar o dóminó até á hora do -jantar. Acabada esta refeição, voltam muito depressa a continuar o seu -joguinho, e não se vão embora senão quando o estabelecimento se fecha. -Vão dizer-me que estes rapazes são jogadores e não ociosos ou vádios; é -possivel; eu, por mim, chamo vádios áquelles que passam a vida no café. - -Depois de muitas horas consagradas ás carambolas, Casimiro lembra-se que -a amante quer ir tomar sorvetes ao café Napolitano, antes de ir para o -theatro; é pois mister que a vá buscar antes da hora em que deve começar -a peça da Opera-Comica. Dirige-se portanto a casa da sr.ª Montémolly, -que se acha lindamente vestida, apresentando-se com essa desinvoltura -que nem todas as mulheres sabem ter; porque umas conservam-se sempre -muito direitas, muito impertigadas, outras mostram demasiado desleixo e -indolencia. - -—Já jantou? pergunta a formosa dama. - -—Não, nem mesmo pensei em tal; não tive appetite. - -—Pois bem! nem eu tão pouco. Mas sabe o que devemos fazer? É irmos cear -ao café Inglez depois do espectaculo. Agrada-lhe isto? - -—Oh! perfeitamente; a senhora tem sempre excellentes idéas. - -A menina Adriana foi arranjar uma pequena _victoria_, e voltou com ella -muito depressa para ficar mais cedo livre de sua ama. Ambrosina e o -amante fazem-se conduzir ao café tão affamado pelos seus sorvetes, depois -dirigem-se á Opera-Comica, e vão para um camarote que a sr.ª Montémolly -mandára alugar antecipadamente. - -Cantava-se uma opera nova de Auber, d’esse celebre compositor, ao qual -devemos tantas obras primas, tantas operas que ninguem se enfastia de -ouvir; vae envelhecendo, dizem algumas pessoas, mas enganam-se; quando um -homem compõe tão encantadoras melodias, é porque se conserva sempre moço, -para Auber parou o tempo. - -Casimiro escutava a musica, emquanto que Ambrosina se entretinha -sobretudo em observar se o seu companheiro dirigia o binoculo para -algumas senhoras. Mas tudo se passa em bem, porque o rapaz não fixou -muito tempo as suas vistas no mesmo lado. Acabada a opera, o par amoroso -dirige-se ao café Inglez, que fica apenas a dois passos da Opera-Comica. -Alli, pedem um gabinete reservado e mandam vir uma bella ceia, á qual -ambos fazem honra. Não lhes direi se esta magnifica ceia é entremeada -de ternas caricias e de juramentos de amor, deixo isso á sua discrição; -o que é certo, é que são quasi duas horas da madrugada quando a sr.ª -Montémolly diz: - -—Creio que é tempo de irmos para casa. Diga ao creado que nos vá buscar -uma carruagem. - -Nunca faltam carruagens n’este rico e elegante bairro, onde se faz -da noite dia, de modo que ás duas horas da madrugada está ás vezes -mais animado, mais cheio de vida que ao meio dia. Casimiro leva -Ambrosina a casa, depois faz-se conduzir ao seu domicilio, na rua de -Paradis-Poissonniére, dizendo comsigo: - -Aqui está um dia bem empregado; foi um dia cheio. - -Mas, ao dizer isto, o rapaz tambem estava bem cheio, porque se não tinha -poupado mais á ceia do que ao almoço; o Champagne tinha representado um -grande papel em todo este dia; elle não estava bebedo, porque um homem -bem educado nunca se embebeda, mas estava n’esse estado de ebriedade que -é o meio termo entre a embriaguez e o perfeito juizo. - -—Parou emfim a carruagem. Casimiro, que se acha deante da sua porta, -paga ao cocheiro, e vae puxar o botão de metal que deve fazer tocar a -campaínha e acordar o porteiro, dizendo comsigo: - -—Comtanto que o meu estimavel porteiro não tenha o somno muito pezado, e -que saiba que não recolhi ainda. - -Na occasião de tocar a campainha, Casimiro vê um vulto estendido deante -da porta; abaixa-se para ver melhor, estende cautelosamente o pé, o vulto -mexe-se; é um homem que está alli deitado. - -Casimiro faz um movimento para a rectaguarda, na idéa de que é talvez um -ladrão que finge estar a dormir, e elle não tem sequer uma bengala para -se defender; mas o vulto não se mexe mais, e o rapaz decide-se a puxar -outra vez o botão de metal. - -O porteiro não abre ainda, e Casimiro, impacientado, empurra com o pé -o individuo que alli está estendido tomando-lhe a passagem; ouve-se um -grunhido surdo e levanta-se um pouco uma cabeça, que tinha a cara voltada -contra a porta, resmungando: - -—Então! olá! o que é que temos? - -—O que está aqui fazendo deitado na rua? - -—Bem viu que estava dormindo. Então agora já se não pode dormir socegado? - -—Não se dorme deante da porta d’uma casa. - -—Mas eu sou cá do predio, é o meu domicilio politico... nas aguas -furtadas... - -—Se mora aqui, porque não entra para sua casa em vez de estar ahi -deitado? Estaria muito melhor na sua cama. - -—Na minha cama!... é fresca a tal minha cama! um enxergão e milhares de -percevejos... nada mais... - -—Mas, emfim, na rua não se dorme; se vem por ahi alguma patrulha, algum -policia, levam-n’o para a estação. - -—Isso e o que eu quero é tudo um... estou á espera d’elles. Que afinal -quem tem a culpa é o maroto, o patife do Chausson, que me não abre a -porta. - -—Ah! o porteiro não lhe quer abrir a porta? - -—Sim, Chausson, o meu creado. - -—Quer dizer, o porteiro? - -—Porteiro, é verdade... mas foi meu creado e por muito tempo. Isto fal-o -admirar, mas é assim mesmo. - -Quando eu era amo d’elle dava-lhe ás vezes umas correcções, elle bebia-me -os licores, licores da sr.ª Amphoux... da verdadeira, que me mandava a -minha Dulcinéa... e hoje, para se vingar, o meu creado, que veiu a ser -meu porteiro, deixa-me ficar de noite no meio da rua. - -—Oh! mas ha de abrir a porta por força. - -E Casimiro vae puxar com todas as suas forças o botão de metal. - -Ao barulho da campainha succede a voz do porteiro, gritando: - -—Rouflard! se não acabas de tocar a campainha, faço-te despedir ámanhã. - -—Não é Rouflard que toca, sou eu... abra immediatamente, porteiro; mando -eu! - -—Como! é o sr. Casimiro! Oh! perdão, eu pensava que já estava recolhido -ha muito tempo. Ah! se eu soubesse que era o senhor, bem sabe que não -costumo fazel-o esperar... - -Abre-se a porta effectivamente. Casimiro entra, dizendo ao homem que está -deitado no chão: - -—Bom! aqui tem a porta aberta... Então agora fica na rua? - -O tal individuo, a quem o porteiro chamou Rouflard, parece hesitar em -abandonar a sua posição horisontal, decide-se comtudo a fazel-o, ergue-se -ou antes enfia pela porta dentro aos trambulhões, e vae agarrar-se á -parede. Chausson, o porteiro, levanta-se, veste uma jaqueta, que lhe -serve de chambre, e vem com um castiçal na mão tornar a fechar a porta e -offerecer luz ao seu joven inquilino para subir a escada. - -Casimiro está entretido a examinar o homem que se acha encostado -á parede, contra a qual muito lhe custa a segurar-se, porque está -completamente ebrio. - -—Se o senhor quer levar esta luz para subir a sua casa... sinto immenso -tel-o feito esperar; eu bem ouvia tocar, mas pensava que era ainda o -Rouflard, e por isso é que não abria... - -—Vejam este brégeiro! queria deixar o amo na rua... n’isso reconheço bem -o meu antigo lacaio... - -—Cale-se, Rouflard; quando um homem se põe n’esse estado, recolhe-se -antes da meia noite, ao menos. - -—Mas se eu me quero recolher mais tarde, porque assim me dá na vontade, -tens obrigação de me abrir a porta, percebeste tu, meu creado? - -—Graças a Deus, já não sou seu creado! esse tempo já lá vae. - -—Quando me bebias os licores! - -—Tu não me pagavas as minhas soldadas, portanto era forçoso que eu -apanhasse alguma coisa para me sustentar... mas tu comias tudo! - -—Prohibo-te que me trates por tu, percebes meu creado? - -—E eu prohibo-te que me chames teu creado... Vae-te deitar, borrachão. - -—Vae para o teu cubiculo, perro, ámanhã falaremos... não te digo mais -nada... teu amo te ensinará! - -Depois de haver atirado esta ameaça, que faz encolher os hombros ao -porteiro, Rouflard dirige-se, cambaleando, para a escada, apoia-se ao -corrimão e lá consegue subir a muito custo. Casimiro tinha ficado em -baixo para assistir ao dialogo entre o bebedo e o porteiro; sentia tambem -uma certa curiosidade, e desejava saber como é que aquelle homem, tão -mal arranjado, que parecia tão miseravel, pudera ter por creado o sr. -Chausson; pergunta pois ao porteiro, assim que Rouflard desapparece na -escada: - -—Este bebedo, que affirma que o senhor esteve ao seu serviço, fala -verdade? - -—Oh! sim, senhor, não o nego; mas o que o senhor difficilmente -acreditará, vendo-o agora tão miseravel, é que, ha vinte e cinco annos, -este mesmo individuo era então um homem da moda, o menino querido de -todas as mulheres, que não lhe chamavam senão o lindo Rouflard! o -encantador Rouflard! e, a dizer a verdade, era então um bonito rapaz, -bem feito, airoso de corpo, uma cara amavel, fino... Oh! o maganão sabia -dar aos olhos todas as expressões possiveis para seduzir as mulheres, e, -palavra! entendia da coisa... era o seu officio? - -—O seu officio? O que quer dizer com isso? - -—Pois é bem facil de perceber: quero eu dizer na minha, que o lindo -Rouflard não se occupava n’outra coisa senão em fazer a côrte ás -senhoras, e atirava-se de preferencia ás senhoras ricas. Então recebia -d’uma, e depois de outra! mimos d’esta, presentes d’aquella. Quando os -fornecedores, os crédores, lhe vinham pedir dinheiro, nunca era elle quem -lhes pagava. Eu estava ao facto de tudo, era o seu creado grave, o seu -homem de confiança; elle dava-me as intrucções, dizia-me: «Chausson, has -de mandar o meu alfaiate a casa de Leonor e o meu sapateiro a casa da -Ernestina, ellas pagarão a esses patifes; não quero descer a pagar aos -meus crédores; é de muito máu tom! Ah! é verdade, has de ir a casa da -sr.ª fulana, ganhei-lhe hontem cem luizes ao _écarté_; irás pedir-lh’os, -que ella dá-t’os immediatamente, já se sabe; demais, as dividas de jogo -são sagradas, pagam-se em vinte e quatro horas. Passarás tambem por -casa da baroneza ou da condessinha; apostámos nas corridas, ganhei mil -escudos a uma, mil francos á outra, receberei tudo isso, tenho precisão -de dinheiro!» Eu ia fazer estes recados, e durante muito tempo aquellas -senhoras pagaram, pagaram muito bem sem fazerem a menor observação. Então -apanhava eu alguma coisa por conta das minhas soldadas, e bebia licores -da sr.ª Amphoux pelo resto. Oh! os licores das ilhas! aquillo era o meu -fraco! Mas a pouco e pouco as coisas principiaram a não correr tão bem: -Rouflard, que bebia como uma esponja, viu dentro de pouco tempo o nariz -pôr se-lhe côr de beterraba; isto fez-lhe muito mal no conceito das -amantes; em geral as mulheres não gostam dos narizes vermelhos. Quando -meu patrão me mandava buscar a quantia d’uma aposta ou o dinheiro perdido -ao jogo, aquellas senhoras diziam-me algumas vezes: «Rouflard engana-se, -não fui eu que perdi, foi elle;» ou então: «Sinto muito, mas a minha -thesouraria está fechada.» Algumas tinham a confiança de me dizer: Apre! -estou farta de aturar esse bebedo do Rouflard, não estou para o sustentar -por mais tempo.» Quando eu voltava com estas respostas a meu amo, elle -ficava furioso, queria desancar-me: depois, para arranjar dinheiro, -via-se obrigado a vender uns apoz outros os lindos presentes, ou as joias -que havia recebido das suas apaixonadas. Quando não lhe restou mais nada -que vender, e quando eu vi que já lhe não mandavam licores das ilhas, -disse commigo: «É tempo de largar o commodo!...» Deviam-se-me seis mezes -das minhas soldadas, mas era mister não pensar em tal. Deixei pois o -lindo Rouflard, que já não tinha nada de bonito nem se vestia como um -elegante, e que para salvar-se das difficuldade, procurava arranjar -outra amante nos casos de o sustentar, e consegui achar um bom emprego. -Pude ajuntar alguma coisa, casei-me e obtive um logar de porteiro n’esta -casa, onde estou ha oito annos, e onde morreu minha mulher, o que me -não impede de ser muito feliz. Mas faça o senhor idéa de qual não foi -a minha surpreza quando, ha perto de nove mezes, vejo chegar aqui um -homem vestido como um mendigo, sujo, desfigurado, que me perguntou se eu -tinha no predio um cantinho, um sotão, ou mesmo uma agua-furtada para -lhe alugar. Eu não o podia crer; todavia, na expressão do rosto fica -sempre alguma coisa do que a gente era, e exclamei: «Deus me perdõe! -mas é o sr. Rouflard!...» «Foste tu que o disseste! me respondeu elle; -sim, sou o outr’ora bonito Rouflard! que o tempo e as desgraças têem um -pouco deteriorado. Mas deixa-me encarar-te bem... Ah! agora!... és o -Chausson... és o meu creado, pois bem! aluga-me um quarto, e sê hoje o -meu porteiro; tenho tomado muito juizo, deito-me todas os dias ás nove -horas, e não bebo senão agua, quando não tenho com que comprar vinho.» A -vista da miseria de um homem, que eu tinha conhecido tão elegante, tão -appetecido e procurado, fez-me pena, e levou-me a dizer-lhe: «Pois sim, -dou-lhe um quarto na agua-furtada; mas o que faz o senhor agora, qual é a -sua profissão?» Elle coçou a cabeça por algum tempo, depois respondeu-me: -«Faço tudo quanto se quer! recados, cosinha; engarrafo vinhos, tosquio -cães, educo papagaios; mas o que é sobretudo a minha occupação favorita, -é servir de modelo aos pintores.» «Pois bem! tratarei de lhe arranjar -que fazer e vou dar-lhe casa lá em cima; mas estará aqui n’um predio -socegado, será pois mister portar-se decentemente.» Elle assim o -prometteu; mas Deus sabe como tem cumprido a sua palavra! Arranjei que -elle fizesse recados a uma inquilina; mas assim que apanha alguns soldos, -o borrachão vae bebel-os de vinho e recolhe-se fóra de horas. Avisei-o -de que isto não podia durar assim, elle promette-me emendar-se, quando -está em jejum, mas veja como se emenda! Esta noite estava fazendo grande -barulho á porta; mas se não fosse o senhor, dou-lhe a minha palavra que -teria dormido na rua! Decididamente este Rouflard é um extravagante, -um mal procedido! Mas os homens que na sua mocidade vivem á custa das -mulheres, devem necessariamente acabar assim, porque o seu ganha-pão é a -sua cara bonita, e logo que essa boniteza se vae, boas noites! acabou-se -tudo! Casimiro não responde nada, e sobe a escada com ar muito pensativo: -a historia do lindo Rouflard fez-lhe passar a embriaguez. - - - - -VI - -A familia Proh - - -Achava-se a familia Proh reunida na sua sala. Os leitores já conhecem -a sr.ª Celeste Proh, de quem lhe fizemos o retrato; seu marido, o sr. -Castor Proh, é um antigo professor de historia e de linguas mortas. É -um homem alto, magro, amarello, que era feio em moço, e que não se fez -bonito em velho; tem o nariz de tal forma chato, de tal forma acachapado, -que lhe seria impossivel segurar n’elle uns oculos. Esse senhor tem -sempre os ares d’um preceptor prestes a ralhar com o discipulo, conserva -constantemente uns modos arrogantes e desagradaveis; sua mulher sustenta -nunca o ter visto rir, mas ha pessoas que se divertem por dentro sem que -ninguem dê por isso: com o sr. Proh não se dá por similhante coisa. - -Uma herança, com que elle não contava, permittiu ao professor descançar -e viver dos seus rendimentos; já não quer occupar-se, diz elle, senão da -educação dos filhos; mas a filha prefere as artes agradaveis ao estudo -da historia, e o Affonsinho deita a lingua de fóra ao pae, quando este -lhe fala de linguas mortas; é um verdadeiro diabrete, guloso, curioso, -preguiçoso, traquinas, respondão; o pae affirma que o pequeno promette... - -A menina Angelina Proh approxima-se dos dezeseis annos; n’esta edade, em -não sendo torta nem corcovada, em não tendo o nariz escarrapachado nem -os olhos remelosos, uma rapariga é sempre bonita; não é ás vezes senão -a _belleza do diabo_, mas isso faz ainda conquistas, ha homens que não -apreciam senão essa belleza. A menina Proh não possuia outra; juntava a -isso uma dóse de toleima, que podia ainda passar por ingenuidade, mas que -mais tarde não devia deixar a menor duvida sobre a sua qualidade. - -N’este momento, a sr.ª Proh está principiando a bordar uma golla, a -menina Angelina tenta desenhar olhos e orelhas; o Fonfonsinho recorta uma -estampa, e o ex-professor passeia pelo meio da casa, cofiando com a mão a -barba e parecendo meditar. De repente pára: - -—Affonso, vou-te fazer uma pergunta bem simples. - -—De que é que vae fazer... - -—Não se diz: de que é que! em primeiro logar essa construcção de phrase é -viciosa... - -—Viciosa! então que mal fez ella? - -—Meu filho, eu interrogo-o, mas o menino não tem direito para me -interrogar... Escute bem, e responda-me _illico_! Como se chamava o -primeiro homem? - -—_Illico!_... - -—Hein? vamos, menino, dê-me attenção... Pergunto-lhe como se chamava o -primeiro homem? - -—Pois bem! _Illico!_ Disse-me que respondesse: _Illico!_... digo-lh’o, e -não está contente!... - -—Mas, velhaquete, eu entendo por _illico_, immediatamente... logo, logo... - -—O pequeno tem razão; para que emprega com elle termos barbaros que a -creança não comprehende? estraga-lhe a memoria, e mais nada! - -—Minha senhora, metta-se lá nos seus trapos, nos seus vestidos, e -deixe-me dirigir a educação de meu filho, elle tem talento; promette, mas -precisa ser bem ensinado... - -—Graças a Deus, tem muito tempo deante de si. - -—Nunca se tem bastante. Aqui estou eu, que sei muito, lisonjeio-me -d’isso, e precisaria ainda cem annos de existencia para ser completo! - -—Como um omnibus!... - -—Fonfonso! _tu castigaberis!_... - -—Papá, bem sabe que nos omnibus o conductor grita: Completo! Olhe! -desenhe-me um boneco, a mana não me quer fazer nenhum... - -—A mana está trabalhando nos seus olhos e nas suas orelhas, e tem razão. -Isto porém faz-me lembrar que a sua lição de desenho era hontem... O -Casimiro veiu? - -—Sim, papá... - -—Não, é falso; a mana não fala verdade, o vizinho não veiu hontem -dar-n’os lição... - -—Seu mano tem razão, menina? - -—Ora! não sei... já me não lembro... vão fazer-me enganar na minha orelha! - -—Eu não dou vinte e cinco francos por mez a esse rapaz para que elle se -descuide das suas lições. Sr.ª Proh, a senhora é que devia tomar sentido -n’essas coisas... - -—Por quem é, socegue! o sr. Casimiro não é capaz de o prejudicar n’uma -lição! é um rapaz muito distincto, e que só ensina desenho aos nossos -filhos para nos obsequiar. - -—Desconfio das pessoas que fazem as coisas para obsequiarem: em geral -fazem-n’as mal; é como aquelles creados que estão sempre a dizer que não -nasceram para servir, não fazem nunca bem a sua obrigação. - -—Papá, faça-me um boneco. - -—Vamos lá; tens papel e lapis? - -—Aqui está tudo. Ah! mas eu quero que faça o boneco com o pé. - -—Com o pé? Fonfonso, tu não sabes o que dizes! então a gente desenha com -os pés quando tem as mãos á sua disposição? - -—Mas o papá deve servir-se tanto dos pés como das mãos, visto que é -quadrumano. - -—Quadrumano! eu sou quadrumano! quem é que lhe disse tal insolencia? o -menino sabe o que é um quadrumano? - -—Sei, é um chimpanzé, e bem sabe que o outro dia a mamã disse-lhe que era -um chimpanzé. Perguntei ao sr. Casimiro o que era um chimpanzé, e elle -respondeu-me que era um homem dos bosques, que era um quadrumano. - -—A senhora bem está ouvindo; seu filho compara-me com um macaco, porque -a senhora o outro dia não receiou qualificar-me com esse epitheto. - -—Tambem o senhor me chamou girafa. Era porventura mais delicado? - -—Papá chimpanzé, faça-me um boneco. - -—Se me tornas a chamar chimpanzé, levas uma sova de açoutes que te racho! -Vá estudar a sua lição de grammatica, para m’a dizer logo. - -—Ora! a grammatica aborrece-me; gosto mais de recortar estampas. - -—Faça o que lhe ordeno, seu patife! e não resmungue. Angelina, quando -acabares o teu desenho de orelhas, espero que te lembres das minhas -piugas, que estão em muito máu estado, já me queixei d’isso a tua mãe, -que creio que terá attendido a minha reclamação. - -—As suas piugas! Ora! ainda lhes não toquei. - -—Como! pois a senhora não manda concertar a roupa? na verdade, não sei -em que pensa, ou antes sei-o demasiado. É nos seus adornos, nos seus -enfeites, nos seus vestidos de cauda ou sem cauda, e a roupa fica n’um -estado miseravel! os meus colletes de flanella não têem botões, as -camisas estão todas rasgadas, as ceroulas estão cheias de buracos; mas -a senhora, comtanto que tenha um vestido á moda, não quer saber de mais -nada. - -—Queria talvez que eu tivesse sempre as suas ceroulas no pensamento! Ah! -credo! seria bem triste!... - -—O que é triste, é achar a gente as camisas rôtas na occasião de as -vestir. - -—Socegue, a sua roupa ha de ser concertada; mas como n’esta casa ha -trabalho de mais e como eu e minha filha não podemos chegar para tanto -dei tudo isso a uma costureira. - -—A uma costureira! mas está a senhora bem informada a respeito d’essa -costureira? ha algumas que trocam os objectos que se lhes confiam. - -—Oh! não imagine que ella lhe vae trocar as piugas, o senhor está sempre -com medo de que o roubem, demais, é uma rapariga que mora no predio, no -quinto andar, é a menina Lisa. - -—A menina Lisa! não conheço. E trabalha bem, essa menina Lisa. - -—Cose como uma fada; já lhe dei que fazer, e fiquei muito satisfeita com -ella, tanto mais que não leva caro, dá-lhe a gente o que quer. - -—Oh! então é preciso dar-lhe que fazer muitas vezes. E essa rapariga mora -sózinha lá em cima? - -—Não, está com a avó, uma boa velhinha, quasi paralytica, que já não se -acha em estado de fazer nada; pois bem! é a menina Lisa que tem cuidado -d’ella, que trabalha dia e noite para que não falte nada á pobre velha. -Oh! esta rapariga porta-se muito bem... toda a gente no predio lhe faz -elogios. - -—Hum! desconfio d’essas pessoas a quem todo o mundo faz elogios, -isso esconde ás vezes muitas coisas, essa sujeitinha tem sem duvida -namorados... - -—Oh! que idéa! não fale assim deante de sua filha. - -—Minha filha aprende desenho, e quando uma menina quer desenhar de -modelos de gesso e copiar estatuas antigas, creio que pode comprehender -o que é um namorado. Demais, a tal menina Lisa é muito ajuizada, não tem -nenhum! estimo bastante. - -—Sim! sim! Lisa tem um namorado! exclama o joven Fonfonso; eu bem sei! eu -conheço-o... - -—O que está o menino a dizer! aonde foi aprender essas coisas?... - -—Ora, ouvi dizer. Não é verdade mana, que a costureirinha do quinto andar -tem um namorado?... - -—Deixa-me, vaes fazer com que me engane na minha orelha. - -—Menina, diz por sua vez a mamã, sou eu que a interrogo; deixe por um -momento as suas orelhas e responda-me. A menina sabe que Lisa tem um -namorado? - -—Se derem credito ás tolices que diz o mano, estão bem aviados. - -—Tu é que és uma tola; bem ouviste o borrachão que mora nas -aguas-furtadas dizer o outro dia na escada: Viva Lisa! viva a minha -namorada! E por signal tu disseste: Ora não ha! olhem que bello namorado -que a Lisa tem! - -—Isso não é verdade! eu não disse tal! - -—Disseste, sim! - -—Não, não, não! - -—Sim, sim, sim!... - -—Basta, basta! _satis! satis!_ grita por sua vez Castor Proh; estes -irmãos fazem-me lembrar Cain e Abel, que eu não conheci, mas cujas -questões tiveram consequencias bem terriveis! - -—Desde o momento em que o bebedo das aguas-furtadas está mettido em tudo -isto, diz Celeste, já o senhor vê que caso se pode fazer do que acaba de -dizer seu filho. - -—Sim, senhora, esse bebedo, esse tal Rouflard, porque é assim que elle se -chama, creio eu, esse maroto, preguiçoso, borrachão que devia ser expulso -do predio. Chausson, o porteiro, tinha-m’o recommendado, pedindo-me que -lhe désse alguma coisa que fazer, e dizendo-me que era um homem bem -educado, que tivera desastres na sua vida. Eu accedi a occupal-o, ainda -que desconfio sempre d’essas pessoas que tiveram desastres. Eu tinha -justamente precisão de _rhum_ da Jamaica, a senhora não gosta, prefere o -licor de herva doce, mas gosto eu. Era um dia em que a senhora jantava -fora com os pequenos. Dou dinheiro ao tal Rouflard, ordenando-lhe que -fosse aos _Americanos_, que é onde ha certeza de o achar bom. O homem -sae d’aqui perto das quatro horas da tarde. Era preciso quando muito uma -hora para fazer o recado, e ás seis horas ainda não tinha voltado. Vou-me -queixar ao porteiro, receioso de que tivesse acontecido algum desastre -ao seu protegido. Dão sete horas, dão oito, finalmente, ás dez horas, -vejo chegar o nosso homem, borracho, bebedo, mal podendo suster-se nas -pernas, e que me apresenta uma garrafa quasi despejada, dizendo com ar -chocarreiro: «Aqui tem a sua garrafa de _rhum_... entornou-se um pouco -pelo caminho... é que provavelmente não trazia a rolha bem apertada.» -«Como! lhe dige eu, atreve-se a affirmar que a garrafa se entornou! -porém ella devia estar perfeitamente lacrada! para que teve a confiança -de a abrir?... foi para beber o meu _rhum_... você é um maroto!... um -patife!...» Em vez de se desculpar, de me pedir perdão, o tal Rouflard -diz-me a modo de injuria: «Se não está contente, vou beber o resto!...» -Effectivamente, deixei-lhe o resto; mas dei os meus agradecimentos ao -porteiro, e, repito, um tal bebedo não devia continuar a viver no predio. - -—Ora adeus! o Rouflard não tem medo de vossemecê, papá Chimpanzé, não, -Chimpanzé não... papá Castor... - -—Então o menino conversa com esse homem? Fonfonso, prohibo-o que lhe -fale, não quero que aprenda máus costumes. - -—Não sou eu que lhe falo, elle é que me diz sempre tolices quando passa. - -—Não lhe responda, encerre-se no seu foro intimo. - -—Não entendo, papá. - -—Quero dizer que não dê attenção ao que lhe diz esse bebedo. - -—Ora! mas diverte-me, faz-me rir, hontem pela manhã disse-me: Porque é -que teu pae não põe o seu nome por cima da porta? é uma coisa que sempre -se faz para os artistas. - -—O que, Fonfonso! esse homem tem a petulancia de te tractar por tu! Que -insolencia! - -—Eu não lhe posso obstar... - -—Deves-lhe dizer: Olhe que eu nunca guardei perús com o senhor. - -—E elle responder-me-ha: Mas já os guardaste com o teu pae. - -—Ah! esse tal Rouflard queria que eu puzesse o meu nome por cima da porta! - -—Sim, senhor; até me disse: Fica descançado, pequeno, hei de eu lá pôl-o -e mais o de toda a familia, é preciso que todos saibam onde hão de -procurar a familia Proh... - -—Elle disse-te isso! mera brincadeira, talvez... - -—Ah! exclama Angelina, isto faz-me lembrar que vi hontem esse homem subir -a escada com um grande pedaço de giz na mão. - -—Teria elle porventura a petulancia de fazer caricaturas ridiculas por -cima da minha porta!... - -—Vá sempre vêr, sr. Proh, n’um bebedo tudo se deve esperar, nós ainda -hoje não saímos, poderia elle ter effectuado hontem as suas ameaças sem -que nós o soubessemos. - -O sr. Proh sae da sala e dirige-se ao patamar. D’ahi a poucos instantes -ouve-se um grito de indignação; toda a familia corre immediatamente para -a escada, com grande curiosidade de saber o que pode estar escripto por -cima da porta. - -—Venha, senhora, venha! exclama Castor, venham todos, e vejam o que o tal -Rouflard teve a pouca vergonha e a audacia de escrever por cima da nossa -porta. Oh! ha para toda a gente... - -Com effeito, por cima da porta tinham escripto a giz, e em grandes -lettras: - -A sr.