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-The Project Gutenberg EBook of A menina Lisa, by Paul de Kock
-
-This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
-other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
-whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of
-the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
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-
-Title: A menina Lisa
-
-Author: Paul de Kock
-
-Release Date: September 13, 2020 [EBook #63195]
-
-Language: Portuguese
-
-Character set encoding: UTF-8
-
-*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA ***
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-
-Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
-Proofreading Team at https://www.pgdp.net
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- _XXIII—COLECÇÃO PAULO DE KOCK_
-
- A menina Lisa
-
- [Illustration]
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- GUIMARÃES & C.ª EDITORES
- R. DO MUNDO, 68—LISBOA
-
- Imp. Lucas
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-
-
-Livraria editora GUIMARÃES & C.ª
-
-68, RUA DO MUNDO, 70—LISBOA
-
-
-_O LIVRO DE MARIETA_
-
- (1.º vol. da Biblioteca Infantil)—1 vol. com 23 contos
- ilustrados com 25 gravuras, br. 300 rs. Enc. 400 rs.
-
-_AS MIL E UMA NOITES_
-
- (Contos arabes)—2 vol. br. 600 rs. Enc. com linda capa de
- percalina impressa a 4 cores e ouro 900 rs.
-
-_CONTOS_
-
- de D. João da Camara—1 vol. br. 600 rs.
-
-_CONTOS_
-
- do Dr. Candido de Figueiredo—1 vol. br. 200 rs. Enc. 300 rs.
-
-_TRATADO DE CIVILIDADE E ETIQUETA_
-
- pela condessa de Gencé—1 vol. br. 600 rs. Enc. 800 rs.
-
-_GUIA MUNDANO DAS MENINAS CASADOIRAS_
-
- da Condessa de Gencé—1 vol. br. 500 rs. Enc. 700 rs.
-
-_IVANHOÉ_
-
- romance de Walter Scott—4 vol. br. 800 rs.
-
-_O VIGARIO DE WAKEFIELD_
-
- de Goldsmith—1 vol. br. 200 rs.
-
-_SAUDADES_
-
- (Menina e moça) de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 200 rs.
-
-_TROVAS DE CRISFAL_
-
- de Bernardim Ribeiro—1 vol. br. 300 rs.
-
-_VERSOS PORTUGUESES_
-
- de Sá de Miranda—1 vol. br. 500 rs.
-
-_PAULO E VIRGINIA_
-
- romance de Bernardim de Saint-Pierre—1 vol. III. br. 200 rs.
-
-
-
-
-PAULO DE KOCK
-
-OBRAS COMPLETAS E ILLUSTRADAS
-
-XXIII
-
-
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-
- A MENINA LISA
-
- (VERSÃO PORTUGUEZA)
-
- [Illustration]
-
- LISBOA
- EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
- _Sociedade editora_
- LIVRARIA MODERNA TYPOGRAPHIA
- _R. Augusta, 95_
- _45, R. Ivens, 47_
- 1907
-
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-
-VOLUMES PUBLICADOS
-
-
- I—A menina das tres saias—1 vol.
-
- II—Uma vida attribulada—1 vol.
-
- III—Taquinet o Corcunda—1 vol.
-
- IV—O sr. Choublanc á procura da mulher.—1 vol.
-
- V—A Lagôa d’Auteuil (1.º vol.)
-
- VI—A Lagôa d’Auteuil (2.º vol.)
-
- VII—A Lagôa d’Auteuil (3.º vol.)
-
- VIII—A menina dos tres espartilhos—1 vol.
-
- IX—O porteiro da rua du Bac—1 vol.
-
- X—Um namorado caloiro (1.º vol.)
-
- XI—Um namorado caloiro (2.º vol.)
-
- XII—A noiva de Fontenay aux Roses—1 vol.
-
- XIII—A Viuva Tapin—1 vol.
-
- XIV—A Leiteira de Montfermeil (1.º vol.)
-
- XV—A Leiteira de Montfermeil (2.º vol.)
-
- XVI—A Leiteira de Montfermeil (3.º vol.)
-
- XVII—Um rapaz mysterioso—1 vol.
-
- XVIII—Papá-sogro—1 vol.
-
- XIX—A menina do quinto andar (1.º vol.)
-
- XX—A menina do quinto andar (2.º vol.)
-
- XXI—A menina do quinto andar (3.º vol.)
-
- XXII—A Baroneza Blaguiskoff—1 vol.
-
- XXIII—A menina Lisa—1 vol.
-
-NO PRELO:
-
- XXIV—O homem dos tres calções—2 vol.
-
-
-
-
-[Illustration]
-
-
-
-
-PALAVREADO PARA SERVIR DE PREFACIO
-
-
-De certo tempo para cá, uma nova molestia tem feito irrupção em Paris,
-por outra, em toda a França; eu poderia mesmo accrescentar que se vae
-extendendo tambem aos paizes estrangeiros. Socegae, querido leitor e
-formosa leitora (eu acho sempre as minhas leitoras formosissimas), esta
-molestia não é d’aquellas de que se morre, ou que podem desfigurar as
-vossas lindas feições (folgo tambem de crer que possuis umas feições
-encantadoras); é simplesmente a mania dos _autographos_, que traz quasi
-sempre após si a dos _albuns_.
-
-Quando um homem tem a fortuna—parece-me que seria melhor dizer a
-desgraça!—emfim, quando um homem tem alguma celebridade, não se passa dia
-algum em que não receba pedidos de autographos, ou não veja entrar-lhe
-em casa um sujeito, que lhe é inteiramente desconhecido, mas que traz
-debaixo do braço um objecto bastante volumoso, cuidadosamente embrulhado
-em papel e mettido n’uma caixa de cartão. Este sujeito, depois de muitos
-cumprimentos e d’essas phrases banaes que se dizem a toda e qualquer
-pessoa de quem se deseja obter alguma coisa, desembrulha o objecto
-que traz debaixo do braço, tira o papel, abre a caixa, e mostra-nos
-um _album_ mais ou menos bem encadernado, mas no qual ha ainda uma
-grandissim quantidade de folhas em branco; depois diz-nos com a sua voz
-mais insinuante:
-
-—Meu caro senhor, eu possuo já no meu _album_ muitos nomes celebres; mas
-falta-me o seu, o seu que é indispensavel á minha felicidade! Por quem
-é não me recuse o que lhe venho pedir! faça-me o obsequio de escrever
-algumas linhas n’uma d’estas paginas em branco, o que quizer, a mais
-pequena coisa, não exijo que seja em verso... Entretanto confesso que
-os versos teem mais encanto, conservam-se melhor na memoria; se não tem
-agora tempo, se deseja meditar sobre o que ha-de escrever, deixo-lhe cá
-o meu _album_; voltarei d’aqui a tres ou quatro dias, quando o senhor
-quizer!
-
-Estamos já de muito mau humor por sermos incommodados por este sujeito,
-que nos perturba no nosso trabalho, e que, sem nenhum titulo, nenhuma
-recommendação, vem fazer-nos um pedido a que muitos amigos e pessoas
-das nossas relações se não atrevem algumas vezes. Um pedinte de certo
-nos enfadaria menos, porque teriamos o direito de o pôr immediatamente
-na rua. Mas o homem—_album_—olha para nós como se viesse pedir-nos o
-nosso voto para a academia. Nós não queremos por fórma alguma, ficando
-com o _album_, receber uma nova visita d’este senhor, e por isso, mesmo
-resmungando, mesmo deixando vêr o aborrecimento que isto nos causa,
-abrimos o _album_ n’uma pagina em branco, pegamos na pena... O tal senhor
-está cheio de jubilo; ficará talvez menos encantado quando ler o que
-escrevemos; mas emfim, visto que elle não quer senão a nossa lettra e a
-nossa assignatura, não póde deixar de ficar satisfeito.
-
-Escrevemos a primeira coisa que nos vem á idéa; mas sempre se deve
-procurar que seja uma tolice, o que é ás vezes mais difficil de achar do
-que se julga. Dizem-me que o nosso Scribe, apoquentado tambem pela gente
-de _album_, escrevia sempre esta phrase: Perdi o meu guarda-chuva!... e
-isto era mais que sufficiente.
-
-Devo entretanto dizer que os _albuns_ apresentam-se menos vezes em
-nossa casa que os simples pedidos de autographos. Estes pedidos quasi
-sempre se fazem por correspondencia. Recebemos a cada instante cartas,
-não só de Paris, mas da provincia e mesmo do estrangeiro. Algumas vezes
-julgâmos reconhecer a letra d’uma pessoa que estimâmos muito e de quem
-ficariamos encantados de ter noticia; abrimos a carta muito depressa...
-mas nada! é ainda um pedido de autographo, d’uma pessoa que nunca vimos,
-que provavelmente não veremos nunca, e que acha simplicissimo talhar-nos
-obra, como se devessemos estar ás suas ordens!
-
-Ultimamente recebo uma carta d’um sujeito que me manda uns versos de
-que eu sou o auctor, e que provavelmente elle tinha lido e copiado d’um
-_album_. Espero que isto me servirá de lição para não tornar a cair em
-escrever versos em _albuns_. Se, como Scribe, eu não tivesse escripto
-senão: _Perdi o meu guarda-chuva!_ ou _perdi a minha bengala_, aposto que
-o tal senhor não teria copiado isto nem m’o teria enviado, fazendo-me o
-pedido de lh’o transcrever para ter estes _lindos_ versos escriptos por
-mim? O homem não cessa de me repetir na sua carta que quer por força ter
-alguma coisa minha.
-
-Se lhe respondesse, o que não tenho tenção de fazer, havia de dizer-lhe:
-O senhor quer ter alguma coisa minha; mas com que titulo? Recebi eu por
-ventura alguma coisa sua?
-
-Contaram-me que n’outro tempo, Lablache, famoso cantor italiano,
-recebêra dos seus admiradores um tão grande numero de caixas de tabaco,
-que poderia assoalhar com ellas os seus aposentos, e passear em tres
-casas, pisando sempre caixas de tabaco, todas mais ou menos bonitas, das
-quaes lhe haviam feito presente. Certamente, eu não cantei nunca como
-Lablache! mas emfim, pela quantidade immensa de pedidos que recebo, e de
-amabilidades que muitas pessoas hão por bem dirigir-me, devo pensar que
-tenho tambem um numero bastante crescido de apreciadores. Pois bem! desde
-que escrevo... o que faço ha muito tempo, bem sabem, nunca recebi outra
-cousa senão pedidos de autographos.
-
-Eu não peço nada, nunca pedi nada, em nenhum genero, nem pedirei nunca
-graças a Deus! se tenho feito o meu caminho, tenho-o feito á minha custa,
-sem intriga e sem apoio. Mas, por favor, deixem-me socegado e não me
-apoquentem com os seus pedidos de autographos! Não desejo as caixas de
-tabaco de Lablache, pois que nunca tomei tabaco!... o que me não impede
-de admirar uma caixa bonita, quando vale a pena de ser admirada.
-
-—Que diabo se lhe poderia então offerecer? me dizia um sujeito que sempre
-me pede exemplares dos meus romances, o que é ainda mais indiscreto que
-um autographo.
-
-—Meu caro senhor, lhe disse eu, quando se tem a peito receber uma
-resposta de alguem, ha um meio muito simples. Se eu residisse em
-Tours, mandava-lhe ameixas passadas; em Mans, mandava-lhe um capão; em
-Strasburgo, um pastel; em Reims, meia duzia de garrafas de Champagne.
-Cada terra tem a sua especialidade, e o homem por força teria de
-accusar-me a recepção do meu presente.
-
-Pois o tal sujeito pareceu ficar muito espantado de eu ter achado este
-meio.
-
-Emquanto estou falando a respeito de autographos, não posso deixar de
-lhes citar um sujeito que me escrevia de Nice, e que, depois de me ter
-feito o seu pedido, me rogava que lhe dirigisse a minha resposta para
-Nice, _posta restante_, com o nome que elle me indicava.
-
-Se eu respondesse a este senhor, o que tive o cuidado de não fazer, havia
-de dizer-lhe: «Meu caro senhor: A _posta restante_ não se emprega senão
-em dois casos: em amor e em politica. O senhor não está namorado de mim,
-folgo de o crer; e pelo que toca a politica, nunca me occupei de tal
-coisa, nem já agora me hei-de occupar nunca. Por que razão pois, em vez
-de me dar francamente o seu endereço, quer que eu lhe responda para a
-_posta restante_? Tem então medo de que eu saiba quem é e onde mora? E
-pede-me a minha assignatura! Realmente, o senhor não é logico!
-
-Emquanto estou de vez para conversar com o meu caro leitor e com a minha
-adorada leitora, podia confiar-lhes ainda uma d’essas apoquentações a que
-algumas vezes nos é difficil escapar, desgraçadas celebridades que nós
-somos. Receio porém abusar da sua paciencia, e portanto ficará para outra
-occasião.
-
-
-[Illustration]
-
-
-
-
-[Illustration]
-
-
-
-
-A MENINA LISA
-
-
-
-
-I
-
-Uma creada que sae a recados
-
-
-—Adriana! Adriana! vejam lá se ella apparece! Adriana! Ah! esta rapariga
-é insupportavel! Nunca vem quando se precisa d’ella! E depois, não ha com
-que chamar! aqui porém deve haver uma campaínha... Adriana!...
-
-Uma rapariga gorda, fresca, bem feita, cara vulgar, nariz mais grosso que
-comprido e cabello loiro-arruivado, apparece emfim á porta d’um quarto
-que podia passar por um camarim, e no qual estava uma senhora estendida,
-como que desmaiada, em cima d’uma poltrona, emquanto que outra senhora,
-mais nova, mas pouco bonita e cujo vestuario elegante não conseguia fazer
-esquecer a sua fealdade, lhe batia na mão, sempre chamando em altos
-gritos a creada grave.
-
-—O que é minha senhora? pergunta a menina Adriana, que parece não se ter
-apressado nada; a senhora está a gritar! grita como se houvesse fogo em
-casa!...
-
-—O que é, pois não vê? é a sua ama que acaba de perder os sentidos,
-depois de ter dado um grito muito grande; como ella se agita... como se
-põe interiçada...
-
-—Ah! sim, eu conheço isso; a senhora está com o seu ataque de nervos, com
-o seu _faniquito_; isso dá-lhe quando é contrariada, ou quando tem alguma
-altercação com o sr. Casimiro.
-
-—Deu-lhe isso ainda agora depois de ter lido uma carta que a menina acaba
-de lhe trazer. Mas emfim, quando Ambrosina tem o seu ataque de nervos, a
-menina faz-lhe tomar alguma coisa, penso eu, não a deixa sem soccorro?
-
-—De certo, minha senhora, faço-lhe tomar a limonada que o medico lhe
-receitou. E isso faz com que a senhora torne a si ao cabo de alguns
-minutos.
-
-—Pois bem! dê-lhe a tal limonada; ande depressa, porque ella parece
-soffrer muito, esta pobre Ambrosina. Sabe onde ella tem essa limonada?
-
-—Sei sim, minha senhora, sei, certamente que sei... Ai! Jesus! agora me
-lembro...
-
-—De que?
-
-—Ai! valha-me Deus! sim, a senhora tinha-me dito hontem que lhe fosse
-buscar outra garrafa. É verdade... agora me recordo...
-
-—Como? pois não ha limonada em casa?
-
-A creada grave, que tem ido abrir um armario, traz de lá uma garrafa
-branca, mas que está de todo vasia, e vem mostral-a á amiga de sua ama,
-dizendo:
-
-—Aqui tem, veja, não lhe minto, não resta nem uma gota.
-
-—E não foi hontem encommendar mais?!...
-
-—Esqueci-me, a culpa é da porteira, que me demorou para me falar do gato
-quando eu saîa, o gato desappareceu-lhe ha dois dias.
-
-—Mas não se tracta do gato da porteira, o que é preciso ê soccorrer sua
-ama. Tem a receita para essa limonada?
-
-—Tenho sim, minha senhora, porque eu tinha tenção de ir hontem á botica,
-devo-a ter ainda na algibeira.
-
-E a menina Adriana mette a mão na algibeira, tira de lá primeiramente
-algumas passas de uva, e sorri-se dizendo:
-
-—É aquelle toleirão do caixeiro da tenda que sempre me ha de metter
-alguma coisa no bolso. Por mais que eu lhe diga: Deixe-me socegada,
-guarde as suas passas, não quero brincadeiras...
-
-—Mas que é da receita? não se tracta agora do que a menina diz ao
-caixeiro da tenda.
-
-—Ah! deve ser isto!...
-
-Adriana desembrulha um papel e lê o annuncio d’uma loja nova em que se
-offerecem as fazendas com oitenta por cento de abatimento; depois atira
-com o papel para o lado, dizendo:
-
-—Ora! fui lá, minha senhora, mas são uns mentirosos, não vendem nada
-novo, venderam-me umas calças de panno que tinha sido virado.
-
-—Ah! compra calças de panno para si?
-
-—Nada, era para o irmão d’uma patricia minha.
-
-—Mas então perdeu a receita, desgraçada!
-
-—Não minha senhora; olhe, aqui está, aqui a tem, tinha embrulhado com
-ella uns torrões de assucar que me deu o moço do botequim.
-
-—Agora corra depressa á botica. É muito longe?
-
-—Não minha senhora, é aqui perto, no fim da rua Meslé, uma bonita botica,
-no predio novo, que dá quasi para a rua do Templo. Ah! é uma das melhores
-de Paris.
-
-—Comtanto que o remedio não leve muito tempo a fazer.
-
-—Oh! não, minha senhora, não leva. E depois, direi que tenho muita
-pressa, para me despacharem logo; aquelles senhores da botica são muito
-amaveis, muito obsequiadores.
-
-—Vae já muito depressa, não é verdade?
-
-—Sim, minha senhora; é só pôr uma touca na cabeça, e vou immediatamente.
-
-—Para que precisa de touca? Não pode ir assim mesmo como está?
-
-—Oh! a senhora não quer que eu saia em cabello; diz que não é bonito.
-
-—Mas sua ama não o saberá.
-
-—Perdão, podia alguem encontrar-me e vir dizer-lhe que me viu na rua
-sem touca! A senhora despedia-me logo: mas esteja descançada, não gasto
-n’isso muito tempo.
-
-A creada grave corre ao seu quarto, que é nas aguas-furtadas, pega
-n’uma touca, põe-na na cabeça, vê-se a um espelhinho, mas não fica
-satisfeita; tira a touca, procura outra no fundo d’uma caixa de papelão,
-experimenta-a, torna a ver-se ao espelho; depois, passado um momento
-de hesitação, tira ainda esta e torna a pôr a primeira; d’esta vez
-contenta-se com ella, e desce emfim os cinco andares, para ir buscar o
-remedio para sua ama, que tem muito tempo para estar demaiada.
-
-Mas, quando vae passar por deante do cubiculo da porteira, grita-lhe esta:
-
-—Menina Adriana! menina Adriana! ah! uma boa noticia...
-
-—Então o que é, sr.ª Bedou?
-
-—Achei já o meu gato; o pobre Pagnole! Achei-o. Olhe! aqui o tem.
-
-—É verdade; e aonde é que estava?
-
-—Ah! eu lhe vou contar o caso, é uma historia completa. Entre cá um
-instantinho.
-
-—Não posso, vou á botica buscar um remedio para a senhora, que está
-incommodada, está com o seu ataque de nervos.
-
-—Bem sabe que ella é propensa a esses ataques. Imagine que foi aquelle
-maroto, aquelle patife do quinto andar, o tal que se diz litterato...
-
-—Ah! o sr. Denegrido.
-
-—Sim, foi aquelle malvado que, para se vingar de eu no outro dia não
-lhe ter aberto a porta ás duas horas da manhã... A menina comprehende
-que um homem que mora n’uma agua-furtada de cento e sessenta francos,
-tenha o atrevimento de recolher para casa ás duas horas da manhã? E
-demais-a-mais nunca me deu a mais pequena gratificação! Pois bem! elle
-é que tinha o Pagnole fechado em casa, onde estou bem certa que nunca
-lhe dava de comer; por isso este pobre martyr emmagreceu tanto n’estes
-dois dias. Felizmente a creada do procurador do segundo andar ouviu-lhe
-os gemidos, e veiu dizer-me: «Parece-me que o seu gato está fechado em
-casa do litterato. Subi n’um pulo até ao quinto andar e reconheci a voz
-do meu querido bichano. Bati, teria arrombado a porta se elle não a
-abrisse. Elle gritava-me: «Não estou ainda levantado.»—«Pois levante-se,»
-respondi eu.—«Não estou vestido.»—Que me importa a mim isso?! pensa que
-tenho vontade de o retratar?! O homem afinal abriu a porta; o gato veiu
-logo lançar-se-me nos braços. Affianço-lhe que o tal Denegrido ha de ser
-despedido no fim do seu arrendamento; demais, elle não paga, não tinhamos
-tenção de o conservar.
-
-—Até logo, sr.ª Bedou.
-
-—Quando voltar lhe direi o que o escrevinhador me disse para se desculpar
-de ter fechado o Pagnole. Imagine...
-
-—Sim, sim, quando voltar.
-
-A menina Adriana acha-se emfim na rua. Quando passa por deante da tenda,
-um dos caixeiros, que parecia estar a espreital-a, toma-lhe o passo,
-dizendo-lhe:
-
-—Aonde é que vae com tanta pressa? parece que corre n’um velocipede.
-
-—Ora! que tolice! como se as mulheres podessem andar em velocipedes! o
-que é pena, porque seria uma coisa muito commoda para nós fazermos os
-nossos recados.
-
-—As mulheres podem muito bem andar em velocipede, o caso é acostumarem-se.
-
-—Vamos, sr. Cebolinha, deixe-me passar, não tenho tempo para conversar
-agora.
-
-—Oh! a menina commigo nunca tem tempo, mas hontem, ás dez horas da noite,
-bem a vi estar de _paleio_ com o moço do botequim do _boulevard_, as
-casas do _boulevard_ S. Martinho, na margem esquerda têem todas uma saida
-para a rua Meslée, é commodo...
-
-—E então? sim, bem me lembro, effectivamente, estive a falar com o
-Alexandre, a senhora queria tomar um capilé de leite antes de se deitar,
-porque tinha tossido um pouco, e pensava que aquella bebida lhe faria bem
-á constipação, ia eu então ao café encommendar o que a senhora queria,
-quando encontrei na rua o Alexandre.
-
-—Ah! não é máu o tal capilé, acho-o porém muito assucarado...
-
-—O quê? o que é que o senhor quer dizer com esse ar de mangação?
-
-—Quero dizer que se a sua ama a esperava para se deitar, teve tempo para
-adormecer antes de tomar a tal bebida, a menina demorou-se uma boa meia
-hora na rua com o moço do botequim.
-
-—É que elle provavelmente tinha muito que me contar.
-
-—Se é d’aquella maneira que elle faz o seu serviço, não tarda que o
-despeçam.
-
-—Bem se importa elle com isso! não tem vontade nenhuma de ficar onde
-está; vae tomar um café e estabelecer-se por sua conta.
-
-—Oh! então o caso é differente. E a menina é que vae para o balcão?
-
-—Ora! quem sabe! tem-se visto coisas mais de espantar.
-
-—O Alexandre vae tomar um botequim por sua conta! Ah! ah! ah! essa é
-forte de mais, pode-se juntar com o capilé.
-
-—Sr. Cebollinha, o senhor é muito maldoso, diz mal de toda a gente,
-desacredita todo o bairro. É uma coisa muito trivial, todos os dias se
-estão a estabelecer os moços de botequim por sua conta, isso vê-se a cada
-passo!...
-
-—Sim, mas os que fazem isso são aquelles que têem feito economias, que
-têem forrado alguma coisa do seu ordenado, e não os gastadores, os
-extravagantes como o seu Alexandre.
-
-—Porque é que diz: o seu Alexandre? Elle é tanto meu como de qualquer
-outra! o rapaz deve-lhe alguma coisa, para o senhor estar assim a dizer
-mal d’elle?
-
-—É verdade que sim; deve-me ainda uma libra de mel que lhe vendi para
-adoçar as suas tisanas, quando esteve doente, e, como o patrão me tinha
-prohibido de lhe dar fiado, sou eu que terei de pagar.
-
-—Ora! elle lhe pagará o seu mel. Olhe, lá o chamam, ande, volte para a
-loja.
-
-—A menina volta?
-
-—Nunca! o senhor tem muito má lingua.
-
-A creada continúa o seu caminho; mas cem passos mais adeante encontra-se
-com outra creada quasi da mesma edade e que está vestida com muita
-garridice.
-
-—Ah! és tu Rosa!
-
-—Boas noites, Adriana. Aonde vaes com tanta pressa?
-
-—Vou á botica buscar uma limonada para minha ama, que está com o seu
-ataque de nervos.
-
-—Ainda estás em casa da tal sr.ª Montémolly?
-
-—Ainda.
-
-—Gostas de lá estar?
-
-—Hum! não muito, não se diverte a gente quasi nada; mas tambem não se
-está aperreada, pode-se saír e voltar tarde; é o que a casa tem de bom.
-
-—E tua ama é senhora capaz?
-
-—Ora! não sei bem... ella dá-se por viuva.
-
-—D’um general sem duvida? todas ellas são viuvas de um general; é uma das
-suas manias...
-
-—Não, a minha diz que o marido era banqueiro. O que é certo, é que elle
-deixou-lhe fortuna: ella tem pelo menos quinze mil francos de renda,
-talvez mais alguma coisa; nós não fazemos dividas, pagamos tudo a
-dinheiro de contado. Oh! temos bom governo.
-
-—Que edade tem a tua sr.ª Montémolly?
-
-—Ella diz que tem trinta e quatro annos, mas eu dou-lhe trinta e oito,
-tambem mais não; foi muito bonita, e está ainda bem conservada.
-
-—E tem muitos adoradores?
-
-—Não! infelizmente! porque se assim fosse, havia de divertir-se a gente
-muito mais, e seriam maiores os lucros.
-
-—O quê! pois tua ama renunciou aos amores, ainda em edade de agradar!
-
-—Não! é que não percebes; minha ama não renunciou ao amor, muito pelo
-contraio, ella ama, oh! ama apaixonadamente um rapaz, um bello moço, o
-Casimiro Dernold, que vem quasi todos os dias fazer-lhe companhia, que é
-musico, que é pintor tambem... emfim, que faz tudo quanto quer, mas que,
-segundo eu creio, não quer fazer outra coisa senão divertir-se! A senhora
-está doida pelo tal Casimiro, não pensa senão n’elle, não sonha n’outra
-coisa, não se importa com mais ninguem. É por isso que não dá attenção
-a todos os que procuram fazer-lhe a côrte. É verdadeiramente fiel ao
-amante, a ponto de adoecer, de sentir as mais vivas inquietações, se
-elle não chega á hora do costume. Ah! minha querida Rosa! que asneira é
-amar um homem assim; e como a gente é muito feliz em não se prender! Não
-pensas como eu?
-
-—Já se vê que sim! eu dou attenção a todos quantos me falam; por isso não
-tenho um instante de meu. Quando não converso com este, é porque estou
-conversando com aquelle! Ah! ah! é muito mais divertido! E que edade pode
-ter esse Casimiro, amante de tua ama?
-
-—Vinte seis a vinte sete annos, talvez.
-
-—E tua ama tem trinta e oito! elle deve-lhe fazer muita falcatrua!...
-
-—Não sei, em todo o caso, a senhora vigia-o muito, é ciumenta como uma
-panthera! fal-o seguir; é mister que elle lhe dê conta do que faz cada
-dia, hora por hora.
-
-—Pobre rapaz! olhem que vida! Eu antes queria estar nas galés!...
-
-—Por isso elle algumas vezes respinga, grita, manda bugiar a senhora. Oh!
-então, são scenas terriveis! A senhora chora, ou pega n’um punhalzinho
-que traz escondido no seio, e diz que se vae matar...
-
-—Bom! eu conheço essa giria! não tenhas medo de que se mate!...
-
-—Olha, ha um mez, quando ella soube que o seu Casimiro tinha estado no
-Mabille, quiz cravar o punhal no peito; mas, ao que parece, dirigiu mal o
-golpe, porque não se feriu senão na orelha, que verteu algum sangue!
-
-—Ah! ah! ah! ella quer-se apunhalar pela orelha. É uma grande farcista a
-tua ama. E esse Casimiro é rico tambem?
-
-—Rico! elle! pelo contrario, não tem nada de seu. Então não percebeste a
-situação, e porque é que elle é escravo da senhora?
-
-—Ah! sim, percebo agora; é ella quem o sustenta.
-
-—Exactamente; tem-no seguro pela fome. Se o rapaz tivesse dinheiro, estou
-bem certa de que ella o não prenderia muito tempo.
-
-—Olha, Adriana, não sei se tu és como eu, mas para mim os homens que não
-têem nada de seu, não prestam!...
-
-—Eu não faço caso nenhum d’elles! Ora! um homem viver á custa d’uma
-mulher... é andar o mundo ás avessas! Por ventura o homem não foi feito
-para ganhar dinheiro e a mulher para o gastar.
-
-—Pois, minha rica, ha ainda muitas mulheres bastante tolas que se deixam
-depennar pelos derriços. Olha, ahi tens a Bochechuda, tu conheces a
-Bochechuda?...
-
-—Quem? A Luizita?
-
-—Sim, mas todos lhe chamam a Bochechuda, porque parece ter sempre
-as faces inchadas. Emfim, ha já algum tempo, a Bochechuda travou
-conhecimento no baile Pilodo com um bonito rapaz, que lhe diz que é da
-mesma terra. Dansa com ella todas as dansas mais finas, mesmo as que ella
-não sabia. Depois convida-a para um jantar no campo no domingo seguinte;
-ella aceita; vae jantar com o seu novo conhecimento, que bebe como uma
-esponja; depois, quando chega a occasião de pagar a conta, aquelle
-senhor declara á Bochechuda que não recebeu da terra um dinheiro com
-que contava, e pede-lhe que lhe empreste com que pagar a despeza. Ella
-tinha felizmente levado o _porte-monnaie_. Empresta vinte francos ao
-tal sujeitinho, que paga e não lhe dá o troco. O jantar tinha custado
-apenas nove francos e dez soldos. Volta com ella a pé, não lhe offerece
-mais nada e larga-a muito cedo, com o pretexto de que tem um trabalho de
-escripturação a fazer para um tendeiro a quem serve de guarda-livros.
-A Bochechuda, que não gosta de ir para casa cedo n’um domingo, põe
-uma touca nova e vae ao baile Pilodo com uma vizinha. Quem é que ella
-encontra lá? o seu parasita, o seu novo conhecimento, que fazia a côrte a
-uma mulher e lhe pagava ponche com o troco da moeda de vinte francos que
-ella lhe tinha emprestado...
-
-—Ah! a peça é bem pregada! e o que fez a Luizita?
-
-—É tão tola que se foi embora chorando. Mas o mais curioso da historia,
-é que, no domingo seguinte, o tal sujeitinho tornou-lhe a pregar a mesma
-peça. Jantam n’uma casa de pasto, e na occasião de pagar a despeza o
-patife diz que não tem dinheiro.
-
-—Ah! isso é forte demais! e ella pagou outra vez?
-
-—Pagou, mas pelas suas proprias mãos, e guardou o troco. Desde esse dia,
-nunca mais tornou a vêr o seu parasita.
-
-—Pobre Luizita! mas eu não a devo lastimar, que ella é muito presumida. E
-tu, Rosa, ainda estás em casa dos mesmos patrões?
-
-—Dos Dupont? oh! não, graças a Deus! deixei-os! não era gente fina,
-aquillo não me convinha! A senhora ia á praça, ella é que me comprava
-tudo: O patrão descia elle mesmo á adega; sabia a conta das garrafas. Não
-se podia fazer nada com aquella gente! eram uns piolhosos, minha rica!
-Fechavam o assucar e os licores; aquillo não me podia convir. Eu tinha
-acceitado aquella casa emquanto me não apparecia outra; eu bem sabia que
-não ficaria lá muito tempo.
-
-—E hoje estás melhor?
-
-—Ah! minha rica, tenho um bello commodo! estou em casa d’um homem só, um
-patrão rico, generoso, nada apoquentador, negoceia por gosto, sómente
-para se entreter. Temos uma bella casa aqui perto, na rua Béranger, seis
-casas n’um segundo andar. Fiz com que o senhor tomasse um criado para
-esfregar; elle não o tinha, mas percebeu que eu não podia fazer tudo.
-
-—Tens boa soldada!
-
-—Seiscentos francos, sem contar as gratificações, os presentes!...
-
-—Teu amo dá-te presentes! sempre és muito feliz!
-
-—É verdade, ainda ultimamente me deu um rico lenço de seda da India!
-
-—Que edade tem o teu patrão?
-
-—E’ um homem que anda pelos seus sessenta annos, mas não parece, está
-ainda muito bem conservado!...
-
-—Ah! entendo... estás em casa d’elle para todo o serviço. Ah! ah! esses
-commodos é que são bons!...
-
-—Ah! tu pensas tolices... pois enganas-te, affianço-te que não é isso...
-
-—Ora adeus! então por que te dá elle presentes?...
-
-—Ah! não digo que elle ás vezes não goste de brincar um pouco, de rir, de
-me deitar os braços á roda da cintura, mas a coisa não chega nunca aonde
-tu imaginas.
-
-—Deves perceber que isso para mim é-me indifferente; estás no teu direito
-de fazeres o que quizeres, assim como o teu patrão, visto que não tem
-mulher a quem dar satisfações. Elle é viuvo ou solteiro?
-
-—Olha! não sei, que ainda lhe não pergunteí isso... mas preciso sabel-o...
-
-—Ai! Jesus! minha ama que está á espera do remedio... e eu aqui a dar á
-lingua contigo.
-
-—Ninguem pode levar a mal que a gente converse o seu boccado; nós não nos
-encontramos todos os dias!
-
-—Pois sim, mas agora vou de corrida á botica. Adeus! Rosa!
-
-—Até outra vez, Adriana.
-
-
-
-
-II
-
-Na botica
-
-
-Quando a menina Adriana entra emfim na botica, que é quasi á esquina da
-rua Meslée e da rua do Templo, havia lá tanta gente, que os praticantes
-não sabiam a quem haviam de attender primeiro. Demais d’isso, é
-muito raro achar uma botica deserta; a concorrencia abunda n’estes
-laboratorios, onde todos esperamos encontrar remedio ou pelo menos
-allivio para os nossos soffrimentos ou para os das pessoas que nos são
-caras. Se isto prova que a profissão é boa, prova tambem que o nosso
-physico tem amiudadas vezes necessidade de reparo, e que estamos longe de
-ser perfeitos; é, pelo menos, aquillo de que estamos convencidos ha muito
-tempo.
-
-Entre os freguezes da botica torna-se saliente uma mulher gorda, que
-segura pela mão uma criança de quatro a cinco annos, que está de tal modo
-embrulhada em casacos, aventaes e chales, que é difficil adivinhar se é
-rapaz ou rapariga; a mãe dirige-se a um dos praticantes:
-
-—Olhe, senhor, o meu pequeno anda ha tres dias com uma tosse, que me
-parte o coração ouvil-o tossir: são uns ataques como tinha o pae, que
-padecia d’um catarrho que o não deixava pregar olho toda a noite, e
-que o levou á cova o anno passado, com uma indigestão que apanhou em
-consequencia d’um banho de vapor, porque...
-
-—Mas, minha senhora, agora não se tracta de seu marido, visto que morreu;
-tracta-se do seu pequeno, que está constipado; creio que é por causa
-d’elle que a senhora cá vem?
-
-—De certo; olhe, aqui o tem, é uma joia.
-
-—É o seu menino?
-
-—Sim, senhor.
-
-—Parecia uma menina.
-
-—Por causa do seu ar malicioso? ah! sim, que elle é muito malicioso; mas
-veja como está vermelho.
-
-—Não admira! a senhora tral-o tão embrulhado, que o pequeno deve por
-força sentir muito calor.
-
-—Mas, como elle anda com tosse...
-
-—Não é uma razão para o suffocar.
-
-—O que é então preciso fazer-lhe tomar?
-
-—Uma tisana de flor de malva com mel, e pode tambem dar-lhe um pouco de
-leite.
-
-—De vacca?
-
-—Já se vê.
-
-—Tinham-me dito que lhe fizesse tomar leite de burra.
-
-—Não é preciso, o menino é ainda muito novo, e não tem cara de quem
-padece do peito.
-
-—Veja se tem febre.
-
-O praticante quer pegar na mão do pequeno, mas este foge com ella
-rompendo em altos gritos.
-
-—Então, Dodoro! porque é que não queres que este senhor te pegue na mão?
-dá-lhe já a mão depressa, patife.
-
-—Não quero! não quero!
-
-—É travesso como um macaco. Faze lá uma careta a este senhor.
-
-—Não quero!
-
-—Então, é ou não velhaco?
-
-—Não lhe tem respeito nenhum.
-
-—Elle é ainda tão pequeno, e depois aprendeu a responder assim com o pae.
-Isto faz-me lembrar tanto o meu homem! Faça favor de me dar a flor de
-malva e o mel.
-
-—Sim, senhora, vou avial-a immediatamente.
-
-—E não lhe parece que seria melhor dar-lhe leite de burra?
-
-—Não, senhora; torno-lhe a dizer que o seu menino não precisa d’isso. Mas
-emfim, se a senhora quer dar-lh’o por força, mal não lhe pode elle fazer.
-
-—Não acha? O senhor não tem cá uma burra?
-
-—Oh! não, senhora, nós não temos leite de burra!
-
-—Que pena! pois ao pé de mim mora uma vizinha que tem uma cabra; o senhor
-não acha que o leite de cabra lhe faria o mesmo effeito?
-
-—Todos os leites que quizer; o leite não faz nunca mal. Aqui tem a flor
-de malva e o mel.
-
-—Muito agradecida; isto é para beber quente?
-
-—Tanto quanto seja possivel; sempre é melhor tomal-o quente do que frio...
-
-—Dodoro, atira lá um beijo a este senhor...
-
-Em vez de atirar um beijo, e rapazinho faz uma careta, deitando a lingua
-de fóra, e resmunga:
-
-—Não quero! não quero!
-
-A mãe pega n’lle e retira-se, exclamando:
-
-—Ah! é exactamente como o pae!...
-
-Uma senhora, de meia edade, com certa garridice no trajo e nas maneiras,
-dirige-se a outro praticante, requebrando-se toda e fazendo boquinha de
-sorriso, para deixar vêr uma dentadura completamente postiça, mas que
-ella suppõe que imita a natural de modo a illudir os mais espertos, e
-diz-lhe:
-
-—Acontece-me um desastre bem desagradavel, e venho pedir-lhe que me tire
-isto quanto antes...
-
-—O que é que precisa tirar, minha senhora? Se é algum dente, nós não
-somos dentistas...
-
-—Não, senhor, não se trata de dentes; por esse lado não preciso nada,
-graças a Deus! e o senhor bem o deve vêr... mas olhe aqui para cima da
-minha bocca; o que é que vê?
-
-—Vejo o seu nariz, minha senhora, e de ordinario é n’esse sitio que elle
-se encontra.
-
-—Sim, senhor, está o meu nariz, que tem uma forma bastante engraçada,
-posso dizel-o sem desvanecimento; mas sobre o nariz... aqui... á
-esquerda, não vê nada?
-
-—Ah! sim, vejo uma borbulha... já bastante pronunciada e que está mesmo
-muito vermelha.
-
-—Está vermelha e pronunciada!... ah! senhor! o que quer isso dizer!...
-
-—Quer dizer que ainda não está madura.
-
-—Madura! como madura? o senhor acha que isto deve amadurecer?
-
-—Naturalmente, minha senhora: não é mais que uma borbulhita, por
-emquanto, mas assim mesmo tem de seguir o seu curso... amadurecer, crear
-cabeça, rebentar e sarar...
-
-—Amadurecer, crear cabeça!.. pois eu havia de ter uma borbulha com cabeça
-no nariz! ah! que horror!... não quero tal coisa!... eu, que nunca tive
-a mais pequena beliscadura em parte alguma... entende, senhor? em parte
-alguma... porque me viria nascer uma borbulha no nariz?... qual pode ser
-a causa d’isto?
-
-—Ignoro totalmente, minha senhora; mas uma borbulha nasce sem se saber
-porquê; isso pode acontecer a toda a gente!...
-
-—Oh! não, senhor, quando se é d’um aceio minucioso, isto não deve
-acontecer... Eu não fui metter o nariz em sitios insalubres, pode
-acreditar-me!
-
-—Estou persuadido d’isso, minha senhora!
-
-—Lavo-me vinte vezes por dia! esfrego-me com _cold-cream_, com vinagre de
-Bully, com agua de Portugal, com essencia de jasmim...
-
-—São coisas de mais, minha senhora, é preciso não abusar dos cosmeticos,
-isso produz ás vezes um effeito muito diverso d’aquelle que se espera...
-
-—Emfim, o senhor vae-me dar alguma coisa para fazer desapparecer isto que
-me nasceu aqui, logo no nariz... é preciso que se não veja nem o signal...
-
-—Minha senhora, isso ha de ser muito difficil... seria mesmo perigoso;
-com o nariz não se deve brincar... Já consultou o seu medico?
-
-—Um medico para uma borbulhita... ora essa. Em primeiro logar, eu não
-posso vêr os medicos, detesto-os, querem sempre purgar-me! E eu não me
-quero purgar, não quero!
-
-—Faz mal, minha senhora, porque se se tivesse purgado, é provavel que
-essa borbulha não lhe nascesse no nariz.
-
-—Com que é preciso untar esta borbulha para que desappareça
-immediatamente? Deve haver algum remedio.
-
-—Minha senhora, advirto-a de que será perigoso; se faz recolher essa
-borbulha, hão de rebentar-lhe muitas outras n’outros sitios!
-
-—N’outros sitios não me importa, comtanto que não seja na cara.
-
-—A senhora quer?
-
-—Sim, senhor, vou ámanhã a uma _soirée_... quero ir sem borbulha.
-
-—Então aqui tem ceroto de chumbo, minha senhora, para fazer seccar a sua
-borbulhinha...
-
-—Oh! muito obrigada, vou untar bem todo o nariz!...
-
-—Só a borbulha, minha senhora... mas previno-a de que lhe hão-de nascer
-outras...
-
-—Muito bem... farei recolher todas.
-
-A senhora pega no seu boiãosinho de ceroto, paga e vae-se embora, muito
-contente por ter com que curar ou pelo menos dissimular a sua borbulha.
-
-É substituída por um sujeito moço, bem abafado, mas que tem máu parecer,
-e se approxima do praticante com um ar acanhado. Os estudantes de
-pharmacia sabem muito d’isto; adivinham logo por que razão este senhor os
-quer consultor e vão ao seu encontro. Effectivamente, elle fala-lhes ao
-ouvido; e então fazem-n’o passar para uma salinha que fica por traz da
-botica. Alli, o homem explica o seu caso, sempre a meia voz. Dão-lhe uma
-caixa de pilulas, umas poucas de raízes de morangueiro para fazer tisana,
-uma garrafa com um xarope já preparado, e o homem leva tudo isto, dando
-um profundo suspiro.
-
-Os praticantes da pharmacia olham uns para os outros sorrindo, e um
-d’elles murmura:
-
- —Ita dis placitum, voluptatem ut moeror
- Comes consequatur!...
-
-—Os deuses! responde outro, quer dizer, foi só _Mercurio_ que assim o
-quiz! É o Deus do commercio; terá lá dito comsigo: Isto ha-de-me fazer
-vender muito.
-
-—Meus senhores! vamos! tomem cuidado nas suas palavras! diz o rapaz que
-está sentado á carteira.
-
-—Oh! não ha perigo, as senhoras não sabem latim!
-
-Chega um velho gordo, bufando, e atira comsigo para cima d’uma cadeira,
-dizendo:
-
-—Ah! senhores, que dôr! Irra! que dôr!
-
-—O que foi isso? deu alguma queda?
-
-—Não, oh! não dei queda nenhuma; não me faltava mais nada!... É uma dôr
-que me apanha desde o quadril até ao joelho, do lado direito...
-
-—E essa dôr deu-lhe agora quando ia andando?
-
-—Deu-me agora? Ha tres semanas que padeço d’ella. Não lhe tenho feito
-nada, porque dizia sempre commigo! Isto ha-de passar! mas, qual historia!
-não me passa. Por isso é que me resolvi a vir...
-
-—Teria feito melhor em vir mais cedo.
-
-—Ah! é que eu não gosto de tomar remedios de botica! Receitem-me tuberas,
-lagosta, Champagne, então bem! applicarei a receita immediatamente.
-
-—Tem talvez abusado de tudo isso, e ahi está o motivo por que tem agora
-dores. Consultou já algum medico?
-
-—Tenho consultado dez, doze, vinte. Cada vez que me acho n’um sitio onda
-ha um medico, tracto logo de o consultar.
-
-—O que lhe disseram elles que era?
-
-—Um diz que é rheumatismo; outro que é uma dôr sciatica; este diz que
-é gotta; aquelle, que é só cançaço. Todos elles me têem receitado umas
-fricções.
-
-—De quê?
-
-—De balsamo de Opodeldoch, de balsamo Tranquillo, de balsamo de
-Fioravanti! e ainda muitos outros balsamos... Eu, como tenho excellente
-_rhum_, verdadeiro _rhum_ da Jamaica, tive a lembrança de dar umas
-fricções com elle...
-
-—Não era mau.
-
-—Não é verdade? Ora, como não tenho criado, pedi ao meu porteiro que me
-viesse dar as fricções; elle promptificou-se da melhor vontade. Dei-lhe o
-_rhum_, e deitei-me sobre o lado que me não dóe. O porteiro esfregava-me
-com toda a força... fazia-me arder a pelle como todos os diabos! O homem
-descançava muito a miudo. Tenho uma vez a lembrança de me voltar, e dou
-com elle a beber-me o _rhum_ mesmo pela botija; o maroto esfregava-me
-em secco! Nunca mais quiz que elle me desse as fricções. Os senhores
-podem-me arranjar uma mulher para me fazer este serviço, antes quero uma
-mulher que um homem...
-
-—Podemos inculcar-lhe uma mulher que deita bichas e ventosas, e tambem dá
-fricções quando é necessario.
-
-—É moça?
-
-—Cincoenta a sessenta annos.
-
-—Preferia-a de vinte e cinco a trinta.
-
-—Que importa, comtanto que ella lhe dê bem as fricções. Uma mulher nova
-poderia causar-lhe distracções, e é isso que é preciso evitar.
-
-—Ah! o senhor acha que as distracções são contrarias á minha dôr?...
-
-—Certamente. Tambem seria bom deitar umas ventosas e alguns causticos
-volantes.
-
-—Oh! emquanto estiver n’este estado não ponho difficuldades a coisa
-nenhuma, farei uso de tudo para me curar mais depressa. Aqui tem a minha
-morada, mande-me lá ámanhã a tal mulher com as bichas, as ventosas e os
-causticos.
-
-—Mas não vá applicar tudo isso ao mesmo tempo.
-
-—Com certeza que vou; a coisa assim vae mais depressa! Olhe, eu nunca
-faço remedios! mas quando me resolvo a isso, então não quero privar-me de
-nada. Dê cá sempre um balsamo qualquer, tractarei de me untar e esfregar
-eu mesmo emquanto a tal mulher não apparece.
-
-Emquanto estão aviando este senhor, entra muito afflicta uma mulher de
-lencinho na cabeça, e dirige-se logo ao rapaz que está sentado á carteira:
-
-—Ah! meu caro sr. Narciso! que má sorte que me persegue desde certo
-tempo para cá! Mal a minha pequena está restabelecida do catarrhal e
-o meu rapaz do sarampo, e ahi me cae o meu homem doente, sem poder
-trabalhar! é o remate da desgraça!
-
-—Mas o que é que o seu marido tem?
-
-—Ora! uma molestia exquisita... mas parece que é perigosa. Faça ideia,
-tem um anthraz!
-
-—Um anthraz! que me diz?!
-
-—Foi o que disse o medico, que é um sabio, e que disse logo: Não tem que
-vêr! é um anthraz! Aqui está o que tem o meu André, nasceu-lhe um anthraz
-nas costas! Aquillo foi um golpe de ar, não é verdade?
-
-—Não, mas é uma coisa muito má; a senhora deve trazer uma receita.
-
-—Sim, senhor, oh! de certo o medico escreveu tudo isto... Levará muito
-tempo a fazer?
-
-—Não, faça favor de se sentar e de esperar cinco minutos; vou já
-despachal-a.
-
-—Então espero.
-
-Entra na botica, com ar assustado, uma senhora já velha, trazendo um
-cãosinho atrelado, e exclama:
-
-—Meus senhores, é verdade estar já em Paris, ter já feito muitos
-estragos? ataca com muita força?
-
-—Perdão, minha senhora, mas de quem é que falla?
-
-—Do cholera, senhor, disseram-me que já estava em Paris, que tinha
-apparecido no arrabalde de Santo Antonio.
-
-—É a primeira vez que ouço falar de similhante coisa, minha senhora.
-
-—Devéras, não tem ouvido falar em tal?
-
-—Não, minha senhora.
-
-—O que confirmava os meus receios, foi que ao passar por deante de uns
-urinoes, reparei que os estavam alimpando com chloreto.
-
-—Isso faz-se muito amiude, é para destruir o mau cheiro...
-
-—Acha que é só para esse fim? Devo tambem dizer-lhe que tenho uma amiga a
-quem acaba de morrer o marido muito repentinamente.
-
-—Uma apoplexia, talvez.
-
-—Oh! não, senhor, elle não era sanguineo; mas voltou uma noite para
-casa com uma lagosta e um salsichão de Lyão, era o seu petisco favorito
-acompanhado de muita cerveja. Comeu menos mal; mas no outro dia pela
-manhã estava morto e da côr do salsichão.
-
-—Teve uma indigestão, minha senhora.
-
-—Mas elle já muitas vezes tinha comido tanto como d’essa vez e não
-morrêra.
-
-—Essas coisa não acontecem nunca duas vezes, minha senhora.
-
-—Ahi está tambem o pequeno da minha porteira, um rapazito sadio e córado,
-pois está ha tres dias com uma dor de barriga e com uma dysenteria.
-
-—Isso é muito commum nas creanças.
-
-—Emfim, acabo de encontrar um sujeito que jantou em minha casa ha quinze
-dias, e estava então de perfeita saude. Achei-o muito amarello, com
-os olhos encovados, mudado a ponto que não me pude conter que lhe não
-dissesse: «Ai! Jesus! que cara que o senhor tem!» então está doente? E
-elle responde-me: Não sei o que tenho, sinto dores por todo o corpo. É
-assim que principia o cholera?
-
-—Não, minha senhora, esse sujeito tem provavelmente uma grande
-constipação, é o que é.
-
-—Oh! não importa, asseguro-lhe que anda no ar alguma coisa que não é
-natural. Eu esta manhã tinha quasi frio quando me levantei, e agora estou
-com muito calor!
-
-—É que andou muito depressa.
-
-—Não, senhor; o Zozor obriga-me a parar a cada instante; o pobre
-animalsinho tambem não está no seu estado normal... Faça favor de me dar
-uma pouca de camphora, sei que é um preservativo contra as más emanações.
-
-—Vou dar-lh’a immediatamente.
-
-—Metterei um pedaço no meu espartilho: isso não me pode fazer mal.
-
-—Pelo contrario, minha senhora.
-
-—Ha de dar-me tambem um pouco de chloro; é outro preservativo.
-
-—Liquido ou solido, minha senhora?
-
-—Não comprehendo.
-
-—Minha senhora, solido é em pó; liquido é em garrafa, uma agua preparada.
-
-—Ah! eu não conhecia o solido. Dê-me dos dois, farei uso de ambos;
-lavar-me-hei com um, e trarei commigo o outro. Ah! tem arruda?
-
-—Tenho, sim, minha senhora.
-
-—É tambem um preservativo.
-
-—Afugenta os insectos.
-
-—Oh! e preserva tambem do mau ar, dê-me uma pouca; hei de trazel-a sempre
-no espartilho.
-
-—Fará a senhora muito bem.
-
-—A alfazema tambem tem propriedades reconhecidas?
-
-—Tem, sim, minha senhora, é aromatica.
-
-—Dê-me tambem uma porção de alfazema, que é para trazer nas algibeiras.
-Que mais me poderá o senhor dar que seja contra os maus ares? Ah!
-_patchouli_... tem _patchouli_?
-
-—Não, minha senhora, isso vende-se nas perfumarias; mas olhe que o
-_patchouli_ cheira muito bem mas não combate o mau ar, e, se abusar
-d’elle, pode alguma vez atacar-lhe o systema nervoso.
-
-—Ah! eu não quero nada que ataque o meu systema; a mais pequena coisa me
-irrita os nervos!
-
-—Então, minha senhora, leve antes valeriana, é uma raiz com que se faz
-uma infusão como o chá. Comtudo, devo prevenil-a de que não é agradavel
-de beber, e que tem muito mau cheiro, mas é muito saudavel.
-
-—Oh! dê-me cá d’essa raiz, bebel-a-hei e tral-a-hei sempre commigo.
-
-O praticante dá a esta senhora tudo quanto ella lhe pede; ella enche as
-algibeiras e o seio de camphora, arruda, chloro, alfazema, valeriana, e
-leva uma garrafa de agua chloretada. Vae deixando por onde passa uma
-mistura de cheiros cuja reunião nada tem de agradavel.
-
-—Se esta senhora não tem á noite uma forte enxaqueca, será um grande
-milagre! diz um dos rapazes.
-
-—Não falando em todos os gatos que vão correr e saltar atraz d’ella,
-attrahidos pelo cheiro da valeriana, que os faz quasi endoudecer. Se não
-gosta de gatos, vae ver-se muito apoquentada.
-
-Entra na botica um pedreiro mostrando o braço esquerdo todo ferido; ia
-sendo esmagado por uma trave que quasi lhe caíu em cima, mas apenas
-apanhou um forte raspão no antebraço. Curam-n’o, ligam-lhe a ferida,
-dão-lhe um frasco de agua-ardente camphorada, para elle embeber o
-apparelho, e, quando quer pagar, despedem-n’o dizendo:
-
-—Nós não acceitamos nada aos doentes pobres! Vá-se tractar, e, se tiver
-precisão de mais alguma coisa, não receie vir pedil-o que não lhe custará
-nada.
-
-Hão-de convir que, quando a gente vê os pharmaceuticos mostrarem-se tão
-solicitos em soccorrer os desgraçados, não deve ter mais a confiança de
-os tractar por _boticarios_.
-
-No emtanto têem entrado na pharmacia muitas creadas de servir; falam
-todas ao mesmo tempo, e dizem:
-
-—Vá! despache-me, que estou com pressa.
-
-—Oh senhor, eu tenho tosse: dê-me rebuçados de althéa! são muito bons!
-Aqui está um remedio que me agrada.
-
-—A mim dóe-me a garganta...
-
-—Tome gargarejos de agua de cevada com mel rosado...
-
-—Minha ama quer pomada para os beiços, não ha pomada que lhe chegue; eu
-não uso d’isso, e tenho a bocca mais fresca do que ella.
-
-—Eu fiz um gallo na testa, e dóe-me muito.
-
-—Deu alguma pancada?
-
-—Foi n’uma porta. Eu estava muito quieta, de repente abriram-n’a... eu
-não esperava...
-
-—Provavelmente estava a escutar?
-
-—Effectivamente escutava; tinha chegado o magnetizador?
-
-—O que é isso de magnetizador?
-
-—É um sujeito que anda ensinando a senhora a ser somnanbula lucida, para
-fazer experiencias em sociedade.
-
-—Ah! sua ama quer ser somnanbula?
-
-—É verdade, metteu-se-lhe aquillo na cabeça; por mais que o marido lhe
-diga: «Olha que vaes adoecer!» a senhora não desiste. E, quando chega o
-magnetizador, mandam-me embora.
-
-—E o marido?
-
-—Meu amo? oh! esse está na repartição; sae de casa ás nove horas, e só
-volta ás cinco, é coisa eabida.
-
-—Percebo. Onde é que deu a pancada?
-
-—Aqui, na testa... apalpe...
-
-—Ah! sim, cá sinto.
-
-—Meu amo disse-me que não precisava fazer-lhe nada, que os gallos na
-testa não são perigosos. Elle deve entender d’isto...
-
-—Tome sempre cosimento de vulneraria, será mais prudente.
-
-—Então arranje-me isso n’um instante.
-
-Abre-se a porta, e sente-se um cheiro fortissimo; é a velha dos
-preservativos que volta, dizendo:
-
-—Senhor, esqueci-me de levar agua de melissa dos Carmelitas; é uma coisa
-indispensavel quando a gente se sente incommodada; podem-se tambem
-esfregar as fontes com ella; é um preservativo... faça favor de me dar um
-frasco.
-
-—Aqui está, minha senhora.
-
-—Esta é da verdadeira, não é assim? o senhor não quererá enganar-me! É
-dos verdadeiros Carmelitas, da verdadeira rua Taranne?
-
-—Minha senhora, eu não conheço duas em Paris:
-
-—Muito agradecida.
-
-A velha mette o frasco na algibeira e retira-se.
-
-A menina Adriana entra emfim na pharmacia, exclamando:
-
-—Ah! cá estou finalmente! ainda bem! pensei que não chegaria nunca...
-
-—Tem alguem doente em casa, menina Adriana?
-
-—Tenho; é minha ama que está com o seu ataque nervoso, com a sua crise,
-e com um grande tremor. Tome, aqui tem a receita, avie-me depressa... eu
-vim a correr quanto pude, agora não me demore muito tempo...
-
-—Sente-se, que vou já despachal-a.
-
-—Ah! agradeço-lhe muito a sua bondade! é que me faz muita pena vêr
-soffrer a pobre de minha ama.
-
-Começa o praticante a aviar a receita da sr.ª Montémolly, quando se
-abre de novo a porta, e invade a pharmacia uma mistura de cheiros
-activissimos; é a senhora que tem medo do cholera, que torna a entrar e
-vae importunar o rapaz que está ao balcão, exclamando:
-
-—Ah! senhor! não pode fazer idéa de como cheira mal a rua Meslée!...
-
-—Sinto muito, mas que quer que lhe faça?
-
-—Anda alguma coisa no ar, oh! certamente, o ar está máu n’este momento!...
-
-—É talvez uma trovoada que se prepara!...
-
-—Oh! o que se prepara é outra coisa. Quer ter a bondade de me desrolhar o
-meu frasco de agua de Melissa? Se me dá licença, vou esfregar o nariz e
-as fontes, e então poderei affrontar com menos susto os miasmas da rua.
-
-—Faça o que quizer, minha senhora, aqui tem o seu frasco aberto; quer uma
-chicara?
-
-—Bastará a ponta do meu lenço, vou embebel-a muito bem...
-
-Effectivamente, esta senhora deita agua de Melissa no lenço, depois
-esfrega as fontes, lava o nariz, introduz tanto quanto pode o lenço
-molhado nas ventas, esfrega tambem a testa, deita agua de Melissa na
-palma da mão, depois aspira-a a ponto de espirrar oito vezes a fio. Emfim
-acabada esta ceremonia, torna a rolhar o frasco, mette-o na algibeira,
-vae-se, dizendo:
-
-—D’esta vez, creio que estou bem preservada do máu ar!...
-
-—Oh! sim, minha senhora, está bem preservada, exclama o aprendiz de
-boticario. Folgo de crer que tambem nós o estamos agora das suas visitas.
-Que fregueza!...
-
-—Mas é ella que empesta a gente, diz Adriana; o que foi então que o
-senhor deu áquella senhora?
-
-—Tudo o que ella quiz!...
-
-—Qual é a doença d’ella?
-
-—A doença é medo, que é o mal mais commum e que nos manda cá mais gente.
-Esta senhora tem medo do cholera; outras têem medo d’uma molestia de que
-não apresentam o mais pequeno symptoma mas de que se julgam ameaçadas...
-o medo não raciocina! Ninguem faz idéa de quantos freguezes elle nos
-arranja...
-
-—Ai! com a bréca! exclama um dos praticantes, eil-a ahi outra vez de
-volta comnosco!...
-
-—Quem?
-
-—A senhora dos preservativos...
-
-—Ora essa! nada, isso agora torna-se forte de mais. Que mais quererá ella
-lavar aqui? isto começa a dar-me cuidado.
-
-A senhora, que recende fortemente, abre a porta e pára no limiar, dizendo:
-
-—Perdão, meus senhores, uma pergunta, se me dão licença... Se eu tomasse
-tabaco?... É uma coisa que tambem deve preservar, penso eu?...
-
-—Sim, minha senhora, de certo, tome tabaco... tome mesmo muito; não
-cheirará mais nada!...
-
-—Então faça favor de me dar uma porção de tabaco...
-
-—Nós não vendemos tabaco, minha senhora, no _boulevard_ encontra-o logo.
-
-—Corro a compral-o. Cheirarei primeiramente, e depois talvez me arrisque
-a fumar um cigarrinho; as senhoras agora fumam, não é verdade?
-
-—Sim, minha senhora. Oh! as senhoras fumam, fazem agora tudo o que fazem
-os homens; isso não as aformoseia, mas diverte-as...
-
-—Oh! mas eu cá, não é com o fim de me aformosear, é para affrontar os
-máus ares. Vou comprar tabaco...
-
-—Vá, minha senhora, vá! diz o joven pharmaceutico fechando-lhe a porta
-nas costas; cheire, fume, masque mesmo, se isso lhe dá prazer mas, por
-favor, deixe-nos socegados um instante! Tome, menina Adriana, aqui tem o
-remedio para sua ama...
-
-—Obrigada; vou de corrida levar-lh’o... faz-me tanta pena vel-a
-soffrer!... Boa tarde, meus senhores...
-
-A creada grave retira-se, e d’esta vez chega a casa sem ter tido outros
-encontros. Quando passa diz á porteira:
-
-—Aqui me tem; cá trago o remedio; pensei que não acabavam de me aviar
-hoje; havia muita gente na botica...
-
-—Pois olhe, não vale a pena apressar-se...
-
-—Então porquê, sr.ª Bedou?
-
-—Porque sua ama saíu de carruagem com a sua amiga, ha já bastante tempo...
-
-—A senhora saíu! oh! isso era de esperar! vá lá uma pessoa estafar-se a
-correr para dar conta do seu recado! vá lá a gente privar-se de conversar
-com os seus conhecimentos! Ah! esta não me ha de esquecer...
-
-
-
-
-III
-
-Um rapaz manteúdo
-
-
-O joven Casimiro Dernold occupa um lindo aposento de rapaz solteiro, n’um
-terceiro andar, n’uma bella casa da rua de Paradis-Poissonniére. Tem uma
-saleta, uma sala e um quarto de dormir. Tudo isto está no maior aceio,
-e bem adornado; a mobilia, sem ser d’uma extrema elegancia, é de bom
-gosto e ainda da moda. Emfim, tudo annuncia que quem occupa este pequeno
-aposento não deve ser, como se diz vulgarmente, um semsaborão.
-
-E entretanto aquelle que alli habita, rapaz de vinte e seis annos, bonito
-de cara, bem feito de corpo, cujo porte é elegante e o trajo sempre
-apurado, passeia n’este momento na sala com um ar de muito máu humor,
-batendo algumas vezes nos moveis com uma chibatinha, ou amarrotando
-as luvas com colera, e falando alto, o que acontece amiude ás pessoas
-fortemente excitadas por um sentimento qualquer; porque parece que
-desafogamos dizendo o que nos afflige, mesmo quando ninguem mais nos pode
-ouvir.
-
-—Nada! não!... isto não pode durar assim... é preciso acabarmos com isto!
-exclama o rapaz, que acaba de bater com a chibatinha n’uma poltrona
-fazendo sair d’ella uma nuvem de poeira, o que o detem na sua exclamação
-e lhe faz dizer: Se é assim que o meu porteiro me sacode a mobilia, não
-se deve cansar muito... Nada! estou cançado de ser escravo de Anbrosina,
-porque sou completamente seu escravo!... Não posso dar um passo, nem ir
-a parte alguma, sem que ella o saiba... Estou persuadido de que me manda
-espreitar; diz que é por amor; ella ama-me, sim, concordo n’isso, devo
-mesmo acredital-o... porque eu custo-lhe muito caro... Ella compra-me
-tudo o que eu desejo; paga-me o alfaiate, o sapateiro, emfim, todos os
-meus fornecedores... Aliás, como havia de eu pagar-lhes, eu que não
-faço nada, que não ganho nada, que para nada sirvo? Oh! mas, se não
-faço nada, ella é que tem a culpa! Todas as vezes que tenho querido
-procurar um emprego, ella tem-se opposto a isto. Quando me quero deitar
-de novo á pintura, porque eu principiava a ir menos mal na paizagem,
-tinha tambem conseguido fazer alguns retratos, tinha experimentado a
-mão com os amigos. Eu devia ter continuado, mas Ambrosina acha sempre
-meio de me impedir de trabalhar, levando-me para o campo, obrigando-me
-a acompanhal-a constantemente, a andar passeando com ella, a leval-a a
-alguma festa... Emfim, imagina sempre alguma coisa, tudo para fazer
-monopolio de mim, para me ter sempre na sua dependencia. Havia de
-affligir-se muito se eu ganhasse dinheiro, porque então poderia passar
-sem ella, escapar-me das suas garras! E eu, covarde, preguiçoso, comilão,
-gostando dos prazeres, da vida regalada, deixei-me enredar por esta
-mulher, por quem senti algum amor, no começo, e da qual depois não tive
-força para recusar os favores. E quando a gente se acha n’este declive, é
-muito difficil parar, sobretudo quando se é, como eu dizia, preguiçoso,
-comilão, e amigo das suas commodidades. Ah! os rapazes deviam tomar muito
-cuidado nas ligações que arranjam... essas ligações influem em todo o
-resto da existencia. Tenham duas, tres, doze amantes se se acham com
-forças para tanto, mas não se prendam com nenhuma... porque é essa que os
-fará commetter tolices e perder o futuro. Aquelles que passam por doudos
-e extravagantes, são portanto os que têem mais juizo; pelo menos não se
-deixam cair no laço e conservam o seu livre arbitrio. Nada, não, ha dois
-annos que sou o chichisbéo da sr.ª Montémolly, irra! já estou farto!
-
-Casimiro dá nova chibatada n’uma das suas poltronas; levanta-se uma tal
-poeirada, que o rapaz fica quasi cego, e tem de, se refugiar na outra
-extremidade da sala, murmurando:
-
-—Olhem o maroto do porteiro! não é possivel ter menos cuidado com os meus
-moveis! E diz elle que passa metade do dia a arranjar-me a casa. Ah! se
-Ambrosina soubesse que dou lições da desenho a uma menina do predio, como
-não ficaria furiosa! É todavia uma coisa bem innocente. A menina Angelina
-Proh é uma rapariga nem feia nem bonita; antes tola que espirituosa;
-mas creio que isso é de familia. Mora com o pae, com a mãe e com um
-irmãosinho, no mesmo patamar defronte de mim. Esta familia Proh é d’uma
-extrema polidez; a mãe, que ainda tem pretenções, dizia-me a cada passo:
-
-«—O senhor é pintor, ah! eu estimaria muito ter o meu retrato, e, se o
-senhor não levasse muito caro, pedia-lhe que m’o tirasse, mas a oleo,
-com tintas porque eu detesto a photographia, acho que faz a gente feia
-consideravelmente.
-
-«—Minha senhora, sinto muito, mas não me julgo ainda com forças bastantes
-para tirar um retrato do nutural.
-
-«—Oh! isso é talvez demasiada modestia! Será preciso experimentar; nós
-somos visinhos, não virei senão quando o senhor tiver tempo de seu.
-
-«Tempo de meu! tenho-o sempre, quando porém Ambrosina me dá liccença
-para o ter!... Depois o papá Proh, que é, creio eu, um antigo professor
-de grego e de latim, propoz-me o dar algumas lições de desenho á filha e
-ao filho, quando elle não fizer travessuras. Já se vê, aceitei. Vinte e
-cinco francos por mez não são grande coisa, mas eu não poderia dizer com
-que sentimento de alegria, de felicidade, recebo este dinheiro, que é
-adquirido pelo meu trabalho. Sinto-me deveras orgulhoso! Ah! estes vinte
-e cinco francos dão-me cem vezes mais prazer que o cartucho de moedas de
-ouro que Ambrosina me mette no bolso; tanto mais que ao depois é preciso
-que eu lhe dê uma conta exacta do emprego que fiz d’esse ouro...
-
-«Hoje devia ir buscal-a ás oito horas para a levar a um café-concerto.
-Ella havia de escolher o que mais a tentasse. Mas como isso me não
-tentava nada a mim, e como desde muito tempo ardo em desejos de ir
-ao Mabille ver as damas que dansam com tanto _chic_, escrevi-lhe um
-bilhetinho dizendo que o meu amigo Miflaud tinha uma pendencia de
-honra para ámanhã pela manhã, que elle contava commigo para ser um
-dos padrinhos, e que era absolutamente preciso que eu lhe fosse falar
-esta noite, para me entender com elle e com o outro padrinho sobre as
-condições do duello e sobre o motivo da pendencia. Engulirá ella esta
-peta?... Hum! não é muito provavel; o importante é que Miflaud, que
-deve ir commigo ao Mabille, não me faça esperar muito tempo. Logo que
-eu me apanhe fóra de casa, tanto peor! se Ambrosina aqui mandar, não me
-encontrarão.
-
-«Vejamos as horas que são: já oito horas! e este tolo de Miflaud devia
-cá estar ás sete e meia. Felizmente, mandei a minha carta a Ambrosina
-muito tarde; de certo não a recebeu antes das oito horas. Quem a ha
-de aturar ámanhã! Mas, em ella vendo que me zango devéras, oh! então,
-acalma-se logo; ella no fundo não é má, mas muito ciosa de mais!
-infinitamente ciosa; uma verdadeira andaluza. Graças a Deus não traz faca
-na liga. Ah! lá tocam a campainha, é Miflaud, finalmente...»
-
-Casimiro corre a abrir a porta, mas, em vez do rapaz por quem esperava,
-acha-se com um menino de seis annos, que lhe diz:
-
-—Sr. Casimiro, venho da parte da mamã saber se o senhor está em casa?
-
-—Bem vê que estou, Affonsinho, e o que me quer a sua mamã, a sr.ª Proh?
-
-—Acaba a costureira de lhe trazer um vestido novo muito bonito, de riscas
-verdes e encarnadas. A mamã vestiu-o, e queria que o senhor a visse com
-elle, para lhe dizer se a quer retratar assim.
-
-—Mas meu menino, eu não vou agora fazer o retrato da sua mamã; terei
-muito tempo para ver o seu vestido.
-
-—Sim, porém ella disse-me: Vae pedir ao nosso vizinho que entre cá um
-minuto; quero que elle me veja assim vestida...
-
-—É que estou á espera d’uma pessoa. Ah! mas posso deixar a porta aberta.
-Ande lá adeante de mim, Affonsinho! Seu papá não está em casa?
-
-—Não, senhor, saiu agora mesmo dizendo á mamã que ella parecia uma girafa
-com o seu vestido de riscas.
-
-—Oh! com a breca! mas a sr.ª Proh não havia de ficar muito contente!
-
-—Por isso respondeu ao papá: «Tu então não precisas estar vestido para
-pareceres um chimpanzé.» Sr. Casimiro, o que é um chimpanzé, com que o
-papá se parece?
-
-—Meu caro amigo, é... ora... um chimpanzé é um homem dos bosques, um
-bonito homem dos bosques, emfim é um quadrumano.
-
-—É o que é um quadrumano?
-
-—É um homem que tem os pés com forma de mãos.
-
-A apparição da sr.ª Proh vem pôr termo ás perguntas do filho. Esta
-senhora vem até á porta da escada ao encontro do seu vizinho. Celeste
-Proh é uma mulher de quarenta e sete annos, loura, deslavada, com olhos
-azues muito desmaiados, e sem rasto de sobrancelhas; é obrigada a
-fazel-as com um pincel, que ella molha n’uma composição, cuja côr nem
-sempre é a que se esperava, o que faz com que esta senhora tenha por cima
-dos olhos um arco, ora preto, ora côr de castanha, ora avermelhado; ella
-porém acha que isso lhe dá mais graça á physionomia; tem-se por muito
-bonita e julga parecer mais nova que sua filha, que tem dezeseis annos.
-Repete muito amiude na conversação que não comprehende seu marido, que
-nunca mostrou empenho em possuir o retrato de sua mulher, com o qual elle
-deveria ter adornado todos os seus aposentos.
-
-A sr.ª Proh tem effectivamente um vestido novo de riscas largas d’um
-encarnado muito vivo e d’um verde claro, o que lhe dá quasi o ar d’uma
-mouta florida e attrahe a vista a cincoenta passos. Avança sorrindo para
-o vizinho.
-
-—Mil perdões, sr. Casimiro, fui indiscreta, mandei-lhe lá o Fonfonso; é
-que eu queria saber a sua opinião a respeito d’este vestido; como o acha?
-
-—Acho-o muito bonito, é original e faz sobre-tudo muito effeito; emfim,
-vê-se de longe.
-
-—Eu gosto d’isto, gosto do que dá nas vistas. Acha que me fica bem?
-
-—Admiravelmente! assenta-lhe que nem uma luva!
-
-—Gosto muito do vestido bem justo ao corpo. Demais, creia que não me
-tolhe por modo algum os movimentos. Então está dito, ha-de retratar-me
-com este vestido, não é verdade?
-
-—Então sempre quer que lhe tire o retrato?
-
-—De certo que sim.
-
-—Mas eu já lhe disse que me não julgo com forças de tirar um retrato do
-natural.
-
-—Mas o senhor pintou o retrato da gata do porteiro, já lh’o vi lá em
-baixo no cubiculo.
-
-—Aquillo foi um ensaio, para me distrahir.
-
-—Pois bem! fará tambem o meu para se distrahir. O sr. Casimiro é
-demasiadamente modesto, desconfia muito do seu talento; a gata do
-porteiro parece que está viva, e todavia ella não esteve muito tempo em
-posição deante do senhor?
-
-—Não esteve tempo nenhum, pintei-a de memoria.
-
-—Eu estarei o tempo que o senhor quizer. O meu Proh queria fazer-me
-photographar, mas eu não quiz; detesto a photographia, desfeia e
-envelhece a gente, mas não custa caro, e por isso toda a gente se serve
-d’ella. Falem-me da pintura! isso é que tem vida, expressão, côr...
-
-—Sou inteiramente do seu parecer, minha senhora.
-
-—Entre e descance um pouco...
-
-—Muito obrigado, mas espero uma pessoa, e é preciso que eu esteja em casa.
-
-—Então como este vestido lhe agrada, poderá retratar-me com elle?
-
-—Estou prompto a retratal-a com o trajo de que a senhora mais goste,
-mesmo de Diana caçadora, se quizer.
-
-—Oh! mas é uma bella idéa essa. Diana caçadora! oh! isso é que seria de
-bom gosto...
-
-—Boa tarde, minha senhora, e fico ás suas ordens.
-
-—Mas, vizinho, onde poderei encontrar o trajo d’essa deusa da caça?
-
-—Casimiro não responde mais á vizinha, porque fechou já a porta, dizendo
-comsigo:
-
-—Esta sr.ª Proh é massadora! Se não fosse o interesse que tenho em lhe
-dar lições aos filhos, já a teria mandado para o diabo com o seu retrato!
-E este Miflaud sem apparecer! São quasi oito horas e meia, estou capaz
-de me ir embora sem elle. Mas ir sósinho ao Mabille não é nada divertido!
-
-Passam ainda cinco minutos quando finalmente tocam a campainha com
-violencia; o rapaz corre a abrir a porta, mas é a sr.ª Montémolly, que
-entra com um ar decidido, furibundo, toda esbaforida e a escorrer em
-suor, porque subiu a escada a toda a pressa. Os leitores já sabem pela
-menina Adriana que sua ama, que quer passar por ter trinta e quatro
-annos, deve andar perto dos trinta e oito. Para completar o retrato,
-accrescentaremos que é uma mulher alta e bonita, que tem uma certa graça
-nas maneiras, uma certa perfeição nas fórmas, e que veste muito bem. É
-uma mulher trigueira, cujos olhos bem rasgados nem sempre são meigos,
-e cuja bocca, um pouco mettida para dentro, é muitas vezes desdenhosa
-e altiva; mas, quando ella quer ser amavel, é uma bonita mulher, um
-verdadeiro typo andaluz; para ser uma perfeita hespanhola, não lhe falta
-senão o pente muito alto debaixo do véu preto e umas castanholas nas mãos.
-
-Esta senhora entra sem se demorar um instante, sem mesmo dizer uma
-palavra áquelle que lhe abre a porta; atravessa immediatamente a saleta
-de entrada, a sala, vae passar revista ao quarto da cama, esquadrinha
-todos os cantos á casa para vêr se está por alli alguem escondido; só
-depois de ter acabado esta inspecção é que volta á sala, e atira comsigo
-para cima d’uma poltrona exclamando:
-
-—Ah! não era a mim que o senhor esperava, não é verdade?
-
-—De certo! responde Casimiro sentando-se com o ar d’uma pessoa que
-acaba de levar com uma telha na cabeça; e é devéras um acaso o ter-me
-encontrado aqui. Já teria sahido para ir a casa de Miflaud, se elle me
-não tivesse escripto novamente dizendo-me que viria elle mesmo cá, que
-antes queria isso, porque em sua casa, como mora com a mãe, receava que
-ella suspeitasse do duello e então...
-
-—Sr. Casimiro, quando faz tenção de acabar com essas mentirolas? Pensa
-porventura que acredito todas essas patranhas que me conta, e mesmo
-muito mal.
-
-—Mas, minha senhora, não ha aqui patranha nenhuma. Que espanto é que um
-meu amigo tenha uma pendencia de honra? é uma coisa que acontece todos os
-dias. Elle pede-me que seja seu padrinho, e isto não se recusa...
-
-—Em primeiro logar, ha muito tempo que o senhor me não falava no seu
-amigo Miflaud; parece-me que tinha deixado de andar com elle.
-
-—Deixado... porque, estando sempre com a senhora, não posso andar com
-elle, mas não estavamos desavindos.
-
-—O senhor devia passar o serão commigo.
-
-—Isso nada tem de notavel, porque os passo todos!
-
-—Então com quem queria passal-os? O senhor escreve-me: «Não espere por
-mim esta noite.» Como é amavel!...
-
-—Visto que era para obsequiar Miflaud. Mas tanto peor para elle; não
-estou para o esperar mais tempo. Venha, vamos passear.
-
-—Ah! agora tem pressa de sair, está com medo não chegue essa pessoa. Isto
-esconde uma perfidia; não é Miflaud que o senhor espera!
-
-—É sim, é elle. Mas, visto que a senhora se deu ao incommodo de cá vir,
-que o leve o diabo. Vamos, Ambrosina, estou ás suas ordens. Hein? isto é
-que é ser amavel! Vamos embora...
-
-—Oh! que pressa que tem de sair! isto não é natural, o senhor está-me a
-atraiçoar!
-
-Cazimiro levanta-se encolerizado, e põe-se a passear pelo quarto dizendo:
-
-—Isto é demais! o demonio leve as mulheres com o seu genio infernal! Quer
-a gente sair sem ellas, gritam; quer estar com ellas, gritam do mesmo
-modo! Emfim, faça-se o que se fizer, gritam sempre! Ah! não estou para
-aturar mais scenas d’estas! Adeus, minha senhora, faça o que quizer, eu
-cá vou-me embora!
-
-E já o rapaz tem dado alguns passos para a porta; mas Ambrosina corre
-para elle com a rapidez d’uma corça, segura-o, enlaça-o nos braços, olha
-para elle amorosamente, e diz-lhe com ternura:
-
-—Aonde vaes, ingrato? queres abandonar-me? bem sabes porém que não posso
-viver sem ti, que és a minha felicidade, a minha alma, a minha vida!
-Reputas um crime o eu ter vindo aqui? não era muito natural que eu me
-quizesse certificar de que não recebias aqui outra mulher, ou de que não
-ias ter com ella a alguma parte?...
-
-—Bem vê que não escondo aqui mulher alguma; o que me havia de ser
-difficil! a senhora esquadrinhou todos os cantos á casa.
-
-—Não, mas estás talvez á espera d’ella!
-
-—Outra vez! ah! a senhora é terrivel!
-
-—Não! não! não tenho razão, meu amigo, sou injusta, não o serei mais...
-
-—Bom! ainda bem! vamos passear.
-
-Casimiro está com pressa de sair, porque receia agora que a chegada
-do seu amigo Miflaud ponha a descoberto as suas mentiras. Mas, sempre
-promettendo não tornar a ser ciosa, Ambrosina, que continua a ter
-suspeitas, acha meios para não sair tão depressa: é o seu chapéu que
-não está bem posto, depois é a cuia que não está muito segura, e é
-preciso que ella arranje tudo isto; o seu amante está sobre brazas; já
-pôz o chapéu na cabeça, tem a bengala na mão, e a sua amante tem sempre
-alfinetes a pregar em alguma parte. Succede alfim o que elle receava,
-batem á porta.
-
-O rapaz não dá mais que um pulo da sala á porta de entrada, afim de
-tratar de prevenir o seu amigo; mas, por mais prompto que tenha sido,
-Ambrosina chega lá ao mesmo tempo que elle, depois de ter atirado ao chão
-os alfinetes que estava a pregar.
-
-É effectivamente Miflaud, joven corrector de commercio, da edade de
-Casimiro, que não é bonito, mas que tem uma cara bastante original, que
-gosta de _grisettes_, de dança, de vinho branco e de camarões; não foi
-muito favorecido pela natureza emquanto ao espirito, mas está sempre
-prompto para se divertir, para rir, emfim para brincar, comtanto que não
-seja encarregado de inventar as brincadeiras.
-
-—Boa noite, Miflaud, vens por causa do teu duello... pois que te bates
-ámanhã, e eu devo servir-te de padrinho. Mas sinto muito, meu amigo;
-procura outro... Tenho que fazer ámanhã.
-
-Tudo isto foi dito por Casimiro d’um só jacto, sem tomara respiração.
-Um outro que não fosse Miflaud, um d’estes farçantes como ha tantos,
-teria comprehendido a situação, sobretudo vendo os signaes que o seu
-amigo tratava de lhe fazer; mas Miflaud não era esperto, e emquanto que
-a sr.ª Montémolly o mira com anciedade, elle toma um ar muito espantado
-respondendo:
-
-—Eu! bato-me em duello! Essa é muito boa! Mas não percebo nada, isso é
-uma brincadeira!
-
-—Vamos Miflaud, não vale a pena occultal-o... esta senhora tudo sabe, eu
-contei-lhe tudo; não se dirá nada a tua mãe. Boa noite... vamos sair...
-
-—Mas eu estimaria bem saber o que tu queres dizer com o teu duello...
-
-—Este senhor fez todavia tudo quanto é possivel para que o senhor
-comprehendesse! diz Ambrozina lançando sobre Casimiro um olhar
-fulminante; elle quiz immediatamente pôl-o ao facto de tudo, para que
-o senhor não desmentisse as patranhas que elle me contou... mas perdeu
-o tempo e o trabalho; não me deixo enganar tão facilmente! Vamos, sr.
-Miflaud, não esteja a quebrar a cabeça, não se cance a querer adivinhar
-o que significam os signaes que o seu amigo lhe faz... O senhor não tem
-nenhum duello, não se bate ámanhã, e estimo muito que assim seja.
-
-—Muito obrigado pela sua bondade, minha senhora; é certo que não tenho
-nenhuma tenção de me bater ámanhã, nem mesmo depois de ámanhã...
-
-—E vinha buscar este senhor para ir com elle... a algum baile de tasca,
-sem duvida?
-
-—Oh! minha senhora!... ora essa!... um baile de tasca!... eu vinha...
-nós deviamos ir... Casimiro, dize lá onde é que estavamos para ir...
-
-Casimiro encolhe os hombros, e atira comsigo para uma cadeira exclamando:
-
-—Oh! não te embaraces... pois que com esta senhora não ha meio de dar um
-passo, de ir a um divertimento sem sua licença... Pois bem! é verdade,
-iamos, ou pelo menos deviamos ir ao Mabille passar uma hora. Isto não é
-crime! mas a senhora é tão ridicula, tão ciosa, que em tudo vê maldade! e
-obriga-me a mentir para evitar as scenas de ciume; mas com a senhora não
-se evitam nunca!
-
-—Ao Mabille! quer ir ao Mabille! que horror! um logar de perdição! Bem se
-sabe o que os homens vão lá procurar!...
-
-—Mas, minha senhora, engana-se, diz Miflaud; o Mabille é um jardim
-frequentado pela boa sociedade, pelos estrangeiros mais distinctos, por
-lindas mulheres...
-
-—Por _cocottes_! diga o termo.
-
-—Mas lá não ha só _cocottes_; e ao menos as que lá vão, apresentam-se
-vestidas no rigor da moda, e algumas que dançam com uma graça, uma
-desenvoltura. Asseguro-lhe que é muito curioso vêr aquillo.
-
-—Oh! desconfio bem que não é só para vêr que os senhores lá vão...
-
-—Mas, como Casimiro parece estar agora occupado com a senhora, penso que
-não iremos, e portanto vou...
-
-—Nada! nada! vamos lá, eu quero ir por força! exclama Casimiro
-levantando-se arrebatadamente. Não se ha de dizer que nunca faço o que me
-dá na vontade. Vem, Miflaud, vamos tomar uma carruagem.
-
-—Ah! querem por força ir ao Mabille, diz Ambrosina correndo a buscar o
-chale; pois bem! vou tambem com os senhores. Penso que o sr. Miflaud não
-se recusará a dar-me o braço...
-
-—De certo que não, minha senhora, terei até muita honra n’isso.
-
-—Ah! lá me esqueciam as luvas...
-
-Emquanto a sr.ª Montémolly vae ao fundo da sala buscar as luvas, diz
-Miflaud em voz baixa a Casimiro:
-
-—Com ella não será a coisa tão divertida!
-
-—Tu é que tens a culpa, imbecil! responde Casimiro; se tivesses entendido
-os meus signaes, ella teria acreditado no duello, e deixava-me sair
-comtigo.
-
-—Mas... se eu não sou forte em mimica!
-
-Ambrosina volta calçando as luvas e parte com os dois rapazes. Casimiro
-faz quanto pode para occultar o seu mau humor; a sua amante olha para
-elle, com ar meio ironico e meio de ameaça.
-
-
-
-
-IV
-
-Um almoço em intimidade
-
-
-No dia seguinte, depois do meio dia, Casimiro está em casa da amante,
-sentado a uma mesa sobre a qual se acha servido um magnifico almoço,
-defronte da sr.ª Montémolly, com quem elle fez as pazes n’essa mesma
-noite do baile Mabille, que se passou sem nova scena de ciumes. Miflaud,
-como não podia deixar de entregar-se á sua paixão pela dansa, teve de
-largar o braço de Ambrosina, a qual, naturalmente, tomou o de Casimiro;
-mas este, que não tinha a menor propensão para o _cancan_, ainda o mais
-burguez, contentou-se em ver Miflaud fazer prodigios de destreza e de
-audacia, executando a _tulipa tempestuosa_ e outras dansas em voga nas
-quadrilhas excentricas; depois, enternecido emfim pelos suspiros que dá
-Ambrosina apertando-lhe o braço, pelos olhares ardentes que succederam
-aos que ella a principio lhe lançava, por estas palavras: «Então já me
-não amas?» que são pronunciadas com uma voz quasi supplicante, elle
-responde meigamente á pressão do braço, olha para ella sorrindo, e está
-feita a paz. Não é talvez uma paz bem solida, bem duravel, mas emfim é
-uma reconciliação.
-
-A sr.ª Montémolly está com um lindo trajo caseiro de manhã, que dá muito
-realce aos seus contornos bem pronunciados; na cabeça não tem mais
-enfeites que os seus lindos cabellos, muito negros e espessos, que ella
-propria sabe arranjar de maneira que harmonisem com a sua physionomia,
-talento que nem sempre possuem os artistas cabelleireiros, que nos
-penteiam a seu modo, sem se importarem que o penteado fique bem ou mal á
-nossa cara.
-
-Ambrosina é ainda uma mulher muito seductora e que muitos homens se
-julgariam felizes de conquistar; mas, n’este momento é ella que parece
-procurar agradar ao seu amante, prendel-o em novas cadeias, emfim
-captival-o ainda mais. Estão trocados os papeis: é a senhora quem faz a
-côrte, e o homem quem a recebe.
-
-—Meu amiguinho, coma um bocadinho d’este _foie gras_, diz Ambrosina a
-Casimiro. Não o acha bom?
-
-—Delicioso, optimo! mas já comi.
-
-—Não importa. Então vae perdendo o appetite?
-
-—Pelo contrario, tenho um appetite enorme, e parece-me que o mostro bem;
-faço honra ao seu almoço.
-
-—Que tal acha este Chambertin?
-
-—Excellente: sinto-me tentado a cantar aquella copla do _Novo senhor de
-aldeia_: _É um vinho dos mais excellentes!... tem dez tem doze annos!..._
-
-—Tenho aqui um velho Madeira, de retorno da India, que o meu fornecedor
-de vinhos me recommendou; vae dizer-me o que pensa d’elle.
-
-—Estou d’antemão persuadido de que pensarei muito bem; a senhora tem
-sempre vinhos deliciosos.
-
-—É verdade, estou muito contente com o meu fornecedor. Coma d’esta
-lagosta em _mayonnaise_...
-
-—É o que estou fazendo.
-
-—Aqui tem azeitonas... e atum.
-
-—Logo, logo, temos muito tempo; a senhora não tem que sahir hoje de manhã?
-
-—Eu? ora essa! E aonde poderia eu ir quando estou com o senhor, quando
-o pussuo aqui, ao pé de mim, em minha casa? Ah! sou tão feliz então!
-queria estar sempre assim...
-
-—Provemos uma gota d’este famoso Madeira de retorno da India. Hum! que
-linda côr... e como está _nif_....
-
-—O que entende por _nif_, meu amiguinho?
-
-—É um termo de camponio que quer dizer claro, puro. Hum! bello aroma,
-este não cheira a agua-ardente como todo o Madeira falsificado... Á sua
-saude, minha querida amiga...
-
-Vá á sua, meu brégeiro: mas sobretudo não me prégue petas como hontem.
-
-—Ah! quer tornar á mesma? Afinal de contas, o crime não era grande. Toda
-a gente vae ao Mabille, e pode-se estar lá com muito juizo.
-
-—Sim, mas não se deve dansar como o seu amigo Miflaud; aquelle rapaz tem
-os ossos deslocados!
-
-—Então que quer? elle aspira a uma reputação no genero da do famoso
-Chicard!
-
-—Felizmente o senhor não gosta de dansa...
-
-—Ainda que gostasse, peço-lhe que acredite que não seria isso razão para
-eu me entregar a um _cancan_ tão descabellado.
-
-—Meu amiguinho, aqui tem salmão grelhado que ha de ser muito bom com este
-môlho á genebriana.
-
-—Diabo! ainda salmão; já tenho comido muito! Emfim, tanto peior!
-sacrifico-me...
-
-—Então não bebe!