ª _Pro-fanée_. - -A menina, _Pro-nobis_. - -O sr. _Pro-fesse_. - -O menino _Pro-pice_. - - - - -VII - -A menina Lisa - - -Depois do seu dia tão bem empregado, Casimiro não passou uma noite tão -agradavel: dormiu pouco; não se lhe tira da idéa a historia d’aquelle -pobre diabo que estava deitado na rua e que chama seu creado ao porteiro; -obriga-o a fazer reflexões que não são côr de rosa; o rapaz, sem todavia -se collocar no mesmo nivel que o tal Rouflard, diz comsigo que um homem -é infinitivamente despresivel quando vive á custa d’uma mulher. - -O resultado d’estas reflexões é uma resolução, firmissima d’esta vez, -de se entregar ao trabalho, e, como a pintura é a unica habilidade que -possue e que pode utilizar, promette a si mesmo tornar a pegar nos lapis -e nos pinceis e tractar de adquirir, trabalhando, o que ainda lhe falta -para se arrojar a fazer um retrato do natural; demais, jura tambem não -dizer nada a Ambrosina das suas novas intenções. - -O que é indispensavel a um pintor de retratos, é um modelo. Bem sabe -Casimiro que a sr.ª Proh estimaria bastante prestar-lhe esse serviço; mas -o rapaz, antes de fazer o retrato d’esta senhora, quereria exercitar-se -com outro modelo. Lembra-se do que lhe disse o porteiro a respeito de -Rouflard, e por isso, logo depois de haver tomado a chicara de café que o -Chausson lhe traz todas as manhãs, Casimiro sobe a escada para se dirigir -a casa de Rouflard. - -A escada era alta. Chegava ao quinto andar, onde não ha senão quartos -occupados em grande parte pelas creadas do predio, Casimiro pára -a fim de tomar folego, e olha depois em torno de si. Acaba alli a -escada; o porteiro porém disse-lhe que o seu antigo amo habitava n’uma -agua-furtada, no sexto andar, e elle não vê o minimo rasto de escada. - -N’isto ouve-se uma voz de mulher, muito suave, muito juvenil, cantando -como se embalasse uma creança. O quarto d’onde sae a voz tem a chave na -porta. Casimiro decide-se a entreabrir essa porta para perguntar por onde -se sobe ao sexto andar. - -Vê uma casa modestamente mobilada, poderia mesmo dizer-se mobilada -pobremente; no fundo está um leito bastante confortavel, com uns grandes -cortinados de sarja, e quasi ao lado uma caminha, sem cortinas, que -apenas se compõe d’um enxergão e d’um colchão muito pobre, de lã; depois -ha uma commoda de nogueira, uma meza, algumas cadeiras, um pequeno -espelho sobre a chaminé, tudo o que é indispensavel, o strictamente -necessario e mais nada; mas isto tudo está arranjado com um cuidado e um -aceio que dessimulam em parte a pobreza. - -No leito está uma velha deitada; mas ao pé da meza ha uma rapariga -sentada a coser. Casimiro fica pasmado á vista d’esta joven, cujo trajo é -bem simples, bem modesto, mas cujo semblante agrada logo pela expressão -meiga e engraçada dos seus lindos olhos, pelo encanto do seu sorriso, -emfim por essa sensação, difficil de analysar, que experimentamos á vista -d’uma pessoa que nos é desconhecida, mas que nós voltamos para vêr ainda -muito tempo quando o acaso nol-a faz encontrar. - -—Perdão, menina, diz Casimiro conservando-se junto da porta que acaba -de abrir. Sou indiscreto. Incommodo-a talvez. Mas, se bem que morando -n’este predio ha já muitos mezes, conheço pouco as localidás. Procuro um -individuo que mora no sexto andar, pelo que me disse o porteiro, mas esse -sexto andar não dou com elle... não sei por onde se sobe para lá... - -A rapariga sorri-se respondendo: - -—Effectivamente, quando se não conhece bem este patamar, é difficil dar -com a escada que vae para cima... Mas, olhe, alem ao fundo a parede faz -uma quina, é de traz d’essa quina que o senhor achará uma escada muito -estreita, que vae ter ao sexto andar, é tão estreita que, se o senhor -fosse gordo, não caberia por ella!... - -—Provavelmente o senhorio não quer que os inquilinos carreguem a casa -demais, responde Casimiro rindo. - -—Oh! não ha senão um inquilino... um homem que está muito mal lá em -cima!... - -—Como parece que está sempre embriagado, pode tomar a agua-furtada por um -palacio. - -—Acha que sim? Pobre Rouflard! mas elle não está sempre embriagado, -felizmente está mais alegre quando se acha em jejum do que quando tem -bebido... Ah! perdão, senhor, minha avó está-se voltando na cama... Creio -que quer alguma coisa... perdão... - -A rapariga faz-lhe uma mesura. Casimiro comprehende que deve retirar-se; -agradece outra vez á sua formosa visinha e torna a fechar a porta, -dizendo comsigo: - -—Como! pois eu tinha uma visinha tão encantadora, e nem suspeitava de tal -coisa! Em Paris mora a gente annos n’uma casa e não conhece as pessoas -que habitam na mesma escada, não as encontra nunca! É que esta rapariga -é deveras encantadora; feições finas e suaves ao mesmo tempo, bonitos -olhos, cabello preto como ebano, uma boquinha amavel; que delicioso -modelo que isto faria! Vive com a avó; ellas não parecem ser muito -ricas... é preciso que me informe. Vamos, procuremos a escada por onde se -sobe a casa de Rouflard. Ah! creio que achei... effectivamente é muito -estreita! é uma escada de moinho! uma saia de balão não cabia por aqui. - -Casimiro, conforme pode, sobe a escada, que não tem corrimão, mas -segura-se a gente á parede dos dois lados. Chega a uma especie de patamar -que tem tres portas; duas estão abertas de par em par, a do centro está -fechada, mas simplesmente com o trinco. É necessariamente alli que -deve morar o sujeito que na vespera se tinha deitado na rua. Casimiro -levanta o trinco, abre a porta, e fica muito espantado do quadro que se -lhe apresenta deante dos olhos; mas d’esta vez não é enlevo o que a sua -physionomia exprime. - -N’uma agua-furtada que tem doze pés quadrados, e que recebe a luz de -uma trapeira construida no tecto, está um homem estendido em cima d’um -montão de palha que sustenta uma especie de colchão feito de aparas; um -cobertor de algodão, negro de immundicie e esburacado em muitos sitios, -é tudo o que tem para se cobrir; ausencia total de lençoes; serve-lhe de -travesseiro uma acha redonda, que, para ser menos dura, está coberta de -velhos cartazes de espectaculos, que provavelmente foram arrancados das -esquinas. O homem que dorme alli não deve nunca despir-se completamente; -mas como se está no verão, tirou o paletot e o collete. Tem na cabeça -uma velha cassarola de lata sem cabo, a qual lhe serve de barrete de -dormir. - -Junto d’esta miseravel cama está uma cadeira côxa servindo de meza de -cabeceira, em cima da qual se vê uma terrina de porcelana rachada e -quebrada em muitos sitios. Aquella terrina, que talvez outr’ora teve -dentro saborosas sopas, está reduzida a um emprego bem humilhante! _Sic -transit gloria mundi!_ Ha fato espalhado pelo meio do chão. Sobre uma -tábua pregada no tabique estão alguns boiões de pomada, um pente, um -cangirão, uma garrafa, um cachimbo e um pedacinho de espelho. - -Quando o rapaz abre a porta, o sujeito que estava deitado dorme, tem a -cara voltada para a parede, e a chegada de Casimiro não parece tel-o -accordado; por isso este ultimo pode muito á vontade examinar o sitio em -que se acha, e é o que elle faz, porque para um pintor _de genero_ havia -alli assumpto d’um quadro original e curioso. - -Mas, depois de ter visto e revisto tudo, o que não podia levar muito -tempo, Casimiro decide-se a levantar a voz para despertar o dorminhoco: - -—Olá!... ó senhor!... sr. visinho! não se lhe poderia dar uma palavra? - -Rouflard volta meio corpo, resmungando: - -—O que é? que me querem? não estou cá! vão para o diabo! não pode um -homem dormir socegado n’este cochicholo!... - -—Perdão, sr. Rouflard, pelo ter accordado, mas são mais de dez horas, -pensava encontral-o já levantado. - -—Eu levanto-me tarde, porque gosto de estar deitado, e nada tenho de -melhor a fazer do que dormir. Ah! se o senhor me paga o almoço, isso é -differente... - -—Talvez que sim; e se lhe não offereço d’almoçar, posso dar-lhe com que -possa arranjar um almoço muito decente. - -[Illustration: —Mas o que faz o senhor aqui?] - -A estas palavras, Rouflard volta-se de todo, senta-se na cama, tira a -cassarola que lhe serve de barrete de dormir, esfrega os olhos, e exclama: - -—Oh! mas então o caso é differente; isso é que são palavras bem pensadas; -espere, eu creio que o estou reconhecendo, é o sr. Casimiro Dernold, mora -cá no predio, no terceiro andar... - -—Exactamente, ah! o senhor sabe o meu nome!... - -—Foi o meu criado que me deu estas informações. Chausson, o nosso -porteiro, que foi n’outro tempo meu servo, e que queria hontem á noite -deixar-me dormir na rua; porque, agora me lembro muito bem, se não fosse -o meu nobre visinho, era a soleira da porta da rua que me serviria de -cama! Aquelle tratante do Chausson!... - -—Se me dá licença, não foi hontem á noite, foi esta madrugada que tudo -isso aconteceu, porque era muito mais de duas horas quando eu vim para -casa... - -—Pois bem! ainda que fossem quatro! Por ventura as pessoas finas, as -pessoas da boa sociedade deitam-se como as gallinhas! Já não tenho com -que ir cear á _Maison d’Or_, é verdade, mas posso sempre passear no -_boulevard_ dos Italianos emquanto isso me der prazer! e Chausson é um -maroto! vinga-se dos sôcos que lhe dei n’outro tempo. Ahi está o que são -os homens! para conhecer os seus defeitos dêem-lhes a riqueza. Creio que -foi Larochefoucauld que disse isto, ou alguma coisa equivalente. - -—O senhor tem instrucção, sr. Rouflard, como é que não tem achado em que -se empregar convenientemente? - -—Empregar-me! empregar-me. Ah! o vizinho tem graça! é por não ter querido -nunca empregar-me que durmo hoje em cima d’uma pouca de palha! Mas -não façamos recriminações! o senhor ficou em me dar com que almoçar, -isso cahiria do céu, porque não tenho um soldo, e em compensação tenho -grande appetite; a tudo isto accresce que não tenho já credito em parte -nenhuma!... - -—Mas, se o senhor não quer empregar-se, vae talvez rejeitar a minha -proposta?... - -—Conforme! se é coisa que não dê muito trabalho... - -—Oh! não dá trabalho nenhum; tractava-se de vir a minha casa servir-me de -modelo, quatro ou cinco horas por dia. - -—Servir de modelo... para a cabeça? - -—Naturalmente, oh! eu não quero senão o seu busto, a cabeça e as mãos. - -—Bravo! isso convem-me, oh! convem-me muito! quando quer principiar? - -—Hoje mesmo, esta manhã, se o senhor poder? - -—Eu posso sempre... todavia... - -—Todavia precisa almoçar, comprehendo isso! Tome, aqui tem dez francos -adeantados sobre o seu trabalho; vá almoçar, depois venha a minha casa, -que eu vou preparar a palheta. - -Rouflard levanta-se muito expedito, recebe os dez francos com uma cara -radiante, e enfia logo o collete e o paletot, dizendo: - -—Ha muito tempo que não tenho um despertar tão bonito. Vamos entrar na -extravagancia de comprar uma pouca de pomada de baunilha, para fazer -honra ao nosso pintor... - -—Não faça despezas de toucador por minha causa, acho-o muito bem assim -como está. - -—Que bondade a sua. Ah! se me houvesse conhecido outr’ora, nos meus bons -tempos! então é que o meu retrato e a minha pessoa eram disputados; mas -outros tempos, outros cuidados! - -—Perdão, sr. Rouflard, uma outra pergunta, que vae talvez parecer-lhe -indiscreta. - -—Pergunte á vontade, não faça ceremonias. - -—O senhor disse ahi ha pouco que não tinha nem um soldo, e que não -queriam já dar-lhe nada fiado. Se não tivesse recebido a minha visita -esta manhã, como é que havia de almoçar?... - -—Como? ah! sim, comprehendo que isso lhe pareça difficil de resolver! é -que o senhor ignora que ha um anjo n’esta casa... - -—Um anjo? - -—Sim, senhor. - -—No predio? - -—Sim, n’esta mesma escada, não falo da que vem ter a esta agua-furtada, -mas cá por baixo, no quinto andar, n’um quarto muito modesto, mas que -parece um palacio em comparação d’este chiqueiro, mora uma rapariga que -pode ter dezoito annos, creio, e uma velha a quem ella chama sua avó. A -rapariga chama-se Lisa, a menina Lisa, como toda a gente a conhece; é -baixinha, é verdade, mas tão bem feita, tão graciosa... e uma cara!... -linda a mais não poder ser! Oh! nos meus bons tempos vi bastantes -mulheres bonitas! e mulheres que faziam furor, que viam a seus pés tudo -o que havia de melhor no _turf_. Pois bem, digo-o francamente, a menina -Lisa vale mais que todas ellas... - -—Vi ha pouco essa rapariga, foi a ella que me dirigi para dar com a sua -escada, pareceu-me, com effeito, muito interessante. - -—Interessante! oh! isso é pouco; ella é mais que interessante! e depois -um coração! uma bondade! quando estou completamente á divina, como eu -lhe dizia ainda agora, é ella que me soccorre. Um dia, havia eu parado -deante da sua porta, que estava aberta, tinha fome, e arrisquei-me a -dizer-lhe: «Minha vizinha, não terá por ahi um boccado de pão que me dê? -não tenho migalha em casa.» «Tem fome!...» exclamou ella, e correu logo -ao armario a buscar-me pão e um pedacito de queijo, que me offereceu, -dizendo-me: «Tome, não lhe posso dar mais nada, não tenho vinho...» «Oh! -isto é bastante, lhe disse eu, e a menina é um anjo de bondade!» ella -accrescentou: «Quando lhe faltar pão, venha pedir-m’o, não se constranja, -é-nos preciso tão pouco a mim e a minha avó, que sempre tenho de sobra.» -Aqui tem o senhor por que eu chamo a essa rapariga um anjo; vê que tenho -razão, faço por não abusar da sua bondade, mas algumas vezes, mesmo muito -amiude, vejo-me obrigado a recorrer a ella... então que quer o senhor? -parece que estava no meu destino o ser sustentado pelas mulheres; por -isso chamo á menina Lisa a minha namorada. Mas d’esta vez é honestamente! -respeito essa pequena, tanto quanto a estimo; faço mais, escuto os seus -conselhos, ella ralha commigo ás vezes, quando venho para casa bebedo... - -—Mas não segue esses conselhos? - -—Não sigo, é verdade; ainda hontem me emborrachei... que quer! a força -do habito. Tambem, quando estou bebedo, não ha perigo que eu pare para -conversar com Lisa; pobre pequena! a sua bondade para commigo é tanto -mais meritoria, que ella trabalha sem descanço para sustentar sua avó, -que está paralytica, algumas vezes á meia noite, á uma hora, sinto-a a -trabalhar ainda... e então grito-lhe: «Vizinha! isso é de mais, velar até -tão tarde, vá descançar, olhe que pode adoecer com tanto trabalho!» Ella -responde-me alegremente: «Não, não! o meu divertimento é coser; depois, -não tenho somno.» É realmente extraordinario que n’uma rapariguita haja -ás vezes mais coragem para o trabalho do que em cinco ou seis homens -robustos com eu! - -Casimiro tem escutado mui attentamente tudo o que Rouflard lhe tem dito -da menina Lisa. Isso ainda lhe dá que reflectir. Mas Rouflard, que acabou -de vestir-se, faz tinir os dez francos que tem na mão, e diz-lhe: - -—Perdão, meu caro vizinho, mas a fome aperta commigo, eu não o ponho -fóra... o senhor pode ficar aqui se se diverte com isso, eu porém peço -licença para me ir confortar. - -E, sem aguardar a resposta do rapaz, Rouflard sae pela porta fóra e desce -rapidamente a escada, escutando apenas a Casimiro, que lhe grita: - -—D’aqui a uma hora... em minha casa!... não se esqueça!... - - - - -VIII - -Travam conhecimento - - -Casimiro desce a escada muito devagar atraz do inquilino da agua-furtada, -não porque tenha receio de cair, mas porque está muito preoccupado com o -que Rouflard lhe contou ácerca da rapariga que mora no quinto andar, que -trabalha toda a noite para sustentar a avó, e acha ainda meio de ser util -aos que carecem de pão. - -Chegado ao patamar do quinto andar, o nosso mancebo pára deante da porta -da menina Lisa; estimaria bastante que aquella porta estivesse aberta, -mas não acontece assim; é verdade porém que a chave está ainda na -fechadura, o que annuncia que se não receia vísita importuna. Casimiro -está morto por tornar a vêr a rapariga de quem se lhe fez tão grande -elogio, diz de si para si que ha pouco não lhe agradeceu bastante a -indicação que ella lhe dera, accrescenta ainda que entre visinhos não -deve haver muita cerimonia, que de mais esta menina não tem muito -trabalho para ganhar dinheiro pela sua agulha, e que se elle podesse -ser-lhe util arranjando-lhe que fazer, n’isso lhe prestaria um grande -serviço. Emfim dá a si mesmo uma infinidade de razões para ter o direito -de abrir a porta, e é o que faz. - -Lisa continuava trabalhando, mas já não cantava; tinha o parecer triste, -e dirigia especialmente a vista para o leito, onde a velha estava -deitada, depois dava um profundo suspiro. Ao vêr entrar de novo Casimiro -em sua casa, as suas feições exprimem a sua surpreza; mas, quando o rapaz -vae para falar, ella põe um dedo na bocca, e diz-lhe a meia voz: - -—Baixinho! tenha a bondade de falar baixo, porque minha avó está -dormindo, e preciso não a acordar; esteve esta noite muito doente, muito -inquieta, não socegou um instante... - -Casimiro entra pé ante pé, e murmura approximando-se da rapariga: - -—Menina, eu sou sem duvida muito indiscreto em vir segunda vez -incommodal-a, mas não sei se lhe disse que era seu vizinho. - -—Sim, senhor, disse-m’o, demais, eu já o sabia, tenho-o visto algumas -vezes no predio. - -—Tem-me visto, e eu não tinha dado pela menina. Onde tinha os olhos?... - -—É que eu estava no cubiculo do porteiro, e depois occupo tão pouco -espaço, é muito facil não me verem... - -—Mas, quando alguem a vir uma vez é impossivel que não deseje tornar a -vêl-a mais vezes... - -Lisa não responde a isto, mas volta os olhos para o leito; Casimiro -percebe que o momento é mal escolhido para lhe render finezas, e que, -demais, não é para lhe fazer a côrte que elle quer travar conhecimento -com a sua vizinha, mas no desejo de lhe ser util. É esse realmente o seu -unico intuito? Eu por mim não respondo por isso; mas já é alguma coisa o -ter boas intenções. O mancebo prosegue pois falando baixo e sentando-se -n’uma cadeira que está perto d’elle: - -—Perdão, minha vizinha, vou falar-lhe francamente, e espero que nas -minhas palavras não verá nada que a possa offender. Soube pela pessoa -que móra lá em cima, com que actividade a menina se entrega ao trabalho, -para que sua avó não careça de coisa alguma; mas o trabalho d’uma mulher -é quasi sempre mal retribuido, eu ter-me-hia por muito feliz se podesse -offerecer-lhe o meio de ganhar mais, fatigando-se menos... - -—Porque outro trabalho? eu não sei senão coser, bordar e fazer meia ou -renda. - -—Eu me explico: sou pintor; ensaiei alguns quadrosinhos _de genero_, -mas ganha-se mais dinheiro a fazer retratos; n’isso ainda eu não sou -muito forte, preciso estudar, trabalhar muito, emfim tenho necessidade -sobretudo de pintar do natural, e para isso preciso de modelos. Notei -que aquelle Rouflard tinha uma cabeça caracteristica, eis a razão por -que fui esta manhã falar com elle. Propuz-lhe vir a minha casa servir-me -de modelo; elle acceitou com alegria, e eu poderei occupal-o bastante -tempo. Mas a minha sympathica vizinha, que tem uma cabeça encantadora, -ah! perdôe-me este elogio, é como artista que lh’o faço, eu julgar-me-hia -muito feliz se podesse reproduzir na tela as suas feições tão finas, -tão suaves. Oh! estou certo de que havia de conseguir! trabalha-se tão -bem quando se tem deante dos olhos um modelo que nos encanta... não lhe -pedirei que venha servir-me de modelo senão quando não tiver nada urgente -para fazer... acceitaria a sua hora... o seu tempo vago... e não julgaria -nunca pagar bastante caro as sessões que houvesse por bem conceder-me; -eis o motivo por que tomei a liberdade de abrir outra vez a sua porta e -de me apresentar aqui de novo. Se a minha proposta lhe desagrada, espero, -ao menos, que não verá n’isso da minha parte nenhuma intenção má. - -A menina Lisa, que escutou Casimiro com muita attenção, responde-lhe logo: - -—Não, senhor, não tomarei á má parte a sua proposta. Soube pelo Rouflard -que trabalho para viver, para que nada falte á minha boa avó, e desejou -ser-me util; não posso senão agradecer-lhe muito o interesse que se -dignou tomar por mim. Mas não acceito a sua proposta; ser modelo de -pintores não é a minha occupação, e tenho ouvido dizer... ao meu vizinho -cá de cima, que as mulheres que consentiam em servir de modelos, não -eram bem vistas na sociedade. Eu sou uma pobre rapariga, sem amparo, sem -familia, não tenho pois por unica fortuna senão a minha reputação, e devo -ter a peito conserval-a; tenho razão não é verdade? - -Estas palavras tão simples, mas tão justas fazem viva impressão -em Casimiro, que não está habituado a ouvir uma mulher falar tão -discretamente. Tracta comtudo de convencer Lisa. - -—Menina, convenho que o mister de modelo não dá a qualquer mulher uma -perfeita reputação de seriedade, posto que em todas as profissões se -possa ter bom comportamente quando ha firme vontade de proceder bem. -Mas tambem eu não vinha propôr-lhe que renunciasse ás suas occupações -habituaes por esta nova profissão. Podia-lhe que me servisse de modelo -sómente a mim, que me permittisse reproduzir as suas feições na tela, -era um favor que eu solicitava e, para a menina, uma curta distracção -aos seus trabalhos. E como lhe podia parecer pouco regular ir a minha -casa servir de modelo, viria eu para aqui pintar, traria para cá a minha -palheta e os meus pinceis; d’esta maneira, a menina não deixaria mesmo um -instante a pessoa a quem prodigaliza todos os seus cuidados. Os modelos -pagam-se muito caro, desculpe-me entremetter a questão de dinheiro em -tudo isto; mas na vida não ha remedio senão attender a essa questão: ora, -se eu occupasse um modelo durante umas dez sessões, dar-me-hia por muito -feliz se elle se contentasse em receber cincoenta francos... - -—Ih! Jesus! tanto dinheiro, só por servir de modelo!... - -—Sim; e quanto mais bonito é o modelo, mais caro se faz pagar, isso -comprehende-se. Por isso, para achar um como a menina, em primeiro logar -seria muito difficil, depois teria de o pagar por um preço muito mais -elevado, e as minhas posses não me permittem uma tão grande despeza. -Já vê portanto que, satisfazendo ao meu pedido, era a mim que a menina -obsequiava, era eu que lhe devia agradecimentos; mas isto desagrada-lhe, -não pensemos mais em tal... - -Lisa d’esta vez hesita para responder; a final murmura. - -—Sinto não poder ser-lhe agradavel; parece-me entretanto que não deve -ser difficil achar uma cara que valha bem a minha. Olhe, senhor, eu não -conheço nada o mundo, mas creio que o céu me deu o segredo de ler no -pensamento das outras pessoas: o senhor deseja ser-me util e tracta -de me persuadir de que eu é que lhe prestaria serviço. Ah! isso é bem -generoso da sua parte... confesse que adivinhei. - -Casimiro está muito admirado da perspicacia da rapariga. Não pode deixar -de sorrir, balbuciando: - -—Confesso que me espanta, menina; a sua linguagem annuncia mais educação -do que de ordinario se recebe na posição precaria em que a vejo. Não tem -mais parentes senão essa pobre enferma, diz a menina; mas aquelles que -perdeu occupavam então uma posição mais afortunada; perdão, sou talvez -demasiadamente curioso? - -—Oh! eu não tenho motivo para me rodear de mysterios! não conheci nunca -meus paes; abandonaram-me muito cedo aos cuidados d’uma ama, depois -esqueceram-se de mim completamente. - -—É possivel! pobre creança! mas essa velhinha que ahi está?... - -—Chamo-lhe avó, mas não me é nada; era mãe de minha ama. Essa chamava-se -Catharina Vauger; queria-me muito, e o que mais receiava era o momento em -que teria de separar-se de mim para me entregar á minha familia; ficou -pois bem contente quando lhe enviaram uma forte quantia, dizendo-lhe: -«Saia da sua aldeia, fique com a creança; em vez do nome que ella tem, -chame-lhe _Lisa_ unicamente; mas vá para Paris, para a morada que aqui se -lhe indica, estabeça-se, e arranje uma lojita, que alguem terá o cuidado -de a indemnisar das despezas que fizer com a menina.» A minha ama acabava -de perder o marido. Partiu para Paris, trazendo comsigo a mãe, que alli -está, n’aquella cama. Durante algum tempo recebeu pelo correio certas -quantias para mim, depois, de repente isso acabou, não se ouviu mais -falar em coisa alguma!... - -—Mas a sua ama sabia sem duvida o nome da pessoa que lhe escrevia? - -—Não, as cartas não vinham assignadas; nunca mesmo lhe tinham dito o nome -de minha mãe... - -—É completamente um romance!... - -—A minha boa ama pouco se inquietou com isso; tinha emprehendido um -negociosinho de leite e de queijos que corria bem. Assim que fiz seis -annos, mandou-me á escola; depois, um pouco mais tarde, a um collegio -semi-interna, porque ella não queria nunca separar-se de mim mais de -meio dia. Querida e boa ama! queria-me mais que uma mãe! visto que a -minha me abandonára. Vivemos assim muito felizes durante alguns annos; -mas, ha quatro annos, a boa Catharina caíu doente, e, apezar de todos os -meus desvelos, morreu; tinha eu apenas quatorze annos, e comtudo a minha -ama recommendou-me sua velha mãe, porque ella conhecia-me, sabia que eu -tinha coragem, e a firme vontade de reconhecer pelo meu trabalho tudo o -que tinham feito por mim. Durante os primeiros tempos, para vivermos, -minha avó e eu, fomos obrigadas a trespassar o estabelecimento da minha -ama. Eu procurava trabalho, mas não o podia obter, achavam-me muito nova -para m’o confiarem, e quando minha avó o pedia, achavam-n’a muito velha. -A final, a Providencia veiu em nosso auxilio, e eu pude ganhar a nossa -vida. Mas, ha um anno, a minha pobre companheira ficou meia paralytica, -já o senhor vê que tenho razão para trabalhar sem descanço e para velar -constantemente pela pobre velha que não tem mais ninguem para a tractar. - -—O que me acaba de dizer, não tem feito mais que augmentar o interesse -que me inspirava, e perdôe, se torno ainda a falar n’isto, o desejo que -sinto de lhe ser util. Pobre pequena, abandonada pelos paes, que vivem -talvez na abastança e podem ter todos os gozos que a riqueza proporciona, -emquanto que a menina... - -—Asseguro-lhe que nunca penso em tal, não choro senão a minha ama, a -minha unica mãe! e que me queria tanto! Não tenho resentimentos contra -meus paes por me haverem deixado com ella. Nem minha mãe nem meu pae me -teriam de certo tractado melhor. - -—A menina tem muita philosophia, dou-lhe por isso os meus parabens: -outras, no seu logar, forjariam mil chimeras. - -—Oh! eu não! não penso senão no meu trabalho. - -—E sempre me recusa o favor que lhe peço de me deixar tirar o seu -retrato, vindo eu aqui? - -—Certamente; d’essa maneira, é muito mais decoroso; mas não importa, não -quero servir de modelo. - -Casimiro suspira e levanta-se dizendo: - -—Vamos, vejo perfeitamente que nada pode vencer a sua repugnancia. Não -devo por insistir mais; mas, no emtanto, se por acaso mudar de parecer, -eu estarei sempre prompto com a palheta e os pinceis, e a menina não tem -senão uma palavra a dizer, para me ver aqui immediatamente. - -—Muito agradecida. - -—Demais, se me dá licença, virei eu proprio saber da saude da sua doente, -a menina permitte-me, não é verdade? - -A menina Lisa faz-se córada, hesita, mas este pedido era-lhe feito com -uma voz tão meiga, este rapaz tem mostrado por ella tanto interesse, -mostra-se tão respeitoso, tão delicado, e depois não é um estranho -qualquer, mora no mesmo predio, e o porteiro nunca disse d’elle senão -bem; tudo isto decide, a rapariga a pronunciar um sim, que enche de -alegria o seu vizinho. - -Casimiro então torna a agradecer a Lisa a permissão que ella acaba de -lhe conceder, depois despede-se e retira-se em bicos dos pés, sem fazer -bulha, de modo que a doente não accorda. - -O nosso mancebo, ao entrar em sua casa, sente-se cheio de ardor para -o trabalho; dispõe a sua tela, e prepara a palheta e os pinceis. Os -bons exemplos fazem muito mais effeito que os bons conselhos, no que -ha a differença da practica á theoria; escuta-se muitas vezes com -indifferença, e esquece-se mesmo o que se ouviu; mas nunca se olvida o -que se viu. Tem razão o proverbio que diz: Um olho vale mais que dez -ouvidos: - -O joven pintor aguarda impaciente a chegada de Rouflard para se pôr ao -trabalho; mas passa-se o tempo e o modelo não apparece. Casimiro começa a -pensar que fez mal em pagar adiantado ao inquilino da agua-furtada, que -é capaz de gastar tudo quanto recebeu, antes de pensar em cumprir a sua -promessa. - -Mas não tarda que se ouça um grande arruido de vozes; grita-se, ralha-se -no patamar, e a voz de Rouflard cobre muitas vezes todas as outras. -Casimiro quer saber o que se passa, corre a abrir a porta e vê no seu -patamar a familia Proh á briga com o seu futuro modelo. - -O sr. Proh e sua mulher parecem muito exaltados; Rouflard está apenas um -pouco «electrizado...» - -—Sim, senhor, grita o sr. Proh, que tem effectivamente alguma similhança -com um chimpanzé; eu tinha direito para o chamar a uma policia -correccional pelo que o senhor escreveu por cima da minha porta... - -—Ah! ah! ah! o senhor faz-me rir com a sua policia correccional, faça-me -ir ao tribunal, isso ha de divertir-me... - -—Pelo menos ha de ir á presença do juiz de paz! diz Celeste Proh, porque -o senhor insultou-me, chamando-me sr.