-
-—Não faço outra coisa...
-
-—Temos aqui Champagne _rosey_; gosta, creio eu?
-
-—Oh! eu gosto de todos os vinhos quando são bons, é como as mulheres.
-
-—Como, senhor! gosta de todas as mulheres?...
-
-—Perdão! é quando ellas são boas, e asseguro-lhe que não me prende isso
-muito.
-
-—Ah! mau! então acha as mulheres más?
-
-—Sim, em geral, mas ha excepções.
-
-—É uma felicidade! e eu sou uma excepção?
-
-—Oh! a senhora abusa da minha situação, faz-me beber uma grande
-diversidade de vinhos... e depois faz-me perguntas insidiosas...
-
-—Vamos, responda: eu sou boa?
-
-—Ah! ah! ah!
-
-—Não se ria! quero que me diga se sou boa.
-
-—Só pela maneira de me perguntar isso, se poderia logo pensar o
-contrario! mas não, pode estar socegada, a senhora é boa, é um carneiro,
-um cordeirinho... nunca se zanga...
-
-—Creio que está mangando commigo?
-
-—Não, oh! francamente, julgo-a boa, quando não está debaixo do imperio
-d’uns zelos que lhe estragam ás vezes o genio.
-
-—É minha a culpa? Eu não seria ciosa de certo se o amasse menos...
-
-—Sim, isso diz-se sempre, mas eu não duvido dos seus sentimentos. Tem-me
-dado bastantes provas de affeição, tem-m’as dado até de mais... e como
-poderei eu pagar...
-
-—Cale-se! agora vae dizer tolices, beba, que é melhor. O Champagne está á
-sua espera. Vamos, faça-me a razão... este é o meu vinho favorito...
-
-—Á sua saude, querida Ambrosina; sim, bebo mas isso não me impedirá de
-lhe dizer que no fundo do coração não estou contente commigo. Não faço
-coisa alguma, não me falta nada, a senhora corre ao encontro de todos os
-meus desejos, paga a todos os meus fornecedores: é odioso, isto assim não
-pode durar!
-
-—Na verdade, Casimiro, não sei o que tem hoje, mas está a dizer-me coisas
-muito desagradaveis. Como, porventura entre duas pessoas que se amam, não
-deve ser tudo commum, o prazer e o desgosto, a miseria e a riqueza? Se eu
-não tivesse um soldo de meu, se carecesse de tudo, pensa que me havia de
-envergonhar de lhe dever tudo, de partilhar da sua fortuna, de viver dos
-seus beneficios?...
-
-—Oh! n’uma mulher, o caso é muito differente! uma mulher, é esse o seu
-papel, é a sua sorte; a mulher nasceu para ser protegida, soccorrida,
-sustentada pelo homem. As senhoras são feitas de uma das nossas
-costellas, por conseguinte são uma parte de nós mesmos. Mas o homem
-nasceu para trabalhar, para ganhar dinheiro, ou para o perder quando não
-é bem succedido nas suas emprezas. E quando elle passa todo o seu tempo a
-passear, a não fazer nada, senão divertir-se á custa da mulher, é o mundo
-ás avessas!
-
-—Ah! como é cruel! E todos aquelles que nasceram com fortuna, com
-herdades, quintas... têem acaso necessidade de trabalhar?
-
-—Não, mas tambem não têem necessidade de que os seus fornecedores sejam
-pagos pela dama a quem fazem a côrte.
-
-—Mas, todos os dias se está vendo um homem que não tem nada casar com uma
-mulher que lhe leva um dote consideravel; e elle não se envergonha de
-acceitar esse dote. Bem vê que é a sua mulher que elle deverá o seu bem
-estar, a sua fortuna, que muitas vezes elle se apressará a dissipar com
-amantes. Por que razão se acha o senhor tão reprehensivel, emquanto que
-esse homem será bem visto na sociedade?
-
-—Oh! minha querida amiga, é que ha ahi uma grande differença: esse homem
-veiu a ser marido da senhora rica, ella julgou-o digno de o unir a si
-por laços indissoluveis, emfim tem o nome d’elle. O marido torna-se dono
-da casa, o que é muito differente! Então pode mandar, pode pôr e dispôr
-d’uma fortuna que passou a ser sua...
-
-A sr.ª Montémolly não responde nada; escutou com attenção as ultimas
-palavras do seu amante, e isso carrega-lhe de sombras a physionomia,
-emquanto que Casimiro, enche um copo de Champagne, que em seguida bebe
-aos golinhos, achando que é infinitamente mais agradavel beber assim o
-vinho do que ingurgital-o, e nós somos completamente da seu parecer; não
-vemos que vantagem pode haver em fazer da bocca jogo do tonel.
-
-Entretanto, espantado do silencio que guarda a sua amante, e do ar
-pensativo que substituiu o prazer que lhe animava os olhos, depois de
-ter acabado de beber o Champagne, Casimiro diz-lhe:
-
-—Minha boa amiga, o que é que tem? vejo-a com um ar tão triste! está
-incommodada?
-
-—Não, meu amigo, não, não é isso...
-
-—Então temos outra coisa? Aind’agora parecia-me, tão alegre...
-
-—Ah! Casimiro! foi o que o senhor acaba de dizer que me estragou a minha
-felicidade...
-
-—O que foi então que eu disse para produzir esse effeito?
-
-—Tudo coisas muito justas; mas eu comprehendi-o perfeitamente, e além
-d’isso, o que me quiz fazer perceber é naturalissimo.
-
-—O que é que eu quiz fazer-lhe perceber? Affianço-lhe que não entendo!
-
-—Finge que me não comprehende! O senhor, falando-me das mulheres que
-enriquecem um homem casando com elle, quiz dizer-me: Por que não faz a
-senhora outro tanto, se tem muito a peito ver-me gosar da sua fortuna sem
-remorsos?...
-
-—Eu? nunca tive similhante pensamento. Oh! juro-lhe que se engana. É
-verdade que disse isso, mas foi sem a intenção que suppõe.
-
-—Oh! meu amigo, ainda que fosse com essa intenção, onde estaria ahi o
-mal? Pensa que não tenho dito commigo desde muito tempo: Ah! como eu me
-daria por feliz em ser sua mulher, como me sentiria ufana de usar do
-nome d’elle! E se fosse possivel isso, não lhe teria eu já pedido que
-se ligasse a mim por laços indissoluveis?... Se o não tenho feito, ai!
-é por que é impossivel! Olhe, meu amigo, não quero ter segredos para o
-senhor... Disse-lhe que era viuva, e não é verdade! sou casada, casada
-realmente, e meu marido ainda está vivo!
-
-—Ah! será possivel. Espere! espere! então vou beber mais Champagne... o
-sr. Montémolly está vivo?
-
-—Esse nome não é o de meu marido; ao separar-me d’um homem, que eu nunca
-tinha amado, com o qual me era impossivel viver, apressei-me a abandonar
-o nome d’elle, para tractar de esquecer que era ainda sua mulher.
-
-—Tinha para isso todo o direito. E o que faz esse senhor? Oh! se a
-contraría falar mais em seu marido, fiquemos por ahi. Por quem é, não se
-embarace, fiquemos por ahi!
-
-—Não, visto que principiei, estimo muito agora contar-lhe como este
-casamento se fez, e por que se rompeu.
-
-—Fale; o seu Champagne é delicioso; sou todo ouvidos.
-
-—Vou confessar-lhe coisas... que não tenho dito a ninguem! mas não quero
-ter nenhum segredo mais para com o senhor.
-
-—Não me diga senão o que lhe apraz que eu saiba: eu não lhe pergunto nada!
-
-—É justamente por isso que lhe quero dizer tudo. Eu, aos dezoito annos,
-era muito bonita!
-
-—Creio bem que sim, pois que ainda o é, e ha-de sel-o sempre...
-
-—Cale-se! Não tinha outros parentes senão uma tia mui pouco amavel, que
-ralhava commigo constantemente, mas que vigiava bastante mal. Um rapaz
-viu-me á janella, e namorou-se de mim. Comprou a minha creada grave, que
-o introduzia em nossa casa quando minha tia saía. Elle era um rapaz muito
-bonito... em summa...
-
-—Muito bem, o resto adivinha-se, passemos os pormenores.
-
-—Mas o rapaz era militar, teve de partir, de se ir reunir ao exercito.
-Estava-se então em guerra. Quando elle partiu, a minha falta havia tido
-consequencias...
-
-—Diabo! diabo! o negocio complica-se.
-
-—Escrevi ao meu amante participando-lhe o meu estado; elle respondeu-me
-que assim que voltasse se apressaria a reparar a minha falta, casando
-commigo. Mas, pobre de mim! não devia voltar! foi morto na primeira
-acção...
-
-—Pobre rapaz! ahi fica a senhora sem saber o que ha de fazer. E a tia?
-
-—Era-me impossivel occultar-lhe o meu estado; ella gritou muito. Mas,
-como a fortuna que eu possuia me vinha de minha mãe, como eu era mais
-rica de que ella, e como, se eu a deixasse, ella teria de levar uma vida
-mais modesta, apaziguou-se. Fui para o campo; alugámos uma casinha nos
-arredores de Montmorency; foi lá que dei á luz uma menina, que confiei a
-uma mulher de Pierrefite.
-
-—Em tudo isso não vejo seu marido...
-
-—Espere; ha de vel-o bem depressa. De volta a Paris, ia eu frequentes
-vezes a Pierrefite vêr minha filha. Isto desagradava a minha tia, que
-me repetia sem cessar que eu me compromettia, que não acharia com quem
-casar, se não procedesse com mais prudencia. Eu não lhe dava ouvidos
-e continuava a ir vêr minha filha, que era fraquinha e delicada, mas
-gosava de boa saude. Infelizmente, a mim não me acontecia o mesmo: ia-me
-definhando de dia para dia, de fórma que os medicos receitaram-me uma
-viagem á Italia, ou pelo menos uma longa estada em Nice. Parti com minha
-tia, depois de ter bem recommendado minha filha á ama. Fiquei alguns
-mezes em Nice; não me restabelecia. Aconselharam-me que fosse passar uma
-temporada em Napoles. Fui para lá, mas minha tia, tendo que fazer em
-Paris, deixou-me por algum tempo. Tinha-lhe recommendado muito que fosse
-vêr minha filha, que se certificasse de que não lhe faltava nada.
-
-«Quando minha tia voltou a ter commigo, disse-me que minha filha tinha
-morrido, e que a camponeza a quem eu a dera a crear, muito afflicta
-com essa desgraça, tinha saído de Pierrefite sem dizer em que sitio ia
-habitar. Fiquei muito mortificada com a perda da minha filhinha. Tinha-me
-sentido tão feliz por ter uma filha! fundava sobre ella toda a minha
-felicidade futura! Minha tia fez quanto poude para me distrahir. Andámos
-muito tempo a viajar; visitei a Italia toda, depois uma parte da Suissa.
-Finalmente tinha-me restabelecido, e voltámos a residir em Paris. Aqui,
-um sujeito rico, bastante amavel, ao menos fazia então todo o possivel
-para o ser, veiu fazer-me a côrte; era um antigo amigo de minha tia, e
-tenho motivos para crer que, desde muito tempo, ella lhe havia promettido
-fazer quanto pudesse para me levar a consentir em casar com elle. Este
-sujeito era muito mais velho do que eu; minha tia porém affirmava-me que
-assim ainda eu seria mais feliz; que um marido joven abandonava em casa a
-mulher para andar mettido com amantes, emquanto que um esposo, homem de
-juizo, andava sempre com a mulher nas palminhas das mãos. Que lhe direi?
-eu pensava não amar nunca mais... tinha perdido minha filha... Deixei-me
-casar para estar emfim em minha casa e não viver mais com minha tia, a
-quem o homem que me desposava tinha feito presente de uma linda casinha
-nos arredores de Paris.
-
-«Mas não tardei a perceber que fizera uma asneira, e que me tinha ligado
-a um homem que de nenhum modo me convinha. Meu marido era ciumento,
-curioso, esmiuçador, intromettendo-se em tudo; pelo lado da fortuna,
-como eu possuia a minha, não tinha precisão de recorrer a elle. Isso
-contrariava-o, queria saber como eu gastava o meu dinheiro; convidei-o a
-que se não mettesse nos meus negocios; foi o começo das nossas questões.
-Mas aquelle senhor, que tudo queria saber, tinha o atrevimento de
-esquadrinhar tudo por toda a parte quando eu sahia, e creio mesmo que
-possuia segundas chaves de todos os meus moveis. O que é certo, é que
-um dia achou n’um cofresinho, no fundo da minha papeleira, as cartas
-que me escrevia aquelle pobre Augusto quando estava no exercito, e nas
-quaes falava da nossa filhinha. O meu amigo acreditará que meu marido
-deu por páus e por pedras, dizendo-me que eu o enganára indignamente
-deixando-o crer que era... _Joanna d’Arc!_ Respondi-lhe que ainda se
-devia dar por muito feliz em eu ter consentido em ser sua mulher, mas que
-eu não viveria mais com um homem que remexia nos meus moveis e tinha a
-confiança de ler as cartas que eu recebêra antes de usar do seu nome.
-No outro dia executei a minha ameaça; aluguei uma casa, e mandei levar
-para lá tudo o que me pertencia. Meu marido quiz oppôr-se á minha saida;
-mas eu mostrei-lhe um rewólver que tinha comprado, e disse-lhe: Não só o
-deixo, mas prohibo-o, ouça-me bem, prohibo-o de se apresentar em minha
-casa... A lei auctorisa-o a isso, bem sei, porque não estamos separados
-judicialmente, o que faremos ámanhã, se quizer; mas, como pelo nosso
-contracto já estamos separados de bens, creio que podemos dispensar essa
-formalidade. Comtudo, repito, não tenha o atrevimento de ir nunca a minha
-casa, senão... é com este rewólver que o hei de receber. Meu marido é
-muito medroso... desde esse dia nunca mais ouvi falar n’elle.
-
-—Bravo! oh! a senhora é uma mulher decidida! E juntou-se com a sua tia?
-
-—Com minha tia! oh! nunca! não queria nada com minha tia, que foi quem
-me fez aquelle odioso casamento. Ficámos mal uma com a outra; pois não
-pretendia ella fazer-me voltar para meu marido! mas eu respondi-lhe n’um
-tom que lhe fez vêr que eu não era já a menina submissa ás suas vontades.
-Demais, ella morreu pouco tempo depois d’aquella separação; uma doença
-repentina a levou á sepultura em poucos dias; havia-me escripto para que
-a fosse vêr; tinha, affirmava, uma coisa importante para me communicar.
-Hesitei, dizendo commigo: Vae ainda pedir-me para que volte para meu
-marido. Emfim, resolvi-me a ir; mas, quando cheguei á sua quinta, já não
-era tempo, tinha ella morrido! Aqui tem, meu caro Casimiro, todos os
-acontecimentos da minha vida, agora já sabe porque, com grande pezar meu,
-lhe não posso offerecer que case commigo.
-
-—Oh! minha querida Ambrosina! pela parte que me toca, devo confessar-lhe
-francamente que nunca pensei em tal, o casamento não me tenta,
-assusta-me, bem sabe que ha quem affirme que o casamento é o tumulo do
-amor.
-
-—Oh! nem sempre... mas é certo... não me acha talvez bastante joven para
-ser sua mulher?
-
-—Eu! pois eu penso lá em similhante coisa... não, eu penso... em fazer
-alguma coisa... em trabalhar...
-
-—Trabalhar... Para quê? com que fim?
-
-—Para ganhar dinheiro...
-
-—Não sou eu a sua thesoureira?...
-
-—É justamente porque eu preferiria ser o meu proprio thesoureiro.
-Ia menos mal na pintura a oleo, fiz tambem alguns retratos bastante
-parecidos...
-
-—Fazer retratos! lembra-se d’isso! para ter modelos, olhar muito para
-mulheres, estudar-lhes o sorriso, os olhares! Não quero que faça
-retratos, ouve? prohibo-lh’o expressamente.
-
-—E a paizagem? oh! a paizagem é uma coisa bem innocente!
-
-—Com os pintores não ha nada innocente; para a paizagem, é mister ir ao
-campo procurar pontos de vista, ou carneiros e pastoras que os guardam.
-
-—E são lindas as pastoras dos arredores de Paris! e graciosas! como as
-mulheres que alugam cadeiras.
-
-—Deixe-me em socego com a sua pintura.
-
-—Prefere que eu escreva para o theatro? Ah! deve ser uma grande
-felicidade ver a gente representar as suas peças, ouvir-se applaudir...
-
-—Fazer comedias! que horror! um auctor passa a vida nos theatros, nos
-bastidores, com as actrizes, faz a côrte a todas, e, promettendo-lhes
-papeis, faz com que lhe dêem attenção; o senhor não saíria mais dos
-bastidores, passaria alli a sua vida. Ah! peço-lhe por tudo quanto ha,
-não pense em fazer peças de theatro.
-
-—Pois bem! então, se eu escrevesse um romance? Ah! isto não exige
-passeios nem sahidas; escreve a gente com todo o socego no seu gabinete.
-Eu tenho ás vezes idéas bastante originaes, talvez faça um romance
-divertido, um romance de costumes...
-
-—Um romance! um romance! tenho ouvido dizer cem vezes que, para fazer
-um romance, era preciso ter visto muito, que era preciso ter corrido,
-ter estado nos sitios que se pretende descrever, sobretudo para fazer
-um romance de costumes; ah! se o senhor faz um romance extraordinario,
-inverosimil, então pode inventar...
-
-—Não, eu prefiro o ordinario ao extraordinario.
-
-—Então meu amigo, bem vê que não podia trabalhar socegadamente no seu
-gabinete; teria de andar, de ir algumas vezes a sitios muito arriscados,
-a esses bailes onde se dançam todas as danças possiveis; sob pretexto
-de ver como se trabalha n’um _atelier_, iria a casa das floristas, das
-modistas, das costureiras, isso não acabaria; seria para estudar os
-costumes das diversas classes da sociedade. Deus sabe quanto se vê quando
-se quer estudar os costumes! Não, siga o meu conselho, não faça romance
-nenhum! Demais, não creio que seja essa a sua vocação.
-
-—Ah! se eu podesse descobrir ou inventar alguma coisa boa, util, alguma
-coisa que me cobrisse de gloria e fizesse a minha fortuna.
-
-—Tem todo o direito de procurar isso...
-
-—Que pena que a batata seja conhecida! talvez eu a tivesse descoberto!...
-
-—Sim, mas a batata é perfeitamente conhecida, não quebre pois a cabeça a
-procurar invental-a.
-
-—Repito, quero occupar-me n’alguma coisa.
-
-—Pois bem! se o quer absolutamente, eu lhe procurarei um emprego.
-
-—A senhora? E então onde?
-
-—N’uma secretaria; vae-se para a repartição não muito cedo, sae-se de lá
-não muito tarde; á noite está-se livre, isto não dá muito trabalho.
-
-—Ah! isso havia de agradar-me muito! Mas como espera a senhora
-arranjar-me esse emprego?
-
-—Eu verei, falarei aos meus conhecimentos; parece-me que o caso não é
-urgente. Espere, Florentina tem um primo, que é chefe d’uma repartição;
-farei com que ella fale ao primo. Aquella pobre Florentina! como a gente
-é ingrata! quando se ama muito alguem, quando não se pensa senão n’essa
-pessoa, esquecem-se todas as outras! Mas o senhor faz-me andar a cabeça á
-roda, tira-me o juizo!...
-
-—Que mais temos então?
-
-—Temos que hontem á noite, quando recebi a sua carta, acabava Florentina
-de entrar; vinha offerecer-me o seu camarote na Opera; mas depois de
-haver lido o seu negregado bilhete em que o senhor me annunciava que não
-iria lá, tive um ataque de nervos terrivel; aquella pobre Florentina
-dispensou-me todos os cuidados, mas não sabia o que me havia de dar,
-mandou a minha creada buscar o remedio que costumo tomar quando tenho
-d’aquelles ataques; mas a creada não voltava, eu tornei a mim, e sem
-esperar pelo remedio, disse a Florentina: «Anda commigo, quero ir a
-casa d’elle; mandei vir uma carruagem, e Florentina teve a complacencia
-de me acompanhar até á sua porta, queria mesmo ficar á minha espera,
-sacrificando por mim a Opera e o prazer que esperava ter lá; mas eu não
-quiz consentir, mandei-a embora. Então! ha de convir que é uma verdadeira
-amiga, e que tenho muita razão em ter por ella uma affeição sincera...
-
-—Sim, sim, não digo o contrario, ella é-lhe muito affeiçoada, mas tambem
-é horrivelmente feia!...
-
-—Ah! ahi está o que são os homens!... Que importa que seja feia, se
-possue todas as qualidades do coração! Mas os senhores não apreciam senão
-a belleza!
-
-—E as senhoras não descobrem todas as qualidades do coração n’uma mulher,
-senão quando ella não é bonita. Oh! em o sendo, acham-lhe logo todos os
-defeitos, mas não falam nunca das suas boas qualidades.
-
-—Oh! cale-se! porque é que diz isso?
-
-—É que as suas amigas intimas são todas feias como os peccados mortaes.
-
-—Queria talvez que eu, para lhe ser agradavel, chamasse a minha casa
-algumas bellezas raras, afim de que o senhor lhes fizesse a côrte mesmo á
-minha vista!
-
-—Não, eu não lhe peço bellezas raras; a senhora é que prefere as
-fealdades raras! Oh! mas faça o que entender! a final de contas, isso
-é-me completamente indifferente.
-
-Ambrosina reprime a grande custo um movimento de impaciencia, depois toca
-a campainha a chamar a creada grave, que apparece immediatamente.
-
-—Adriana, o café está prompto?
-
-—Está sim, minha senhora.
-
-—Então sirva-o.
-
-—E que venha bem quente, quasi a ferver, diz Casimiro. Ouve, menina? se o
-posso tomar, não o tomo.
-
-Adriana sae a rir; Ambrosina exclama:
-
-—Não gosto que se graceje com os creados; isso torna-os familiares.
-
-—Porventura gracejei com a sua creada?
-
-—Sem duvida; faz trocadilhos a respeito do café...
-
-—Minha querida amiga, com a senhora nunca a gente sabe como ha de falar a
-uma mulher; em tudo vê maldade, espero que não pense que arrasto a aza á
-sua creada...
-
-—Não digo isso; mas o senhor não póde dizer que ella seja muito feia...
-
-—Oh! tambem não me fará crer que é bonita! Um nariz acachapado, cabello
-ruivo, é um bom _derriço_ para algum policia.
-
-—É uma excellente rapariga, é-me muito affeiçoada; quando estou doente
-anda sempre n’uma roda viva a tractar de mim...
-
-Adriana traz o café; emquanto ella dispõe as chicaras, diz a ama:
-
-—Adriana, eu estive hontem muito doente, não é verdade?
-
-—Oh! sim, minha senhora! eu estava bem afflicta. A sr.ª Florentina
-disse-me que lhe fosse buscar o remedio á botica, corri n’um pulo;
-mas havia lá tanta gente, tive que esperar muito tempo; por mais que
-eu pedisse que me despachassem dizendo: «É para minha ama, a senhora
-está muito doente» aquelles senhores da botica estão tão habituados a
-trabalhar para doentes, que não se apressam nunca...
-
-—Minha pobre Adriana; olha, pega n’aquella touca da manhã que alli está
-em cima da poltrona, dout’a...
-
-—Ah! como a senhora é boa!...
-
-—Gosto de recompensar quem me serve com zelo. Anda, podes sahir!
-
-A creada pega na touquinha que a ama lhe dá de presente, e retira-se aos
-saltinhos.
-
-Casimiro toma o café, bebe um calice do divino licor dos benedictinos de
-Fécamp, um outro de _rhum_, e levanta-se dizendo:
-
-—Creio que isto é que se pode chamar ter almoçado.
-
-—Janta commigo?
-
-—Oh! minha querida amiga, são quasi tres horas; quando se almoçou assim,
-não se pensa em jantar, não terei vontade de comer.
-
-—Mas sabe que tem que me levar esta noite á Opera-Comica?
-
-—Sim, sim, está ajustado...
-
-—Não vá fazer como hontem?
-
-—Não tenha receio; vou tomar um pouco de ar e jogar talvez uma partida de
-bilhar no café da Porta-São-Martinho...
-
-—Vá, meu extravagante, dê-me um beijo.
-
-—Até logo.
-
-
-
-
-V
-
-O lindo Rouflard
-
-
-Saíndo de casa da sr.ª Montémolly, Casimiro vae passear algum tempo no
-_boulevard_; sente o desejo de tomar ar, o que é sempre optimo para a
-digestão, depois d’um jantar abundante. Casimiro accende um charuto, essa
-necessidade facticia dos ociosos.
-
-De repente, mexendo n’uma das algibeiras do lado, sente debaixo dos
-dedos alguma coisa que tem a fórma d’um cartucho de dinheiro. Era
-effectivamente um d’estes lindos estojos de marroquim, forrados de
-cobre, e feitos de proposito para guardar ouro. O nosso rapaz tira o
-cartucho da algibeira, desvia-se para um lado e conta o dinheiro que ha
-no estojo; acha vinte e cinco luizes. Torna a fechar o estojo, e mette-o
-outra vez na algibeira, dizendo de si para si:
-
-—Quinhentos francos! ella introduziu-me isto no bolso do paletot; terá
-dito comsigo: «Elle não deve já ter muito dinheiro.» e não se enganou,
-restavam-me apenas vinte francos; mas receber sempre dinheiro d’esta
-mulher. Ah! é humilhante, é vergonhoso! ainda se ella me mettesse na
-algibeira quatro ou cinco mil francos de uma vez, ao menos teria eu
-para muito tempo sem andar á divina; porém ella terá todo o cuidado em
-me não dar nunca similhante quantis, quer ter-me sempre debaixo da sua
-dependencia. E não quer que eu trabalhe; não, teria um desgosto se eu
-podesse passar sem ella. E diz que me ama, sim, por si, mas não por
-mim. Infelizmente, nas mulheres, esta maneira de amar é a mais vulgar.
-Ah! as mulheres de hoje não são como as de Sparta, que diziam ao marido
-que partia para a guerra: «Volta vencedor ou faze-te matar.» Dir-me-hão
-talvez que é tambem uma singular maneira de amar qualquer pessoa o
-dar-lhe de conselho que se faça matar! _Ne quid nimis!_ o excesso em tudo
-é um defeito. Vamos jogar o bilhar, é a estas horas que Miflaud costuma
-estar no café do theatro. Ah! diabo! agora me lembro, é hoje o meu dia de
-lição á menina Proh; irei? Mas eu não estou em estado de dar uma lição
-de desenho. Ambrosina fez-me beber tantas coisas! Devo mesmo exhalar um
-forte cheiro a vinho e a licor; não posso apresentar-me n’este estado
-deante d’uma familia respeitavel, não, seria indecoroso. Ó delicias de
-Capua! aqui tendes os vossos resultados! Ambrosina faz bem tudo o que é
-necessario para me tirar o gosto pelo trabalho. Ora adeus! tanto peior!
-toca a jogar o bilhar.
-
-Quando a gente adquiriu uma vez o habito de não pensar senão, em
-divertir-se, é muito difficil vencel-o e ter força bastante para rejeitar
-o prazer que se apresenta e preferir-lhe o estudo ou trabalho. É o
-que acontece n’este momento a Casimiro; este rapaz não é falto de bons
-sentimentos, do que deu provas encarregando-se de dar lições de desenho
-á filha da sua vizinha: deseja ganhar dinheiro, já pelo seu talento, já
-exercendo um emprego em qualquer secretaría; mas lá está a amante para
-lhe tolher o passo; como é rica, quer monopolizar o amante, quer o que
-pobre moço não viva senão para ella e por ella! Quando uma mulher, que é
-ainda muito encantadora, quer subjugar um homem, emprega n’isso todos os
-seus meios, e para agradar tem ella muitos.
-
-Casimiro não vae dar a lição á menina Angelina; vae para o seu café
-favorito, onde encontra alguns rapazes, amigos de vádiar como elle; ha
-mesmo alguns que fazem ainda mais: vêm para o café assim que elle se
-abre, sentam-se a uma meza e põem-se a jogar o dóminó até á hora do
-jantar. Acabada esta refeição, voltam muito depressa a continuar o seu
-joguinho, e não se vão embora senão quando o estabelecimento se fecha.
-Vão dizer-me que estes rapazes são jogadores e não ociosos ou vádios; é
-possivel; eu, por mim, chamo vádios áquelles que passam a vida no café.
-
-Depois de muitas horas consagradas ás carambolas, Casimiro lembra-se que
-a amante quer ir tomar sorvetes ao café Napolitano, antes de ir para o
-theatro; é pois mister que a vá buscar antes da hora em que deve começar
-a peça da Opera-Comica. Dirige-se portanto a casa da sr.ª Montémolly,
-que se acha lindamente vestida, apresentando-se com essa desinvoltura
-que nem todas as mulheres sabem ter; porque umas conservam-se sempre
-muito direitas, muito impertigadas, outras mostram demasiado desleixo e
-indolencia.
-
-—Já jantou? pergunta a formosa dama.
-
-—Não, nem mesmo pensei em tal; não tive appetite.
-
-—Pois bem! nem eu tão pouco. Mas sabe o que devemos fazer? É irmos cear
-ao café Inglez depois do espectaculo. Agrada-lhe isto?
-
-—Oh! perfeitamente; a senhora tem sempre excellentes idéas.
-
-A menina Adriana foi arranjar uma pequena _victoria_, e voltou com ella
-muito depressa para ficar mais cedo livre de sua ama. Ambrosina e o
-amante fazem-se conduzir ao café tão affamado pelos seus sorvetes, depois
-dirigem-se á Opera-Comica, e vão para um camarote que a sr.ª Montémolly
-mandára alugar antecipadamente.
-
-Cantava-se uma opera nova de Auber, d’esse celebre compositor, ao qual
-devemos tantas obras primas, tantas operas que ninguem se enfastia de
-ouvir; vae envelhecendo, dizem algumas pessoas, mas enganam-se; quando um
-homem compõe tão encantadoras melodias, é porque se conserva sempre moço,
-para Auber parou o tempo.
-
-Casimiro escutava a musica, emquanto que Ambrosina se entretinha
-sobretudo em observar se o seu companheiro dirigia o binoculo para
-algumas senhoras. Mas tudo se passa em bem, porque o rapaz não fixou
-muito tempo as suas vistas no mesmo lado. Acabada a opera, o par amoroso
-dirige-se ao café Inglez, que fica apenas a dois passos da Opera-Comica.
-Alli, pedem um gabinete reservado e mandam vir uma bella ceia, á qual
-ambos fazem honra. Não lhes direi se esta magnifica ceia é entremeada
-de ternas caricias e de juramentos de amor, deixo isso á sua discrição;
-o que é certo, é que são quasi duas horas da madrugada quando a sr.ª
-Montémolly diz:
-
-—Creio que é tempo de irmos para casa. Diga ao creado que nos vá buscar
-uma carruagem.
-
-Nunca faltam carruagens n’este rico e elegante bairro, onde se faz
-da noite dia, de modo que ás duas horas da madrugada está ás vezes
-mais animado, mais cheio de vida que ao meio dia. Casimiro leva
-Ambrosina a casa, depois faz-se conduzir ao seu domicilio, na rua de
-Paradis-Poissonniére, dizendo comsigo:
-
-Aqui está um dia bem empregado; foi um dia cheio.
-
-Mas, ao dizer isto, o rapaz tambem estava bem cheio, porque se não tinha
-poupado mais á ceia do que ao almoço; o Champagne tinha representado um
-grande papel em todo este dia; elle não estava bebedo, porque um homem
-bem educado nunca se embebeda, mas estava n’esse estado de ebriedade que
-é o meio termo entre a embriaguez e o perfeito juizo.
-
-—Parou emfim a carruagem. Casimiro, que se acha deante da sua porta,
-paga ao cocheiro, e vae puxar o botão de metal que deve fazer tocar a
-campaínha e acordar o porteiro, dizendo comsigo:
-
-—Comtanto que o meu estimavel porteiro não tenha o somno muito pezado, e
-que saiba que não recolhi ainda.
-
-Na occasião de tocar a campainha, Casimiro vê um vulto estendido deante
-da porta; abaixa-se para ver melhor, estende cautelosamente o pé, o vulto
-mexe-se; é um homem que está alli deitado.
-
-Casimiro faz um movimento para a rectaguarda, na idéa de que é talvez um
-ladrão que finge estar a dormir, e elle não tem sequer uma bengala para
-se defender; mas o vulto não se mexe mais, e o rapaz decide-se a puxar
-outra vez o botão de metal.
-
-O porteiro não abre ainda, e Casimiro, impacientado, empurra com o pé
-o individuo que alli está estendido tomando-lhe a passagem; ouve-se um
-grunhido surdo e levanta-se um pouco uma cabeça, que tinha a cara voltada
-contra a porta, resmungando:
-
-—Então! olá! o que é que temos?
-
-—O que está aqui fazendo deitado na rua?
-
-—Bem viu que estava dormindo. Então agora já se não pode dormir socegado?
-
-—Não se dorme deante da porta d’uma casa.
-
-—Mas eu sou cá do predio, é o meu domicilio politico... nas aguas
-furtadas...
-
-—Se mora aqui, porque não entra para sua casa em vez de estar ahi
-deitado? Estaria muito melhor na sua cama.
-
-—Na minha cama!... é fresca a tal minha cama! um enxergão e milhares de
-percevejos... nada mais...
-
-—Mas, emfim, na rua não se dorme; se vem por ahi alguma patrulha, algum
-policia, levam-n’o para a estação.
-
-—Isso e o que eu quero é tudo um... estou á espera d’elles. Que afinal
-quem tem a culpa é o maroto, o patife do Chausson, que me não abre a
-porta.
-
-—Ah! o porteiro não lhe quer abrir a porta?
-
-—Sim, Chausson, o meu creado.
-
-—Quer dizer, o porteiro?
-
-—Porteiro, é verdade... mas foi meu creado e por muito tempo. Isto fal-o
-admirar, mas é assim mesmo.
-
-Quando eu era amo d’elle dava-lhe ás vezes umas correcções, elle bebia-me
-os licores, licores da sr.ª Amphoux... da verdadeira, que me mandava a
-minha Dulcinéa... e hoje, para se vingar, o meu creado, que veiu a ser
-meu porteiro, deixa-me ficar de noite no meio da rua.
-
-—Oh! mas ha de abrir a porta por força.
-
-E Casimiro vae puxar com todas as suas forças o botão de metal.
-
-Ao barulho da campainha succede a voz do porteiro, gritando:
-
-—Rouflard! se não acabas de tocar a campainha, faço-te despedir ámanhã.
-
-—Não é Rouflard que toca, sou eu... abra immediatamente, porteiro; mando
-eu!
-
-—Como! é o sr. Casimiro! Oh! perdão, eu pensava que já estava recolhido
-ha muito tempo. Ah! se eu soubesse que era o senhor, bem sabe que não
-costumo fazel-o esperar...
-
-Abre-se a porta effectivamente. Casimiro entra, dizendo ao homem que está
-deitado no chão:
-
-—Bom! aqui tem a porta aberta... Então agora fica na rua?
-
-O tal individuo, a quem o porteiro chamou Rouflard, parece hesitar em
-abandonar a sua posição horisontal, decide-se comtudo a fazel-o, ergue-se
-ou antes enfia pela porta dentro aos trambulhões, e vae agarrar-se á
-parede. Chausson, o porteiro, levanta-se, veste uma jaqueta, que lhe
-serve de chambre, e vem com um castiçal na mão tornar a fechar a porta e
-offerecer luz ao seu joven inquilino para subir a escada.
-
-Casimiro está entretido a examinar o homem que se acha encostado
-á parede, contra a qual muito lhe custa a segurar-se, porque está
-completamente ebrio.
-
-—Se o senhor quer levar esta luz para subir a sua casa... sinto immenso
-tel-o feito esperar; eu bem ouvia tocar, mas pensava que era ainda o
-Rouflard, e por isso é que não abria...
-
-—Vejam este brégeiro! queria deixar o amo na rua... n’isso reconheço bem
-o meu antigo lacaio...
-
-—Cale-se, Rouflard; quando um homem se põe n’esse estado, recolhe-se
-antes da meia noite, ao menos.
-
-—Mas se eu me quero recolher mais tarde, porque assim me dá na vontade,
-tens obrigação de me abrir a porta, percebeste tu, meu creado?
-
-—Graças a Deus, já não sou seu creado! esse tempo já lá vae.
-
-—Quando me bebias os licores!
-
-—Tu não me pagavas as minhas soldadas, portanto era forçoso que eu
-apanhasse alguma coisa para me sustentar... mas tu comias tudo!
-
-—Prohibo-te que me trates por tu, percebes meu creado?
-
-—E eu prohibo-te que me chames teu creado... Vae-te deitar, borrachão.
-
-—Vae para o teu cubiculo, perro, ámanhã falaremos... não te digo mais
-nada... teu amo te ensinará!
-
-Depois de haver atirado esta ameaça, que faz encolher os hombros ao
-porteiro, Rouflard dirige-se, cambaleando, para a escada, apoia-se ao
-corrimão e lá consegue subir a muito custo. Casimiro tinha ficado em
-baixo para assistir ao dialogo entre o bebedo e o porteiro; sentia tambem
-uma certa curiosidade, e desejava saber como é que aquelle homem, tão
-mal arranjado, que parecia tão miseravel, pudera ter por creado o sr.
-Chausson; pergunta pois ao porteiro, assim que Rouflard desapparece na
-escada:
-
-—Este bebedo, que affirma que o senhor esteve ao seu serviço, fala
-verdade?
-
-—Oh! sim, senhor, não o nego; mas o que o senhor difficilmente
-acreditará, vendo-o agora tão miseravel, é que, ha vinte e cinco annos,
-este mesmo individuo era então um homem da moda, o menino querido de
-todas as mulheres, que não lhe chamavam senão o lindo Rouflard! o
-encantador Rouflard! e, a dizer a verdade, era então um bonito rapaz,
-bem feito, airoso de corpo, uma cara amavel, fino... Oh! o maganão sabia
-dar aos olhos todas as expressões possiveis para seduzir as mulheres, e,
-palavra! entendia da coisa... era o seu officio?
-
-—O seu officio? O que quer dizer com isso?
-
-—Pois é bem facil de perceber: quero eu dizer na minha, que o lindo
-Rouflard não se occupava n’outra coisa senão em fazer a côrte ás
-senhoras, e atirava-se de preferencia ás senhoras ricas. Então recebia
-d’uma, e depois de outra! mimos d’esta, presentes d’aquella. Quando os
-fornecedores, os crédores, lhe vinham pedir dinheiro, nunca era elle quem
-lhes pagava. Eu estava ao facto de tudo, era o seu creado grave, o seu
-homem de confiança; elle dava-me as intrucções, dizia-me: «Chausson, has
-de mandar o meu alfaiate a casa de Leonor e o meu sapateiro a casa da
-Ernestina, ellas pagarão a esses patifes; não quero descer a pagar aos
-meus crédores; é de muito máu tom! Ah! é verdade, has de ir a casa da
-sr.ª fulana, ganhei-lhe hontem cem luizes ao _écarté_; irás pedir-lh’os,
-que ella dá-t’os immediatamente, já se sabe; demais, as dividas de jogo
-são sagradas, pagam-se em vinte e quatro horas. Passarás tambem por
-casa da baroneza ou da condessinha; apostámos nas corridas, ganhei mil
-escudos a uma, mil francos á outra, receberei tudo isso, tenho precisão
-de dinheiro!» Eu ia fazer estes recados, e durante muito tempo aquellas
-senhoras pagaram, pagaram muito bem sem fazerem a menor observação. Então
-apanhava eu alguma coisa por conta das minhas soldadas, e bebia licores
-da sr.ª Amphoux pelo resto. Oh! os licores das ilhas! aquillo era o meu
-fraco! Mas a pouco e pouco as coisas principiaram a não correr tão bem:
-Rouflard, que bebia como uma esponja, viu dentro de pouco tempo o nariz
-pôr se-lhe côr de beterraba; isto fez-lhe muito mal no conceito das
-amantes; em geral as mulheres não gostam dos narizes vermelhos. Quando
-meu patrão me mandava buscar a quantia d’uma aposta ou o dinheiro perdido
-ao jogo, aquellas senhoras diziam-me algumas vezes: «Rouflard engana-se,
-não fui eu que perdi, foi elle;» ou então: «Sinto muito, mas a minha
-thesouraria está fechada.» Algumas tinham a confiança de me dizer: Apre!
-estou farta de aturar esse bebedo do Rouflard, não estou para o sustentar
-por mais tempo.» Quando eu voltava com estas respostas a meu amo, elle
-ficava furioso, queria desancar-me: depois, para arranjar dinheiro,
-via-se obrigado a vender uns apoz outros os lindos presentes, ou as joias
-que havia recebido das suas apaixonadas. Quando não lhe restou mais nada
-que vender, e quando eu vi que já lhe não mandavam licores das ilhas,
-disse commigo: «É tempo de largar o commodo!...» Deviam-se-me seis mezes
-das minhas soldadas, mas era mister não pensar em tal. Deixei pois o
-lindo Rouflard, que já não tinha nada de bonito nem se vestia como um
-elegante, e que para salvar-se das difficuldade, procurava arranjar
-outra amante nos casos de o sustentar, e consegui achar um bom emprego.
-Pude ajuntar alguma coisa, casei-me e obtive um logar de porteiro n’esta
-casa, onde estou ha oito annos, e onde morreu minha mulher, o que me
-não impede de ser muito feliz. Mas faça o senhor idéa de qual não foi
-a minha surpreza quando, ha perto de nove mezes, vejo chegar aqui um
-homem vestido como um mendigo, sujo, desfigurado, que me perguntou se eu
-tinha no predio um cantinho, um sotão, ou mesmo uma agua-furtada para
-lhe alugar. Eu não o podia crer; todavia, na expressão do rosto fica
-sempre alguma coisa do que a gente era, e exclamei: «Deus me perdõe!
-mas é o sr. Rouflard!...» «Foste tu que o disseste! me respondeu elle;
-sim, sou o outr’ora bonito Rouflard! que o tempo e as desgraças têem um
-pouco deteriorado. Mas deixa-me encarar-te bem... Ah! agora!... és o
-Chausson... és o meu creado, pois bem! aluga-me um quarto, e sê hoje o
-meu porteiro; tenho tomado muito juizo, deito-me todas os dias ás nove
-horas, e não bebo senão agua, quando não tenho com que comprar vinho.» A
-vista da miseria de um homem, que eu tinha conhecido tão elegante, tão
-appetecido e procurado, fez-me pena, e levou-me a dizer-lhe: «Pois sim,
-dou-lhe um quarto na agua-furtada; mas o que faz o senhor agora, qual é a
-sua profissão?» Elle coçou a cabeça por algum tempo, depois respondeu-me:
-«Faço tudo quanto se quer! recados, cosinha; engarrafo vinhos, tosquio
-cães, educo papagaios; mas o que é sobretudo a minha occupação favorita,
-é servir de modelo aos pintores.» «Pois bem! tratarei de lhe arranjar
-que fazer e vou dar-lhe casa lá em cima; mas estará aqui n’um predio
-socegado, será pois mister portar-se decentemente.» Elle assim o
-prometteu; mas Deus sabe como tem cumprido a sua palavra! Arranjei que
-elle fizesse recados a uma inquilina; mas assim que apanha alguns soldos,
-o borrachão vae bebel-os de vinho e recolhe-se fóra de horas. Avisei-o
-de que isto não podia durar assim, elle promette-me emendar-se, quando
-está em jejum, mas veja como se emenda! Esta noite estava fazendo grande
-barulho á porta; mas se não fosse o senhor, dou-lhe a minha palavra que
-teria dormido na rua! Decididamente este Rouflard é um extravagante,
-um mal procedido! Mas os homens que na sua mocidade vivem á custa das
-mulheres, devem necessariamente acabar assim, porque o seu ganha-pão é a
-sua cara bonita, e logo que essa boniteza se vae, boas noites! acabou-se
-tudo! Casimiro não responde nada, e sobe a escada com ar muito pensativo:
-a historia do lindo Rouflard fez-lhe passar a embriaguez.
-
-
-
-
-VI
-
-A familia Proh
-
-
-Achava-se a familia Proh reunida na sua sala. Os leitores já conhecem
-a sr.ª Celeste Proh, de quem lhe fizemos o retrato; seu marido, o sr.
-Castor Proh, é um antigo professor de historia e de linguas mortas. É
-um homem alto, magro, amarello, que era feio em moço, e que não se fez
-bonito em velho; tem o nariz de tal forma chato, de tal forma acachapado,
-que lhe seria impossivel segurar n’elle uns oculos. Esse senhor tem
-sempre os ares d’um preceptor prestes a ralhar com o discipulo, conserva
-constantemente uns modos arrogantes e desagradaveis; sua mulher sustenta
-nunca o ter visto rir, mas ha pessoas que se divertem por dentro sem que
-ninguem dê por isso: com o sr. Proh não se dá por similhante coisa.
-
-Uma herança, com que elle não contava, permittiu ao professor descançar
-e viver dos seus rendimentos; já não quer occupar-se, diz elle, senão da
-educação dos filhos; mas a filha prefere as artes agradaveis ao estudo
-da historia, e o Affonsinho deita a lingua de fóra ao pae, quando este
-lhe fala de linguas mortas; é um verdadeiro diabrete, guloso, curioso,
-preguiçoso, traquinas, respondão; o pae affirma que o pequeno promette...