ª _Profanée_!... - -—Insultei-a! com a breca! a senhora é difficil de contentar! comparo-a -com uma flor. Quando uma flor está meio murcha, diz-se que está -_fanée_... concedo-lhe que é uma rosa _fanée_... e zanga-se com isso... -eu podia-lhe ter posto: a sr.ª _Probléme_... a sr.ª _Profile_... um reles -algodão... - -—Cale a bocca, insolente! meu vizinho, faço-o juiz d’esta questão: o -senhor leu sem duvida o que este homem tinha escripto com giz por cima da -nossa porta?... - -—Não, minha senhora, não reparei... - -O rapazito põe-se a gritar: - -—Era: A menina _Pronobis_, a sr.ª _Profanée_... - -—Cale-se, Affonsinho, não é preciso repetir essas coisas feias, visto que -o nosso vizinho não as leu... - -—O sr. _Professe_! eu sou o menino _Propice_... - -—Cale a bocca. Fonfonso!... vá já para casa... - -—Não quero... - -—E porque é que me pôz a mim o sr. _Professe_?... O que entende por esta -locução? exclama o falso chimpanzé muito zangado. - -—O que entendo? oh! essa é boa! Pois não é difficil de adivinhar! É -verdade que talvez isso lhe não aconteça já! - -—Senhor, hei de ter uma satisfação de todas essas offensas!... - -—Quer que eu lhe dê uma satisfação? Estou prompto, um duello! agrada-me -a proposta; logo cá lhe mandarei o meu creado, para o senhor ajustar com -elle as condições do combate, acceitarei a arma que escolher, isso para -mim é indifferente! bato-me com tudo quanto se quer, mas o florete é a -arma das pessoas de distincção... - -—O que é que diz? um duello! este homem propõe-me um duello, creio -eu... que desaforo! atrever-se a suppôr que iria medir-me com elle! tem -graça!... - -—Medir-se, meu caro amigo! oh! não com um metro! o senhor é uma grande -vara, e eu não tenho senão tres pollegadas e meia, a vantagem seria toda -sua! mas Chausson, o meu antigo _groom_, nos emprestará duas espadas de -guarda nacional, ou dois páus de vassoura, á sua escolha. Convem-lhe -isto, sr. _Pro... rata_? - -—Sr. Casimiro, peço-lhe que diga a este homem que se cale, aliás não -respondo pelo que acontecerá... - -—Não te faças fanfarrão, _Professeur_! olha que te vou á figura... - -—Sr. Rouflard, vê-se perfeitamente que almoçou bem de mais, não é isso -que me tinha promettido. Esquece-se de que tem de vir a minha casa -servir-me de modêlo, e que estou á sua espera?... - -—Ah! é verdade, tem razão, desculpe, meu pintor, eu ia a sua casa, para -que me tomou esta gente o caminho?... - -—Sr. Proh, e minha senhora, peço-lhes que não tomem a sério os gracejos -de máu gosto que este homem se atreveu a proferir, elle bebe de mais -algumas vezes para esquecer a sua miseria, devemos ser indulgentes com os -desgraçados, prometto-lhes que não tornará mais!... - -—Ah! sr. Casimiro, é só em attenção ao senhor! - -—Vamos, Rouflard, vamos para o nosso trabalho... - -—Já vou, meu Miguel Angelo, meu Raphael. Familia Proh... tornaremos a -ver-nos... - -—Venha, Rouflard, venha d’ahi... - -—Vamos lá fazer de modelo _Pro Deo e pro patria_!... É bonito isto! -_Pro-deo_... - -Casimiro faz entrar o modelo em sua casa, e a familia Proh retira-se -tambem do patamar, depois de ter tido o cuidado de apagar o que restava -de giz por cima da porta. - - - - -IX - -Uma colhér de prata - - -Não é sem custo que o joven artista consegue do seu modelo que se deixe -pôr em posição, e principalmente que se não mecha depois de adoptada -emfim a sua attitude. A final Rouflard aquieta-se; demais, Casimiro -permitte-lhe conversar e elle usa da permissão. O antigo seductor tem-se -feito muito loquaz com a edade; gosta de falar dos seus triumphos -passados e enfeita as suas recordações de reflexões que são ás vezes -picantes. Rouflard não é falto de espirito; este homem possuia tudo o que -é preciso para fazer caminho no mundo, e foram todas as suas vantagens -que o perderam. - -Casimiro ouve o seu modelo contar-lhe os seus triumphos com as damas, mas -em breve conduz a conversação a um assumpto que o interessa mais. É da -menina do quinto andar que elle gosta muito de ouvir falar! - -—Mora ha muito tempo n’este predio sr. Rouflard? - -—O senhor é muito delicado em dizer morar, meu Raphael; estar empoleirado -é que devia dizer. Emfim não importa; ha seis mezes que o occupo, aquelle -buraco, e confesso que nunca lá tive vontade de cantar: «Como se está bem -n’uma agua-furtada aos vinte annos!...» É verdade que já não tenho vinte -annos; mas, ainda que os tivesse, não seria nunca da opinião de Béranger. -Mas isto de poetas, em o pensamento sendo original é o sufficiente! Bem -se importam elles com a verdade! - -—E quando o senhor veiu morar cá para cima, já a menina Lisa aqui -habitava com a avó? - -—Sim, já cá estava, mas havia pouco tempo, pelo que tenho ouvido dizer. - -—O senhor está no caso de saber quando ella recebe as suas visitas. - -—Visitas! em casa da Lisa! oh! nunca! que eu saiba, nunca a nossa visinha -recebeu ninguem de fóra. Só a sr.ª Proh é que lá subiu uma ou duas vezes -com o filho, para levar trabalho. O garoto não cessava de gritar: que -feio que é isto aqui! e, como queria ralar a paciencia á pobre da avó, -Lisa pôl-o fóra de casa. Emquanto á senhora _Pro-tocole_, essa não se -fartava de dizer á rapariga: «Eu não poso pagar isto por doze soldos, -é muito caro, não dou senão dez.» E tantas vezes o repetiu, que Lisa -respondeu-lhe: «Dê a senhora o que quizer...» Pobre pequena! regatear -por dois soldos, a quem trabalha dia e noite para sustentar a avó! é uma -acção digna da sr.ª _Pro-fanée_!... - -—Volte a cabeça um pouco mais para a esquerda. Muito bem, faça por -conservar essa posição... - -—Está satisfeito commigo? - -—Sim, senhor, não se põe mal... isto hade ir... - -—O senhor está pintando o meu retrato para o mandar á exposição? - -—Talvez, se me sair bom. - -—Em todo o caso, ha-de-m’o dizer, não é verdade? porque eu não -desgostaria de me ir contemplar. - -—Sim, sim, mas ainda lá não chegámos. Sabe o sr. Rouflard quem eu -estimaria bastante ter por modelo? - -—Ora! aposto que adivinho? é a menina Lisa que o senhor quereria retratar! - -—Exactamente, teria grande prazer em reproduzir na tela as bonitas -feições d’essa interessante rapariga! - -—Pois bem! quem é que lh’o impede! - -—Perguntei á nossa visinha se consentiria em me deixar tirar-lhe o -retrato, e ella recusou-se! - -—Ah! recusou! Aposto que foi para não deixar a avó sósinha tanto tempo? - -—Mas, como eu tinha comprehendido isso, propuz-lhe ir eu a sua casa com -os pinceis e a palheta, de modo que poderia ella servir-me de modelo sem -se afastar um momento da sua pobre doente... - -—Oh! isso era bonito da sua parte! E ella ainda recusou? - -—Sim, recusou sempre. Tenho dobrada pena com essa recusa, porque a menina -Lisa trabalha muito e ganha pouco... - -—Acredito! sobre tudo se trabalha para a sr. Proh...! - -—Emquanto que consentindo em me servir de modelo teria ganho muito -mais, e mesmo sem que isso lhe fizesse largar o seu trabalho habitual. -Ter-lhe-ia proporcionado alguns regalos, poderia comprar para a sua -doente coisas que ella por falta de dinheiro não lhe pode agora -offerecer. Pois eu não tinha razão, Rouflard? - -—Tinha cem vezes, mil vezes razão! e não sei por que ella recusou! - -—É que tem medo de se comprometter; tem ouvido dizer que as mulheres que -servem de modelo aos pintores não gozam de boa reputação. - -—De ordinario não são nenhumas vestaes! mas quem necessita de trabalhar -para viver, não se deve prender com isso! A susceptibilidade de Lisa -é exagerada! Esteja descançado, meu pintor, o senhor só tem boas -intenções, só quer fazer bem á pequena, fazendo ao mesmo tempo um bonito -estudo; indo pintar em casa d’ella deante da avó, tira todo o pretexto -á maledicencia. Farei comprehender isso á minha boa vizinha, estou -convencido de que a hei-de resolver a deixar-se retratar! - -—Devéras! acha que vencerá a sua resistencia? - -—Com toda a certeza! tenho vencido outras mais fortes. Triumphar das -mulheres era a minha profissão! É verdade que empregava para isso meios -de que não usarei com a menina Lisa; resta-me, porém, a minha eloquencia, -e o desejo que tambem tenho de ser util áquella que nunca me recusou um -boccado de pão. Será talvez a primeira vez que prestarei serviço a uma -mulher, isso ha de fazer-me mudar. - -Para primeira sessão, Casimiro não quer fatigar muito o seu modelo, e ao -cabo de duas horas, conhecendo que Rouflard começa a sentir formigueiros -nas pernas, diz-lhe: - -—Basta por hoje. - -—Devéras! põe-me em liberdade! Pois bem! gosto d’isso, porque principiava -a sentir uma especie de caimbras nas pernas, falta de habito, já se vê -mas hei-de-me costumar. Será preciso vir ámanhã outra vez? - -—De certo; assusta-o isso, por ventura? - -—Nada, pelo contrario, creio até que tomarei gosto pela coisa. Ganhar -dinheiro assim não custa nada. Oh! é preciso que a nossa vizinha se -preste tambem a isto, tanto mais que poderia assim dar grande prazer á -avó, estou mesmo espantado de que ella não tenha pensado em tal. - -—Como é isso? explique-se melhor, Rouflard; em que é que a menina Lisa -daria grande prazer á sua pobre paralytica? - -—Vae immediatamente perceber. Conversando algumas vezes commigo, porque -eu gosto muito de conversar, sobretudo com as raparigas bonitas, é um -resto da minha juventude... _desinit in piscem_... oh! eu tambem sabia -latim! mas, com as mulheres, esquecia-me d’elle, ellas não gostam de -linguas mortas! - -—Voltemos a Lisa. - -—Tem razão, eu poderia ter sido um bello advogado, porque trato os -pormenores com muito cuidado. Ora, ia eu dizendo: conversando, a minha -vizinha tem-me dito algumas vezes: «Ah! se eu podesse ajuntar algumas -economias. Ha uma coisa que daria grande prazer a minha avó, e que eu -estimaria muito poder-lhe offerecer, mas não o posso conseguir!» «O que -é então, lhe disse eu, que a sua avó deseja tanto?» «É, me respondeu -ella, uma colhér de prata; porque ella teve uma muito bonita n’outro -tempo, em vida da minha ama, porém depois da sua morte, quando estive -muito tempo sem achar trabalho, foi-nos preciso pouco a pouco vender o -que possuiamos, e a colhér de prata levou esse destino. Hoje conseguimos -viver, mas não posso ajuntar dinheiro para comprar outra; e ainda menos -agora, que o medico receita algumas vezes remedios que são muito caros! -Mas a saude está primeiro que tudo, vale mais que uma colhér de prata!...» - -—Tem razão, Rouflard, essa menina, servindo-me de modelo, teria ganho em -breve com que comprar o que deseja offerecer á avó. - -—A não ser que o medico receite ainda algum remedio ruinoso; então, lá -se ia embora todo o dinheiro! porque Lisa não regateia quando se tracta -de dar allivio á pobre enferma. Mas é o mesmo, eu lhe falarei. A sessão -ámanhã é á mesma hora? - -—Mais cedo, ás dez horas em ponto. - -—Á hora que quizer; eu sou livre como o besouro! Ah! permitte-me que veja -o que o senhor fez? - -—Sim, pode vêr. - -—Espere, isto já não está mau, eu não sei pintar, mas tive a reputação de -entender de quadros e, no tempo das minhas fortunas, comprei por vezes -alguns quadrosinhos _de genero_... e ganhei sempre n’elles. - -—Pois então, olhe para essa vistasinha de Bougival, que ainda não -acabei... - -—Vejamos; oh! é bonita, é aprazivel, tem vida! O senhor é colorista, o -que nem todos os pintores são, mesmo alguns que teem entretanto muito -talento. Isto que lhe digo, não é para lhe fazer um elogio banal, o -senhor tem o sentimente da côr... tracte bem este quadrosinho. Olhe, eu -n’outro tempo teria pago isto por trezentos francos, e ainda havia de -ganhar... - -—Bom, visto que esta paizagem não lhe parece de todo má, vou acabal-a. -Eu faria talvez melhor o quadro _de genero_ que o retrato, não importa, -tentarei as duas coisas. Até ámanhã, Rouflard. - -—Sim, senhor, e não almoçarei senão depois da sessão, para me collocar em -posição com mais dignidade. - -Assim que o modelo se retira, Casimiro deixa a cabeça de Rouflard e -deita-se á paizagem; trabalha com um ardor de que elle proprio se -espanta, mas toma gosto pela sua obra, procura-lhe cuidadosamente os -defeitos, aperfeiçôa-lhe muitas partes, e o tempo passa depressa quando -a gente se entrega a um trabalho que agrada. Casimiro ouve dar quatro -horas, e diz comsigo: - -—Não é possivel que já seja tão tarde. Ah! Santo Deus! e eu que devia -ir buscar Ambrosina ás tres horas, para ir passear com ella ao bosque! -mais uma scena que terei de aturar! Porque deixei eu esta mulher dispôr -assim do meu tempo? porque? Porque sou um preguiçoso, um cobarde, porque -a menor occupação me mettia medo, e hoje tenho infinitamente mais prazer -em trabalhar n’este quadro do que em ir passear ao bosque. Ah! é que -penso n’essa menina Lisa que não procura nenhuma distracção, que trabalha -constantemente n’um quarto onde não tem por companhia senão uma velha -paralytica, e isto de ter assim vivido na inacção envergonha-me. Tenho -ainda deante dos olhos a situação de Rouflard. Este homem, que foi -tão festejado, tão amimado pelas mulheres, viveu á custa d’ellas e eu -vejo onde isso conduz, o seu exemplo não será perdido para mim. A sr.ª -Montémolly pode zangar-se quando quizer, mas de hoje em deante hei-de -trabalhar; estou resolvido a isso, no entanto, como é preciso ser sempre -delicado com as senhoras, vamos ter com ella, senão seria capaz de vir -aqui para saber o que estou fazendo. - -Casimiro dirige-se portanto a casa da formosa Ambrosina. Esta dama está -de muito máu humor; acha-se vestida e prompta ha mais de uma hora, e não -vê apparecer o amante. Passeava com impaciencia pela sala, olhava a cada -instante para o relogio, chamava a creada e dizia-lhe que fosse perguntar -que horas eram a qualquer parte, exclamando: - -—Estou certa de que este relogio anda adeantado, deve regular mal; -Adriana, vá saber que horas deram com exactidão. - -Adriana vae informar-se ao quarto do porteiro, e volta dizendo: - -—Minha senhora, o seu relogio não está adeantado, pelo contrario, anda -atrazado seis minutos. - -—Você é uma tola! exclama Ambrosina, rasgando as luvas com colera, de -certo viu mal... - -—Não, minha senhora, eu... - -—Basta! não quero que sejam perto de cinco horas, é impossivel!... - -—Ah! se a senhora quer que não seja mais de meio dia, isso para mim é o -mesmo. - -—Cale o bico! parece-me que tem a confiança de gracejar commigo! se diz -mais uma palavra, ponho-a na rua!... - -Adriana retira-se, dizendo comsigo: - -—É que o gajo ferrou-lhe alguma peça! Ainda agora a procissão vae na -praça, minha rica! - -Chega finalmente Casimiro. Esperando uma scena de ralhos, vem revestido -de toda a sua paciencia; demais, está decidido a persistir na resolução -que tomou de mudar de vida. - -—Ah! chegou emfim, diz Ambrosina mordendo os labios com despeito. Sabe -que horas são? - -—Cinco horas menos vinte minutos. - -—E a que horas devia o senhor vir buscar-me?... - -—Um pouco mais cedo, é verdade; mas puz-me a pintar e o tempo passou mais -depressa do que eu imaginava. - -—De certo que não presume que eu me satisfaço com similhantes razões; -deveria, pelo menos, ter inventado outras, dizer-me ainda que estava á -espera do seu amigo Miflaud, que foi elle que o demorou... - -—Disse-lhe a verdade, minha senhora, não tem razão em não me acreditar. -Estive trabalhando. - -—Esteve trabalhando! e desde quando, se me faz favor, desde quando lhe -veio esse bello amor pelo trabalho, que eu lhe não conhecia? - -—Estou admirado de que a senhora me diga isso, porque, desde algum -tempo a esta parte, temos tido bastantes conversações a tal respeito. -Sim, minha senhora, puz-me ao trabalho, e d’aqui em deante conto -empregar assim uma parte do meu tempo, a minha resolução está tomada -e é inquebrantavel, agora não mudarei. Estou envergonhado da vida que -tenho levado até hoje, e é preciso que isto acabe. Bastantes vezes lhe -tenho manifestado o desejo que sentia de achar um emprego. Em vez de -me confirmar n’este designio, a senhora tem sempre procurado fazer-me -esquecer do que a minha posição tinha de censuravel. Não lhe faço uma -arguição. Deus me livre de tal! cada um ama a seu modo: uns sómente pelo -prazer de amar; outros pela felicidade que experimentam em ouvir fazer -o elogio do objecto da sua escolha. Eu possuo só um recurso, a pintura. -Posso, á força de estudo, de trabalho, adquirir algum talento. É o que -vou tractar de fazer; não ve o em que isso me poderia malquistar com a -senhora, porque lhe asseguro que os prazeres parecem mais doces, quando -vêm depois das horas de trabalho. - -Casimiro disse tudo isto com um ar tão decidido, n’um tom tão firme, -tão convencido, que a sr.ª Montémolly comprehende que d’esta vez não -triumphará da nova resolução do seu amante. A colera desappareceu -então como por encanto. É que ella conhece Casimiro sufficientemente -para perceber que perderia muito no conceito d’elle, procurando ainda -estorvar-lhe os projectos. Em vez d’isso, faz esforços para retomar o seu -ar gracioso, e toma-lhe o braço, dizendo-lhe: - -—Perdôe-me, meu amigo, eu não tinha razão; não o censurarei mais por -trabalhar. Mas isso ha-de impedir-nos por ventura de irmos ainda passear -algumas vezes? - -—Ah! estou ás suas ordens e encantado de a achar tão razoavel... - -—Pois bem! então, vamos dar um passeio até ao bosque, e á volta -jantaremos no Ledoyen... - - - - -X - -Ainda as creadas - - -São decorridos quinze dias. Casimiro trabalha com assiduidade no seu -quadrosinho de cavallete e da cabeça de Rouflard; este conserva a posição -muito regularmente, sobretudo desde que dá as sessões antes do almoço. -Mas não conseguiu ainda vencer a resistencia de Lisa, que não quer deixar -tirar o retrato. Isto penaliza o joven pintor, que subiu muitas vezes a -casa da sua linda vizinha do quinto andar; mas não se demorou muito lá, -porque ella parece sempre temer que a vista do rapaz contraríe sua avó, -e é mostrando-se bem discreto que Casimiro espera captar a confiança de -Lisa e triumphar da sua recusa. - -O joven pintor continúa a dar lições de desenho á menina Proh, que não -faz nenhum progresso e passa uma semana com a mesma orelha. Começou -tambem o retrato da sr.ª Proh, mas pouco trabalha n’elle, e prefere muito -mais a cabeça de Rouflard. Emfim, Casimiro acabou a sua pequena paizagem, -e mandou-a para uma loja de quadros, deante da qual param de boamente os -amadores, porque se expõem alli a miude bonitas coisas e raras vezes má -pintura. - -Deve-se bem suppôr que a ciumenta Ambrosina, não acceitou sem desgosto, -sem receio, o novo modo de viver que o seu amante acaba de adoptar; mas -comprehendeu que era preciso fazer algumas concessões para não perder -inteiramente o seu imperio. Vê Casimiro muitas vezes; mas em vez de -passar em casa d’ella uma parte das suas manhãs e das suas tardes, a -conversar como costumava, o rapaz almoça agora em sua casa, e trabalha -algumas vezes até ás cinco horas da tarde; quando se sente perfeitamente -bem, quando está contente de si, custa-lhe muito largar os seus pinceis, -e fica muito admirado de vêr com que rapidez se passa um dia todo -consagrado ao trabalho, elle que outr’ora achava o tempo bem comprido e -não sabia como empregal-o para evitar o aborrecimento. - -Ambrosina, que quer certificar-se de que Casimiro não a engana, chega -muitas vezes a casa d’elle sem o prevenir da sua visita. Acha-o -trabalhando com o seu modelo, e não é Rouflard que pode inquietal-a; -encontrou lá tambem uma vez a sr.ª Proh, que dava uma sessão ao seu -vizinho, mas a esposa do antigo professor não podia despertar-lhe ciume. -Não tinha pois nenhum motivo real para se affligir, e todavia não estava -socegada; parecia-lhe que o amante não era já o mesmo com ella, que com -o amor inteiramente novo que lhe viera pelo estudo, tinha perdido muito -d’aquelle que n’outro tempo lhe dedicára. Não sabia bem o que se passava -no coração de Casimiro, mas adivinhava que havia agora entre ambos alguma -coisa que devia destruir a sua felicidade. As mulheres teem uma segunda -vista, que lhes faz presentir tudo o que tem relação com o seu amor. - -Isto devia necessariamente produzir um augmento de crises nervosas, e a -menina Adriana era muito a miude enviada á pharmacia que já tivemos o -prazer de fazer conhecer aos nossos leitores. - -Correndo alli um dia (sabemos já como Adriana corre, que pára a conversar -com todos os conhecimentos que encontra,) a gorda creada acha-se outra -vez cara a cara com a sua amiga, a menina Rosa, aquella que tem um tão -bello commodo em casa d’um homem só, que lhe faz presentes, e que tomou -um creado para que ella se não cance muito com o trabalho domestico. - -—Bons dias, Adriana. - -—Ah! és tu, Rosa! onde vaes d’esse modo? - -—Vou alli á pastelaria encommendar umas empadas, que as fazem -deliciosas!... - -—Ah! bem sei, é tambem onde nós compramos, é a melhor do bairro. - -—Ainda estás em casa da tal senhora nervosa? - -—Oh! não me fales n’isso! desde algum tempo a esta parte, está -constantemente de máu humor! anda furiosa! porque os amores já não correm -muito bem! Eu bem vejo, o tal sujeito já apparece menos vezes, por mais -que a senhora se apure no vestuario, por mais que se faça bonita, estou -convencida de que elle tem vontade de a deixar. - -—Ora! e ella arranja logo outro! - -—Pensas que la em casa se faz isso com essa facilidade! Nós adoramos o -nosso pintor, minha rica, seriamos capazes do nos deixarmos depennar por -elle! - -—Ah! é um pintor, algum pobre pintamonos?... - -—Parece que desde certo tempo para cá vae adquiríndo talento, está para -fazer o retrato da senhora, é ella que o quer, é preciso ver se elle me -faz tambem o meu em quanto está de vez. E tu, Rosa, andas muito _chic_, -pareces a mulher d’um ourives! Continúas em casa do tal homem só? - -—Em casa do sr. Loursain, de certo minha rica; sou mais sua dama de -companhia que sua creada; não faz nada sem me ouvir, hoje fui eu que -appeteci as empadas, disse-me logo: «Vae encommendal-as...» - -—Ah! elle tracta-te por tu!... - -—Não... enganei-me... elle disse-me: «Vá, Rosa, encommende-as a seu -gosto, e traga tambem pasteis de nata.» - -—Caspité! és tractada como uma princeza! - -—O senhor não faz nada sem me consultar. Quando os seus amigos me fazem -zangar, digo-lhe a elle: «O seu amigo fulano deu-me hontem um beliscão em -certo sitio...» Oh! o tal amigo fica pronto, é recebido de tal maneira -que nunca mais volta. - -—Oh! isso é bem armado, é um meio para te veres livre das pessoas que te -aborrecem. - -—É uma astucia velha que nunca erra o seu effeito. Mas imagina que me -tinha vindo á idéa aquillo que me disseste o outro dia; uma d’estas -tardes, depois de jantar, á sobremesa, digo ao patrão, que estava mais -terno que de costume: «Senhor, se tem vontade de casar commigo, não se -constranja, eu não desejo outra coisa.» A isto o patrão desata a rir, -como um perdido! Fez-me zanga vel-o rir assim, e digo-lhe: «Então que -motivo ha para rir do que lhe proponho?» Elle ri ainda mais, e depois -responde-me: «Que diabo de idéa se te meteu na cabeça! e que tolice ires -pensar no casamento.» «Mas, senhor, tornei eu, não acho que o casamento -seja uma tolice.» «Pois olha que é, e bem grande; não, minha rica, não -casarei comtigo, não farei similhante disparate! mas ainda mesmo que -tivesse vontade de o fazer, não me seria isso possivel, pois que já sou -casado.» - -«Bem deves fazer idéa que fiquei embaçada ao ouvir isto «Como! pois o -senhor é casado?» exclamei eu «e sua mulher está viva?» «Sim Rosa, minha -mulher está viva, bem viva, e não creio que tenha vontade de morrer, -porque é muito mais moça do que eu.» «E então porque não está o senhor -com ella? para que vive sem mais nem mais como se fosse solteiro? É -enganar a gente; isso dá ás raparigas solteiras certas idéas a seu -respeito: póde a gente illudir-se com o senhor, pensando que é para bom -fim, e depois era uma vez!... Isso é desagradavel...» O patrão fez então -uma cara de mau humor, e respondeu-me: - -«—Não tenho que lhe dar satisfações; se me separei de minha mulher, é -porque provavelmente isso me conveiu, não é negocio da sua conta. De hoje -para o futuro, ha de fazer favor de me não tornar mais a falar a tal -respeito, porque isto desagrada-me.» - -«Ora, bem deves suppôr que não foi preciso dizer-m’o duas vezes; vi que -tinha ido longe de mais, e desde então não tenho falado mais em tal. -Mas é o mesmo, desejava bem conhecer a mulher do sr. Loursain, e saber o -motivo por que elle a deixou. - -—Ora! tem muito que saber! é que lhe fez falcatrua, e esse senhor não -gostou; ha homens tão ridiculos. Valha-me Deus! e eu sem ir buscar o -remedio á botica! Adeus, Rosa, até mais ver. - -—E o teu moço de quem gostavas tanto? - -—Ah! isso já acabou! agora é outro! eu nunca me prendo, gosto da -variedade. - -Quando a menina Adriana volta á presença de sua ama, esta ralha muito com -ella por se ter demorado tanto tempo fóra; a creadinha porém não falta a -responder-lhe: - -—Não foi por minha culpa, minha senhora, é que encontrei uma amiga, -uma patricia, que não via ha muito tempo, então estivemos a conversar, -perguntei-lhe pela familia... - -—Sempre desejava saber que interesse podia ter n’isso... - -—É que a Rosa tem um irmão que esteve quasi á morte por minha causa. - -—Por amor? - -—Não, minha senhora; mas querendo levar-me muito longe nos braços, á -força de pulso, ficou corcovado. - -—E o que faz a sua amiga? - -—Oh! tem um bello commodo, em casa d’um homem só, onde ella faz tudo -quanto quer; manda fazer empadas quando lhe dá na vontade... e pasteis de -nata, emfim, grandes banquetes. - -—É então rico, esse senhor? - -—Sim, minha senhora. Oh! parece que o sr. Loursain é riquissimo! - -Ao nome de Loursain, Ambrosina sente uma viva commoção; apressa-se porém -a dominal-a replicando: - -—Como se chama esse senhor em casa de quem está a sua amiga? - -—Loursain. A senhora conhece-o? - -—Não, parecia-me ter ouvido outro nome. E esse sujeito é... viuvo? - -—Quer dizer, vive como se o fosse; mas na realidade não o é. Tem ainda a -mulher viva. Eu soube tudo isto pela Rosa, de quem elle está loucamente -namorado, e com quem estimaria muito casar; mas elle disse-lhe em -confidencia: «Eu não posso casar comtigo, Rosa, e tenho muita pena -d’isso, porque sou casado e minha mulher ainda é viva, infelizmente; mas, -se ella morrer, podes estar descançada, tens a certeza de occupar o seu -logar... o teu futuro está seguro.» O que é pena, é que parece que a tal -senhora é muito mais moça que o marido; mas, emfim, em todas as edades se -morre, não é verdade, minha senhora? - -—Certamente. E o amo da sua amiga mora perto d’aqui? - -—Sim, minha senhora, na rua Béranger, aquella que faz continuação á -nossa. Parece que aquelle senhor tem uma bella casa, n’um segundo andar, -do lado da rua, e mobilada no grande _chic_. O quarto da Rosa é no mesmo -pavimento, o que é muito commodo, porque... a senhora bem entende... a -Rosa não m’o quiz confessar, mas é como se m’o tivesse dito, demais, ella -descuidou-se commigo... o amo trata-a por tu, e... - -—Basta, basta, não quero saber dos negocios da menina Rosa; mas, para a -outra vez, tracte de conversar menos tempo quando eu a mandar a algum -recado. - -Deixada só, Ambrosina fica por largo espaço engolphada nas suas -reflexões, das quaes sae por fim, dizendo de si para si: - -—Loursain mora perto de mim, e eu não desejo encontral-o, é preciso -mudar-me. - - - - -XI - -O vinho quinado - - -Um dia de manhã, Casimiro fica agradavelmente surprehendido ao receber -a visita do lojista em casa de quem expôz o seu quadrosinho, e que se -approxima d’elle dizendo: - -—Temos comprador para o seu quadro por quatrocentos e cincoenta francos, -quer dal-o? - -O joven pintor receia ter ouvido mal, abre muito os olhos para se -certificar de que é effectivamente o seu negociante de quadros que está -deante d’elle, e exclama: - -—Quatrocentos e cincoenta francos, diz o senhor? é pela minha vista de -Bougival que lhe offerecem esse dinheiro? - -—Sim, se lhe convem, é negocio feito, e pode logo passar por minha casa -para receber o dinheiro. - -—Se me convem! isso deixa-me encantado, enche-me de alegria, nunca teria -ousado pedir tanto. - -—Eu tinha pedido quinhentos francos, e estou certo de que, se o senhor -quizesse esperar, acabariamos por achar quem os desse. - -—Nada, não, não quero esperar, parece-me que fica muito bem pago, demais, -visto que se acha valor aos meus quadros, pintarei outros. - -—E fará muito bem. Trabalhe, sr. Casimiro, dê-se antes áquelle genero -que a outro qualquer. Creio que lhe será isso muito mais rendoso que -o retrato. O senhor é colorista, o que é um dom da natureza; conheço -pintores de talento que não teem o menor sentimento da côr; teem uma -figura para fazer, empregam a primeira coisa que acham no pincel; está -perfeitamente desenhada, é espirituosa de attitude, de maneira, de idéas. -Reina porém em tudo aquillo um tom pardo-escuro que tira ao quadro toda -a graça que deveria ter. A esses, não peçam nunca luz, claridade, sol; -é-lhes impossivel metterem d’isso nos seus quadros. Trabalhe, que nós o -auxiliaremos. - -Assim que o lojista se retira, Casimiro põe-se a pular e a dansar no -quarto. Não é a idéa de que vae receber quatrocentos e cincoenta francos -que o torna tão alegre; graças á generosidade da sua amante, tem tido -muitas vezes quantias maiores á sua disposição; mas é o pensamento de que -esse dinheiro é o fructo do seu trabalho, que elle soube ganhar por si -mesmo, e que quando o receber, poderá mettel-o na algibeira sem córar. - -—Nada faltaria agora á sua felicidade, se a sua vizinha do quinto andar -consentisse em deixal-o fazer-lhe o retrato; não conseguiu ainda vencer a -sua resistencia, e comtudo Rouflard disse-lhe no dia anterior: - -—Está-me parecendo que a menina Lisa não tardará a deixar-se retratar, -porque o medico que tracta da sua velha doente tem vindo vel-as estes -dias; receitou uma nova beberagem, creio que é vinho quinado. Seria -preciso que a boa da velha o tomasse todos os dias, e, com a breca! -aquelle vinho é caro; as garrafas são muito pequenas despejam-se em dois -goles. A pequena levanta-se ainda mais cedo, véla ainda até mais tarde -para arranjar o vinho quinado; mas creio que lhe custa a chegar. Não -faria ella cem vezes melhor em se deixar tomar por modelo? Ainda hontem -lh’o disse. Suba lá o senhor, é agora a occasião, eu conheço as mulheres, -tanto quanto a gente as pode conhecer; mas olhe, com ellas, o que é -preciso é aproveitar a occasião. - -Casimiro tracta logo de pôr em practica o conselho de Rouflard, e sobe -de novo a casa da menina Lisa. Todas as vezes que se dirige alli, sente -uma viva commoção e o seu coração bate mais apressado. Comtudo, tem dito -muitas vezes a si proprio que não devia pensar em fazer a côrte a Lisa; -que aquella pequena era honesta, e que da parte d’elle seria muito mal -feito procurar seduzil-a, perturbar-lhe o socego e fazer-lhe deixar a -verêda da honra, na qual, como diz o poeta: é difficil entrar uma vez -que se esteja fóra. - -Casimiro disse comsigo tudo isto e muitas outras coisas, o que não impede -que, ao olharem para a linda cara d’aquella menina, os seus olhos não -tenham uma expressão que não é de modo algum a da indifferença, e que a -sua voz se não faça mais suave e mais insinuante. - -Pela sua parte, Lisa sente-se inteiramente outra desde que travou -conhecimento com o seu vizinho do terceiro andar. Tem-se mostrado para -com ella tão delicado, e sobretudo tão respeitoso, que a rapariga -pergunta a si mesma por que receia conceder-lhe o favor que elle -solicita. Mas pergunta isto muitas vezes de mais; pensa em Casimiro -todo o dia, não pode já reprimir-se de o fazer, e, apezar de toda a -sua innocencia, uma donzella de dezoito annos adivinha perfeitamente -que é muito perigoso estar sempre a pensar n’um rapaz, occupar-se -constantemente d’elle; e, ainda que esse rapaz lhe não tenha dito uma -unica palavra de amor, ainda que não a veja senão deante de sua avó, a -donzella deve conservar-se acautelada contra o sentimento que se lhe -introduz na alma, e sobretudo não se expôr a amar alguem que não pensa -n’ella senão para lhe tirar o retrato. - -É com receio de tomar demasiado gosto em se achar só com o seu joven -vizinho, que Lisa recusa sempre deixar-se retratar por elle. - -Mas no meio de tudo isto, chegou aquella receita de quina em vinho de -Malaga. Os malditos medicos não se importam com as posses dos seus -doentes; receitam o que é favoravel ao restabelecimento da saude, e tanto -peior para o enfermo se não pode comprar o remedio; elles cumpriram a sua -missão. - -Lisa havia comprado uma garrafinha do vinho receitado; fizera-o beber -á sua velha doente, a quem isso havia dado grandes melhoras. Mas essa -garrafinha fôra bebida em sete dias, e ainda se não tinha comprado outra. - -Este maldito vinho quinado preoccupava agora Lisa quasi tanto como -Casimiro, e, como na vida todas as coisas têm o seu ricochete, ella não -podia deixar de dizer de si para para si: - -—Se eu me resolvesse a servir de modelo, bem depressa teria vinho quinado. - -Rouflard não se enganara pois nas suas conjecturas, e, com effeito, ao -vêr entrar Casimiro no seu aposente, Lisa experimenta um vivo sentimento -de prazer que ella dissimula o melhor que pode, cumprimentando o seu -vizinho com ar amavel e indicando-lhe uma cadeira, porque não pode largar -a obra que está a acabar. - -—Bons dias, minha vizinha, diz Casimiro; aqui tem um homem extremamente -feliz. - -—Realmente, estimo muito; o que lhe succedeu então para lhe causar tanta -alegria? - -O que me acconteceu? Ah! a menina não o comprehende talvez bem, porque é -preciso ser artista para conhecer estas alegrias! Imagine um auctor que -obtem o seu primeiro triumpho no theatro, o compositor que ouve cantar na -rua a musica que fez publicar, emfim o pintor que vende o seu primeiro -quadro, eis os homens mais felizes da terra! pois bem! eu sou d’esse -numero... acabo de vender o meu primeiro quadro. - -—O seu primeiro? como, pois ainda não tinha feito nenhum? - -Esta reflexão tão natural de Lisa faz córar Casimiro, que comprehende -que a sua joven vizinha deve perguntar lá de si para si em que tem elle -empregado o seu tempo, para não ter feito, na sua edade, senão um quadro. -O rapaz tracta de sair do embaraço, respondendo: - -—Não menina, é verdade; comecei muito tarde a pintar a paizagem, eu -preferi o retrato, agradava-me isso mais. - -—E agora renuncia o retrato para se dar á paizagem? - -—Oh! não! renunciar ao retrato! nunca! uma coisa não impede a outra! Mas -eu estava tão contente esta manhã com a venda do meu quadro, que não pude -resistir ao desejo de lhe dar parte do meu bom succedimento... e depois, -quando se está em maré de felicidade, dizem que sempre nos chegam muitas; -então, disse commigo: Vamos vêr a minha linda vizinha; quem sabe se ella -hoje quererá tambem consentir em deixar-se retratar, se não abrandarei a -sua resistencia!... - -—Isso fazia-o então ainda muito feliz, se eu lhe deixasse fazer o meu -retrato? - -—Ah! seria o auge da minha felicidade? Empregaria todos os meus cuidados, -todo o meu talento n’esse trabalho! e estou bem certo de que havia de ser -bem succedido, que faria uma cabeça lindissima. - -—Mas esse retrato... vendia-o depois? - -—Vender o seu retrato! oh! nunca, minha vizinha, nunca! conserval-o-hia -toda a minha vida... mas faria uma copia para lh’a offerecer, ou, se a -menina o preferisse, dar-lhe-hia o original e ficaria eu só com a copia. - -—Mas o que fará o senhor do meu retrato em sua casa! ha de incommodal-o... - -—Incommodar-me! pelo contrario, será o mais bello ornato do meu -_atelier_, olharei para elle todos os dias, não me cansarei nunca de o -contemplar. Ah! minha vizinha, consinta, por obsequio, diga que consente. - -Lisa ainda hesitava, porque os olhos de Casimiro tinham tomado uma -expressão que lhe causava uma commoção vivissima; mas n’este momento a -enferma, que estava adormecida, accorda, dizendo: - -—Lisa, dá-me uma gota d’esse vinho que me faz tanto bem. - -—Sim, avósinha, d’aqui a um instante, já o não ha em casa, eu o vou -buscar... - -Depois, voltando-se para Casimiro, Lisa diz-lhe em voz baixa: - -—Pois bem! consinto, começaremos ámanhã. - -—Oh! como a menina é cheia de bondade! e quão feliz eu sou! Corro então -á pharmacia a comprar-lhe o vinho quinado. - -—Não, isso não, irei eu mesma. - -—A menina não pode deixar a sua doente, permitta-me fazer-lhe este -pequeno serviço, eu sei que é vinho de Malaga. - -—Oh! sr. Casimiro... por quem é... - -—Deixe-me por minha vez ser-lhe agradavel, a menina consente em me servir -de modelo... estou tão contente! Corro a buscar o vinho, volto com elle -n’um momento. - -E sem attender mais á rapariga, Casimiro sae apressadamente; desce a -escada a quatro e quatro, por pouco que não deita ao chão o menino Proh -que procurava pôr-se a cavallo na balaustrada do patamar, passa como uma -frecha por deante do porteiro, corre á botica mais proxima, pede vinho -de Malaga quinado, compra tres garrafas, mette uma em cada um dos bolsos -lateraes, esconde a terceira debaixo de paletot e volta a casa de Lisa -com a mesma pressa com que de lá saíu. - -—Valha-me Deus!... então o senhor traz tres garrafas! exclama a rapariga -vendo Casimiro tiral-as dos bolsos. - -—Sim, minha vizinha, terá assim para muito tempo sem se incommodar. - -—Mas não era preciso, isto custa tres francos e dez soldos cada garrafa... - -—Com duas sessões ficam as nossas contas saldadas. - -—Ah! senhor, não é possivel! - -—Perdão, minha vizinha, juro-lhe que a um modelo como a menina não se -paga menos, e que lhe ficarei ainda muito obrigado. Mas tenha a bondade -de me dizer a que hora quer que eu venha para a sessão. - -—É sempre de manhã cedo que minha avó descança melhor e não tem precisão -de mim; se o não contrariasse vir ás oito horas... mas é talvez cedo de -mais para o senhor? - -—Não! pelo contrario, essa hora convem-me muito, trabalharemos das oito -ás dez, se me fizer esse obsequio, porque eu não a quero fatigar, e, -duas horas, isso é talvez já demasiado para a menina... - -—Oh! não, senhor! demais, o senhor disse-me que eu poderia coser ao mesmo -tempo... - -—Sim, sim, fará tudo quanto quizer; em eu podendo olhar para a menina, é -quanto basta. - -—Eu pensava que o modelo era tambem obrigado a olhar para o pintor! - -—Algumas vezes, de certo, é isso melhor; mas nós temos tempo, e quando -fôr absolutamente necessario, então a menina terá a bondade de levantar -por um momento os olhos de cima do seu trabalho. Assim, está ajustado, -ámanhã ás oito horas cá me tem a minha vizinha com toda a minha bagagem... - -—Estarei prompta. - -Casimiro retira-se, e Lisa approxima-se da velha doente, dizendo-lhe: - -—Avósinha, aqui está o vinho quinado! - - - - -XII - -A primeira sessão - - -Casimiro está encantado com o seu dia, e assim que sae de casa do seu -novo modelo, dirige-se á morada de Ambrosina, á qual quer participar a -venda do seu quadro. Não está bem certo se ella compartilhará da sua -alegria, mas estima muito que saiba que elle pelo seu trabalho pode emfim -prescindir dos soccorros de outrem. - -Emquanto ao que acaba de obter de Lisa, terá o cuidado de não dizer uma -unica palavra á sua amante, da qual conhece os excessivos zelos; bem pelo -contrario, espera que ella ignorará as suas relações com a sua joven -vizinha; por isso ficou muito contente quando esta lhe propoz dar-lhe -sessão ás oito horas da manhã; das oito ás dez não receia receber a -visita de Ambrosina, que se levanta habitualmente muito tarde, e se por -acaso ella viesse a sua casa antes que elle tivesse descido do quinto -andar, sempre poderia dizer que tinha ido almoçar ao café. - -Ao sair de casa, Casimiro encontra-se com Rouflard; o inquilino da -agua-furtada nota o ar alegre e triumphante do joven pintor, e exclama: - -—Aposto que se arranjou a coisa! - -—É verdade, Rouflard, sim, a menina Lisa consente em me deixar fazer o -estudo da sua cabeça, ah! estou muito contente! - -—Eu bem sabia que haviamos de acabar por isso, mas isto de mulheres, é -preciso sempre que se façam rogar um pouco. - -—Ámanhã pela manhã ás oito horas subo a casa d’ella, com a palheta e os -pinceis, e temos a primeira sessão... - -—Quando qualquer mulher dá uma sessão, dá ao depois tantas quantas se -querem... isso vae mesmo por si, é como o primeiro passo. - -—Mas, Rouflard, isto fica aqui entre nós; quando eu estiver trabalhando -com o senhor em minha casa, se vier aquella senhora, bem sabe, aquella -morena a quem trato simplesmente por Ambrosina... e que já aqui tem vindo -muitas vezes... - -—Sim, sim, a senhora primeira, a sultana favorita, percebo! - -—Pois bem! escuso de advertir-lhe que é preciso não dizer palavra ácerca -das minhas visitas a casa de Lisa e do retrato que vou fazer... - -—Ora essa! como, meu artista! é a mim que o senhor diz isso, a mim, um -veterano nas lides amorosas! parece-me todavia que não tenho ares de -galucho! eu, que ficaria afflicto se causasse o menor dissabor á minha -joven bemfeitora! - -—Tem razão, eu devia louvar-me no senhor. - -—Emquanto a Chausson, o meu antigo creado, elle não é de todo máu, se -quer eu lhe falarei. - -—Não, não é preciso, isso fica por minha conta... - -—Ah! é antes dos Prohs que se deve desconfiar; são uns tagarellas, uns -palradores, uns mexeriqueiros! que ficam encantados quando sabem o que -se passa em casa dos vizinhos, e acham meio de fazer d’um argueiro um -cavalleiro! - -—Terei cuidado de que elles não saibam nada das minhas visitas a casa de -Lisa, e vou tratar de acabar quanto antes o retrato da sr.ª Proh, para -que ella não venha mais a minha casa. - -—Ahi está um retrato que eu não queria ter nas minhas _inglezas_, a não -ser como laxante... - -—Rouflard, vendi a minha pequena paizagem, aqui tem, tome lá isto para se -divertir, sou hoje feliz, quero que toda a gente esteja satisfeita. - -—Isto é que é falar como Buckingam obrava, o senhor tinha nascido para -semear perolas no seu caminho e eu para as apanhar. - -Casimiro acha a sua amante acabando de arranjar-se e dispondo-se para ir -a sua casa. - -Até que emfim! é uma felicidade vel-o! exclama Ambrosina, o senhor vem -cada vez mais tarde; d’aqui a pouco, sem duvida, deixa de vir de todo. - -—Minha querida amiga, desculpe-me, tenho hoje tido muitas occupações. - -—Esteve a trabalhar com o borrachão do seu modelo... como é -interessante!... - -—Não, hoje não trabalhei com Rouflard; recebi a visita do logista que me -vende os quadros; dê-me os parabens, está vendida a minha paizagem. - -Ambrosina franze o sobr’olho e morde os beiços, respondendo ao mesmo -tempo: - -—Ah! está vendida a sua paizagem... - -—Sim, e muito bem vendida, por muito mais do que eu teria ousado pedir. - -—O senhor é demasiadamente modesto, e faz mal em ser assim; nas artes, -a modestia é uma tolice, porque é um merecimento que ninguem leva em -conta ao artista, e que muitas vezes o impede de chegar á celebridade. -Porquanto lhe pagaram o seu quadro? - -—Quatrocentos e cincoenta francos. - -—Ah! que miseria! e é isso que o senhor chama bem vendido! pensava que ia -dizer-me dois ou tres mil francos. - -—Ah! está zombando commigo! bem sabe que aquella pequena paizagem não -valia isso; para uma estreia é um preço muito bonito; isto anima-me, e -quero trabalhar de modo que possa vender mais caro os quadros que fizer. - -—Ah! o senhor tenciona fazer outros quadros de _genero_; então renuncia -ao retrato? Provavelmente não acabará o meu, pelo qual não mostrava -nenhum enthusiasmo. - -—Como é injusta! sou sempre eu que lhe peço para se pôr em attitude; mas -a senhora, em estando em posição um quarto de hora enfada-se, já não pode -estar quieta no mesmo sitio. - -—Ah! é que me faz mal aos nervos! Vamos, a sem razão está da minha parte, -convenho. D’aqui em deante serei mais razoavel, irei metter-me em sua -casa logo pela manhã, e não arredarei pé do seu _atelier_, assim, poderá -fazer-me estar em posição todo o tempo que quizer. - -D’esta vez, é Casimiro que morde os labios e franze ligeiramente as -sobrancelhas. É coisa para se notar que, n’um colloquio de duas pessoas, -fazem-se muitissimas vezes d’estas mudanças physionomicas, que dizem o -que a bocca não diz, ou que significam inteiramente o contrario do que -ella diz. Porque, por mais que se queira dissimular o pensamento, ha -sempre alguma coisa que transparece n’este semblante que a natureza nos -deu, e que é por vezes rebelde ás transformações que lhe queremos impôr. - -Ambrosina deseja ir passear ao campo. Casimiro accede a esse desejo com -alegria; como trouxe comsigo o seu livro de lembranças, tomará notas, -esboçará alguns pontos de vista. - -—Se nós fossemos á Suissa? diz a bella morena; é lá que o meu amigo -acharia vistas admiraveis, que poderia fazer ampla provisão de bosquejos -para os seus quadros de _genero_. - -Mas o joven pintor não está por forma alguma disposto a viajar. - -—Sem ir tão longe, diz elle, ha nos arredores de Paris sitios lindos, -vistas encantadoras; mas ninguem pensa em pintal-as, porque estão ás -portas de Paris, e não se liga merecimento senão ao que está longe de -nós. Eu, minha querida amiga, não vejo razão para se fazer pouco caso -d’uma coisa que nós podemos arranjar sem incommodo e sem despeza. Assim, -por exemplo, muito perto d’aqui, por detraz do forte de Romainville, -n’aquelle sitio que era n’outro tempo o bosque, ha outeiros d’onde a -vista é magnifica, tem a gente deante de si uma extensão immensa de -terreno; podem os olhos abranger mais de doze leguas em redor. Em baixo -fica Patim com os seus fornos de cal, que tornam a paizagem pittoresca; -depois está o canal que corta o caminho, e um pouco mais adiante S. -Diniz, Montmorency, Pierrefitte. Á esquerda vê-se Montmartre, o Monte -Valeriano, e Saint-Cloud, que se desenha no horizonte. E tudo isto -entremeado de bosquesinhos, de bonitas casas de campo, de fabricas. -Affianço-lhe que é um panorama admiravel. Quer ir vel-o? - -A sr.ª Montémolly deixa-se conduzir ao que era n’outro tempo o bosque de -Romainville, e entretem-se a colher algumas flores campestres, emquanto -Casimiro está sentado na relva esboçando á pressa algumas vistas; mas as -flôres são raras no terreno barrento, que é bom para fabricar louça, mas -não para fazer brotar as rosas. Demais, Ambrosina é sempre a mulher da -moda, e portanto leva d’alli o seu companheiro dizendo-lhe: - -—Meu riquinho, por mais que o senhor diga, as suas lindas vistas de -Romainville não valem a cascata e o lago do Bosque de Bolonha. - -—Para a senhora, comprehendo isso; perdõe-me pois, nunca mais a trarei -para este lado, é preciso ser pintor para o apreciar. - -—Meu amigo, é mister procurarmos a nossa _victoria_, que não poude -seguir-nos n’estes caminhos cheios de barrancos, onde a gente a cada -instante corre risco de cair n’um buraco, ou de se enterrar na areia! -Vamos jantar ao _Ledoyen_ nos Campos-Elyseos, isso ha de mudar-nos -completamente... - -—Ahi está o que são as mulheres! e falava a senhora em ir á Suissa! lá é -que ha caminhos escarpados, difficeis de trepar! - -—Sim, mas está a gente na Suissa, inscreve o seu nome no registo das -estalagens; e vê-se alli que os srs. Fulanos de tal passaram por aquelle -sitio, e quizeram trepar o monte Righi. - -Este dia passa mui lentamente para o joven pintor, que almeja pelo -momento em que poderá fazer o retrato de Lisa. E, posto que faça todo o -possivel para ser com Ambrosina tão amavel, tão alegre como de costume, -tem por vezes momentos de preoccupação, ou de distracção, que não escapam -á sua zelosa amante; esta diz-lhe então de subito: - -—Em que é que está pensando? - -—Eu... em nada... estou-a ouvindo. - -—Está-me ouvindo? O que é que eu acabo de dizer? - -—O que acaba de dizer-me? já não sei o que foi, era então alguma coisa -muito interessante? - -—Bem vê que não me estava ouvindo. Ah! olhe, Casimiro, eu não sei o que -lhe aconteceu, mas, com toda a certeza, o senhor tem alguma coisa! anda -pensativo, responde fóra de proposito ao que lhe digo. Oh! n’isto andam -amoricos. - -—É que vendi o meu quadro, e ando a pensar n’aquelle que hei de fazer -agora, aqui está o que é. - -—O senhor não fala verdade! não é n’isso que pensa. Oh! eu conheço bem o -mundo! não me enganam assim! - -—Tanto peior para a senhora, porque as pessoas mais felizes são aquellas -que se deixam enganar mais facilmente. - -—É possivel, mas não quero essa felicidade. - -Emfim, passa-se o dia e a noite tambem; Casimiro levanta-se muito cedo, -escolhe a téla, arranja a palheta, e prepara um cavallete que já lhe não -servia e que elle tencionava deixar em casa da sua vizinha, para não ter -o trabalho de o levar e trazer todos os dias. Olha a cada instante para o -relogio, receia ser indiscreto chegando antes da hora que se ajustou. - -Dão oito horas: Casimiro vae abrir a porta da escada, certifica-se de que -não está ainda alli ninguem, depois vae buscar todos os objectos de que -precisa, e sobe lentamente os dois andares. - -A porta de Lisa tem a chave na fechadura; mas vem ella pessoalmente -abril-a, porque ouviu subir e desconfiou logo que é a pessoa por quem -espera. - -—Oh! meu Deus! como o senhor vem carregado! exclama Lisa querendo -desembaraçar Casimiro do seu cavallete. - -—Tudo isto é muito leve, menina, não se incommode. Posso entrar? - -—De certo; minha avó está a dormir, creio eu, mas, ainda mesmo que -acordasse, eu disse-lhe hontem que o senhor havia de vir aqui fazer o meu -retrato, e ella ficou muito contente. Disse-me assim: «Has de collocal-o -deante de mim para que eu te veja sempre minha filha.» Ah! é que ella -quer-me muito, a minha avósinha. - -—Bem vê pois a minha querida vizinha que, consentindo em se deixar -retratar, já fez duas pessoas felizes! - -—É verdade. Se eu soubesse que era assim, teria accedido mais cedo. Creio -que a avósinha está descançando; não faremos bulha. - -—Eu não tenho necessidade nenhuma de fazer bulha quando trabalho. Olhe, -aqui tem o cavallete armado, estou ás suas ordens. - -—Mas o senhor é que manda; como quer que eu me colloque? - -—Como costuma estar; sente-se e pegue no seu trabalho. - -—O quê! devéras posso trabalhar! - -—Sem duvida, principalmente durante a primeira sessão, em que eu não -copio senão o conjuncto da cabeça. - -—E não tenho precisão de olhar para o senhor? - -—Sim, algumas vezes, mas não sempre. - -Põem-se ambos ao trabalho. Lisa faz bainhas, o que não obriga a muita -attenção. De vez em quando Casimiro diz-lhe: - -—Olhe para mim... - -O que ella se apressa a fazer; mas baixa bem depressa os olhos, porque -encontra os do joven pintor que lhe diz então: - -—Mas a menina não olha par mim bastante tempo, mal pude apanhar-lhe a -_nuance_ dos olhos. - -—É que o senhor encara-me tanto, que me intimida; isso perturba-me. - -—É preciso que eu olhe para a menina com attenção para reproduzir as suas -feições, isso não deve intinmidar-a; não veja em mim senão um artista, ou -antes um operario que faz o seu officio, e isso não a perturbará. - -—Ah! mas o senhor não é um operario! - -—Ora adeus, minha vizinha, todos nós o somos, cada um no seu genero; -pois quem trabalha para viver não é operario? Ha porém, dirá a menina, -profissões que exigem mais estudos, mais intelligencia que outras; mas -esteja persuadida de que o poeta ou o escriptor que trabalha com o seu -pensamento, que tira do cerebro os seus materiaes, tem ás vezes muito -mais fadiga, muito maior lida em fazer a sua obra do que o marceneiro em -aplainar as suas tábuas. Olhe para mim por um pouco. - -Lisa ergue os olhos, e d’esta vez torna a baixal-os menos depressa -encontrando os de Casimiro. Este gosta de fazer conversar o seu modelo, -o que não receiam fazer os pintores de grande talento, porque apanham -melhor a expressão da nossa physionomia emquanto falamos, do que o -fazem aquelles que nos prohibem de nos mexermos, o que nos dá então um -ar aborrecido, ou contrafeito, ou affectado; eu poderia mesmo dizer -apalermado. - -Lisa estima bastante poder conversar; em vida da sua ama, quando esta -tinha uma venda de leite e fazia muito bom negocio, levou tres vezes a -pequena ao theatro, e esta lembra-se sempre d’isso, porque gostou muito -do espectaculo. Este divertimento e a leitura são os unicos que ella -deseja; a dansa, os passeios, as festas campestres teem para ella poucos -attractivos. Antes de cair doente, a boa da avó queria que a sua Lisa -procurasse estas distracções; mas, em vez de ir vêr esses bailes que -ha no termo de Paris com o falso nome de campestres, Lisa levava a sua -companheira para um passeio pouco frequentado, para uma vereda solitaria, -coberta de sombra, e alli, sentando-se na relva, lia um romance que -tinha alugado economizando alguns soldos na despeza do sustento. Lia em -voz alta; a velha adormecia, mas Lisa continuava a lêr, e ambas estavam -contentes. - -—Se a minha vizinha gosta de lêr, diz Casimiro, posso emprestar-lhe -alguns livros; tenho todos os romances de Alexandre Dumas, e estou bem -certo de que lhe hão de agradar muito. - -—Ah! agradeço a sua bondade; mas, desde que a avó caíu doente, não tenho -já tempo de lêr, vale mais trabalhar. - -—É mister todavia ter alguns instantes de repouso. - -—O trabalho que eu faço não cansa. - -Na primeira sessão, Casimiro não quer demorar muito tempo o seu modelo; -levanta-se pois, dizendo: - -—Basta por hoje; obrigado, minha vizinha. - -—Ah! está acabado? - -—Acabado por esta sessão; permitte-me que deixe aqui o cavallete? - -—Oh! certamente. Ah! leva o quadro; mas o senhor não precisa d’elle sem -mim! - -—Perdão, ha coisas em que posso trabalhar sem ter o modelo á vista. - -—Deixa-me ver? - -—Ainda não, peço-lhe eu. Está muito pouco adeantado; em tres ou quatro -sessões, poderá ver á sua vontade. São dez horas, vou almoçar. - -—Já dez horas! é singular como o tempo passa depressa quando se está -servindo de modelo. O senhor virá ámanhã? - -—De certo, se isto não a contraria. - -—Oh! de modo algum. - -A pequena ia dizer: _pelo contrario_, mas parou fazendo-se muito córada, -e limita-se a murmurar: - -—Então, até ámanhã. - -No dia seguinte, Casimiro não falta a dirigir-se a casa do seu encantador -modelo, que o vê agora chegar com prazer, e, sem ser _coquette_, tem -todavia mais esmero no seu penteado, no arranjo dos seus cabellos; -o joven pintor repara n’isto, não diz nada, mas fica secretamente -lisonjeado, porque ha uma multidão de pequenas coisas que fazem presagiar -as grandes. - -Trabalha-se, e conversa-se a meia voz; é quasi sempre de manhã que a avó -descança melhor. Lisa levanta mais vezes os olhos para o seu pintor e -sustenta um pouco melhor o fogo dos seus olhares; algumas vezes, comtudo, -um vivo rubor lhe sobe á cara, emquanto Casimiro murmura: - -—Ah! como a menina se colloca bem! que lindo retrato eu vou fazer, sim, -ha de ficar muito parecido; tenho as suas feições tão bem gravadas na -memoria! - -—Então, já não é preciso que eu olhe para o senhor? - -—Oh! sim! sim! eu nunca a vejo bastante. - -—Que felicidade saber pintar! - -—Sim, tambem acho isso agora, e ainda ha pouco tempo nem o suspeitava! -Ah! minha vizinha, saiba que se eu chegar a adquirir algum talento, é á -menina que o deverei. - -—A mim! ora essa! não foi olhando para mim que o senhor fez essa linda -paizagem que vendeu. - -—Não, mas foi vendo-a trabalhar sem descanço, n’este modesto aposento, -sabendo que achava meio de prover ás necessidades de sua velha avô -paralytica, que eu tive vergonha da minha existencia, da minha preguiça, -que comprehendi que havia de lamentar um dia o ter empregado tão mal a -minha mocidade e emfim que tomei a resolução de mudar de vida. Bem vê -pois que, se eu obtiver um dia talento, é á menina que o deverei. - -Lisa não responde nada, porque está demasiadamente commovida, mas o seu -olhar fita-se em Casimiro, e tem uma expressão tão terna, tão meiga, que -d’esta vez é o pintor que deixa de trabalhar. - -Estes colloquios confidenciaes renovam-se todos os dias e tornam mais -intimas as relações que existem entre o pintor e o seu modelo. Pouco a -pouco, uma affectuosa confiança substitue a fria polidez. Conversam mais, -fazem as sessões maiores, separam-se a custo, porque teem sempre alguma -coisa para se dizerem; acham-se tão bem juntos, que Lisa impacienta-se -e abre a porta quando Casimiro tarda alguns minutos. E, comtudo, nunca -uma palavra de amor foi pronunciada n’estas sessões de todas as manhãs; -mas ha coisas que a gente não tem precisão de dizer para se fazer -comprehender, e o amor é uma d’essas coisas. - -O retrato adeantava-se; mas, como Casimiro queria fazer durar muito as -sessões, achava sempre alguma coisa para pintar de novo, para retocar. -Lisa não se queixava d’isso, pelo contrario, quando o seu pintor dizia: -«Basta por hoje,» acontecia-lhe ás vezes exclamar: - -—Já! ah! parece-me que não trabalhámos muito esta manhã! - -Então Casimiro sorria-se, e continuavam a conversar. A rapariga examinára -o retrato, e pulára de prazer vendo-se tão bonita. Tinha exclamado: - -—Ah! o senhor lisonjeia-me; eu não sou assim!... - -Não se atrevera a dizer: «Tão bonita!» Mas as mulheres param muitas vezes -no momento de dizerem o verdadeiro fundo do seu pensamento. - - - - -XIII - -Um rapazito endiabrado - - -O retrato de Lisa fazia muitas vezes descuidar o de Ambrosina, e não era -só em pintura que esta dama notava que se descuidavam d’ella. Casimiro ia -a sua casa cada dia mais tarde, e, quando ella lhe lançava isso em rosto, -elle achava por desculpa a nova paizagem que estava fazendo, as sessões -que dava á sr.ª Proh ou a Rouflard e Ambrosina exclamava: - -—Mas não é possivel que o senhor não tenha acabado essas cabeças! E -quando eu lhe peço para termos sessão, diz-me que não me quer fatigar. O -senhor tem alguns amoricos, alguma nova ligação que arranjou; mas tome -cuidado! eu o saberei. - -Um dia pela manhã, a sr.ª Montémolly, sem ter prevenido o amante da -sua visita, levanta-se muito mais cedo do que costuma, faz-se vestir á -pressa por Adriana, e chega a casa de Casimiro pelas dez horas. Perguntou -ao porteiro se o rapaz tinha saído; Chausson respondeu que o não vira -descer. Ella sobe os tres andares, vê a chave na porta da habitação do -pintor, e entra sem bater, sem tocar a campainha, dizendo comsigo: - -—Vou surprehendel-o e saber emfim em que trabalha tão assiduamente. - -Ambrosina entra na saleta que serve de _atelier_ a Casimiro, e não acha -alli senão Rouflard, que está ensaiando posições deante d’um espelho. - -—O sr. Casimiro não está aqui? diz Ambrosina, correndo os olhos pelo -_atelier_. - -Rouflard, que reconheceu a dama e adivinha a situação, apressa-se a -cortejar profundamente, respondendo: - -—Não, minha senhora, o sr. Dernold saíu. - -Apezar d’esta resposta, Ambrosina vae vêr ao quarto da cama, depois -volta, dizendo: - -—É verdade, não está, effectivamente. - -—A senhora verificou que eu não menti, murmura Rouflard com um sorriso -ligeiramente ironico. - -—Mas onde está? voltará breve? - -—Oh! não creio, minha senhora; o sr. Dernold disse: «Vou almoçar, e -depois irei dar uma volta pelo Louvre, onde tenho que fazer uns estudos.» - -—É singular, o porteiro disse-me que Casimiro não tinha saído. - -—Oh! minha senhora! esse miseravel Chausson nunca vê o que se passa; -fazia-me muitas d’essas quando era meu creado. Eu dizia-lhe: «Põe-te de -sentinella, não deixes entrar os meus crédores, não quero receber senão -senhoras...» e o imbecil fazia exactamente o contrario. - -—Mas o que faz o senhor aqui? - -—Eu, minha senhora, tinha vindo agradecer ao meu artista, que teve a -bondade de se occupar de mim, e de me arranjar collocação em casa d’um -pintor seu amigo, um pintor de historia; devo fazer um romano. E o sr. -Casimiro disse-me: «Arranje um penteado á romana, ponha-se deante do -espelho, ate uma fita vermelha á roda da cabeça, eu lhe direi depois se -tem um falso ar de Romulo...» porque parece que é um Romulo que devo -representar. - -Ambrosina não parece dar muito credito a esta historia romana. Passeia -pelo _atelier_, pára por momentos, parece reflectir, e diz: - -—Não sei se devo esperar por elle. - -—A senhora tem para isso todo o direito, certamente; mas temo que espere -por muito tempo. Quando um pintor vae ao Louvre, nunca se sabe quando de -lá sairá. - -—O sr. Rouflard vem aqui muito amiude? - -—Sim, minha senhora, estou sempre ás ordens do meu artista quando elle -tem precisão de mim. - -—E vê vir aqui muitas mulheres? não me engane... - -[Illustration: Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...] - -—Minha senhora, posso affiançar-lhe que nunca vi aqui senão a senhora e -a vizinha alli defronte; mas áquella não chamo eu uma mulher, o marido -alcunhou-a de girafa, e fez muito bem. - -—Vamos, acredito no senhor, e vou-me embora, terá a bondade de lhe dizer -que vim aqui... e que o espero em minha casa, não é verdade? - -—Executarei as suas ordens, minha senhora. - -Ambrosina retira-se, e Rouflard acompanha-a até ao patamar; mas aqui -encontram-se de cara com a sr.ª Proh e o filho, o joven Fonfonso, que -teima em querer montar-se na balaustrada. A amante de Casimiro tinha -encontrado duas vezes em casa d’elle esta senhora estando em sessão para -o retrato, conhecem-se pois um pouco. Cumprimemtam-se e trocam algumas -phrases banaes. - -—Minha senhora, tenho a honra de a cumprimentar; a sua saude parece-me -sempre perfeita?... - -—É? optima, muito agradecida, minha senhora. Ia a casa do sr. Casimiro? - -—Não, minha senhora, n’este momento não ia lá; vou comprar cabeça de -vitella para meu marido, que não gosta d’outra coisa para o almoço. É um -habito em que se pôz. Oh! meu marido é devéras insupportavel com a sua -cabeça de vitella! A senhora vem de casa do meu vizinho, do sr. Casimiro? - -—Sim, tencionava dar-lhe sessão para o meu retrato. - -—O meu está acabado, perfeitamente acabado; estou muito satisfeita com -elle, ainda que toda a gente sustenta que me pareço com a sr.ª Saqui, que -Deus haja, nos seus bons tempos; parece que era uma bonita mulher. E a -senhora já acabou a sua sessão? - -—Hoje não poude ser, o sr. Casimiro não está em casa, isto contraria-me, -porque tinha sido hoje mais madrugadora do que costumo ser. - -—Ah! o meu vizinho já saiu... - -—Não! não! não! não saiu. Oh! oh! oh! hi! hi! hi! grita o Fonfonsinho, -pendurando-se da balaustrada. - -—Fonfonso, não te balouces assim da balaustrada, que podes cair. - -—Mas quero eu balouçar-me! - -—Este pequeno é incorrigivel! - -—Perdão, minha senhora, mas parece-me que seu filho disse que o sr. -Casimiro não tinha saído. - -—O pequeno sabe lá o que diz, minha senhora! - -—Sim, sim, eu bem sei onde está o pintor, onde elle vae todas as manhãs... - -—Aonde vae todas as manhãs, mas então, Fonfonso, bem vês que o sr. -Casimiro saiu. - -—Não, porque elle vae lá acima, a casa da menina Lisa, para onde levou o -cavallete e as tintas para estar a pintar como em sua casa. Hi! hi! hi! -oh! oh! oh! - -Ambrosina muda de côr, e a sr.ª Proh escancara os olhos, exclamando: - -—O quê! o meu vizinho vae pintar em casa da pequena do quinto andar! -palavra de honra, é a primeira vez que tal sei; mas este pequeno é -extraordinario, minha senhora, sabe tudo, vê tudo o que se passa, não lhe -escapa nada! - -—Quem será essa menina Lisa que recebe o sr. Casimiro? - -—É uma rapariga que vive com sua avó; a pobre velha está doente, meio -paralytica; Lisa trabalha para a sustentar. Oh! é uma donzella honesta, -muito capaz... pelo menos assim o creio. - -—É bonita? - -—Hum? bem sabe que isso depende do gosto, uma carinha que não é de todo -desengraçada... - -—Não! não! não! Rouflard diz que a menina Lisa é um anjo. Oh! oh! oh! ah! -ah! ah! - -—Ah! o Rouflard conhece-a, perdão, minha senhora, mas como é -absolutamente preciso que eu fale ao Casimiro, tomo a liberdade de o ir -procurar a casa d’essa menina. Não me disse que é no quinto andar? - -—Sim, a porta á direita... - -—A chave está sempre na fechadura. Hu! hu! hu!... - -Ambrosina não quer ouvir mais, e galga os andares como um valente soldado -sobe ao assalto. Chega acima n’um instante; acha effectivamente a chave -na porta á direita, abre de repente, e dá com a menina Lisa sentada -defronte de Casimiro, com a sua costura na mão, mas sem trabalhar; pela -sua parte, o joven pintor está ao seu cavallete, com a palheta e o pincel -nas mãos, mas sem pintar. Á vista d’esta pessoa que abriu a porta e se -conserva immovel á entrada do quarto, o artista e o seu modelo ficam -espantados. Mas Casimiro é o mais impressionado, porque Lisa recobra logo -a sua placidez e diz a Ambrosina: - -—É sem duvida a mim que a senhora procura, e é para me dar alguma obra a -fazer? tenha a bondade de entrar... - -—Não, responde Ambrosina com um tom arrogante, não é a menina quem eu -procuro, não é pela menina que estou aqui, é este senhor quem venho -procurar, este senhor que já não tem um momento para me dedicar, que não -acaba o meu retrato, porque está fazendo o da menina. Aqui está então a -causa de todas as suas mentiras, da sua mudança de procedimento; eu bem -sabia que n’isto andavam amoricos! é para estar com esta menina que já -não tem tempo de me ir vêr. Ah! como os homens são falsos! - -A voz da mulher ciumenta torna-se estrepitosa, os seus olhares lançam -chispas. Lisa está toda a tremer, grossas lagrimas lhe obscurecem os -olhos, depois uma voz tremula e quebrada sae do leito, e diz: - -—Lisa! o que é isso? pareceu-me ouvir gritar; estás altercando com alguem? - -—Não, avósinha, não, não é nada... - -E a donzella deita para Ambrosina uns olhares supplicantes, como para lhe -dizer: - -—Por quem é, não fale tão alto! - -Mas já Casimiro se tem levantado, pegando na palheta, no quadro e nos -pinceis, e dirige-se para a porta dizendo á sr.ª Montémolly: - -—Faça favor de sair commigo, minha senhora, para pouparmos a esta menina -uma bulha e uma scena pouco decorosa, faço isto, não pela senhora, mas -em attenção a ella. Menina Lisa, desculpe-me de ter sido a causa d’este -barulho, que acordou a sua avó, e pode ficar certa de que não tornará a -acontecer similhante coisa. - -Casimiro sae immediatamente para o patamar; Ambrosina, furiosa de ciumes, -hesita em saír, e olha para Lisa, que parece sempre pedir-lhe que se -cale, mostrando-lhe o leito da enferma. A zelosa dama decide-se emfim, -sae do quarto, depois de ter lançado sobre a rapariga um olhar ameaçador, -depois desce atraz de Casimiro, que entra para sua casa. Ella entra -tambem, e deita um olhar furioso sobre Rouflard, que se afasta encolhendo -os hombros e olha para o pintor como para lhe dizer: - -—Não é culpa minha; o senhor é que não teve a prudencia necessaria. - -Ambrosina entra no _atelier_, e atira comsigo para uma poltrona, -exclamando: - -—Ha muito tempo que duram estes amores, senhor, e que esta rapariga é sua -amante? - -Casimiro, que recobrou todo o seu socego, põe-se a trabalhar na sua -obrasinha, e responde: - -—Minha senhora, o ciume cega-a e faz-lhe dizer coisas indignas d’uma -mulher que se preza. Estou fazendo o retrato d’uma menina que mora no meu -predio; parece-me que isto é uma coisa que me é permittida, pois que o -meu officio é tirar retratos. Achei alli uma cabeça encantadora, senti -o desejo de a reproduzir na tela, tudo isto é muito natural. Propuz á -menina Lisa que me servisse de modelo; ella a principio recusou-se por -muito tempo, porque não quer deixar a avó um unico instante. Eu disse-lhe -que iria trabalhar em sua casa, e ella recusava-se ainda; mas ganha -apenas com que prover á sua existencia, e a doença de sua avó exige por -vezes gastos inesperados; fiz comprehender a esta menina que, consentindo -em me servir de modelo melhoraria a sua situação, e ella finalmente -cedeu. A senhora pergunta-me desde quando sou amante d’essa pobre menina. -Ah! se a conhecesse, não teria similhante pensamento! ella é recatada, -honesta, não pensa senão no seu trabalho, em alliviar e consolar a sua -velha doente, e eu, deante d’um procedimento tão digno, tão puro, -ter-me-hia envergonhado de lhe dirigir uma unica palavra de amor. - -A sr.ª Montémolly, que tem escutado tudo isto com impaciencia batendo -muitas vezes com o pé no sobrado, assim que Casimiro acabou de falar, -exclama: - -—O senhor pensa que vou dar credito ás suas historias, aos seus contos! -ao que parece, tem-me por tola! O senhor não tem dito uma palavra de amor -a essa rapariga? O que estava então a fazer quando eu entrei? não estavam -em atitude de quem trabalha, nem o senhor nem o seu modelo, olhavam um -para o outro muito attentos, como se quizessem comer-se com os olhos; não -ha necessidade de se falar de amor, quando se olha assim para alguem; os -olhos dizem o bastante! e se o senhor não tivesse pensado em vir a ser -amante d’essa rapariga, acaso teria feito um mysterio d’esse retrato, das -suas idas ao quinto andar? E que tenciona então fazer do retrato d’essa -menina? - -—É um estudo, pol-o-hei no meu _atelier_. - -—Pois saiba que o hei-de de fazer em tiras! E esse miseravel Rouflard, a -quem o senhor tinha ensinado o recado, e que me disse que tinha ido ao -Louvre! Estavam todos combinados para zombarem de mim!... - -—Eu não ensinei recado nenhum a Rouflard, elle disse-lhe o que quiz. - -—Bom! basta! para que não torne mais a acontecer similhante coisa, o -senhor vai já deixar esta casa e não terá o capricho de subir todas as -manhãs ao quinto andar; venha commigo é um momento emquanto lhe arranjo -uma casa decente; mandarei buscar os seus moveis. - -Casimiro encolhe os hombros, e continua a pintar dizendo: - -—A senhora está doida! - -—Como é que o senhor disse? - -—Que a senhora não tem senso commum! e que eu não desejo mudar-me... - -—Não quer mudar-se para não deixar a rapariga da agua-furtada? - -—A rapariga da agua-furtada não entra para nada na minha resolução; não -quero deixar esta casa, porque não quero fazer as suas vontades, porque -estou cansado de ser escravo, e porque é tempo que isto acabe. - -—Ah! ahi está aonde o senhor queria chegar; é um rompimento que me -propõe!... - -—Será um rompimento se a senhora quizer, mas repito-lhe que não me quero -submetter mais a todos os seus caprichos, e que me não mudarei. - -—Casimiro! tome cuidado, se fica n’esta casa, não lh’o perdoarei... - -—Hei de ficar. - -—E é a essa delambida que o senhor me sacrifica! Oh! é indigno! é infame! - -—Nada de palavrões, minha senhora, bem sabe que commigo perdem o seu -effeito; eu não a sacrifico a ninguem. Digo-lhe que não quero ser mais -seu escravo, que quero ser senhor de mim, se isto lhe não convem, tanto -peior! - -—É porque já me não ama que o senhor me fala assim! - -—Olhe, Ambrosina, seja franca, se eu fizesse o que me ordena, havia de -desprezar-me e teria razão. - -—Oh! o senhor é um traidor, tem zombado commigo, mas não quero continuar -a ser enganada! depois de tudo quanto eu tenho feito por sua causa... - -—Ah! eu estava á espera d’essa phrase! teria faltado á situação! -Effectivamente a senhora tem feito muito por mim, eu não me esqueço, -permitta-me sómente dizer-lhe que era sempre contra a minha vontade; -que ha muito tempo que eu me queria dar ao trabalho e que a senhora -incessantemente me impedia de o fazer, porque queria ter-me -constantemente nas suas rêdes, impedir-me de ser livre emfim e de poder -tomar qualquer resolução sem a consultar. Se a fortuna um dia me fôr -favoravel, creia, minha senhora, que terei muito prazer em pagar tudo -quanto lhe devo! - -—Casimiro, esqueça-se do que eu acabo de dizer, o ciume faz-me perder a -cabeça, vamos, ceda-me ainda por esta vez, peço-lhe eu, venha commigo, -deixe esta casa... e não lhe falarei mais n’essa menina da agua-furtada... - -—As suas instancias são inuteis, a minha resolução é inabalavel, não saio -d’aqui. - -Ambrosina ergue-se furiosa, dá alguns passos pelo quarto, pára deante de -Casimiro, e exclama: - -—Então, senhor, está tudo acabado entre nós! - -—Como a senhora quizer. - -—Sim, senhor, nunca mais na minha vida o tornarei a vêr!... - -Depois de haver dito estas palavras, Ambrosina sae arrebatadamente, -fechando a porta com estrondo, desce a escada sem parar, depois atravessa -o pateo, passa por deante do porteiro que lhe varre para cima, e dá -alguns passos na rua. Mas alli, pára, volta-se, olha para a casa d’onde -acaba de sair, e vê um rotulo pendurado por cima da porta. Entra -immediatamente na casa e diz ao porteiro, que está ainda no pateo: - -—Tem cá alguns quartos para arrendar? vi um rotulo. - -—Sim, minha senhora, um magnifico primeiro andar, com sete casas, todo -forrado de novo, e uma bella adega! - -—Quando está desoccupado? - -—D’aqui a dez dias, minha senhora... - -—Fica por minha conta... - -—O preço é de dois mil e duzentos francos. - -—Muito bem, arrendo-o eu. - -—Mas a senhora não o viu, se quer subir, os inquilinos saíram agora -mesmo... - -—Não é preciso, repito-lhe que eu arrendo a casa. Tome, aqui tem o -signal... - -E Ambrosina mette uma moeda de vinte francos na mão de Chausson, -accrescentando: - -—Tome; mas ficar-lhe-hei muito agradecida se não disser ao sr. Casimiro -que fui eu que arrendei a casa, aqui tem a minha morada e o meu nome... -se quizer ir tirar informações... - -—Oh! minha senhora, eu bem vejo que não é preciso, quando se tem maneiras -como a senhora; demais, a senhora é conhecida do sr. Casimiro! - -—Tome; aqui tem mais vinte francos, seja discreto, que não ficarei -sómente n’isto... - -—Estarei ás ordens da senhora tanto de dia como de noite, sempre -prompto!... - -Ambrosina retira-se, e Chausson admira as duas moedas de vinte francos, -dizendo comsigo: - -—Isto é que é a nata das inquilinas! logo eu estava indo tirar -informações!... - - - - -XIV - -A senhora do primeiro andar - - -Dez minutos depois da saída de Ambrosina, subia Casimiro ao quinto andar -e entrava em casa da sua joven vizinha. - -Lisa está trabalhando, mas grossas lagrimas lhe rebentam dos olhos e por -momentos caem sobre a sua costura. O seu lindo rosto parece ainda mais -seductor sob esta nuvem de tristeza espalhada por todas as suas feições. -Ao vêr Casimiro, o seu primeiro movimento é limpar os olhos e esforçar-se -por sorrir. - -Mas o rapaz, que já lhe viu as lagrimas, apressa-se a correr para ella, -exclamando: - -—Lisa, está chorando, e sou eu a causa da sua tristeza. Ah! perdôe-me, se -soubesse quanto estou afflicto pelo que succedeu. - -—Oh! eu não lhe quero mal, não chorava... - -—Chorava, sim, em vão procura occultar-m’o. - -—É sómente, porque sinto haver sido a causa de que aquella senhora -ralhasse com o sr. Casimiro; ella parecia muito encolerisada, disse que o -senhor já não cuida do seu retrato e que é por culpa minha. Bem vê que -fiz mal em consentir que fizesse o meu; mas está tudo acabado; não lhe -servirei mais de modelo; poderá assim retratar aquella senhora; não lhe -farei mais perder o seu tempo... - -—Não diga isso, Lisa, continuarei a retratal-a como de costume... - -—Oh! não, aquella senhora não quer; se ella voltasse e o encontrasse -aqui, teriamos nova scena, isto assusta minha avó, e eu não quero... - -—Aquella senhora não voltará aqui; demais, não tem o direito de me -impedir de fazer o que me agrada; conheço-a ha muito tempo, ella estava -habituada a dar-me conselhos e eu ouvia-a como se ouve um antigo -conhecimento... - -—Aquella senhora é mais velha que o sr. Casimiro?... - -—Sim, é por isso que eu lhe mostrava uma certa deferencia. Mas não é -razão para que ella me tracte como uma creança... - -—E é bem bonita, aquella senhora, mas deitava-me uns olhos cheios de -odio, que me faziam muita pena... - -—Não pense mais n’ella, não tornará a vel-a. - -—Parece-me que teria muito gosto em a ver, se ella me não tivesse deitado -uns olhos tão terriveis. Sr. Casimiro, é preciso levar o seu cavallete e -não vir mais aqui pintar... - -—Minha querida vizinha, espero que terá a bondade de me dar ainda as -sessões de que necessito, não ha de querer que eu deixe um trabalho -imperfeito; a sua cabeça é um estudo que me fará muita honra, assim o -espero; permitta-me acabal-o com cuidado e satisfazer-lhe o que lhe devo -por todas as sessões que me tem dado... - -—Mas o senhor não me deve nada, comprou-me o vinho quinado... - -—Oh! isso pagava apenas tres sessões! depois tivemos mais dez pelo menos, -que eu pago bem mesquinhamente dando-lhe esta remuneração. - -Casimiro põe trinta francos em cima da mesa, volta a pegar na mão da -rapariga, e aperta-a ternamente nas suas, dizendo-lhe: - -—Não chorará mais, esquecerá a scena d’esta manhã, e dar-me-ha ainda -algumas sessões, não é verdade? - -Lisa sorri-se, e responde: - -—Far-lhe-hei a vontade, visto que assim o quer! - -Casimiro retira-se muito satisfeito. - -No dia seguinte, Rouflard, que entra todas as manhãs em casa de Casimiro -para saber se elle tem algum recado para lhe dar, diz ao joven pintor: - -—Acabo de vêr o meu bom anjo, a menina Lisa, que está feliz como uma -rainha, e isto graças ao sr. Casimiro! - -—Graças a mim! como é isso, Rouflard? - -—Porque, com o dinheiro que o senhor lhe deu hontem, comprou ella uma -colhér, de prata á avó, uma bella colhér effectivamente, que lhe custou -vinte e dois francos. A velha doente está encantada, era a sua mania, -isto restituir-lhe-ha uma parte das forças. - -—Estimo immenso ter podido melhorar um pouco a posição de Lisa, que se -mata com trabalho. E o sr. Rouflard tem ido a casa do pintor a quem eu o -recommendei? - -—Sim, senhor, mas não para fazer de romano, é para fazer de saltimbanco. -É verdade que isso para mim é indifferente! servir de modelo para um -heroe ou para um salteador, é sempre servir de modelo. - -Decorrem alguns dias; Casimiro não deixa passar um unico dia sem subir a -casa de Lisa, que lhe mostra a colhér de prata, dizendo-lhe: - -—Estou muito contente! mas acreditará o senhor que sonho todas as noites -que m’a roubam? Isto faz-me pesadelos. - -—Isso ha de passar, minha vizinha, a gente habitua-se a tudo, mesmo aos -talheres de prata. - -Casimiro não tornou a casa da sr.