-
-A menina Angelina Proh approxima-se dos dezeseis annos; n’esta edade, em
-não sendo torta nem corcovada, em não tendo o nariz escarrapachado nem
-os olhos remelosos, uma rapariga é sempre bonita; não é ás vezes senão
-a _belleza do diabo_, mas isso faz ainda conquistas, ha homens que não
-apreciam senão essa belleza. A menina Proh não possuia outra; juntava a
-isso uma dóse de toleima, que podia ainda passar por ingenuidade, mas que
-mais tarde não devia deixar a menor duvida sobre a sua qualidade.
-
-N’este momento, a sr.ª Proh está principiando a bordar uma golla, a
-menina Angelina tenta desenhar olhos e orelhas; o Fonfonsinho recorta uma
-estampa, e o ex-professor passeia pelo meio da casa, cofiando com a mão a
-barba e parecendo meditar. De repente pára:
-
-—Affonso, vou-te fazer uma pergunta bem simples.
-
-—De que é que vae fazer...
-
-—Não se diz: de que é que! em primeiro logar essa construcção de phrase é
-viciosa...
-
-—Viciosa! então que mal fez ella?
-
-—Meu filho, eu interrogo-o, mas o menino não tem direito para me
-interrogar... Escute bem, e responda-me _illico_! Como se chamava o
-primeiro homem?
-
-—_Illico!_...
-
-—Hein? vamos, menino, dê-me attenção... Pergunto-lhe como se chamava o
-primeiro homem?
-
-—Pois bem! _Illico!_ Disse-me que respondesse: _Illico!_... digo-lh’o, e
-não está contente!...
-
-—Mas, velhaquete, eu entendo por _illico_, immediatamente... logo, logo...
-
-—O pequeno tem razão; para que emprega com elle termos barbaros que a
-creança não comprehende? estraga-lhe a memoria, e mais nada!
-
-—Minha senhora, metta-se lá nos seus trapos, nos seus vestidos, e
-deixe-me dirigir a educação de meu filho, elle tem talento; promette, mas
-precisa ser bem ensinado...
-
-—Graças a Deus, tem muito tempo deante de si.
-
-—Nunca se tem bastante. Aqui estou eu, que sei muito, lisonjeio-me
-d’isso, e precisaria ainda cem annos de existencia para ser completo!
-
-—Como um omnibus!...
-
-—Fonfonso! _tu castigaberis!_...
-
-—Papá, bem sabe que nos omnibus o conductor grita: Completo! Olhe!
-desenhe-me um boneco, a mana não me quer fazer nenhum...
-
-—A mana está trabalhando nos seus olhos e nas suas orelhas, e tem razão.
-Isto porém faz-me lembrar que a sua lição de desenho era hontem... O
-Casimiro veiu?
-
-—Sim, papá...
-
-—Não, é falso; a mana não fala verdade, o vizinho não veiu hontem
-dar-n’os lição...
-
-—Seu mano tem razão, menina?
-
-—Ora! não sei... já me não lembro... vão fazer-me enganar na minha orelha!
-
-—Eu não dou vinte e cinco francos por mez a esse rapaz para que elle se
-descuide das suas lições. Sr.ª Proh, a senhora é que devia tomar sentido
-n’essas coisas...
-
-—Por quem é, socegue! o sr. Casimiro não é capaz de o prejudicar n’uma
-lição! é um rapaz muito distincto, e que só ensina desenho aos nossos
-filhos para nos obsequiar.
-
-—Desconfio das pessoas que fazem as coisas para obsequiarem: em geral
-fazem-n’as mal; é como aquelles creados que estão sempre a dizer que não
-nasceram para servir, não fazem nunca bem a sua obrigação.
-
-—Papá, faça-me um boneco.
-
-—Vamos lá; tens papel e lapis?
-
-—Aqui está tudo. Ah! mas eu quero que faça o boneco com o pé.
-
-—Com o pé? Fonfonso, tu não sabes o que dizes! então a gente desenha com
-os pés quando tem as mãos á sua disposição?
-
-—Mas o papá deve servir-se tanto dos pés como das mãos, visto que é
-quadrumano.
-
-—Quadrumano! eu sou quadrumano! quem é que lhe disse tal insolencia? o
-menino sabe o que é um quadrumano?
-
-—Sei, é um chimpanzé, e bem sabe que o outro dia a mamã disse-lhe que era
-um chimpanzé. Perguntei ao sr. Casimiro o que era um chimpanzé, e elle
-respondeu-me que era um homem dos bosques, que era um quadrumano.
-
-—A senhora bem está ouvindo; seu filho compara-me com um macaco, porque
-a senhora o outro dia não receiou qualificar-me com esse epitheto.
-
-—Tambem o senhor me chamou girafa. Era porventura mais delicado?
-
-—Papá chimpanzé, faça-me um boneco.
-
-—Se me tornas a chamar chimpanzé, levas uma sova de açoutes que te racho!
-Vá estudar a sua lição de grammatica, para m’a dizer logo.
-
-—Ora! a grammatica aborrece-me; gosto mais de recortar estampas.
-
-—Faça o que lhe ordeno, seu patife! e não resmungue. Angelina, quando
-acabares o teu desenho de orelhas, espero que te lembres das minhas
-piugas, que estão em muito máu estado, já me queixei d’isso a tua mãe,
-que creio que terá attendido a minha reclamação.
-
-—As suas piugas! Ora! ainda lhes não toquei.
-
-—Como! pois a senhora não manda concertar a roupa? na verdade, não sei
-em que pensa, ou antes sei-o demasiado. É nos seus adornos, nos seus
-enfeites, nos seus vestidos de cauda ou sem cauda, e a roupa fica n’um
-estado miseravel! os meus colletes de flanella não têem botões, as
-camisas estão todas rasgadas, as ceroulas estão cheias de buracos; mas
-a senhora, comtanto que tenha um vestido á moda, não quer saber de mais
-nada.
-
-—Queria talvez que eu tivesse sempre as suas ceroulas no pensamento! Ah!
-credo! seria bem triste!...
-
-—O que é triste, é achar a gente as camisas rôtas na occasião de as
-vestir.
-
-—Socegue, a sua roupa ha de ser concertada; mas como n’esta casa ha
-trabalho de mais e como eu e minha filha não podemos chegar para tanto
-dei tudo isso a uma costureira.
-
-—A uma costureira! mas está a senhora bem informada a respeito d’essa
-costureira? ha algumas que trocam os objectos que se lhes confiam.
-
-—Oh! não imagine que ella lhe vae trocar as piugas, o senhor está sempre
-com medo de que o roubem, demais, é uma rapariga que mora no predio, no
-quinto andar, é a menina Lisa.
-
-—A menina Lisa! não conheço. E trabalha bem, essa menina Lisa.
-
-—Cose como uma fada; já lhe dei que fazer, e fiquei muito satisfeita com
-ella, tanto mais que não leva caro, dá-lhe a gente o que quer.
-
-—Oh! então é preciso dar-lhe que fazer muitas vezes. E essa rapariga mora
-sózinha lá em cima?
-
-—Não, está com a avó, uma boa velhinha, quasi paralytica, que já não se
-acha em estado de fazer nada; pois bem! é a menina Lisa que tem cuidado
-d’ella, que trabalha dia e noite para que não falte nada á pobre velha.
-Oh! esta rapariga porta-se muito bem... toda a gente no predio lhe faz
-elogios.
-
-—Hum! desconfio d’essas pessoas a quem todo o mundo faz elogios,
-isso esconde ás vezes muitas coisas, essa sujeitinha tem sem duvida
-namorados...
-
-—Oh! que idéa! não fale assim deante de sua filha.
-
-—Minha filha aprende desenho, e quando uma menina quer desenhar de
-modelos de gesso e copiar estatuas antigas, creio que pode comprehender
-o que é um namorado. Demais, a tal menina Lisa é muito ajuizada, não tem
-nenhum! estimo bastante.
-
-—Sim! sim! Lisa tem um namorado! exclama o joven Fonfonso; eu bem sei! eu
-conheço-o...
-
-—O que está o menino a dizer! aonde foi aprender essas coisas?...
-
-—Ora, ouvi dizer. Não é verdade mana, que a costureirinha do quinto andar
-tem um namorado?...
-
-—Deixa-me, vaes fazer com que me engane na minha orelha.
-
-—Menina, diz por sua vez a mamã, sou eu que a interrogo; deixe por um
-momento as suas orelhas e responda-me. A menina sabe que Lisa tem um
-namorado?
-
-—Se derem credito ás tolices que diz o mano, estão bem aviados.
-
-—Tu é que és uma tola; bem ouviste o borrachão que mora nas
-aguas-furtadas dizer o outro dia na escada: Viva Lisa! viva a minha
-namorada! E por signal tu disseste: Ora não ha! olhem que bello namorado
-que a Lisa tem!
-
-—Isso não é verdade! eu não disse tal!
-
-—Disseste, sim!
-
-—Não, não, não!
-
-—Sim, sim, sim!...
-
-—Basta, basta! _satis! satis!_ grita por sua vez Castor Proh; estes
-irmãos fazem-me lembrar Cain e Abel, que eu não conheci, mas cujas
-questões tiveram consequencias bem terriveis!
-
-—Desde o momento em que o bebedo das aguas-furtadas está mettido em tudo
-isto, diz Celeste, já o senhor vê que caso se pode fazer do que acaba de
-dizer seu filho.
-
-—Sim, senhora, esse bebedo, esse tal Rouflard, porque é assim que elle se
-chama, creio eu, esse maroto, preguiçoso, borrachão que devia ser expulso
-do predio. Chausson, o porteiro, tinha-m’o recommendado, pedindo-me que
-lhe désse alguma coisa que fazer, e dizendo-me que era um homem bem
-educado, que tivera desastres na sua vida. Eu accedi a occupal-o, ainda
-que desconfio sempre d’essas pessoas que tiveram desastres. Eu tinha
-justamente precisão de _rhum_ da Jamaica, a senhora não gosta, prefere o
-licor de herva doce, mas gosto eu. Era um dia em que a senhora jantava
-fora com os pequenos. Dou dinheiro ao tal Rouflard, ordenando-lhe que
-fosse aos _Americanos_, que é onde ha certeza de o achar bom. O homem
-sae d’aqui perto das quatro horas da tarde. Era preciso quando muito uma
-hora para fazer o recado, e ás seis horas ainda não tinha voltado. Vou-me
-queixar ao porteiro, receioso de que tivesse acontecido algum desastre
-ao seu protegido. Dão sete horas, dão oito, finalmente, ás dez horas,
-vejo chegar o nosso homem, borracho, bebedo, mal podendo suster-se nas
-pernas, e que me apresenta uma garrafa quasi despejada, dizendo com ar
-chocarreiro: «Aqui tem a sua garrafa de _rhum_... entornou-se um pouco
-pelo caminho... é que provavelmente não trazia a rolha bem apertada.»
-«Como! lhe dige eu, atreve-se a affirmar que a garrafa se entornou!
-porém ella devia estar perfeitamente lacrada! para que teve a confiança
-de a abrir?... foi para beber o meu _rhum_... você é um maroto!... um
-patife!...» Em vez de se desculpar, de me pedir perdão, o tal Rouflard
-diz-me a modo de injuria: «Se não está contente, vou beber o resto!...»
-Effectivamente, deixei-lhe o resto; mas dei os meus agradecimentos ao
-porteiro, e, repito, um tal bebedo não devia continuar a viver no predio.
-
-—Ora adeus! o Rouflard não tem medo de vossemecê, papá Chimpanzé, não,
-Chimpanzé não... papá Castor...
-
-—Então o menino conversa com esse homem? Fonfonso, prohibo-o que lhe
-fale, não quero que aprenda máus costumes.
-
-—Não sou eu que lhe falo, elle é que me diz sempre tolices quando passa.
-
-—Não lhe responda, encerre-se no seu foro intimo.
-
-—Não entendo, papá.
-
-—Quero dizer que não dê attenção ao que lhe diz esse bebedo.
-
-—Ora! mas diverte-me, faz-me rir, hontem pela manhã disse-me: Porque é
-que teu pae não põe o seu nome por cima da porta? é uma coisa que sempre
-se faz para os artistas.
-
-—O que, Fonfonso! esse homem tem a petulancia de te tractar por tu! Que
-insolencia!
-
-—Eu não lhe posso obstar...
-
-—Deves-lhe dizer: Olhe que eu nunca guardei perús com o senhor.
-
-—E elle responder-me-ha: Mas já os guardaste com o teu pae.
-
-—Ah! esse tal Rouflard queria que eu puzesse o meu nome por cima da porta!
-
-—Sim, senhor; até me disse: Fica descançado, pequeno, hei de eu lá pôl-o
-e mais o de toda a familia, é preciso que todos saibam onde hão de
-procurar a familia Proh...
-
-—Elle disse-te isso! mera brincadeira, talvez...
-
-—Ah! exclama Angelina, isto faz-me lembrar que vi hontem esse homem subir
-a escada com um grande pedaço de giz na mão.
-
-—Teria elle porventura a petulancia de fazer caricaturas ridiculas por
-cima da minha porta!...
-
-—Vá sempre vêr, sr. Proh, n’um bebedo tudo se deve esperar, nós ainda
-hoje não saímos, poderia elle ter effectuado hontem as suas ameaças sem
-que nós o soubessemos.
-
-O sr. Proh sae da sala e dirige-se ao patamar. D’ahi a poucos instantes
-ouve-se um grito de indignação; toda a familia corre immediatamente para
-a escada, com grande curiosidade de saber o que pode estar escripto por
-cima da porta.
-
-—Venha, senhora, venha! exclama Castor, venham todos, e vejam o que o tal
-Rouflard teve a pouca vergonha e a audacia de escrever por cima da nossa
-porta. Oh! ha para toda a gente...
-
-Com effeito, por cima da porta tinham escripto a giz, e em grandes
-lettras:
-
-A sr.ª _Pro-fanée_.
-
-A menina, _Pro-nobis_.
-
-O sr. _Pro-fesse_.
-
-O menino _Pro-pice_.
-
-
-
-
-VII
-
-A menina Lisa
-
-
-Depois do seu dia tão bem empregado, Casimiro não passou uma noite tão
-agradavel: dormiu pouco; não se lhe tira da idéa a historia d’aquelle
-pobre diabo que estava deitado na rua e que chama seu creado ao porteiro;
-obriga-o a fazer reflexões que não são côr de rosa; o rapaz, sem todavia
-se collocar no mesmo nivel que o tal Rouflard, diz comsigo que um homem
-é infinitivamente despresivel quando vive á custa d’uma mulher.
-
-O resultado d’estas reflexões é uma resolução, firmissima d’esta vez,
-de se entregar ao trabalho, e, como a pintura é a unica habilidade que
-possue e que pode utilizar, promette a si mesmo tornar a pegar nos lapis
-e nos pinceis e tractar de adquirir, trabalhando, o que ainda lhe falta
-para se arrojar a fazer um retrato do natural; demais, jura tambem não
-dizer nada a Ambrosina das suas novas intenções.
-
-O que é indispensavel a um pintor de retratos, é um modelo. Bem sabe
-Casimiro que a sr.ª Proh estimaria bastante prestar-lhe esse serviço; mas
-o rapaz, antes de fazer o retrato d’esta senhora, quereria exercitar-se
-com outro modelo. Lembra-se do que lhe disse o porteiro a respeito de
-Rouflard, e por isso, logo depois de haver tomado a chicara de café que o
-Chausson lhe traz todas as manhãs, Casimiro sobe a escada para se dirigir
-a casa de Rouflard.
-
-A escada era alta. Chegava ao quinto andar, onde não ha senão quartos
-occupados em grande parte pelas creadas do predio, Casimiro pára
-a fim de tomar folego, e olha depois em torno de si. Acaba alli a
-escada; o porteiro porém disse-lhe que o seu antigo amo habitava n’uma
-agua-furtada, no sexto andar, e elle não vê o minimo rasto de escada.
-
-N’isto ouve-se uma voz de mulher, muito suave, muito juvenil, cantando
-como se embalasse uma creança. O quarto d’onde sae a voz tem a chave na
-porta. Casimiro decide-se a entreabrir essa porta para perguntar por onde
-se sobe ao sexto andar.
-
-Vê uma casa modestamente mobilada, poderia mesmo dizer-se mobilada
-pobremente; no fundo está um leito bastante confortavel, com uns grandes
-cortinados de sarja, e quasi ao lado uma caminha, sem cortinas, que
-apenas se compõe d’um enxergão e d’um colchão muito pobre, de lã; depois
-ha uma commoda de nogueira, uma meza, algumas cadeiras, um pequeno
-espelho sobre a chaminé, tudo o que é indispensavel, o strictamente
-necessario e mais nada; mas isto tudo está arranjado com um cuidado e um
-aceio que dessimulam em parte a pobreza.
-
-No leito está uma velha deitada; mas ao pé da meza ha uma rapariga
-sentada a coser. Casimiro fica pasmado á vista d’esta joven, cujo trajo é
-bem simples, bem modesto, mas cujo semblante agrada logo pela expressão
-meiga e engraçada dos seus lindos olhos, pelo encanto do seu sorriso,
-emfim por essa sensação, difficil de analysar, que experimentamos á vista
-d’uma pessoa que nos é desconhecida, mas que nós voltamos para vêr ainda
-muito tempo quando o acaso nol-a faz encontrar.
-
-—Perdão, menina, diz Casimiro conservando-se junto da porta que acaba
-de abrir. Sou indiscreto. Incommodo-a talvez. Mas, se bem que morando
-n’este predio ha já muitos mezes, conheço pouco as localidás. Procuro um
-individuo que mora no sexto andar, pelo que me disse o porteiro, mas esse
-sexto andar não dou com elle... não sei por onde se sobe para lá...
-
-A rapariga sorri-se respondendo:
-
-—Effectivamente, quando se não conhece bem este patamar, é difficil dar
-com a escada que vae para cima... Mas, olhe, alem ao fundo a parede faz
-uma quina, é de traz d’essa quina que o senhor achará uma escada muito
-estreita, que vae ter ao sexto andar, é tão estreita que, se o senhor
-fosse gordo, não caberia por ella!...
-
-—Provavelmente o senhorio não quer que os inquilinos carreguem a casa
-demais, responde Casimiro rindo.
-
-—Oh! não ha senão um inquilino... um homem que está muito mal lá em
-cima!...
-
-—Como parece que está sempre embriagado, pode tomar a agua-furtada por um
-palacio.
-
-—Acha que sim? Pobre Rouflard! mas elle não está sempre embriagado,
-felizmente está mais alegre quando se acha em jejum do que quando tem
-bebido... Ah! perdão, senhor, minha avó está-se voltando na cama... Creio
-que quer alguma coisa... perdão...
-
-A rapariga faz-lhe uma mesura. Casimiro comprehende que deve retirar-se;
-agradece outra vez á sua formosa visinha e torna a fechar a porta,
-dizendo comsigo:
-
-—Como! pois eu tinha uma visinha tão encantadora, e nem suspeitava de tal
-coisa! Em Paris mora a gente annos n’uma casa e não conhece as pessoas
-que habitam na mesma escada, não as encontra nunca! É que esta rapariga
-é deveras encantadora; feições finas e suaves ao mesmo tempo, bonitos
-olhos, cabello preto como ebano, uma boquinha amavel; que delicioso
-modelo que isto faria! Vive com a avó; ellas não parecem ser muito
-ricas... é preciso que me informe. Vamos, procuremos a escada por onde se
-sobe a casa de Rouflard. Ah! creio que achei... effectivamente é muito
-estreita! é uma escada de moinho! uma saia de balão não cabia por aqui.
-
-Casimiro, conforme pode, sobe a escada, que não tem corrimão, mas
-segura-se a gente á parede dos dois lados. Chega a uma especie de patamar
-que tem tres portas; duas estão abertas de par em par, a do centro está
-fechada, mas simplesmente com o trinco. É necessariamente alli que
-deve morar o sujeito que na vespera se tinha deitado na rua. Casimiro
-levanta o trinco, abre a porta, e fica muito espantado do quadro que se
-lhe apresenta deante dos olhos; mas d’esta vez não é enlevo o que a sua
-physionomia exprime.
-
-N’uma agua-furtada que tem doze pés quadrados, e que recebe a luz de
-uma trapeira construida no tecto, está um homem estendido em cima d’um
-montão de palha que sustenta uma especie de colchão feito de aparas; um
-cobertor de algodão, negro de immundicie e esburacado em muitos sitios,
-é tudo o que tem para se cobrir; ausencia total de lençoes; serve-lhe de
-travesseiro uma acha redonda, que, para ser menos dura, está coberta de
-velhos cartazes de espectaculos, que provavelmente foram arrancados das
-esquinas. O homem que dorme alli não deve nunca despir-se completamente;
-mas como se está no verão, tirou o paletot e o collete. Tem na cabeça
-uma velha cassarola de lata sem cabo, a qual lhe serve de barrete de
-dormir.
-
-Junto d’esta miseravel cama está uma cadeira côxa servindo de meza de
-cabeceira, em cima da qual se vê uma terrina de porcelana rachada e
-quebrada em muitos sitios. Aquella terrina, que talvez outr’ora teve
-dentro saborosas sopas, está reduzida a um emprego bem humilhante! _Sic
-transit gloria mundi!_ Ha fato espalhado pelo meio do chão. Sobre uma
-tábua pregada no tabique estão alguns boiões de pomada, um pente, um
-cangirão, uma garrafa, um cachimbo e um pedacinho de espelho.
-
-Quando o rapaz abre a porta, o sujeito que estava deitado dorme, tem a
-cara voltada para a parede, e a chegada de Casimiro não parece tel-o
-accordado; por isso este ultimo pode muito á vontade examinar o sitio em
-que se acha, e é o que elle faz, porque para um pintor _de genero_ havia
-alli assumpto d’um quadro original e curioso.
-
-Mas, depois de ter visto e revisto tudo, o que não podia levar muito
-tempo, Casimiro decide-se a levantar a voz para despertar o dorminhoco:
-
-—Olá!... ó senhor!... sr. visinho! não se lhe poderia dar uma palavra?
-
-Rouflard volta meio corpo, resmungando:
-
-—O que é? que me querem? não estou cá! vão para o diabo! não pode um
-homem dormir socegado n’este cochicholo!...
-
-—Perdão, sr. Rouflard, pelo ter accordado, mas são mais de dez horas,
-pensava encontral-o já levantado.
-
-—Eu levanto-me tarde, porque gosto de estar deitado, e nada tenho de
-melhor a fazer do que dormir. Ah! se o senhor me paga o almoço, isso é
-differente...
-
-—Talvez que sim; e se lhe não offereço d’almoçar, posso dar-lhe com que
-possa arranjar um almoço muito decente.
-
-[Illustration: —Mas o que faz o senhor aqui?]
-
-A estas palavras, Rouflard volta-se de todo, senta-se na cama, tira a
-cassarola que lhe serve de barrete de dormir, esfrega os olhos, e exclama:
-
-—Oh! mas então o caso é differente; isso é que são palavras bem pensadas;
-espere, eu creio que o estou reconhecendo, é o sr. Casimiro Dernold, mora
-cá no predio, no terceiro andar...
-
-—Exactamente, ah! o senhor sabe o meu nome!...
-
-—Foi o meu criado que me deu estas informações. Chausson, o nosso
-porteiro, que foi n’outro tempo meu servo, e que queria hontem á noite
-deixar-me dormir na rua; porque, agora me lembro muito bem, se não fosse
-o meu nobre visinho, era a soleira da porta da rua que me serviria de
-cama! Aquelle tratante do Chausson!...
-
-—Se me dá licença, não foi hontem á noite, foi esta madrugada que tudo
-isso aconteceu, porque era muito mais de duas horas quando eu vim para
-casa...
-
-—Pois bem! ainda que fossem quatro! Por ventura as pessoas finas, as
-pessoas da boa sociedade deitam-se como as gallinhas! Já não tenho com
-que ir cear á _Maison d’Or_, é verdade, mas posso sempre passear no
-_boulevard_ dos Italianos emquanto isso me der prazer! e Chausson é um
-maroto! vinga-se dos sôcos que lhe dei n’outro tempo. Ahi está o que são
-os homens! para conhecer os seus defeitos dêem-lhes a riqueza. Creio que
-foi Larochefoucauld que disse isto, ou alguma coisa equivalente.
-
-—O senhor tem instrucção, sr. Rouflard, como é que não tem achado em que
-se empregar convenientemente?
-
-—Empregar-me! empregar-me. Ah! o vizinho tem graça! é por não ter querido
-nunca empregar-me que durmo hoje em cima d’uma pouca de palha! Mas
-não façamos recriminações! o senhor ficou em me dar com que almoçar,
-isso cahiria do céu, porque não tenho um soldo, e em compensação tenho
-grande appetite; a tudo isto accresce que não tenho já credito em parte
-nenhuma!...
-
-—Mas, se o senhor não quer empregar-se, vae talvez rejeitar a minha
-proposta?...
-
-—Conforme! se é coisa que não dê muito trabalho...
-
-—Oh! não dá trabalho nenhum; tractava-se de vir a minha casa servir-me de
-modelo, quatro ou cinco horas por dia.
-
-—Servir de modelo... para a cabeça?
-
-—Naturalmente, oh! eu não quero senão o seu busto, a cabeça e as mãos.
-
-—Bravo! isso convem-me, oh! convem-me muito! quando quer principiar?
-
-—Hoje mesmo, esta manhã, se o senhor poder?
-
-—Eu posso sempre... todavia...
-
-—Todavia precisa almoçar, comprehendo isso! Tome, aqui tem dez francos
-adeantados sobre o seu trabalho; vá almoçar, depois venha a minha casa,
-que eu vou preparar a palheta.
-
-Rouflard levanta-se muito expedito, recebe os dez francos com uma cara
-radiante, e enfia logo o collete e o paletot, dizendo:
-
-—Ha muito tempo que não tenho um despertar tão bonito. Vamos entrar na
-extravagancia de comprar uma pouca de pomada de baunilha, para fazer
-honra ao nosso pintor...
-
-—Não faça despezas de toucador por minha causa, acho-o muito bem assim
-como está.
-
-—Que bondade a sua. Ah! se me houvesse conhecido outr’ora, nos meus bons
-tempos! então é que o meu retrato e a minha pessoa eram disputados; mas
-outros tempos, outros cuidados!
-
-—Perdão, sr. Rouflard, uma outra pergunta, que vae talvez parecer-lhe
-indiscreta.
-
-—Pergunte á vontade, não faça ceremonias.
-
-—O senhor disse ahi ha pouco que não tinha nem um soldo, e que não
-queriam já dar-lhe nada fiado. Se não tivesse recebido a minha visita
-esta manhã, como é que havia de almoçar?...
-
-—Como? ah! sim, comprehendo que isso lhe pareça difficil de resolver! é
-que o senhor ignora que ha um anjo n’esta casa...
-
-—Um anjo?
-
-—Sim, senhor.
-
-—No predio?
-
-—Sim, n’esta mesma escada, não falo da que vem ter a esta agua-furtada,
-mas cá por baixo, no quinto andar, n’um quarto muito modesto, mas que
-parece um palacio em comparação d’este chiqueiro, mora uma rapariga que
-pode ter dezoito annos, creio, e uma velha a quem ella chama sua avó. A
-rapariga chama-se Lisa, a menina Lisa, como toda a gente a conhece; é
-baixinha, é verdade, mas tão bem feita, tão graciosa... e uma cara!...
-linda a mais não poder ser! Oh! nos meus bons tempos vi bastantes
-mulheres bonitas! e mulheres que faziam furor, que viam a seus pés tudo
-o que havia de melhor no _turf_. Pois bem, digo-o francamente, a menina
-Lisa vale mais que todas ellas...
-
-—Vi ha pouco essa rapariga, foi a ella que me dirigi para dar com a sua
-escada, pareceu-me, com effeito, muito interessante.
-
-—Interessante! oh! isso é pouco; ella é mais que interessante! e depois
-um coração! uma bondade! quando estou completamente á divina, como eu
-lhe dizia ainda agora, é ella que me soccorre. Um dia, havia eu parado
-deante da sua porta, que estava aberta, tinha fome, e arrisquei-me a
-dizer-lhe: «Minha vizinha, não terá por ahi um boccado de pão que me dê?
-não tenho migalha em casa.» «Tem fome!...» exclamou ella, e correu logo
-ao armario a buscar-me pão e um pedacito de queijo, que me offereceu,
-dizendo-me: «Tome, não lhe posso dar mais nada, não tenho vinho...» «Oh!
-isto é bastante, lhe disse eu, e a menina é um anjo de bondade!» ella
-accrescentou: «Quando lhe faltar pão, venha pedir-m’o, não se constranja,
-é-nos preciso tão pouco a mim e a minha avó, que sempre tenho de sobra.»
-Aqui tem o senhor por que eu chamo a essa rapariga um anjo; vê que tenho
-razão, faço por não abusar da sua bondade, mas algumas vezes, mesmo muito
-amiude, vejo-me obrigado a recorrer a ella... então que quer o senhor?
-parece que estava no meu destino o ser sustentado pelas mulheres; por
-isso chamo á menina Lisa a minha namorada. Mas d’esta vez é honestamente!
-respeito essa pequena, tanto quanto a estimo; faço mais, escuto os seus
-conselhos, ella ralha commigo ás vezes, quando venho para casa bebedo...
-
-—Mas não segue esses conselhos?
-
-—Não sigo, é verdade; ainda hontem me emborrachei... que quer! a força
-do habito. Tambem, quando estou bebedo, não ha perigo que eu pare para
-conversar com Lisa; pobre pequena! a sua bondade para commigo é tanto
-mais meritoria, que ella trabalha sem descanço para sustentar sua avó,
-que está paralytica, algumas vezes á meia noite, á uma hora, sinto-a a
-trabalhar ainda... e então grito-lhe: «Vizinha! isso é de mais, velar até
-tão tarde, vá descançar, olhe que pode adoecer com tanto trabalho!» Ella
-responde-me alegremente: «Não, não! o meu divertimento é coser; depois,
-não tenho somno.» É realmente extraordinario que n’uma rapariguita haja
-ás vezes mais coragem para o trabalho do que em cinco ou seis homens
-robustos com eu!
-
-Casimiro tem escutado mui attentamente tudo o que Rouflard lhe tem dito
-da menina Lisa. Isso ainda lhe dá que reflectir. Mas Rouflard, que acabou
-de vestir-se, faz tinir os dez francos que tem na mão, e diz-lhe:
-
-—Perdão, meu caro vizinho, mas a fome aperta commigo, eu não o ponho
-fóra... o senhor pode ficar aqui se se diverte com isso, eu porém peço
-licença para me ir confortar.
-
-E, sem aguardar a resposta do rapaz, Rouflard sae pela porta fóra e desce
-rapidamente a escada, escutando apenas a Casimiro, que lhe grita:
-
-—D’aqui a uma hora... em minha casa!... não se esqueça!...
-
-
-
-
-VIII
-
-Travam conhecimento
-
-
-Casimiro desce a escada muito devagar atraz do inquilino da agua-furtada,
-não porque tenha receio de cair, mas porque está muito preoccupado com o
-que Rouflard lhe contou ácerca da rapariga que mora no quinto andar, que
-trabalha toda a noite para sustentar a avó, e acha ainda meio de ser util
-aos que carecem de pão.
-
-Chegado ao patamar do quinto andar, o nosso mancebo pára deante da porta
-da menina Lisa; estimaria bastante que aquella porta estivesse aberta,
-mas não acontece assim; é verdade porém que a chave está ainda na
-fechadura, o que annuncia que se não receia vísita importuna. Casimiro
-está morto por tornar a vêr a rapariga de quem se lhe fez tão grande
-elogio, diz de si para si que ha pouco não lhe agradeceu bastante a
-indicação que ella lhe dera, accrescenta ainda que entre visinhos não
-deve haver muita cerimonia, que de mais esta menina não tem muito
-trabalho para ganhar dinheiro pela sua agulha, e que se elle podesse
-ser-lhe util arranjando-lhe que fazer, n’isso lhe prestaria um grande
-serviço. Emfim dá a si mesmo uma infinidade de razões para ter o direito
-de abrir a porta, e é o que faz.
-
-Lisa continuava trabalhando, mas já não cantava; tinha o parecer triste,
-e dirigia especialmente a vista para o leito, onde a velha estava
-deitada, depois dava um profundo suspiro. Ao vêr entrar de novo Casimiro
-em sua casa, as suas feições exprimem a sua surpreza; mas, quando o rapaz
-vae para falar, ella põe um dedo na bocca, e diz-lhe a meia voz:
-
-—Baixinho! tenha a bondade de falar baixo, porque minha avó está
-dormindo, e preciso não a acordar; esteve esta noite muito doente, muito
-inquieta, não socegou um instante...
-
-Casimiro entra pé ante pé, e murmura approximando-se da rapariga:
-
-—Menina, eu sou sem duvida muito indiscreto em vir segunda vez
-incommodal-a, mas não sei se lhe disse que era seu vizinho.
-
-—Sim, senhor, disse-m’o, demais, eu já o sabia, tenho-o visto algumas
-vezes no predio.
-
-—Tem-me visto, e eu não tinha dado pela menina. Onde tinha os olhos?...
-
-—É que eu estava no cubiculo do porteiro, e depois occupo tão pouco
-espaço, é muito facil não me verem...
-
-—Mas, quando alguem a vir uma vez é impossivel que não deseje tornar a
-vêl-a mais vezes...
-
-Lisa não responde a isto, mas volta os olhos para o leito; Casimiro
-percebe que o momento é mal escolhido para lhe render finezas, e que,
-demais, não é para lhe fazer a côrte que elle quer travar conhecimento
-com a sua vizinha, mas no desejo de lhe ser util. É esse realmente o seu
-unico intuito? Eu por mim não respondo por isso; mas já é alguma coisa o
-ter boas intenções. O mancebo prosegue pois falando baixo e sentando-se
-n’uma cadeira que está perto d’elle:
-
-—Perdão, minha vizinha, vou falar-lhe francamente, e espero que nas
-minhas palavras não verá nada que a possa offender. Soube pela pessoa
-que móra lá em cima, com que actividade a menina se entrega ao trabalho,
-para que sua avó não careça de coisa alguma; mas o trabalho d’uma mulher
-é quasi sempre mal retribuido, eu ter-me-hia por muito feliz se podesse
-offerecer-lhe o meio de ganhar mais, fatigando-se menos...
-
-—Porque outro trabalho? eu não sei senão coser, bordar e fazer meia ou
-renda.
-
-—Eu me explico: sou pintor; ensaiei alguns quadrosinhos _de genero_,
-mas ganha-se mais dinheiro a fazer retratos; n’isso ainda eu não sou
-muito forte, preciso estudar, trabalhar muito, emfim tenho necessidade
-sobretudo de pintar do natural, e para isso preciso de modelos. Notei
-que aquelle Rouflard tinha uma cabeça caracteristica, eis a razão por
-que fui esta manhã falar com elle. Propuz-lhe vir a minha casa servir-me
-de modelo; elle acceitou com alegria, e eu poderei occupal-o bastante
-tempo. Mas a minha sympathica vizinha, que tem uma cabeça encantadora,
-ah! perdôe-me este elogio, é como artista que lh’o faço, eu julgar-me-hia
-muito feliz se podesse reproduzir na tela as suas feições tão finas,
-tão suaves. Oh! estou certo de que havia de conseguir! trabalha-se tão
-bem quando se tem deante dos olhos um modelo que nos encanta... não lhe
-pedirei que venha servir-me de modelo senão quando não tiver nada urgente
-para fazer... acceitaria a sua hora... o seu tempo vago... e não julgaria
-nunca pagar bastante caro as sessões que houvesse por bem conceder-me;
-eis o motivo por que tomei a liberdade de abrir outra vez a sua porta e
-de me apresentar aqui de novo. Se a minha proposta lhe desagrada, espero,
-ao menos, que não verá n’isso da minha parte nenhuma intenção má.
-
-A menina Lisa, que escutou Casimiro com muita attenção, responde-lhe logo:
-
-—Não, senhor, não tomarei á má parte a sua proposta. Soube pelo Rouflard
-que trabalho para viver, para que nada falte á minha boa avó, e desejou
-ser-me util; não posso senão agradecer-lhe muito o interesse que se
-dignou tomar por mim. Mas não acceito a sua proposta; ser modelo de
-pintores não é a minha occupação, e tenho ouvido dizer... ao meu vizinho
-cá de cima, que as mulheres que consentiam em servir de modelos, não
-eram bem vistas na sociedade. Eu sou uma pobre rapariga, sem amparo, sem
-familia, não tenho pois por unica fortuna senão a minha reputação, e devo
-ter a peito conserval-a; tenho razão não é verdade?
-
-Estas palavras tão simples, mas tão justas fazem viva impressão
-em Casimiro, que não está habituado a ouvir uma mulher falar tão
-discretamente. Tracta comtudo de convencer Lisa.
-
-—Menina, convenho que o mister de modelo não dá a qualquer mulher uma
-perfeita reputação de seriedade, posto que em todas as profissões se
-possa ter bom comportamente quando ha firme vontade de proceder bem.
-Mas tambem eu não vinha propôr-lhe que renunciasse ás suas occupações
-habituaes por esta nova profissão. Podia-lhe que me servisse de modelo
-sómente a mim, que me permittisse reproduzir as suas feições na tela,
-era um favor que eu solicitava e, para a menina, uma curta distracção
-aos seus trabalhos. E como lhe podia parecer pouco regular ir a minha
-casa servir de modelo, viria eu para aqui pintar, traria para cá a minha
-palheta e os meus pinceis; d’esta maneira, a menina não deixaria mesmo um
-instante a pessoa a quem prodigaliza todos os seus cuidados. Os modelos
-pagam-se muito caro, desculpe-me entremetter a questão de dinheiro em
-tudo isto; mas na vida não ha remedio senão attender a essa questão: ora,
-se eu occupasse um modelo durante umas dez sessões, dar-me-hia por muito
-feliz se elle se contentasse em receber cincoenta francos...
-
-—Ih! Jesus! tanto dinheiro, só por servir de modelo!...
-
-—Sim; e quanto mais bonito é o modelo, mais caro se faz pagar, isso
-comprehende-se. Por isso, para achar um como a menina, em primeiro logar
-seria muito difficil, depois teria de o pagar por um preço muito mais
-elevado, e as minhas posses não me permittem uma tão grande despeza.
-Já vê portanto que, satisfazendo ao meu pedido, era a mim que a menina
-obsequiava, era eu que lhe devia agradecimentos; mas isto desagrada-lhe,
-não pensemos mais em tal...
-
-Lisa d’esta vez hesita para responder; a final murmura.
-
-—Sinto não poder ser-lhe agradavel; parece-me entretanto que não deve
-ser difficil achar uma cara que valha bem a minha. Olhe, senhor, eu não
-conheço nada o mundo, mas creio que o céu me deu o segredo de ler no
-pensamento das outras pessoas: o senhor deseja ser-me util e tracta
-de me persuadir de que eu é que lhe prestaria serviço. Ah! isso é bem
-generoso da sua parte... confesse que adivinhei.
-
-Casimiro está muito admirado da perspicacia da rapariga. Não pode deixar
-de sorrir, balbuciando:
-
-—Confesso que me espanta, menina; a sua linguagem annuncia mais educação
-do que de ordinario se recebe na posição precaria em que a vejo. Não tem
-mais parentes senão essa pobre enferma, diz a menina; mas aquelles que
-perdeu occupavam então uma posição mais afortunada; perdão, sou talvez
-demasiadamente curioso?
-
-—Oh! eu não tenho motivo para me rodear de mysterios! não conheci nunca
-meus paes; abandonaram-me muito cedo aos cuidados d’uma ama, depois
-esqueceram-se de mim completamente.
-
-—É possivel! pobre creança! mas essa velhinha que ahi está?...
-
-—Chamo-lhe avó, mas não me é nada; era mãe de minha ama. Essa chamava-se
-Catharina Vauger; queria-me muito, e o que mais receiava era o momento em
-que teria de separar-se de mim para me entregar á minha familia; ficou
-pois bem contente quando lhe enviaram uma forte quantia, dizendo-lhe:
-«Saia da sua aldeia, fique com a creança; em vez do nome que ella tem,
-chame-lhe _Lisa_ unicamente; mas vá para Paris, para a morada que aqui se
-lhe indica, estabeça-se, e arranje uma lojita, que alguem terá o cuidado
-de a indemnisar das despezas que fizer com a menina.» A minha ama acabava
-de perder o marido. Partiu para Paris, trazendo comsigo a mãe, que alli
-está, n’aquella cama. Durante algum tempo recebeu pelo correio certas
-quantias para mim, depois, de repente isso acabou, não se ouviu mais
-falar em coisa alguma!...
-
-—Mas a sua ama sabia sem duvida o nome da pessoa que lhe escrevia?
-
-—Não, as cartas não vinham assignadas; nunca mesmo lhe tinham dito o nome
-de minha mãe...
-
-—É completamente um romance!...
-
-—A minha boa ama pouco se inquietou com isso; tinha emprehendido um
-negociosinho de leite e de queijos que corria bem. Assim que fiz seis
-annos, mandou-me á escola; depois, um pouco mais tarde, a um collegio
-semi-interna, porque ella não queria nunca separar-se de mim mais de
-meio dia. Querida e boa ama! queria-me mais que uma mãe! visto que a
-minha me abandonára. Vivemos assim muito felizes durante alguns annos;
-mas, ha quatro annos, a boa Catharina caíu doente, e, apezar de todos os
-meus desvelos, morreu; tinha eu apenas quatorze annos, e comtudo a minha
-ama recommendou-me sua velha mãe, porque ella conhecia-me, sabia que eu
-tinha coragem, e a firme vontade de reconhecer pelo meu trabalho tudo o
-que tinham feito por mim. Durante os primeiros tempos, para vivermos,
-minha avó e eu, fomos obrigadas a trespassar o estabelecimento da minha
-ama. Eu procurava trabalho, mas não o podia obter, achavam-me muito nova
-para m’o confiarem, e quando minha avó o pedia, achavam-n’a muito velha.
-A final, a Providencia veiu em nosso auxilio, e eu pude ganhar a nossa
-vida. Mas, ha um anno, a minha pobre companheira ficou meia paralytica,
-já o senhor vê que tenho razão para trabalhar sem descanço e para velar
-constantemente pela pobre velha que não tem mais ninguem para a tractar.
-
-—O que me acaba de dizer, não tem feito mais que augmentar o interesse
-que me inspirava, e perdôe, se torno ainda a falar n’isto, o desejo que
-sinto de lhe ser util. Pobre pequena, abandonada pelos paes, que vivem
-talvez na abastança e podem ter todos os gozos que a riqueza proporciona,
-emquanto que a menina...
-
-—Asseguro-lhe que nunca penso em tal, não choro senão a minha ama, a
-minha unica mãe! e que me queria tanto! Não tenho resentimentos contra
-meus paes por me haverem deixado com ella. Nem minha mãe nem meu pae me
-teriam de certo tractado melhor.
-
-—A menina tem muita philosophia, dou-lhe por isso os meus parabens:
-outras, no seu logar, forjariam mil chimeras.
-
-—Oh! eu não! não penso senão no meu trabalho.
-
-—E sempre me recusa o favor que lhe peço de me deixar tirar o seu
-retrato, vindo eu aqui?
-
-—Certamente; d’essa maneira, é muito mais decoroso; mas não importa, não
-quero servir de modelo.
-
-Casimiro suspira e levanta-se dizendo:
-
-—Vamos, vejo perfeitamente que nada pode vencer a sua repugnancia. Não
-devo por insistir mais; mas, no emtanto, se por acaso mudar de parecer,
-eu estarei sempre prompto com a palheta e os pinceis, e a menina não tem
-senão uma palavra a dizer, para me ver aqui immediatamente.
-
-—Muito agradecida.
-
-—Demais, se me dá licença, virei eu proprio saber da saude da sua doente,
-a menina permitte-me, não é verdade?
-
-A menina Lisa faz-se córada, hesita, mas este pedido era-lhe feito com
-uma voz tão meiga, este rapaz tem mostrado por ella tanto interesse,
-mostra-se tão respeitoso, tão delicado, e depois não é um estranho
-qualquer, mora no mesmo predio, e o porteiro nunca disse d’elle senão
-bem; tudo isto decide, a rapariga a pronunciar um sim, que enche de
-alegria o seu vizinho.
-
-Casimiro então torna a agradecer a Lisa a permissão que ella acaba de
-lhe conceder, depois despede-se e retira-se em bicos dos pés, sem fazer
-bulha, de modo que a doente não accorda.
-
-O nosso mancebo, ao entrar em sua casa, sente-se cheio de ardor para
-o trabalho; dispõe a sua tela, e prepara a palheta e os pinceis. Os
-bons exemplos fazem muito mais effeito que os bons conselhos, no que
-ha a differença da practica á theoria; escuta-se muitas vezes com
-indifferença, e esquece-se mesmo o que se ouviu; mas nunca se olvida o
-que se viu. Tem razão o proverbio que diz: Um olho vale mais que dez
-ouvidos:
-
-O joven pintor aguarda impaciente a chegada de Rouflard para se pôr ao
-trabalho; mas passa-se o tempo e o modelo não apparece. Casimiro começa a
-pensar que fez mal em pagar adiantado ao inquilino da agua-furtada, que
-é capaz de gastar tudo quanto recebeu, antes de pensar em cumprir a sua
-promessa.
-
-Mas não tarda que se ouça um grande arruido de vozes; grita-se, ralha-se
-no patamar, e a voz de Rouflard cobre muitas vezes todas as outras.
-Casimiro quer saber o que se passa, corre a abrir a porta e vê no seu
-patamar a familia Proh á briga com o seu futuro modelo.
-
-O sr. Proh e sua mulher parecem muito exaltados; Rouflard está apenas um
-pouco «electrizado...»
-
-—Sim, senhor, grita o sr. Proh, que tem effectivamente alguma similhança
-com um chimpanzé; eu tinha direito para o chamar a uma policia
-correccional pelo que o senhor escreveu por cima da minha porta...