ª Montémolly, e, com grande surpreza -sua, não ouviu falar mais d’ella desde o seu rompimento. Applaude-se por -emfim quebrado um grilhão que já não podia supportar, e entrega-se com -ardor ao trabalho, porque quer poder passar sem o socorro alheio. O seu -quadrosinho de _genero_ vae saindo muito bom; o negociante de quadros que -veiu vel-o, ficou muito satisfeito, e offereceu-lhe mesmo algum dinheiro -adeantado, se elle o precisasse. - -Mas, nas suas idas e vindas a casa, Rouflard, que conversa amiude com -o porteiro, repara, no penultimo dia do arrendamento, que emquanto o -inquilino do primeiro andar faz a sua mudança, Chausson esfrega as mãos, -apressa quanto pode essa mudança, depois, assim que vê a casa despejada, -põe-se a encerar o patamar do primeiro andar, a varrer cuidadosamente os -quartos desoccupados, e a observar se tudo está aceiado e se ha têas de -aranha n’algum recanto. - -—Com a breca! como se afadiga com o seu primeiro andar! diz Rouflard ao -porteiro, nunca esfregou tanto em minha casa, nos meus bons tempos! - -—É que mesmo nos seus bons tempos nunca teve uns aposentos tão -esplendidos! - -—Está então arrendado o seu primeiro andar? - -—Sim, de certo, está arrendado, e magnificamente arrendado; presumo que -se muda para cá ámanhã o novo inquilino, por isso fiz saír o outro hoje, -para ter tempo de arranjar tudo. Ah! ah! quero que ao entrar aqui se veja -tudo reluzente... - -—É algum dentista que vem para a casa? - -—Não... não é um dentista! é uma senhora... e mesmo uma bonita senhora... - -—Ah! entendo, é uma _cocotte_ de primeira ordem! - -—Não, senhor, pois eu arrendo lá a casa a _cocottes_! porventura o predio -não está bem habitado, não contando com o senhor?... - -—Chausson, não me insulte; difficilmente acharia um homem tão fino como -eu para morar na sua agua-furtada. - -—Sim, quando não está bebedo, tem ainda uma boa presença. - -—A tal senhora bonita tem marido? - -—Não; pelo menos, creio que não. A final de contas, como ella vem ámanhã, -posso dizer ao senhor quem é. - -—Então eu conheço-a? - -—Deve tel-a visto em casa do sr. Casimiro, é aquella senhora que o vinha -visitar tantas vezes, antigamente, porque não tem aqui voltado desde que -arrendou o primeiro andar. - -—Como! seria a sr.ª Montémolly que arrendou o quarto do primeiro andar? - -—Exactamente, a sr.ª Montémolly, é o nome que está no seu bilhete. - -—Oh! com mil diabos!... - -Rouflard apressa-se a subir a casa do pintor, e diz-lhe: - -—Venho dar-lhe uma noticia! o quarto do primeiro andar foi arrendado pela -sr.ª Montémolly, que se muda para cá ámanhã. - -Casimiro fica aterrado; julgava-se para sempre livre de Ambrosina, e ella -vem morar para o seu predio; não duvida que não seja para espreitar o seu -procedimento e saber que relações existem entre elle e a menina do quinto -andar. Estas relações são muito innocentes, mas aos olhos do mundo, que -procura por toda a parte o mal e nunca o bem hão de parecer criminosas. O -que Casimiro receia sobretudo, é que as frequentes visitas que elle faz a -Lisa lhe tragam ainda alguma scena desagradavel. Está a ponto de subir a -casa da sua vizinha para a prevenir do que acontece, mas diz comsigo: Não -devo assustal-a antes de tempo. Aguardemos. Ambrosina não arrendou talvez -a casa para si, é tambem possivel que se não mude ainda ámanhã. - -Mas no dia seguinte não é já possivel a duvida: faz-se a mudança para o -primeiro andar, e é effectivamente a sua antiga amante que Casimiro vê -chegar; ouve já na escada a voz estrondosa da creada Adriana, que está -muito contrariada por ter saído da casa da rua Meslée, que dava sobre o -_boulevard_, para virem morar na rua Paradis-Poissonniére e tomarem uma -casa onde o quarto da creada está debaixo da mesma chave que a dos amos. - -Então o joven pintor decide-se a subir a casa de Lisa. Pelo seu ar -perturbado, commovido, a rapariga adivinha que succedeu algum caso -desagradavel, e diz: - -—O senhor tem alguma coisa; aquella senhora voltou a vel-o; virá ella -aqui, porventura. - -—Não, não é isso, Lisa, entretanto, é alguma coisa que a vae contrariar, -tenho a certeza. - -—Então, fale! - -—Aquella senhora, porque effectivamente é d’ella que se tracta... o -primeiro andar estava sem inquilino para este semestre... a menina sabe -isto sem duvida. - -—Eu! não! pois eu occupo-me lá do que se passa no predio? E então, o -primeiro andar?... - -—Está arrendado... por... por essa senhora... - -—Que veiu aqui. - -—Sim. - -—Ah! meu Deus! e virá para cá brevemente? - -—Muda-se hoje... - -—Ella está aqui! no predio. Ah! vá-se embora, sr. Casimiro, vá-se embora, -muito depressa, se ella subisse e o encontrasse... tenho medo d’essa -senhora. - -—Socegue, ella não virá mais a sua casa, estou persuadido d’isso; que -motivo teria para cá voltar? - -—Virá procural-o... - -—Não, eu disse-lhe que já não a via. Estamos indifferentes, e se ella me -quizesse falar, é a minha casa e não á sua que viria ter commigo... - -—Ah! o senhor diz isso para me socegar; d’aqui em deante não me atreverei -muis a descer a escada; felizmento, não a desço muito! uma vez sómente, -de madrugada, para ir fazer as minhas compras; mas não importa, sr. -Casimiro, o meu retrato está acabado, como o senhor hontem confessou; -portanto é mister que não venha mais visitar-me... - -—Ah! Lisa, então já não sou seu amigo? não quer receber-me em sua casa? - -—Não digo isso, mas não quero que essa senhora aqui o encontre. - -—Serei prudente, eu conheço os habitos d’essa senhora, e depois -espreitarei as occasiões em que ella sair, incumbirei isso a Rouflard, -posso contar n’elle. - -—Oh! é um excellente homem, esse Rouflard; é pena embriagar-se; meu Deus! -parece-me que ouço subir!... - -—Não... é no quarto andar que abrem a porta... - -—Sr. Casimiro, leve d’aqui o seu cavallete... vendo-o em minha casa, -dirão: «Então elle continúa a ir pintar lá?» e é preciso que se não possa -dizer isto... - -—Pois sim, levarei o cavallete; mas isso não me impedirá de a vir ver -todos os dias, é para mim um habito tão agradavel... não poderia mais -trabalhar em todo o dia se não a visse pela manhã; outro tanto não -acontece á menina... - -Lisa não responde, mas suspira olhando para Casimiro, e o seu olhar vale -a melhor resposta. O joven pintor aperta-lhe a mão, e decide-se emfim a -levar o cavallete. - - - - -XV - -A menina Proh doente - - -Durante todo este dia Casimiro teve uma especie de febre; ficou em casa, -mas deixou entreaberta a porta da entrada para ouvir o que se passa na -escada; não ouviu senão o joven Fonfonso cantar com a musica do carrilhão -de Dunkerque: - - Uma esgalgada girafa - Rima certo com garrafa; - Mas chimpanzé pelladinho - Rima bem com coitadinho! - -—Quem é que te ensinou essa infame cantiga? diz de repente a sr.ª Proh, -saíndo ao patamar. - -—Foi Rouflard, que a canta muitas vezes quando desce da agua-furtada. - -—Que monstro que é esse borrachão do Rouflard! não comprehendo que o meu -vizinho Casimiro empregue similhante homem; e tu, Fonfonso, se tornas a -cantar essa cantiga, levas uma roda de açoutes e ponho-te a pão secco. - -—Sim? pois se me dás pão secco, direi que hontem, com a força d’um -espirro, deixaste cair os dentes postiços. - -—Cala-te, Lucifer! Ó céus! e dizer que ha pessoas que desejam ter filhos! - -Casimiro não sae de casa senão para ir jantar. Quando chega ao patim do -primeiro andar, passa muito depressa e depois sae sem levantar a cabeça. -Vae á noite ao theatro, e só recolhe depois da meia noite, mas vê ainda -luz nos quartos do primeiro andar. A sr.ª Montémolly entretem-se sem -duvida em arranjar os seus novos aposentes. Elle, segundo o costume, vae -buscar a luz ao cubiculo do porteiro; então este diz-lhe com ar malicioso: - -—O senhor sabe sem duvida quem tem agora a felicidade de ter por vizinha? - -—Não, sr. Chausson, e affianço-lho que isso me interessa pouco. - -—Não dirá o mesmo quando souber que arrendei o primeiro andar á sr. -Montémolly, uma amiga intima do senhor. - -—Em primeiro logar, o sr. Chaussom faz amigas intimas de simples -conhecimentos, depois, nós tivemos uma ligeira discussão, essa senhora e -eu... estamos indifferentes. - -—Ah! que pena! aposto que foi por causa da maldita politica! isso -malquista toda a gente, mas o senhor ha de fazer as pazes com essa -senhora, que tem muito bonitas maneiras. - -—Dê cá a minha luz, e faça favor de não me tornar a falar em tal assumpto. - -Casimiro apressa-se a subir a casa, e o perteiro segue-o com a vista, -murmurando: - -—Ah! elle está arrufado com esta senhora! como os homens são voluveis! -dirá muita gente, e as mulheres tambem: então, é coisa que está na -natureza!... - -No dia seguinte pela manhã, o joven pintor sobe a casa de Lisa; mas, -antes d’isso, procurou Rouflard, e pôl-o de sentinella na escada, com -ordem de cantar a canção dos _Lampiões_ se vir subir a inquilina do -primeiro andar. D’este modo, não será surprehendido em casa da sua -vizinha; terá descido os dois andares antes que Ambrosina tenha tido -tempo de subir os seus... - -Lisa põe-se ainda a tremer vendo entrar Casimiro em sua casa. Mas este -tranquilliza-a dizendo-lhe a ordem que deu a Rouflard, relativamente -á senhora do primeiro andar. Casimiro não cessa de repetir a Lisa que -não era para elle mais que um simples conhecimento, uma pessoa que o -queria proteger, mas que abusava da influencia que tinha tomado sobre -elle, influencia de que ha muito tempo estava, resolvido a libertar-se. -A rapariga, que não sabe nada do que se passa no mundo, acredita tudo o -que lhe diz o vizinho. Conversam largo espaço; o tempo corre tão depressa -quando se está bem acompanhado! De repente, Lisa empallidece, exclamando: - -—Ouvi cantar!... - -—Mas não é o Rouflard, é aquelle maldito garoto do menino Proh! - -—É o mesmo, ouço muito barulho no predio é preciso ir-se embora. - -—É Adriana que a menina ouve, a creada da sr.ª Montémolly, quando esta -rapariga está em alguma parte, não se ouve senão ella. - -—Mas vae ver o Rouflard na escada. - -Em primeiro logar, para o ver, será preciso que ella olhe para o ar. - -—Oh! estou bem certa que é a ordem que tem. - -—Vamos, socegue minha encantadora Lisa, eu me vou embora, mas ámnhã... - -—Oh! sim, ámanhã tratarei de me habituar a ter medo. - -Passam-se d’esta sorte oito dias. Casimiro sobe pela manhã a casa de -Lisa, depois de ter posto Rouflard de sentinella na escada. Não tem -encontrado Ambrosina, nem mesmo a tem visto de longe, entretanto está bem -persuadido de que ella não veiu morar para o mesmo predio sem ter o seu -plano. Sabe que a sr.ª Montémolly é bastante altiva, bastante orgulhosa -para procurar fazer as pazes com elle; mas sabe tambem que é vingativa e -deve ter formado o projecto de se vingar. - -Ao nono dia da sua entrada nos seus novos aposentos, alli pela volta do -meio dia, Ambrosina sobe os quatro andares que vão ter á morada de Lisa, -e entra de repente em casa da rapariga, que fica pallida e tremula ao seu -aspecto. - -«Todavia a sr.ª Montémolly não tem aquelle ar terrivel com que uma vez -se apresentou a Lisa; pelo contrario, é sorrindo, é com um ar amavel, -gracioso mesmo, que ella se approxima, e lhe diz: - -—Perdão, menina, venho talvez incommodal-a, mas sou ha oito dias sua -vizinha, moro no primeiro andar, soube, pela sr.ª Proh, que a menina se -occupava em trabalhar em roupa branca, e venho perguntar-lhe se quererá -trabalhar para mim? - -Lisa está de tal modo perturbada, que pode apenas balbuciar: - -—Mas, minha senhora, queira sentar-se... Perdão, não ouvi bem o que me -disse. - -—Socegue, menina; pois eu metto-lhe medo? - -—Oh! sim, minha senhora, quero dizer, não, minha senhora, agora não... -mas é que receava... - -—Que viesse ainda contender com o sr. Casimiro? Socegue, no outro dia -fiz mal, convenho n’isso, mas eu sou muito arrebatada; aquelle senhor -tinha-me faltado muitas vezes á sua palavra para o meu retrato e isto -tinha-me encolerisado. E o retrato da menina está acabado? - -—Sim, minha senhora. - -—Mas o sr. Casimiro continúa a vir vizital-a? - -—Algumas vezes, minha senhora... - -—Ora, tem todo o direito de o fazer. Mas a menina ainda me não respondeu -sobre o fim da minha visita; quer trabalhar para mim? - -—Oh! certamente, minha senhora, com muito gosto. - -—Muito bem. E borda tambem? - -—Sim, minha senhora. - -—Então, aqui tem estes lenços de cambraia, quero as minhas iniciaes -bordadas; olhe, como este... pode bordar-m’as? - -—De certo, minha senhora. - -—Pois aqui lhe deixo estes seis e o modelo; mas faça isto de seu vagar, -quando tiver tempo, eu não tenho pressa nenhuma. Emquanto ao preço, a -menina dirá quanto quer. - -—Oh! minha senhora, ficarei satisfeita com o que a senhora me der. - -—Adeus, menina, ou antes, até á vista, porque ha-de permittir que eu -venha algumas vezes saber se pensa em mim. - -—Oh! quando a senhora quizer. - -—Já lhe não metto medo, espero? - -—Não, minha senhora, pelo contrario, sinto agora que terei muito prazer -em a receber. - -Estas palavras parecem surprehender Ambrosina que, entretanto, faz uma -mesura graciosa á rapariga e retira-se. Lisa está bastante commovida, mas -muito contente de não ter já em sua casa o cavallete. No dia seguinte, -não falta a dar parte a Casimiro da visita que recebeu. Este não fica -satisfeito com isso; abana a cabeça murmurando: - -—Ambrosina, que quer que a menina trabalhe para ella... Ambrosina, -amavel, affectuosa com a menina.... hum! isso não é natural; tome -cuidado, Lisa, não confie n’essa senhora, porque tudo isto esconde alguma -perfidia! - -—Oh! sr. Casimiro, creio que não tem razão, e que d’esta vez é injusto -para com essa senhora; já não tenho nenhum receio d’ella; pelo contrario, -é uma coisa bem exquisita, parece-me que estou quasi a ter-lhe affeição... - -—Ah! é que a menina não suspeita de nada, não desconfia dos laços que lhe -podem armar! - -—Laços? oh! aquella senhora tem um sorriso encantador... isso não pode -occultar uma perfidia. - -—Bem se vê que não conhece o mundo. - -—Meu Deus! é então um conhecimento bem máu, pois que se deve sempre -desconfiar d’elle! - -—D’esse modo, fará a obra que a senhora lhe deu? - -—Sem duvida, são uns lenços magnificos para bordar... mas é obra que ha -de levar muito tempo. - -—E irá levar-lh’os a casa quando estiverem promptos? - -—Sim. Acaso não faço eu o mesmo á sr.ª Proh? porque havia de ser menos -cortez com esta senhora do primeiro andar? - -Casimiro não diz nada, mas deixa Lisa, muito inquieto com a visita que -ella recebeu. - -D’ahi a poucos dias cae doente a menina Angelina Proh; a mãe receia que -seja uma constipação de peito; o pae sustenta que é uma febre miliar, -e o menino Proh affirma que sua irmã está doente por ter comido uvada -de mais. Mas as indigestões são ás vezes perniciosas, e podem dar logar -a outras doenças; quer a uvada tenha ou não alguma coisa n’isso, o que -é certo é que a rapariga tem uma grande febre, uma sede ardente, e por -vezes um pouco de delirio. - -Os Proh não têem creada, porque o ex-professor sustenta que, n’uma casa -onde ha duas mulheres, não se deve ter necessidade de tomar uma terceira -para os arranjos domesticos, e que seria isso um luxo inutil. Não ha pois -senão a sr.ª Proh para tractar de sua filha, porque o papá encerra-se na -sua dignidade, e o Fonfonsinho, como quebra tudo quanto apanha, não pode -ser utilizado. Como a joven Angelina tem estado bastante doente para que -seja mister velar junto d’ella de noite, a sr.ª Proh anda que não pode -comsigo, e diz um dia ao maride: - -—Senhor, eu não posso mais; se isto continua, vou tambem caír doente; ha -duas noites que não durmo e eu não sou de ferro... - -—Eu nunca disse que a senhora era de ferro, se as mulheres fossem de -ferro, seria isso bem incommodo nas relações que a natureza nos manda ter -com ellas. - -—Vejamos, Castor, porque é que não quer tomar uma creada? a nossa posição -permitte-nos isso... - -—A nossa posição é muito correcta como está: nós somos quatro, o -quadrado perfeito, uma pessoa de mais em casa desarranjaria o equilibrio -e a rectidão; não, a rectidão não é o termo próprio, devo dizer o -rectangulo... - -—Oh! senhor, quanto me aborrece com os seus quadrados e as suas -combinações. Quer então que eu caia doente? - -—Não, senhora, porque seria preciso dobrada tisana, dodrado xarope, e por -conseguinte seria dobrada despeza; não poderia ser esse o meu desejo. - -—E’ todavia o que ha de acontecer se eu tiver de passar ainda esta noite -velando á cabeceira de nossa filha. Quer o seehor ficar? - -—Eu? mas a senhora bem sabe que, em chegando a minha hora de dormir, é-me -impossivel resistir-lhe; torno-me um arganaz, um buzio, se acham melhor, -ainda que a comparação é estrambotica; eu por consequencia não seria de -nenhuma utilidade. - -—Então é mister tomar uma enfermeira... - -—Uma enfermeira! introduzir uma estranha nos meus lares! Nunca! isso é -estupido e perigoso. - -—Entretanto, declaro-lhe que não quero passar em claro a noite proxima; -não poderia resistir... Ah! uma idéa!... a menina Lisa... sim, ella é -muito obsequiadora, não se negará a vir um instante revzar-me; esta não -dirá o senhor que é uma estranha... conhecemol-a perfeitamente. - -—A menina Lisa... sim, essa mora no predio. Em rigor, podemos occupal-a. - -—Subo immediatamente a casa d’ella; quero estar certa de ter alguem esta -noite ao pé de minha filha. - -Lisa fica menos admirada vendo entrar em sua casa a vizinha do terceiro -andar, para quem tem trabalhado muitas vezes. A sr.ª Proh explica-lhe -immediatamente o motivo da sua visita, e a rapariga responde-lhe: - -—Oh! minha senhora, eu estimaria muito poder ser-lhe prestavel; mas, para -ir para sua casa, teria de deixar minha avó... - -—Mas sua avó, emquanto está a dormir não tem precisão da menina; -lembre-se de que pode ir lá para baixo ás dez horas da noite, e pela -manhã ás sete e meia, oito horas quando muito, voltará para junto d’ella. -Demais, sua avó não está melhor? - -—Sim, minha senhora, graças ao vinho quinado, passa muito melhor desde -certo tempo para cá. Não é verdade, avósinha, que vae agora melhor? - -A velha levanta-se um poucochinho na cama, dizendo: - -—Sim, minha filha, sim, vou melhor. Ah! é que tu tractas bem de mim; -e depois déste-me uma colhér de prata, e isso deu-me grande prazer. -Mostra-a lá á nossa vizinha. - -—Oh! avósinha, isso pouco interessa a esta senhora. - -No entanto, para fazer a vontade á avó, Lisa mostra á sr.ª Proh a colhér -de prata, que é muito simples. - -—É uma prova de que a menina faz as suas economias, diz Celeste, dou-lhe -os meus parabens... - -Depois a sr.ª Proh approxima-se da paralytica, e diz-lhe: - -—Não é verdade que a senhora poderia dispensar a sua neta por uma noite, -e permittir que ella venha velar á cabeceira de minha filha, que está -doente? desceria só ás dez horas da noite e voltaria logo de manhã; oh! -com isso me faria um grande serviço. - -—Sim, sim, pode ir; vae, Lisa, para obsequiares a senhora. Bem sabes que -eu, em adormecendo á noite, não tenho mais precisão de ti. Oh! eu estou -melhor. - -—Como! pois a avósinha consente em que eu a deixe uma noite inteira? - -—Sim, minha filha, sim; é preciso obsequiar esta senhora. - -—Pois bem, visto que a avósinha consente. Minha senhora, esta noite ás -dez horas, estarei em sua casa. - -—Ah! muito agradecida, a menina é muito amavel; retiro-me sem mais -demora, porque tenho que preparar a cabeça de vitella para meu marido; -até á noite. - -Ás dez horas em ponto, assim que adquire a certeza de que sua avó dorme -socegadamente, Lisa sae do seu quarto e dirige-se a casa da sr.ª Proh. -Esta aguardava-a com impaciencia, porque tinha muita necessidade de -dormir. Leva a sua joven vizinha para o quarto de cama de sua filha, e -ahi a deixa, dizendo-lhe: - -—Angelina está hoje melhor, creio que não terá uma noite desassocegada; -em todo o caso, aqui está em cima d’esta mesa tudo o que é preciso: a -tisana sobre a lampada de espirito de vinho, assucar para a tisana, uma -colherinha para a mecher, depois uma colhér de sopa para dar d’este -xarope que vê n’esta garrafa; mas isto, sómente lh’o dará se ella não -puder dormir e estiver agitada; comprehende bem? - -—Sim, minha senhora, tudo isso não é difficil. - -—Se por acaso sobrevier alguma coisa extraordinaria, acorde-me, eu durmo -aqui no quarto do lado; mas espero que não acontecerá nada. Aqui tem uma -grande poltrona onde ficará perfeitamente... e livros. A menina gosta de -ler? - -—Oh! muito, minha senhora. - -—Então aqui tem um romance que a ha de captivar, está cheio de crimes, -assassinatos, enforcamentos, torturas, é muito interessante. Angelina -já o leu duas vezes; é desde esse tempo que ella tem tido delirio. Mas -eu vou-me deitar, porque estou com muito somno; os meus homens dormem já -como pedra em poco... vou fazer outro tanto; minha filha está socegada, -não tenho precisão de lhe dizer que é mister não a acordar. - -—Oh! pode ir descansada, minha senhora. - -—Não se esqueça das minhas instrucções: uma colhér de xarope, sómente se -ella estiver agitada. - -—Sim, minha senhora. - -E a sr.ª Proh retira-se. Lisa, que não deixou de trazer trabalho para -fazer, senta-se a bordar. Passado algum tempo a doente pede de beber, -e Lisa apressa-se a dar-lhe um copo de tisana. Angelina reconhece-a, e -diz-lhe: - -—Ah! é a menina que me está velando... sim a mamã tinha-me prevenido... - -—Como se acha a menina? - -—Muito melhor. - -—Quer uma colhér de xarope? - -—Não, não é preciso... sinto que vou outra vez adormecer; agradecida. - -Effectivamente, a menina Proh torna em breve a pegar no somno. Lisa -volta ao seu bordado, mas este genero de trabalho cansa muito a vista. -Larga-o pois por um momento, e cede ao desejo de conhecer o romance que a -sr.ª Proh lhe gabou. Senta-se para isso na grande poltrona; mas, no fim -d’algum tempo, quer por fadiga quer por effeito do romance, Lisa adormece -profundamente. - -São seis horas da manhã quando a sr.ª Proh entra no quarto da filha, e -ainda Lisa esfrega os olhos. - -—Então, como se passou esta noite? pergunta Celeste. A nossa doente ainda -está a dormir, é bom signal. - -—Oh! minha senhora, a noite foi muito socegada; a menina só pediu de -beber uma vez. - -—Muito bem; então não tomou o xarope? - -—Não, minha senhora. - -—Ás mil maravilhas! Decididamente, creio que Angelina vae entrar em -convalescença. - -—Minha senhora, visto que está levantada, permitte-me que volte -immediatamente para junto de minha avó, não é verdade? - -—Sim, certamente, vá, minha menina, nós nos entenderemos a respeito da -remuneração pela sua noite de véla. - -—Oh! minha senhora, não falemos n’isso, estimo muito ter podido -obsequial-a!... - -E a joven enfermeira, com a pressa de subir a sua casa, está já na saleta -de entrada, quando a voz da sr.ª Proh a chama: - -—Lisa, Lisa!... - -—O que quer, minha senhora? - -—Onde metteu a menina a colhér do xarope!... não a acho. - -—Não a acha!... deve estar no mesmo sitio, minha senhora; pois que não -tive precisão de me servir d’ella... - -—Diz que não se serviu d’ella!... comtudo, a colhér não está já em cima -da mesa... olhe, veja a menina... - -Lisa vê em cima da mesa, depois debaixo, depois em todos os moveis, em -toda a parte, e a sr.ª Proh faz outro tanto do seu lado; mas não se acha -a colhér. - -—É singular! diz Lisa. - -—E mais que singular! exclama Celeste, cuja physionomia tomou já um -aspecto severo. Emfim, a menina bem sabe que eu deixei-lhe sobre esta -mesa duas colheres de prata, uma pequena e uma grande, a pequena aqui -está, mas que é feito da grande? é preciso que appareça, é preciso! -não entrou aqui outra pessoa além da menina... logo é a menina a unica -responsavel pela colhér...e a menina ia saindo com tanta pressa... - -—Oh! minha senhora, pois pode suspeitar que eu levava a sua colhér! ah! -veja bem, minha senhora, esquadrinhe tudo... veja nas minhas algibeiras, -no meu vestido. Oh! meu Deus! suspeitar-me de-furtar... - -—Eu não digo isso; mas algumas vezes, inadvertencia... sem fazer reparo... - -—Oh! veja, minha senhora, peço-lhe eu, faça favor de me revistar!... - -A sr.ª Proh apressa-se a passar revista ás algibeiras de Lisa; apalpa-a -por toda a parte, ausculta-a como faria um cirurgião, examina-lhe até os -sapatos, ainda que a rapariga tem o pé tão pequeno que o seu calçado mal -poderia conter uma colhér pequena. Esta inspecção severa prova á esposa -do antigo professor que Lisa não levava a colhér. - -—Então, minha senhora, está agora persuadida de que eu não levava nada? -diz Lisa. - -—De certo, bem vejo que a não tem em si, mas então o que fez a menina á -colhér? vamos... procure... atirou certamente alguma agua pela janella e -deitou fóra tambem a colhér. - -—Não, minha senhora, não atirei nada pela janella. - -—Ou deixou-a caír n’alguma parte? - -—Eu não saí d’este quarto, minha senhora; não fui ao patamar... - -—Oh! ao patamar, de facto, não teria podido lá ir, porque eu fecho sempre -com tres voltas a porta que dá para a escada; e tem um ferrolho de -segredo... acabo agora de a abrir... - -—De modo que a senhora está bem certa de que eu não saí de sua casa esta -noite durante o seu somno... - -—Valha-me Deus! não digo o contrario!... mas tudo isso não me restitue a -minha colhér... - -—Ha-de se achar, minha senhora, ha de se achar no momento em que menos se -pensar n’ella. - -—Mas onde diabo a escondeu?... - -—Para que quer a senhora que eu a tenha escondido? com que fim? porque -motivo? Volto para juncto de minha avó, que deve estar agora acordada... -a senhora fica bem certa de que não levo a sua colhér, não é verdade? - -—Estou certa de que não a tem em si... mas que diabo fez d’ella? - -—Oh! se é preciso pagar-lhe o valor da colhér, eu lh’o pagarei, chegarei -a isso á força de trabalho; mas, por quem é, não fale em similhante coisa -a minha avó, que lhe faria muito mal... - -—Está bem, menina, está bem, falarei a esse respeito com o sr. Proh. - -Lisa sobe para sua casa muito triste e com os olhos rasos de lagrimas, -dizendo comsigo: - -—Suspeitarem de ter furtado! oh! é horrivel isto! O sr. Casimiro tinha -muita razão em dizer que desconfiasse do mundo! E todavia esta senhora -não pode querer affligir-me; mas que foi então feito d’aquella maldita -colhér!... - - - - -XVI - -Mais um caso extraordinario - - -A sr.