-
-—Ah! ah! ah! o senhor faz-me rir com a sua policia correccional, faça-me
-ir ao tribunal, isso ha de divertir-me...
-
-—Pelo menos ha de ir á presença do juiz de paz! diz Celeste Proh, porque
-o senhor insultou-me, chamando-me sr.ª _Profanée_!...
-
-—Insultei-a! com a breca! a senhora é difficil de contentar! comparo-a
-com uma flor. Quando uma flor está meio murcha, diz-se que está
-_fanée_... concedo-lhe que é uma rosa _fanée_... e zanga-se com isso...
-eu podia-lhe ter posto: a sr.ª _Probléme_... a sr.ª _Profile_... um reles
-algodão...
-
-—Cale a bocca, insolente! meu vizinho, faço-o juiz d’esta questão: o
-senhor leu sem duvida o que este homem tinha escripto com giz por cima da
-nossa porta?...
-
-—Não, minha senhora, não reparei...
-
-O rapazito põe-se a gritar:
-
-—Era: A menina _Pronobis_, a sr.ª _Profanée_...
-
-—Cale-se, Affonsinho, não é preciso repetir essas coisas feias, visto que
-o nosso vizinho não as leu...
-
-—O sr. _Professe_! eu sou o menino _Propice_...
-
-—Cale a bocca. Fonfonso!... vá já para casa...
-
-—Não quero...
-
-—E porque é que me pôz a mim o sr. _Professe_?... O que entende por esta
-locução? exclama o falso chimpanzé muito zangado.
-
-—O que entendo? oh! essa é boa! Pois não é difficil de adivinhar! É
-verdade que talvez isso lhe não aconteça já!
-
-—Senhor, hei de ter uma satisfação de todas essas offensas!...
-
-—Quer que eu lhe dê uma satisfação? Estou prompto, um duello! agrada-me
-a proposta; logo cá lhe mandarei o meu creado, para o senhor ajustar com
-elle as condições do combate, acceitarei a arma que escolher, isso para
-mim é indifferente! bato-me com tudo quanto se quer, mas o florete é a
-arma das pessoas de distincção...
-
-—O que é que diz? um duello! este homem propõe-me um duello, creio
-eu... que desaforo! atrever-se a suppôr que iria medir-me com elle! tem
-graça!...
-
-—Medir-se, meu caro amigo! oh! não com um metro! o senhor é uma grande
-vara, e eu não tenho senão tres pollegadas e meia, a vantagem seria toda
-sua! mas Chausson, o meu antigo _groom_, nos emprestará duas espadas de
-guarda nacional, ou dois páus de vassoura, á sua escolha. Convem-lhe
-isto, sr. _Pro... rata_?
-
-—Sr. Casimiro, peço-lhe que diga a este homem que se cale, aliás não
-respondo pelo que acontecerá...
-
-—Não te faças fanfarrão, _Professeur_! olha que te vou á figura...
-
-—Sr. Rouflard, vê-se perfeitamente que almoçou bem de mais, não é isso
-que me tinha promettido. Esquece-se de que tem de vir a minha casa
-servir-me de modêlo, e que estou á sua espera?...
-
-—Ah! é verdade, tem razão, desculpe, meu pintor, eu ia a sua casa, para
-que me tomou esta gente o caminho?...
-
-—Sr. Proh, e minha senhora, peço-lhes que não tomem a sério os gracejos
-de máu gosto que este homem se atreveu a proferir, elle bebe de mais
-algumas vezes para esquecer a sua miseria, devemos ser indulgentes com os
-desgraçados, prometto-lhes que não tornará mais!...
-
-—Ah! sr. Casimiro, é só em attenção ao senhor!
-
-—Vamos, Rouflard, vamos para o nosso trabalho...
-
-—Já vou, meu Miguel Angelo, meu Raphael. Familia Proh... tornaremos a
-ver-nos...
-
-—Venha, Rouflard, venha d’ahi...
-
-—Vamos lá fazer de modelo _Pro Deo e pro patria_!... É bonito isto!
-_Pro-deo_...
-
-Casimiro faz entrar o modelo em sua casa, e a familia Proh retira-se
-tambem do patamar, depois de ter tido o cuidado de apagar o que restava
-de giz por cima da porta.
-
-
-
-
-IX
-
-Uma colhér de prata
-
-
-Não é sem custo que o joven artista consegue do seu modelo que se deixe
-pôr em posição, e principalmente que se não mecha depois de adoptada
-emfim a sua attitude. A final Rouflard aquieta-se; demais, Casimiro
-permitte-lhe conversar e elle usa da permissão. O antigo seductor tem-se
-feito muito loquaz com a edade; gosta de falar dos seus triumphos
-passados e enfeita as suas recordações de reflexões que são ás vezes
-picantes. Rouflard não é falto de espirito; este homem possuia tudo o que
-é preciso para fazer caminho no mundo, e foram todas as suas vantagens
-que o perderam.
-
-Casimiro ouve o seu modelo contar-lhe os seus triumphos com as damas, mas
-em breve conduz a conversação a um assumpto que o interessa mais. É da
-menina do quinto andar que elle gosta muito de ouvir falar!
-
-—Mora ha muito tempo n’este predio sr. Rouflard?
-
-—O senhor é muito delicado em dizer morar, meu Raphael; estar empoleirado
-é que devia dizer. Emfim não importa; ha seis mezes que o occupo, aquelle
-buraco, e confesso que nunca lá tive vontade de cantar: «Como se está bem
-n’uma agua-furtada aos vinte annos!...» É verdade que já não tenho vinte
-annos; mas, ainda que os tivesse, não seria nunca da opinião de Béranger.
-Mas isto de poetas, em o pensamento sendo original é o sufficiente! Bem
-se importam elles com a verdade!
-
-—E quando o senhor veiu morar cá para cima, já a menina Lisa aqui
-habitava com a avó?
-
-—Sim, já cá estava, mas havia pouco tempo, pelo que tenho ouvido dizer.
-
-—O senhor está no caso de saber quando ella recebe as suas visitas.
-
-—Visitas! em casa da Lisa! oh! nunca! que eu saiba, nunca a nossa visinha
-recebeu ninguem de fóra. Só a sr.ª Proh é que lá subiu uma ou duas vezes
-com o filho, para levar trabalho. O garoto não cessava de gritar: que
-feio que é isto aqui! e, como queria ralar a paciencia á pobre da avó,
-Lisa pôl-o fóra de casa. Emquanto á senhora _Pro-tocole_, essa não se
-fartava de dizer á rapariga: «Eu não poso pagar isto por doze soldos,
-é muito caro, não dou senão dez.» E tantas vezes o repetiu, que Lisa
-respondeu-lhe: «Dê a senhora o que quizer...» Pobre pequena! regatear
-por dois soldos, a quem trabalha dia e noite para sustentar a avó! é uma
-acção digna da sr.ª _Pro-fanée_!...
-
-—Volte a cabeça um pouco mais para a esquerda. Muito bem, faça por
-conservar essa posição...
-
-—Está satisfeito commigo?
-
-—Sim, senhor, não se põe mal... isto hade ir...
-
-—O senhor está pintando o meu retrato para o mandar á exposição?
-
-—Talvez, se me sair bom.
-
-—Em todo o caso, ha-de-m’o dizer, não é verdade? porque eu não
-desgostaria de me ir contemplar.
-
-—Sim, sim, mas ainda lá não chegámos. Sabe o sr. Rouflard quem eu
-estimaria bastante ter por modelo?
-
-—Ora! aposto que adivinho? é a menina Lisa que o senhor quereria retratar!
-
-—Exactamente, teria grande prazer em reproduzir na tela as bonitas
-feições d’essa interessante rapariga!
-
-—Pois bem! quem é que lh’o impede!
-
-—Perguntei á nossa visinha se consentiria em me deixar tirar-lhe o
-retrato, e ella recusou-se!
-
-—Ah! recusou! Aposto que foi para não deixar a avó sósinha tanto tempo?
-
-—Mas, como eu tinha comprehendido isso, propuz-lhe ir eu a sua casa com
-os pinceis e a palheta, de modo que poderia ella servir-me de modelo sem
-se afastar um momento da sua pobre doente...
-
-—Oh! isso era bonito da sua parte! E ella ainda recusou?
-
-—Sim, recusou sempre. Tenho dobrada pena com essa recusa, porque a menina
-Lisa trabalha muito e ganha pouco...
-
-—Acredito! sobre tudo se trabalha para a sr. Proh...!
-
-—Emquanto que consentindo em me servir de modelo teria ganho muito
-mais, e mesmo sem que isso lhe fizesse largar o seu trabalho habitual.
-Ter-lhe-ia proporcionado alguns regalos, poderia comprar para a sua
-doente coisas que ella por falta de dinheiro não lhe pode agora
-offerecer. Pois eu não tinha razão, Rouflard?
-
-—Tinha cem vezes, mil vezes razão! e não sei por que ella recusou!
-
-—É que tem medo de se comprometter; tem ouvido dizer que as mulheres que
-servem de modelo aos pintores não gozam de boa reputação.
-
-—De ordinario não são nenhumas vestaes! mas quem necessita de trabalhar
-para viver, não se deve prender com isso! A susceptibilidade de Lisa
-é exagerada! Esteja descançado, meu pintor, o senhor só tem boas
-intenções, só quer fazer bem á pequena, fazendo ao mesmo tempo um bonito
-estudo; indo pintar em casa d’ella deante da avó, tira todo o pretexto
-á maledicencia. Farei comprehender isso á minha boa vizinha, estou
-convencido de que a hei-de resolver a deixar-se retratar!
-
-—Devéras! acha que vencerá a sua resistencia?
-
-—Com toda a certeza! tenho vencido outras mais fortes. Triumphar das
-mulheres era a minha profissão! É verdade que empregava para isso meios
-de que não usarei com a menina Lisa; resta-me, porém, a minha eloquencia,
-e o desejo que tambem tenho de ser util áquella que nunca me recusou um
-boccado de pão. Será talvez a primeira vez que prestarei serviço a uma
-mulher, isso ha de fazer-me mudar.
-
-Para primeira sessão, Casimiro não quer fatigar muito o seu modelo, e ao
-cabo de duas horas, conhecendo que Rouflard começa a sentir formigueiros
-nas pernas, diz-lhe:
-
-—Basta por hoje.
-
-—Devéras! põe-me em liberdade! Pois bem! gosto d’isso, porque principiava
-a sentir uma especie de caimbras nas pernas, falta de habito, já se vê
-mas hei-de-me costumar. Será preciso vir ámanhã outra vez?
-
-—De certo; assusta-o isso, por ventura?
-
-—Nada, pelo contrario, creio até que tomarei gosto pela coisa. Ganhar
-dinheiro assim não custa nada. Oh! é preciso que a nossa vizinha se
-preste tambem a isto, tanto mais que poderia assim dar grande prazer á
-avó, estou mesmo espantado de que ella não tenha pensado em tal.
-
-—Como é isso? explique-se melhor, Rouflard; em que é que a menina Lisa
-daria grande prazer á sua pobre paralytica?
-
-—Vae immediatamente perceber. Conversando algumas vezes commigo, porque
-eu gosto muito de conversar, sobretudo com as raparigas bonitas, é um
-resto da minha juventude... _desinit in piscem_... oh! eu tambem sabia
-latim! mas, com as mulheres, esquecia-me d’elle, ellas não gostam de
-linguas mortas!
-
-—Voltemos a Lisa.
-
-—Tem razão, eu poderia ter sido um bello advogado, porque trato os
-pormenores com muito cuidado. Ora, ia eu dizendo: conversando, a minha
-vizinha tem-me dito algumas vezes: «Ah! se eu podesse ajuntar algumas
-economias. Ha uma coisa que daria grande prazer a minha avó, e que eu
-estimaria muito poder-lhe offerecer, mas não o posso conseguir!» «O que
-é então, lhe disse eu, que a sua avó deseja tanto?» «É, me respondeu
-ella, uma colhér de prata; porque ella teve uma muito bonita n’outro
-tempo, em vida da minha ama, porém depois da sua morte, quando estive
-muito tempo sem achar trabalho, foi-nos preciso pouco a pouco vender o
-que possuiamos, e a colhér de prata levou esse destino. Hoje conseguimos
-viver, mas não posso ajuntar dinheiro para comprar outra; e ainda menos
-agora, que o medico receita algumas vezes remedios que são muito caros!
-Mas a saude está primeiro que tudo, vale mais que uma colhér de prata!...»
-
-—Tem razão, Rouflard, essa menina, servindo-me de modelo, teria ganho em
-breve com que comprar o que deseja offerecer á avó.
-
-—A não ser que o medico receite ainda algum remedio ruinoso; então, lá
-se ia embora todo o dinheiro! porque Lisa não regateia quando se tracta
-de dar allivio á pobre enferma. Mas é o mesmo, eu lhe falarei. A sessão
-ámanhã é á mesma hora?
-
-—Mais cedo, ás dez horas em ponto.
-
-—Á hora que quizer; eu sou livre como o besouro! Ah! permitte-me que veja
-o que o senhor fez?
-
-—Sim, pode vêr.
-
-—Espere, isto já não está mau, eu não sei pintar, mas tive a reputação de
-entender de quadros e, no tempo das minhas fortunas, comprei por vezes
-alguns quadrosinhos _de genero_... e ganhei sempre n’elles.
-
-—Pois então, olhe para essa vistasinha de Bougival, que ainda não
-acabei...
-
-—Vejamos; oh! é bonita, é aprazivel, tem vida! O senhor é colorista, o
-que nem todos os pintores são, mesmo alguns que teem entretanto muito
-talento. Isto que lhe digo, não é para lhe fazer um elogio banal, o
-senhor tem o sentimente da côr... tracte bem este quadrosinho. Olhe, eu
-n’outro tempo teria pago isto por trezentos francos, e ainda havia de
-ganhar...
-
-—Bom, visto que esta paizagem não lhe parece de todo má, vou acabal-a.
-Eu faria talvez melhor o quadro _de genero_ que o retrato, não importa,
-tentarei as duas coisas. Até ámanhã, Rouflard.
-
-—Sim, senhor, e não almoçarei senão depois da sessão, para me collocar em
-posição com mais dignidade.
-
-Assim que o modelo se retira, Casimiro deixa a cabeça de Rouflard e
-deita-se á paizagem; trabalha com um ardor de que elle proprio se
-espanta, mas toma gosto pela sua obra, procura-lhe cuidadosamente os
-defeitos, aperfeiçôa-lhe muitas partes, e o tempo passa depressa quando
-a gente se entrega a um trabalho que agrada. Casimiro ouve dar quatro
-horas, e diz comsigo:
-
-—Não é possivel que já seja tão tarde. Ah! Santo Deus! e eu que devia
-ir buscar Ambrosina ás tres horas, para ir passear com ella ao bosque!
-mais uma scena que terei de aturar! Porque deixei eu esta mulher dispôr
-assim do meu tempo? porque? Porque sou um preguiçoso, um cobarde, porque
-a menor occupação me mettia medo, e hoje tenho infinitamente mais prazer
-em trabalhar n’este quadro do que em ir passear ao bosque. Ah! é que
-penso n’essa menina Lisa que não procura nenhuma distracção, que trabalha
-constantemente n’um quarto onde não tem por companhia senão uma velha
-paralytica, e isto de ter assim vivido na inacção envergonha-me. Tenho
-ainda deante dos olhos a situação de Rouflard. Este homem, que foi
-tão festejado, tão amimado pelas mulheres, viveu á custa d’ellas e eu
-vejo onde isso conduz, o seu exemplo não será perdido para mim. A sr.ª
-Montémolly pode zangar-se quando quizer, mas de hoje em deante hei-de
-trabalhar; estou resolvido a isso, no entanto, como é preciso ser sempre
-delicado com as senhoras, vamos ter com ella, senão seria capaz de vir
-aqui para saber o que estou fazendo.
-
-Casimiro dirige-se portanto a casa da formosa Ambrosina. Esta dama está
-de muito máu humor; acha-se vestida e prompta ha mais de uma hora, e não
-vê apparecer o amante. Passeava com impaciencia pela sala, olhava a cada
-instante para o relogio, chamava a creada e dizia-lhe que fosse perguntar
-que horas eram a qualquer parte, exclamando:
-
-—Estou certa de que este relogio anda adeantado, deve regular mal;
-Adriana, vá saber que horas deram com exactidão.
-
-Adriana vae informar-se ao quarto do porteiro, e volta dizendo:
-
-—Minha senhora, o seu relogio não está adeantado, pelo contrario, anda
-atrazado seis minutos.
-
-—Você é uma tola! exclama Ambrosina, rasgando as luvas com colera, de
-certo viu mal...
-
-—Não, minha senhora, eu...
-
-—Basta! não quero que sejam perto de cinco horas, é impossivel!...
-
-—Ah! se a senhora quer que não seja mais de meio dia, isso para mim é o
-mesmo.
-
-—Cale o bico! parece-me que tem a confiança de gracejar commigo! se diz
-mais uma palavra, ponho-a na rua!...
-
-Adriana retira-se, dizendo comsigo:
-
-—É que o gajo ferrou-lhe alguma peça! Ainda agora a procissão vae na
-praça, minha rica!
-
-Chega finalmente Casimiro. Esperando uma scena de ralhos, vem revestido
-de toda a sua paciencia; demais, está decidido a persistir na resolução
-que tomou de mudar de vida.
-
-—Ah! chegou emfim, diz Ambrosina mordendo os labios com despeito. Sabe
-que horas são?
-
-—Cinco horas menos vinte minutos.
-
-—E a que horas devia o senhor vir buscar-me?...
-
-—Um pouco mais cedo, é verdade; mas puz-me a pintar e o tempo passou mais
-depressa do que eu imaginava.
-
-—De certo que não presume que eu me satisfaço com similhantes razões;
-deveria, pelo menos, ter inventado outras, dizer-me ainda que estava á
-espera do seu amigo Miflaud, que foi elle que o demorou...
-
-—Disse-lhe a verdade, minha senhora, não tem razão em não me acreditar.
-Estive trabalhando.
-
-—Esteve trabalhando! e desde quando, se me faz favor, desde quando lhe
-veio esse bello amor pelo trabalho, que eu lhe não conhecia?
-
-—Estou admirado de que a senhora me diga isso, porque, desde algum
-tempo a esta parte, temos tido bastantes conversações a tal respeito.
-Sim, minha senhora, puz-me ao trabalho, e d’aqui em deante conto
-empregar assim uma parte do meu tempo, a minha resolução está tomada
-e é inquebrantavel, agora não mudarei. Estou envergonhado da vida que
-tenho levado até hoje, e é preciso que isto acabe. Bastantes vezes lhe
-tenho manifestado o desejo que sentia de achar um emprego. Em vez de
-me confirmar n’este designio, a senhora tem sempre procurado fazer-me
-esquecer do que a minha posição tinha de censuravel. Não lhe faço uma
-arguição. Deus me livre de tal! cada um ama a seu modo: uns sómente pelo
-prazer de amar; outros pela felicidade que experimentam em ouvir fazer
-o elogio do objecto da sua escolha. Eu possuo só um recurso, a pintura.
-Posso, á força de estudo, de trabalho, adquirir algum talento. É o que
-vou tractar de fazer; não ve o em que isso me poderia malquistar com a
-senhora, porque lhe asseguro que os prazeres parecem mais doces, quando
-vêm depois das horas de trabalho.
-
-Casimiro disse tudo isto com um ar tão decidido, n’um tom tão firme,
-tão convencido, que a sr.ª Montémolly comprehende que d’esta vez não
-triumphará da nova resolução do seu amante. A colera desappareceu
-então como por encanto. É que ella conhece Casimiro sufficientemente
-para perceber que perderia muito no conceito d’elle, procurando ainda
-estorvar-lhe os projectos. Em vez d’isso, faz esforços para retomar o seu
-ar gracioso, e toma-lhe o braço, dizendo-lhe:
-
-—Perdôe-me, meu amigo, eu não tinha razão; não o censurarei mais por
-trabalhar. Mas isso ha-de impedir-nos por ventura de irmos ainda passear
-algumas vezes?
-
-—Ah! estou ás suas ordens e encantado de a achar tão razoavel...
-
-—Pois bem! então, vamos dar um passeio até ao bosque, e á volta
-jantaremos no Ledoyen...
-
-
-
-
-X
-
-Ainda as creadas
-
-
-São decorridos quinze dias. Casimiro trabalha com assiduidade no seu
-quadrosinho de cavallete e da cabeça de Rouflard; este conserva a posição
-muito regularmente, sobretudo desde que dá as sessões antes do almoço.
-Mas não conseguiu ainda vencer a resistencia de Lisa, que não quer deixar
-tirar o retrato. Isto penaliza o joven pintor, que subiu muitas vezes a
-casa da sua linda vizinha do quinto andar; mas não se demorou muito lá,
-porque ella parece sempre temer que a vista do rapaz contraríe sua avó,
-e é mostrando-se bem discreto que Casimiro espera captar a confiança de
-Lisa e triumphar da sua recusa.
-
-O joven pintor continúa a dar lições de desenho á menina Proh, que não
-faz nenhum progresso e passa uma semana com a mesma orelha. Começou
-tambem o retrato da sr.ª Proh, mas pouco trabalha n’elle, e prefere muito
-mais a cabeça de Rouflard. Emfim, Casimiro acabou a sua pequena paizagem,
-e mandou-a para uma loja de quadros, deante da qual param de boamente os
-amadores, porque se expõem alli a miude bonitas coisas e raras vezes má
-pintura.
-
-Deve-se bem suppôr que a ciumenta Ambrosina, não acceitou sem desgosto,
-sem receio, o novo modo de viver que o seu amante acaba de adoptar; mas
-comprehendeu que era preciso fazer algumas concessões para não perder
-inteiramente o seu imperio. Vê Casimiro muitas vezes; mas em vez de
-passar em casa d’ella uma parte das suas manhãs e das suas tardes, a
-conversar como costumava, o rapaz almoça agora em sua casa, e trabalha
-algumas vezes até ás cinco horas da tarde; quando se sente perfeitamente
-bem, quando está contente de si, custa-lhe muito largar os seus pinceis,
-e fica muito admirado de vêr com que rapidez se passa um dia todo
-consagrado ao trabalho, elle que outr’ora achava o tempo bem comprido e
-não sabia como empregal-o para evitar o aborrecimento.
-
-Ambrosina, que quer certificar-se de que Casimiro não a engana, chega
-muitas vezes a casa d’elle sem o prevenir da sua visita. Acha-o
-trabalhando com o seu modelo, e não é Rouflard que pode inquietal-a;
-encontrou lá tambem uma vez a sr.ª Proh, que dava uma sessão ao seu
-vizinho, mas a esposa do antigo professor não podia despertar-lhe ciume.
-Não tinha pois nenhum motivo real para se affligir, e todavia não estava
-socegada; parecia-lhe que o amante não era já o mesmo com ella, que com
-o amor inteiramente novo que lhe viera pelo estudo, tinha perdido muito
-d’aquelle que n’outro tempo lhe dedicára. Não sabia bem o que se passava
-no coração de Casimiro, mas adivinhava que havia agora entre ambos alguma
-coisa que devia destruir a sua felicidade. As mulheres teem uma segunda
-vista, que lhes faz presentir tudo o que tem relação com o seu amor.
-
-Isto devia necessariamente produzir um augmento de crises nervosas, e a
-menina Adriana era muito a miude enviada á pharmacia que já tivemos o
-prazer de fazer conhecer aos nossos leitores.
-
-Correndo alli um dia (sabemos já como Adriana corre, que pára a conversar
-com todos os conhecimentos que encontra,) a gorda creada acha-se outra
-vez cara a cara com a sua amiga, a menina Rosa, aquella que tem um tão
-bello commodo em casa d’um homem só, que lhe faz presentes, e que tomou
-um creado para que ella se não cance muito com o trabalho domestico.
-
-—Bons dias, Adriana.
-
-—Ah! és tu, Rosa! onde vaes d’esse modo?
-
-—Vou alli á pastelaria encommendar umas empadas, que as fazem
-deliciosas!...
-
-—Ah! bem sei, é tambem onde nós compramos, é a melhor do bairro.
-
-—Ainda estás em casa da tal senhora nervosa?
-
-—Oh! não me fales n’isso! desde algum tempo a esta parte, está
-constantemente de máu humor! anda furiosa! porque os amores já não correm
-muito bem! Eu bem vejo, o tal sujeito já apparece menos vezes, por mais
-que a senhora se apure no vestuario, por mais que se faça bonita, estou
-convencida de que elle tem vontade de a deixar.
-
-—Ora! e ella arranja logo outro!
-
-—Pensas que la em casa se faz isso com essa facilidade! Nós adoramos o
-nosso pintor, minha rica, seriamos capazes do nos deixarmos depennar por
-elle!
-
-—Ah! é um pintor, algum pobre pintamonos?...
-
-—Parece que desde certo tempo para cá vae adquiríndo talento, está para
-fazer o retrato da senhora, é ella que o quer, é preciso ver se elle me
-faz tambem o meu em quanto está de vez. E tu, Rosa, andas muito _chic_,
-pareces a mulher d’um ourives! Continúas em casa do tal homem só?
-
-—Em casa do sr. Loursain, de certo minha rica; sou mais sua dama de
-companhia que sua creada; não faz nada sem me ouvir, hoje fui eu que
-appeteci as empadas, disse-me logo: «Vae encommendal-as...»
-
-—Ah! elle tracta-te por tu!...
-
-—Não... enganei-me... elle disse-me: «Vá, Rosa, encommende-as a seu
-gosto, e traga tambem pasteis de nata.»
-
-—Caspité! és tractada como uma princeza!
-
-—O senhor não faz nada sem me consultar. Quando os seus amigos me fazem
-zangar, digo-lhe a elle: «O seu amigo fulano deu-me hontem um beliscão em
-certo sitio...» Oh! o tal amigo fica pronto, é recebido de tal maneira
-que nunca mais volta.
-
-—Oh! isso é bem armado, é um meio para te veres livre das pessoas que te
-aborrecem.
-
-—É uma astucia velha que nunca erra o seu effeito. Mas imagina que me
-tinha vindo á idéa aquillo que me disseste o outro dia; uma d’estas
-tardes, depois de jantar, á sobremesa, digo ao patrão, que estava mais
-terno que de costume: «Senhor, se tem vontade de casar commigo, não se
-constranja, eu não desejo outra coisa.» A isto o patrão desata a rir,
-como um perdido! Fez-me zanga vel-o rir assim, e digo-lhe: «Então que
-motivo ha para rir do que lhe proponho?» Elle ri ainda mais, e depois
-responde-me: «Que diabo de idéa se te meteu na cabeça! e que tolice ires
-pensar no casamento.» «Mas, senhor, tornei eu, não acho que o casamento
-seja uma tolice.» «Pois olha que é, e bem grande; não, minha rica, não
-casarei comtigo, não farei similhante disparate! mas ainda mesmo que
-tivesse vontade de o fazer, não me seria isso possivel, pois que já sou
-casado.»
-
-«Bem deves fazer idéa que fiquei embaçada ao ouvir isto «Como! pois o
-senhor é casado?» exclamei eu «e sua mulher está viva?» «Sim Rosa, minha
-mulher está viva, bem viva, e não creio que tenha vontade de morrer,
-porque é muito mais moça do que eu.» «E então porque não está o senhor
-com ella? para que vive sem mais nem mais como se fosse solteiro? É
-enganar a gente; isso dá ás raparigas solteiras certas idéas a seu
-respeito: póde a gente illudir-se com o senhor, pensando que é para bom
-fim, e depois era uma vez!... Isso é desagradavel...» O patrão fez então
-uma cara de mau humor, e respondeu-me:
-
-«—Não tenho que lhe dar satisfações; se me separei de minha mulher, é
-porque provavelmente isso me conveiu, não é negocio da sua conta. De hoje
-para o futuro, ha de fazer favor de me não tornar mais a falar a tal
-respeito, porque isto desagrada-me.»
-
-«Ora, bem deves suppôr que não foi preciso dizer-m’o duas vezes; vi que
-tinha ido longe de mais, e desde então não tenho falado mais em tal.
-Mas é o mesmo, desejava bem conhecer a mulher do sr. Loursain, e saber o
-motivo por que elle a deixou.
-
-—Ora! tem muito que saber! é que lhe fez falcatrua, e esse senhor não
-gostou; ha homens tão ridiculos. Valha-me Deus! e eu sem ir buscar o
-remedio á botica! Adeus, Rosa, até mais ver.
-
-—E o teu moço de quem gostavas tanto?
-
-—Ah! isso já acabou! agora é outro! eu nunca me prendo, gosto da
-variedade.
-
-Quando a menina Adriana volta á presença de sua ama, esta ralha muito com
-ella por se ter demorado tanto tempo fóra; a creadinha porém não falta a
-responder-lhe:
-
-—Não foi por minha culpa, minha senhora, é que encontrei uma amiga,
-uma patricia, que não via ha muito tempo, então estivemos a conversar,
-perguntei-lhe pela familia...
-
-—Sempre desejava saber que interesse podia ter n’isso...
-
-—É que a Rosa tem um irmão que esteve quasi á morte por minha causa.
-
-—Por amor?
-
-—Não, minha senhora; mas querendo levar-me muito longe nos braços, á
-força de pulso, ficou corcovado.
-
-—E o que faz a sua amiga?
-
-—Oh! tem um bello commodo, em casa d’um homem só, onde ella faz tudo
-quanto quer; manda fazer empadas quando lhe dá na vontade... e pasteis de
-nata, emfim, grandes banquetes.
-
-—É então rico, esse senhor?
-
-—Sim, minha senhora. Oh! parece que o sr. Loursain é riquissimo!
-
-Ao nome de Loursain, Ambrosina sente uma viva commoção; apressa-se porém
-a dominal-a replicando:
-
-—Como se chama esse senhor em casa de quem está a sua amiga?
-
-—Loursain. A senhora conhece-o?
-
-—Não, parecia-me ter ouvido outro nome. E esse sujeito é... viuvo?
-
-—Quer dizer, vive como se o fosse; mas na realidade não o é. Tem ainda a
-mulher viva. Eu soube tudo isto pela Rosa, de quem elle está loucamente
-namorado, e com quem estimaria muito casar; mas elle disse-lhe em
-confidencia: «Eu não posso casar comtigo, Rosa, e tenho muita pena
-d’isso, porque sou casado e minha mulher ainda é viva, infelizmente; mas,
-se ella morrer, podes estar descançada, tens a certeza de occupar o seu
-logar... o teu futuro está seguro.» O que é pena, é que parece que a tal
-senhora é muito mais moça que o marido; mas, emfim, em todas as edades se
-morre, não é verdade, minha senhora?
-
-—Certamente. E o amo da sua amiga mora perto d’aqui?
-
-—Sim, minha senhora, na rua Béranger, aquella que faz continuação á
-nossa. Parece que aquelle senhor tem uma bella casa, n’um segundo andar,
-do lado da rua, e mobilada no grande _chic_. O quarto da Rosa é no mesmo
-pavimento, o que é muito commodo, porque... a senhora bem entende... a
-Rosa não m’o quiz confessar, mas é como se m’o tivesse dito, demais, ella
-descuidou-se commigo... o amo trata-a por tu, e...
-
-—Basta, basta, não quero saber dos negocios da menina Rosa; mas, para a
-outra vez, tracte de conversar menos tempo quando eu a mandar a algum
-recado.
-
-Deixada só, Ambrosina fica por largo espaço engolphada nas suas
-reflexões, das quaes sae por fim, dizendo de si para si:
-
-—Loursain mora perto de mim, e eu não desejo encontral-o, é preciso
-mudar-me.
-
-
-
-
-XI
-
-O vinho quinado
-
-
-Um dia de manhã, Casimiro fica agradavelmente surprehendido ao receber
-a visita do lojista em casa de quem expôz o seu quadrosinho, e que se
-approxima d’elle dizendo:
-
-—Temos comprador para o seu quadro por quatrocentos e cincoenta francos,
-quer dal-o?
-
-O joven pintor receia ter ouvido mal, abre muito os olhos para se
-certificar de que é effectivamente o seu negociante de quadros que está
-deante d’elle, e exclama:
-
-—Quatrocentos e cincoenta francos, diz o senhor? é pela minha vista de
-Bougival que lhe offerecem esse dinheiro?
-
-—Sim, se lhe convem, é negocio feito, e pode logo passar por minha casa
-para receber o dinheiro.
-
-—Se me convem! isso deixa-me encantado, enche-me de alegria, nunca teria
-ousado pedir tanto.
-
-—Eu tinha pedido quinhentos francos, e estou certo de que, se o senhor
-quizesse esperar, acabariamos por achar quem os desse.
-
-—Nada, não, não quero esperar, parece-me que fica muito bem pago, demais,
-visto que se acha valor aos meus quadros, pintarei outros.
-
-—E fará muito bem. Trabalhe, sr. Casimiro, dê-se antes áquelle genero
-que a outro qualquer. Creio que lhe será isso muito mais rendoso que
-o retrato. O senhor é colorista, o que é um dom da natureza; conheço
-pintores de talento que não teem o menor sentimento da côr; teem uma
-figura para fazer, empregam a primeira coisa que acham no pincel; está
-perfeitamente desenhada, é espirituosa de attitude, de maneira, de idéas.
-Reina porém em tudo aquillo um tom pardo-escuro que tira ao quadro toda
-a graça que deveria ter. A esses, não peçam nunca luz, claridade, sol;
-é-lhes impossivel metterem d’isso nos seus quadros. Trabalhe, que nós o
-auxiliaremos.
-
-Assim que o lojista se retira, Casimiro põe-se a pular e a dansar no
-quarto. Não é a idéa de que vae receber quatrocentos e cincoenta francos
-que o torna tão alegre; graças á generosidade da sua amante, tem tido
-muitas vezes quantias maiores á sua disposição; mas é o pensamento de que
-esse dinheiro é o fructo do seu trabalho, que elle soube ganhar por si
-mesmo, e que quando o receber, poderá mettel-o na algibeira sem córar.
-
-—Nada faltaria agora á sua felicidade, se a sua vizinha do quinto andar
-consentisse em deixal-o fazer-lhe o retrato; não conseguiu ainda vencer a
-sua resistencia, e comtudo Rouflard disse-lhe no dia anterior:
-
-—Está-me parecendo que a menina Lisa não tardará a deixar-se retratar,
-porque o medico que tracta da sua velha doente tem vindo vel-as estes
-dias; receitou uma nova beberagem, creio que é vinho quinado. Seria
-preciso que a boa da velha o tomasse todos os dias, e, com a breca!
-aquelle vinho é caro; as garrafas são muito pequenas despejam-se em dois
-goles. A pequena levanta-se ainda mais cedo, véla ainda até mais tarde
-para arranjar o vinho quinado; mas creio que lhe custa a chegar. Não
-faria ella cem vezes melhor em se deixar tomar por modelo? Ainda hontem
-lh’o disse. Suba lá o senhor, é agora a occasião, eu conheço as mulheres,
-tanto quanto a gente as pode conhecer; mas olhe, com ellas, o que é
-preciso é aproveitar a occasião.
-
-Casimiro tracta logo de pôr em practica o conselho de Rouflard, e sobe
-de novo a casa da menina Lisa. Todas as vezes que se dirige alli, sente
-uma viva commoção e o seu coração bate mais apressado. Comtudo, tem dito
-muitas vezes a si proprio que não devia pensar em fazer a côrte a Lisa;
-que aquella pequena era honesta, e que da parte d’elle seria muito mal
-feito procurar seduzil-a, perturbar-lhe o socego e fazer-lhe deixar a
-verêda da honra, na qual, como diz o poeta: é difficil entrar uma vez
-que se esteja fóra.
-
-Casimiro disse comsigo tudo isto e muitas outras coisas, o que não impede
-que, ao olharem para a linda cara d’aquella menina, os seus olhos não
-tenham uma expressão que não é de modo algum a da indifferença, e que a
-sua voz se não faça mais suave e mais insinuante.
-
-Pela sua parte, Lisa sente-se inteiramente outra desde que travou
-conhecimento com o seu vizinho do terceiro andar. Tem-se mostrado para
-com ella tão delicado, e sobretudo tão respeitoso, que a rapariga
-pergunta a si mesma por que receia conceder-lhe o favor que elle
-solicita. Mas pergunta isto muitas vezes de mais; pensa em Casimiro
-todo o dia, não pode já reprimir-se de o fazer, e, apezar de toda a
-sua innocencia, uma donzella de dezoito annos adivinha perfeitamente
-que é muito perigoso estar sempre a pensar n’um rapaz, occupar-se
-constantemente d’elle; e, ainda que esse rapaz lhe não tenha dito uma
-unica palavra de amor, ainda que não a veja senão deante de sua avó, a
-donzella deve conservar-se acautelada contra o sentimento que se lhe
-introduz na alma, e sobretudo não se expôr a amar alguem que não pensa
-n’ella senão para lhe tirar o retrato.
-
-É com receio de tomar demasiado gosto em se achar só com o seu joven
-vizinho, que Lisa recusa sempre deixar-se retratar por elle.
-
-Mas no meio de tudo isto, chegou aquella receita de quina em vinho de
-Malaga. Os malditos medicos não se importam com as posses dos seus
-doentes; receitam o que é favoravel ao restabelecimento da saude, e tanto
-peior para o enfermo se não pode comprar o remedio; elles cumpriram a sua
-missão.
-
-Lisa havia comprado uma garrafinha do vinho receitado; fizera-o beber
-á sua velha doente, a quem isso havia dado grandes melhoras. Mas essa
-garrafinha fôra bebida em sete dias, e ainda se não tinha comprado outra.
-
-Este maldito vinho quinado preoccupava agora Lisa quasi tanto como
-Casimiro, e, como na vida todas as coisas têm o seu ricochete, ella não
-podia deixar de dizer de si para para si:
-
-—Se eu me resolvesse a servir de modelo, bem depressa teria vinho quinado.
-
-Rouflard não se enganara pois nas suas conjecturas, e, com effeito, ao
-vêr entrar Casimiro no seu aposente, Lisa experimenta um vivo sentimento
-de prazer que ella dissimula o melhor que pode, cumprimentando o seu
-vizinho com ar amavel e indicando-lhe uma cadeira, porque não pode largar
-a obra que está a acabar.
-
-—Bons dias, minha vizinha, diz Casimiro; aqui tem um homem extremamente
-feliz.
-
-—Realmente, estimo muito; o que lhe succedeu então para lhe causar tanta
-alegria?
-
-O que me acconteceu? Ah! a menina não o comprehende talvez bem, porque é
-preciso ser artista para conhecer estas alegrias! Imagine um auctor que
-obtem o seu primeiro triumpho no theatro, o compositor que ouve cantar na
-rua a musica que fez publicar, emfim o pintor que vende o seu primeiro
-quadro, eis os homens mais felizes da terra! pois bem! eu sou d’esse
-numero... acabo de vender o meu primeiro quadro.
-
-—O seu primeiro? como, pois ainda não tinha feito nenhum?
-
-Esta reflexão tão natural de Lisa faz córar Casimiro, que comprehende
-que a sua joven vizinha deve perguntar lá de si para si em que tem elle
-empregado o seu tempo, para não ter feito, na sua edade, senão um quadro.
-O rapaz tracta de sair do embaraço, respondendo:
-
-—Não menina, é verdade; comecei muito tarde a pintar a paizagem, eu
-preferi o retrato, agradava-me isso mais.
-
-—E agora renuncia o retrato para se dar á paizagem?
-
-—Oh! não! renunciar ao retrato! nunca! uma coisa não impede a outra! Mas
-eu estava tão contente esta manhã com a venda do meu quadro, que não pude
-resistir ao desejo de lhe dar parte do meu bom succedimento... e depois,
-quando se está em maré de felicidade, dizem que sempre nos chegam muitas;
-então, disse commigo: Vamos vêr a minha linda vizinha; quem sabe se ella
-hoje quererá tambem consentir em deixar-se retratar, se não abrandarei a
-sua resistencia!...
-
-—Isso fazia-o então ainda muito feliz, se eu lhe deixasse fazer o meu
-retrato?
-
-—Ah! seria o auge da minha felicidade? Empregaria todos os meus cuidados,
-todo o meu talento n’esse trabalho! e estou bem certo de que havia de ser
-bem succedido, que faria uma cabeça lindissima.
-
-—Mas esse retrato... vendia-o depois?
-
-—Vender o seu retrato! oh! nunca, minha vizinha, nunca! conserval-o-hia
-toda a minha vida... mas faria uma copia para lh’a offerecer, ou, se a
-menina o preferisse, dar-lhe-hia o original e ficaria eu só com a copia.
-
-—Mas o que fará o senhor do meu retrato em sua casa! ha de incommodal-o...
-
-—Incommodar-me! pelo contrario, será o mais bello ornato do meu
-_atelier_, olharei para elle todos os dias, não me cansarei nunca de o
-contemplar. Ah! minha vizinha, consinta, por obsequio, diga que consente.
-
-Lisa ainda hesitava, porque os olhos de Casimiro tinham tomado uma
-expressão que lhe causava uma commoção vivissima; mas n’este momento a
-enferma, que estava adormecida, accorda, dizendo:
-
-—Lisa, dá-me uma gota d’esse vinho que me faz tanto bem.
-
-—Sim, avósinha, d’aqui a um instante, já o não ha em casa, eu o vou
-buscar...
-
-Depois, voltando-se para Casimiro, Lisa diz-lhe em voz baixa:
-
-—Pois bem! consinto, começaremos ámanhã.
-
-—Oh! como a menina é cheia de bondade! e quão feliz eu sou! Corro então
-á pharmacia a comprar-lhe o vinho quinado.
-
-—Não, isso não, irei eu mesma.
-
-—A menina não pode deixar a sua doente, permitta-me fazer-lhe este
-pequeno serviço, eu sei que é vinho de Malaga.
-
-—Oh! sr. Casimiro... por quem é...
-
-—Deixe-me por minha vez ser-lhe agradavel, a menina consente em me servir
-de modelo... estou tão contente! Corro a buscar o vinho, volto com elle
-n’um momento.
-
-E sem attender mais á rapariga, Casimiro sae apressadamente; desce a
-escada a quatro e quatro, por pouco que não deita ao chão o menino Proh
-que procurava pôr-se a cavallo na balaustrada do patamar, passa como uma
-frecha por deante do porteiro, corre á botica mais proxima, pede vinho
-de Malaga quinado, compra tres garrafas, mette uma em cada um dos bolsos
-lateraes, esconde a terceira debaixo de paletot e volta a casa de Lisa
-com a mesma pressa com que de lá saíu.
-
-—Valha-me Deus!... então o senhor traz tres garrafas! exclama a rapariga
-vendo Casimiro tiral-as dos bolsos.
-
-—Sim, minha vizinha, terá assim para muito tempo sem se incommodar.
-
-—Mas não era preciso, isto custa tres francos e dez soldos cada garrafa...
-
-—Com duas sessões ficam as nossas contas saldadas.
-
-—Ah! senhor, não é possivel!
-
-—Perdão, minha vizinha, juro-lhe que a um modelo como a menina não se
-paga menos, e que lhe ficarei ainda muito obrigado. Mas tenha a bondade
-de me dizer a que hora quer que eu venha para a sessão.
-
-—É sempre de manhã cedo que minha avó descança melhor e não tem precisão
-de mim; se o não contrariasse vir ás oito horas... mas é talvez cedo de
-mais para o senhor?
-
-—Não! pelo contrario, essa hora convem-me muito, trabalharemos das oito
-ás dez, se me fizer esse obsequio, porque eu não a quero fatigar, e,
-duas horas, isso é talvez já demasiado para a menina...
-
-—Oh! não, senhor! demais, o senhor disse-me que eu poderia coser ao mesmo
-tempo...
-
-—Sim, sim, fará tudo quanto quizer; em eu podendo olhar para a menina, é
-quanto basta.
-
-—Eu pensava que o modelo era tambem obrigado a olhar para o pintor!
-
-—Algumas vezes, de certo, é isso melhor; mas nós temos tempo, e quando
-fôr absolutamente necessario, então a menina terá a bondade de levantar
-por um momento os olhos de cima do seu trabalho. Assim, está ajustado,
-ámanhã ás oito horas cá me tem a minha vizinha com toda a minha bagagem...
-
-—Estarei prompta.
-
-Casimiro retira-se, e Lisa approxima-se da velha doente, dizendo-lhe:
-
-—Avósinha, aqui está o vinho quinado!
-
-
-
-
-XII
-
-A primeira sessão
-
-
-Casimiro está encantado com o seu dia, e assim que sae de casa do seu
-novo modelo, dirige-se á morada de Ambrosina, á qual quer participar a
-venda do seu quadro. Não está bem certo se ella compartilhará da sua
-alegria, mas estima muito que saiba que elle pelo seu trabalho pode emfim
-prescindir dos soccorros de outrem.
-
-Emquanto ao que acaba de obter de Lisa, terá o cuidado de não dizer uma
-unica palavra á sua amante, da qual conhece os excessivos zelos; bem pelo
-contrario, espera que ella ignorará as suas relações com a sua joven
-vizinha; por isso ficou muito contente quando esta lhe propoz dar-lhe
-sessão ás oito horas da manhã; das oito ás dez não receia receber a
-visita de Ambrosina, que se levanta habitualmente muito tarde, e se por
-acaso ella viesse a sua casa antes que elle tivesse descido do quinto
-andar, sempre poderia dizer que tinha ido almoçar ao café.
-
-Ao sair de casa, Casimiro encontra-se com Rouflard; o inquilino da
-agua-furtada nota o ar alegre e triumphante do joven pintor, e exclama:
-
-—Aposto que se arranjou a coisa!