ª Proh não falta a contar esta aventura a seu esposo, e o professor -exclama: - -—Não introduza nunca pessoas estranhas nos seus lares, eu tinha-a -prevenido; ahi estamos com uma colhér de menos, por sua culpa. - -—Mas, senhor, a menina Lisa não é uma estranha... demais estou bem -persuadida de que ella não levou a nossa colhér. - -—Então foi a colhér que se foi embora sósinha. - -—Eu apalpei-a, revistei-a bem por toda a parte e ella não a tinha. - -—Pensou a senhora revistar tudo... ha sitios mysteriosos onde se escondem -muitas coisas; pergunte aos ladrões onde escondem os diamantes que -roubaram!... - -—Oh! senhor, uma colhér de sopa não se esconde como um diamante, ainda se -fosse uma das pequenas!... - -—Senhora, ha pessoas que teem grandes facilidades. - -Esta historia da colhér de prata desapparecida não tarda a saber-se em -todo o predio, e a ser o assumpto de todas as conversações. Adriana, que -a ouve contar no cubículo do porteiro, não falta a ir referil-a a sua -ama, que a escuta muito atenta, mas sem fazer reflexão. - -—A senhora deu obra a fazer áquella rapariga, diz Adriana, mas quando -ella aqui vier trazel-a, terei o cuidado de não lhe tirar a vista de -cima, e de não deixar por ahi nada ao alcance da mão. - -—Quando ella aqui vier, diz Ambrosina, ficará a menina no seu quarto até -que eu a chame. Não se esqueça disto... - -Adriana retira-se resmungando. O porteiro revistou o pateo e os canos das -aguas; está persuadido de que a menina Lisa não é culpada. O Fonfonsinho -canta na escada: - - Ficámos sem uma colhér de prata, - Desde que Lisa velou minha mana - -E Rouflard, que ouve isto, apanha o rapazito pelos fundilhos das calças e -suspende-o no ar, dizendo-lhe: - -—Aposto que foste tu, velhaquete, que pregaste a peça; provavelmente -foste buscar a colhér durante a noite para tomares xarope. - -—Não é verdade... eu durmo com o papá, não me levanto de noite; isso é -bom para o senhor. - -—Cala-te, sapo!... - -Os gritos do rapazinho fazem acudir os esposos Proh, assim como o jovem -pintor. Ao saber dos boatos que correm a respeito de Lisa, Casimiro fica -furioso; dirige-se à sr.ª Proh: - -—Espero, minha senhora, que não suspeite que Lisa lhe tenha furtado essa -peça de baixela que lhe falta? - -—Eu não digo que foi ela que a tirou, mas digo que foi quem a perdeu; -acha que isto me possa ser agradavel? - -—Minha senhora, eu fico responsavel por essa menina, e, aconteça o que -acontecer, a senhora não perderá nada. - -—E eu, exclama Rouflard, repito que a menina Lisa é incapaz de commetter -uma acção feia! é um modelo de probidade, como de juizo, de prudencia, de -bondade. Quem trabalha sem descanço para sustentar uma velha paralytica, -não deve um instante ser suspeitada. - -—Mas parece que a velha tem um grande amor pelas colhéres de prata, -replica a sr.ª Proh, porque ella propria me mostrou uma que a sua Lisa -lhe tinha comprado... - -—O que prova á senhora que ella não tem precisão da sua. - -—Abundancia de bens não prejudica, diz o professor. - -—Ahi está uma reflexão bem digna do sr. Prorata. - -Os esposos Proh voltam para sua casa cheios de colera. Casimiro -apressa-se a subir a casa de Lisa. Acha-a com os olhos vermelhos -de chorar; ella põe um dedo na bocca mostrando-lhe a avó. Casimiro -comprehende que a rapariga occulta á pobre velha o caso da colhér; vae -sentar-se ao pé da donzella e pega-lhe na mão, murmurando muito baixo: - -—Tem então ainda algum desgosto, Lisa, a menina que merecia ser tão feliz? - -—Ah! sr. Casimiro, o senhor sabe sem duvida a historia da colhér, ouço -d’aqui o filho da sr.ª Proh que a canta na escada. - -—Sim... eu sei pouco mais ou menos... - -—Mas não acredita que eu tenha querido tirar uma colhér de prata á sr.ª -Proh, não é verdade? - -—Pois a menina pode fazer-me similhante pergunta! acaso não sei eu o que -a menina vale! ah! eu faço-lhe justiça, a sua alma é pura como o seu -olhar... - -—E a senhora Montémolly, tem-n’a visto? sabe o que ella pensa a este -respeito? - -—Não tenho visto essa senhora, não a encontro nunca, ella deve pensar -como quasi todos os outros inquilinos do predio, que anda aqui -brincadeira, ou antes maldade do rapazinho. - -—Não, elle não veiu ao quarto. - -—Mas a menina não dormiu um só instante em toda a noite? - -—Sim... dormi... até bastante tempo. - -—Pois então alguem poude entrar durante o seu somno, e tirar essa colhér; -mas esteja socegada aposto que brevemente descobriremos essa pessoa... - -São passados seis dias, e os Proh não acharam ainda a colhér. Entretanto -Ambrosina levou para sua casa a filha da sua amiga Florentina, -emquanto esta foi tomar banhos do mar. A pequenita tem oito annos, e -é muito bonita; mas sobrevem-lhe o sarampo, acompanhado d’uma febre -violentissima. A menina Adriana, que tem muito medo de que se lhe pegue o -sarampo, não se approxima do leito da doentinha senão de má vontade. - -Então Ambrosina sobe de manhã cedo a casa de Lisa, que primeiramente se -põe a tremer ao seu aspecto, mas logo se tranquilliza ao ver o sorriso -d’esta senhora, que lhe diz: - -—Menina, venho pedir-lhe um obsequio; tenho em minha casa a filha d’uma -das minhas melhores amigas, que m’a confiou emquanto dura uma viagem que -ella era obrigada a fazer; tenho os maiores cuidados com a Adelinasinha; -mas este anjinho está n’este momento com sarampo e com uma febre -ardentissima; a minha creada, que tem medo do sarampo, não tracta d’ella -muito bem. Emfim, a menina fazia-me um grandissimo obsequio se quizesse -vir passar esta noite á cabeceira da doentinha. Como sei que teve essa -complacencia para com a sr.ª Proh, pensei que se não recusaria a fazer -outro tanto por mim. - -—Sim, minha senhora, responde Lisa suspirando sim, passei uma noite á -cabeceira da filha da sr.ª Proh, mas deve saber que desgosto isso me -occasionou; desappareceu n’essa noite uma colhér de prata, que não se -achou mais; a sr.ª Proh bem sabe que não fui eu que lh’a tirei; mas, -apesar d’isso, quem sabe! ha talvez ainda pessoas que suspeitam de mim. - -—Este meu passo, deve provar-lhe que eu não sou d’essas pessoas; ao -contrario, pedindo-lhe que vá ficar de noite em minha casa, pensei que -isso poria termo a todos esses contos inconvenientes. A menina não se -pode recusar... - -—Mas, minha senhora... - -—Não lhe peço que vá ás dez horas, desça um pouco antes da meia noite; -depois, voltará cedo para sua casa. Bem vê que sua avó não terá tempo de -dar pela sua ausencia... - -—Minha senhora, não me atrevo a recusar; entretanto isto custa-me muito; -tenho tanto desgosto pela noite que passei em casa da sr.ª Proh. - -—Isso é uma creancice; em minha casa nada tem que recear. Até á noite, -alli pela volta da meia noite... ou antes se quizer. - -—Oh! prefiro ir tarde. - -—Muito bem, está tractado; espero pela menina, porque quero eu mesma -apresental-a no quarto da minha doentinha. - -Ambrosina retira-se. Lisa deseja ardentemente ver Casimiro para lhe dar -parte da sua nova contrariedade; o joven pintor não se faz esperar muito -tempo. Ao saber o que a sr.ª Montémolly acaba de pedir a Lisa, fica -bastante surprehendido, e parece não gostar de que esta tenha acceitado. - -—Acaso fiz mal em acceder a ir ficar de noite em casa d’essa senhora? diz -a donzella. - -—A menina não se podia excusar, comprehendo, tendo-se já prestado a ir a -casa da sr.ª Proh. - -—E depois, aquella senhora é agora muito amavel commigo; bem vê que não -dá credito aos aleives que se teem espalhado por causa d’aquella colhér -perdida. - -—Vejo; effectivamente, o procedimento d’essa senhora prova que ella -faz-lhe justiça; e todavia custa-me a acreditar que ella lhe queira bem... - -—Porque não? - -—Ah! porque... emfim, vá esta noite velar a Adelinasinha, mas ámanhã, de -manhã cedo, eu espreitarei a sua volta para casa. - -—Oh! voltarei muito cedo. - -É meia noite menos alguns minutos quando Lisa bate á porta da senhora do -primeiro andar. É a gorda Adriana que vem abrir-lh’a e a introduz junto -de sua ama, que recebe a donzella com um sorriso que não é talvez bem -franco, mas que quer parecel-o. A sr.ª Montémolly apressa-se a conduzir -Lisa para um lindo quarto onde dorme a doentinha, dizendo: - -—Puz Adelina no quarto que reservo para a mãe d’ella, quando habita no -campo e vem por acaso a Paris. Penso que a menina ficará aqui muito bem; -por este corredor pode-se sair sem haver necessidade de acordar ninguem. - -—Oh! minha senhora, eu não terei necessidade de sair esta noite, para quê? - -—Ahi tem uma poltrona onde poderá repousar e mesmo dormir um pouco, se a -doentinha estiver em socego. Aqui tem livros... Ah! quer cear? - -—Oh! não, minha senhora, eu nunca ceio. - -—Em todo o caso, se tiver fome, aqui tem bolos, biscoitos e vinho. Isto -é tisana para a pequena; n’esta garrafinha está um calmante. E então, -aquella tola da Adriana não poz aqui uma colhér! Adriana! Adriana!... - -A creada acode esfregando os olhos. - -—Adriana, traga para aqui uma colhér grande e algumas pequenas; se esta -menina quizer tomar vinho com assucar, não se ha de servir da mesma -colhér que empregar para a tisana. - -A creada sae, e volta logo em seguida com uma colhér grande e duas -pequenas, que ella põe em cima da mesa de cabeceira, dizendo: - -—Isto faz uma colhér grande e tres pequenas... porque já cá estava uma. - -—Está bem, Adriana, está bem! ninguem lhe pergunta a conta. - -—Mas eu desejo muito fazer ver isto á senhora. - -—Vá-se deitar. - -—Isso e o que eu quero é a mesma coisa. - -—Agora, menina Lisa, vou tambem descançar... a menina tem o que lhe é -preciso; não deseja mais nada? - -—Não, minha senhora, muito agradecida. - -—Quando a pequenita acordar, é preciso fazel-a beber; depois, se tossir, -deve-lhe dar o calmante. - -—Pode ir socegada, minha senhora. - -—Boa noite, até ámanhã. Virei cedo saber noticias da minha Adelina. - -Lisa fica só. Põe-se a admirar o quarto onde se acha; a mobilia é toda -nova e d’um gosto lindo. - -—Que felicidade não é viver n’um aposento tão bonito, diz ella comsigo; -mas a final de contas, tambem aqui se pode estar muito doente, e ter -tanto desgosto como n’um modesto quarto de qualquer agua-furtada; eis -aqui uns livros, mas não lerei nenhum, trouxe o meu trabalho, vou -trabalhar. - -Lisa deita-se ao bordado. D’ahi a pouco a Adelinasinha acorda, e ella -dá-lhe de beber; um pouco mais tarde a creança tosse, e ella faz-lhe -tomar uma colhér do calmante. Assim se passa uma parte da noite. Pela -volta das tres horas, o somno apodera-se de Lisa, que procura em vão -resistir-lhe porque n’ella a necessidade de dormir era tão imperiosa que -não a podia vencer. Mas, como a sua doentinha dorme mui socegadamente, a -joven enfermeira não tarda a fazer outro tanto. - -Cerca das sete horas da manhã, Lisa acorda, e quasi no mesmo instante, -abre-se uma porta e aparece a sr.ª Montémolly embrulhada n’um lindo -roupão. Approxima-se da cama dizendo: - -—Então, como vae a pequenita? passou bem a noite? - -—Sim, minha senhora, muito bem; a menina tossiu pouco e dormiu -optimamente; eu mesma cedi um pouco ao somno esta madrugada. - -—Não ha mal nenhum n’isso, visto que a pequena não precisava de nada. Ah! -ahi acorda ella. Bons dias, Adelina, como te sentes esta manhã? - -A pequenita responde que se sente melhor, mas põe-se a tossir; Ambrosina -exclama logo: - -—Dê-me uma colhér do calmante, para eu lh’o fazer tomar; isso ha de -aplacar-lhe a tosse. - -Lisa corre á mesa onde estava o frasquinho e a colhér. - -—Então, dê-me esse calmante, torna Ambrosina, bem ouve a creança estar a -tossir... - -—Sim, minha senhora, sim... mas é que... não acho a colhér... - -—É que a pôz n’outro sitio... faça favor de a procurar... - -—Valha-me Deus! é o que eu estou fazendo, minha senhora; mas não percebo -isto... não a vejo... - -—Mas a menina sabe muito bem que lhe ficou aqui uma, não é verdade? - -—De certo, minha senhora, pois que me servi d’ella duas vezes esta -noite... - -—Então é que procura mal. Adriana! Adriana!... ah! é capaz de estar ainda -a dormir... Adriana!... - -Chega emfim a creada, esfregando os olhos: - -—O que é, minha senhora? - -—É que esta menina não acha a colhér que estava aqui hontem á noite... - -—Ah! bem me lembro, havia uma grande e tres pequenas... - -—As tres pequenas aqui estão, diz Lisa, mas não comprehendo como a grande -não está aqui tambem... - -—Ora! exclama a menina Adriana, olhem que admiração! terá ido juntar-se -com a da sr.ª Proh... - -—Oh! menina, é indigno isso que está dizendo! Minha senhora, acaso vae -tambem pensar que tenho eu a sua colhér? - -—Menina, o que quer que eu lhe diga... quando os factos falam... é -preciso render-se a gente á evidencia; a menina mesma concorda em que -tinha aqui uma colhér de prata... - -—Sim, minha senhora, sim convenho n’isso; repito-lhe que me servi d’ella -esta noite para dar o calmante á menina... - -—Pois bem! vossemecê ficou sósinha aqui esta noite... e esta manhã esse -objecto desappareceu. Que outra pessoa, por consequencia, pode tel-a -tirado? - -—Oh! minha senhora, reviste-me, faça favor... verá que o não tenho... - -—É inutil, quando alguem tira uma coisa não a esconde em si. - -—Oh! é o mesmo, exclama Adriana, vou revistal-a eu; porque, emfim, não -quero que se perca prata nenhuma na casa onde eu estou a servir. - -A creada corre ás algibeiras de Lisa, e vira-as inteiramente; depois -apalpa a rapariga de alto a baixo, e termina a sua inspecção exclamando: - -—Nada! oh! affianço que não tem a colhér em si. - -—Então, minha senhora, bem vê, diz Lisa. - -—Vejo que a não escondeu em si; mas, se não a acharmos, é que a menina a -terá levado para outra parte. - -—Mas para onde, minha senhora, se não saí d’este quarto? - -—Quem me prova isso? por este corredor pode-se sair perfeitamente sem -acordar ninguem... - -—Oh! minha senhora, é horrivel pensar isso. Meu Deus meu Deus! sou bem -desgraçada!... - -Lisa rompe em soluços. Adriana tem-se posto de gatas e esquadrinha -debaixo de todos os moveis; mae em vão se procura por toda a parte, a -colhér não se acha. Ambrosina approxima-se da pobre Lisa, que se afflige -muito, e diz-lhe: - -—Socegue, não darei seguimento a este negocio, o que outrem talvez faria, -vá, não a demoro mais. Tomarei unicamente a liberdade de dizer ao sr. -Casimiro que não é feliz na escolha dos seus novos conhecimentos. - -Lisa não escuta mais nada; tarda-lhe sair d’aquelle quarto, que ella -achou tão bonito na vespera. Caminha, mal podendo suster-se, e chega -assim até á escada. Mas, no segundo andar, encontra Casimiro, que a -estava esperando, e que exclama, vendo-a lavada em lagrimas: - -—O que foi? que succedeu? o que tem a menina ainda? o que é que lhe -fizeram para chorar assim? - -Lisa conta a Casimiro o que se acaba de passar, e refere-lhe as palavras -de Ambrosina, que lhe disse que ella teria podido sair sem acordar -ninguem. - -—Mas então, diz Casimiro, podia-se tambem chegar até junto da menina sem -ser ouvido. A menina dormiu durante a noite? - -—Ai! sim, pelas tres horas não pude resistir ao somno, é mais forte do -que eu. - -—Ah! que fatalidade, porque durante o seu somno poude alguem entrar -n’esse quarto.. - -—Não me parece porque teria acordado.,. - -—Suppôr que a menina tenha tirado essa colhér, isso não tem senso commum, -depois do que aconteceu em casa da sr.ª Proh... que lhe causou tão grande -degosto! - -—É justamente por isso que me accusam ainda, a creada d’essa senhora -disse-me: «A colhér foi-se juntar cem a da sr.ª Proh.» - -—Isso é indigno!... mas socegue, Lisa, ha em tudo isto um mysterio que -eu conseguirei descobrir, não descançarei emquanto a sua innocencia não -estiver completamente reconhecida. - -O joven pintor consegue acalmar um pouco a magua de Lisa, acompanha-a até -á sua porta, e deixa-a promettendo-lhe mais uma vez que ha-de obrigar -toda a gente a fazer-lhe justiça. Mas Casimiro promettia o que elle -proprio não sabia como cumprir, porque debalde dava tratos á imaginação -para adivinhar como era que as colhéres de prata desappareciam dos -quartos onde Lisa passava a noite. - -Depois de ter entrado um momento em sua casa, Casimiro sae, decidido a -ir ter com Ambrosina, para saber se ella crê devéras que a rapariga seja -criminosa. Mas já a aventura da noite é sabida em todo o predio; porque -o primeiro cuidado de Adriana foi ir dizer ao porteiro que a menina Lisa -deu em casa de sua ama segunda representação da noite em que ficara em -casa da sr.ª Proh. Chausson, que sente certa sympathia pela inquilina do -quinto andar, tem muita pena de ser obrigado a julgal-a criminosa, mas -Rouflard, que escutou a creada de Ambrosina, diz-lhe: - -—A menina é uma tola em ter má lingua! é mister ser imbecil, depois das -historias da colhér perdida em casa da sr.ª Proh, para suppôr que uma -rapariga que quizesse commetter um furto repetisse exactamente a mesma -historia dois andares mais abaixo... - -—Pois bem! então onde está a colhér? - -—Que sei eu? debaixo das suas saias talvez.... - -—O senhor insulta-me, eu sou uma rapariga honrada, toda a gente o sabe, e -tenho orgulho n’isso. - -—Quem é honrada, não se gaba de o ser, não faz mais que o seu dever.... - -—Fica-lhe bem falar assim, o senhor que bebe o _rhum_ que lhe mandam -comprar. Ah! eu sei essa historia; o porteiro tem-me contado as suas -proezas. - -—Contou-lhe tambem as d’elle, quando era meu creado? - -—O senhor teve um creado? oh! é boa pilheria... - -—Pouco me importa que o acredite ou não, não é de mim que se tracta, é da -menina Lisa, que eu lhe prohibo accusar de furto. - -—O senhor prohibe-me! Ah! eu não faço caso das suas prohibições, sim, a -menina Lisa furtou uma cochér, ou duas, para melhor dizer... - -Adriana dizia isto gritando com todas as suas forças; Rouflard está -furioso. Ao barulho que se faz no patamar do primeiro andar, quasi todos -os inquilinos do predio teem saído de suas casas, e Casimiro chega alli -no momento em que Ambrosina vinha tambem á escada para ordenar á sua -creada que se callasse. - - - - -XVII - -O que era - - -Casimiro pára deante de Ambrosina, dizendo-lhe. - -—E a senhora tambem acredita que aquella menina lhe tenha tirado essa -colhér de prata que lhe falta? - -Ambrosina tracta de dominar a impressão que lhe causa a vista de -Casimiro, com quem ella se não tinha encontrado desde a altercação que -dera em resultado o rompimento das suas relações, e responde-lhe com um -tom levemente ironico: - -—Na verdade, sinto muito o que acontece, sobretudo por sua causa; lamento -que seja a sua protegida aquella a quem o senhor sacrificou uma antiga -amizade, que se tenha tornado culpada d’uma acção tão reprehensivel, mas -é forçoso reconhecer o que é, o que não se pode negar... - -—Mas, minha senhora, essa menina tem sido sempre um modelo de -honestidade, de bom comportamento. A senhora sabe como ella trabalha para -que a sua velha paralytica não sinta falta de coisa alguma... - -—Tudo o que quizer, senhor, mas então ache-me a colhér... - -—Podia ter entrado alguem em sua casa emquanto Lisa dormia, porque ella -dormiu. - -—Quem queria o senhor que entrasse... ladrões? mas o porteiro havia de -saber se entraram alguns no predio, e o senhor não suppõe, presumo eu, -que seja alguem da minha casa que tenha entrado no quarto onde a menina -Lisa estava velando a Adelinasinha... Ella dormiu, diz o senhor, dil-o -ella, mal quem o prova? - -—Ora! demais, exclama a sr.ª Proh, que desceu do terceiro andar para -se metter na conversação; não se dirá que em minha casa poude alguem -entrar até junto da enfermeira; depois, ha em tudo isto alguma coisa que -deve fazer condemnar Lisa, é o amor, a paixão da avó pelas colhéres de -prata, a sua menina comprou-lhe uma ultimamente, que ella se apressou a -mostrar-me. E’ provavel que a velha tenha querido ter outras... - -—A senhora está a calumniar pessoas honradas, não o consentirei!... - -—Eu não calumnio, digo o que é e custa pouco a dizer: Ella está -innocente! está innocente! então onde estão as nossas colhéres? - -Uma senhora que mora por cima de Ambrosina, que tem cincoenta annos, o ar -muito distincto, o aspecto frio, severo mesmo, e não fala a ninguem no -predio, mas que, attrahida pelo barulho que se faz na escada, ouviu tudo -o que se acaba de dizer no patamar do primeiro andar, desce tambem ahi -por sua vez, e diz a Casimiro: - -—O senhor não crê a menina Lisa culpada, nem eu tão pouco; mas ha em tudo -isto um mysterio que é preciso descobrir, estou persuadida de que o hei -de conseguir eu... - -—Ah! minha senhora! restituirá a vida a essa pobre Lisa, porque ella -morrerá de desgosto se a sua innocencia não fôr por todos reconhecida... -fale, o que tenciona fazer?... - -—Senhor, para isso é preciso que essa menina consinta em vir passar esta -noite em minha casa, dir-lhe-hei que minha irmã, que vive commigo, está -doente, e que é preciso que alguem a fique velando... - -—Ah! minha senhora, Lisa não quererá; depois do que lhe aconteceu duas -vezes, como quer a senhora que ella consinta ainda em velar alguem? - -—Consentirá se o senhor se encarregar de lhe pedir, se lhe disser que é -para ficar certa da sua innocencia que lhe pede este ultimo sacrificio -d’uma noite... - -—Oh! minha senhora, se assim é, eu a decidirei a ficar velando esta noite -em sua casa. - -—Pois bem! então, mande-a vir á meia noite. Pedirei a estas senhoras que -estejam em minha casa um pouco antes. - -—Para quê? pergunta a sr.ª Proh. - -—Para serem testemunhas do que lá se ha de passar, e, como espero, -reconhecerem a innocencia de Lisa. - -—Oh! a mim é-me impossivel estar de véla, isso constipa-me... - -—Eu não faltarei, diz Ambrosina, antes da meia noite terei a honra de a -ir visitar. - -—Muito bem, com o sr. Casimiro e commigo, será o sufficiente. O senhor -terá a extrema bondade de vir durante o dia dizer-me se Lisa consente em -vir ficar de véla em minha casa?... - -—Vou immediatamente lá acima, minha senhora, e em breve terá a sua -resposta. - -—Muito bem. Minhas senhoras, tenho a honra de as cumprimentar. - -A sr.ª Durmont, é este o nome da inquilina do segundo andar, sobe para -sua casa, deixando cada vizinha a fazer os seus commentarios. - -—Eu não creio nada que esta senhora descubra o mysterio, diz a sr.ª Proh. - -—Ficará tambem sem uma colhér, murmura Adriana. - -A sr.ª Montémolly manda calar a creada, e entra com ella para casa. - -—Ahi está uma senhora respeitavel, exclama Rouflard olhando para o -segundo andar; aquella não é de continhos, diz lá comsigo: A pequena -não tirou as colhéres, mas ha n’isso um mysterio, logo é preciso -descobril-o... - -—E como se haverá ella para isso? diz o porteiro. - -—Isso está acima da sua capacidade... - -—E da sua tambem... - -—Vossê esquece-se da sua posição, meu ex-_frontinio_!... - -—Qual _frontinio_!... eu sou guarda-portão... - -—Então, varra melhor o pateo. - -Casimiro não perde um instante; sobe a casa de Lisa, que elle acha sempre -na mesma tristeza, e diz-lhe: - -—Tenho boas noticias a annunciar-lhe. A sr.ª Durmont, esta senhora que -mora no segundo andar, interessa-se pela menina e não duvida da sua -innocencia... - -—Ah! agradeço-lhe muito; com effeito, essa senhora sempre olhou para mim -com bondade... - -—Mas não é só isso; ella quer que a verdade seja conhecida de todos, que -se descubra o que é feito das duas colhéres que desappareceram. - -—Ah! como serei feliz se ella consegue fazer isso; é a vida, porque é a -honra que essa senhora me restituirá. E o que fará ella para isso? - -—Oh! vae parecer-lhe singular; mas é preciso que esta noite a menina -consinta ainda em ir velar em casa d’ella, ao pé de sua irmã, que está -doente. - -—Velar, passar a noite longe de minha avó? oh! não, não, bem sabe que é -uma coisa que sempre me traz desgraça. - -—Mas d’esta vez é pelo contrario para a justificar que se lhe pede isso. -O que pode recear? aquella senhora interessa-se pela menina, ceda pois, -peço-lhe eu, consinta mais esta vez; tenho confiança na sr.ª Durmont, -ella descobrirá de certo o mysterio que reina n’essas duas noites -inexplicaveis... - -—E’ essa a sua vontade? pois bem! farei o que o senhor quer; mas em casa -d’essa senhora terei o cuidado de não adormecer. - -—Sim, é isso; d’esse modo verá o que se passar. A’ meia noite virei -buscal-a, e eu mesmo a levarei a casa d’essa senhora. - -—Terá essa bondade? - -—Ah! Lisa, tracta-se da sua felicidade, da sua reputação; pois a menina -acredita que alguem tome n’isso mais interesse do que eu? Então, está -ajustado; á meia noite estará prompta? - -—Oh! sim, a essa hora já minha avó está a dormir. - -—Eu virei buscal-a. - -E, deixando Lisa, Casimiro dirige-se immediatamente a casa da vizinha do -segundo andar, e diz-lhe: - -—Lisa consentiu; á meia noite eu lh’a trarei. - -—Muito bem. - -—Prometteu não se deixar dormir, e eu incitei-a tambem a isso, para que -ella veja se alguem vem ter com ella durante a noite. - -—Oh! o senhor fez muito mal, pelo contrario, é preciso que Lisa durma, é -indispensavel; é com isso que eu conto... - -—Não a comprehendo, minha senhora. - -—Ha de comprehender-me esta noite; demais, vou preparar uma bebida -ligeiramente soporifica, e pedir-lhe-hei que a faça beber o senhor mesmo -a essa menina, dizendo-lhe que é para se conservar bem esperta. - -—Mas, minha senhora... - -—Senhor, se Lisa não dormir, não saberemos nada, e esta experiencia será -completamente inutil. - -—Oh! n’esse caso obedecerei, porque tenho confiança na senhora. - -—Folgo de crer que se não arrependerá. Venha, senhor, acompanhe-me, vou -leval-o ao quarto onde Lisa ha de ficar velando esta noite; é onde dorme -minha mana, que goza de perfeita saude, mas que fingirá estar doente, -e pela noite adeante pedirá de beber duas ou tres vezes quando a sua -enfermeira não estiver a dormir. - -A sr.ª Durmont faz entrar o rapaz n’um bello quarto de dormir, que tem -duas portas: uma, que é de vidraça, dá para outro quarto; ahi estão os -vidros apenas cobertos por uma ligeira cortina de cassa. A senhora leva -Casimiro a este quarto, e diz-lhe: - -—Não acha, senhor, que detraz d’esta vidraça se pode ver tudo quanto se -faz no quarto onde Lisa ha de ficar? - -—Sim, minha senhora, effectivamente, não ha nada mais facil; como a -cortina está d’este lado, pode-se facilmente affastar. - -—Tanto mais que, pela maneira porque ha de estar allumiado o quarto de -minha mana, esta porta de vidraça ficará completamente na obscuridade. -Pois bem, senhor, é aqui, de traz d’esta vidraça e sem que a pequena o -saiba, que nós passaremos a noite, o senhor, a vizinha do primeiro andar -e eu; parece-lhe que poderemos assim vêr tudo o que Lisa fizer? - -—Certamente, minha senhora; mas, não comprehendo... - -—Espere, espere, e estou certa de que ha de comprehender esta noite. -O senhor terá a bondade de me trazer a menina Lisa, e fingirá que vae -para sua casa, mas voltará aqui por est’outro lado; não se esquecerá do -caminho? - -—Fique descançada, minha senhora, não me esquecerei de coisa alguma... - -—Até á noite, senhor. - -Casimiro deixa esta senhora, procurando em vão adivinhar o que ella -espera. Emcontra Rouflard e communica-lhe as suas inquietações. O -ex-janota abana a cabeça, dizendo: - -—Eu tambem não adivinho nada em tudo isso; mas em todo o caso, -affianço-lhe que passarei a noite na escada deante da porta d’essa -senhora, e que se algum larapio de colhéres tentar introduzir-se na casa, -começarei pelo desancar. - -Assim que dá meia noite, Casimiro dirige-se a casa da sua vizinha. Acha-a -muito triste, a tremer, mas prompta a seguil-o, porque sua avó está a -dormir. A rapariga apressa-se a pegar no seu trabalho, e, sem dizer -palavra, vae acceitar o braço que lhe offerece Casimiro. Descem assim -alguns degraus. - -—A menina está a tremer, diz-lhe o seu braceiro, tem frio? - -—Não, pelo contrario, tenho muito calor; mas estou a tremer, porque -adivinho ainda uma desgraça... - -—Mas, ao contrario, são os seus desgostos que vão acabar, socegue, esta -senhora quer que a sua innocencia brilhe aos olhos de toda a gente. - -—E como se haverá para isso?... - -—E’ segredo d’ella... tenha confiança. - -Chegam ao segundo andar. A sr.