-
-—É verdade, Rouflard, sim, a menina Lisa consente em me deixar fazer o
-estudo da sua cabeça, ah! estou muito contente!
-
-—Eu bem sabia que haviamos de acabar por isso, mas isto de mulheres, é
-preciso sempre que se façam rogar um pouco.
-
-—Ámanhã pela manhã ás oito horas subo a casa d’ella, com a palheta e os
-pinceis, e temos a primeira sessão...
-
-—Quando qualquer mulher dá uma sessão, dá ao depois tantas quantas se
-querem... isso vae mesmo por si, é como o primeiro passo.
-
-—Mas, Rouflard, isto fica aqui entre nós; quando eu estiver trabalhando
-com o senhor em minha casa, se vier aquella senhora, bem sabe, aquella
-morena a quem trato simplesmente por Ambrosina... e que já aqui tem vindo
-muitas vezes...
-
-—Sim, sim, a senhora primeira, a sultana favorita, percebo!
-
-—Pois bem! escuso de advertir-lhe que é preciso não dizer palavra ácerca
-das minhas visitas a casa de Lisa e do retrato que vou fazer...
-
-—Ora essa! como, meu artista! é a mim que o senhor diz isso, a mim, um
-veterano nas lides amorosas! parece-me todavia que não tenho ares de
-galucho! eu, que ficaria afflicto se causasse o menor dissabor á minha
-joven bemfeitora!
-
-—Tem razão, eu devia louvar-me no senhor.
-
-—Emquanto a Chausson, o meu antigo creado, elle não é de todo máu, se
-quer eu lhe falarei.
-
-—Não, não é preciso, isso fica por minha conta...
-
-—Ah! é antes dos Prohs que se deve desconfiar; são uns tagarellas, uns
-palradores, uns mexeriqueiros! que ficam encantados quando sabem o que
-se passa em casa dos vizinhos, e acham meio de fazer d’um argueiro um
-cavalleiro!
-
-—Terei cuidado de que elles não saibam nada das minhas visitas a casa de
-Lisa, e vou tratar de acabar quanto antes o retrato da sr.ª Proh, para
-que ella não venha mais a minha casa.
-
-—Ahi está um retrato que eu não queria ter nas minhas _inglezas_, a não
-ser como laxante...
-
-—Rouflard, vendi a minha pequena paizagem, aqui tem, tome lá isto para se
-divertir, sou hoje feliz, quero que toda a gente esteja satisfeita.
-
-—Isto é que é falar como Buckingam obrava, o senhor tinha nascido para
-semear perolas no seu caminho e eu para as apanhar.
-
-Casimiro acha a sua amante acabando de arranjar-se e dispondo-se para ir
-a sua casa.
-
-Até que emfim! é uma felicidade vel-o! exclama Ambrosina, o senhor vem
-cada vez mais tarde; d’aqui a pouco, sem duvida, deixa de vir de todo.
-
-—Minha querida amiga, desculpe-me, tenho hoje tido muitas occupações.
-
-—Esteve a trabalhar com o borrachão do seu modelo... como é
-interessante!...
-
-—Não, hoje não trabalhei com Rouflard; recebi a visita do logista que me
-vende os quadros; dê-me os parabens, está vendida a minha paizagem.
-
-Ambrosina franze o sobr’olho e morde os beiços, respondendo ao mesmo
-tempo:
-
-—Ah! está vendida a sua paizagem...
-
-—Sim, e muito bem vendida, por muito mais do que eu teria ousado pedir.
-
-—O senhor é demasiadamente modesto, e faz mal em ser assim; nas artes,
-a modestia é uma tolice, porque é um merecimento que ninguem leva em
-conta ao artista, e que muitas vezes o impede de chegar á celebridade.
-Porquanto lhe pagaram o seu quadro?
-
-—Quatrocentos e cincoenta francos.
-
-—Ah! que miseria! e é isso que o senhor chama bem vendido! pensava que ia
-dizer-me dois ou tres mil francos.
-
-—Ah! está zombando commigo! bem sabe que aquella pequena paizagem não
-valia isso; para uma estreia é um preço muito bonito; isto anima-me, e
-quero trabalhar de modo que possa vender mais caro os quadros que fizer.
-
-—Ah! o senhor tenciona fazer outros quadros de _genero_; então renuncia
-ao retrato? Provavelmente não acabará o meu, pelo qual não mostrava
-nenhum enthusiasmo.
-
-—Como é injusta! sou sempre eu que lhe peço para se pôr em attitude; mas
-a senhora, em estando em posição um quarto de hora enfada-se, já não pode
-estar quieta no mesmo sitio.
-
-—Ah! é que me faz mal aos nervos! Vamos, a sem razão está da minha parte,
-convenho. D’aqui em deante serei mais razoavel, irei metter-me em sua
-casa logo pela manhã, e não arredarei pé do seu _atelier_, assim, poderá
-fazer-me estar em posição todo o tempo que quizer.
-
-D’esta vez, é Casimiro que morde os labios e franze ligeiramente as
-sobrancelhas. É coisa para se notar que, n’um colloquio de duas pessoas,
-fazem-se muitissimas vezes d’estas mudanças physionomicas, que dizem o
-que a bocca não diz, ou que significam inteiramente o contrario do que
-ella diz. Porque, por mais que se queira dissimular o pensamento, ha
-sempre alguma coisa que transparece n’este semblante que a natureza nos
-deu, e que é por vezes rebelde ás transformações que lhe queremos impôr.
-
-Ambrosina deseja ir passear ao campo. Casimiro accede a esse desejo com
-alegria; como trouxe comsigo o seu livro de lembranças, tomará notas,
-esboçará alguns pontos de vista.
-
-—Se nós fossemos á Suissa? diz a bella morena; é lá que o meu amigo
-acharia vistas admiraveis, que poderia fazer ampla provisão de bosquejos
-para os seus quadros de _genero_.
-
-Mas o joven pintor não está por forma alguma disposto a viajar.
-
-—Sem ir tão longe, diz elle, ha nos arredores de Paris sitios lindos,
-vistas encantadoras; mas ninguem pensa em pintal-as, porque estão ás
-portas de Paris, e não se liga merecimento senão ao que está longe de
-nós. Eu, minha querida amiga, não vejo razão para se fazer pouco caso
-d’uma coisa que nós podemos arranjar sem incommodo e sem despeza. Assim,
-por exemplo, muito perto d’aqui, por detraz do forte de Romainville,
-n’aquelle sitio que era n’outro tempo o bosque, ha outeiros d’onde a
-vista é magnifica, tem a gente deante de si uma extensão immensa de
-terreno; podem os olhos abranger mais de doze leguas em redor. Em baixo
-fica Patim com os seus fornos de cal, que tornam a paizagem pittoresca;
-depois está o canal que corta o caminho, e um pouco mais adiante S.
-Diniz, Montmorency, Pierrefitte. Á esquerda vê-se Montmartre, o Monte
-Valeriano, e Saint-Cloud, que se desenha no horizonte. E tudo isto
-entremeado de bosquesinhos, de bonitas casas de campo, de fabricas.
-Affianço-lhe que é um panorama admiravel. Quer ir vel-o?
-
-A sr.ª Montémolly deixa-se conduzir ao que era n’outro tempo o bosque de
-Romainville, e entretem-se a colher algumas flores campestres, emquanto
-Casimiro está sentado na relva esboçando á pressa algumas vistas; mas as
-flôres são raras no terreno barrento, que é bom para fabricar louça, mas
-não para fazer brotar as rosas. Demais, Ambrosina é sempre a mulher da
-moda, e portanto leva d’alli o seu companheiro dizendo-lhe:
-
-—Meu riquinho, por mais que o senhor diga, as suas lindas vistas de
-Romainville não valem a cascata e o lago do Bosque de Bolonha.
-
-—Para a senhora, comprehendo isso; perdõe-me pois, nunca mais a trarei
-para este lado, é preciso ser pintor para o apreciar.
-
-—Meu amigo, é mister procurarmos a nossa _victoria_, que não poude
-seguir-nos n’estes caminhos cheios de barrancos, onde a gente a cada
-instante corre risco de cair n’um buraco, ou de se enterrar na areia!
-Vamos jantar ao _Ledoyen_ nos Campos-Elyseos, isso ha de mudar-nos
-completamente...
-
-—Ahi está o que são as mulheres! e falava a senhora em ir á Suissa! lá é
-que ha caminhos escarpados, difficeis de trepar!
-
-—Sim, mas está a gente na Suissa, inscreve o seu nome no registo das
-estalagens; e vê-se alli que os srs. Fulanos de tal passaram por aquelle
-sitio, e quizeram trepar o monte Righi.
-
-Este dia passa mui lentamente para o joven pintor, que almeja pelo
-momento em que poderá fazer o retrato de Lisa. E, posto que faça todo o
-possivel para ser com Ambrosina tão amavel, tão alegre como de costume,
-tem por vezes momentos de preoccupação, ou de distracção, que não escapam
-á sua zelosa amante; esta diz-lhe então de subito:
-
-—Em que é que está pensando?
-
-—Eu... em nada... estou-a ouvindo.
-
-—Está-me ouvindo? O que é que eu acabo de dizer?
-
-—O que acaba de dizer-me? já não sei o que foi, era então alguma coisa
-muito interessante?
-
-—Bem vê que não me estava ouvindo. Ah! olhe, Casimiro, eu não sei o que
-lhe aconteceu, mas, com toda a certeza, o senhor tem alguma coisa! anda
-pensativo, responde fóra de proposito ao que lhe digo. Oh! n’isto andam
-amoricos.
-
-—É que vendi o meu quadro, e ando a pensar n’aquelle que hei de fazer
-agora, aqui está o que é.
-
-—O senhor não fala verdade! não é n’isso que pensa. Oh! eu conheço bem o
-mundo! não me enganam assim!
-
-—Tanto peior para a senhora, porque as pessoas mais felizes são aquellas
-que se deixam enganar mais facilmente.
-
-—É possivel, mas não quero essa felicidade.
-
-Emfim, passa-se o dia e a noite tambem; Casimiro levanta-se muito cedo,
-escolhe a téla, arranja a palheta, e prepara um cavallete que já lhe não
-servia e que elle tencionava deixar em casa da sua vizinha, para não ter
-o trabalho de o levar e trazer todos os dias. Olha a cada instante para o
-relogio, receia ser indiscreto chegando antes da hora que se ajustou.
-
-Dão oito horas: Casimiro vae abrir a porta da escada, certifica-se de que
-não está ainda alli ninguem, depois vae buscar todos os objectos de que
-precisa, e sobe lentamente os dois andares.
-
-A porta de Lisa tem a chave na fechadura; mas vem ella pessoalmente
-abril-a, porque ouviu subir e desconfiou logo que é a pessoa por quem
-espera.
-
-—Oh! meu Deus! como o senhor vem carregado! exclama Lisa querendo
-desembaraçar Casimiro do seu cavallete.
-
-—Tudo isto é muito leve, menina, não se incommode. Posso entrar?
-
-—De certo; minha avó está a dormir, creio eu, mas, ainda mesmo que
-acordasse, eu disse-lhe hontem que o senhor havia de vir aqui fazer o meu
-retrato, e ella ficou muito contente. Disse-me assim: «Has de collocal-o
-deante de mim para que eu te veja sempre minha filha.» Ah! é que ella
-quer-me muito, a minha avósinha.
-
-—Bem vê pois a minha querida vizinha que, consentindo em se deixar
-retratar, já fez duas pessoas felizes!
-
-—É verdade. Se eu soubesse que era assim, teria accedido mais cedo. Creio
-que a avósinha está descançando; não faremos bulha.
-
-—Eu não tenho necessidade nenhuma de fazer bulha quando trabalho. Olhe,
-aqui tem o cavallete armado, estou ás suas ordens.
-
-—Mas o senhor é que manda; como quer que eu me colloque?
-
-—Como costuma estar; sente-se e pegue no seu trabalho.
-
-—O quê! devéras posso trabalhar!
-
-—Sem duvida, principalmente durante a primeira sessão, em que eu não
-copio senão o conjuncto da cabeça.
-
-—E não tenho precisão de olhar para o senhor?
-
-—Sim, algumas vezes, mas não sempre.
-
-Põem-se ambos ao trabalho. Lisa faz bainhas, o que não obriga a muita
-attenção. De vez em quando Casimiro diz-lhe:
-
-—Olhe para mim...
-
-O que ella se apressa a fazer; mas baixa bem depressa os olhos, porque
-encontra os do joven pintor que lhe diz então:
-
-—Mas a menina não olha par mim bastante tempo, mal pude apanhar-lhe a
-_nuance_ dos olhos.
-
-—É que o senhor encara-me tanto, que me intimida; isso perturba-me.
-
-—É preciso que eu olhe para a menina com attenção para reproduzir as suas
-feições, isso não deve intinmidar-a; não veja em mim senão um artista, ou
-antes um operario que faz o seu officio, e isso não a perturbará.
-
-—Ah! mas o senhor não é um operario!
-
-—Ora adeus, minha vizinha, todos nós o somos, cada um no seu genero;
-pois quem trabalha para viver não é operario? Ha porém, dirá a menina,
-profissões que exigem mais estudos, mais intelligencia que outras; mas
-esteja persuadida de que o poeta ou o escriptor que trabalha com o seu
-pensamento, que tira do cerebro os seus materiaes, tem ás vezes muito
-mais fadiga, muito maior lida em fazer a sua obra do que o marceneiro em
-aplainar as suas tábuas. Olhe para mim por um pouco.
-
-Lisa ergue os olhos, e d’esta vez torna a baixal-os menos depressa
-encontrando os de Casimiro. Este gosta de fazer conversar o seu modelo,
-o que não receiam fazer os pintores de grande talento, porque apanham
-melhor a expressão da nossa physionomia emquanto falamos, do que o
-fazem aquelles que nos prohibem de nos mexermos, o que nos dá então um
-ar aborrecido, ou contrafeito, ou affectado; eu poderia mesmo dizer
-apalermado.
-
-Lisa estima bastante poder conversar; em vida da sua ama, quando esta
-tinha uma venda de leite e fazia muito bom negocio, levou tres vezes a
-pequena ao theatro, e esta lembra-se sempre d’isso, porque gostou muito
-do espectaculo. Este divertimento e a leitura são os unicos que ella
-deseja; a dansa, os passeios, as festas campestres teem para ella poucos
-attractivos. Antes de cair doente, a boa da avó queria que a sua Lisa
-procurasse estas distracções; mas, em vez de ir vêr esses bailes que
-ha no termo de Paris com o falso nome de campestres, Lisa levava a sua
-companheira para um passeio pouco frequentado, para uma vereda solitaria,
-coberta de sombra, e alli, sentando-se na relva, lia um romance que
-tinha alugado economizando alguns soldos na despeza do sustento. Lia em
-voz alta; a velha adormecia, mas Lisa continuava a lêr, e ambas estavam
-contentes.
-
-—Se a minha vizinha gosta de lêr, diz Casimiro, posso emprestar-lhe
-alguns livros; tenho todos os romances de Alexandre Dumas, e estou bem
-certo de que lhe hão de agradar muito.
-
-—Ah! agradeço a sua bondade; mas, desde que a avó caíu doente, não tenho
-já tempo de lêr, vale mais trabalhar.
-
-—É mister todavia ter alguns instantes de repouso.
-
-—O trabalho que eu faço não cansa.
-
-Na primeira sessão, Casimiro não quer demorar muito tempo o seu modelo;
-levanta-se pois, dizendo:
-
-—Basta por hoje; obrigado, minha vizinha.
-
-—Ah! está acabado?
-
-—Acabado por esta sessão; permitte-me que deixe aqui o cavallete?
-
-—Oh! certamente. Ah! leva o quadro; mas o senhor não precisa d’elle sem
-mim!
-
-—Perdão, ha coisas em que posso trabalhar sem ter o modelo á vista.
-
-—Deixa-me ver?
-
-—Ainda não, peço-lhe eu. Está muito pouco adeantado; em tres ou quatro
-sessões, poderá ver á sua vontade. São dez horas, vou almoçar.
-
-—Já dez horas! é singular como o tempo passa depressa quando se está
-servindo de modelo. O senhor virá ámanhã?
-
-—De certo, se isto não a contraria.
-
-—Oh! de modo algum.
-
-A pequena ia dizer: _pelo contrario_, mas parou fazendo-se muito córada,
-e limita-se a murmurar:
-
-—Então, até ámanhã.
-
-No dia seguinte, Casimiro não falta a dirigir-se a casa do seu encantador
-modelo, que o vê agora chegar com prazer, e, sem ser _coquette_, tem
-todavia mais esmero no seu penteado, no arranjo dos seus cabellos;
-o joven pintor repara n’isto, não diz nada, mas fica secretamente
-lisonjeado, porque ha uma multidão de pequenas coisas que fazem presagiar
-as grandes.
-
-Trabalha-se, e conversa-se a meia voz; é quasi sempre de manhã que a avó
-descança melhor. Lisa levanta mais vezes os olhos para o seu pintor e
-sustenta um pouco melhor o fogo dos seus olhares; algumas vezes, comtudo,
-um vivo rubor lhe sobe á cara, emquanto Casimiro murmura:
-
-—Ah! como a menina se colloca bem! que lindo retrato eu vou fazer, sim,
-ha de ficar muito parecido; tenho as suas feições tão bem gravadas na
-memoria!
-
-—Então, já não é preciso que eu olhe para o senhor?
-
-—Oh! sim! sim! eu nunca a vejo bastante.
-
-—Que felicidade saber pintar!
-
-—Sim, tambem acho isso agora, e ainda ha pouco tempo nem o suspeitava!
-Ah! minha vizinha, saiba que se eu chegar a adquirir algum talento, é á
-menina que o deverei.
-
-—A mim! ora essa! não foi olhando para mim que o senhor fez essa linda
-paizagem que vendeu.
-
-—Não, mas foi vendo-a trabalhar sem descanço, n’este modesto aposento,
-sabendo que achava meio de prover ás necessidades de sua velha avô
-paralytica, que eu tive vergonha da minha existencia, da minha preguiça,
-que comprehendi que havia de lamentar um dia o ter empregado tão mal a
-minha mocidade e emfim que tomei a resolução de mudar de vida. Bem vê
-pois que, se eu obtiver um dia talento, é á menina que o deverei.
-
-Lisa não responde nada, porque está demasiadamente commovida, mas o seu
-olhar fita-se em Casimiro, e tem uma expressão tão terna, tão meiga, que
-d’esta vez é o pintor que deixa de trabalhar.
-
-Estes colloquios confidenciaes renovam-se todos os dias e tornam mais
-intimas as relações que existem entre o pintor e o seu modelo. Pouco a
-pouco, uma affectuosa confiança substitue a fria polidez. Conversam mais,
-fazem as sessões maiores, separam-se a custo, porque teem sempre alguma
-coisa para se dizerem; acham-se tão bem juntos, que Lisa impacienta-se
-e abre a porta quando Casimiro tarda alguns minutos. E, comtudo, nunca
-uma palavra de amor foi pronunciada n’estas sessões de todas as manhãs;
-mas ha coisas que a gente não tem precisão de dizer para se fazer
-comprehender, e o amor é uma d’essas coisas.
-
-O retrato adeantava-se; mas, como Casimiro queria fazer durar muito as
-sessões, achava sempre alguma coisa para pintar de novo, para retocar.
-Lisa não se queixava d’isso, pelo contrario, quando o seu pintor dizia:
-«Basta por hoje,» acontecia-lhe ás vezes exclamar:
-
-—Já! ah! parece-me que não trabalhámos muito esta manhã!
-
-Então Casimiro sorria-se, e continuavam a conversar. A rapariga examinára
-o retrato, e pulára de prazer vendo-se tão bonita. Tinha exclamado:
-
-—Ah! o senhor lisonjeia-me; eu não sou assim!...
-
-Não se atrevera a dizer: «Tão bonita!» Mas as mulheres param muitas vezes
-no momento de dizerem o verdadeiro fundo do seu pensamento.
-
-
-
-
-XIII
-
-Um rapazito endiabrado
-
-
-O retrato de Lisa fazia muitas vezes descuidar o de Ambrosina, e não era
-só em pintura que esta dama notava que se descuidavam d’ella. Casimiro ia
-a sua casa cada dia mais tarde, e, quando ella lhe lançava isso em rosto,
-elle achava por desculpa a nova paizagem que estava fazendo, as sessões
-que dava á sr.ª Proh ou a Rouflard e Ambrosina exclamava:
-
-—Mas não é possivel que o senhor não tenha acabado essas cabeças! E
-quando eu lhe peço para termos sessão, diz-me que não me quer fatigar. O
-senhor tem alguns amoricos, alguma nova ligação que arranjou; mas tome
-cuidado! eu o saberei.
-
-Um dia pela manhã, a sr.ª Montémolly, sem ter prevenido o amante da
-sua visita, levanta-se muito mais cedo do que costuma, faz-se vestir á
-pressa por Adriana, e chega a casa de Casimiro pelas dez horas. Perguntou
-ao porteiro se o rapaz tinha saído; Chausson respondeu que o não vira
-descer. Ella sobe os tres andares, vê a chave na porta da habitação do
-pintor, e entra sem bater, sem tocar a campainha, dizendo comsigo:
-
-—Vou surprehendel-o e saber emfim em que trabalha tão assiduamente.
-
-Ambrosina entra na saleta que serve de _atelier_ a Casimiro, e não acha
-alli senão Rouflard, que está ensaiando posições deante d’um espelho.
-
-—O sr. Casimiro não está aqui? diz Ambrosina, correndo os olhos pelo
-_atelier_.
-
-Rouflard, que reconheceu a dama e adivinha a situação, apressa-se a
-cortejar profundamente, respondendo:
-
-—Não, minha senhora, o sr. Dernold saíu.
-
-Apezar d’esta resposta, Ambrosina vae vêr ao quarto da cama, depois
-volta, dizendo:
-
-—É verdade, não está, effectivamente.
-
-—A senhora verificou que eu não menti, murmura Rouflard com um sorriso
-ligeiramente ironico.
-
-—Mas onde está? voltará breve?
-
-—Oh! não creio, minha senhora; o sr. Dernold disse: «Vou almoçar, e
-depois irei dar uma volta pelo Louvre, onde tenho que fazer uns estudos.»
-
-—É singular, o porteiro disse-me que Casimiro não tinha saído.
-
-—Oh! minha senhora! esse miseravel Chausson nunca vê o que se passa;
-fazia-me muitas d’essas quando era meu creado. Eu dizia-lhe: «Põe-te de
-sentinella, não deixes entrar os meus crédores, não quero receber senão
-senhoras...» e o imbecil fazia exactamente o contrario.
-
-—Mas o que faz o senhor aqui?
-
-—Eu, minha senhora, tinha vindo agradecer ao meu artista, que teve a
-bondade de se occupar de mim, e de me arranjar collocação em casa d’um
-pintor seu amigo, um pintor de historia; devo fazer um romano. E o sr.
-Casimiro disse-me: «Arranje um penteado á romana, ponha-se deante do
-espelho, ate uma fita vermelha á roda da cabeça, eu lhe direi depois se
-tem um falso ar de Romulo...» porque parece que é um Romulo que devo
-representar.
-
-Ambrosina não parece dar muito credito a esta historia romana. Passeia
-pelo _atelier_, pára por momentos, parece reflectir, e diz:
-
-—Não sei se devo esperar por elle.
-
-—A senhora tem para isso todo o direito, certamente; mas temo que espere
-por muito tempo. Quando um pintor vae ao Louvre, nunca se sabe quando de
-lá sairá.
-
-—O sr. Rouflard vem aqui muito amiude?
-
-—Sim, minha senhora, estou sempre ás ordens do meu artista quando elle
-tem precisão de mim.
-
-—E vê vir aqui muitas mulheres? não me engane...
-
-[Illustration: Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado...]
-
-—Minha senhora, posso affiançar-lhe que nunca vi aqui senão a senhora e
-a vizinha alli defronte; mas áquella não chamo eu uma mulher, o marido
-alcunhou-a de girafa, e fez muito bem.
-
-—Vamos, acredito no senhor, e vou-me embora, terá a bondade de lhe dizer
-que vim aqui... e que o espero em minha casa, não é verdade?
-
-—Executarei as suas ordens, minha senhora.
-
-Ambrosina retira-se, e Rouflard acompanha-a até ao patamar; mas aqui
-encontram-se de cara com a sr.ª Proh e o filho, o joven Fonfonso, que
-teima em querer montar-se na balaustrada. A amante de Casimiro tinha
-encontrado duas vezes em casa d’elle esta senhora estando em sessão para
-o retrato, conhecem-se pois um pouco. Cumprimemtam-se e trocam algumas
-phrases banaes.
-
-—Minha senhora, tenho a honra de a cumprimentar; a sua saude parece-me
-sempre perfeita?...
-
-—É? optima, muito agradecida, minha senhora. Ia a casa do sr. Casimiro?
-
-—Não, minha senhora, n’este momento não ia lá; vou comprar cabeça de
-vitella para meu marido, que não gosta d’outra coisa para o almoço. É um
-habito em que se pôz. Oh! meu marido é devéras insupportavel com a sua
-cabeça de vitella! A senhora vem de casa do meu vizinho, do sr. Casimiro?
-
-—Sim, tencionava dar-lhe sessão para o meu retrato.
-
-—O meu está acabado, perfeitamente acabado; estou muito satisfeita com
-elle, ainda que toda a gente sustenta que me pareço com a sr.ª Saqui, que
-Deus haja, nos seus bons tempos; parece que era uma bonita mulher. E a
-senhora já acabou a sua sessão?
-
-—Hoje não poude ser, o sr. Casimiro não está em casa, isto contraria-me,
-porque tinha sido hoje mais madrugadora do que costumo ser.
-
-—Ah! o meu vizinho já saiu...
-
-—Não! não! não! não saiu. Oh! oh! oh! hi! hi! hi! grita o Fonfonsinho,
-pendurando-se da balaustrada.
-
-—Fonfonso, não te balouces assim da balaustrada, que podes cair.
-
-—Mas quero eu balouçar-me!
-
-—Este pequeno é incorrigivel!
-
-—Perdão, minha senhora, mas parece-me que seu filho disse que o sr.
-Casimiro não tinha saído.
-
-—O pequeno sabe lá o que diz, minha senhora!
-
-—Sim, sim, eu bem sei onde está o pintor, onde elle vae todas as manhãs...
-
-—Aonde vae todas as manhãs, mas então, Fonfonso, bem vês que o sr.
-Casimiro saiu.
-
-—Não, porque elle vae lá acima, a casa da menina Lisa, para onde levou o
-cavallete e as tintas para estar a pintar como em sua casa. Hi! hi! hi!
-oh! oh! oh!
-
-Ambrosina muda de côr, e a sr.ª Proh escancara os olhos, exclamando:
-
-—O quê! o meu vizinho vae pintar em casa da pequena do quinto andar!
-palavra de honra, é a primeira vez que tal sei; mas este pequeno é
-extraordinario, minha senhora, sabe tudo, vê tudo o que se passa, não lhe
-escapa nada!
-
-—Quem será essa menina Lisa que recebe o sr. Casimiro?
-
-—É uma rapariga que vive com sua avó; a pobre velha está doente, meio
-paralytica; Lisa trabalha para a sustentar. Oh! é uma donzella honesta,
-muito capaz... pelo menos assim o creio.
-
-—É bonita?
-
-—Hum? bem sabe que isso depende do gosto, uma carinha que não é de todo
-desengraçada...
-
-—Não! não! não! Rouflard diz que a menina Lisa é um anjo. Oh! oh! oh! ah!
-ah! ah!
-
-—Ah! o Rouflard conhece-a, perdão, minha senhora, mas como é
-absolutamente preciso que eu fale ao Casimiro, tomo a liberdade de o ir
-procurar a casa d’essa menina. Não me disse que é no quinto andar?
-
-—Sim, a porta á direita...
-
-—A chave está sempre na fechadura. Hu! hu! hu!...
-
-Ambrosina não quer ouvir mais, e galga os andares como um valente soldado
-sobe ao assalto. Chega acima n’um instante; acha effectivamente a chave
-na porta á direita, abre de repente, e dá com a menina Lisa sentada
-defronte de Casimiro, com a sua costura na mão, mas sem trabalhar; pela
-sua parte, o joven pintor está ao seu cavallete, com a palheta e o pincel
-nas mãos, mas sem pintar. Á vista d’esta pessoa que abriu a porta e se
-conserva immovel á entrada do quarto, o artista e o seu modelo ficam
-espantados. Mas Casimiro é o mais impressionado, porque Lisa recobra logo
-a sua placidez e diz a Ambrosina:
-
-—É sem duvida a mim que a senhora procura, e é para me dar alguma obra a
-fazer? tenha a bondade de entrar...
-
-—Não, responde Ambrosina com um tom arrogante, não é a menina quem eu
-procuro, não é pela menina que estou aqui, é este senhor quem venho
-procurar, este senhor que já não tem um momento para me dedicar, que não
-acaba o meu retrato, porque está fazendo o da menina. Aqui está então a
-causa de todas as suas mentiras, da sua mudança de procedimento; eu bem
-sabia que n’isto andavam amoricos! é para estar com esta menina que já
-não tem tempo de me ir vêr. Ah! como os homens são falsos!
-
-A voz da mulher ciumenta torna-se estrepitosa, os seus olhares lançam
-chispas. Lisa está toda a tremer, grossas lagrimas lhe obscurecem os
-olhos, depois uma voz tremula e quebrada sae do leito, e diz:
-
-—Lisa! o que é isso? pareceu-me ouvir gritar; estás altercando com alguem?
-
-—Não, avósinha, não, não é nada...
-
-E a donzella deita para Ambrosina uns olhares supplicantes, como para lhe
-dizer:
-
-—Por quem é, não fale tão alto!
-
-Mas já Casimiro se tem levantado, pegando na palheta, no quadro e nos
-pinceis, e dirige-se para a porta dizendo á sr.ª Montémolly:
-
-—Faça favor de sair commigo, minha senhora, para pouparmos a esta menina
-uma bulha e uma scena pouco decorosa, faço isto, não pela senhora, mas
-em attenção a ella. Menina Lisa, desculpe-me de ter sido a causa d’este
-barulho, que acordou a sua avó, e pode ficar certa de que não tornará a
-acontecer similhante coisa.
-
-Casimiro sae immediatamente para o patamar; Ambrosina, furiosa de ciumes,
-hesita em saír, e olha para Lisa, que parece sempre pedir-lhe que se
-cale, mostrando-lhe o leito da enferma. A zelosa dama decide-se emfim,
-sae do quarto, depois de ter lançado sobre a rapariga um olhar ameaçador,
-depois desce atraz de Casimiro, que entra para sua casa. Ella entra
-tambem, e deita um olhar furioso sobre Rouflard, que se afasta encolhendo
-os hombros e olha para o pintor como para lhe dizer:
-
-—Não é culpa minha; o senhor é que não teve a prudencia necessaria.
-
-Ambrosina entra no _atelier_, e atira comsigo para uma poltrona,
-exclamando:
-
-—Ha muito tempo que duram estes amores, senhor, e que esta rapariga é sua
-amante?
-
-Casimiro, que recobrou todo o seu socego, põe-se a trabalhar na sua
-obrasinha, e responde:
-
-—Minha senhora, o ciume cega-a e faz-lhe dizer coisas indignas d’uma
-mulher que se preza. Estou fazendo o retrato d’uma menina que mora no meu
-predio; parece-me que isto é uma coisa que me é permittida, pois que o
-meu officio é tirar retratos. Achei alli uma cabeça encantadora, senti
-o desejo de a reproduzir na tela, tudo isto é muito natural. Propuz á
-menina Lisa que me servisse de modelo; ella a principio recusou-se por
-muito tempo, porque não quer deixar a avó um unico instante. Eu disse-lhe
-que iria trabalhar em sua casa, e ella recusava-se ainda; mas ganha
-apenas com que prover á sua existencia, e a doença de sua avó exige por
-vezes gastos inesperados; fiz comprehender a esta menina que, consentindo
-em me servir de modelo melhoraria a sua situação, e ella finalmente
-cedeu. A senhora pergunta-me desde quando sou amante d’essa pobre menina.
-Ah! se a conhecesse, não teria similhante pensamento! ella é recatada,
-honesta, não pensa senão no seu trabalho, em alliviar e consolar a sua
-velha doente, e eu, deante d’um procedimento tão digno, tão puro,
-ter-me-hia envergonhado de lhe dirigir uma unica palavra de amor.
-
-A sr.ª Montémolly, que tem escutado tudo isto com impaciencia batendo
-muitas vezes com o pé no sobrado, assim que Casimiro acabou de falar,
-exclama:
-
-—O senhor pensa que vou dar credito ás suas historias, aos seus contos!
-ao que parece, tem-me por tola! O senhor não tem dito uma palavra de amor
-a essa rapariga? O que estava então a fazer quando eu entrei? não estavam
-em atitude de quem trabalha, nem o senhor nem o seu modelo, olhavam um
-para o outro muito attentos, como se quizessem comer-se com os olhos; não
-ha necessidade de se falar de amor, quando se olha assim para alguem; os
-olhos dizem o bastante! e se o senhor não tivesse pensado em vir a ser
-amante d’essa rapariga, acaso teria feito um mysterio d’esse retrato, das
-suas idas ao quinto andar? E que tenciona então fazer do retrato d’essa
-menina?
-
-—É um estudo, pol-o-hei no meu _atelier_.
-
-—Pois saiba que o hei-de de fazer em tiras! E esse miseravel Rouflard, a
-quem o senhor tinha ensinado o recado, e que me disse que tinha ido ao
-Louvre! Estavam todos combinados para zombarem de mim!...
-
-—Eu não ensinei recado nenhum a Rouflard, elle disse-lhe o que quiz.
-
-—Bom! basta! para que não torne mais a acontecer similhante coisa, o
-senhor vai já deixar esta casa e não terá o capricho de subir todas as
-manhãs ao quinto andar; venha commigo é um momento emquanto lhe arranjo
-uma casa decente; mandarei buscar os seus moveis.
-
-Casimiro encolhe os hombros, e continua a pintar dizendo:
-
-—A senhora está doida!
-
-—Como é que o senhor disse?
-
-—Que a senhora não tem senso commum! e que eu não desejo mudar-me...
-
-—Não quer mudar-se para não deixar a rapariga da agua-furtada?
-
-—A rapariga da agua-furtada não entra para nada na minha resolução; não
-quero deixar esta casa, porque não quero fazer as suas vontades, porque
-estou cansado de ser escravo, e porque é tempo que isto acabe.
-
-—Ah! ahi está aonde o senhor queria chegar; é um rompimento que me
-propõe!...
-
-—Será um rompimento se a senhora quizer, mas repito-lhe que não me quero
-submetter mais a todos os seus caprichos, e que me não mudarei.
-
-—Casimiro! tome cuidado, se fica n’esta casa, não lh’o perdoarei...
-
-—Hei de ficar.
-
-—E é a essa delambida que o senhor me sacrifica! Oh! é indigno! é infame!
-
-—Nada de palavrões, minha senhora, bem sabe que commigo perdem o seu
-effeito; eu não a sacrifico a ninguem. Digo-lhe que não quero ser mais
-seu escravo, que quero ser senhor de mim, se isto lhe não convem, tanto
-peior!
-
-—É porque já me não ama que o senhor me fala assim!
-
-—Olhe, Ambrosina, seja franca, se eu fizesse o que me ordena, havia de
-desprezar-me e teria razão.
-
-—Oh! o senhor é um traidor, tem zombado commigo, mas não quero continuar
-a ser enganada! depois de tudo quanto eu tenho feito por sua causa...
-
-—Ah! eu estava á espera d’essa phrase! teria faltado á situação!
-Effectivamente a senhora tem feito muito por mim, eu não me esqueço,
-permitta-me sómente dizer-lhe que era sempre contra a minha vontade;
-que ha muito tempo que eu me queria dar ao trabalho e que a senhora
-incessantemente me impedia de o fazer, porque queria ter-me
-constantemente nas suas rêdes, impedir-me de ser livre emfim e de poder
-tomar qualquer resolução sem a consultar. Se a fortuna um dia me fôr
-favoravel, creia, minha senhora, que terei muito prazer em pagar tudo
-quanto lhe devo!
-
-—Casimiro, esqueça-se do que eu acabo de dizer, o ciume faz-me perder a
-cabeça, vamos, ceda-me ainda por esta vez, peço-lhe eu, venha commigo,
-deixe esta casa... e não lhe falarei mais n’essa menina da agua-furtada...
-
-—As suas instancias são inuteis, a minha resolução é inabalavel, não saio
-d’aqui.
-
-Ambrosina ergue-se furiosa, dá alguns passos pelo quarto, pára deante de
-Casimiro, e exclama:
-
-—Então, senhor, está tudo acabado entre nós!
-
-—Como a senhora quizer.
-
-—Sim, senhor, nunca mais na minha vida o tornarei a vêr!...
-
-Depois de haver dito estas palavras, Ambrosina sae arrebatadamente,
-fechando a porta com estrondo, desce a escada sem parar, depois atravessa
-o pateo, passa por deante do porteiro que lhe varre para cima, e dá
-alguns passos na rua. Mas alli, pára, volta-se, olha para a casa d’onde
-acaba de sair, e vê um rotulo pendurado por cima da porta. Entra
-immediatamente na casa e diz ao porteiro, que está ainda no pateo:
-
-—Tem cá alguns quartos para arrendar? vi um rotulo.
-
-—Sim, minha senhora, um magnifico primeiro andar, com sete casas, todo
-forrado de novo, e uma bella adega!
-
-—Quando está desoccupado?
-
-—D’aqui a dez dias, minha senhora...
-
-—Fica por minha conta...
-
-—O preço é de dois mil e duzentos francos.
-
-—Muito bem, arrendo-o eu.
-
-—Mas a senhora não o viu, se quer subir, os inquilinos saíram agora
-mesmo...
-
-—Não é preciso, repito-lhe que eu arrendo a casa. Tome, aqui tem o
-signal...
-
-E Ambrosina mette uma moeda de vinte francos na mão de Chausson,
-accrescentando:
-
-—Tome; mas ficar-lhe-hei muito agradecida se não disser ao sr. Casimiro
-que fui eu que arrendei a casa, aqui tem a minha morada e o meu nome...
-se quizer ir tirar informações...
-
-—Oh! minha senhora, eu bem vejo que não é preciso, quando se tem maneiras
-como a senhora; demais, a senhora é conhecida do sr. Casimiro!
-
-—Tome; aqui tem mais vinte francos, seja discreto, que não ficarei
-sómente n’isto...
-
-—Estarei ás ordens da senhora tanto de dia como de noite, sempre
-prompto!...
-
-Ambrosina retira-se, e Chausson admira as duas moedas de vinte francos,
-dizendo comsigo:
-
-—Isto é que é a nata das inquilinas! logo eu estava indo tirar
-informações!...
-
-
-
-
-XIV
-
-A senhora do primeiro andar
-
-
-Dez minutos depois da saída de Ambrosina, subia Casimiro ao quinto andar
-e entrava em casa da sua joven vizinha.
-
-Lisa está trabalhando, mas grossas lagrimas lhe rebentam dos olhos e por
-momentos caem sobre a sua costura. O seu lindo rosto parece ainda mais
-seductor sob esta nuvem de tristeza espalhada por todas as suas feições.
-Ao vêr Casimiro, o seu primeiro movimento é limpar os olhos e esforçar-se
-por sorrir.
-
-Mas o rapaz, que já lhe viu as lagrimas, apressa-se a correr para ella,
-exclamando:
-
-—Lisa, está chorando, e sou eu a causa da sua tristeza. Ah! perdôe-me, se
-soubesse quanto estou afflicto pelo que succedeu.
-
-—Oh! eu não lhe quero mal, não chorava...
-
-—Chorava, sim, em vão procura occultar-m’o.
-
-—É sómente, porque sinto haver sido a causa de que aquella senhora
-ralhasse com o sr. Casimiro; ella parecia muito encolerisada, disse que o
-senhor já não cuida do seu retrato e que é por culpa minha. Bem vê que
-fiz mal em consentir que fizesse o meu; mas está tudo acabado; não lhe
-servirei mais de modelo; poderá assim retratar aquella senhora; não lhe
-farei mais perder o seu tempo...
-
-—Não diga isso, Lisa, continuarei a retratal-a como de costume...
-
-—Oh! não, aquella senhora não quer; se ella voltasse e o encontrasse
-aqui, teriamos nova scena, isto assusta minha avó, e eu não quero...
-
-—Aquella senhora não voltará aqui; demais, não tem o direito de me
-impedir de fazer o que me agrada; conheço-a ha muito tempo, ella estava
-habituada a dar-me conselhos e eu ouvia-a como se ouve um antigo
-conhecimento...
-
-—Aquella senhora é mais velha que o sr. Casimiro?...
-
-—Sim, é por isso que eu lhe mostrava uma certa deferencia. Mas não é
-razão para que ella me tracte como uma creança...
-
-—E é bem bonita, aquella senhora, mas deitava-me uns olhos cheios de
-odio, que me faziam muita pena...
-
-—Não pense mais n’ella, não tornará a vel-a.
-
-—Parece-me que teria muito gosto em a ver, se ella me não tivesse deitado
-uns olhos tão terriveis. Sr. Casimiro, é preciso levar o seu cavallete e
-não vir mais aqui pintar...
-
-—Minha querida vizinha, espero que terá a bondade de me dar ainda as
-sessões de que necessito, não ha de querer que eu deixe um trabalho
-imperfeito; a sua cabeça é um estudo que me fará muita honra, assim o
-espero; permitta-me acabal-o com cuidado e satisfazer-lhe o que lhe devo
-por todas as sessões que me tem dado...
-
-—Mas o senhor não me deve nada, comprou-me o vinho quinado...
-
-—Oh! isso pagava apenas tres sessões! depois tivemos mais dez pelo menos,
-que eu pago bem mesquinhamente dando-lhe esta remuneração.
-
-Casimiro põe trinta francos em cima da mesa, volta a pegar na mão da
-rapariga, e aperta-a ternamente nas suas, dizendo-lhe:
-
-—Não chorará mais, esquecerá a scena d’esta manhã, e dar-me-ha ainda
-algumas sessões, não é verdade?
-
-Lisa sorri-se, e responde:
-
-—Far-lhe-hei a vontade, visto que assim o quer!
-
-Casimiro retira-se muito satisfeito.
-
-No dia seguinte, Rouflard, que entra todas as manhãs em casa de Casimiro
-para saber se elle tem algum recado para lhe dar, diz ao joven pintor:
-
-—Acabo de vêr o meu bom anjo, a menina Lisa, que está feliz como uma
-rainha, e isto graças ao sr. Casimiro!
-
-—Graças a mim! como é isso, Rouflard?
-
-—Porque, com o dinheiro que o senhor lhe deu hontem, comprou ella uma
-colhér, de prata á avó, uma bella colhér effectivamente, que lhe custou
-vinte e dois francos. A velha doente está encantada, era a sua mania,
-isto restituir-lhe-ha uma parte das forças.
-
-—Estimo immenso ter podido melhorar um pouco a posição de Lisa, que se
-mata com trabalho. E o sr. Rouflard tem ido a casa do pintor a quem eu o
-recommendei?
-
-—Sim, senhor, mas não para fazer de romano, é para fazer de saltimbanco.
-É verdade que isso para mim é indifferente! servir de modelo para um
-heroe ou para um salteador, é sempre servir de modelo.
-
-Decorrem alguns dias; Casimiro não deixa passar um unico dia sem subir a
-casa de Lisa, que lhe mostra a colhér de prata, dizendo-lhe:
-
-—Estou muito contente! mas acreditará o senhor que sonho todas as noites
-que m’a roubam? Isto faz-me pesadelos.
-
-—Isso ha de passar, minha vizinha, a gente habitua-se a tudo, mesmo aos
-talheres de prata.
-
-Casimiro não tornou a casa da sr.ª Montémolly, e, com grande surpreza
-sua, não ouviu falar mais d’ella desde o seu rompimento. Applaude-se por
-emfim quebrado um grilhão que já não podia supportar, e entrega-se com
-ardor ao trabalho, porque quer poder passar sem o socorro alheio. O seu
-quadrosinho de _genero_ vae saindo muito bom; o negociante de quadros que
-veiu vel-o, ficou muito satisfeito, e offereceu-lhe mesmo algum dinheiro
-adeantado, se elle o precisasse.
-
-Mas, nas suas idas e vindas a casa, Rouflard, que conversa amiude com
-o porteiro, repara, no penultimo dia do arrendamento, que emquanto o
-inquilino do primeiro andar faz a sua mudança, Chausson esfrega as mãos,
-apressa quanto pode essa mudança, depois, assim que vê a casa despejada,
-põe-se a encerar o patamar do primeiro andar, a varrer cuidadosamente os
-quartos desoccupados, e a observar se tudo está aceiado e se ha têas de
-aranha n’algum recanto.
-
-—Com a breca! como se afadiga com o seu primeiro andar! diz Rouflard ao
-porteiro, nunca esfregou tanto em minha casa, nos meus bons tempos!
-
-—É que mesmo nos seus bons tempos nunca teve uns aposentos tão
-esplendidos!
-
-—Está então arrendado o seu primeiro andar?
-
-—Sim, de certo, está arrendado, e magnificamente arrendado; presumo que
-se muda para cá ámanhã o novo inquilino, por isso fiz saír o outro hoje,
-para ter tempo de arranjar tudo. Ah! ah! quero que ao entrar aqui se veja
-tudo reluzente...
-
-—É algum dentista que vem para a casa?
-
-—Não... não é um dentista! é uma senhora... e mesmo uma bonita senhora...
-
-—Ah! entendo, é uma _cocotte_ de primeira ordem!
-
-—Não, senhor, pois eu arrendo lá a casa a _cocottes_! porventura o predio
-não está bem habitado, não contando com o senhor?...
-
-—Chausson, não me insulte; difficilmente acharia um homem tão fino como
-eu para morar na sua agua-furtada.
-
-—Sim, quando não está bebedo, tem ainda uma boa presença.
-
-—A tal senhora bonita tem marido?
-
-—Não; pelo menos, creio que não. A final de contas, como ella vem ámanhã,
-posso dizer ao senhor quem é.
-
-—Então eu conheço-a?
-
-—Deve tel-a visto em casa do sr. Casimiro, é aquella senhora que o vinha
-visitar tantas vezes, antigamente, porque não tem aqui voltado desde que
-arrendou o primeiro andar.
-
-—Como! seria a sr.ª Montémolly que arrendou o quarto do primeiro andar?
-
-—Exactamente, a sr.ª Montémolly, é o nome que está no seu bilhete.
-
-—Oh! com mil diabos!...
-
-Rouflard apressa-se a subir a casa do pintor, e diz-lhe:
-
-—Venho dar-lhe uma noticia! o quarto do primeiro andar foi arrendado pela
-sr.ª Montémolly, que se muda para cá ámanhã.
-
-Casimiro fica aterrado; julgava-se para sempre livre de Ambrosina, e ella
-vem morar para o seu predio; não duvida que não seja para espreitar o seu
-procedimento e saber que relações existem entre elle e a menina do quinto
-andar. Estas relações são muito innocentes, mas aos olhos do mundo, que
-procura por toda a parte o mal e nunca o bem hão de parecer criminosas. O
-que Casimiro receia sobretudo, é que as frequentes visitas que elle faz a
-Lisa lhe tragam ainda alguma scena desagradavel. Está a ponto de subir a
-casa da sua vizinha para a prevenir do que acontece, mas diz comsigo: Não
-devo assustal-a antes de tempo. Aguardemos. Ambrosina não arrendou talvez
-a casa para si, é tambem possivel que se não mude ainda ámanhã.
-
-Mas no dia seguinte não é já possivel a duvida: faz-se a mudança para o
-primeiro andar, e é effectivamente a sua antiga amante que Casimiro vê
-chegar; ouve já na escada a voz estrondosa da creada Adriana, que está
-muito contrariada por ter saído da casa da rua Meslée, que dava sobre o
-_boulevard_, para virem morar na rua Paradis-Poissonniére e tomarem uma
-casa onde o quarto da creada está debaixo da mesma chave que a dos amos.
-
-Então o joven pintor decide-se a subir a casa de Lisa. Pelo seu ar
-perturbado, commovido, a rapariga adivinha que succedeu algum caso
-desagradavel, e diz:
-
-—O senhor tem alguma coisa; aquella senhora voltou a vel-o; virá ella
-aqui, porventura.
-
-—Não, não é isso, Lisa, entretanto, é alguma coisa que a vae contrariar,
-tenho a certeza.
-
-—Então, fale!
-
-—Aquella senhora, porque effectivamente é d’ella que se tracta... o
-primeiro andar estava sem inquilino para este semestre... a menina sabe
-isto sem duvida.
-
-—Eu! não! pois eu occupo-me lá do que se passa no predio? E então, o
-primeiro andar?...
-
-—Está arrendado... por... por essa senhora...
-
-—Que veiu aqui.
-
-—Sim.
-
-—Ah! meu Deus! e virá para cá brevemente?
-
-—Muda-se hoje...
-
-—Ella está aqui! no predio. Ah! vá-se embora, sr. Casimiro, vá-se embora,
-muito depressa, se ella subisse e o encontrasse... tenho medo d’essa
-senhora.
-
-—Socegue, ella não virá mais a sua casa, estou persuadido d’isso; que
-motivo teria para cá voltar?
-
-—Virá procural-o...
-
-—Não, eu disse-lhe que já não a via. Estamos indifferentes, e se ella me
-quizesse falar, é a minha casa e não á sua que viria ter commigo...
-
-—Ah! o senhor diz isso para me socegar; d’aqui em deante não me atreverei
-muis a descer a escada; felizmento, não a desço muito! uma vez sómente,
-de madrugada, para ir fazer as minhas compras; mas não importa, sr.
-Casimiro, o meu retrato está acabado, como o senhor hontem confessou;
-portanto é mister que não venha mais visitar-me...
-
-—Ah! Lisa, então já não sou seu amigo? não quer receber-me em sua casa?
-
-—Não digo isso, mas não quero que essa senhora aqui o encontre.
-
-—Serei prudente, eu conheço os habitos d’essa senhora, e depois
-espreitarei as occasiões em que ella sair, incumbirei isso a Rouflard,
-posso contar n’elle.
-
-—Oh! é um excellente homem, esse Rouflard; é pena embriagar-se; meu Deus!
-parece-me que ouço subir!...
-
-—Não... é no quarto andar que abrem a porta...
-
-—Sr. Casimiro, leve d’aqui o seu cavallete... vendo-o em minha casa,
-dirão: «Então elle continúa a ir pintar lá?» e é preciso que se não possa
-dizer isto...
-
-—Pois sim, levarei o cavallete; mas isso não me impedirá de a vir ver
-todos os dias, é para mim um habito tão agradavel... não poderia mais
-trabalhar em todo o dia se não a visse pela manhã; outro tanto não
-acontece á menina...
-
-Lisa não responde, mas suspira olhando para Casimiro, e o seu olhar vale
-a melhor resposta. O joven pintor aperta-lhe a mão, e decide-se emfim a
-levar o cavallete.
-
-
-
-
-XV
-
-A menina Proh doente
-
-
-Durante todo este dia Casimiro teve uma especie de febre; ficou em casa,
-mas deixou entreaberta a porta da entrada para ouvir o que se passa na
-escada; não ouviu senão o joven Fonfonso cantar com a musica do carrilhão
-de Dunkerque:
-
- Uma esgalgada girafa
- Rima certo com garrafa;
- Mas chimpanzé pelladinho
- Rima bem com coitadinho!
-
-—Quem é que te ensinou essa infame cantiga? diz de repente a sr.ª Proh,
-saíndo ao patamar.
-
-—Foi Rouflard, que a canta muitas vezes quando desce da agua-furtada.
-
-—Que monstro que é esse borrachão do Rouflard! não comprehendo que o meu
-vizinho Casimiro empregue similhante homem; e tu, Fonfonso, se tornas a
-cantar essa cantiga, levas uma roda de açoutes e ponho-te a pão secco.
-
-—Sim? pois se me dás pão secco, direi que hontem, com a força d’um
-espirro, deixaste cair os dentes postiços.
-
-—Cala-te, Lucifer! Ó céus! e dizer que ha pessoas que desejam ter filhos!
-
-Casimiro não sae de casa senão para ir jantar. Quando chega ao patim do
-primeiro andar, passa muito depressa e depois sae sem levantar a cabeça.
-Vae á noite ao theatro, e só recolhe depois da meia noite, mas vê ainda
-luz nos quartos do primeiro andar. A sr.ª Montémolly entretem-se sem
-duvida em arranjar os seus novos aposentes. Elle, segundo o costume, vae
-buscar a luz ao cubiculo do porteiro; então este diz-lhe com ar malicioso:
-
-—O senhor sabe sem duvida quem tem agora a felicidade de ter por vizinha?
-
-—Não, sr. Chausson, e affianço-lho que isso me interessa pouco.
-
-—Não dirá o mesmo quando souber que arrendei o primeiro andar á sr.
-Montémolly, uma amiga intima do senhor.
-
-—Em primeiro logar, o sr. Chaussom faz amigas intimas de simples
-conhecimentos, depois, nós tivemos uma ligeira discussão, essa senhora e
-eu... estamos indifferentes.
-
-—Ah! que pena! aposto que foi por causa da maldita politica! isso
-malquista toda a gente, mas o senhor ha de fazer as pazes com essa
-senhora, que tem muito bonitas maneiras.
-
-—Dê cá a minha luz, e faça favor de não me tornar a falar em tal assumpto.
-
-Casimiro apressa-se a subir a casa, e o perteiro segue-o com a vista,
-murmurando:
-
-—Ah! elle está arrufado com esta senhora! como os homens são voluveis!
-dirá muita gente, e as mulheres tambem: então, é coisa que está na
-natureza!...
-
-No dia seguinte pela manhã, o joven pintor sobe a casa de Lisa; mas,
-antes d’isso, procurou Rouflard, e pôl-o de sentinella na escada, com
-ordem de cantar a canção dos _Lampiões_ se vir subir a inquilina do
-primeiro andar. D’este modo, não será surprehendido em casa da sua
-vizinha; terá descido os dois andares antes que Ambrosina tenha tido
-tempo de subir os seus...
-
-Lisa põe-se ainda a tremer vendo entrar Casimiro em sua casa. Mas este
-tranquilliza-a dizendo-lhe a ordem que deu a Rouflard, relativamente
-á senhora do primeiro andar. Casimiro não cessa de repetir a Lisa que
-não era para elle mais que um simples conhecimento, uma pessoa que o
-queria proteger, mas que abusava da influencia que tinha tomado sobre
-elle, influencia de que ha muito tempo estava, resolvido a libertar-se.
-A rapariga, que não sabe nada do que se passa no mundo, acredita tudo o
-que lhe diz o vizinho. Conversam largo espaço; o tempo corre tão depressa
-quando se está bem acompanhado! De repente, Lisa empallidece, exclamando:
-
-—Ouvi cantar!...
-
-—Mas não é o Rouflard, é aquelle maldito garoto do menino Proh!
-
-—É o mesmo, ouço muito barulho no predio é preciso ir-se embora.
-
-—É Adriana que a menina ouve, a creada da sr.ª Montémolly, quando esta
-rapariga está em alguma parte, não se ouve senão ella.
-
-—Mas vae ver o Rouflard na escada.
-
-Em primeiro logar, para o ver, será preciso que ella olhe para o ar.
-
-—Oh! estou bem certa que é a ordem que tem.
-
-—Vamos, socegue minha encantadora Lisa, eu me vou embora, mas ámnhã...
-
-—Oh! sim, ámanhã tratarei de me habituar a ter medo.
-
-Passam-se d’esta sorte oito dias. Casimiro sobe pela manhã a casa de
-Lisa, depois de ter posto Rouflard de sentinella na escada. Não tem
-encontrado Ambrosina, nem mesmo a tem visto de longe, entretanto está bem
-persuadido de que ella não veiu morar para o mesmo predio sem ter o seu
-plano. Sabe que a sr.ª Montémolly é bastante altiva, bastante orgulhosa
-para procurar fazer as pazes com elle; mas sabe tambem que é vingativa e
-deve ter formado o projecto de se vingar.
-
-Ao nono dia da sua entrada nos seus novos aposentos, alli pela volta do
-meio dia, Ambrosina sobe os quatro andares que vão ter á morada de Lisa,
-e entra de repente em casa da rapariga, que fica pallida e tremula ao seu
-aspecto.
-
-«Todavia a sr.ª Montémolly não tem aquelle ar terrivel com que uma vez
-se apresentou a Lisa; pelo contrario, é sorrindo, é com um ar amavel,
-gracioso mesmo, que ella se approxima, e lhe diz:
-
-—Perdão, menina, venho talvez incommodal-a, mas sou ha oito dias sua
-vizinha, moro no primeiro andar, soube, pela sr.ª Proh, que a menina se
-occupava em trabalhar em roupa branca, e venho perguntar-lhe se quererá
-trabalhar para mim?
-
-Lisa está de tal modo perturbada, que pode apenas balbuciar:
-
-—Mas, minha senhora, queira sentar-se... Perdão, não ouvi bem o que me
-disse.
-
-—Socegue, menina; pois eu metto-lhe medo?
-
-—Oh! sim, minha senhora, quero dizer, não, minha senhora, agora não...
-mas é que receava...
-
-—Que viesse ainda contender com o sr. Casimiro? Socegue, no outro dia
-fiz mal, convenho n’isso, mas eu sou muito arrebatada; aquelle senhor
-tinha-me faltado muitas vezes á sua palavra para o meu retrato e isto
-tinha-me encolerisado. E o retrato da menina está acabado?
-
-—Sim, minha senhora.
-
-—Mas o sr. Casimiro continúa a vir vizital-a?
-
-—Algumas vezes, minha senhora...
-
-—Ora, tem todo o direito de o fazer. Mas a menina ainda me não respondeu
-sobre o fim da minha visita; quer trabalhar para mim?
-
-—Oh! certamente, minha senhora, com muito gosto.
-
-—Muito bem. E borda tambem?
-
-—Sim, minha senhora.
-
-—Então, aqui tem estes lenços de cambraia, quero as minhas iniciaes
-bordadas; olhe, como este... pode bordar-m’as?
-
-—De certo, minha senhora.
-
-—Pois aqui lhe deixo estes seis e o modelo; mas faça isto de seu vagar,
-quando tiver tempo, eu não tenho pressa nenhuma. Emquanto ao preço, a
-menina dirá quanto quer.
-
-—Oh! minha senhora, ficarei satisfeita com o que a senhora me der.
-
-—Adeus, menina, ou antes, até á vista, porque ha-de permittir que eu
-venha algumas vezes saber se pensa em mim.
-
-—Oh! quando a senhora quizer.
-
-—Já lhe não metto medo, espero?
-
-—Não, minha senhora, pelo contrario, sinto agora que terei muito prazer
-em a receber.
-
-Estas palavras parecem surprehender Ambrosina que, entretanto, faz uma
-mesura graciosa á rapariga e retira-se. Lisa está bastante commovida, mas
-muito contente de não ter já em sua casa o cavallete. No dia seguinte,
-não falta a dar parte a Casimiro da visita que recebeu. Este não fica
-satisfeito com isso; abana a cabeça murmurando:
-
-—Ambrosina, que quer que a menina trabalhe para ella... Ambrosina,
-amavel, affectuosa com a menina.... hum! isso não é natural; tome
-cuidado, Lisa, não confie n’essa senhora, porque tudo isto esconde alguma
-perfidia!
-
-—Oh! sr. Casimiro, creio que não tem razão, e que d’esta vez é injusto
-para com essa senhora; já não tenho nenhum receio d’ella; pelo contrario,
-é uma coisa bem exquisita, parece-me que estou quasi a ter-lhe affeição...
-
-—Ah! é que a menina não suspeita de nada, não desconfia dos laços que lhe
-podem armar!
-
-—Laços? oh! aquella senhora tem um sorriso encantador... isso não pode
-occultar uma perfidia.
-
-—Bem se vê que não conhece o mundo.
-
-—Meu Deus! é então um conhecimento bem máu, pois que se deve sempre
-desconfiar d’elle!
-
-—D’esse modo, fará a obra que a senhora lhe deu?
-
-—Sem duvida, são uns lenços magnificos para bordar... mas é obra que ha
-de levar muito tempo.
-
-—E irá levar-lh’os a casa quando estiverem promptos?
-
-—Sim. Acaso não faço eu o mesmo á sr.ª Proh? porque havia de ser menos
-cortez com esta senhora do primeiro andar?
-
-Casimiro não diz nada, mas deixa Lisa, muito inquieto com a visita que
-ella recebeu.
-
-D’ahi a poucos dias cae doente a menina Angelina Proh; a mãe receia que
-seja uma constipação de peito; o pae sustenta que é uma febre miliar,
-e o menino Proh affirma que sua irmã está doente por ter comido uvada
-de mais. Mas as indigestões são ás vezes perniciosas, e podem dar logar
-a outras doenças; quer a uvada tenha ou não alguma coisa n’isso, o que
-é certo é que a rapariga tem uma grande febre, uma sede ardente, e por
-vezes um pouco de delirio.
-
-Os Proh não têem creada, porque o ex-professor sustenta que, n’uma casa
-onde ha duas mulheres, não se deve ter necessidade de tomar uma terceira
-para os arranjos domesticos, e que seria isso um luxo inutil. Não ha pois
-senão a sr.ª Proh para tractar de sua filha, porque o papá encerra-se na
-sua dignidade, e o Fonfonsinho, como quebra tudo quanto apanha, não pode
-ser utilizado. Como a joven Angelina tem estado bastante doente para que
-seja mister velar junto d’ella de noite, a sr.ª Proh anda que não pode
-comsigo, e diz um dia ao maride:
-
-—Senhor, eu não posso mais; se isto continua, vou tambem caír doente; ha
-duas noites que não durmo e eu não sou de ferro...
-
-—Eu nunca disse que a senhora era de ferro, se as mulheres fossem de
-ferro, seria isso bem incommodo nas relações que a natureza nos manda ter
-com ellas.
-
-—Vejamos, Castor, porque é que não quer tomar uma creada? a nossa posição
-permitte-nos isso...
-
-—A nossa posição é muito correcta como está: nós somos quatro, o
-quadrado perfeito, uma pessoa de mais em casa desarranjaria o equilibrio
-e a rectidão; não, a rectidão não é o termo próprio, devo dizer o
-rectangulo...
-
-—Oh! senhor, quanto me aborrece com os seus quadrados e as suas
-combinações. Quer então que eu caia doente?
-
-—Não, senhora, porque seria preciso dobrada tisana, dodrado xarope, e por
-conseguinte seria dobrada despeza; não poderia ser esse o meu desejo.
-
-—E’ todavia o que ha de acontecer se eu tiver de passar ainda esta noite
-velando á cabeceira de nossa filha. Quer o seehor ficar?
-
-—Eu? mas a senhora bem sabe que, em chegando a minha hora de dormir, é-me
-impossivel resistir-lhe; torno-me um arganaz, um buzio, se acham melhor,
-ainda que a comparação é estrambotica; eu por consequencia não seria de
-nenhuma utilidade.
-
-—Então é mister tomar uma enfermeira...
-
-—Uma enfermeira! introduzir uma estranha nos meus lares! Nunca! isso é
-estupido e perigoso.
-
-—Entretanto, declaro-lhe que não quero passar em claro a noite proxima;
-não poderia resistir... Ah! uma idéa!... a menina Lisa... sim, ella é
-muito obsequiadora, não se negará a vir um instante revzar-me; esta não
-dirá o senhor que é uma estranha... conhecemol-a perfeitamente.
-
-—A menina Lisa... sim, essa mora no predio. Em rigor, podemos occupal-a.
-
-—Subo immediatamente a casa d’ella; quero estar certa de ter alguem esta
-noite ao pé de minha filha.
-
-Lisa fica menos admirada vendo entrar em sua casa a vizinha do terceiro
-andar, para quem tem trabalhado muitas vezes. A sr.ª Proh explica-lhe
-immediatamente o motivo da sua visita, e a rapariga responde-lhe:
-
-—Oh! minha senhora, eu estimaria muito poder ser-lhe prestavel; mas, para
-ir para sua casa, teria de deixar minha avó...
-
-—Mas sua avó, emquanto está a dormir não tem precisão da menina;
-lembre-se de que pode ir lá para baixo ás dez horas da noite, e pela
-manhã ás sete e meia, oito horas quando muito, voltará para junto d’ella.
-Demais, sua avó não está melhor?
-
-—Sim, minha senhora, graças ao vinho quinado, passa muito melhor desde
-certo tempo para cá. Não é verdade, avósinha, que vae agora melhor?
-
-A velha levanta-se um poucochinho na cama, dizendo:
-
-—Sim, minha filha, sim, vou melhor. Ah! é que tu tractas bem de mim;
-e depois déste-me uma colhér de prata, e isso deu-me grande prazer.
-Mostra-a lá á nossa vizinha.
-
-—Oh! avósinha, isso pouco interessa a esta senhora.
-
-No entanto, para fazer a vontade á avó, Lisa mostra á sr.ª Proh a colhér
-de prata, que é muito simples.
-
-—É uma prova de que a menina faz as suas economias, diz Celeste, dou-lhe
-os meus parabens...
-
-Depois a sr.ª Proh approxima-se da paralytica, e diz-lhe:
-
-—Não é verdade que a senhora poderia dispensar a sua neta por uma noite,
-e permittir que ella venha velar á cabeceira de minha filha, que está
-doente? desceria só ás dez horas da noite e voltaria logo de manhã; oh!
-com isso me faria um grande serviço.
-
-—Sim, sim, pode ir; vae, Lisa, para obsequiares a senhora. Bem sabes que
-eu, em adormecendo á noite, não tenho mais precisão de ti. Oh! eu estou
-melhor.
-
-—Como! pois a avósinha consente em que eu a deixe uma noite inteira?
-
-—Sim, minha filha, sim; é preciso obsequiar esta senhora.
-
-—Pois bem, visto que a avósinha consente. Minha senhora, esta noite ás
-dez horas, estarei em sua casa.
-
-—Ah! muito agradecida, a menina é muito amavel; retiro-me sem mais
-demora, porque tenho que preparar a cabeça de vitella para meu marido;
-até á noite.
-
-Ás dez horas em ponto, assim que adquire a certeza de que sua avó dorme
-socegadamente, Lisa sae do seu quarto e dirige-se a casa da sr.ª Proh.
-Esta aguardava-a com impaciencia, porque tinha muita necessidade de
-dormir. Leva a sua joven vizinha para o quarto de cama de sua filha, e
-ahi a deixa, dizendo-lhe:
-
-—Angelina está hoje melhor, creio que não terá uma noite desassocegada;
-em todo o caso, aqui está em cima d’esta mesa tudo o que é preciso: a
-tisana sobre a lampada de espirito de vinho, assucar para a tisana, uma
-colherinha para a mecher, depois uma colhér de sopa para dar d’este
-xarope que vê n’esta garrafa; mas isto, sómente lh’o dará se ella não
-puder dormir e estiver agitada; comprehende bem?
-
-—Sim, minha senhora, tudo isso não é difficil.
-
-—Se por acaso sobrevier alguma coisa extraordinaria, acorde-me, eu durmo
-aqui no quarto do lado; mas espero que não acontecerá nada. Aqui tem uma
-grande poltrona onde ficará perfeitamente... e livros. A menina gosta de
-ler?
-
-—Oh! muito, minha senhora.
-
-—Então aqui tem um romance que a ha de captivar, está cheio de crimes,
-assassinatos, enforcamentos, torturas, é muito interessante. Angelina
-já o leu duas vezes; é desde esse tempo que ella tem tido delirio. Mas
-eu vou-me deitar, porque estou com muito somno; os meus homens dormem já
-como pedra em poco... vou fazer outro tanto; minha filha está socegada,
-não tenho precisão de lhe dizer que é mister não a acordar.
-
-—Oh! pode ir descansada, minha senhora.
-
-—Não se esqueça das minhas instrucções: uma colhér de xarope, sómente se
-ella estiver agitada.
-
-—Sim, minha senhora.
-
-E a sr.ª Proh retira-se. Lisa, que não deixou de trazer trabalho para
-fazer, senta-se a bordar. Passado algum tempo a doente pede de beber,
-e Lisa apressa-se a dar-lhe um copo de tisana. Angelina reconhece-a, e
-diz-lhe:
-
-—Ah! é a menina que me está velando... sim a mamã tinha-me prevenido...
-
-—Como se acha a menina?
-
-—Muito melhor.
-
-—Quer uma colhér de xarope?
-
-—Não, não é preciso... sinto que vou outra vez adormecer; agradecida.
-
-Effectivamente, a menina Proh torna em breve a pegar no somno. Lisa
-volta ao seu bordado, mas este genero de trabalho cansa muito a vista.
-Larga-o pois por um momento, e cede ao desejo de conhecer o romance que a
-sr.ª Proh lhe gabou. Senta-se para isso na grande poltrona; mas, no fim
-d’algum tempo, quer por fadiga quer por effeito do romance, Lisa adormece
-profundamente.
-
-São seis horas da manhã quando a sr.ª Proh entra no quarto da filha, e
-ainda Lisa esfrega os olhos.
-
-—Então, como se passou esta noite? pergunta Celeste. A nossa doente ainda
-está a dormir, é bom signal.
-
-—Oh! minha senhora, a noite foi muito socegada; a menina só pediu de
-beber uma vez.
-
-—Muito bem; então não tomou o xarope?
-
-—Não, minha senhora.
-
-—Ás mil maravilhas! Decididamente, creio que Angelina vae entrar em
-convalescença.
-
-—Minha senhora, visto que está levantada, permitte-me que volte
-immediatamente para junto de minha avó, não é verdade?
-
-—Sim, certamente, vá, minha menina, nós nos entenderemos a respeito da
-remuneração pela sua noite de véla.
-
-—Oh! minha senhora, não falemos n’isso, estimo muito ter podido
-obsequial-a!...
-
-E a joven enfermeira, com a pressa de subir a sua casa, está já na saleta
-de entrada, quando a voz da sr.ª Proh a chama:
-
-—Lisa, Lisa!...
-
-—O que quer, minha senhora?
-
-—Onde metteu a menina a colhér do xarope!... não a acho.
-
-—Não a acha!... deve estar no mesmo sitio, minha senhora; pois que não
-tive precisão de me servir d’ella...
-
-—Diz que não se serviu d’ella!... comtudo, a colhér não está já em cima
-da mesa... olhe, veja a menina...
-
-Lisa vê em cima da mesa, depois debaixo, depois em todos os moveis, em
-toda a parte, e a sr.ª Proh faz outro tanto do seu lado; mas não se acha
-a colhér.
-
-—É singular! diz Lisa.
-
-—E mais que singular! exclama Celeste, cuja physionomia tomou já um
-aspecto severo. Emfim, a menina bem sabe que eu deixei-lhe sobre esta
-mesa duas colheres de prata, uma pequena e uma grande, a pequena aqui
-está, mas que é feito da grande? é preciso que appareça, é preciso!
-não entrou aqui outra pessoa além da menina... logo é a menina a unica
-responsavel pela colhér...e a menina ia saindo com tanta pressa...
-
-—Oh! minha senhora, pois pode suspeitar que eu levava a sua colhér! ah!
-veja bem, minha senhora, esquadrinhe tudo... veja nas minhas algibeiras,
-no meu vestido. Oh! meu Deus! suspeitar-me de-furtar...
-
-—Eu não digo isso; mas algumas vezes, inadvertencia... sem fazer reparo...
-
-—Oh! veja, minha senhora, peço-lhe eu, faça favor de me revistar!...
-
-A sr.ª Proh apressa-se a passar revista ás algibeiras de Lisa; apalpa-a
-por toda a parte, ausculta-a como faria um cirurgião, examina-lhe até os
-sapatos, ainda que a rapariga tem o pé tão pequeno que o seu calçado mal
-poderia conter uma colhér pequena. Esta inspecção severa prova á esposa
-do antigo professor que Lisa não levava a colhér.
-
-—Então, minha senhora, está agora persuadida de que eu não levava nada?
-diz Lisa.
-
-—De certo, bem vejo que a não tem em si, mas então o que fez a menina á
-colhér? vamos... procure... atirou certamente alguma agua pela janella e
-deitou fóra tambem a colhér.
-
-—Não, minha senhora, não atirei nada pela janella.
-
-—Ou deixou-a caír n’alguma parte?
-
-—Eu não saí d’este quarto, minha senhora; não fui ao patamar...
-
-—Oh! ao patamar, de facto, não teria podido lá ir, porque eu fecho sempre
-com tres voltas a porta que dá para a escada; e tem um ferrolho de
-segredo... acabo agora de a abrir...
-
-—De modo que a senhora está bem certa de que eu não saí de sua casa esta
-noite durante o seu somno...
-
-—Valha-me Deus! não digo o contrario!... mas tudo isso não me restitue a
-minha colhér...
-
-—Ha-de se achar, minha senhora, ha de se achar no momento em que menos se
-pensar n’ella.
-
-—Mas onde diabo a escondeu?...
-
-—Para que quer a senhora que eu a tenha escondido? com que fim? porque
-motivo? Volto para juncto de minha avó, que deve estar agora acordada...
-a senhora fica bem certa de que não levo a sua colhér, não é verdade?
-
-—Estou certa de que não a tem em si... mas que diabo fez d’ella?
-
-—Oh! se é preciso pagar-lhe o valor da colhér, eu lh’o pagarei, chegarei
-a isso á força de trabalho; mas, por quem é, não fale em similhante coisa
-a minha avó, que lhe faria muito mal...
-
-—Está bem, menina, está bem, falarei a esse respeito com o sr. Proh.
-
-Lisa sobe para sua casa muito triste e com os olhos rasos de lagrimas,
-dizendo comsigo:
-
-—Suspeitarem de ter furtado! oh! é horrivel isto! O sr. Casimiro tinha
-muita razão em dizer que desconfiasse do mundo! E todavia esta senhora
-não pode querer affligir-me; mas que foi então feito d’aquella maldita
-colhér!...
-
-
-
-
-XVI
-
-Mais um caso extraordinario
-
-
-A sr.ª Proh não falta a contar esta aventura a seu esposo, e o professor
-exclama:
-
-—Não introduza nunca pessoas estranhas nos seus lares, eu tinha-a
-prevenido; ahi estamos com uma colhér de menos, por sua culpa.
-
-—Mas, senhor, a menina Lisa não é uma estranha... demais estou bem
-persuadida de que ella não levou a nossa colhér.
-
-—Então foi a colhér que se foi embora sósinha.
-
-—Eu apalpei-a, revistei-a bem por toda a parte e ella não a tinha.
-
-—Pensou a senhora revistar tudo... ha sitios mysteriosos onde se escondem
-muitas coisas; pergunte aos ladrões onde escondem os diamantes que
-roubaram!...
-
-—Oh! senhor, uma colhér de sopa não se esconde como um diamante, ainda se
-fosse uma das pequenas!...
-
-—Senhora, ha pessoas que teem grandes facilidades.
-
-Esta historia da colhér de prata desapparecida não tarda a saber-se em
-todo o predio, e a ser o assumpto de todas as conversações. Adriana, que
-a ouve contar no cubículo do porteiro, não falta a ir referil-a a sua
-ama, que a escuta muito atenta, mas sem fazer reflexão.
-
-—A senhora deu obra a fazer áquella rapariga, diz Adriana, mas quando
-ella aqui vier trazel-a, terei o cuidado de não lhe tirar a vista de
-cima, e de não deixar por ahi nada ao alcance da mão.
-
-—Quando ella aqui vier, diz Ambrosina, ficará a menina no seu quarto até
-que eu a chame. Não se esqueça disto...
-
-Adriana retira-se resmungando. O porteiro revistou o pateo e os canos das
-aguas; está persuadido de que a menina Lisa não é culpada. O Fonfonsinho
-canta na escada:
-
- Ficámos sem uma colhér de prata,
- Desde que Lisa velou minha mana
-
-E Rouflard, que ouve isto, apanha o rapazito pelos fundilhos das calças e
-suspende-o no ar, dizendo-lhe:
-
-—Aposto que foste tu, velhaquete, que pregaste a peça; provavelmente
-foste buscar a colhér durante a noite para tomares xarope.
-
-—Não é verdade... eu durmo com o papá, não me levanto de noite; isso é
-bom para o senhor.
-
-—Cala-te, sapo!...
-
-Os gritos do rapazinho fazem acudir os esposos Proh, assim como o jovem
-pintor. Ao saber dos boatos que correm a respeito de Lisa, Casimiro fica
-furioso; dirige-se à sr.ª Proh:
-
-—Espero, minha senhora, que não suspeite que Lisa lhe tenha furtado essa
-peça de baixela que lhe falta?
-
-—Eu não digo que foi ela que a tirou, mas digo que foi quem a perdeu;
-acha que isto me possa ser agradavel?
-
-—Minha senhora, eu fico responsavel por essa menina, e, aconteça o que
-acontecer, a senhora não perderá nada.
-
-—E eu, exclama Rouflard, repito que a menina Lisa é incapaz de commetter
-uma acção feia! é um modelo de probidade, como de juizo, de prudencia, de
-bondade. Quem trabalha sem descanço para sustentar uma velha paralytica,
-não deve um instante ser suspeitada.
-
-—Mas parece que a velha tem um grande amor pelas colhéres de prata,
-replica a sr.ª Proh, porque ella propria me mostrou uma que a sua Lisa
-lhe tinha comprado...
-
-—O que prova á senhora que ella não tem precisão da sua.
-
-—Abundancia de bens não prejudica, diz o professor.
-
-—Ahi está uma reflexão bem digna do sr. Prorata.
-
-Os esposos Proh voltam para sua casa cheios de colera. Casimiro
-apressa-se a subir a casa de Lisa. Acha-a com os olhos vermelhos
-de chorar; ella põe um dedo na bocca mostrando-lhe a avó. Casimiro
-comprehende que a rapariga occulta á pobre velha o caso da colhér; vae
-sentar-se ao pé da donzella e pega-lhe na mão, murmurando muito baixo:
-
-—Tem então ainda algum desgosto, Lisa, a menina que merecia ser tão feliz?
-
-—Ah! sr. Casimiro, o senhor sabe sem duvida a historia da colhér, ouço
-d’aqui o filho da sr.ª Proh que a canta na escada.
-
-—Sim... eu sei pouco mais ou menos...
-
-—Mas não acredita que eu tenha querido tirar uma colhér de prata á sr.ª
-Proh, não é verdade?
-
-—Pois a menina pode fazer-me similhante pergunta! acaso não sei eu o que
-a menina vale! ah! eu faço-lhe justiça, a sua alma é pura como o seu
-olhar...
-
-—E a senhora Montémolly, tem-n’a visto? sabe o que ella pensa a este
-respeito?
-
-—Não tenho visto essa senhora, não a encontro nunca, ella deve pensar
-como quasi todos os outros inquilinos do predio, que anda aqui
-brincadeira, ou antes maldade do rapazinho.
-
-—Não, elle não veiu ao quarto.
-
-—Mas a menina não dormiu um só instante em toda a noite?
-
-—Sim... dormi... até bastante tempo.
-
-—Pois então alguem poude entrar durante o seu somno, e tirar essa colhér;
-mas esteja socegada aposto que brevemente descobriremos essa pessoa...
-
-São passados seis dias, e os Proh não acharam ainda a colhér. Entretanto
-Ambrosina levou para sua casa a filha da sua amiga Florentina,
-emquanto esta foi tomar banhos do mar. A pequenita tem oito annos, e
-é muito bonita; mas sobrevem-lhe o sarampo, acompanhado d’uma febre
-violentissima. A menina Adriana, que tem muito medo de que se lhe pegue o
-sarampo, não se approxima do leito da doentinha senão de má vontade.
-
-Então Ambrosina sobe de manhã cedo a casa de Lisa, que primeiramente se
-põe a tremer ao seu aspecto, mas logo se tranquilliza ao ver o sorriso
-d’esta senhora, que lhe diz:
-
-—Menina, venho pedir-lhe um obsequio; tenho em minha casa a filha d’uma
-das minhas melhores amigas, que m’a confiou emquanto dura uma viagem que
-ella era obrigada a fazer; tenho os maiores cuidados com a Adelinasinha;
-mas este anjinho está n’este momento com sarampo e com uma febre
-ardentissima; a minha creada, que tem medo do sarampo, não tracta d’ella
-muito bem. Emfim, a menina fazia-me um grandissimo obsequio se quizesse
-vir passar esta noite á cabeceira da doentinha. Como sei que teve essa
-complacencia para com a sr.ª Proh, pensei que se não recusaria a fazer
-outro tanto por mim.
-
-—Sim, minha senhora, responde Lisa suspirando sim, passei uma noite á
-cabeceira da filha da sr.ª Proh, mas deve saber que desgosto isso me
-occasionou; desappareceu n’essa noite uma colhér de prata, que não se
-achou mais; a sr.ª Proh bem sabe que não fui eu que lh’a tirei; mas,
-apesar d’isso, quem sabe! ha talvez ainda pessoas que suspeitam de mim.
-
-—Este meu passo, deve provar-lhe que eu não sou d’essas pessoas; ao
-contrario, pedindo-lhe que vá ficar de noite em minha casa, pensei que
-isso poria termo a todos esses contos inconvenientes. A menina não se
-pode recusar...
-
-—Mas, minha senhora...
-
-—Não lhe peço que vá ás dez horas, desça um pouco antes da meia noite;
-depois, voltará cedo para sua casa. Bem vê que sua avó não terá tempo de
-dar pela sua ausencia...
-
-—Minha senhora, não me atrevo a recusar; entretanto isto custa-me muito;
-tenho tanto desgosto pela noite que passei em casa da sr.ª Proh.
-
-—Isso é uma creancice; em minha casa nada tem que recear. Até á noite,
-alli pela volta da meia noite... ou antes se quizer.
-
-—Oh! prefiro ir tarde.
-
-—Muito bem, está tractado; espero pela menina, porque quero eu mesma
-apresental-a no quarto da minha doentinha.
-
-Ambrosina retira-se. Lisa deseja ardentemente ver Casimiro para lhe dar
-parte da sua nova contrariedade; o joven pintor não se faz esperar muito
-tempo. Ao saber o que a sr.ª Montémolly acaba de pedir a Lisa, fica
-bastante surprehendido, e parece não gostar de que esta tenha acceitado.
-
-—Acaso fiz mal em acceder a ir ficar de noite em casa d’essa senhora? diz
-a donzella.
-
-—A menina não se podia excusar, comprehendo, tendo-se já prestado a ir a
-casa da sr.ª Proh.
-
-—E depois, aquella senhora é agora muito amavel commigo; bem vê que não
-dá credito aos aleives que se teem espalhado por causa d’aquella colhér
-perdida.
-
-—Vejo; effectivamente, o procedimento d’essa senhora prova que ella
-faz-lhe justiça; e todavia custa-me a acreditar que ella lhe queira bem...
-
-—Porque não?
-
-—Ah! porque... emfim, vá esta noite velar a Adelinasinha, mas ámanhã, de
-manhã cedo, eu espreitarei a sua volta para casa.
-
-—Oh! voltarei muito cedo.
-
-É meia noite menos alguns minutos quando Lisa bate á porta da senhora do
-primeiro andar. É a gorda Adriana que vem abrir-lh’a e a introduz junto
-de sua ama, que recebe a donzella com um sorriso que não é talvez bem
-franco, mas que quer parecel-o. A sr.ª Montémolly apressa-se a conduzir
-Lisa para um lindo quarto onde dorme a doentinha, dizendo:
-
-—Puz Adelina no quarto que reservo para a mãe d’ella, quando habita no
-campo e vem por acaso a Paris. Penso que a menina ficará aqui muito bem;
-por este corredor pode-se sair sem haver necessidade de acordar ninguem.
-
-—Oh! minha senhora, eu não terei necessidade de sair esta noite, para quê?
-
-—Ahi tem uma poltrona onde poderá repousar e mesmo dormir um pouco, se a
-doentinha estiver em socego. Aqui tem livros... Ah! quer cear?
-
-—Oh! não, minha senhora, eu nunca ceio.
-
-—Em todo o caso, se tiver fome, aqui tem bolos, biscoitos e vinho. Isto
-é tisana para a pequena; n’esta garrafinha está um calmante. E então,
-aquella tola da Adriana não poz aqui uma colhér! Adriana! Adriana!...
-
-A creada acode esfregando os olhos.
-
-—Adriana, traga para aqui uma colhér grande e algumas pequenas; se esta
-menina quizer tomar vinho com assucar, não se ha de servir da mesma
-colhér que empregar para a tisana.
-
-A creada sae, e volta logo em seguida com uma colhér grande e duas
-pequenas, que ella põe em cima da mesa de cabeceira, dizendo:
-
-—Isto faz uma colhér grande e tres pequenas... porque já cá estava uma.
-
-—Está bem, Adriana, está bem! ninguem lhe pergunta a conta.
-
-—Mas eu desejo muito fazer ver isto á senhora.
-
-—Vá-se deitar.
-
-—Isso e o que eu quero é a mesma coisa.
-
-—Agora, menina Lisa, vou tambem descançar... a menina tem o que lhe é
-preciso; não deseja mais nada?
-
-—Não, minha senhora, muito agradecida.
-
-—Quando a pequenita acordar, é preciso fazel-a beber; depois, se tossir,
-deve-lhe dar o calmante.
-
-—Pode ir socegada, minha senhora.
-
-—Boa noite, até ámanhã. Virei cedo saber noticias da minha Adelina.
-
-Lisa fica só. Põe-se a admirar o quarto onde se acha; a mobilia é toda
-nova e d’um gosto lindo.
-
-—Que felicidade não é viver n’um aposento tão bonito, diz ella comsigo;
-mas a final de contas, tambem aqui se pode estar muito doente, e ter
-tanto desgosto como n’um modesto quarto de qualquer agua-furtada; eis
-aqui uns livros, mas não lerei nenhum, trouxe o meu trabalho, vou
-trabalhar.
-
-Lisa deita-se ao bordado. D’ahi a pouco a Adelinasinha acorda, e ella
-dá-lhe de beber; um pouco mais tarde a creança tosse, e ella faz-lhe
-tomar uma colhér do calmante. Assim se passa uma parte da noite. Pela
-volta das tres horas, o somno apodera-se de Lisa, que procura em vão
-resistir-lhe porque n’ella a necessidade de dormir era tão imperiosa que
-não a podia vencer. Mas, como a sua doentinha dorme mui socegadamente, a
-joven enfermeira não tarda a fazer outro tanto.
-
-Cerca das sete horas da manhã, Lisa acorda, e quasi no mesmo instante,
-abre-se uma porta e aparece a sr.ª Montémolly embrulhada n’um lindo
-roupão. Approxima-se da cama dizendo:
-
-—Então, como vae a pequenita? passou bem a noite?
-
-—Sim, minha senhora, muito bem; a menina tossiu pouco e dormiu
-optimamente; eu mesma cedi um pouco ao somno esta madrugada.
-
-—Não ha mal nenhum n’isso, visto que a pequena não precisava de nada. Ah!
-ahi acorda ella. Bons dias, Adelina, como te sentes esta manhã?
-
-A pequenita responde que se sente melhor, mas põe-se a tossir; Ambrosina
-exclama logo:
-
-—Dê-me uma colhér do calmante, para eu lh’o fazer tomar; isso ha de
-aplacar-lhe a tosse.
-
-Lisa corre á mesa onde estava o frasquinho e a colhér.
-
-—Então, dê-me esse calmante, torna Ambrosina, bem ouve a creança estar a
-tossir...
-
-—Sim, minha senhora, sim... mas é que... não acho a colhér...
-
-—É que a pôz n’outro sitio... faça favor de a procurar...
-
-—Valha-me Deus! é o que eu estou fazendo, minha senhora; mas não percebo
-isto... não a vejo...
-
-—Mas a menina sabe muito bem que lhe ficou aqui uma, não é verdade?
-
-—De certo, minha senhora, pois que me servi d’ella duas vezes esta
-noite...
-
-—Então é que procura mal. Adriana! Adriana!... ah! é capaz de estar ainda
-a dormir... Adriana!...
-
-Chega emfim a creada, esfregando os olhos:
-
-—O que é, minha senhora?
-
-—É que esta menina não acha a colhér que estava aqui hontem á noite...
-
-—Ah! bem me lembro, havia uma grande e tres pequenas...
-
-—As tres pequenas aqui estão, diz Lisa, mas não comprehendo como a grande
-não está aqui tambem...
-
-—Ora! exclama a menina Adriana, olhem que admiração! terá ido juntar-se
-com a da sr.ª Proh...
-
-—Oh! menina, é indigno isso que está dizendo! Minha senhora, acaso vae
-tambem pensar que tenho eu a sua colhér?
-
-—Menina, o que quer que eu lhe diga... quando os factos falam... é
-preciso render-se a gente á evidencia; a menina mesma concorda em que
-tinha aqui uma colhér de prata...
-
-—Sim, minha senhora, sim convenho n’isso; repito-lhe que me servi d’ella
-esta noite para dar o calmante á menina...
-
-—Pois bem! vossemecê ficou sósinha aqui esta noite... e esta manhã esse
-objecto desappareceu. Que outra pessoa, por consequencia, pode tel-a
-tirado?
-
-—Oh! minha senhora, reviste-me, faça favor... verá que o não tenho...
-
-—É inutil, quando alguem tira uma coisa não a esconde em si.
-
-—Oh! é o mesmo, exclama Adriana, vou revistal-a eu; porque, emfim, não
-quero que se perca prata nenhuma na casa onde eu estou a servir.
-
-A creada corre ás algibeiras de Lisa, e vira-as inteiramente; depois
-apalpa a rapariga de alto a baixo, e termina a sua inspecção exclamando:
-
-—Nada! oh! affianço que não tem a colhér em si.
-
-—Então, minha senhora, bem vê, diz Lisa.
-
-—Vejo que a não escondeu em si; mas, se não a acharmos, é que a menina a
-terá levado para outra parte.
-
-—Mas para onde, minha senhora, se não saí d’este quarto?
-
-—Quem me prova isso? por este corredor pode-se sair perfeitamente sem
-acordar ninguem...
-
-—Oh! minha senhora, é horrivel pensar isso. Meu Deus meu Deus! sou bem
-desgraçada!...
-
-Lisa rompe em soluços. Adriana tem-se posto de gatas e esquadrinha
-debaixo de todos os moveis; mae em vão se procura por toda a parte, a
-colhér não se acha. Ambrosina approxima-se da pobre Lisa, que se afflige
-muito, e diz-lhe:
-
-—Socegue, não darei seguimento a este negocio, o que outrem talvez faria,
-vá, não a demoro mais. Tomarei unicamente a liberdade de dizer ao sr.
-Casimiro que não é feliz na escolha dos seus novos conhecimentos.
-
-Lisa não escuta mais nada; tarda-lhe sair d’aquelle quarto, que ella
-achou tão bonito na vespera. Caminha, mal podendo suster-se, e chega
-assim até á escada. Mas, no segundo andar, encontra Casimiro, que a
-estava esperando, e que exclama, vendo-a lavada em lagrimas:
-
-—O que foi? que succedeu? o que tem a menina ainda? o que é que lhe
-fizeram para chorar assim?