ª Durmont vem pessoalmente ao seu encontro, -e leva-os para o quarto onde a irmã está deitada ha muito tempo. - -—E’ aqui que a menina ficará velando, diz ella á sua joven vizinha; tome -uma chavena de chá, que lhe ha de fazer bem e conserval-a acordada. - -—Agradecida, minha senhora, não preciso de nada. - -—Lisa, diz Casimiro, tome o que esta senhora lhe offerece, peço-lhe eu, -isso ha-de socegal-a. - -—Se o senhor o deseja... - -E a rapariga bebe o conteúdo da chavena que lhe apresentam. - -—Agora, boa noite, diz Casimiro, vou para minha casa... até ámanhã... - -—Sim, até ámanhã. - -O joven pintor retira-se. A sr.ª Durmont diz então a Lisa: - -—Minha menina, aqui tem tudo quanto lhe é preciso; tisana para quando -minha irmã pedir de beber... uma colhér d’este xarope quando ella tossir. - -—Uma colhér, ah! sim... ahi temos outra; mas podia-se passar sem ella, -minha senhora. - -—Não... pelo contrario, é indispensavel; precisa mais alguma coisa? - -—Oh! não, minha senhora, de nada absolutamente. - -—N’esse caso, vou deixal-a; minha irmã parece menos afflicta esta noite, -creio que lhe dará pouco que fazer, aqui tem uma grande poltrona onde -estará á sua vontade para repousar. Porque, se minha irmã dormir, tambem -a menina pode descançar um pouco. - -—Oh! não, minha senhora, não quero... velarei sempre... - -—Boa noite, menina, até ámanhã. - -Assim que a sr.ª Durmont se retira, Lisa senta-se n’uma cadeira e pega no -seu trabalho, dizendo comsigo: - -—Oh! não, não me deixarei dormir, para que durante o meu somno venham -ainda tirar a colhér... Ah! se eu tivesse velado sempre, não teria -acontecido isso; mas esta lampada allumia perfeitamente, posso bordar. - -Casimiro entretanto dirigiu-se ao quarto que lhe foi indicado e que está -apenas allumiado por uma lamparina. Encontra alli Ambrosina, que está -sentada junto da porta de vidraça; toca um frio cumprimento com ella, -dizendo-lhe: - -—Agradeço-lhe, minha senhora, o não ter faltado aqui, para ter a prova da -innocencia de Lisa... - -—Desejo-o muito, porque eu não sou tão má como o senhor pensa; mas -confesso-lhe que duvido que se consiga proval-a. - -Põe termo a este colloquio a chegada da sr.ª Durmont, que colloco a -lamparina muito longe da porta de vidraça, dizendo: - -—D’esta maneira, é impossivel que do quarto da minha mana se veja que -ha luz aqui, emquanto que nós, atravez d’esta ligeira cortina de cassa, -podemos ver tudo o que alli se passa. Olhe, minha senhora, tenha a -bondade de vêr... - -—Ambrosina põe a cara á vidraça e murmura: - -—Effectivamente, vejo muito bem, porque o quarto està muito illuminado... -a rapariga trabalha... - -—Sim, e agora é preciso termos paciencia, devemos esperar que ella -adormeça. - -—Mas se não adormecer? - -—Oh! estou certa do contrario, graças a um ligeiro narcotico que misturei -na chavena de chá que lhe fiz tomar, e creio que era isso necessario, -porque ella estava muito decidida a não dormir. Mas aquella beberagem não -fará talvez o seu effeito senão dentro de duas ou tres horas... d’aqui -até lá, se a senhora quer encostar-se n’esta poltrona... - -—Não, minha senhora, muito agradecida, não tenho vontade de dormir, -porque estou com muita curiosidade de saber o que sairá de tudo isto. - -Esta conversação era toda em voz baixa, o que augmentava o mysterio -que esta noite devia descobrir. As tres pessoas alli reunidas teem-se -sentado e guardam silencio, pondo os ouvidos á escuta do que se passa no -quarto onde está Lisa. A irmã da sr.ª Durmont, que sabe bem o seu recado, -pede de beber; a rapariga apressa-se a dar-lhe a tisana, e em seguida -offerece-lhe uma colhér de xarope, que é logo acceita. Lisa torna a pôr a -colhér em cima do meza, e senta-se ao lado. A supposta enferma adormece -devéras, e a rapariga põe-se de novo ao seu trabalho. - -Assim se passa uma hora, e depois outra. A anciedade de Casimiro -augmenta; Ambrosina não diz palavra, mas não fecha os olhos. A sr.ª -Durmont olha constantemente pela vidraça, murmurando: - -—Mas a pequena não adormece... conseguiria ella vencer o narcotico!... - -—Passam ainda alguns minutos, que parecem seculos; a final a sr.ª Durmont -exclama: - -—Ah! debalde pretende resistir, cae-lhe o trabalho das mãos, vae -adormecer... - -—Sim, sim, adormece, diz Casimiro; veja, lá inclinou a cabeça para traz. -Oh! ella ahi está bem adormecida... - -—E agora, diz Ambrosina olhando tambem pela vidraça, o que é que se vae -passar?... - -—Espere, minha senhora, espere que o somno seja bem profundo, agora -podemos levantar de todo esta cortina sem receio de sermos vistos. - -E’ levantada a cortina. As tres pessoas que espreitam estão com os olhos -pregados em Lisa; esta, no fim de algum tempo, agita-se; o seu somno -parece desassocegado e molesto. - -—Coitada! parece-me bem afflicta, diz Casimiro, deve estar com algum -sonho máu... - -—Ah! ahi acorda ella... porque lá se levanta e abre os olhos, diz -Ambrosina. - -—Silencio, minha senhora, silencio, diz a sr.ª Durmont; ella continúa -dormindo, não vê que é somnambula? - -—Somnambula! - -—Pois! escute... está falando... - -Lisa, que continua a dormir, não obstante estar com os olhos muito -abertos, levanta-se da cadeira, dizendo: - -—Sim, avósinha, sim, vou fechar a sua colhér de prata... que a avósinha -estima tanto, e que tem tanto medo que nos furtem. Oh! mas eu a -esconderei bem, não tenha cuidado, sempre no mesmo sitio, a avósinha bem -sabe, debaixo do meu colchão de crina... - -E Lisa vae immediatamente buscar a colhér que está em cima da mesa, e, -indo pôr-se de joelhos deante da cama, mette-a entre o leito e o colchão; -depois ergue-se, dizendo: - -—Oh! está bem escondida, ninguem dará com ella... não tenha medo agora, -avósinha... - -Lisa volta para o seu logar, torna a sentar-se e fecha os olhos. A’s -tres pessoas que espreitam pela vidraça, não lhes escapou nada do que se -passou. Casimiro está transportado de alegria. - -—Justificada! exclama elle, está justificada, porque as outras colhéres -devem estar escondidas no mesmo sitio, não é verdade, minha senhora? - -—Certamente! responde a sr.ª Durmont, esta rapariga é somnambula, eis -o que eu havia adivinhado; eis o que eu tinha a peito fazer-lhes ver: -agora, venham, podemos entrar no quarto, que ella não acordará... - -—Somnambula! diz Ambrosina, que custa a cair em si do seu espanto. Ah! -estou com muita curiosidade de a examinar de perto. - -Aberta a porta de vidraça, entram todos tres no quarto de dormir. Lisa -está na poltrona, com a cabeça inclinada para traz, e, na agitação do seu -somno, afastou completamente o lencinho que lhe cobria o pescoço; pode-se -então ver uma pequena medalha presa a uma fita preta, que ella traz -sempre escondida debaixo do vestido. - -A sr.ª Montémolly, que duvida ainda do somno de Lisa, approxima-se d’ella -e examina-a com muita attenção. - -—Venha, minha senhora, diz-lhe Casimiro, venha, vamos a sua casa, a -colhér deve estar egualmente escondida debaixo do leito da sua doentinha; -é preciso que a senhora tenha pessoalmente a prova da innocencia de -Lisa... - -Mas Ambrosina parece estar attonita; acaba de ver a medalha que a -rapariga traz ao pescoço; essa medalha, que tem uma fórma particular, é -esmaltada toda em roda e artisticamente lavrada. Ambrosina não pode tirar -d’ella os olhos, e responde apenas a Casimiro: - -—Vá, senhor, vá com essa senhora... não precisam de mim; a minha creada -está velando, com luz... demais, aqui teem a minha chave... - -—Mas porque não vem a senhora comnosco? - -—Porque não, alguma coisa muito mais importante me faz ficar ao pé de -Lisa; logo saberão o que é... andem, vão... - -Casimiro não insiste, porque demais está com pressa de ir procurar a -outra colhér; a sr.ª Durmont não tem menos pressa, porque sente certo -orgulho em ter conseguido descobrir o mysterio que envolvia as acções de -Lisa. Na escada encontram Rouflard, o qual se puzera alli de sentinella. - -—Justificada! diz-lhe logo Casimiro, Lisa é somnambula, e a dormir, -pensando sempre na colhér da avó, esconde debaixo do colchão de crina -quantas colhéres encontra á mão. Vamos procurar a que ella deve ter -escondido assim em casa da sr.ª Montémolly. - -—Ah! por favor, permittam-me que vá tambem, exclama Rouflard, gostarei -muito de ver a cara que vae fazer a besbilhoteira da creada!... - -—Venha, Rouflard, venha... - -Entram em casa de Ambrosina, e acham a menina Adriana a dormir na sala em -vez de estar velando á cabeceira da doentinha; mas Casimiro desperta-a -dizendo-lhe: - -—Venha comnosco, menina, conduza-nos ao quarto onde Lisa passou hontem a -noite; vamos lá achar esse objecto perdido... - -—A colhér? ah! isso agora é forte de mais; se eu procurei por toda a -parte inutilmente!... - -Mas não fazem caso do que diz a creada, e dirigem-se todos ao bonito -quarto onde dorme a pequenita. Ahi, Casimiro corre á cama, busca debaixo -do colchão de crina e não tarda a soltar um grito de jubilo, tirando para -fóra a colhér e mostrando-a a toda a gente. - -Então Rouflard pula de alegria, e diz a Adriana: - -—Responda a isto, má lingua! parece que não tinha buscado por toda a -parte! - -—Oh! valha-me Deus! quem é que podia suspeitar que se fosse pôr uma -colhér de prata n’este sitio; com que fim? - -—Quando uma pessoa é somnambula faz coisas muito mais admiraveis! - -—Somnambula?... - -—Sim, eis todo o mysterio! Ah! subo a casa dos Proh, para lhes dizer onde -teem a colhér... - -—Mas elles estão a dormir, Rouflard! - -—Razão de mais, meu artista; isso ha de fazer-lhes mais effeito! quero -que a justificação do meu anjo bom faça tanta bulha como as calumnias que -lhe accusavam. - - - - -XVIII - -Outra descoberta - - -Casimiro e a sr.ª Durmont voltam a ter com Ambrosina; acham-n’a ainda ao -pé de Lisa, que não acordou, devorando com os olhos a medalha suspensa ao -pescoço da donzella, mas não se atrevendo a tocar-lhe, com receio de a -fazer sair do somno um pouco forçado em que a mergulhou o narcotico que -lhe fizeram tomar. - -—Minha senhora! minha senhora! aqui tem a sua colhér! exclama Casimiro -mostrando a colhér de prata; estava escondida como aqui; graças a esta -senhora, a pobre rapariga está plenamente justificada... - -—Sim, senhor, sim; eu não duvidava d’isso; mas alguma coisa que não -posso comprehender me detem ao pé de Lisa; esta medalha que ella traz, é -exactamente como aquella que eu tinha posto ao pescoço de minha filha; a -minha abria-se, e na parte anterior tinha eu mandado gravar duas letras: -um A e um G, que eram as iniciaes do meu nome e do de seu pae; ardo -em desejo de saber se esta medalha se pode abrir, mas não me atrevo a -tocar-lhe com receio de acordar esta menina... - -—Oh! não ha perigo! diz a sr.ª Durmont, o seu somno é profundo agora; -espere... espere, vou tirar-lhe; ou antes desatar esta fita. - -A inquilina do segundo andar faz esta operação com muito geito; desata -a fita, tira a medalha, e apresenta-a a Ambrosina; esta pega n’ella com -a mão tremula, busca, descobre a juntura; a medalha abre-se. Ambrosina -dá um grande grito, acaba de reconhecer as duas letras, e mostra-as ás -pessoas que a rodeiam, dizendo-lhes: - -—Olhem! vejam... um A e um G... é exactamente a medalha que eu tinha -posto ao pescoço de minha filha quando a entreguei á ama. Como é que ella -se acha ao pescoço d’esta menina? - -Entretanto o grito dado por Ambrosina acordou Lisa, que abre os olhos, -põe-se a olhar para as pessoas que a cercam, e balbucia: - -—Meu Deus! o que é que eu fiz ainda?... - -—Não receie nada, minha menina, diz a sr.ª Durmont, a sua innocencia está -reconhecida; tudo lhe será explicado... - -—Mas n’este momento, diz Ambrosina, queira responder-me, esta medalha, -que a menina trazia ao pescoço, e que eu tomei a liberdade de lhe tirar -para a examinar de mais perto, d’onde lhe veiu? de quem a houve? - -—De quem a houve? mas eu tenho-a tido sempre, foi minha mãe que m’a pôz -ao pescoço quando me levou para casa da minha ama. - -—Sua mãe? meu Deus!... como se chama ella? - -—Eu nunca o soube, ella não dizia o seu nome quando vinha ver-me a casa -da minha ama... - -—Como! a menina não sabe? e tem comsigo sua avó... ella existe?... - -—Ah! minha senhora, a pobre velha paralytica não é minha parenta; era -mãe da minha boa ama, que tinha muito cuidado em mim, que me conservou -comsigo, quando minha mãe me abandonou; eis a razão por que eu, quando a -minha ama morreu, tive sempre cuidado em sua mãe... - -—Meu Deus! tudo o que estou ouvindo... minha menina... por quem é... -diga-me a terra onde foi educada... - -—Em Pierrefitte, minha senhora... - -—Pierrefitte... está bem, ah!... e o nome da sua ama... - -—Catharina Vauger... - -—Ah! não me resta duvida! és minha filha!... - -Ambrosina aperta Lisa nos braços, e cobre-a de beijos, dizendo-lhe: - -—Sim, és effectivamente minha filha, mas não creias que eu tivesse nunca -o pensamento de te abandonar, eu, que era tão feliz em ter uma filha! -Tu foste... fomos ambas indignamente enganadas; eu tinha uma tia que te -detestava; durante uma viagem que fiz a Italia para restabelecer a minha -saude, essa tia, a quem eu tinha recommendado muito que velasse por ti, -annunciou-me que tinhas deixado de viver!... - -—Oh! então, deve ter sido ella que escreveu á minha ama, remettendo-lhe -uma quantia bastante avultada, para que viesse estabelecer-se em Paris, -e não me chamasse mais senão Lisa em vez de Leontina, que era o nome que -minha mãe me tinha dado... - -—Leontina... ah! é isso mesmo... tua mãe... mas sou eu... querida -filha, sou eu mesma... acaso não terás por mim alguma affeição... não me -perdoarás... o mal que te tenho feito?... - -—Oh! minha senhora... minha mãe... já me não lembro d’isso! - -As testemunhas d’esta scena tomam parte na alegria, no enternecimento -d’estas duas mulheres, uma das quaes torna a encontrar a filha que -tinha por morta ha muito tempo, emquanto que a outra, que quasi todos -accusavam, que suspeitavam culpada d’uma acção deshonrosa, se vê agora -abraçada, coberta de caricias e de lagrimas por uma bella senhora que -é sua mãe. Lisa, no auge da sua alegria, extende as mãos a Casimiro, -exclamando: - -—Ah! o senhor é que nunca me julgou criminosa! - -Depois agradece á sr.ª Durmont dizendo-lhe: - -—E’ pois á senhora que eu devo o ter recuperado a estima do mundo, como é -que se houve então para provar a minha innocencia? - -—Minha querida menina, depois de tudo o que se passára, eu tinha -adivinhado que a menina era somnambula, e não me enganava. - -—O quê! eu sou somnambula!... - -—Sim, sem duvida, quando está a dormir, sempre preoccupada com a colhér -de prata que deu á sua velha companheira, e receando que lh’a furtem, a -menina pega na que tem perto de si, pensando que é a sua, e esconde-a. -Oh! isso não tem nada de muito extraordinario; tenho visto fazer a -somnabulos coisas muito mais de espantar!... - -—Mas, quando estou acordada, devia lembrar-me do que fiz estando a -dormir!... - -—Não, minha filha, os somnambulos não se recordam nunca do que fizeram -emquanto estiveram entregues a esse somno em acção, e é isso o que ha -de mais singular n’essa doença, porque é effectivamente uma doença, mas -que passa com a mocidade, e desapparece inteiramente quando a edade tem -acalmado as nossas paixões e o calor do nosso sangue. - -—Agora, diz Ambrosina, não incommodemos mais tempo esta senhora, a quem -eu devo tambem a minha felicidade, pois que é, graças á idéa que ella -teve de te ver adormecida, que eu pude examinar essa medalha e tornar a -achar minha filha. Vem, minha querida Lisa, vem para casa de tua mãe, a -quem não deixarás mais d’aqui em deante. - -Lisa está perplexa e confusa, sorri-se para sua mãe, e balbucia: - -—E a pobre velha de quem nunca me tenho separado... acaso quereria que eu -a abandonasse? - -—Não, não querida filha, comprehendo o teu coração, não quero causar-te -nenhum desgosto; a mãe da tua ama não se ha de separar de ti, tomal-a-hei -para a nossa companhia, a minha casa é bastante grande para que eu possa -dar-lhe um quarto. D’este modo nada lhe faltará, e tu velarás sempre por -ella... - -—Ah! minha senhora... minha mãe... é tambem muito bondosa! - -—E, agora que vem rompendo a aurora, vou subir comtigo a esse pobre -quarto que habitavas; participaremos á boa velha que já não és orphã e -que tua mãe nunca te tinha abandonado; eu te mostrarei a carta de minha -tia, em que ella me annunciava que tinha perdido minha filha; tenho -conservado sempre essa carta... - -—E eu, minha mãe, hei de mostrar-lhe a carta que a minha ama recebeu -juntamente com uma quantia, e na qual se lhe ordenava que não me chamasse -mais senão Lisa e que viesse estabelecer-se em Paris. - -—Oh! sim, e estou certa que hei de reconhecer a letra de minha tia. - -Ambrosina está contentissima; estende a mão a Casimiro, dizendo-lhe: - -—De hoje em deante somos amigos, e espero que não veja mais em mim senão -a mãe de Lisa, que lhe agradece de todo o coração o interesse, a amizade -que o senhor tinha por sua filha e que nunca se opporá ao que podér fazer -a sua felicidade. - -Casimiro aperta de bom grado esta mão, que ê agora a d’uma pessoa amiga. - -Despedem-se todos da sr.ª Durmont, reiterando-lhe os seus agradecimentos, -que tão bem merecidos eram. Lisa sobe ao seu quarto acompanhada por sua -mãe, que não quer deixar mais a filha que um tão grande acaso acaba de -lhe restituir. Na escada encontram ainda Rouflard, que sae de casa dos -Proh, gritando: - -—Elles lá teem a colhér, que nunca lhes tinha saído de casa. Mas, apre! -tive um trabalhão immenso! não me queriam abrir a porta! - -Ouvindo tocar a sua campainha no meio da noite, a familia Proh julgára -primeiro inutil responder; mas, como o repique não cessava, tinha -perguntado: - -—Quem está ahi? - -—Sou eu, gritára Rouflard, que venho fazer-lhe achar a sua colhér! - -Ao reconhecer a voz de Rouflard, o professor respondera: - -—O senhor é um maroto, quer perturbar o nosso somno com esse ignobil -gracejo, ámanhã hei de mettel-o em processo. - -Ao que Rouflard, replicára: - -—Eu não gracejo, é o senhor e todos os seus que são uma familia de -pepinos! Eu tenho a peito fazer-lhes reconhecer a innocencia de Lisa, que -é somnambula, e vou fazer-lhes achar a sua colhér! tocarei a campainha -até ámanhã se fôr necessario. - -A sr.ª Proh decide-se emfim a abrir. Então Rouflard diz: - -—Venham todos commigo ao quarto onde Lisa passou a noite; ella escondeu a -colhér debaixo do colchão de crina... - -—Não é possivel, diz Angelina, eu teria dado por isso! - -—E de que modo, se a menina estava a dormir?... Vamos lá sempre. - -Dirigem-se todos ao quarto da donzella. O rapazinho que se tem tambem -levantado e ouve tudo, exclama: - -—Eu vou procurar debaixo do colchão... - -—Não, não, tu não tens o braço bastante comprido, diz Rouflard, que -busque o illustre professor, se isso lhe é agradavel... - -—Eu! prestar-me a essa nova mangação, para o senhor fazer chacota de -mim!...não conte com isso... - -Mas, durante esta altercação, a sr.ª Proh, que está muito impaciente, -tem-se já posto de joelhos deante da cama; mette o braço debaixo do -colchão, e em seguida tira de lá para fóra a colhér, dizendo: - -—Pois é verdade, ella cá está! - -—Então, professor, é mentira o que eu lhe dizia? Que diz a isto? - -—Direi o que isso prova: que as nossas mulheres, filhas ou creadas que -teem a seu cargo o arranjo da casa, não se dão ao trabalho de levantar os -colchões quando fazem as camas!... - -—Ora, senhor! exclama a sr.ª Proh, as mulheres teem já tantas coisas que -levantar! - -Ambrosina acompanha a filha até á agua-furtada; acham a avó acordada, -contam-lhe os acontecimentos da noite, e a boa da velha, á força de olhar -para Ambrosina, de a examinar bem, exclama: - -—Sim... é verdade... reconheço-a agora... foi a senhora que nos trouxe a -pequena... e que voltou a vel-a muitas vezer a Pierrefitte. - -Depois Lisa mostra a carta que a sua ama tinha recebido; Ambrosina -reconhece a letra de sua tia, e, se ella tivesse ainda alguma duvida -sobre a identidade de sua filha, esta ultima prova não podia deixar-lhe -mais nenhuma. Pela sua parte, mostra tambem a Lisa a carta de sua tia que -lhe annunciava a morte da filha, porque tem a peito provar a Lisa que -nunca tivera a idéa de a abandonar. - -No dia immediato a esta noite tão fecunda em acontecimentos, faz-se -na casa uma grande mudança: como Florentina viera buscar a filha, -Ambrosina dá a Lisa o lindo quarto azul onde estivera a pequenita; depois -arranja-se um outro quarto para a velha paralytica, que é trazida da sua -agua-furtada para o primeiro andar, e que fica muito satisfeita ao saber -que, apezar da sua mudança de fortuna, a Lisinha, que ella considera como -filha, não se quer separar d’ella. - -Casimiro ficou muito espantado, e assim a modo triste, quando se -descobriu o segredo do nascimento de Lisa; teve mesmo por um momento -o coração opprimido, como quem receia perder a pessoa que ama. Mas em -breve adquire a prova de que o amor maternal extinguiu em Ambrosina -qualquer outro sentimento, e que para esta mulher, tão feliz por ter -achado sua filha, o passado não é mais do que um sonho, de que ella nem -mesmo quer conservar a recordação. O joven pintor pode pois agora ver -Lisa em casa de sua mãe. Mas durante os primeiros mezes que se seguem a -este acontecimento, põe n’isso certa discreção, porque comprehende que ha -situações que precisam de tempo para se consolidarem. Demais, Casimiro -trabalha agora muito; o bom acolhimento que os seus quadros obteem, -redobra o seu enthusiasmo, o seu amor pela pintura; em todas as artes, -não é preciso muitas vezes mais que um bom exito para tirar um homem da -mediocridade, para fazer d’elle uma celebridade, e por falta d’esse bom -exito quantos talentos não teem morrido, sem terem desenfardado as suas -mercadorias, como diz Montaigne. - -Seis mezes depois d’estes acontecimentos, morre o sr. Loursain, em -consequencia d’uma indigestão. Ambrosina sabe que está viuva, e, o que a -surprehende muito mais, é que recebe uma carta d’um tabellião, que lhe -participa que seu marido lhe deixou toda a sua fortuna, que anda por -perto de trezentos mil francos. A menina Rosa, a creada tão janota e -presumida, que seu amo tratava por tu, teve apenas em legado uma quantia -de seiscentos francos, e o retrato do corpo inteiro do sr. Loursain. A -creadinha, na força da sua colera, manda accrescentar no retrato um par -de chifres e vende-o para servir de taboleta a um salsicheiro, que manda -escrever por baixo: _O boi da moda_. - -Ambrosina, que tencionava entregar á filha uma parte dos seus haveres, -dá-lhe primeiro em dote a fortuna que lhe deixa o sr. Loursain, comprando -ella para si uma bonita casa nos suburbios de Paris, onde faz tenção de -ir viver quando Lisa casar com Casimiro. - -Essa união pouco tarda a fazer-se, porque Lisa confessou a sua mãe que -ama o rapaz que lhe fez o retrato. Ambrosina estabelece os jovens noivos -n’uma linda habitação, e retira-se para a casa de campo, onde agora quer -viver sempre; Lisa, porém, se deixou sua mãe, não quiz, posto que casada -separar-se d’aquella de quem cuidava tão carinhosamente na sua pobre -agua-furtada, da boa velha a quem ella chamava avó, e Casimiro, lá de si -para si, estima cem vezes mais que ella tenha na sua companhia esta do -que a outra. - -Desde que em casa dos Proh se achou a colhér de prata, o Fonfonsinho não -cessa de gritar por toda a parte: - -—Lisa é funanbula! e quando uma pessoa é funanbula esconde tudo quanto -quer: - -Debalde a sr.ª Proh diz ao filho: - -—Não é funambula, somnambula é que essa menina era... - -—Qual é a differença? - -—A differença, meu filho, é que os somnambulos andam a dormir e os -funambulos andam n’uma corda e até dansam, estando acordados. - -—Pois bem! eu antes quero ser somnambulo! - -—Para quê, filho? o somnambulismo é uma enfermidade, emquanto que o -funambulismo é um talento! - -—Sim, mas quando eu fôr somnambulo hei de esconder todos os covilhetes de -doce. - -—Nada ganharias com isso, Affonso, pois que, em acordando, ninguem se -lembra mais do que fez no estado de somnambulismo. - -—Ah! pois não! então eu sou tolo! não serei somnambulo senão d’um olho!... - -O sr. Proh bate com a mão na testa, exclamando: - -—Este rapazinho ha de ir longe! - -Graças ao trabalho que Casimiro lhe arranja Rouflard pode viver; poderia -mesmo ter um quarto um pouco melhor, mas elle não quer mudar-se, dizendo -que está habituado a morar alli, assim como a chamar ao porteiro seu -creado; como o pintor já não mora no predio, Chausson deixa algumas vezes -o seu antigo amo dormir na rua, porque este continúa a embriagar-se do -mesmo modo. Em vão Casimiro lhe diz: - -—É preciso corrigir-se d’esse ruim defeito, Rouflard; quando um homem -quer devéras, de tudo se emenda! veja o exemplo em mim, eu era um -preguiçoso, hoje gosto do trabalho. - -—Isso é muito bonito, responde Rouflard, mas eu preciso de consolações; -morava por baixo de mim um anjo, o senhor levou-o para longe! quando -estou bebedo, affigura-se-me que o tenho ainda ao pé de mim, e é por isso -que bebo! - - -FIM DA «A MENINA LISA» - - - - - OBRAS COMPLETAS DE PAULO DE KOCK - - _Estão publicados 23 volumes_ - - A seguir: - - O homem dos tres calções (2 vol.) - - - - -INDICE - - - Pag. - - Palavreado para servir de prefacio 5 - - I—Uma creada que sae a recados 11 - - II—Na botica 22 - - III—Um rapaz manteúdo 36 - - IV—Um almoço em intimidade 48 - - V—O lindo Rouflard 62 - - VI—A familia Proh 72 - - VII—A menina Lisa 79 - - VIII—Travam conhecimento 88 - - IX—Uma colhér de prata 97 - - X—Ainda as creadas 105 - - XI—O vinho quinado 111 - - XII—A primeira sessão 117 - - XIII—Um rapazito endiabrado 128 - - XIV—A senhora do primeiro andar 137 - - XV—A menina Proh doente 143 - - XVI—Mais um caso extraordinario 155 - - XVII—O que era 166 - - XVIII—Outra descoberta 177 - - -REFERENCIA DAS ESTAMPAS - - Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado 83 - - Mas o que faz o senhor aqui? 129 - - - - - -End of the Project Gutenberg EBook of A menina Lisa, by Paul de Kock - -*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA *** - -***** This file should be named 63195-0.txt or 63195-0.zip ***** -This and all associated files of various formats will be found in: - http://www.gutenberg.org/6/3/1/9/63195/ - -Produced by Rita Farinha and the Online Distributed -Proofreading Team at https://www.pgdp.net - -Updated editions will replace the previous one--the old editions will -be renamed. - -Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright -law means that no one owns a United States copyright in these works, -so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United -States without permission and without paying copyright -royalties. 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