-
-Lisa conta a Casimiro o que se acaba de passar, e refere-lhe as palavras
-de Ambrosina, que lhe disse que ella teria podido sair sem acordar
-ninguem.
-
-—Mas então, diz Casimiro, podia-se tambem chegar até junto da menina sem
-ser ouvido. A menina dormiu durante a noite?
-
-—Ai! sim, pelas tres horas não pude resistir ao somno, é mais forte do
-que eu.
-
-—Ah! que fatalidade, porque durante o seu somno poude alguem entrar
-n’esse quarto..
-
-—Não me parece porque teria acordado.,.
-
-—Suppôr que a menina tenha tirado essa colhér, isso não tem senso commum,
-depois do que aconteceu em casa da sr.ª Proh... que lhe causou tão grande
-degosto!
-
-—É justamente por isso que me accusam ainda, a creada d’essa senhora
-disse-me: «A colhér foi-se juntar cem a da sr.ª Proh.»
-
-—Isso é indigno!... mas socegue, Lisa, ha em tudo isto um mysterio que
-eu conseguirei descobrir, não descançarei emquanto a sua innocencia não
-estiver completamente reconhecida.
-
-O joven pintor consegue acalmar um pouco a magua de Lisa, acompanha-a até
-á sua porta, e deixa-a promettendo-lhe mais uma vez que ha-de obrigar
-toda a gente a fazer-lhe justiça. Mas Casimiro promettia o que elle
-proprio não sabia como cumprir, porque debalde dava tratos á imaginação
-para adivinhar como era que as colhéres de prata desappareciam dos
-quartos onde Lisa passava a noite.
-
-Depois de ter entrado um momento em sua casa, Casimiro sae, decidido a
-ir ter com Ambrosina, para saber se ella crê devéras que a rapariga seja
-criminosa. Mas já a aventura da noite é sabida em todo o predio; porque
-o primeiro cuidado de Adriana foi ir dizer ao porteiro que a menina Lisa
-deu em casa de sua ama segunda representação da noite em que ficara em
-casa da sr.ª Proh. Chausson, que sente certa sympathia pela inquilina do
-quinto andar, tem muita pena de ser obrigado a julgal-a criminosa, mas
-Rouflard, que escutou a creada de Ambrosina, diz-lhe:
-
-—A menina é uma tola em ter má lingua! é mister ser imbecil, depois das
-historias da colhér perdida em casa da sr.ª Proh, para suppôr que uma
-rapariga que quizesse commetter um furto repetisse exactamente a mesma
-historia dois andares mais abaixo...
-
-—Pois bem! então onde está a colhér?
-
-—Que sei eu? debaixo das suas saias talvez....
-
-—O senhor insulta-me, eu sou uma rapariga honrada, toda a gente o sabe, e
-tenho orgulho n’isso.
-
-—Quem é honrada, não se gaba de o ser, não faz mais que o seu dever....
-
-—Fica-lhe bem falar assim, o senhor que bebe o _rhum_ que lhe mandam
-comprar. Ah! eu sei essa historia; o porteiro tem-me contado as suas
-proezas.
-
-—Contou-lhe tambem as d’elle, quando era meu creado?
-
-—O senhor teve um creado? oh! é boa pilheria...
-
-—Pouco me importa que o acredite ou não, não é de mim que se tracta, é da
-menina Lisa, que eu lhe prohibo accusar de furto.
-
-—O senhor prohibe-me! Ah! eu não faço caso das suas prohibições, sim, a
-menina Lisa furtou uma cochér, ou duas, para melhor dizer...
-
-Adriana dizia isto gritando com todas as suas forças; Rouflard está
-furioso. Ao barulho que se faz no patamar do primeiro andar, quasi todos
-os inquilinos do predio teem saído de suas casas, e Casimiro chega alli
-no momento em que Ambrosina vinha tambem á escada para ordenar á sua
-creada que se callasse.
-
-
-
-
-XVII
-
-O que era
-
-
-Casimiro pára deante de Ambrosina, dizendo-lhe.
-
-—E a senhora tambem acredita que aquella menina lhe tenha tirado essa
-colhér de prata que lhe falta?
-
-Ambrosina tracta de dominar a impressão que lhe causa a vista de
-Casimiro, com quem ella se não tinha encontrado desde a altercação que
-dera em resultado o rompimento das suas relações, e responde-lhe com um
-tom levemente ironico:
-
-—Na verdade, sinto muito o que acontece, sobretudo por sua causa; lamento
-que seja a sua protegida aquella a quem o senhor sacrificou uma antiga
-amizade, que se tenha tornado culpada d’uma acção tão reprehensivel, mas
-é forçoso reconhecer o que é, o que não se pode negar...
-
-—Mas, minha senhora, essa menina tem sido sempre um modelo de
-honestidade, de bom comportamento. A senhora sabe como ella trabalha para
-que a sua velha paralytica não sinta falta de coisa alguma...
-
-—Tudo o que quizer, senhor, mas então ache-me a colhér...
-
-—Podia ter entrado alguem em sua casa emquanto Lisa dormia, porque ella
-dormiu.
-
-—Quem queria o senhor que entrasse... ladrões? mas o porteiro havia de
-saber se entraram alguns no predio, e o senhor não suppõe, presumo eu,
-que seja alguem da minha casa que tenha entrado no quarto onde a menina
-Lisa estava velando a Adelinasinha... Ella dormiu, diz o senhor, dil-o
-ella, mal quem o prova?
-
-—Ora! demais, exclama a sr.ª Proh, que desceu do terceiro andar para
-se metter na conversação; não se dirá que em minha casa poude alguem
-entrar até junto da enfermeira; depois, ha em tudo isto alguma coisa que
-deve fazer condemnar Lisa, é o amor, a paixão da avó pelas colhéres de
-prata, a sua menina comprou-lhe uma ultimamente, que ella se apressou a
-mostrar-me. E’ provavel que a velha tenha querido ter outras...
-
-—A senhora está a calumniar pessoas honradas, não o consentirei!...
-
-—Eu não calumnio, digo o que é e custa pouco a dizer: Ella está
-innocente! está innocente! então onde estão as nossas colhéres?
-
-Uma senhora que mora por cima de Ambrosina, que tem cincoenta annos, o ar
-muito distincto, o aspecto frio, severo mesmo, e não fala a ninguem no
-predio, mas que, attrahida pelo barulho que se faz na escada, ouviu tudo
-o que se acaba de dizer no patamar do primeiro andar, desce tambem ahi
-por sua vez, e diz a Casimiro:
-
-—O senhor não crê a menina Lisa culpada, nem eu tão pouco; mas ha em tudo
-isto um mysterio que é preciso descobrir, estou persuadida de que o hei
-de conseguir eu...
-
-—Ah! minha senhora! restituirá a vida a essa pobre Lisa, porque ella
-morrerá de desgosto se a sua innocencia não fôr por todos reconhecida...
-fale, o que tenciona fazer?...
-
-—Senhor, para isso é preciso que essa menina consinta em vir passar esta
-noite em minha casa, dir-lhe-hei que minha irmã, que vive commigo, está
-doente, e que é preciso que alguem a fique velando...
-
-—Ah! minha senhora, Lisa não quererá; depois do que lhe aconteceu duas
-vezes, como quer a senhora que ella consinta ainda em velar alguem?
-
-—Consentirá se o senhor se encarregar de lhe pedir, se lhe disser que é
-para ficar certa da sua innocencia que lhe pede este ultimo sacrificio
-d’uma noite...
-
-—Oh! minha senhora, se assim é, eu a decidirei a ficar velando esta noite
-em sua casa.
-
-—Pois bem! então, mande-a vir á meia noite. Pedirei a estas senhoras que
-estejam em minha casa um pouco antes.
-
-—Para quê? pergunta a sr.ª Proh.
-
-—Para serem testemunhas do que lá se ha de passar, e, como espero,
-reconhecerem a innocencia de Lisa.
-
-—Oh! a mim é-me impossivel estar de véla, isso constipa-me...
-
-—Eu não faltarei, diz Ambrosina, antes da meia noite terei a honra de a
-ir visitar.
-
-—Muito bem, com o sr. Casimiro e commigo, será o sufficiente. O senhor
-terá a extrema bondade de vir durante o dia dizer-me se Lisa consente em
-vir ficar de véla em minha casa?...
-
-—Vou immediatamente lá acima, minha senhora, e em breve terá a sua
-resposta.
-
-—Muito bem. Minhas senhoras, tenho a honra de as cumprimentar.
-
-A sr.ª Durmont, é este o nome da inquilina do segundo andar, sobe para
-sua casa, deixando cada vizinha a fazer os seus commentarios.
-
-—Eu não creio nada que esta senhora descubra o mysterio, diz a sr.ª Proh.
-
-—Ficará tambem sem uma colhér, murmura Adriana.
-
-A sr.ª Montémolly manda calar a creada, e entra com ella para casa.
-
-—Ahi está uma senhora respeitavel, exclama Rouflard olhando para o
-segundo andar; aquella não é de continhos, diz lá comsigo: A pequena
-não tirou as colhéres, mas ha n’isso um mysterio, logo é preciso
-descobril-o...
-
-—E como se haverá ella para isso? diz o porteiro.
-
-—Isso está acima da sua capacidade...
-
-—E da sua tambem...
-
-—Vossê esquece-se da sua posição, meu ex-_frontinio_!...
-
-—Qual _frontinio_!... eu sou guarda-portão...
-
-—Então, varra melhor o pateo.
-
-Casimiro não perde um instante; sobe a casa de Lisa, que elle acha sempre
-na mesma tristeza, e diz-lhe:
-
-—Tenho boas noticias a annunciar-lhe. A sr.ª Durmont, esta senhora que
-mora no segundo andar, interessa-se pela menina e não duvida da sua
-innocencia...
-
-—Ah! agradeço-lhe muito; com effeito, essa senhora sempre olhou para mim
-com bondade...
-
-—Mas não é só isso; ella quer que a verdade seja conhecida de todos, que
-se descubra o que é feito das duas colhéres que desappareceram.
-
-—Ah! como serei feliz se ella consegue fazer isso; é a vida, porque é a
-honra que essa senhora me restituirá. E o que fará ella para isso?
-
-—Oh! vae parecer-lhe singular; mas é preciso que esta noite a menina
-consinta ainda em ir velar em casa d’ella, ao pé de sua irmã, que está
-doente.
-
-—Velar, passar a noite longe de minha avó? oh! não, não, bem sabe que é
-uma coisa que sempre me traz desgraça.
-
-—Mas d’esta vez é pelo contrario para a justificar que se lhe pede isso.
-O que pode recear? aquella senhora interessa-se pela menina, ceda pois,
-peço-lhe eu, consinta mais esta vez; tenho confiança na sr.ª Durmont,
-ella descobrirá de certo o mysterio que reina n’essas duas noites
-inexplicaveis...
-
-—E’ essa a sua vontade? pois bem! farei o que o senhor quer; mas em casa
-d’essa senhora terei o cuidado de não adormecer.
-
-—Sim, é isso; d’esse modo verá o que se passar. A’ meia noite virei
-buscal-a, e eu mesmo a levarei a casa d’essa senhora.
-
-—Terá essa bondade?
-
-—Ah! Lisa, tracta-se da sua felicidade, da sua reputação; pois a menina
-acredita que alguem tome n’isso mais interesse do que eu? Então, está
-ajustado; á meia noite estará prompta?
-
-—Oh! sim, a essa hora já minha avó está a dormir.
-
-—Eu virei buscal-a.
-
-E, deixando Lisa, Casimiro dirige-se immediatamente a casa da vizinha do
-segundo andar, e diz-lhe:
-
-—Lisa consentiu; á meia noite eu lh’a trarei.
-
-—Muito bem.
-
-—Prometteu não se deixar dormir, e eu incitei-a tambem a isso, para que
-ella veja se alguem vem ter com ella durante a noite.
-
-—Oh! o senhor fez muito mal, pelo contrario, é preciso que Lisa durma, é
-indispensavel; é com isso que eu conto...
-
-—Não a comprehendo, minha senhora.
-
-—Ha de comprehender-me esta noite; demais, vou preparar uma bebida
-ligeiramente soporifica, e pedir-lhe-hei que a faça beber o senhor mesmo
-a essa menina, dizendo-lhe que é para se conservar bem esperta.
-
-—Mas, minha senhora...
-
-—Senhor, se Lisa não dormir, não saberemos nada, e esta experiencia será
-completamente inutil.
-
-—Oh! n’esse caso obedecerei, porque tenho confiança na senhora.
-
-—Folgo de crer que se não arrependerá. Venha, senhor, acompanhe-me, vou
-leval-o ao quarto onde Lisa ha de ficar velando esta noite; é onde dorme
-minha mana, que goza de perfeita saude, mas que fingirá estar doente,
-e pela noite adeante pedirá de beber duas ou tres vezes quando a sua
-enfermeira não estiver a dormir.
-
-A sr.ª Durmont faz entrar o rapaz n’um bello quarto de dormir, que tem
-duas portas: uma, que é de vidraça, dá para outro quarto; ahi estão os
-vidros apenas cobertos por uma ligeira cortina de cassa. A senhora leva
-Casimiro a este quarto, e diz-lhe:
-
-—Não acha, senhor, que detraz d’esta vidraça se pode ver tudo quanto se
-faz no quarto onde Lisa ha de ficar?
-
-—Sim, minha senhora, effectivamente, não ha nada mais facil; como a
-cortina está d’este lado, pode-se facilmente affastar.
-
-—Tanto mais que, pela maneira porque ha de estar allumiado o quarto de
-minha mana, esta porta de vidraça ficará completamente na obscuridade.
-Pois bem, senhor, é aqui, de traz d’esta vidraça e sem que a pequena o
-saiba, que nós passaremos a noite, o senhor, a vizinha do primeiro andar
-e eu; parece-lhe que poderemos assim vêr tudo o que Lisa fizer?
-
-—Certamente, minha senhora; mas, não comprehendo...
-
-—Espere, espere, e estou certa de que ha de comprehender esta noite.
-O senhor terá a bondade de me trazer a menina Lisa, e fingirá que vae
-para sua casa, mas voltará aqui por est’outro lado; não se esquecerá do
-caminho?
-
-—Fique descançada, minha senhora, não me esquecerei de coisa alguma...
-
-—Até á noite, senhor.
-
-Casimiro deixa esta senhora, procurando em vão adivinhar o que ella
-espera. Emcontra Rouflard e communica-lhe as suas inquietações. O
-ex-janota abana a cabeça, dizendo:
-
-—Eu tambem não adivinho nada em tudo isso; mas em todo o caso,
-affianço-lhe que passarei a noite na escada deante da porta d’essa
-senhora, e que se algum larapio de colhéres tentar introduzir-se na casa,
-começarei pelo desancar.
-
-Assim que dá meia noite, Casimiro dirige-se a casa da sua vizinha. Acha-a
-muito triste, a tremer, mas prompta a seguil-o, porque sua avó está a
-dormir. A rapariga apressa-se a pegar no seu trabalho, e, sem dizer
-palavra, vae acceitar o braço que lhe offerece Casimiro. Descem assim
-alguns degraus.
-
-—A menina está a tremer, diz-lhe o seu braceiro, tem frio?
-
-—Não, pelo contrario, tenho muito calor; mas estou a tremer, porque
-adivinho ainda uma desgraça...
-
-—Mas, ao contrario, são os seus desgostos que vão acabar, socegue, esta
-senhora quer que a sua innocencia brilhe aos olhos de toda a gente.
-
-—E como se haverá para isso?...
-
-—E’ segredo d’ella... tenha confiança.
-
-Chegam ao segundo andar. A sr.ª Durmont vem pessoalmente ao seu encontro,
-e leva-os para o quarto onde a irmã está deitada ha muito tempo.
-
-—E’ aqui que a menina ficará velando, diz ella á sua joven vizinha; tome
-uma chavena de chá, que lhe ha de fazer bem e conserval-a acordada.
-
-—Agradecida, minha senhora, não preciso de nada.
-
-—Lisa, diz Casimiro, tome o que esta senhora lhe offerece, peço-lhe eu,
-isso ha-de socegal-a.
-
-—Se o senhor o deseja...
-
-E a rapariga bebe o conteúdo da chavena que lhe apresentam.
-
-—Agora, boa noite, diz Casimiro, vou para minha casa... até ámanhã...
-
-—Sim, até ámanhã.
-
-O joven pintor retira-se. A sr.ª Durmont diz então a Lisa:
-
-—Minha menina, aqui tem tudo quanto lhe é preciso; tisana para quando
-minha irmã pedir de beber... uma colhér d’este xarope quando ella tossir.
-
-—Uma colhér, ah! sim... ahi temos outra; mas podia-se passar sem ella,
-minha senhora.
-
-—Não... pelo contrario, é indispensavel; precisa mais alguma coisa?
-
-—Oh! não, minha senhora, de nada absolutamente.
-
-—N’esse caso, vou deixal-a; minha irmã parece menos afflicta esta noite,
-creio que lhe dará pouco que fazer, aqui tem uma grande poltrona onde
-estará á sua vontade para repousar. Porque, se minha irmã dormir, tambem
-a menina pode descançar um pouco.
-
-—Oh! não, minha senhora, não quero... velarei sempre...
-
-—Boa noite, menina, até ámanhã.
-
-Assim que a sr.ª Durmont se retira, Lisa senta-se n’uma cadeira e pega no
-seu trabalho, dizendo comsigo:
-
-—Oh! não, não me deixarei dormir, para que durante o meu somno venham
-ainda tirar a colhér... Ah! se eu tivesse velado sempre, não teria
-acontecido isso; mas esta lampada allumia perfeitamente, posso bordar.
-
-Casimiro entretanto dirigiu-se ao quarto que lhe foi indicado e que está
-apenas allumiado por uma lamparina. Encontra alli Ambrosina, que está
-sentada junto da porta de vidraça; toca um frio cumprimento com ella,
-dizendo-lhe:
-
-—Agradeço-lhe, minha senhora, o não ter faltado aqui, para ter a prova da
-innocencia de Lisa...
-
-—Desejo-o muito, porque eu não sou tão má como o senhor pensa; mas
-confesso-lhe que duvido que se consiga proval-a.
-
-Põe termo a este colloquio a chegada da sr.ª Durmont, que colloco a
-lamparina muito longe da porta de vidraça, dizendo:
-
-—D’esta maneira, é impossivel que do quarto da minha mana se veja que
-ha luz aqui, emquanto que nós, atravez d’esta ligeira cortina de cassa,
-podemos ver tudo o que alli se passa. Olhe, minha senhora, tenha a
-bondade de vêr...
-
-—Ambrosina põe a cara á vidraça e murmura:
-
-—Effectivamente, vejo muito bem, porque o quarto està muito illuminado...
-a rapariga trabalha...
-
-—Sim, e agora é preciso termos paciencia, devemos esperar que ella
-adormeça.
-
-—Mas se não adormecer?
-
-—Oh! estou certa do contrario, graças a um ligeiro narcotico que misturei
-na chavena de chá que lhe fiz tomar, e creio que era isso necessario,
-porque ella estava muito decidida a não dormir. Mas aquella beberagem não
-fará talvez o seu effeito senão dentro de duas ou tres horas... d’aqui
-até lá, se a senhora quer encostar-se n’esta poltrona...
-
-—Não, minha senhora, muito agradecida, não tenho vontade de dormir,
-porque estou com muita curiosidade de saber o que sairá de tudo isto.
-
-Esta conversação era toda em voz baixa, o que augmentava o mysterio
-que esta noite devia descobrir. As tres pessoas alli reunidas teem-se
-sentado e guardam silencio, pondo os ouvidos á escuta do que se passa no
-quarto onde está Lisa. A irmã da sr.ª Durmont, que sabe bem o seu recado,
-pede de beber; a rapariga apressa-se a dar-lhe a tisana, e em seguida
-offerece-lhe uma colhér de xarope, que é logo acceita. Lisa torna a pôr a
-colhér em cima do meza, e senta-se ao lado. A supposta enferma adormece
-devéras, e a rapariga põe-se de novo ao seu trabalho.
-
-Assim se passa uma hora, e depois outra. A anciedade de Casimiro
-augmenta; Ambrosina não diz palavra, mas não fecha os olhos. A sr.ª
-Durmont olha constantemente pela vidraça, murmurando:
-
-—Mas a pequena não adormece... conseguiria ella vencer o narcotico!...
-
-—Passam ainda alguns minutos, que parecem seculos; a final a sr.ª Durmont
-exclama:
-
-—Ah! debalde pretende resistir, cae-lhe o trabalho das mãos, vae
-adormecer...
-
-—Sim, sim, adormece, diz Casimiro; veja, lá inclinou a cabeça para traz.
-Oh! ella ahi está bem adormecida...
-
-—E agora, diz Ambrosina olhando tambem pela vidraça, o que é que se vae
-passar?...
-
-—Espere, minha senhora, espere que o somno seja bem profundo, agora
-podemos levantar de todo esta cortina sem receio de sermos vistos.
-
-E’ levantada a cortina. As tres pessoas que espreitam estão com os olhos
-pregados em Lisa; esta, no fim de algum tempo, agita-se; o seu somno
-parece desassocegado e molesto.
-
-—Coitada! parece-me bem afflicta, diz Casimiro, deve estar com algum
-sonho máu...
-
-—Ah! ahi acorda ella... porque lá se levanta e abre os olhos, diz
-Ambrosina.
-
-—Silencio, minha senhora, silencio, diz a sr.ª Durmont; ella continúa
-dormindo, não vê que é somnambula?
-
-—Somnambula!
-
-—Pois! escute... está falando...
-
-Lisa, que continua a dormir, não obstante estar com os olhos muito
-abertos, levanta-se da cadeira, dizendo:
-
-—Sim, avósinha, sim, vou fechar a sua colhér de prata... que a avósinha
-estima tanto, e que tem tanto medo que nos furtem. Oh! mas eu a
-esconderei bem, não tenha cuidado, sempre no mesmo sitio, a avósinha bem
-sabe, debaixo do meu colchão de crina...
-
-E Lisa vae immediatamente buscar a colhér que está em cima da mesa, e,
-indo pôr-se de joelhos deante da cama, mette-a entre o leito e o colchão;
-depois ergue-se, dizendo:
-
-—Oh! está bem escondida, ninguem dará com ella... não tenha medo agora,
-avósinha...
-
-Lisa volta para o seu logar, torna a sentar-se e fecha os olhos. A’s
-tres pessoas que espreitam pela vidraça, não lhes escapou nada do que se
-passou. Casimiro está transportado de alegria.
-
-—Justificada! exclama elle, está justificada, porque as outras colhéres
-devem estar escondidas no mesmo sitio, não é verdade, minha senhora?
-
-—Certamente! responde a sr.ª Durmont, esta rapariga é somnambula, eis
-o que eu havia adivinhado; eis o que eu tinha a peito fazer-lhes ver:
-agora, venham, podemos entrar no quarto, que ella não acordará...
-
-—Somnambula! diz Ambrosina, que custa a cair em si do seu espanto. Ah!
-estou com muita curiosidade de a examinar de perto.
-
-Aberta a porta de vidraça, entram todos tres no quarto de dormir. Lisa
-está na poltrona, com a cabeça inclinada para traz, e, na agitação do seu
-somno, afastou completamente o lencinho que lhe cobria o pescoço; pode-se
-então ver uma pequena medalha presa a uma fita preta, que ella traz
-sempre escondida debaixo do vestido.
-
-A sr.ª Montémolly, que duvida ainda do somno de Lisa, approxima-se d’ella
-e examina-a com muita attenção.
-
-—Venha, minha senhora, diz-lhe Casimiro, venha, vamos a sua casa, a
-colhér deve estar egualmente escondida debaixo do leito da sua doentinha;
-é preciso que a senhora tenha pessoalmente a prova da innocencia de
-Lisa...
-
-Mas Ambrosina parece estar attonita; acaba de ver a medalha que a
-rapariga traz ao pescoço; essa medalha, que tem uma fórma particular, é
-esmaltada toda em roda e artisticamente lavrada. Ambrosina não pode tirar
-d’ella os olhos, e responde apenas a Casimiro:
-
-—Vá, senhor, vá com essa senhora... não precisam de mim; a minha creada
-está velando, com luz... demais, aqui teem a minha chave...
-
-—Mas porque não vem a senhora comnosco?
-
-—Porque não, alguma coisa muito mais importante me faz ficar ao pé de
-Lisa; logo saberão o que é... andem, vão...
-
-Casimiro não insiste, porque demais está com pressa de ir procurar a
-outra colhér; a sr.ª Durmont não tem menos pressa, porque sente certo
-orgulho em ter conseguido descobrir o mysterio que envolvia as acções de
-Lisa. Na escada encontram Rouflard, o qual se puzera alli de sentinella.
-
-—Justificada! diz-lhe logo Casimiro, Lisa é somnambula, e a dormir,
-pensando sempre na colhér da avó, esconde debaixo do colchão de crina
-quantas colhéres encontra á mão. Vamos procurar a que ella deve ter
-escondido assim em casa da sr.ª Montémolly.
-
-—Ah! por favor, permittam-me que vá tambem, exclama Rouflard, gostarei
-muito de ver a cara que vae fazer a besbilhoteira da creada!...
-
-—Venha, Rouflard, venha...
-
-Entram em casa de Ambrosina, e acham a menina Adriana a dormir na sala em
-vez de estar velando á cabeceira da doentinha; mas Casimiro desperta-a
-dizendo-lhe:
-
-—Venha comnosco, menina, conduza-nos ao quarto onde Lisa passou hontem a
-noite; vamos lá achar esse objecto perdido...
-
-—A colhér? ah! isso agora é forte de mais; se eu procurei por toda a
-parte inutilmente!...
-
-Mas não fazem caso do que diz a creada, e dirigem-se todos ao bonito
-quarto onde dorme a pequenita. Ahi, Casimiro corre á cama, busca debaixo
-do colchão de crina e não tarda a soltar um grito de jubilo, tirando para
-fóra a colhér e mostrando-a a toda a gente.
-
-Então Rouflard pula de alegria, e diz a Adriana:
-
-—Responda a isto, má lingua! parece que não tinha buscado por toda a
-parte!
-
-—Oh! valha-me Deus! quem é que podia suspeitar que se fosse pôr uma
-colhér de prata n’este sitio; com que fim?
-
-—Quando uma pessoa é somnambula faz coisas muito mais admiraveis!
-
-—Somnambula?...
-
-—Sim, eis todo o mysterio! Ah! subo a casa dos Proh, para lhes dizer onde
-teem a colhér...
-
-—Mas elles estão a dormir, Rouflard!
-
-—Razão de mais, meu artista; isso ha de fazer-lhes mais effeito! quero
-que a justificação do meu anjo bom faça tanta bulha como as calumnias que
-lhe accusavam.
-
-
-
-
-XVIII
-
-Outra descoberta
-
-
-Casimiro e a sr.ª Durmont voltam a ter com Ambrosina; acham-n’a ainda ao
-pé de Lisa, que não acordou, devorando com os olhos a medalha suspensa ao
-pescoço da donzella, mas não se atrevendo a tocar-lhe, com receio de a
-fazer sair do somno um pouco forçado em que a mergulhou o narcotico que
-lhe fizeram tomar.
-
-—Minha senhora! minha senhora! aqui tem a sua colhér! exclama Casimiro
-mostrando a colhér de prata; estava escondida como aqui; graças a esta
-senhora, a pobre rapariga está plenamente justificada...
-
-—Sim, senhor, sim; eu não duvidava d’isso; mas alguma coisa que não
-posso comprehender me detem ao pé de Lisa; esta medalha que ella traz, é
-exactamente como aquella que eu tinha posto ao pescoço de minha filha; a
-minha abria-se, e na parte anterior tinha eu mandado gravar duas letras:
-um A e um G, que eram as iniciaes do meu nome e do de seu pae; ardo
-em desejo de saber se esta medalha se pode abrir, mas não me atrevo a
-tocar-lhe com receio de acordar esta menina...
-
-—Oh! não ha perigo! diz a sr.ª Durmont, o seu somno é profundo agora;
-espere... espere, vou tirar-lhe; ou antes desatar esta fita.
-
-A inquilina do segundo andar faz esta operação com muito geito; desata
-a fita, tira a medalha, e apresenta-a a Ambrosina; esta pega n’ella com
-a mão tremula, busca, descobre a juntura; a medalha abre-se. Ambrosina
-dá um grande grito, acaba de reconhecer as duas letras, e mostra-as ás
-pessoas que a rodeiam, dizendo-lhes:
-
-—Olhem! vejam... um A e um G... é exactamente a medalha que eu tinha
-posto ao pescoço de minha filha quando a entreguei á ama. Como é que ella
-se acha ao pescoço d’esta menina?
-
-Entretanto o grito dado por Ambrosina acordou Lisa, que abre os olhos,
-põe-se a olhar para as pessoas que a cercam, e balbucia:
-
-—Meu Deus! o que é que eu fiz ainda?...
-
-—Não receie nada, minha menina, diz a sr.ª Durmont, a sua innocencia está
-reconhecida; tudo lhe será explicado...
-
-—Mas n’este momento, diz Ambrosina, queira responder-me, esta medalha,
-que a menina trazia ao pescoço, e que eu tomei a liberdade de lhe tirar
-para a examinar de mais perto, d’onde lhe veiu? de quem a houve?
-
-—De quem a houve? mas eu tenho-a tido sempre, foi minha mãe que m’a pôz
-ao pescoço quando me levou para casa da minha ama.
-
-—Sua mãe? meu Deus!... como se chama ella?
-
-—Eu nunca o soube, ella não dizia o seu nome quando vinha ver-me a casa
-da minha ama...
-
-—Como! a menina não sabe? e tem comsigo sua avó... ella existe?...
-
-—Ah! minha senhora, a pobre velha paralytica não é minha parenta; era
-mãe da minha boa ama, que tinha muito cuidado em mim, que me conservou
-comsigo, quando minha mãe me abandonou; eis a razão por que eu, quando a
-minha ama morreu, tive sempre cuidado em sua mãe...
-
-—Meu Deus! tudo o que estou ouvindo... minha menina... por quem é...
-diga-me a terra onde foi educada...
-
-—Em Pierrefitte, minha senhora...
-
-—Pierrefitte... está bem, ah!... e o nome da sua ama...
-
-—Catharina Vauger...
-
-—Ah! não me resta duvida! és minha filha!...
-
-Ambrosina aperta Lisa nos braços, e cobre-a de beijos, dizendo-lhe:
-
-—Sim, és effectivamente minha filha, mas não creias que eu tivesse nunca
-o pensamento de te abandonar, eu, que era tão feliz em ter uma filha!
-Tu foste... fomos ambas indignamente enganadas; eu tinha uma tia que te
-detestava; durante uma viagem que fiz a Italia para restabelecer a minha
-saude, essa tia, a quem eu tinha recommendado muito que velasse por ti,
-annunciou-me que tinhas deixado de viver!...
-
-—Oh! então, deve ter sido ella que escreveu á minha ama, remettendo-lhe
-uma quantia bastante avultada, para que viesse estabelecer-se em Paris,
-e não me chamasse mais senão Lisa em vez de Leontina, que era o nome que
-minha mãe me tinha dado...
-
-—Leontina... ah! é isso mesmo... tua mãe... mas sou eu... querida
-filha, sou eu mesma... acaso não terás por mim alguma affeição... não me
-perdoarás... o mal que te tenho feito?...
-
-—Oh! minha senhora... minha mãe... já me não lembro d’isso!
-
-As testemunhas d’esta scena tomam parte na alegria, no enternecimento
-d’estas duas mulheres, uma das quaes torna a encontrar a filha que
-tinha por morta ha muito tempo, emquanto que a outra, que quasi todos
-accusavam, que suspeitavam culpada d’uma acção deshonrosa, se vê agora
-abraçada, coberta de caricias e de lagrimas por uma bella senhora que
-é sua mãe. Lisa, no auge da sua alegria, extende as mãos a Casimiro,
-exclamando:
-
-—Ah! o senhor é que nunca me julgou criminosa!
-
-Depois agradece á sr.ª Durmont dizendo-lhe:
-
-—E’ pois á senhora que eu devo o ter recuperado a estima do mundo, como é
-que se houve então para provar a minha innocencia?
-
-—Minha querida menina, depois de tudo o que se passára, eu tinha
-adivinhado que a menina era somnambula, e não me enganava.
-
-—O quê! eu sou somnambula!...
-
-—Sim, sem duvida, quando está a dormir, sempre preoccupada com a colhér
-de prata que deu á sua velha companheira, e receando que lh’a furtem, a
-menina pega na que tem perto de si, pensando que é a sua, e esconde-a.
-Oh! isso não tem nada de muito extraordinario; tenho visto fazer a
-somnabulos coisas muito mais de espantar!...
-
-—Mas, quando estou acordada, devia lembrar-me do que fiz estando a
-dormir!...
-
-—Não, minha filha, os somnambulos não se recordam nunca do que fizeram
-emquanto estiveram entregues a esse somno em acção, e é isso o que ha
-de mais singular n’essa doença, porque é effectivamente uma doença, mas
-que passa com a mocidade, e desapparece inteiramente quando a edade tem
-acalmado as nossas paixões e o calor do nosso sangue.
-
-—Agora, diz Ambrosina, não incommodemos mais tempo esta senhora, a quem
-eu devo tambem a minha felicidade, pois que é, graças á idéa que ella
-teve de te ver adormecida, que eu pude examinar essa medalha e tornar a
-achar minha filha. Vem, minha querida Lisa, vem para casa de tua mãe, a
-quem não deixarás mais d’aqui em deante.
-
-Lisa está perplexa e confusa, sorri-se para sua mãe, e balbucia:
-
-—E a pobre velha de quem nunca me tenho separado... acaso quereria que eu
-a abandonasse?
-
-—Não, não querida filha, comprehendo o teu coração, não quero causar-te
-nenhum desgosto; a mãe da tua ama não se ha de separar de ti, tomal-a-hei
-para a nossa companhia, a minha casa é bastante grande para que eu possa
-dar-lhe um quarto. D’este modo nada lhe faltará, e tu velarás sempre por
-ella...
-
-—Ah! minha senhora... minha mãe... é tambem muito bondosa!
-
-—E, agora que vem rompendo a aurora, vou subir comtigo a esse pobre
-quarto que habitavas; participaremos á boa velha que já não és orphã e
-que tua mãe nunca te tinha abandonado; eu te mostrarei a carta de minha
-tia, em que ella me annunciava que tinha perdido minha filha; tenho
-conservado sempre essa carta...
-
-—E eu, minha mãe, hei de mostrar-lhe a carta que a minha ama recebeu
-juntamente com uma quantia, e na qual se lhe ordenava que não me chamasse
-mais senão Lisa e que viesse estabelecer-se em Paris.
-
-—Oh! sim, e estou certa que hei de reconhecer a letra de minha tia.
-
-Ambrosina está contentissima; estende a mão a Casimiro, dizendo-lhe:
-
-—De hoje em deante somos amigos, e espero que não veja mais em mim senão
-a mãe de Lisa, que lhe agradece de todo o coração o interesse, a amizade
-que o senhor tinha por sua filha e que nunca se opporá ao que podér fazer
-a sua felicidade.
-
-Casimiro aperta de bom grado esta mão, que ê agora a d’uma pessoa amiga.
-
-Despedem-se todos da sr.ª Durmont, reiterando-lhe os seus agradecimentos,
-que tão bem merecidos eram. Lisa sobe ao seu quarto acompanhada por sua
-mãe, que não quer deixar mais a filha que um tão grande acaso acaba de
-lhe restituir. Na escada encontram ainda Rouflard, que sae de casa dos
-Proh, gritando:
-
-—Elles lá teem a colhér, que nunca lhes tinha saído de casa. Mas, apre!
-tive um trabalhão immenso! não me queriam abrir a porta!
-
-Ouvindo tocar a sua campainha no meio da noite, a familia Proh julgára
-primeiro inutil responder; mas, como o repique não cessava, tinha
-perguntado:
-
-—Quem está ahi?
-
-—Sou eu, gritára Rouflard, que venho fazer-lhe achar a sua colhér!
-
-Ao reconhecer a voz de Rouflard, o professor respondera:
-
-—O senhor é um maroto, quer perturbar o nosso somno com esse ignobil
-gracejo, ámanhã hei de mettel-o em processo.
-
-Ao que Rouflard, replicára:
-
-—Eu não gracejo, é o senhor e todos os seus que são uma familia de
-pepinos! Eu tenho a peito fazer-lhes reconhecer a innocencia de Lisa, que
-é somnambula, e vou fazer-lhes achar a sua colhér! tocarei a campainha
-até ámanhã se fôr necessario.
-
-A sr.ª Proh decide-se emfim a abrir. Então Rouflard diz:
-
-—Venham todos commigo ao quarto onde Lisa passou a noite; ella escondeu a
-colhér debaixo do colchão de crina...
-
-—Não é possivel, diz Angelina, eu teria dado por isso!
-
-—E de que modo, se a menina estava a dormir?... Vamos lá sempre.
-
-Dirigem-se todos ao quarto da donzella. O rapazinho que se tem tambem
-levantado e ouve tudo, exclama:
-
-—Eu vou procurar debaixo do colchão...
-
-—Não, não, tu não tens o braço bastante comprido, diz Rouflard, que
-busque o illustre professor, se isso lhe é agradavel...
-
-—Eu! prestar-me a essa nova mangação, para o senhor fazer chacota de
-mim!...não conte com isso...
-
-Mas, durante esta altercação, a sr.ª Proh, que está muito impaciente,
-tem-se já posto de joelhos deante da cama; mette o braço debaixo do
-colchão, e em seguida tira de lá para fóra a colhér, dizendo:
-
-—Pois é verdade, ella cá está!
-
-—Então, professor, é mentira o que eu lhe dizia? Que diz a isto?
-
-—Direi o que isso prova: que as nossas mulheres, filhas ou creadas que
-teem a seu cargo o arranjo da casa, não se dão ao trabalho de levantar os
-colchões quando fazem as camas!...
-
-—Ora, senhor! exclama a sr.ª Proh, as mulheres teem já tantas coisas que
-levantar!
-
-Ambrosina acompanha a filha até á agua-furtada; acham a avó acordada,
-contam-lhe os acontecimentos da noite, e a boa da velha, á força de olhar
-para Ambrosina, de a examinar bem, exclama:
-
-—Sim... é verdade... reconheço-a agora... foi a senhora que nos trouxe a
-pequena... e que voltou a vel-a muitas vezer a Pierrefitte.
-
-Depois Lisa mostra a carta que a sua ama tinha recebido; Ambrosina
-reconhece a letra de sua tia, e, se ella tivesse ainda alguma duvida
-sobre a identidade de sua filha, esta ultima prova não podia deixar-lhe
-mais nenhuma. Pela sua parte, mostra tambem a Lisa a carta de sua tia que
-lhe annunciava a morte da filha, porque tem a peito provar a Lisa que
-nunca tivera a idéa de a abandonar.
-
-No dia immediato a esta noite tão fecunda em acontecimentos, faz-se
-na casa uma grande mudança: como Florentina viera buscar a filha,
-Ambrosina dá a Lisa o lindo quarto azul onde estivera a pequenita; depois
-arranja-se um outro quarto para a velha paralytica, que é trazida da sua
-agua-furtada para o primeiro andar, e que fica muito satisfeita ao saber
-que, apezar da sua mudança de fortuna, a Lisinha, que ella considera como
-filha, não se quer separar d’ella.
-
-Casimiro ficou muito espantado, e assim a modo triste, quando se
-descobriu o segredo do nascimento de Lisa; teve mesmo por um momento
-o coração opprimido, como quem receia perder a pessoa que ama. Mas em
-breve adquire a prova de que o amor maternal extinguiu em Ambrosina
-qualquer outro sentimento, e que para esta mulher, tão feliz por ter
-achado sua filha, o passado não é mais do que um sonho, de que ella nem
-mesmo quer conservar a recordação. O joven pintor pode pois agora ver
-Lisa em casa de sua mãe. Mas durante os primeiros mezes que se seguem a
-este acontecimento, põe n’isso certa discreção, porque comprehende que ha
-situações que precisam de tempo para se consolidarem. Demais, Casimiro
-trabalha agora muito; o bom acolhimento que os seus quadros obteem,
-redobra o seu enthusiasmo, o seu amor pela pintura; em todas as artes,
-não é preciso muitas vezes mais que um bom exito para tirar um homem da
-mediocridade, para fazer d’elle uma celebridade, e por falta d’esse bom
-exito quantos talentos não teem morrido, sem terem desenfardado as suas
-mercadorias, como diz Montaigne.
-
-Seis mezes depois d’estes acontecimentos, morre o sr. Loursain, em
-consequencia d’uma indigestão. Ambrosina sabe que está viuva, e, o que a
-surprehende muito mais, é que recebe uma carta d’um tabellião, que lhe
-participa que seu marido lhe deixou toda a sua fortuna, que anda por
-perto de trezentos mil francos. A menina Rosa, a creada tão janota e
-presumida, que seu amo tratava por tu, teve apenas em legado uma quantia
-de seiscentos francos, e o retrato do corpo inteiro do sr. Loursain. A
-creadinha, na força da sua colera, manda accrescentar no retrato um par
-de chifres e vende-o para servir de taboleta a um salsicheiro, que manda
-escrever por baixo: _O boi da moda_.
-
-Ambrosina, que tencionava entregar á filha uma parte dos seus haveres,
-dá-lhe primeiro em dote a fortuna que lhe deixa o sr. Loursain, comprando
-ella para si uma bonita casa nos suburbios de Paris, onde faz tenção de
-ir viver quando Lisa casar com Casimiro.
-
-Essa união pouco tarda a fazer-se, porque Lisa confessou a sua mãe que
-ama o rapaz que lhe fez o retrato. Ambrosina estabelece os jovens noivos
-n’uma linda habitação, e retira-se para a casa de campo, onde agora quer
-viver sempre; Lisa, porém, se deixou sua mãe, não quiz, posto que casada
-separar-se d’aquella de quem cuidava tão carinhosamente na sua pobre
-agua-furtada, da boa velha a quem ella chamava avó, e Casimiro, lá de si
-para si, estima cem vezes mais que ella tenha na sua companhia esta do
-que a outra.
-
-Desde que em casa dos Proh se achou a colhér de prata, o Fonfonsinho não
-cessa de gritar por toda a parte:
-
-—Lisa é funanbula! e quando uma pessoa é funanbula esconde tudo quanto
-quer:
-
-Debalde a sr.ª Proh diz ao filho:
-
-—Não é funambula, somnambula é que essa menina era...
-
-—Qual é a differença?
-
-—A differença, meu filho, é que os somnambulos andam a dormir e os
-funambulos andam n’uma corda e até dansam, estando acordados.
-
-—Pois bem! eu antes quero ser somnambulo!
-
-—Para quê, filho? o somnambulismo é uma enfermidade, emquanto que o
-funambulismo é um talento!
-
-—Sim, mas quando eu fôr somnambulo hei de esconder todos os covilhetes de
-doce.
-
-—Nada ganharias com isso, Affonso, pois que, em acordando, ninguem se
-lembra mais do que fez no estado de somnambulismo.
-
-—Ah! pois não! então eu sou tolo! não serei somnambulo senão d’um olho!...
-
-O sr. Proh bate com a mão na testa, exclamando:
-
-—Este rapazinho ha de ir longe!
-
-Graças ao trabalho que Casimiro lhe arranja Rouflard pode viver; poderia
-mesmo ter um quarto um pouco melhor, mas elle não quer mudar-se, dizendo
-que está habituado a morar alli, assim como a chamar ao porteiro seu
-creado; como o pintor já não mora no predio, Chausson deixa algumas vezes
-o seu antigo amo dormir na rua, porque este continúa a embriagar-se do
-mesmo modo. Em vão Casimiro lhe diz:
-
-—É preciso corrigir-se d’esse ruim defeito, Rouflard; quando um homem
-quer devéras, de tudo se emenda! veja o exemplo em mim, eu era um
-preguiçoso, hoje gosto do trabalho.
-
-—Isso é muito bonito, responde Rouflard, mas eu preciso de consolações;
-morava por baixo de mim um anjo, o senhor levou-o para longe! quando
-estou bebedo, affigura-se-me que o tenho ainda ao pé de mim, e é por isso
-que bebo!
-
-
-FIM DA «A MENINA LISA»
-
-
-
-
- OBRAS COMPLETAS DE PAULO DE KOCK
-
- _Estão publicados 23 volumes_
-
- A seguir:
-
- O homem dos tres calções (2 vol.)
-
-
-
-
-INDICE
-
-
- Pag.
-
- Palavreado para servir de prefacio 5
-
- I—Uma creada que sae a recados 11
-
- II—Na botica 22
-
- III—Um rapaz manteúdo 36
-
- IV—Um almoço em intimidade 48
-
- V—O lindo Rouflard 62
-
- VI—A familia Proh 72
-
- VII—A menina Lisa 79
-
- VIII—Travam conhecimento 88
-
- IX—Uma colhér de prata 97
-
- X—Ainda as creadas 105
-
- XI—O vinho quinado 111
-
- XII—A primeira sessão 117
-
- XIII—Um rapazito endiabrado 128
-
- XIV—A senhora do primeiro andar 137
-
- XV—A menina Proh doente 143
-
- XVI—Mais um caso extraordinario 155
-
- XVII—O que era 166
-
- XVIII—Outra descoberta 177
-
-
-REFERENCIA DAS ESTAMPAS
-
- Levanto-me tarde porque gosto de estar deitado 83
-
- Mas o que faz o senhor aqui? 129
-
-
-
-
-
-End of the Project Gutenberg EBook of A menina Lisa, by Paul de Kock
-
-*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MENINA LISA ***
-
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-things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
-even without complying with the full terms of this agreement. See
-paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
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-Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
-of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual
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-States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
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